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Nunca pude

MARIO AUGUSTO POOL


compreender com

Mario Augusto Pool


No Nevoeiro exatidão por que a
boa convivência entre
esporte e literatura
No Nevoeiro é uma releitura contemporânea de um livro que

NO NEVOEIRO
é incomum e difícil.
marcou gerações e transformou a arte da escrita. Apesar disso, em No
Com sensibilidade e audácia, Mario Augusto Pool rompe Nevoeiro, Mario Augusto
padrões nesta história cheia de sutileza e reviravoltas. Uma Pool supera estas
lufada de neve criativa na fogueira das velhas novidades. dificuldades e consegue
Guilherme Rovadoschi nos seduzir com a
história do menino
Raul e o super laser
Nascido na cidade de Rio Grande, Pra quem já gostava do autor de contos, é uma delícia poder
Ozzy, treinando para
Rio Grande do Sul, em 1964, fazer a leitura de uma história contada, agora, com mais vigor,
as regatas no Guaíba e
Mario Augusto Pool fez da vida como nesta obra. Tal como nas narrativas de Gogol ou J. K.
acadêmica a sua profissão. Lagoa dos Patos.
Rowling, o público poderá saltar do trampolim mais fantasioso
Formado em Pedagogia Multimeios
para as águas mais reais e cotidianas, passando pela inerente
e Informática Educativa, é Doutor Aventura e mistério se
adrenalina da queda livre dessa aventura.
em Educação e atua como gestor sucedem de maneira
educacional no ensino superior. Arthur Menezes envolvente, oferecendo
Casado, pai de três filhos, mora
um clima de suspense

NO NEVOEIRO
em Porto Alegre por adoção e
Nesta narrativa, Mario Pool consegue captar a essência do cativante que vai se
paixão. Como escritor, além de
artigos lançados em periódicos
adolescente e destacar, de forma tênue e sensível, seu poder desenhando desde o
nacionais e internacionais, de transformação, sob a influência do desafio, do medo, início. Impossível evitar
publicou duas importantes obras do inesperado, do sobrenatural, da fé. Em No nevoeiro, empatia com Raul, seus
que tratam do comportamento o leitor fará uma rápida e profunda leitura de si mesmo, objetivos, devaneios e
das juventudes frente às novas independentemente da época, das vivências e das memórias. ansiedades.
tecnologias. Lançou-se como
Jonas Saraiva
escritor ficcional em 2016 a partir O clima adverso que o
da sua formação nos cursos da esporte náutico às vezes
Editora Metamorfose. Publicou proporciona oferece
nas coletâneas “Diálogos” (2016),
nessa novela confrontos
“Anti Heróis” (2017) e “Contos
com desafio, coragem,
de Mochila” (2018). Entusiasta
solidão e humildade aos
dos contos, novelas e romances,
encontra, no desafio da escrita, sua
elementos naturais e
realização máxima, ao dar vida a sobrenaturais. Enfim,
personagens que construíram o www.marioaugustopool.com.br embarcar no Ozzy
seu imaginário e fizeram parte da nas águas do sul se

editora metamorfose
sua jornada. Em “No Nevoeiro”, revela uma aventura
entrega aos seus leitores a sua inesquecível.
primeira novela, inspirada no
seu envolvimento com os esportes
náuticos e no clube de vela em que
Guido Martin
convive com a sua família.
Kopittke
editora metamorfose
MARIO AUGUSTO POOL

NO NEVOEIRO

metamorfose
Revisão (Forma e Estilo) Fotografia da Capa
Jonas Saraiva Tiago Abreu
Revisão (Narrativa) Ilustrações
Arthur Menezes Mario Augusto Pool
Gilberto Fonseca Évelyn Rocha De Araújo
Guilherme Rovadosch
Orientações Técnicas Edição
(Navegação) Marcelo Spalding
Guido Martin Kopittke
Ricardo Paranhos Diagramação
Rogerio Ruschel Marcelo Spalding

Capa Editora
Jorge Fabiano Méndez Metamorfose

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)

P821n Pool, Mario Augusto


No nevoeiro / Mario Augusto Pool.
- Porto Alegre: Metamorfose, 2018.

88 p.: il ; 14X21cm. – ISBN: 978-85-53074-33-4

1. Literatura Brasileira 2. Literatura Gaúcha


3. Novela I. Título.

CDD B869.3

Bibliotecária Alexandra Naymayer Corso - CRB10/1099

Todos os direitos desta edição reservados à Editora Metamorfose


www.editorametamorfose.com.br
www.marioaugustopool.com.br
MARIO AUGUSTO POOL

NO NEVOEIRO
— 2018 —

www.marioaugustopool.com.br
APRESENTAÇÃO
Classificar gêneros é uma das maiores dificuldades
entre teóricos e professores. Acho importanteapresentá-
los a quem quer fazer literatura, para entender as
convenções do que seja um conto, uma crônica, uma
novela, mas ao mesmo tempo acho importante que o
escritor exploda esses conceitos na hora de escrever,
explore seus limites, reinvente. E isso é o que faz Mario
Pool em seu primeiro livro individual de ficção.
Não é possível dizer que No Nevoeiro seja um
conto ou uma novela, apresenta características de
ambos, como a unidade de conflito, protagonista,
tempo, mas narrando sem pressa, com a profundidade
necessária para nos envolver nesse nevoeiro climático
e psicológico. Não é possível dizer que se trata de
realismo mágico, afinal quais são os limites da realidade
e da magia? Tampouco é possível chamarmos a obra
de literatura infantojuvenil, ainda que seu protagonista
seja um jovem e muitos dos conflitos juvenis estejam
representados nesta aventura.
No Nevoeiro é um convite a navegarmos nas
águas paradas, tranquilas e traiçoeiras do nosso Guaíba,
território conhecido e ao mesmo tempo estranho para
a maioria de nós que vivemos na Zona Sul de Porto
Alegre. O espaço é o grande protagonista, o espaço e
suas circunstâncias, aliado e inimigo de nosso jovem
herói. É como se estivéssemos percorrendo as ruas
da Zona Sul com Raul, depois entrando no barco,
sentindo o pé gelado dentro d’água e sendo envolvido
pelo fatídico nevoeiro.
Mario Pool, vale dizer, é ele próprio um professor
cercado de jovens, entusiasta da educação, da leitura,
da literatura e dos jogos. Já publicou um livro sobre
Educação e sei que para além deste está preparando
outros livros de ficção, provocado que foi em nosso
Curso Livre de Formação de Escritores da Metamorfose.
Nesta obra, ainda que seja sua estreia, já percebemos
que o ficcionista e lúdico escritor é quem comanda,
sem didatismo, sem moralismo, uma história para ser
lida à beira de um rio, lago ou mar.

Marcelo Spalding
Esse livro é dedicado ao revisor e amigo
Jonas Saraiva e aos meus colegas do curso
de Formação de escritores da editora Metamorfose,
Adriana, Mauricio, Ezequiel, Paula e Alexandre
em especial ao seu diretor e meu
professor, escritor Marcelo Spalding.
Em dezembro de 1978, ganhei de uma tia um livro
do renomado escritor inglês Frederick Forsyth. Eu tive o
prazer de iniciar e completar a leitura em apenas uma
noite. A partir de então, não só “O PASTOR” passou a
ser um título de referência para mim, como também o
próprio autor e toda a sua obra se tornaram norteadores
dos meus universos literários. Isso porque, embora minha
tia nunca o tenha sabido, o presente daquele aniversário
foi a primeira obra de literatura que despertou em mim
a grande curiosidade pelos textos de mistério, e a paixão
que passei a nutrir pela narrativa ficcional de aventura.
Frederick foi capaz de abrir a caixa de pandora da
literatura (em sentido completamente positivo, é claro)
aos meus olhos. Em 2018, quando o meu primeiro autor
predileto completa seus 80 anos, não posso lhe agradecer
de outra forma que não seja entregando aos seus leitores,
e aos que virão a ser os meus, minha primeira novela.
Ainda que nunca o tenha conhecido pessoalmente, sinto
que a distância e o tempo não o impediram de realizar,
por meio da sua obra, importantes movimentos na minha
carreira literária. Em homenagem a Frederick Forsyth e
sua obra, deixo aqui “NO NEVOEIRO”, uma releitura do
livro da minha juventude.
Mario Augusto Pool
Em agradecimento a um grupo de velejadores
jovens que têm conquistado minha admiração e
deixado boas lições de amizade e de como trabalhar
em equipe.

Felipe Fraquelli Lucas Azambuja


Felipe Manfro Manuella Geyer
Francisco Ruschel Marcelo Gallicchio
Gabriel Rostirolla Nicolas Mueller
Gabriel Rimoli Paulo Ricardo Stockler
Germano Becker Pedro Amine
Guilherme Becker Pedro Mueller
Guilherme Jung Philipp Grochtmann
Joana Vilas Boas Ribas Ricardo Paranhos
João Antonio Grings Tiago de Abreu
João Antoniazzi Tiago Quevedo
Letícia Silva Vitória Antoniazzi

E, em especial, a meu filho, Leonardo Pool, também


integrante desse grupo seleto.

