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' ª - Ernst Cassiref

ser que consigamos encontrar o fio de Ariadne que nos


tire dêste labirinto, não poderemos ter uma Visao
“"—do
caráter geral da cultura humana, e continuaremos per-
didos no meio de um conjunto de dados desconexos e
desintegrados, carente, ao que parece, de tôda unidade
conceitual. . II
UMA CHAVE PARA A NATUREZA“ DO
“.* “ , HOMEM. 0 SÍMBOLO—
,)

O BIOLOGISTA Johannes von Uexkiill escreveu um


livro em que procede a uma reasªãõ'crítica dos prin-
cípios da biologia. De acôrdo com Uexkíill, a biolo-

I A
gia é uma ciência natural, que precisa ser desenvol-
vida por meio dos métodos empíricos usuais — os da
observação e experimentação. O pensamento bioló—
gico, por outro lado, não pertence ao mesmo tipo do
pensamento físico ou do químico. Uexkiill é um re-
soluto campeão do Vitalismo, defendendo o princípio -
da autonomia da vida. A vida é uma realidade final
e dependente de si mesma. Não pode ser descrita nem
explicada em têrmos de física ou de química. Partin-
do dêste ponto de vista,_Uexkii]l desenvolve um nôvo
esquema geral de pesquisa biológica. Como filósofo,.
é idealista ou fenomenalista. Mas seu fenomenalismo
não se baseia em considerações metafísicas ou episte-
mológicas, mas, antes, em princípios empíricos. Como
êle assinala, seria de um dogmatismo muito ingênuo a
" presunção de que existe uma realidade absioluta de
coisas, idêntica para todos os sêres vivos. A realidade
não é uma coisa única e homogênea; imensamente di—
versificada, possui tantos padrões e planos diferentes
quantos são os organismos diferentes. Todo organis-
mo, por assim dizer, é um ser monadário. Tem um
..
:
ª . ' Ernst Cassinr Antropologia Filosófica ' _ £
mundo próprio, porque tem uma experiência própria. o organismo não poderia sobreviver. O sistema re—
Os fenômenos que encontramos na vida de certas es- ceptor, pelo qual uma espécie biológica recebe os es-
pécies biológicas não são transferíveis para nenhuma tímulos externos e o sistema pelo qual reage a êle
outra espécie. As 'e'xperiências — e portanto as rea- estão, em todos os casos, intimamente entreligados.
lidades — de dois organismos diferentes são incomen— São elos da mesma cadeia, descrita por Uexkiill como
suráveis entre si. No mundo de uma môsca, diz o círculo fundam (Funktionskreis) do animâlf
Uexkiill, só encontramos “coisas de môscas”;' no mun- Não posso entrar aqui na discussão dos princí-
do de um ouriço do mar só encontramos “coisas de - pios biológicos de Uexkiill. Referi—me tão-somente
ouriços do mar”. aos seus conceitos e à sua terminologia a fim de for.-
Partindo desta pressuposição geral, Uexkiill de- mular uma pergunta geral. Será possível utilizar o
senvolve um plano originalíssimo e engenhoso do mun- plano proposto por Uexkiill para uma descrição e ca—
do biológico. Desejando evitar tôdas as interpreta racterização do mundo humano? É evidente que êste
-
çoes psicológicas, segue um método inteiramente obje- mundo não constitui exceção às regras biológicas que
tivo ou behaviorista. A única chave para a vida governam a vida de todos os outros organismos. En-
ani-
mal nos é proporcionada pelos fatos da anatomia tretanto, no mundo humano encontramos uma nova
com-
parada. Se conhecermos a estrutura anatômica de ' característica, que parece ser a marca distintiva da
uma espécie animal, possuiremos todos os dados ne— vida humana. O círculo funcional do homem não foi
cessarios à reconstrução de seu modo especial apenas quantitativamente aumentado; sofreu também
de ex—
periência. Um estudo cuidadoso da estrutura do uma mudança qualitativa. O homem, por assim dizer,
cor-w
po animal, do número, da qualidade e da distribuiçã . descobriu um nôvo método de adaptar-se ao meio.
dos vários órgãos dos sentidos e das condições do Entre o sistema receptor e o sistema de reação, que se
sistema nervoso, nos dará uma imagem perfeita do encontram em tôdas as espécies animais, encontramos '
mundo interior e exterior do organismo. Uexkiill , no_homem um terceiro elo, que podemos descrever
principia suas investigações com um estudo dos or- como o saem siínbólÍê/óf“ Esta nova aquisição trans-
'
ganismos inferiores; estendeu-as gradativamente & forma tôda a vida humana. Em confronto com os ou-
tôdas as formas da vida orgânica. Em certo sentido, tros animais, o homem não vive apenas numa reali-
recusa—se a falar em formas inferiores ou superiores dade mais vasta; vive, por assim dizer, numa nova
de vida. A vida é perfeita em tôda parte; é idêntica, dimnsão da realidade., Existe uma diferença inequí—
tanto no menor como no maior dos círculos. Todo võca entre as reações orgânicas e as respostas huma-
