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VIOLÊNCIA, MEMÓRIA E NOVAS GRAMÁTICAS DA

artigo/dossiê
RESISTÊNCIA: O DESASTRE DA SAMARCO NO RIO DOCE

VIOLENCE, MEMORY AND NEW FORMS OF RESISTANCE:


THE SAMARCO DISASTER IN THE RIO DOCE
Andréa Zhouri*

Essa casa aqui, eu era noivo, eu trabalhei uns dois anos fora daqui...cortava lenha lá de machado,
pra construir...tentar fazer minha casa. Aí eu consegui fazer minha casa e casei. Depois que eu
fiz a casa, casei, tive meus filhos todos aqui, 8 filhos...Aí veio a lama e destruiu todos os sonhos
que nós tinha aqui foi destruído […] (Getúlio, morador de Paracatu de Baixo, abril de 2017)

Depois que eu lutei tanto, meu Deus... Dei tantas enxadada, trabalhei tanto pra mim lutar pra fazer
minha casa. E aqui tudo era porcelanato, tá tudo atolado aí, oh! Nem acabei de pagar. Tô pagando
ainda, porque eu peguei um dinheiro emprestado pra mim comprar [...] Banheiro, esse lado aqui óh,
eu fiz recente. Telhado, tudo tinha feito novo. Aí eu casquei a casa toda e reboquei tudo, bem rebo-
cado. Cê vê que nem cair não caiu, né? (Consuelo, moradora de Paracatu de Baixo, abril de 2017)1

Introdução2 pela avalanche de rejeitos minerais libera-


dos pelo rompimento da barragem de Fun-
Caminhando pelos escombros de Para- dão, em Mariana, Minas Gerais,3 moradores
catu de Baixo - comunidade rural destruída juntam os cacos da memória e reconstroem

* Professora do Departamento de Sociologia e Antropologia da Universidade Federal de Minas Gerais –


UFMG – (Belo Horizonte/MG/Brasil). Doutora em Sociologia. E-mail: azhouri@gmail.com
1. Depoimentos coletados durante atividade de cartografia comunitária realizada com moradores de Para-
catu de Baixo em abril de 2017 no âmbito do projeto de pesquisa: O Desastre e a Política das Afetações:
compreensão e mobilização em um contexto de crise, realizado com apoio FAPEMIG/CAPES. Os nomes dos
moradores de Paracatu de Baixo são ficcionais, enquanto os nomes dos moradores de Bento Rodrigues
que aparecem na última parte deste texto são reais, tal como aparecem no vídeo intitulado Do desastre à
resistência: peregrinações em defesa do lugar. Disponível em https://www.youtube.com/watch?v=VeMK-
CDyprF4. Acesso em 27 de maio de 2018.
2. Agradeço ao Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) e à Fundação de
Amparo à Pesquisa do Estado de Minas Gerais (FAPEMIG) pelo apoio às pesquisas que fomentam esta
reflexão. A bolsa de Estágio Senior da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal em Nível Superior
(CAPES) possibilitou a elaboração do texto, incluindo a participação no Seminário Mining in comparative
perspective: trends, transformations and theories, Ghent, Belgium, 13-14 December 2017, entre outras
atividades realizadas na Universidade de Kassel e Universidade Livre de Berlim durante o ano de 2017.
3. Para outras análises sobre o desastre do Rio Doce, ocorrido em 5 de novembro de 2015, consultar textos
reunidos no dossiê Mining, Violence and Resistance, Vibrant, v.14. n. 2, 2017. Disponível em http://www.
vibrant.org.br/issues/lastest-issue-v-14-n-2-05-082017/, acesso em 27 de maio de 2018.

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por meio dela, de maneira vívida e precisa, Minha esposa trabalhava picado aí pros ou-
a espaço-temporalidade de suas casas, da tros, um dia pra um, um dia pra outro, andou
vila e, sobretudo, das relações sociais que trabalhando pra Renata por muito tempo ali,
permitem compreender as formas de orga- por dia. Trabalhava em outros lugar também
nização social e produtiva que teciam a vida aí. E nossa vida aqui na roça era assim, giran-
na localidade (Appadurai, 2004), incluindo do direto. Ela plantava milho, capinava milho,
nela o sítio camponês (WOORTMAN, 1983).4 rancava feijão, fazia de tudo, qualquer servi-
ço. E hoje, inclusive hoje, com a gente lá em
Aqui eu plantava o inhame chinês, milho, Mariana, ela não adapta em cidade. (Getúlio)
mandioca, feijão, alface, couve, cebolinha,
repolho, tomate das duas qualidades (grande A expressão “girando direto” é signifi-
e o pequeno), um pé de limão, pé de laranja cativa de um modo de vida tradicional que
cravo, mexerica cravo, um pé de uva, um inclui mulheres fazendo a horta e plantando
pé de jabuticaba, mexerica poncã e o tal de o alimento da “dispensa” (a comida certei-
pé de manga, eu acho que existe ainda. Eu ra, que provém dos cultivos no quintal), que
tinha a minha [horta], a Ana tinha a dela. Eu também é “girado” na troca com vizinhos
compartilhava com a Ana assim: talvez na e parentes em um sistema de reciprocidade
casa de Ana tinha acerola e eu não tinha, na próprio à vida camponesa. Homens - e mu-
casa de Vilma tem acerola e eu não tinha. Aí lheres muitas vezes - “giram” ainda na capina
eu plantava mandioca, na casa de Ana não da roça, no cuidado com animais, na cons-
tinha, Ana tinha aquele negócio, carambola trução de casas, cercas e outras benfeitorias,
e eu não tinha... (Inácia) trocando os dias de trabalho com vizinhos
ou vendendo o dia para os que podem pagá-
Ah, tudo aqui era vizinho, praticamente é
-lo. Assim, a violência do desastre solapou
família. [...] aqui tudo é de meu pai e minha
vidas e eliminou, de forma irreparável para
mãe. E aí nós foi casando e Getúlio meu ir-
muitos moradores, fatores preponderantes ao
mão ali, eu aqui. João meu cunhado ali, que
modelo de organização do trabalho agrícola:
hoje ele já morreu. Aí a Aurora e Vanda que
o aproveitamento das potencialidades eco-
é ali em cima, que é minha irmã. Lá, na-
lógicas locais e a complementariedade das
quele cantinho, são os primos, que mora lá
unidades produtivas que compunham essa
naquelas casas, último do canto lá. As casas
paisagem, também centrada nas relações de
quebradas era também. Zilda minha irmã na
parentesco, de gênero e de reciprocidade en-
frente ali, quase tudo família aqui. (João)
tre vizinhos (WOORTMAN e WOORTMAN,