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12 | NO NEVOEIRO
H
avia duas coisas que me deixavam feliz.
Mesmo em dias ruins. A primeira delas
era o início de um final de semana. A
escola e a rotina semanal não me faziam mal, mas
eu as considerava como compromissos; segundo
meu pai, eram a parte séria da minha vida. No fim
de semana, então, eu me ligava com o prazer e a
diversão. Era o momento em que eu podia estar
com os amigos. Para mim, uma parte tão “séria”
quanto a outra – e até mais.
A segunda era velejar. A vela era um esporte de
família, desses que passam de pai para filho. Havia
ali uma ligação com a infância, com experiências
da minha memória e também da dos meus pais e
irmãos, até hoje.
Quando bem pequeno, o prazer da vela para
mim era olhar, da margem, os outros meninos
maiores. Ou mesmo, vez ou outra, andar junto com
meu pai por alguns poucos metros, abraçado ao
mastro com toda a força. Meu pai e eu estávamos
sempre presentes nos eventos de vela e nas regatas
que ele tanto gostava de correr pelo nosso clube.
Foi num desses eventos que se fez uma das minhas
melhores memórias da época.
Jamais vou me esquecer daquela tarde de

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domingo em que o olhar de satisfação e o sorriso
do meu pai ao caminhar na minha direção
denunciavam algo esperado durante toda a minha,
até então, curta vida. Eu devia ter uns dez anos na
época. Quando meu pai chegou perto de mim, segui
as mãos dele e encontrei-as segurando um cabo
que puxava o meu presente. Era o meu primeiro
barco. Um optimist, antigo, de madeira, proa chata,
o barco dos iniciantes. Embora fosse bem pequeno,
cabiam nele todos os sonhos que poderiam existir
em um menino daquela idade.
E não só os meus, mas também os do meu pai.
Lembro o olhar orgulhoso dele ao me ver velejando
pela primeira vez. Ele não precisava dizer, eu
sabia que ele enxergava na vela um futuro para
mim. Porém, naquela época, isso era um desejo só
dele. Num esporte como esse, tem futuro quem o
enxerga com os próprios olhos. E esse não era o
meu caso. Pelo menos aos dez anos. Eu adorava
velejar, mas não almejava uma carreira no esporte.
Era, no máximo, um lazer, uma diversão de final
de semana. Nada além dos meus dois motivos
principais de felicidade.
Com o tempo, fui me envolvendo cada vez
mais com a rotina de velejador. Aprendi a competir,
a sentir o saboroso gosto da vitória, a querer me
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superar dia após dia. Com o foco em conquistar
mais e mais troféus, participar dos eventos de vela
se tornou algo muito importante. Aos quatorze
anos, eu já era considerado um bom velejador.
Estava acima do nível de outros garotos, veteranos
como eu, mas não tão frequentes nos treinos.
Havia outra vantagem: morar perto do
Guaíba, em Porto Alegre. Cresci brincando nas
areias grossas e sujas das praias que circundam
aquele misto de rio e lago que desemboca numa
imensa lagoa. Estar sempre por ali, próximo à água,
era um estímulo constante. Embora as águas já não
fossem próprias para banho, como tinham sido em
outras épocas, o sentimento de liberdade em todo
aquele espaço tranquilizava a criança agitada que eu
era. Mesmo depois de crescer um pouco, o Guaíba
trazia uma sensação de indescritível prazer e paz ao
adolescente também inquieto que me tornei.
Entretanto, as mesmas águas de prazer e de
paz me mostraram – talvez por conta da minha
inquietude, é bem verdade – que a vida pode ser
desafiadora e surpreendente tanto ou mais que as
competições de vela de que eu participava.
Se me lembro bem, era para ser apenas outro
dos meus finais de semana de felicidade. Porém,

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ainda penso nos fatos daquele dia e em como eles
me conectaram com coisas que até então não faziam
parte da minha percepção de mundo. Pensando
agora, com maior distanciamento, foi por força
daqueles acontecimentos que passei a entender
que a fronteira entre o mundo dos meninos e dos
homens é bastante estreita: basta saber que os atos
decidem o curso da vida. E foi mais ou menos isso
que me aconteceu.
Ainda não eram sete horas. O sol apenas
começava a nascer. Por que eu estava acordado e
em pé tão cedo? Talvez porque fosse uma manhã
fria de sábado, um dia atípico, mas interessante
para velejar. Como era final do inverno, poucos
velejadores estariam na água. E acho que eu
buscava isso mesmo: uma certa privacidade e um
clima desafiador.
Em poucos meses, o inverno iria embora e uma
nova temporada de regatas e campeonatos iniciaria.
Muitas competições estavam programadas, e
havia uma organização e um calendário para que
tudo acontecesse conforme combinado entre as
confederações e os clubes de vela de todo o Brasil
e de países vizinhos, como Uruguai e Argentina.
Embora eu soubesse que não passaria a vida
velejando em competições, para mim vencê-las
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fazia mais sentido do que meramente participar.
Queria estar bem preparado. Tinha como exemplo
os garotos uruguaios e argentinos, excelentes
velejadores, muito dedicados e acostumados com
as águas frias do seu país. Para eles, tempo ruim era
uma rotina.
Além disso, para ser um bom velejador era
preciso ter muitos conhecimentos. Tínhamos que
saber dominar a embarcação em situações difíceis,
e, para tudo, existia uma técnica, principalmente
quando o clima estava adverso. Tal como naquela
manhã.
Meu veleiro, nessa época, era um laser, classe
olímpica, um dos mais populares do mundo.
Batizei-o de “Ozzy”, em homenagem ao Black
Sabbath.
Isso fez com que meu laser fosse muito popular
nas competições. Quando vencia uma regata,
ninguém falava o meu nome, geralmente era o nome
do barco: “Quem venceu foi o Ozzy!”. Era um barco
seguro e veloz, construído em fibra de vidro. Tinha
quatro metros e trinta de comprimento e pesava
apenas cinquenta e seis quilos. Muito prático, Ozzy
era ideal para o meu tamanho e peso.
•••

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18 | NO NEVOEIRO
N aquele sábado, meu desafio era completar
o treino de um circuito longo em apenas
uma manhã. Estipulei um tempo de seis
horas para partir e retornar. Se desse certo, eu teria
certeza do meu domínio sobre a embarcação e sobre
tudo mais, aprendido até ali. Mesmo sendo pequeno,
o laser tinha uma estrutura com vinte e oito peças,
e eu conhecia a posição e o funcionamento de cada
uma delas, sabia manuseá-las até com os olhos
vendados.
Isso porque, ao longo dos anos, foram
muitas horas estudando e convivendo com a arte
de dominar o vento, em aulas teóricas e práticas
na escola de vela. Aqueles conhecimentos eram
fundamentais para a segurança do velejador.
Porém, agora entendo que há lições que a própria
vida decide quando é a hora de aprender. Naquela
manhã, eu velejaria sozinho, não só no barco, mas
no Guaíba inteiro, pois não era um dia de treino
oficial da flotilha. Minha intenção era praticar, em
adversidade, sem a flotilha e sem o técnico; iria me
testar.
Hoje sei que os riscos eram gigantes. Se o
vento desaparecesse, eu poderia ficar à deriva, sem
o controle do barco, e ser levado pela correnteza
sem ninguém para me rebocar. Nem mesmo os
mais experientes desejam passar por um momento
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desses. Enquanto se tem o controle da embarcação,
as chances são boas; fora disso, os riscos são
enormes. Naquela época, entretanto, o risco maior
para mim era não estar bem preparado. E talvez, na
minha cabeça, eu só enxergasse a cena de alguns
anos antes, do meu pai sorrindo de canto, cheio de
orgulho ao me entregar o bastão da cultura de vela
da família. Eu precisava ser o melhor. Eu mesmo
tinha decidido isso.
Fechando a porta do meu quarto em silêncio
e pisando com cuidado, fui em direção ao quarto
dos meus pais. Toda a casa dormia.
– Oi, mãe, tô indo pro clube; vou treinar –
anunciei, em voz baixa, abrindo a porta do quarto
com cuidado para não assustar ninguém.
– Oi, filho, mas que horas são? – ela perguntou,
sonolenta.
– É cedo – respondi. – Mas também quero
voltar cedo.
– Come alguma coisa antes de ir e leva um
lanche. Mais tarde, passamos por lá.
– Ok, mas não te preocupa, vou voltar ainda
no início da tarde. Beijo!
– Beijo, e te cuida.

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Do meu pai, apenas escutei o ronco
costumeiro. Porém, tenho certeza de que, se não
dormisse como um bicho-preguiça, e não fossem
sete da manhã de um sábado, ele teria os mesmos
cuidados e me daria as mesmas recomendações.
Carregando tênis e mochila na mão, desci as
escadas e fui até a cozinha. Precisava comer e ainda
preparar um lanche para o caminho. E levar muita
água, o máximo que pudesse carregar sem que
isso fosse um transtorno a bordo. Enchi pequenas
garrafas de água mineral com quantidade suficiente
para todo o trajeto. Sanduíche e suco no café da
manhã e outros sanduíches e frutas para comer
depois.
No jardim, um silêncio total. Meu cachorro
acordou ao me ver sair e correu na minha direção
para receber os carinhos de bom dia.
– Bom dia, Sadam! E aí, garoto, dormiu bem?
Vou sair, mas tu não pode vir comigo. Fica em casa
e cuida dos outros; volto daqui a pouco.
Conversava com meu cachorro todas
as manhãs, em um diálogo de uma voz com
interlocução de muitos grunhidos e latidos. Depois
de acariciá-lo mais um pouco, acomodei o que
podia na bike e na mochila à prova d’água que

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levaria comigo a bordo. Roupas secas, uma faca de
emergência, um sinalizador que meu pai tinha me
dado, alguns cabos, um isqueiro, uma bússola e até
uma carta náutica do Guaíba e da Lagoa dos Patos.
Após prender Sadam para que não me seguisse,
abri o portão do jardim e ganhei a rua.
O inverno no sul não é nada ameno. Alguns
dias são muito frios, em outros, chove muito, e há
também dias em que as duas coisas se unem, frio
e chuva. Naquele sábado, o clima estava estranho.
Fechado, cinzento. Também há esses dias. Neles, as
mudanças podem ser repentinas.

