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Revista Manuelzão Nº84
Revista Manuelzão Nº84
84
mar/19
VALE TUDO?
2 .... EDITORIAL manuelzão // 2019
Procópio de Castro
Este paradigma levou a tomada de do Estado de Minas Gerais, que apro-
Foto da Capa
decisões equivocadas, negligentes e vou uma nova lei sobre segurança de André Tashiro
irresponsáveis que culminaram em barragens do estado, incorporando impressão
10.000 exemplares
Brumadinho e de suas consequências Por último, gostaríamos de convidar issqn 2178 9363
dentro de uma visão de epidemio- a todos para o lançamento do livro
logia social onde estão descritos os “Mar de Lama da Samarco na Bacia É permitida a reprodução de matérias e
artigos, desde que citados a fonte e o autor.
fatos, identificados o perfil dos atingi- do Rio Doce – Em Busca de Respos-
dos e mortos, demonstrando que eles tas”, no dia 25 de março. A obra foi Universidade Federal de Minas Gerais
não são somente números, mas his- produzida ao longo de dois anos para Av. Alfredo Balena, 190, sl. 813.
Belo Horizonte (MG) | CEP 30130-100
tórias de vida que foram interrompi- fazer o registro da narrativa do crime (31) 3409-9818 / www.manuelzao.ufmg.br
das; o dano sistêmico produzido pelo socioambiental na bacia do rio Doce, manuelzao@manuelzao.ufmg.br
rompimento da barragem, no seu por meio de diversos autores de di- Facebook: @projetomanuelzao
Instagram: @projetomanuelzao
entorno e na bacia do Rio Paraopeba; ferentes áreas do conhecimento e de
toda a rede de causalidade que gerou ONGs, incorporando um pouco da
tamanha tragédia, desde o processo história sobre Brumadinho.
de licenciamento até a repetição do Reverberamos aqui as palavras de
erro no método de construção de Carolina de Moura, do Movimento
barragens. Tratamos da (ir)responsa- Águas e Serras de Casa Branca – Bru-
bilidade das empresas, do governo madinho: “Nossa terra sangra, nosso
do estado e da União, do problema povo chora, nossa luta continua”.
“E aí vem um projeto que se propõe a apresen- “O Ministério Público não aceita que foi um aci-
tar um ganho ambiental a partir de inversão tec- dente. Aqui, você não vai chamar de acidente. Foi
nológica, e nós vamos discutir aqui com base no um crime. Chame como quiser, mas não de aci-
acidente de Mariana. São casos completamente dente”.
diversos. Nós tivemos muita tranquilidade na- André Stern
quele parecer que elaboramos e estamos muito Promotor estadual, em resposta a advogado da Vale em
reunião com moradores de Parque da Cachoeira, em 05 de
seguros em relação a ele” fevereiro
Rodrigo Ribas
Superintendente da Suppri, na ocasião de votação do licencia-
mento da Vale, em Brumadinho, em 11 de dezembro de 2018.
“Isso é um genocídio!”
Alexandre Kalil
Prefeito de Belo Horizonte, em 28 de janeiro
“Eu diria que apesar de ser uma tragédia de di-
mensões enormes, a situação está sob controle.
“Tragédias acontecem por irresponsabi-
As nossas forças estão fazendo o melhor e eu
acompanho pessoalmente” lidade, para economizar, para alcançar
metas. Mas são vidas. Agora, é torcer
Romeu Zema
Governador de Minas Gerais, em coletiva de imprensa, em 26 de para que achem o corpo. Muitos não se-
janeiro rão encontrados, e eu posso até estar in-
cluído nessa [não encontrarem o corpo
“Procuramos sobreviventes, sempre. do meu irmão], mas é o mínimo que se
Mas aqui, a verdade é que estamos nos espera. Esperança de vida não dá, mas ao
guiando pelo cheiro dos corpos ou pelo menos encontrar o corpo”
Carlos Antônio Piedade
o que conseguimos ver.” cujo irmão está desaparecido, 28 de janeiro
Brigadista em Brumadinho, 28 de janeiro
206 102
critórios administrativos da Vale, na Mina das pela empresa foram deixando o local
Córrego do Feijão. Tiago Favarini, 33, foi e sendo substituídas por caminhões refri-
para o trabalho em Brumadinho, como gerados. Não havia gente viva para salvar.