4. Os depoimentos dos moradores nos informam sobre a lógica organizacional do sítio camponês no
distrito de Mariana, Minas Gerais, e nos permitem identifica-lo com o modelo analisado por Woortman
(1983) em suas pesquisas no estado de Sergipe. Segundo a autora, o sítio camponês se configura como um
sistema de espaços diversificados, complementares e articulados entre si. Esse sistema organizacional esta
informado por uma lógica, uma estratégica e um know how que possibilitam a reprodução da produção
camponesa e da vida na localidade. E é nesse sentido que se apresenta o horizonte das perdas retratado
pelos atingidos durante as oficinas realizadas em 2017.

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2004). O comprometimento das estratégias e povos tradicionais; deslocamento da po-
de vida (OLIVER-SMITH, 1993; BEBBING- lítica para a polícia, sinalizando as estra-
TON, 2011) entrelaça passado, presente e o tégias de criminalização de movimentos
futuro agora incerto das comunidades. sociais, lideranças, assessoria e até mesmo
A violência material, simbólica e epistêmi- pesquisadores por parte de grupos transna-
ca observada no território apresenta-se como cionais extrativos e do Estado; e, para fi-
um dos efeitos derrame da mineração (GU- nalizar, apresento algumas gramáticas da
DYNAS, 2016), os quais também se estendem resistência que, ao atualizarem elementos
espacial e temporalmente para fora da locali- da tradicionalidade, como as celebrações
dade e implicam em transformações políticas, próprias do catolicismo popular, colocam-
econômicas e institucionais em diferentes es- -se de forma autônoma e além dos modelos
calas. Neste sentido, a abordagem exige ob- convencionais e burocratizados de atuação
servar o princípio heurístico da variação de política sob disciplinamento do Estado e
escalas (REVEL, 2010) para o objetivo de se do mercado. Para fazer esta análise, trago
compreender e relacionar processos políticos aportes que acionam variação de escalas
e econômicos tramados fora da localidade, em que entrelaçam processos globais, nacionais
circuitos transnacionais e nacionais de poder e locais ao tempo em que registro elementos
(WOLF, 2003) que, por sua vez indigenizados, etnográficos em ocorrência nos territórios.
retornam à localidade reproduzindo violências
históricas em novos e inusitados formatos. Economia global, desregulação e novas
Por certo, o tema da violência no Brasil é zonas de sacrifício
recorrente na historiografia e na sociologia
sobre o país desde o período colonial e está Uma onda extrativa em larga escala
presente na vida cotidiana dos brasileiros do marca a primeira década do novo milênio
campo e da cidade, com evidente compo- no Brasil, estando associada a um processo
nente racial, conforme relatório do Institu- mais amplo de re-primarização da economia
to de Pesquisa Econômica Aplicada - IPEA que envolveu indistintamente governos con-
(CERQUEIRA, 2017). Desnaturalizar a vio- servadores e os ditos progressistas na Amé-
lência é entender as formas atuais por meio rica Latina. Esse ‘consenso das commodities’
das quais ela se apresenta e se intensifica, (SVAMPA, 2013) que ocorre no âmbito de
tarefa que desafia constantemente a com- um modelo econômico neoextrativista (GU-
preensão sobre o Brasil e a luta pela cons- DYNAS, 2016) reforçou a posição subordi-
trução de uma sociedade mais justa, digna nada dos países latinoamericanos na econo-
e diversa. Sem a pretensão de ser exaustiva, mia global. A partir dos anos 2000, empre-
nos limites deste texto pretendo refletir, a sas mineradoras, principalmente as de ferro,
partir do desastre do Rio Doce, algumas for- intensificaram suas operações com vistas
mas de produção da violência em torno de a aumentar a escala de produção, simulta-
práticas institucionais e políticas que fazem neamente reduzindo os custos fixos. Novas
o neoextrativismo possível (ARAÓZ, 2013). ‘zonas de sacrifício’ foram abertas nesse pro-
Desta forma, aponto para desdobramentos cesso, quer dizer, novas fronteiras econômi-
tais como: revisão das leis e desmanche das cas em torno da mineração vem avançando
instituições de proteção ambiental e cuida- ferozmente sobre os territórios dos povos in-
do com os direitos indígenas, quilombolas dígenas e das comunidades tradicionais.