•••

22 | NO NEVOEIRO
N
as poucas quadras entre a minha casa
e o clube, havia mais de cem metros de
desnível até chegar à beira da água: um
lugar fácil para andar de bike quando se queria
descer o morro, e um inferno para subir de volta.
Do alto, eu podia observar o céu e sentir os ventos.
Pude perceber o clima que se formava. Havia muita
umidade no ar, e o frio estava aumentando. Um
vento oeste mais quente entrava pela lagoa, mas
havia também a previsão de uma frente fria se
aproximando pelo sul. Iria esfriar rápido ao chegar
na região. Então, duas coisas poderiam acontecer:
ou chover muito ou formar-se um nevoeiro.
Eu precisava andar logo se quisesse ter tempo
de cumprir meu desafio. Pus a mochila firmemente
nas costas e pedalei em direção ao clube, num zig-
zag de quadras e ruas para chegar rápido. Naquele
horário, nenhuma alma andava pela rua; eu podia
correr. Segurei bem os punhos do guidão e deixei
os pedais livres. Minha bike começou a acelerar e,
em pouco tempo, eu estava voando. Uma sensação
que também adorava: correr e sentir a velocidade,
ver tudo passando por mim de forma acelerada.
Fazia curvas fechadas, finalizando com
“cavalinhos de pau” e outras manobras, descia para
a rua e retornava para a calçada, pulando pelas
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24 | NO NEVOEIRO
rampas das garagens e voltando a saltar bem no
meio do asfalto.
Já próximo do clube, em uma rua mais alta,
dobrei a quadra, fazendo uma curva bem fechada.
Pedalei pela calçada e fiz um contorno para entrar
na rua Bororó. No instante em que venci a curva, me
deparei com uma senhora a minha frente. Ela estava
parada no meio da calçada, usava uma manta preta
que a cobria desde a cabeça até os ombros e braços,
tinha as mãos cruzadas, carregando um livro preto;
com certeza, uma Bíblia. Ela estava imóvel, parada
como se fosse um objeto plantado na calçada.
Com um reflexo mais que apurado, me agarrei
com as duas mãos na direção e puxei os freios.
Senti meu corpo inteiro se projetando para frente,
e a roda traseira empinando por trás das costas.
O rangido dos pneus freando só parou quando
a roda dianteira da bicicleta passou por entre as
pernas da senhora. Por um segundo, vi o pneu da
bike levantar a sua saia e, ao mesmo tempo, aquela
outra saia transparente que as senhoras usam por
baixo (hoje sei que se chama anágua). Se vergonha
e constrangimento matassem, haveria ali um
cadáver. Nos segundos seguintes, fiquei tão imóvel
quanto a pobre velhinha.

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– Por favor, senhora, mil desculpas! – eu disse,
tentando amenizar o clima e dando uma ré para
retirar a roda dianteira de entre as pernas da idosa.
– Vejo que o jovenzinho está com bastante
pressa, não é? – questionou, olhando por cima dos
óculos.
– Na verdade, não – respondi, completamente
sem graça.
– Então, por que correr tanto?
– Bem, é cedo e não tem ninguém na rua, daí
pensei em correr um pouco mais e me divertir...
Estupidez minha. A senhora, por favor, me
desculpa, não tinha intenção de lhe atropelar.
– É, meu jovem, ninguém na rua é uma coisa
relativa. Você não me atropelou, não se preocupe.
Mas podia ter atropelado! – me advertiu com certo
sorriso. – Você terá um dia cheio hoje; seja prudente,
tenha calma, não acredite somente naquilo que seus
olhos podem ver. Algumas coisas a gente precisa
pressentir. Como eu, aqui na calçada. Se cuide e
tenha um bom dia.
Conclui meus pedidos de desculpa e fui
saindo, ainda falando com ela, mas sem olhar
para trás.

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No primeiro momento, me senti aliviado
por não ter causado confusão maior; podia ter
machucado a velha senhora. Também gostei da
afeição e do sentimento dela ao me dizer aquilo.
Ela nem me conhecia. Soltei um sorriso de canto.
Acelerei as pedaladas. Mas eu só compreenderia
plenamente as palavras dela mais tarde, no fim
daquele dia.
Chegando à portaria do clube, parei a bike
na entrada e diminui a adrenalina, respirei fundo,
tomei fôlego e entrei, cumprimentando o segurança
de plantão. Ninguém mais do meu grupo estava
por ali, eu era o primeiro a chegar. Sabia que nem
mesmo os meus amigos estariam dispostos a acordar
tão cedo para se jogar lagoa adentro. Mas eu tinha
um objetivo e queria alcançá-lo. Precisava estar
bem preparado para correr as próximas regatas.
Aquele dia seria lembrado como um dia de esforço
e persistência. Iria testar a minha resistência, meu
equilíbrio emocional, fazer algo que nunca tinha
feito antes. Ainda não havia velejado sozinho e
por tanto tempo dentro de um barco em um lugar
desconhecido.

•••

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P
edalei, carregando meus objetos até o
hangar onde meu barco dormia. Era um
prédio alto com poucas paredes e coberto
com telhas que protegiam os barcos das chuvas,
do sol e de outras intempéries. A cada retorno
para a terra, eles eram desmontados e guardados
ali. Essa prática nos obrigava a sempre verificar se
o equipamento estava em boas condições. Caso
houvesse algo fora do lugar, quebrado ou não
funcionando, teríamos, na hora da montagem, mais
uma chance de perceber e corrigir. Montar o barco
e conferir se todos os cabos e acessórios estavam
em ordem era fundamental para a segurança e para
a garantia de que não ocorreria nenhum imprevisto
durante a navegação. A lógica era: faça a coisa certa
em terra para não correr riscos na água.
Isso era algo que me envolvia, me fazia
conhecer o barco e assim transformá-lo em uma
extensão do meu corpo. Conhecia todos os muitos
nomes e funções das partes de um laser. Além da
vela, que todo mundo conhece e sabe identificar, há
outras partes que só dizem respeito ao velejador. As
talas, a retranca, a bolina, o leme, o burro, a escota,
a cana do leme, a esteira, um universo de coisas
integradas ao casco do barco. E só conhecendo o
funcionamento de todas elas é que podemos nos

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sentir no comando, tudo depende do velejador.
Meu pai sempre dizia que havia uma palavra que
garantia a vida: disciplina. Ele dizia que isso servia
para qualquer coisa. Para ele, se houvesse disciplina,
haveria sucesso em toda a atividade que fosse feita.
Tirei Ozzy do hangar e puxei-o para o pátio.
Com a vela panejando, presa no mastro, mas solta
da retranca, pude ver que havia um vento instável,
aos poucos ficando mais forte. Iniciei a montagem,
me certificando de que o bujão estava em seu lugar.
Essa é uma peça pequena, mas muito importante,
uma espécie de tampa, tal como a de uma pia ou
tanque. Fica na popa do barco, abaixo da linha
d’água; se não estivesse no lugar, poderia causar um
acidente, inundando o barco. Montei o velame e
conferi se todos os encaixes, manilhas, mordedores,
alças, moitões estavam funcionando e nos seus
lugares corretos. Empurrei o reboque do barco até a
beira da água – o reboque é onde o barco descansa
quando não está na água, uma espécie de berço
com rodas – e fui me arrumar.
Corri para o vestiário, tinha de colocar um
traje que me protegesse do frio. Pés descalços,
luvas de meio corte nas mãos, long de neoprene
cobrindo todo o corpo, jaqueta corta-vento leve,
um colete salva-vidas, uma bermuda de tala.
30 | NO NEVOEIRO
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Boné e óculos. Estava pronto para partir. Mesmo
sabendo que meus pés iriam congelar, velejava
descalço. Gostava de tocar o cockpit do barco.
Acostumado desde pequeno, isso me dava mais
firmeza nos movimentos. Acho que, aos quatorze
anos, o frio acabava sendo um detalhe, a adrenalina
de comandar o barco fazia com que qualquer mal-
estar do inverno passasse despercebido.
Entrei na sala de navegação do clube e
entreguei para o encarregado de plantão um plano
de navegação – na verdade, uma planilha contendo
os detalhes do trajeto que eu iria realizar. Apontei
os tempos previstos e a rota de retorno. Era um
procedimento obrigatório. Em caso de acidente ou
desaparecimento, o plano, combinado com outras
análises, como a direção e a velocidade dos ventos,
o horário da saída, a posição das correntes e das
ondulações, tornaria possível um resgate.
As chances de encontrar um velejador perdido
no Guaíba eram sempre boas, e os procedimentos,
quase sempre infalíveis. Já tinha ouvido muitas
histórias, todas com finais felizes. Entrei na sala
de navegação, e lá estava o Edson, um parceiro de
plantão, sempre orientando os velejadores novos e
ajudando os seniores.