organismo, até o mais rudimentar, não só se acha nas. No primeirõ' caso, a resposta dada a um estímulo
adaptado, num sentido vago (angepasst) ao seu meio, exterior ' direta e imediata; no segundo, a resposta é
mas também inteiramente coordenado (eingepasst) diferida. É “interrompida e retardada por um lento e
com seu ambiente. complicado processo de pensamento. A primeira vis-
De acôrdo com sua estrutura anatômica, possui ta, êste atraso pode parecer uma vantagem muito dis-
certo Megga e certo Wirknetz —— um sistema re-
ceptor e um ªcme) destinado a responderia estima“ 1. Veja Johannes von Uexkíill, Theoretísche Biologie (2: ediçlo,
Berlim, 1938); Umwelt und Innenwelt der Tien (1909; 23 edição, Ber—
Íãçâo. Sem a cooperação e o equilíbrio dêstes sistemas lim, 1921).
v-
50, Ernst Cassirer Antropología Filosófica ' 51,
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cutível. Inúmeros filósofos "lançaram advertências ' cionalismo moderno, a definição do homem como
contra êste pretenso progresso. “L'homme qui médi— animal rationale não perdeu sua fôrça. A raciona—
te”, diz Rousseau, est un animal dépravé”: não se lidade, com efeito, é uma característica inerente a
aprimora, mas se deteriora a natureza humana quan- tôdas as atividades humanas. A própria mitologia
do ultrapassa as fronteiras da vida orgânica. não é, pura e simplesmente, um conjunto vulgar
Entretanto, não existe remédio contra essa inver- de superstições ou de grosseiras ilusões. Não é pu-
são-da ordem natural. O homem não pode fugir à ramente caótica, pois possui forma sistemática ou con-
própria consecução. Não pode deixar de adotar as ceitual. 1 Mas, porvoutro lado, fôra impossível carac—
condições da própria vida. J a não vive num universo terizar como racional a estrutura do mito. A língua-
puramente físico, mas num universo simbólico. A gem foi frequentemente identificada com a razão, ou
linguagem, o mito, a arte e a- religião são partes dêste com a própria origem da razão.. Mas é fácil ver que
universo. São os vários fios que tecem a rêde simbó- esta concepção não consegue abarcar todo o campo.
lica, a teia emaranhada da experiência humana. Todo É uma pars p'ro tato ; oferece-nos uma parte pelo todo.
o progresso humano no pensamento e na experiência Pois lado a lado com a linguagem conceitual há a lin-
aperfeiçoa e fortalece esta rêde. Já não é dado ao ho- guagem emocional; lado a lado com a linguagem ló-
mem enfrentar imediatamente a realidade; não pode gica ou científica há a linguagem da imaginação poé-
vê-la, por assim dizer, face a face. A realidade fisica tica. Em primeiro lugar, a linguagem não expressa
p_rece retroceder proporcionalmente à medida que pensamentos nem idéias, massªtiªgniosm afeições.-
avança a Vativrdadesmibôlica do homem. Em lugar de E até uma religião “dentro dos limites da razão pura”,
lidar com as próprias coisas, o homem, em certo sen- como a concebeu e elaborou Kant, não é mais que
tido, está constantemente conversando consigo mes- uma simples abstração. Transmite apenas a configu—
Envolveu-se por tal maneira em formas lingiiís- ração ideal, a sombra de uma genuína e concreta vida
ticas, em imagens artísticas, em símbolos míticos ou religiosa. Os grandes pensadores que definiram o ho-
em ritos religiosos, que não pode ver nem conhecer mem como um animal rationale não eram empirístas,
coisa alguma senão pela interposição dêsse meio ar- nem jamais tentaram oferecer uma explicação empíri-
tificial. Tanto na esfera teórica quanto na prática, a ca da natureza humana. Por meio desta definição, ex—
situação é a mesma. Nem mesmo nesta última vive o pressavam antes um imperativo moral fundamental.
homem num mundo de fatos indisputáveis, ou de Razão é um têrmo muito pouco adequado para abran- _
acôrdo com suas necessidades e desejos imediatos. Vi— ger as formas da vida cultural do hºmem em tôda sua
ve antes no meio d e e moções imaginárias, entre espe- riqueza e variedade. Mas tôdas estas formas são sim-
ranças e temores, ilusões e desilusões, em seus so- bólicas. Portanto, em lugar de definir o homem co-
nhos e fantasias. “O que perturba e alarma o ho- mo um animal rationale, deveríamos defini-lo como
mem”, diz Epicteto, “não são as coisas, são suas opi- um animãi'symboiicum. Dêste modo, podemos desig-
niões e fantasias a respeito das coisas”. nar sua diferença específica, e podemos compreender
Do ponto de vista a que acabamos de chegar, o nôvo caminho aberto ao homem: o da civilização.
podemos corrigir e ampliar a definição clássica do 1. Veja Cassirer, Die Bear-instar": im mythischen Denken (Lip-
homem. A despeito de todos os esforços do irra- sia, 1921).
..
III
DAS REAÇõES ANIMAIS AS
RESPOSTAS HUMANAS