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Nesse processo, as mineradoras contam inteiras, como revela o desastre ocorrido no
com o suporte do Estado em suas diferentes Vale do Rio Doce.
instâncias - executivo, legislativo e judiciá- Em novembro de 2015, o colapso da
rio - o que nos permite perceber o escopo barragem de rejeitos da empresa Samarco,
dos ‘efeitos derrame’ da mineração para uma joint venture de duas gigantes da mi-
além das consequências sociais e ambien- neração internacional, Vale e BHP Billiton,
tais. A governança socioambiental erigida promoveu o maior desastre da mineração
entre os anos 1980 e 1990, por exemplo, (em volume de rejeitos) da América Latina.
sofre processo gradual de erosão. Esta ten- Foram dezenove mortes imediatas e milha-
dência se acelera a partir de 2011, quando res de pessoas deslocadas, que enfrentam
se inicia uma queda na demanda interma- a perda de suas casas, terra, plantações e
cional por minério.5 Entre os efeitos estão a criações. Os desalojados foram obrigados
queda na arrecadação dos municípios, nas a viver temporariamente em casas aluga-
taxas teoricamente pagas a título de com- das na cidade, enredados em negociações
pensação aos danos ambientais, aumento diárias e até hoje inconclusas, submetidos
das ameaças de desastres e de acidentes de a uma espera angustiante pelo reassenta-
trabalho, falhas no monitoramento e no mento e incertezas sobre o futuro (ZHOURI
controle ambiental dos projetos. As estra- et al., 2017; LOSEKANN, 2017). De súbito,
tégias das corporações e do Estado insistem dezenas de cidades se viram com problemas
na monopolização e na privatização dos de abastecimento de água, enquanto a lama
ambientes comuns, principalmente os terri- mineral se extendia por 600 km até o ocea-
tórios dos povos indígenas, das comunida- no Atlântico. Os efeitos são continuados e
des tradicionais e do campesinato de forma se multiplicam, enquanto as falhas no pro-
geral, algo que configura enorme pressão cesso de licenciamento ambiental, no mo-
sobre florestas, terras, solos, rios e subso- nitoramento e na fiscalização da barragem
lo (ZHOURI; BOLADOS; CASTRO, 2016). são conhecidas, conforme aprofundam as
O avanço sobre as terras tradicionalmente reflexões de Santos e Milanez (2017).
ocupadas tem provocado conflitos, inclusi-
ve com a destruição de comunidades rurais

5. Entre 2011 e 2014, o volume de exportação mineral do Brasil caiu de US$ 44.2 bilhões para US$
28.4 bilhões (International Trade Center 2016). Considerando minério de ferro, cobre e alumínio, os três
principais minerais de exportação do país, os preços por tonelada tiveram declínio de 41%, 20% e 20%,
respectivamente (World Bank 2016).

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Figura 1 - Trajeto dos rejeitos da Barragem de Fundão desde o município de Mariana, estado de Minas Gerais,
até a sua foz no Oceano Atlântico, no estado do Espírito Santo. Elaborado por Max Vasconcelos, 2017.

De forma significativa, importa lembrar Em agosto de 2017, com a intenção de


que logo após a ruptura da barragem, parla- dar início à exploração mineral em uma
mentares da Assembléia Legislativa de Mi- área entre os estados do Pará e do Ama-
nas Gerais (ALMG) não hesitaram em apro- pá, o governo federal publicou um decreto
var um decreto que flexibiliza o licencia- para a extinção da Reserva Nacional de Co-
mento ambiental para torná-lo mais célere bre e seus Associados (RENCA). Trata-se de
na aprovação de licenças para a mineração. uma área de 46.000 km2, criada em 1984,
Processo semelhante ocorreu no Senado e que abriga em seu interior um total de
Federal, em que uma proposta de Ementa nove áreas protegidas: duas Terras Indíge-
Constitucional, introduzida anteriormente, nas e sete Unidades de Conservação, sendo
em 2012, foi aprovada no início de 2016. três de proteção integral e quatro de uso
Na prática, essas manobras representam o sustentável. Alguns meses antes, uma por-
desmantelamento do sistema de normas taria do Ministério de Minas e Energia,6
que obriga a avaliação de impacto ambien- procurou regulamentar as outorgas e os
tal para o licenciamento das grandes obras títulos minerais vigentes naquela área.7 Es-
(ZHOURI et al., 2017; ACSELRAD, 2017). sas iniciativas fazem parte de um contexto

6. MME No. 128, de 30 de março de 2017.


7. Na ocasião, o diretor-geral do Departamento Nacional de Pesquisa Mineral (DNPM) informou a impren-
sa sobre o aumento significativo de requerimentos para concessão de títulos minerais na Reserva, desde a
sua criação, sinalizando o “interesse do Mercado nessas áreas” (http://www.valor.com.br/brasil/4934205/
apos-30-anos-extracao-de-ouro-pode-voltar-amazonia). Acesso em 11/04/2017.