32 | NO NEVOEIRO
– Oi, Edson, tudo bem?
– E aí, Raul. Tudo certo. Madrugando?
– Tudo de boa! – respondi. – Vou me aventurar
um pouco mais. Este é o meu plano de navegação
pra hoje.
– Me deixa ver.
Com o cuidado que era peculiar a ele, Edson
leu todo o plano e foi fazendo pequenas anotações
com um lápis. Firmemente, eu apenas observava
seus movimentos na leitura atenta do que eu havia
escrito.
– Hum! Vai para o sul com este vento oeste
chegando? – questionou o operador.
– Yeap! – respondi. – Chego de volta às duas
da tarde.
– Seis horas pra ir até a entrada da Lagoa e
retornar? – ele voltou a questionar. – Já pensou na
volta? Se mudar a direção, pode ter contravento!
– É oeste. Vou e volto de través. Preciso tentar!
Acho que tenho uma boa chance. Não acha?
– Sei não! Vento oeste no inverno tem muita
chance de nevoeiro, tu sabe. Tem uma frente fria se
aproximando.
– Sim, mas preciso melhorar meu tempo.
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34 | NO NEVOEIRO
Meus amigos do Uruguai fazem isso o tempo todo.
Calculei uma hora a mais, é a minha reserva; se o
vento mudar até lá, então venho no contravento e
gasto mais uma hora. O que acha?
– Na teoria, está correto, mas tu sabe... nem
tudo que a gente escreve aqui acontece do jeito que
a gente imagina. Toma. Leva este rádio, tu vai tá
sozinho, e isso não é muito bom.
– Tô levando minha bússola na mochila; se
precisar, eu uso.
– Sem chance, Raul! Se vai sair sozinho, tem
que levar o rádio. Toma, coloca nas tuas coisas.
Qualquer problema, chama pelo canal 16.
– Tá bem, mas fica tranquilo; vou me cuidar!
Abraço, e até daqui a pouco.
Me despedi, guardei o rádio na mochila e
segui em direção à rampa de zarpagem, que ficava
entre os piers do clube. Havia levado o Ozzy para lá
e partiria assim que ele flutuasse.
– Bons ventos! E te cuida, Raul!
Por um breve minuto, me dei conta de que
aquele “te cuida!” havia sido dito, em pouco mais
de meia hora, por três pessoas diferentes, incluindo
a senhora estranha da rua. Mas, de qualquer modo,

Mario Augusto Pool | 35


é uma advertência meio comum. Soltei um sorriso
de canto, sozinho, e logo avistei o Ozzy, balançando
e esperando por mim. Não me detive mais. Apressei
o passo em direção a ele.

•••

36 | NO NEVOEIRO
C
omo tinha planejado, naquela manhã eu
queria uma marca ousada. O vento estava
ótimo, tinha dezoito nós na previsão e
aumentando. Poderia chegar a vinte e dois até a
metade da manhã. Era o que eu precisava: fazer
meu laser chegar a dez nós (18,5 km por hora).
Seriam cinquenta e duas milhas entre ida e volta,
e, para isso, eu tinha seis horas. Meu plano de
navegação era partir do clube e ir até a ilha Chico
Manoel, distante umas dezesseis milhas do meu
ponto de partida. Iria velejar entre a costa da ilha
e a ponta dos Coatis e seguir em frente, indo até a
Ilha do Junco e de lá seguiria até a ponta de Itapuã,
fazendo um contorno na entrada da Lagoa dos
Patos e retornando pelo mesmo trajeto.
Se conseguisse, teria, então, navegado vinte
e seis milhas. A partir daí, retornaria, fazendo o
mesmo percurso na volta. Conquistar essa marca
sozinho me deixaria bem à frente dos meus amigos.
Com ajuda do marinheiro do clube, deslizei
o berço, rampa abaixo, até ficar submerso e liberar
o Ozzy para flutuar. Rapidamente subi a bordo,
fixei a caixa do leme na fêmea de popa e assumi o
controle do veleiro. Cacei a vela, e rapidamente o
Ozzy aprumou em direção à saída do farol. Puxei a

Mario Augusto Pool | 37


38 | NO NEVOEIRO
cana do leme para boreste e contornei os molhes do
clube, deixando-os a bombordo. Manobrei rumo ao
canal, distante uma milha e meia do píer. O canal é
a parte mais profunda do Guaíba.
Com os pés presos à alça de escora, uma mão
na extensão do leme, e a outra controlando a escota
da retranca, ganhei velocidade e aproveitei o vento
favorável de oeste, às vezes, forte no inverno, o
que é sempre bom. Eu queria ir rápido para o sul.
Naquele momento, vencer o tempo era tudo, e ele
não saia da minha cabeça: apenas seis horas para ir
e voltar.
Aproveitando o vento a favor, fui me afastando
cada vez mais da costa e cheguei ao centro do canal
em poucos minutos. Aquele era o melhor momento
do meu dia, uma sensação de liberdade total, estava
finalmente a sós com o planeta. Ao meu redor, um
mundo feito só de água que, para mim, significava
paz. Não havia os sons do dia a dia; havia somente
tranquilidade e silêncio. Minha mãe falava, às
vezes, em fazer terapia, mas a minha melhor terapia
era estar ali. Escutava apenas os meus movimentos
comandando o barco, um ruído agradável da proa
quebrando as pequenas ondas, e o leme forçando
o rumo do barco e me levando lagoa adentro.

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40 | NO NEVOEIRO
Ao alto, apenas o som do vento de través, batendo
em ângulo na vela do Ozzy. Com aquele rumo, as
velas pareciam asas, eu tinha sustentação com o
fluxo do vento e da água. O Ozzy iria atingir os dez
nós previstos. Meu plano começava a dar certo.
Pouco mais de duas horas após a partida, já
estava circundando a ilha Chico Manoel, penúltima
ilha antes da entrada para a Lagoa dos Patos. Depois
dela, a mais de uma hora de distância, estavam a
Ilha do Junco e a entrada para a Lagoa dos Patos,
meu destino. Lá seria o ponto de virada.
O vento oeste continuava aumentando, e
as nuvens da frente fria vindas do sul já podiam
ser vistas ao longe, acompanhando a linha do
horizonte. A corrente em direção ao sul da Lagoa
dos Patos também podia ser sentida; estava forte
devido às chuvas da semana anterior. Os rios que
deságuam no Guaíba, pelo delta do Jacuí, tinham o
volume acima da média.
Minha velocidade aumentava, e o Ozzy
era empurrado a todo o vapor. O laser ganhava
flutuação e corria mais. Naquela situação, ele não
se distinguia de qualquer outra embarcação se
comparado à reação do casco na água e às forças
do fluxo dela ao longo da parte inferior do barco.

Mario Augusto Pool | 41


Tudo estava a favor para atingir muita velocidade.
Cacei a vela em relação à linha de centro do barco.
O Ozzy deslizava livre pela lâmina d’água. Naquele
momento, eu queria poder me ver de longe, ser
testemunha do meu sorriso que ultrapassava o
tamanho dos lábios. Gritava com tanta força e
alegria que talvez pudesse ser ouvido nas margens
do Guaíba.
Com menos de três horas desde a minha
saída, já conseguia avistar o meu ponto de chegada.
A poucas milhas de mim, lá estava o farol de
Itapuã, a porta de entrada para a maior lagoa do
Brasil. Metade do desafio estava vencido. Rumei
até a ponta de Itapuã e pude contemplar o farol.
Naquele momento, a lagoa surgiu a minha frente,
com toda a sua magnitude de águas tranqüilas, mas
nem sempre rasas. Um mar de águas doces.
Aproei o barco e rumei ao centro do canal e,
aproveitando o vento forte que vinha pelas minhas
costas, acelerei o máximo. Prendi meus pés firmes
na alça de escora e joguei todo o peso do corpo para
fora do barco. Sentia as ondas batendo em minhas
costas e a pressão do vento inflando a vela do Ozzy.
O barco deu um salto para frente, e o casco, firme
e aproado, desenvolveu velocidade, cortando as

42 | NO NEVOEIRO
Mario Augusto Pool | 43
águas do Guaíba. Naquela imensidão aquática, eu
era apenas um pequeno ponto se movendo.
Não queria voltar, mas já estava quase na
hora. Contemplei o farol de Itapuã mais uma vez
e vi que estava próximo do ponto de retorno. Se o
vento mudasse, teria de fazer o caminho de volta a
contravento, o que me atrasaria em algumas horas.
Teria que ir cambando, ou seja, conduzir o barco
em zigue-zague para vencer o vento contrário.
Neste caso, mesmo tendo a minha uma hora de
reserva, não seria o suficiente. O vento sul da frente
fria ainda estava longe e poderia ser fraco, não
podia contar com ele. Precisava voltar e continuar
aproveitando o vento oeste de través. Até ali, tudo
estava indo como o planejado.
Soltei o cabo da retranca e puxei a cana do
leme para bombordo, forçando ao máximo o
barco para contornar à boreste e iniciar o trajeto
de retorno ao clube. Era uma manobra que exigia
cuidados. Ia fazer um jibe: estava a favor do vento
e tinha que virar o barco para o rumo oposto; a
vela do Ozzy não iria panejar, ficaria cheia o tempo
todo e acelerando o barco, mas ela iria mudar de
lado e, do mesmo jeito, eu teria que acompanhar a
manobra rapidamente, trocando de lado também.

