Você está na página 1de 3

4.

6 Ernst Cassirer

ser que consigamos encontrar o fio de Ariadne que nos


tire deste labirinto, não poderemos ter uma visão do
caráter geral da cultura humana, e continuaremos per-
didos no meio de um conjunto de dados desconexos e
desintegrados, carente, ao que parece, de toda unidade
conceitual. II
UMA CHAVE PARA A NATUREZA DO
HOMEM: O SíMBOLO

o BIOLOGISTA Johannes von Uexkül1 escreveu um


livro em que procede a uma revisão crítica dos prin-
cípios da biologia. De acordo com Uexküll, a biolo-
gia é uma ciência natural, que precisa ser desenvol-
vida por meio dos métodos empíricos usuais - os da
observação e experimentação. O pensamento bioló-
gico, por outro lado, não pertence ao mesmo tipo do
pensamento físico ou do químico. Uexküll é um re-
soluto campeão do vitalismo, defendendo o princípio
da autonomia da vida. A vida é uma realidade final
e dependente de si mesma. Não pode ser descrita nem
cxplicada em termos de física ou de química. Partin-
do deste ponto de vista, Uexküll desenvolve um novo
esquema geral de pesquisa biológica. Como filósofo,
ú idealista ou fenomenalista. Mas seu fenomenalismo
não se baseia em considerações metafísicas ou episte-
mológicas, mas, antes, em princípios empíricos. Como
ele assinala, seria de um dogmatismo muito ingênuo a
presunção de que existe uma realidade absoluta de
coisas, idêntica para todos os seres vivos. A realidade
não é uma coisa única e homogênea; imensamente di-
versificada, possui tantos padrões e planos diferentes
quantos são os organismos diferentes. Todo organis-
mo, por assim dizer, é um ser monadário. Tem um
48 Ernst Cassirer Antropologia Filosófica 49

mundo próprio, porque tem uma experiência própria. o organismo não poderia sobreviver. O sistema re-
Os fenômenos que encontramos na vida de certas es- ceptor, pelo qual uma espécie biológica recebe os es-
pécies biológicas não são transferíveis para nenhuma tímulos externos e o sistema pelo qual reage a ele
outra espécie. As experiências - e portanto as rea- estão, em todos os casos, intimamente entrelígados.
lidades - de dois organismos diferentes são incomen- São elos da mesma cadeia, descrita por Uexküll como
suráveis entre si. No mundo de uma mosca, diz o círculo funcional (Funktionskreis ) do animal. ~
Uexküll, só encontramos "coisas de moscas"; no mun- Não posso entrar aqui na discussão dos princí-
do de um ouriço do mar só encontramos "coisas de pios biológicos de Uexküll. Referi-me tão-somente
ouriços do mar". aos seus conceitos e à sua terminologia a fim de for-
Partindo desta pressuposição geral, Uexküll de- mular uma pergunta geral. Será possível utilizar o
senvolve um planooriginalíssimo e engenhoso do mun- plano proposto por Uexküll para uma descrição e ca-
do biológico. Desejando evitar .todas as interpreta- racterização do mundo humano? É evidente que este
ções psicológicas, segue um método inteiramente obje- mundo não constitui exceção às regras biológicas que
tivo ou behaviorista. A única chave para a vida ani- governam a vida de todos os outros organismos. En-
mal nos é proporcionada pelos fatos da anatomia com- tretanto, no mundo humano encontramos uma nova
parada. Se conhecermos a estrutura anatômica de característica, que parece ser a marca distintiva da
uma espécie animal, possuiremos todos os dados ne- vida humana. O círculo funcional do homem não foi
cessários à reconstrução de seu modo especial de ex- apenas quantitativamente aumentado; sofreu também
periência. Um estudo cuidadoso da estrutura do cor- uma mudança qualitativa. O homem, por assim dizer,
po animal, do número, da qualidade e da distribuição descobriu um novo método de adaptar-se ao meio.
dos vários órgãos dos sentidos e das condições do -Entre o sistema receptor e o sistema de reação, que se
sistema nervoso, nos dará uma imagem perfeita do encontram em todas as espécies animais, encontramos
mundo interior e exterior do organismo. Uexküll no homem um terceiro elo, que podemos descrever
principia suas investigações com um estudo dos or- como o sistema simbólico. Esta nova aquisição trans-
ganismos inferiores; estendeu-as gradativamente a forma toda a vida humana. Em confronto com os ou-
todas as formas da vida orgânica. Em certo sentido, tros animais, o homem não vive apenas numa reali-
recusa-se a falar em formas inferiores ou superiores dade mais vasta; vive, por assim dizer, numa nova
de vida. A vida é perfeita em toda parte; é idêntica, dimensão da realidade. Existe uma diferença inequí-
tanto no menor como no maior dos círculos. Todo voca entre as reações orgânicas e as respostas huma-
organismo, até o mais rudimentar, não só se acha nas. No primeiro caso, a resposta dada a um estímulo
adaptado, num sentido vago (angepasst) ao seu meio, exterior é direta e imediata; no segundo, a resposta é
mas também inteiramente coordenado (eingepasst) diferida. É interrompida e retardada por um lento e
com seu ambiente. complicado processo de pensamento. A primeira vis-
De acordo com sua estrutura anatômica, possui ta, este atraso pode parecer uma vantagem. muito dis-
certo Merknetz e certo Wirknetz - um sistema re-
ceptor e um sistema destinado a responder à estimu- 1. Veja Johannes von Uexküll, Theoretische Biologie (2." edição,
Berlim, 1938); Umwelt unâ lnnenwelt der Tiere 0909; 2." edição, Ber-
laçâo. Sem a cooperação e o equilíbrio destes sistemas 11m, 1921).
50 Ernst Cassirer Antropologia Filosófica 51