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mais amplo para reaquecimento do setor da mineração no poder ao incremento da
minero-extrativo, que contam ainda com o violência no campo e nas florestas. Em uma
lançamento do Programa de Revitalização de suas primeiras manifestações públicas
Mineral Brasileira em julho de 2017 e três após nomeação, o ministro da justiça, par-
Medidas Provisórias (MPs 789, 790 e 791) lamentar da bancada ruralista no congresso
que versam sobre a criação da Agência Na- nacional, declarou: “Vamos parar com essa
cional de Mineração - ANM, a modificação discussão sobre terra para índios. Terra não
do Código de Mineração e a revisão da le- enche barriga de ninguém...O que importa
gislação que trata da Compensação Finan- é lhes dar boas condições de vida” (Osmar
ceira pela Exploração de Recursos Minerais Serraglio. Folha, 10 de março de 2017).
– CFEM.8 Sua passagem pelo ministério da justiça
A flexibilização das normas e o retro- do governo pós-impeachment foi curta,
cesso institucional colocam em questão a mas o suficiente para que em três meses o
própria noção de democracia e configuram país assistisse a retrocessos no que tange
um dos efeitos derrame da mineração. A a observação dos direitos constitucionais
desregulação socioambiental em curso tem indígenas. Como congressista, o ministro
sido acompanhada por variadas formas de havia sido o relator da Proposta de Ementa
violência, as quais caminham lado a lado Constitucional (PEC 215) que objetiva mu-
com processos que visam a despolitização e dar as normas de demarcação das terras in-
a criminalização de atingidos, movimentos dígenas, transferindo o poder do executivo
e grupos engajados na resistência à mine- para o legislativo nesta matéria, entre ou-
ração, além de pesquisadores críticos. tras estratégias que propiciem a atividade
minerária em terras indígenas.
Da política para a polícia: violência Nesse mesmo período, o presidente da
institucionalizada e criminalização bancada ruralista no congresso (Nilson Lei-
tão, do PSDB-MT), levou adiante a Comissão
O processo de desregulação ambiental, Parlamentar de Inquérito (CPI) da Fundação
que já vinha ocorrendo gradualmente des- Nacional do Índio (FUNAI) e do Instituto
de o início dos anos 2000, encontrou seu Brasileiro de Colonização e Reforma Agrá-
ápice no governo Michel Temer, que assu- ria (INCRA). Esta CPI acabou por indiciar
me o poder em 2016, após o polêmico pro- uma centena de pessoas, incluindo dezenas
cesso de impeachment da presidente eleita de antropólogos, procuradores, agentes go-
Dilma Roussef. A título de ilustração, al- vernamentais e ONGs, por alegada fraude
guns fatos ocorridos no primeiro semestre nas demarcações de terras indígenas.
de 2017 permitem associar a força política As investidas governamentais e par-
da aliança entre setores do agronegócio e lamentares contra os direitos indígenas e

8. Vide carta de repúdio assinada pela Associação Brasileira de Antropologia e outras 22 associações
científicas enviadas à Presidência da República em http://www.portal.abant.org.br/index.php/2-uncate-
gorised/1222-carta-de-repudio-a-extincao-da-renca, acesso em 29/09/2017.

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quilombolas não apenas fomentam a crimi- pelas costas e tiveram suas mãos decepadas.
nalização de movimentos sociais, lideranças No mês seguinte, em vinte e quatro de maio,
comunitárias, ONGs e pesquisadores envol- houve o massacre de Pau D’Arco, no Pará,
vidos com as temáticas agrárias e indígenas quando dez camponeses foram brutalmente
no Brasil, mas abrem espaço para a esca- assassinados.
lada de violência nos territórios. O número Um outro relatório, publicado pela Glo-
de assassinatos de camponeses e indígenas bal Witness (2017), documentou 200 assas-
em 2017 registrou aumento vertiginoso. De sinatos de defensores ambientais e agrários
acordo com o relatório anual sobre confli- em 24 países no ano de 2016, com desta-
tos no campo da Comissão Pastoral da Terra que para aqueles relacionados à mineração.
(CEDOC – Dom Thomás Balduíno, CPT 2018), Mais de 60% desses assassinatos ocorreram
71 pessoas foram assassinadas em conflitos na América Latina, sendo que o Brasil li-
no campo em 2017, um aumento em relação dera em número absoluto de mortes. Em
a 2015 e 2016, anos em que tiveram ocor- nível nacional, o relatório publicado pela
rência de 50 e 61 casos, respectivamente. Os Comissão Pastoral da Terra (CPT), Confli-
atentados cresceram de 74 para 120 ocor- tos no Campo 2016, mostra que 43,6% dos
rências e as ameaças de morte tiveram um 172 casos de conflito por água no Brasil
aumento de 200 casos em 2016 para 226.9 durante 2016 ocorreram nos estados de Mi-
O lado mais terrivel desses assssinatos são nas Gerais e Espírito Santo. Mais de 50% do
os masacres: cinco no total, com 31 vítimas. total estão relacionados aos conflitos en-
Vale mencionar três casos sequenciais ocor- volvendo projetos de mineração, seguidos
ridos nos primeiros cinco meses do ano: em de 23,26% relativos a barragens hidroelé-
dezenove de abril, dez camponeses, incluin- tricas (CPT, 2017, p. 129-130). Em Minas
do crianças, foram assassinados e tortura- Gerais, onze lideranças comunitárias de
dos no distrito rural de Colniza, noroeste de diferentes regiões do estado, consideradas
Mato Grosso. Poucos dias depois, em trinta representantes de atingidos por projetos de
de abril, um grupo de fazendeiros armados mineração, estão inseridos no Programa de
com rifles e machetes atacou um assenta- Proteção aos Defensores de Direitos Hu-
mento de cerca de quatrocentas famílias do manos.10 No âmbito do complexo minerá-
povo Gamela, no estado do Maranhão. O rio Minas-Rio, de propriedade da empresa
Conselho Indigenista Missionário (CIMI) re- Anglo American, o expediente do interdito
portou então o ferimento de vinte indígenas, proibitório tem sido utilizado pela empresa
incluindo crianças. Muitos foram atirados para silenciar as vozes de dissenso, ou as