44 | NO NEVOEIRO
Soltei o meu pé esquerdo da alça de escora e torci
o corpo para a direita, esperando o momento de
pular para o lado oposto, completando a inversão.
Rapidamente o Ozzy começou a inclinar e a
responder à manobra de 180º; a vela iria mudar de
posição rapidamente.
Mas havia um detalhe em que a minha
organização e a minha experiência perdiam para a
ansiedade e para a pouca idade. Eu desconsiderei
o fato de que estava saindo da segurança do relevo
montanhoso do estreito de Itapuã, que agia como
uma barreira de proteção, corrigindo e mantendo
os ventos estáveis e contínuos. Naquele momento
eu estava entrando na imensa lâmina de água da
Lagoa dos Patos, com sua costa plana e seus ventos
dominantes, fortes e invariáveis.
Foi inevitável. Uma rajada de vento muito
forte empurrou a vela na minha direção e, com
uma velocidade muito maior do que eu poderia
imaginar, a retranca foi arremessada contra mim
num movimento rápido e brusco. Não consegui
esquivar. Senti uma única pancada com muita força
na minha cabeça. Fui jogado contra o cockpit do
barco e lá fiquei, desacordado.

•••

Mario Augusto Pool | 45


46 | NO NEVOEIRO
C
om um solavanco enorme e um barulho
forte vindo de baixo do casco, a proa
afundou repentinamente, frenando o
barco e elevando a popa para fora da água. Meu
corpo foi arremessado de um lado para o outro
e muitos respingos de água me lavaram o rosto.
Recobrei os sentidos. Sem entender nada do que
estava acontecendo, abri os olhos e senti uma dor
imensa na cabeça. Havia um galo na minha testa e
eu sentia certa tontura.
Ainda atordoado, tentei ficar de joelhos; a dor
continuava. Tudo rodava, incluindo o barco. Olhei
para a água, vi um enorme tronco que flutuava; a
maior parte dele estava submersa.
Tentei lembrar o que fazia ali. Alguns flashes
me vinham à memória. Que eu estava velejando eu
lembrava, mas onde? Refleti um instante e percebi
que o barco estava completamente sem rumo. Cabos,
ferragens e retranca estavam soltos e balançando
ao vento. Levantei, cambaleando, e cacei todos de
uma só vez. Voltei a prender cada coisa em seu
lugar e fui estabilizando o barco. Sentei novamente
e puxei a bolina para cima. Quando a olhei com
mais atenção, percebi a tragédia: eu não tinha
mais bolina, estava partida ao meio. Certamente, o
tronco a havia quebrado. Da mesma forma, o burro
Mario Augusto Pool | 47
(sistema usado para puxar a retranca para baixo)
estava solto, o encaixe que o prendia ao mastro
havia se desprendido e era impossível consertar
naquele momento.
O que eu sabia era que o tronco de árvore
tinha avariado a bolina do barco. No mais, não
me lembrava de muita coisa. Parei para pensar,
tentando analisar a situação, e entendi que havia
sofrido um acidente.
Por um descuido, algo tinha dado errado.
Ainda desnorteado, olhei em volta. Mais coisas
estavam estranhas. O dia tinha um clima soturno.
Comecei a tentar me situar; queria voltar para
casa. Fiquei de pé e, me segurando ao mastro, girava
em torno de mim mesmo observando o entorno.
Não demorei a perceber que não conseguiria avistar
nenhum destino possível. O meu maior problema
não era exatamente o acidente. Eu estava envolto
por um denso nevoeiro. Não conseguia enxergar
nada além de uns dez metros de distância em
qualquer direção. Para um velejador, um nevoeiro
dessa magnitude é algo apavorante. Essa não é uma
distância segura para manobras, principalmente de
emergência, como a de desviar de um navio vindo
pelo canal, por exemplo.

48 | NO NEVOEIRO
Mario Augusto Pool | 49
Caí em mim. Não fazia a menor ideia de onde
estava. Olhei o relógio e outra surpresa, tão ruim
quanto as anteriores: mais de seis horas tinham
se passado. Eram quatro da tarde. Eu havia ficado
desmaiado todo aquele tempo. Entendi que a
situação era bem mais séria do que imaginava.
A cabeça começou a doer de novo.
De fato, eu ficara desacordado por mais de
seis horas. E o pior, durante todo esse tempo, Ozzy
tinha navegado sozinho, a correnteza e o vento
estavam fortes naquele dia. Eu poderia estar em
qualquer lugar da Lagoa dos Patos, muito longe do
meu plano de navegação. Com certeza, já tinham
iniciado as buscas. Deviam estar a minha procura,
mas, com aquele nevoeiro, como iriam me achar?
– O rádio! – gritei, lembrando da boa alma
experiente do Edson, que me obrigara a trazer. –
Só preciso chamar no canal 16. Mas que referência
eu vou dar? – lembrei que não enxergava nada dez
metros adiante do meu nariz. – Não importa, ao
menos eu falo com alguém e peço socorro, vão
saber que estou vivo.
Virei para um lado e para o outro à procura
da mochila. Dentro dela, estava tudo o que me
manteria vivo: o rádio, a bússola, as roupas secas,

50 | NO NEVOEIRO
a comida, a água... Cada segundo sem avistá-la
só piorava o cenário apavorante em que eu estava
metido.
A mochila não estava a bordo. Certamente,
ela havia sido jogada para fora, no acidente, e devia
ter flutuado para longe.

•••

Mario Augusto Pool | 51


N
aquele momento, as minhas chances de ser
encontrado caíam para o nível mais baixo
possível. Sem o rádio e sem a bússola,
continuar navegando só poderia piorar as coisas.
Não havia pontos de referência, não havia como
me orientar. Meu barco, sem a bolina e o burro,
perderia a estabilidade e também o controle. Com
um vento mais forte, poderia virar. Sem contar o
perigo de ser abalroado por uma balsa ou um navio
vindo pelo canal.
– Calma, Raul. Por favor, te acalma! Pensa em
tudo que tu aprendeu! – falava comigo mesmo em
voz alta, tentando gerar algum som naquele deserto
aquático.
A imensidão esfumaçada gerava um vazio,
me cegava e me distraía. Várias vezes, me peguei
pensando em nada, olhando para o nada. Passados
alguns minutos, voltei a me concentrar. Sequei
uma ou duas lágrimas que desceram nervosas e
geladas e respirei fundo. Tentei colocar atenção
às chances. Alguma oportunidade poderia surgir
e ajudar no meu resgate. Eu precisava contar
com isso. As lições de sobrevivência das aulas
surgiram imediatamente em voz alta na minha
cabeça lesionada: “Fiquem parados, procurem
um local seguro e aguardem o resgate”. A única
52 | NO NEVOEIRO
questão era saber se onde eu estava era um local
seguro.
Com muita fome e flutuando ao sabor
da corrente, abri meu bornal e comi o lanche
de reserva que havia levado. O pouco que não
estava na mochila. Enquanto comia, olhei para o
meu pé direito e vi um corte que estava bastante
ensanguentado, contornado por uma marca roxa,
larga, que atravessava de um lado a outro a parte
de cima do pé. Estava ali uma pista. Comecei
a entender o que poderia ter acontecido. Tudo
indicava que, quando me virei para iniciar o jibe,
meu pé ficou enredado em algum cabo ou amarra,
ou até mesmo na própria alça de escora, impedindo
que eu desviasse o resto do corpo a tempo do
movimento da retranca da vela. O lado esquerdo da
minha cabeça deve ter ficado bem na altura do eixo
da retranca. Quando ela virou, bateu com força
antes mesmo que eu pudesse saltar para o outro
lado.
Mas, como o acidente já havia acontecido,
tinha agora outras preocupações. Uma delas, o
frio. Sentia meu corpo congelar a cada minuto que
passava. E a noite chegaria rápido. Em duas horas,
estaria tudo escuro. Não havia nada para me aquecer

Mario Augusto Pool | 53


além do traje que eu vestia, que estava molhado. As
roupas secas também tinham sido perdidas com a
mochila.
Sem saber bem o que fazer, soltei as adriças e
baixei a vela. Fiquei em silêncio, esperando e ouvindo
atentamente qualquer sinal de aproximação.