fazia todas as sextas. Esse era o único dia No primeiro dia, a contagem oficial anun-
da semana em que ele não trabalhava em Mortos* Desaparecidos ciava nove mortos, dez pessoas a menos
Congonhas. que as que foram encontradas sem vida
* Dado disponível no fechameto da revista, em 18/03/2019. no desastre da Samarco, em Mariana. Mas
Éverton Guilherme Ferreira Gomes, 21,
com o passar dos dias, as buscas revela-
foi à mina para conhecer o novo chefe. com um colega, sem ter para onde correr.
ram o verdadeiro impacto do novo mar
Pelo celular, despediu-se do pai. “Eu te Com a ajuda dele, conseguiu desenterrar
de lama, que atingiu a Região Metropoli-
amo! Fica com Deus”, escreveu. Chegada outro companheiro, que estava soterrado
tana de Belo Horizonte.
a hora do almoço, as mesas de trabalho pelos rejeitos de minério.
foram trocadas pelas do refeitório. Sobre Em 15 segundos, a destruição alcançou os
as cabeças de tantos empregados e ter- prédios administrativos e o refeitório da “Muitos estão olhando o papel
ceirizados da Vale estava uma estrutura empresa, depois seguiu derrubando árvo- sujo, que é o dinheiro, só estão
gigante: a barragem I, cuja segurança era res, tomando casas, inundando a planície olhando os bens materiais. Eles não
garantida pela mineradora de grande cre- do Córrego do Feijão. entendem que o ar puro que eles
dibilidade. respiram é através das reservas,
“Olhei para os lados e não vi mais ninguém.
Próxima à estrutura, Ana Paula da Silva nascentes do rio”, cacique Hãyó
Não havia mais barulho. Parecia um cenário
Mota, 30, dirigia um megacaminhão, car- Pataxó.
de guerra. Foi horrível”, relatou Sebastião.
regado com 91 toneladas de minério. E
Tiago e Éverton foram silenciados pela his-
às 12:28, enquanto alguns trabalhavam,
tória que poucos, como Ana Paula e Sebas-
outros se alimentavam e descansavam, “Após 48 horas de operação, torna-se
tião, sobreviveram para contar.
ela ouviu um grande estrondo, e viu uma muito mais difícil de encontrar vítimas
onda de rejeitos de minério se apossar de O silêncio com vida. Existem relatos de pessoas que
carros, caminhões e trilhos de trem. Onde antes havia um curso d’água, apenas conseguem sobreviver em desabamen-
Com os faróis, Ana Paula sinalizou para barro, peixes mortos e água turva podem tos, mas não com movimento de massa.
que o motorista de outro caminhão fu- ser observados. O que se ouve é o pesado A lama funciona como a água, ocupa to-
gisse dali, e pelo rádio do veículo avisou: silêncio de pelo menos 206 mortos, 102 dos os espaços, e não deixa bolsões de ar,
“Corre, foge, a barragem estourou”. De- desaparecidos, e talvez um número ainda como acontece em desabamentos”, afir-
pois, manobrou o pesado veículo, de ré, maior de vítimas não registradas. Calados mou o porta-voz dos bombeiros de Minas
para fora da área de inundação. pela enxurrada de lama tóxica de minério. Gerais, tenente Pedro Aihara.