9. Para detalhes, consultar, CEDOC Dom Tomás Balduino – CPT, 2018 in www.cptnacional.org.br .
10. Vide reportagem em O Tempo, 10 de julho de 2017, disponível em http://www.otempo.com.br/
capa/economia/conflitos-de-minera%C3%A7%C3%A3o-levam-11-a-programas-de-prote%C3%A7%-
C3%A3o-1.1495202. Acesso em 31 de julho de 2017. Para uma análise sobre a criminalização de atingidos
no projeto Minas-Rio, da empresa Anglo American e o adoecimento dos moradores atingidos a jusante da
barragem de rejeitos, consultar Prates (2017).

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que simplesmente protestam pelos seus di- Indigenização da governança ambiental -
reitos violados (PRATES, 2017).11 breve recapitulação
Ainda na primeira metade de 2017, uma
carta aberta assinada por dezenas de orga- Seja a propósito do projeto de mine-
nizações e pesquisadores denunciaram a ração Minas-Rio, seja no caso do desastre
administração Temer por retrocessos sem do Rio Doce, já tivemos a oportunidade de
precedentes do sistema de proteção do meio argumentar sobre modalidades distintas de
ambiente, povos indígenas e trabalhadores violência impostas por tecnologias de reso-
rurais. Além das medidas legislativas que lução de conflitos ambientais empregadas
pretendem retirar os direitos dos indígenas por empresas e pelo Estado (ZHOURI, 2014
às terras onde tradicionalmente vivem, e e ZHOURI et al., 2017, respectivamente). As
que são reconhecidos pela Constituição do pesquisas mostram que as mesmas tecnolo-
Brasil e por acordos internacionais assina- gias de resolução de conflitos utilizadas no
dos pelo país, como a Convenção 169 da licenciamento ambiental de grandes obras
OIT, o ataque incluiu também um corte de tem sido equivocadamente mobilizadas
55% no orçamento da FUNAI e a nomeação para o caso do desastre do Rio Doce. Tais
de um general para presidir o órgão.12 tecnologias revelam um panorama que en-
As mudanças institucionais e normati- volve a articulação/aliança entre corpora-
vas desautorizam a interpretação da vio- ções financeiras, operações extrativas que
lência como decorrente de meras falhas congregam capital intensivo, intensivos/
institucionais e/ou da governança. Ao con- extensivos recursos naturais, velhas elites
trário, elas demandam análises que reflitam fundiárias, assim como o moderno agrone-
sobre o papel do Estado na promoção das gócio. Não é demais lembrar que esta foi a
variadas formas de violência, incluindo até mesma aliança que sustentou os governos
mesmo aquelas geradas pela produção de anteriores, ditos progressistas, pavimentan-
tecnologias de gestão de conflitos ambien- do o caminho para o contexto crônico que
tais forjadas no âmbito de espaços globali- se agrava atualmente.
zados de poder. De fato, na última década, um conjunto
de normas e leis vem sendo revistas no Bra-

11. Para a continuidade desse panorama em 2018, ver “Death threats against critics of Anglo American’s
Minas-Rio project in Brazil”, publicado pela London Mining Network em 7 de maio de 2018. Disponível
em http://londonminingnetwork.org/2018/05/death-threats-against-critics-of-anglo-americans-minas-
-rio-project-in-brazil/, consultado em 27 de maio de 2018.
12. Funcionários do ICMBio escrevem sobre exoneração de servidores técnicos de carreira e a efetivação
de interventores políticos e empresariais em unidades regionais do órgão encarregado do cuidado com as
unidades de conservação e os programas de proteção das espécies da fauna e da flora brasileiras. Blog de
Rogério Rocco, disponível em http://rogeriorocco.blogspot.de/2017/10/nomeacoes-de-interventores-poli-
ticos-e.html?m=1. Acesso em 18 de outubro de 2017.