•••

54 | NO NEVOEIRO
E
m algum momento, me abaixei no barco
e fiz algo que não fazia há muito tempo:
rezei. Pedi a Deus que olhasse para baixo
para ver como poderia me ajudar. Raramente eu
ia a uma missa, mas, naquele momento, como
saída a todo aquele que está amedrontado e com
o fantasma da morte rondando, rezar poderia ser
uma alternativa. Vergonhosamente, rezei – digo
vergonhosamente porque era somente por causa
da dificuldade que eu tinha me lembrado de pedir
coisas em oração. Porém, como não sei de nenhum
amigo que tenha rezado durante uma noite com a
garota mais cobiçada do colégio, acredito que, para
os momentos de prazer, Deus sempre fica de fora
mesmo.
Ainda com as mãos unidas junto ao peito,
na posição clássica de prece, depois de balbuciar
algumas palavras para o criador do mar, me pus
novamente a tentar escutar algo. O silêncio era
assustador, mal ouvia o som da água batendo no
casco. Mas ficar em silêncio era tudo o que eu podia
fazer para escutar algo que me desse uma direção.
Como era de se esperar, aquele acidente estava
mexendo comigo. Não é tão fácil abalar o ego
de um garoto de quatorze anos. Mas, em meio à
quietude e à névoa daquele fim de tarde, eu pensava

Mario Augusto Pool | 55


nas tantas horas de preparação, nos muitos treinos
e aulas que tinham sido vergonhosamente vencidos
por um detalhe tão banal.
E as palavras de todos não saíam da minha
mente. Minha mãe, ainda sonolenta, dizendo para
me cuidar, a senhora na rua, que afirmara que eu
teria um dia cheio, e o Edson me lembrando que,
na prática, a teoria é outra. Acho que até Sadam
tinha me dito algo entre seus resmungos caninos.
Quantos avisos, quantos cuidados, e, mesmo assim,
estava em sério risco.
O Edson me disse que podia acontecer. Era
certo que ia acontecer. Eu sabia que ia acontecer.
Porra! Mas também não imaginei que eu ia ficar
tanto tempo na água – continuava falando comigo
mesmo, tentando entender a origem de tantas
questões envolvidas, e que agora se transformavam
em uma questão de vida ou morte.
De fato, no dia anterior, a superfície plana e
descampada ao entorno da Lagoa dos Patos tinha
quase congelado pelo vento e por temperaturas
frias do sul. No final da tarde, o vento oeste havia
impelido uma massa de ar um pouco mais quente
vinda do oceano a nordeste de Porto Alegre. Mas
quando o vento enfraqueceu, entrando em contato

56 | NO NEVOEIRO
Mario Augusto Pool | 57
com a terra fria, no entorno da lagoa, os trilhões
de partículas de umidade do ar se condensaram,
formando um denso nevoeiro que se estendia para
o sul, invadindo uma grande parte dos dez mil
quilômetros quadrados da imensa lagoa.
Além de gastar tempo raciocinando sobre
as explicações científicas da minha situação, não
havia muito o que fazer. Cobri meus pés com a
capa da vela e fui me encolhendo no cockpit para
manter o meu corpo aquecido. O frio chega cedo
na região descampada da lagoa, e a claridade, com
o nevoeiro, se esvaiu rapidamente; a luz do sol
tinha sua penetração praticamente nula. Naquela
situação, gélida e lúgubre, eu percebia que a noite
estava chegando muito rápido, e meus temores
aumentavam. Por mais que tentasse ser forte e
quisesse continuar defendendo mentalmente todo
o meu preparo e experiência, o nevoeiro funcionava
como um espelho; quando eu olhava para ele, via
apenas o reflexo de um menino. O mesmo menino
que talvez nunca devesse ter saído da margem, de
onde observava os demais velejadores.
Por vezes, chorei. Por vezes, tentei buscar
forças, pedindo a Deus que olhasse para mim.
Em outros momentos, só pensei nos meus pais e

58 | NO NEVOEIRO
em como deveriam estar desesperados. Por mais
que pudessem ter esperanças, enquanto não me
enxergassem, ficariam por demais preocupados.
Eles sabiam do risco que é estar perdido na
água. Uma busca noturna, além de perigosa, é
extremamente improvável. É como tentar achar
uma agulha em um palheiro molhado e escuro.
Algumas vezes, eu também cantei. Me ouvir
cantando me deixava mais tranquilo, e havia
também uma chance remota de alguém me escutar.
Só parei quando me peguei cantarolando uma do
Black Sabbath:

“The gates of life have closed on you


And there’s just no return
You’re wishing that the hands of doom
Would take your mind away
And you don’t care if you don’t see
Again the light of day.”

Embora pudesse ser uma homenagem ao meu


Ozzy, era um tanto funesto cantar aqueles versos
de “Sábado Sangrento” em um dos sábados mais
difíceis da minha vida. Silenciei. Estava com o
rosto encostado no cockpit, com a mão esquerda

Mario Augusto Pool | 59


à minha frente, movendo os dedos sem motivo.
Aproveitei para acariciar meu barco. Por um rápido
instante, me senti feliz por tê-lo. Afinal, eu não
estaria vivo até aquele momento se ele não estivesse
me amparando sobre aquelas frias e poluídas águas
que eu tanto amava.

•••

60 | NO NEVOEIRO
O
lhei o relógio. As coisas não tinham se
modificado ao longo de quase duas horas.
Não restava mais nada a fazer a não ser
continuar tendo fé. E acreditar que poderia ser salvo.
Por mais duas horas, a correnteza foi me levando a
um rumo desconhecido.
Por um momento, pensei ter ouvido o som de
uma vela panejando. Cheguei a levantar a cabeça
e atentar aos movimentos ao redor. Mas o desejo
de encontrar uma saída e a esperança de que o
nevoeiro desaparecesse eram tão fortes que aquele
som, com certeza, era um delírio.
Continuei encolhido no cockpit, quieto,
pensativo, saudoso e tentando controlar o medo,
que crescia cada vez mais. Porém, novamente,
o som de uma vela ao vento, bem próximo, era
audível e, dessa vez, mais claro. Levantei a cabeça
novamente e escutei. Parecia sim ser outro barco
à vela. Eu podia escutar seus movimentos. Parecia
estar perto. Sentei rapidamente no barco, para tentar
ver melhor. A minha frente, um vulto começou a se
delinear, como uma embarcação se aproximando,
um veleiro pequeno. Escutava o movimento da
água sendo cortada pela proa.
Me levantei num salto e gritei com toda a
força.
Mario Augusto Pool | 61
– Olá! Socorro! Estou à deriva! Tem alguém aí?
Silenciei, em seguida, na esperança de ouvir o
retorno. Uma pausa. Nenhuma voz. Porém, o som
da embarcação se aproximando ficava cada vez
mais alto.
– Olá! Aqui é o veleiro Ozzy, meu nome é
Raul! Pode me ouvir?
Nada de resposta. Seria um delírio? Já tinha
escutado muitas histórias de gente perdida que teve
visões. Será que eu estava ficando louco? Com a
mão aberta e estendida, bati no meu ferimento do
pé. Doeu muito. Eu não estava delirando, não. Com
certeza, alguém se aproximava. Mas por que não
respondia aos meus pedidos de socorro?
– Olá! Tem alguém aí? – gritei mais uma vez.
– Estou te escutando! Por favor, diz alguma coisa –
quando eu silenciava, o som e a silhueta do barco se
aproximando ficavam cada vez mais nítidos.
Percebi que o encontro comigo seria inevitável.
Fosse quem fosse, estava vindo a bombordo. Sentei
a boreste e fiquei observando atentamente. O
nevoeiro ainda estava muito denso, e a escuridão
do início da noite não deixava muitas alternativas
para se avistar ao longe. De repente, percebi, entre
a densa névoa, um movimento a pouco menos de

62 | NO NEVOEIRO
Mario Augusto Pool | 63
dez metros de onde eu me encontrava. Ao fundo,
consegui vislumbrar o vulto. De fato, estava a
boreste, uns dez metros da popa. Era um veleiro
pequeno, também um monotipo.
– Estou salvo! Estou salvo! – comecei a gritar e
a acenar. – Obrigado, Deus, por me atender. Muito
obrigado, cara!
Não podia deixar de agradecer àquele de quem
eu nunca me lembrava. Parecia que o nevoeiro
realmente havia mexido comigo. Continuei
gritando e acenando. Cada vez mais, as linhas do
casco e da vela branca iam ficando nítidas. Minha
felicidade era enorme, mal continha o riso e a
sensação de alívio. Estava salvo e seria mais uma
história de resgate bem-sucedido.
Aos poucos, o veleiro foi se aproximando e
ficou distante cerca de seis metros. Consegui ver
claramente a embarcação. Era um barco de madeira,
um modelo que eu nunca havia visto antes. Dava
para perceber que era antigo, mas muito bem-
cuidado. A retranca, de grande dimensão, chegava
até o painel de popa; contudo, era um pouco menor
que o mastro que esticava a vela. O leme era apoiado
no painel da popa e tinha uma caixa na parte de cima
onde era encaixada a quilha. Era, na verdade, uma

64 | NO NEVOEIRO
bolina, uma quilha retrátil como a do laser. A parte
inferior era arredondada. Era um veleiro lindo, um
clássico, de madeira envernizada e cockpit branco.
Na vela, não havia nenhuma inscrição; apenas uma
estrela de cinco pontas bem no alto, perto da ponta
do mastro. Também não constava a categoria do
barco. No casco superior, apenas as iniciais “ES”.
O pequeno veleiro passou por mim e começou
a contornar. Percebi que estava ali para me resgatar.
Provavelmente, tinha sido enviado pelo clube ou por
alguma marina próxima de onde eu me encontrava.
Ele fez um trezentos e sessenta em torno do Ozzy,
e eu fiquei ali, maravilhado vendo aquele barco
contornar e velejar como se nenhum problema
estivesse acontecendo. Uma leve brisa começou
a mexer com a minha franja. Percebi que, por um
milagre, uma corrente de vento vinha de popa rasa
de onde eu estava. Ao completar uma volta em
torno do Ozzy, pude ver o velejador. Era também
um garoto, não devia ter mais do que quinze anos,
e sua imagem era bem visível. Usava camisa e calças
brancas, um boné, também branco, parecido com
um quepe, como se fosse um chapéu amassado. Eu
já tinha visto algo parecido em uma festa na colônia
onde havia uma tenda vendendo muitos daqueles.