cutível. Inúmeros filósofos lançaram advertências cionalismo moderno, a definição do homem como
contra este pretenso progresso. "L'homme qui médi- animal rationale não perdeu sua força. A raciona-
te", diz Rousseau, "est un animal dépravé": não se lidade, com efeito, é uma característica inerente a
aprimora, mas se deteriora a natureza humana quan- todas as atividades humanas. A própria mitologia
do ultrapassa as fronteiras da vida orgânica. não é, pura e simplesmente, um conjunto vulgar
Entretanto,não existe remédio contra essa inver- de superstições ou de grosseiras ilusões. Não é pu-
são da ordem natural. O homem não pode fugir à ramente caótica, pois possui forma sistemática ou con-
própria consecução. Não pode deixar de adotar as ceitual. 1 Mas, por outro lado, fora impossível carac-
condições da própria vida. Já não vive num universo terizar como racional a estrutura do mito. A lingua-
puramente físico, mas num universo simbólico. A gem foi freqüentemente identificada com a razão, ou
linguagem, o mito, a arte e a religião são partes deste com a própria origem da razão. Mas é fácil ver que
universo. São os vários fios que tecem a rede simbó- esta concepção não consegue abarcar todo o campo.
lica, a teia emaranhada da experiência humana. Todo É uma pars pro toto; oferece-nos uma parte pelo todo.
o progresso humano no pensamento e na experiência Pois lado a lado com a linguagem conceitual há a lin-
aperfeiçoa e fortalece esta rede. Já não é dado ao ho- guagem emocional; lado a lado com a linguagem ló-
mem enfrentar imediatamente a realidade; não pode gica ou científica há a linguagem da imaginação poé-
vê-Ia, por assim dizer, face a face. A realidade física tica. Em primeiro lugar, a linguagem não expressa
parece retroceder proporcionalmente, à medida que pensamentos nem idéias, mas sentimentos e afeições.
avança a atividade simbólica do homem. Em lugar de E até uma religião "dentro dos limites da razão pura",
lidar com -as próprias coisas, o homem, em certo sen- como a concebeu e elaborou Kant, não é mais que
. tido, está constantemente conversando consigo mes- uma simples abstração. Transmite apenas a configu-
mo. Envolveu-se por tal maneira em formas lingüís- ração ideal, a sombra de uma genuína e concreta vida
ticas, em imagens artísticas, em símbolos míticos ou religiosa. Os grandes pensadores que definiram o ho-
em ritos religiosos, que não pode ver nem conhecer mem como um animal rationale não eram empiristas,
coisa alguma senão pela interposição desse meio ar- nem jamais tentaram oferecer uma explicação empíri-
tificial. Tanto na esfera teórica quanto na prática, a ca da natureza humana. Por meio desta definição, ex-
situação é a mesma. Nem mesmo nesta última vive o pressavam antes um imperativo moral fundamental.
homem num mundo de fatos indisputáveis, ou de . Razão é um termo muito pouco adequado para abran-
acordo com suas .necessidades e desejos imediatos. Vi- ger as formas da vida cultural do homem em t~da ~ua
ve antes no meio de emoções imaginárias, entre espe- riqueza e variedade. Mas todas estas formas sao SIm-
ranças e temores, ilusões e desilusões, em seus so- bólicas. Portanto, em lugar de definir o homem co-
nhos e fantasias. "O que perturba e alarma o ho- mo um animal raiumale, deveríamos defini-I o como
mem", diz Epicteto, "não são as coisas, são suas opi- um animal symbolicum. Deste modo, podemos desig-
niões e fantasias a respeito das coisas". nar sua diferença específica, e podemos compreender
Do ponto de vista a que acabamos de chegar, o novo caminho aberto ao homem: o da civilização.
podemos corrigir e ampliar a definição clássica do
1. Veja Cassirer, Die Begriffsform im mythischen Denken (Líp-
homem. A despeito de todos os esforços do irra- sia, 1921).

Você também pode gostar