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sil, a exemplo do código florestal, código seus direitos, ficam a reboque do interesse
das águas e o código da mineração. As ten- na implementação e operação dos projetos.
tativas de rever a constituição de 1988 não Um dos principais e mais polêmicos as-
são recentes, sobretudo no que concerne a pectos do licenciamento ambiental refere-
demarcação de terras indígenas. O mesmo -se ao dimensionamento da área ou do uni-
pode ser dito do sistema de regulação am- verso atingido. Em geral, na perspectiva do
biental. Tampouco é recente o processo de licenciamento, prevalece o ponto de vista
criminalização do dissenso, especialmnen- do empreendimento, a despeito das condi-
te da crítica à implementação dos grandes ções e processos socioecológicos existentes
empreendimentos (ZHOURI; e OLIVEIRA, nos lugares. Neste sentido, a área atingida
2007; GIFFONI, 2012). é sempre aquela coincidente com as estru-
Ao longo dos anos, na verdade, o sis- turas dos projetos, ou seja, o reservatório,
tema ambiental foi se tornando cada vez no caso das hidrelétricas, as minas e bar-
mais permissivo aos projetos degradado- ragens de rejeitos, no caso da mineração,
res do meio ambiente (CARNEIRO, 2005), entre outras estruturas necessárias às obras
apesar de formalmente aderirem a certos em ambos os casos (casa de força, canteiro
princípios do pacote da governança am- de obras, pilhas de estéril etc.).
biental internacional (relatórios técnicos, A mesma lógica rege os procedimentos,
audiências públicas, conselhos participa- em negociação, para identificação dos atin-
tivos). As medidas mitigadoras e de com- gidos no contexto do desastre do Rio Doce.
pensação ambiental foram paulatinamente A definição do universo dos atingidos tem
substituindo análises de viabilidade am- circunscrito esses últimos às localidades/
biental dos empreendimentos, permitindo propriedades que coincidem com o percur-
a execução de projetos por meio de suas so/perímetro da lama, ou seja, a calha da
legalizações através de continuadas condi- lama, e não à vida organizada socialmen-
cionalidades (ZHOURI, 2014). A hidrelétrica te nos lugares. Assim, definições sobre si-
de Belo Monte na Amazônia é o exemplo tuações envolvendo deslocamento físico e
paradigmático: licenças ambientais foram deslocamento econômico, por exemplo, a
concedidas com centenas de condicionan- partir de diretrizes do Banco Mundial (IFC
tes até hoje não cumpridas na sua integrali- 2012), funcionam como procedimentos de
dade. O mesmo pode ser dito sobre o mega- inclusão/exclusão para adequação finan-
-mineroduto da empresa Anglo American, ceira das reparações aos interesses das em-
que liga Minas Gerais ao Rio de Janeiro.13 presas envolvidas (ZHOURI et al., 2017). A
As análises da realidade socioambiental miopia estratégica das empresas e do Estado
dos grupos atingidos e, por conseguinte, os (Scott 1998) torna as comunidades enquan-

13. O Minas-Rio é um complexo minerário que inclui a exploração de minério de ferro a céu aberto em
Minas Gerais, um sistema de transporte via ductos (mineroduto) que percorrem 529 Km de extensão, cor-
tando 33 municípios, e um porto no litoral do Rio de Janeiro (ver ZHOURI, 2014 e SANTOS et al., 2017)

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to tais – suas formas de organização social ca. No entanto, o dissenso e as diversas for-
e produtiva - invisíveis. A padronização mas de manifestação política se manifestam
do tecido social surge como mecanismo de em cenários de conflitos, contrariando a
gestão dos custos e controle dos sujeitos e ideologia da harmonia que subjaz na con-
dos seus territórios (SCOTT, 1998). cepção de desenvolvimento sustentável.
A violência simbólica que determina in- Povos indígenas, pescadores, campone-
clusões e exclusões, se manifesta pelo fe- ses, quilombolas entre outros se mobilizam
tichismo dos números cadastrais (ZHOURI para contestar o ataque aos seus territó-
et al., 2017) e categorias administrativas rios. As experiências críticas revelam que
como impacto e externalidade ambiental, os múltiplos processos das violências das
as quais elidem de fato aquilo que na rea- afetações promovidas pelos agentes da
lidade se apresenta: a expropriação e con- mineração em larga escala fazem emergir
sequente aniquilação de um modo de vida. contextos de lutas e de resistência que en-
Essa violência simbólica e material esta ali- trecruzam distintas trajetórias de ativistas,
nhada à violência institucional que muda grupos atingidos, militantes e pesquisado-
as normas e marcos regulatórios, que esta- res (RIGOTTO, 2017; ZHOURI; GENEROSO;
belece a política de deslocamentos forçados CORUJO, 2016), assim como inusitadas
em que ocorrem a violação de direitos hu- formas de manifestação política, como as
manos, notadamente, o direito à informa- peregrinações de retorno às comunidades
ção, o direito à água potável, ao ir e vir, à destruídas organizadas por grupos de atin-
alimentação, entre outros (PRATES, 2017). gidos pelo desastre do Rio Doce.
Outro pilar da governança ambiental
global presente no licenciamento ambiental Reconstruindo subjetividades:
é erigido sob a premissa da participação, peregrinações em defesa do lugar
cuja indigenização no Brasil e em Minas
Gerais possibilita traçar caminhos que le- Desde o rompimento da barragem, os
vam da aceitação ao silenciamento. Quando moradores de Bento Rodrigues, distrito ru-
o paradigma do desenvolvimento sustentá- ral imediatamente destruído pela lama da
vel aterriza no Brasil nos idos de 1980, o Samarco - maneira como os atingidos se
requisito da participação logo dialogou po- referem ao desastre - foram levados para
sitivamente com os anseios por democracia a cidade de Mariana e, após breve abrigo
no país. Contudo, a prática ao longo dos no ginásio de esportes, foram alojados em
anos foi reproduzindo circuitos de poder diferentes hotéis da cidade. Na sequência,
característicos da sociedade, onde apenas casas foram alugadas de forma a acomodar
certos grupos e sujeitos sociais se habilitam as famílias temporariamente. Os moradores,
às formas de participação desenhadas glo- dispersos pela cidade, nunca deixaram de
balmente. A participação em espaços buro- visitar a vila destruída, a despeito das inter-
cratizados, onde as pessoas dominam um dições colocadas, em distintos momentos,
certo léxico, uma certa gramática política, pela defesa civil, o judiciário e a própria
administrativa e até mesmo técnica, cele- empresa, que viria a construir um dique no
bra o discurso competente (CHAUÍ, 2008 terreno, para indignação dos moradores.
[1983]) enquanto desqualifica, silencia e A cada visita, as lembranças sofridas do
exclui outras maneiras de expressão políti- ocorrido se mesclavam aos relatos emocio-