P ELA nossa definição do homem como animal symbo—


licum chegamos ao nosso primeiro ponto de partida
para novas investigações. Agora, porém, se torna im-
perativo desenvolvermos um pouco essa definição pa-
« -.
' ra dar-lhe maior precisão. Elnegável que o pensa- '.«wyr. hrª

_mento simbólico e o comportamento simbólico figª“ ),iº


nr
ram entre os traços mais característicos da vida hu- &; ' “L' '
mana, e que todo o progresso da cultura humana se ;
baseia nessas condições. Mas temos, porventura, o di- “_

reito de considera-las como dote especial do homem


com exclusão de todos os outros sêres orgânicos? Não
é o Simbolismo um princípio a cuja origem, muito mais
profunda, podemos remontar, e que possui uma ampli-
tude de aplicabilidade muito maior? Se respondemos
negativamente à pergunta, estaremos confessando, ao
que parece, nossa ignorância acêrca de muitas pergun-
tas fundamentais que têm perenemente ocupado o cen-
tro de atenção na filosofia da cultura humana. A per-«,
gunta sôbre a origem da linguagem, da arte, da religião'
torna—se irrespondível, e ficaremos com a cultura hu—
mana como com um fato dado, que subsiste, em certo ;
sentido isolado e, poàto, ininteligível. '
É compreensível que os cientistas se tenham sem-
pre recusado a aceitar uma solução desta ordem. Envi-

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