Ela nunca teve medo da barragem: “a Vale O silêncio na Mina do Feijão é um eco da Quem são as pessoas sob os rejeitos de
sempre passava muito treinamento de se- negligência da empresa, que sabia que, minério?
gurança. Inclusive, uns três meses antes, em caso de rompimento, seus prédios ad- Um dos desaparecidos, Erídio Dias, havia
tinham feito uma simulação (de evacua- ministrativos seriam atingidos e que onde escapado por pouco do rompimento da
ção de emergência)”, contou Ana Paula. estavam não havia tempo suficiente para barragem de Fundão, que arrasou Ma-
Ao escutar o estrondo, Sebastião Gomes, evacuação. A sirene, que deveria ter toca- riana, em 2015. Desta vez, não conseguiu
53, entrou na caminhonete e tentou fugir do, sucumbiu à força da lama. fugir.
Foto: ANDRÉ TASHIRO Fotos: murilo salazar
manuelzão // 2019 desastre .... 5
Área afetada pelo rompimento da barragem da mina Córrego do Feijão em Brumadinho (MG) Foto: Andre Penner/AP
“Não são só números, são histórias de vida”
A VALE JÁ SABIA!
das, que agregavam grande parte dos tar seu Plano de Ação de Emergência
Marcus Vinícius Polignano
trabalhadores da mineradora Vale e ter- de Barragem de Mineração (PAE-
Prof. DMPS Faculdade de Medicina - Coord. P. Manuelzão
ceirizados, estavam na zona de autossal- BM/2016) para as autoridades. Neste
vamento. Ou seja, era a região a jusante plano são definidas as responsabilida-
P
ara entender o grande número de da barragem onde se considerava não des, cenários em caso de rompimento da
vidas perdidas no rompimento da haver tempo suficiente para uma inter- estrutura – o Dam Break – e as ações a
barragem da mina Córrego Feijão, venção das autoridades competentes serem desenvolvidas.
da Vale, em Brumadinho, é necessário em caso de rompimento. Os prédios es-
O Dam Break estava correto
olhar para o Dam Break, estudo que ava- tavam a 2 km de distância, e o local foi
lia os potenciais impactos da ruptura da alcançado pelos rejeitos em apenas 15 As áreas de impacto previstas no estudo
barragem. As informações no documen- segundos. foram exatamente aquelas comprometi-
to ajudam a compreender por que a bar- das pelo rompimento da barragem. Sen-
A empresa conhecia os riscos do previsível, era possível prevenir. Mas,
ragem, que liberou apenas um quinto do
volume de rejeitos emitidos pela barra- Tanto a Vale quanto o poder público apesar de ter conhecimento dos riscos,
gem rompida em Mariana, foi quase dez conheciam a possível rota da lama de a empresa optou por manter toda a sua
vezes mais fatal. rejeitos, incluindo a informação de que estrutura administrativa e até seu refeitó-
havia pessoas neste caminho, já que toda rio na área de inundação. O que aconte-
A explicação é que as estruturas atingi- mineradora tem a obrigação de apresen- ceu foi crime.
Perdas ambientais, econômicas e de vidas no desatre do córrego do Feijão. Foto: Murilo Salazar
10 .... licenciamento manuelzão // 2019
O CASO DE BRUMADINHO
No caso da barragem que se rompeu Por que a comunidade se opunha ao li- tavam sendo cumpridas – condições que
em Brumadinho, o complexo minerário cenciamento concedido em dezembro a empresa tem que atender para conti-
sempre foi considerado como empre- de 2018? nuar em funcionamento – eram os argu-
endimento de classe 6. Porém, ele pas- “As comunidades do entorno como Jan- mentos contra o licenciamento.
sou a ser considerado classe 4, devido a gada, Casa Branca e Córrego do Feijão “A comunidade do Parque da Cachoeira,
mudanças na classificação por meio de argumentaram contra o licenciamento de por exemplo, não estava no Estudo de
deliberações normativas, de acordo com novas atividades de ampliação e modifi- Impacto Ambiental (EIA) apresentado em
Maria Teresa Corujo. cação nas minas de Jangada e Córrego do Brumadinho, em 2017, de acordo com o
Assim, a mineradora pleiteou o licencia- Feijão”, conta Teca. parecer técnico da Suppri. A pousada, que
mento concomitante para suas operações Problemas processuais, como incoerên- foi arrastada pela lama da barragem, não
no complexo, o qual foi concedido em 11 cias no Estudo de Impacto Ambiental estava no EIA como área de influência di-
de dezembro de 2018. (EIA), além de condicionantes que não es- reta”, ressaltou.