60 Repocs, v.16, n.32, ago./dez. 2019


nados sobre a vida na comunidade, as des- formas mais coletivas e ritualizadas, como
crições pormenorizadas das casas, quintais, na celebração das festas religiosas que
bens, relações sociais e sonhos perdidos. sempre reuniam a comunidade em datas
Narrar e chorar a perda era ritual impor- fixadas pelo calendário religioso católico.
tante frente à experiência traumática que Uma das primeiras celebrações foi a fes-
os colocava em uma situação de vulne- ta de Nossa Senhora das Mercês, realizada
rabilidade. Era como se o ato de contar o nos dias 24 e 25 de setembro de 2016, por
drama, pessoal e da coletividade, ajudas- iniciativa de um grupo denominado ‘Lou-
se a elaborar emocionalmente as perdas e cos por Bento’. Os moradores fizeram um
resgatar subjetividades soterradas: “Em três cortejo pelas ‘ruas’ abertas entre os des-
minutos eu perdi 43 anos da minha vida”, troços da comunidade, rumo à igreja que
repetia seu Zé Barbosa em uma das primei- sobreviveu à lama por localizar-se numa
ras visitas de retorno, enquanto seus olhos parte mais alta da vila. À frente, os festei-
vagavam pelo terreno, como a identificar ros carregavam a bandeira, seguidos pelo
os traços da sua história entre os vestígios pároco e seus assistentes, moradores e a
do seu lugar de pertença. Aos poucos, as banda de música.
peregrinações individuais foram assumindo

Procissão de Nossa Senhora das Mercês, em 24 de Setembro de 2016, Bento Rodrigues


Fonte: GESTA-UFMG

Violência, memória e novas gramáticas da resistência: o desastre da Samarco no Rio Doce 61


Procissão de Nossa Senhora das Mercês, em 24 de Setembro de 2016, Bento Rodrigues
Fonte: GESTA-UFMG

Na igreja, após a missa, houve hastea- ma que meu pai, o senhor Neto, Manoel
mento do mastro e da bandeira, queima Muniz, fez... Eu era 6 pra 7 anos, então eu
de fogos e oferta de lanche aos presentes. lembro muito, porque a maneira de che-
Tudo muito rápido nesta parte, uma vez gar água aqui pra construção, eu achava o
que havia ameaça de chuvas e os agentes máximo, era de charrete, era com cavalo.
das empresas monitoravam de perto a mo- Então eu e meus irmãos e outras pessoas
vimentação, lembrando aos presentes que né... isso é o máximo e traz muita lem-
havia horário determinado em juízo para brança. E mesmo que a Samarco vem fa-
a permanência no lugar. Em depoimento lando em fazer o [dique] S4, isso é uma...a
para um pequeno filme que registraria a gente não pode deixar gente, porque vai
festa,14 o morador Marcos comenta: acabar nossas memórias aqui, entendeu!?
Mesmo do jeito que tá aí, nós temos que
Uma das grandes recordações, nessa igreja continuar vindo pra cá, que seja chorar.
de Nossa Senhora da Mercês é uma refor-

14. Filme Do desastre à resistência: peregrinações em defesa do lugar. Disponível em https://www.youtu-


be.com/watch?v=VeMKCDyprF4&t=53s. Acessado em 18 de outubro de 2017.

62 Repocs, v.16, n.32, ago./dez. 2019


No jogo entre o lembrar e o esquecer Aí, depois disso, ia pra praça e tinha o som
(POLLACK, 1989), a memória aciona identi- na praça até de madrugada.
dades, oferece substrato às subjetividades, in- Até de manhã cedo. A gente deitava um pou-
dividuais e coletivas, reafirmando o lugar do quinho, cochilava, tinha a alvorada com fogos
sujeito no mundo, ao tempo em que permite e sinos, depois da alvorada a gente levantava
organizar novas narrativas, sensibilidades e e ia limpar a praça, varrer a praça. Aí depois
sentidos, como a indignação frente às pre- tinha a retreta 3 horas, depois a procissão e a
tensões da empresa em relação à construção missa, encerrando com a benção do Santíssi-
de um novo dique no terreno da comunidade. mo, isso era no domingo (Maria das Graças,
No retorno à cidade, uma carreata de moradora de Bento Rodrigues).
moradores parou na estrada, em um ponto
onde há uma nascente d’água muito apre- A memória das festas, organizadas pelos
ciada. De forma animada, eles festejavam próprios moradores, resgata o sentido da au-
o sucesso das celebrações e recordaram a tonomia perdida frente a um presente estra-
forma como a festa acontecia no passado. nho e sob domínio alheio. Neste sentido, a
realização das festas religiosas no contexto
A Nossa Senhora das Mercês antes, no sába- atual passou a compor uma espécie de gra-
do, tinha a procissão da bandeira saindo da mática política em meio às lembranças do
casa de um festeiro, mas era a noite. Sete ho- passado compartilhado, cuja projeção desde
ras a gente saia pra procissão, subia, ia pras o presente, permite vislumbrar rumos para
Mercês, chegava lá tinha a missa... o hastea- um futuro. Elas representam um momento
mento da bandeira. Quando a gente descia, de communitas (TURNER, 1991) em meio a
a gente não podia descer direto não, porque um cotidiano agora dominado pela incerteza
Seu Raimundo tava na porta e era aniversá- e pela espera, uma rotina burocratizada de
rio dele. Assim, a gente passava lá no Seu reuniões e assembléias sob o disciplinamen-
Raimundo, jantava, comia sobremesa. A to do Estado e das empresas (ZHOURI; OLI-
banda parava e tocava... homenageava ele. VEIRA; ZUCARELLI; VASCONCELOS, 2017).