Mario Augusto Pool | 65


– E aí, meu! – gritei, acenando. – Beleza?
Estou sem bolina e o burro quebrou. Tenho poucas
condições de navegar.
O garoto sorriu e acenou com uma das mãos,
mas não falou comigo.
– Tu pode me rebocar? – perguntei. – Ou pode
me guiar? Se for me guiar, precisa ir devagar! Vai
ser difícil manter o rumo e ficar aproado contigo –
continuei explicando.
Novamente, ele voltou a sorrir e fez um gesto
de mão. Percebi que ele iria me guiar. Com a palma
da mão estendida, movimentou três vezes o braço
para o alto e para baixo, querendo dizer que eu
deveria içar a vela. Em seguida, movimentou o
braço pra frente e apontou em uma direção. Ele iria
me guiar para lá e eu deveria segui-lo devagar.
– Ok, meu! – gritei. – Entendi. Tu vai me guiar
para bombordo – respondi, apontando para onde
ele havia indicado.
Imediatamente, ele fez um sinal com o polegar
para cima, confirmando a mensagem. Achei que
devia me apresentar:
– Meu nome é Raul, sou do Clube Veleiros, de
Porto Alegre. E tu?

66 | NO NEVOEIRO
Mario Augusto Pool | 67
Mais uma vez, ele sorriu e não disse uma
palavra. Devia ser surdo. Ou mudo, ou algo assim.
Como minha vontade de sair dali era grande, pouco
importava, naquela altura dos acontecimentos, a
deficiência do sujeito. Depois eu teria tempo para
tentar falar com ele e agradecer.
Comecei a me preparar para segui-lo.
Puxei a adriça e subi a vela. Com um cabo,
amarrei o burro o melhor que pude ao mastro e
aprumei a retranca para começar a me movimentar.
Sentei ao centro do cockpit para equilibrar o Ozzy
e evitar uma virada. Sem bolina, as chances de
acontecer isso eram grandes e não poderia perder
esse tempo. Muito menos perder de vista o meu
resgate. A brisa foi aumentando e se transformou
numa corrente de vento, que foi crescendo e
chegando a uns dez, onze nós. O Ozzy oscilava
muito, me obrigando a fazer muitas manobras e ter
as mãos ocupadas o tempo inteiro. Mesmo assim,
consegui manter a cana do leme reta e traçar meu
rumo, seguindo o meu resgate.

•••

68 | NO NEVOEIRO
P
artimos, navegando lentamente. Por todo
o trajeto, a distância dos nossos barcos não
ultrapassava os dez metros. O nevoeiro
continuava denso, o vento ainda não era forte
o suficiente para dissipá-lo, e aquela distância
que eu mantinha era a margem de segurança
para não perder a minha salvatagem de vista. O
mais estranho de tudo era que aquele monotipo
também parecia não possuir instrumentos de
navegação. Para onde estávamos indo também
era outro mistério. Mas eu percebia que o garoto
era muito experiente. Navegava com segurança e,
sempre atento, mantinha a cabeça erguida, olhando
para um horizonte imaginário. Invisível, naquele
momento, mas que ele parecia saber que estava
lá. Provavelmente, estávamos perto da costa. Isso
me tranquilizava, pois, no centro da lagoa, onde
ficava o canal, havia uma corrente forte. E também
aumentava o risco de colisão.
Uma hora havia se passado. A escuridão da
noite já estava completamente presente, o nevoeiro
continuava a cobrir todos os espaços, e a única
coisa visível era o meu novo amigo e o seu barco
rumando ao desconhecido.
Repentinamente, o garoto virou noventa graus
na minha frente e começou a circundar o Ozzy,
Mario Augusto Pool | 69
70 | NO NEVOEIRO
fazendo uma volta completa ao meu redor. Acenou
com o braço direito e apontou para algum lugar
perdido na penumbra do nevoeiro. Acompanhei com
os olhos a direção indicada e surpreendentemente
pude distinguir uma claridade ao fundo.
– Uma luz! Meu Deus, estou salvo! É terra.
– Vibrei de alegria e forcei o barco a contornar,
acompanhando o sentido de onde vinha a claridade
que ainda estava dispersa pelo nevoeiro.
Aos poucos, e com a minha aproximação, a luz
foi ficando mais nítida. Era uma luz de navegação
e estava fixa em algum ponto distante uns trinta ou
quarenta metros dali. Dei um grito de alívio e sorri
para o meu amigo. Ele correspondeu ao sorriso e
fez um sinal para que eu seguisse em frente. Virei
a cana do leme a boreste e rumei em direção à luz.
Queria muito chegar à terra e ligar para os meus
pais. Com certeza, estavam apavorados.
Mantendo o ritmo do vento fraco, fui, aos
poucos, me aproximando daquele lugar. Devia
ser uma marina. A luz que víamos ao longe era a
de um farol de canal, mostrando o caminho para
uma enseada e, logo em seguida, um trapiche com
muitos veleiros ancorados. Não havia ninguém
nos esperando, mas não importava, era um porto
para ancorar.
Mario Augusto Pool | 71
Encostei no píer e puxei uma amarra para
prender o Ozzy. Estava com muito frio. Segurei
no corrimão de acesso, coloquei meu pé ferido
no degrau e dei o primeiro passo. Estava a salvo.
Lembrei-me de olhar para o céu e agradecer
novamente a Deus. Sabia que não merecia, mas o
meu pedido havia sido atendido.
Com alguns passos cuidadosos, cheguei até
um hangar para barcos. Havia uma porta aberta
com caixilhos de metal. O nevoeiro cobria os
prédios, os barcos ancorados e o longo trapiche
que conduzia à sede do lugar. Naquele momento,
lembrei-me do meu salvador. Olhei para a lagoa,
e lá estava ele, com o seu barco, acenando para
mim e, mais uma vez, sorrindo. Acenei de volta e vi
quando o garoto voltou a sentar no cockpit, caçou a
retranca e manobrou o barco para seguir em frente.
Barcos pequenos devem sempre ser retirados
da água. Em temporais, eles são frágeis, podem
ser destruídos facilmente, caso venham a bater
nas colunas do píer. O garoto, certamente, estava
indo guardar o seu barco, já que ele era muito bem
cuidado.
Ao me virar, percebi um vulto vindo ao meu
encontro. Era um homem, um homem velho e com

72 | NO NEVOEIRO
Mario Augusto Pool | 73
barba. Empunhava uma pequena lanterna e vestia
um agasalho amarelo, uma jaqueta marítima.
– Olá, menino! Tudo bem com você? Já está
tarde e perigoso para ficar velejando com este
tempo – comentou ele, com um olhar desconfiado
e curioso; certamente, para saber quem eu era e o
que fazia ali numa noite daquelas.
– Pois é, senhor, tudo bem? Eu sou o Raul e
fiquei sem rumo. Levei uma pancada na cabeça e
acho que desmaiei. Eu saí do Clube Veleiros, às sete
horas da manhã, e, quando acordei, já eram quatro
horas da tarde!
O homem continuava parado, ouvindo,
e mais desconfiado ainda. Aquela história não
parecia muito apropriada. Podia ser um alucinado
querendo contar vantagem ou escondendo algo
que fizera de errado.
– Acho que você realmente bateu a cabeça! –
exclamou o homem, cofiando a barba e me olhando
dos pés até o último fio de cabelo. – Você disse que
saiu do Clube Veleiros de Porto Alegre?
– Sim, eu sou velejador de lá. Estava treinando
quando tudo isso aconteceu – certifiquei, mais uma
vez, a minha versão da história.
– E você tem ideia de onde está?
74 | NO NEVOEIRO
– Pra dizer a verdade, não. Mas eu fui
resgatado por outro garoto; ele deve ser daqui.
Ele me encontrou uma hora atrás e me guiou pela
lagoa. Depois, avistamos o farol de navegação. Ele
está lá atrás, foi guardar o veleiro dele.
Me senti em um inquérito. Porém, como
eu estava sendo acolhido, deveria ter paciência e
responder calmamente às perguntas do homem.
– Bem, meu jovem! Não sei muito bem como
lhe dizer, mas você está em Tapes! – respondeu
firmemente. – Aqui é o Clube Náutico Tapense,
e estamos sem movimento desde o fim da manhã
quando este nevoeiro invadiu a lagoa.
– Tapes? – indaguei com muito espanto. –
Mas isso é longe pra caramba! Eu já tive aqui antes
com o meu pai – completei, impressionado.
– Sim – reafirmou o homem. – Pra chegar
aqui pela lagoa são mais de oitenta milhas. Se
o que você está dizendo for verdade, você foi
arrastado por um vento e uma corrente muito
forte. Se não tivesse parado aqui, com certeza,
você iria morrer de frio ou afogado no canal.
Ninguém resiste a um frio deste ficando tanto
tempo à deriva! – concluiu espantado o homem
de barba. – Venha, você precisa de um banho

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76 | NO NEVOEIRO
quente e de roupas secas. Meu nome é Jorge e eu
sou zelador do clube. Eu moro aqui. Vamos até
a minha casa; minha esposa irá cuidar de você –
encerrou ali aquela conversa também fria.