A FALTA DO ADEUS
‘Identificar corpo é devolver memória 839 barragens de minério do país te-
à família’, quem afirma é dos princi- mem que, a qualquer momento, uma
pais peritos no país em identificação nova tragédia invada suas rotinas,
s Doenças gastrointestinais/ de corpos e esqueletos, o médico destrua suas perspectivas. O medo se
gastrointerites legista e geneticista forense Samuel alastra antes mesmo da lama.
s Doenças dermatológicas Ferreira, que está em Brumadinho
Estresse pós-traumático
(MG) a convite do Instituto Médico
s Intoxicação por metais pesados Quando analisamos a comunidade
Legal (IML). A falta do reconhecimen-
to ou mesmo do encontro dos corpos afetada pela quebra da barragem,
das vítimas é um dos fatores que con- observamos três grandes grupos. O
tribui para o quadro de estresse da primeiro é formado pelas pessoas
comunidade afetada pelo desastre. que foram atingidas, mas sobrevivera.
Do segundo grupo faz parte os fami-
Para quem fica, o luto é considerado
liares e amigos que lidam com a mor-
um momento de dor e vazio, porém
te dos seus. Por fim, o terceiro grupo
é um processo fundamental para li-
compreende aquelas populações que
dar com a morte. Quando isso não
estão ameaçadas por barragens.
acontece, não há a materialização da
perda e isso gera um estresse pelo O estresse pós-traumático, que atinge
não-encontro, “o que chamamos de o primeiro grupo, é um transtorno de
‘transtorno de ajustamento’, pois não ansiedade causado por um trauma de
há a confirmação da morte e com isso natureza extrema ou evento violento
quem fica não consegue construir ou- que tenha colocado em risco a vida
tra perspectiva de vida, porque ainda da própria pessoa ou de outras pes-
s Hipertensão está vivendo as etapas do luto, fica soas. “As crises de ansiedade e pânico
s Diabetes sempre à expectativa de que a pessoa são provocadas pela revivescência do
pode um dia bater à porta”, explica o trauma sofrido e com isso surge o que
s Problemas renais
professor do Departamento de Saú- chamamos de evitamento, as pessoas
s Doenças mentais de Mental da Faculdade de Medicina passam a evitar tudo aquilo que ela
da UFMG e coordenador do Prismma, acredita que causa a crise para ela”,
ESTRESSE Frederico Garcia. explica o professor Fernando Garcia.
PSICOSSOMÁTICO O professor explica que também há O tratamento do transtorno do es-
s Luto um estado de estresse criado pela tresse pós-traumático é feito com
s Perda de rotina sensação de “quem é o próximo”. As psicoterapia e medicamentos, sobre-
comunidades próximas a uma das tudo antidepressivos.
s Insegurança
s Perdas patrimoniais
16 .... manifestação manuelzão // 2019
Manifestação pela aprovação do PL “Mar de lama Nunca Mais”. Foto: Maurílio Nogueira Jr
O CRIME COMPENSA?
rar a biodiversidade
Gabi Costa e Lila Alves alterada. As rupturas
Jornalistas
culturais e a vida de 19
pessoas, são perdas ir-
reparáveis.
“No Bento, perdemos muito! Simone conta que des-
Perdemos história, convívio de criança ouvia o avô
familiar, lembranças, ficou tudo contar a história do
perdido, muito triste ter acabado monstro “lá de cima”,
assim”. Manuel Marcos Muniz, que poderia estourar e
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