•••

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E
u não sabia o que dizer; ainda estava
assustado. Percebi que a encrenca em que
eu havia me metido era muito mais séria e
que poderia ter morrido se não fosse aquele garoto
do outro barco. Mesmo assim, chegar a Tapes tinha
sido um milagre, disso eu tinha certeza. A cidade
fica protegida por um grande estuário, comprido,
formado por um braço enorme de terra que, ao
longo do tempo, cresceu em direção à Lagoa
dos Patos e cobriu uma boa extensão da água.
Contornar o braço de areia e localizar a entrada
da baía de Tapes com aquelas condições de clima
seria algo impossível. Somente com a ajuda do meu
amigo desconhecido eu havia podido chegar até
ali e atracar com segurança. Realmente ele era o
melhor velejador que eu já conhecera.
Na casa do zelador Jorge, pude tirar aquela
roupa apertada de neoprene e relaxar os meus
músculos. Fiquei um bom tempo embaixo do
chuveiro quente deixando que a água devolvesse
o calor ao meu corpo e esquentasse os meus pés,
praticamente roxos de frio. Vesti algumas roupas
emprestadas, um pouco velhas, mas limpas,
cheirosas e, sobretudo, quentes. A esposa do
zelador Jorge me colocou sentado frente a uma
mesa, ao lado de um fogão à lenha que esquentava

78 | NO NEVOEIRO
todo o ambiente. Fez um curativo no corte do
meu pé e cobriu com gaze e esparadrapos. Me
serviu uma sopa quente, muito saborosa. Eu
detesto sopas, mas aquela era a melhor refeição
que eu já tinha comido na vida.
Gentilmente, o zelador emprestou o
seu telefone e pude ligar para os meus pais.
Eles mal puderam acreditar naquela história
completamente incrível. O resultado da narrativa
eram lágrimas dos dois lados da linha. Vários
barcos do clube e de outras partes estavam a
minha procura; a capitania dos portos havia
sido avisada e foi um alívio para todos saberem
que eu estava vivo e que passava bem. As buscas
foram suspensas. Meus pais estavam a caminho
de Tapes. Iria ser resgatado pela segunda vez no
mesmo dia; desta vez, por terra. A sensação era
de muita felicidade. Seria mais um final feliz de
resgate na Lagoa dos Patos.
– Senhor Jorge, eu queria lhe agradecer por
ter se preocupado e me ajudado. Obrigado.
A esposa do zelador estava na cozinha. Eu
levantei um pouco a voz e direcionei meu olhar na
sua direção, embora não pudesse vê-la.
– Obrigado pela sopa, senhora! Está muito boa!

Mario Augusto Pool | 79


– Não há de que agradecer, jovenzinho. Você
parece ter tido um dia cheio hoje, não é?
Eu larguei a colher devagar no prato e engoli a
seco. Aquelas palavras e aquele jeito de falar soaram
familiares para mim, já tinha ouvido pela manhã.
Meus pensamentos foram interrompidos
por Jorge.
– Bem, Raul, o que eu posso lhe dizer? Eu
apenas ouvi algo batendo lá fora, fui ver o que era
e percebi que a luz do farol estava apagada. Havia
um defeito, e fui até lá consertar. Quando estava
retornando, eu vi o seu barco entrando na enseada
do clube. Fiquei bastante surpreso em ver alguém
velejando naquelas condições.
– Acho que tive muita sorte esta noite! –
exclamei. – Primeiro, o velejador que me trouxe até
aqui e, depois, o senhor, por ter me visto chegar.
– Bem, meu amigo, certas coisas não se
explicam, apenas agradecemos.
– Verdade, seu Jorge. Eu rezei bastante e
agradeci – concluí a conversa, tratando de terminar
meu prato de sopa.
Enquanto esperava meu segundo resgate do
dia, me senti à vontade para caminhar calmamente

80 | NO NEVOEIRO
pela confortável casa de madeira do zelador. Em
uma das paredes, havia algumas fotos penduradas
por suas molduras. Eram fotos em preto e
branco. Percebi que eram de diferentes épocas
do Clube Náutico Tapense. Parei diante de uma
velha fotografia emoldurada. Estava manchada,
mas suficientemente nítida através do vidro que
a protegia. Mostrava um garoto a bordo de um
veleiro monotipo, do mesmo modelo daquele que
havia me resgatado.
– Quem é o velejador, seu Jorge?
– Que velejador?
Apontei para a fotografia entre as outras.
– Ah, sim. É uma fotografia do inglesinho
Mark, sobrinho de um dos fundadores aqui
do clube.
– Mark? – disse eu, aproximando o rosto para
perto da fotografia a fim de ver mais detalhes.
– Sim, Mark Spencer! – completou. – Era
um bom menino inglês; não falava a nossa língua.
Eventualmente, vinha visitar o seu tio Eddie, um
dos comandantes que dragaram o canal da Lagoa
dos Patos. O comandante Eddie, depois da obra,
ficou morando por aqui; tinha um entreposto neste
terreno e, anos depois, acabou fundando este clube.
Mario Augusto Pool | 81
Este barco pertencia ao Eddie, mas, sempre que
vinha aqui, Mark velejava nele. O tempo todo, o
tempo todo! – repetiu o velho Jorge.
Com os olhos um tanto arregalados, eu
escutava atento a narrativa do zelador. Vez ou outra,
voltava meu olhar para a fotografia e retornava
para Jorge novamente. Algumas coisas começavam
a fazer sentido. As letras na proa do barco, “ES”,
deveriam ser de Eddie Spencer, o dono do barco,
e isso confirmava a existência do meu amigo e
salvador. Ele realmente era um velejador local e
pertencia àquele clube.
– É um bom velejador, com certeza –
murmurei, pensando no que havia feito por mim
naquela noite.
– Muito bom velejador – disse o velho Jorge,
olhando nos meus olhos. – Um menino de ouro,
sempre disposto a ajudar. Um marinheirinho com
muita experiência. Usava o velho monotipo do
Eddie com destreza e boas manobras – completou
Jorge. – Lembro de certa ocasião, em um dia como o
de hoje, um nevoeiro muito denso. Nós recebemos
pelo rádio um pedido de socorro. O chamado vinha
de um barco de pescadores que estava afundando a
algumas milhas daqui. Na época, tínhamos poucos

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recursos e não existiam equipamentos para navegar
à noite no meio daquele clima. – Jorge olhou
para mim. – Estávamos apenas acompanhando
pelo rádio o pedido de socorro e tentando avisar
a Marinha sobre o chamado. Mas Mark não se
convenceu. Quando percebemos, o menino não
estava mais conosco. Zarpou com o veleiro do seu
tio e foi ao encontro do pesqueiro.
– Sério? – questionei, agitando a cabeça.
– Sim. Ele foi em busca do pesqueiro. Algumas
horas depois, retornou com quatro homens a
bordo, todos salvos. Era um menino especial.
Diziam que tinha sentidos apurados, que percebia
o perigo e pressentia a agonia das pessoas presas na
água. Tinha um instinto para encontrar e ajudar as
pessoas – terminou de contar com um sorriso no
rosto e colocou a mão em meu ombro.
– Legal! – murmurei. – Muito legal. Pelo visto,
ele continua ainda ajudando os perdidos – disse e
sorri para Jorge, também colocando minha mão
no seu ombro. – Você poderia chamar o Mark? –
perguntei. – Quero muito agradecer e conhecê-lo
pessoalmente. Também devo a minha vida a ele.

•••

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O
velho Jorge ficou imóvel. Olhava fixamente
para mim, e percebi que os seus olhos
ficaram marejados. Por alguns instantes,
ficamos apenas nos olhando enquanto o zelador
calmamente balançava a cabeça. Era um gesto
lento que indicava que ele estava compreendendo
o que havia acontecido. Percebi então que a minha
história e tudo o que eu havia contado passava a
fazer sentido para ele.
– Infelizmente, isso não é possível – disse
Jorge, respondendo a minha pergunta. – Um dia
Mark saiu para socorrer um velejador, um garoto
aqui do clube, que, como você, havia se perdido em
um desses nevoeiros da Lagoa dos Patos.
Jorge parou por um instante, respirou fundo
e continuou.
– Mark naufragou em algum ponto do canal
e nunca mais foi encontrado. Isso aconteceu quase
sessenta anos atrás.
Eu fiquei pasmo com o que Jorge me contara.
Olhei-o fixamente. O coração, acelerado, me
deixava cada vez mais tenso.
O velho zelador tentou finalizar, com voz
muito trêmula:
– O garoto que ele tinha ido salvar era…
84 | NO NEVOEIRO
Mario Augusto Pool | 85
Percebi a dificuldade que ele tinha em
concluir a história. Eu mesmo estava com
dificuldade para assimilar tantas informações
que iam além da rasa compreensão de um
adolescente tão cético como eu.
– O garoto era... eu, meu jovem Raul. Era eu.
Naquele momento, o zelador me abraçou,
e ali ficamos. Mudos e emocionados. Apenas
pensando no milagre. E agradecendo. Pela vida e
pela experiência. No nevoeiro.

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Livro produzido dentro do Curso Livre de Formação de
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impresso em Porto Alegre, primavera de 2018

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