Reunião sobre reconstrução de Bento Rodrigues, 10 de março de 2016.


Fonte: Marcos Zucarelli. GESTA/UFMG

Violência, memória e novas gramáticas da resistência: o desastre da Samarco no Rio Doce 63


Ao lembrarem de como haviam realiza- era a igreja de São Bento. Mas a gente de-
do a festa de São Bento na cidade de Maria- sabafou, ali é da gente, ali é nosso, ali que
na, após o rompimento da barragem, Maria é nosso.
das Graças e Mônica explicam:
O reconhecimento do lugar “da gente” é
- Aí a gente fez a de São Bento lá em Maria- também o encontro consigo e com a sua his-
na, mas não foi... tória. Outra moradora, Silmaria, reflete so-
- Não, não foi... bre as diferenças entre aquele dia para este:
- eu chorei o tempo todo, porque não foi...
Foi no dia de São Bento certinho, tudo bem, A diferença desse dia pra hoje é porque hoje
mas foi numa capela que não era a nossa, as a gente entrou de cabeça erguida, com au-
imagens doadas pelos irmãos de São Paulo torização. E assim, nós entramos, entramos
que doaram pra gente, mas fizemos procis- no nosso lugar, com o nosso direito de volta.
são numas ruas que não eram a nossa. Todo Hoje foi a nossa libertação mesmo. Aquele
mundo olhando a gente com umas caras... dia nós entramos escondido... entramos com
né!? medo, com medo de vir alguém, de impedir,
Porque a gente invadiu as ruas de Mariana e de fazer alguma coisa. Hoje nós entramos no
fizemos tudo numa coisa que não era nossa. nosso lugar, com autorização.
Hoje nós celebramos pra mostrar pra eles
O sentimento de estar deslocado, fora do que nós não vamos parar, que lá tem dono,
seu lugar, assim como os indícios do pre- que nós vamos brigar. Nós vamo brigar
conceito sofrido na cidade sublinham o es- até o fim pra não virar uma barragem
forço para realização da festa no lugar onde de rejeito.
se tem o sentimento de pertença, além de
indicarem outros elementos de resistência, A condição de liminaridade se revela
reforçados pela narrativa sobre obstáculos ainda na experiência paradoxal que mescla
que teriam sido colocados pela empresa às autonomia e tutela: “o lugar é nosso, mas
iniciativas dos moradores: estou e não estou autorizada a nele entrar”.
É preciso lembrar que naquele contexto, lu-
Aí no dia 30 o Mauro [morador] falou assim: tava-se para que o dique S4, pleiteado pela
Eu vou soltar uns foguetes lá no Bento. Nós empresa Samarco, não fosse construído na
falamos: você não vai sem a gente, ai fomos área do que restou da comunidade. Entre-
todo mundo. tanto, após embates envolvendo os atingi-
Lá no Bento foi a nossa Festa. Nós chegamos dos, o ministério público e o judiciário, o
lá umas 4 horas mais ou menos, governo de Minas Gerais acabou por auto-
eles puseram um monte de pedras pra gen- rizar a construção do dique, que alagou os
te não passar. Levamos pessoas de 80, 80 e terrenos dos moradores e áreas tombadas
tantos anos. Aí quando foi quase seis horas pelo Patrimônio Histórico. Os moradores se
a gente, no pé da igreja ali não tem aquela sentiram derrotados, novamente usurpados
porteira? Ali tava fechado, não tinha como de suas terras, bens e lugar de pertença.
passar. Nós iniciamos a celebração ali, no Mas os rituais de peregrinação e de retor-
escuro já, acendemos vela, lanterna, aí des- no ao lugar continuam, como momentos de
cemos pela rua até chegar em frente onde communitas (TURNER, 1991) a reafirmar

64 Repocs, v.16, n.32, ago./dez. 2019


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Violência, memória e novas gramáticas da resistência: o desastre da Samarco no Rio Doce 67


RESUMO ABSTRACT
A partir do desastre da Samarco no Rio Based on the Samarco disaster, ongoing in
Doce, em curso desde 2015, o texto reflete the Rio Doce since 2015, the article reflects
sobre formas de produção da violência em about forms of violence production arou-
torno de práticas institucionais e políticas nd institutional and political practices that
que fazem o neoextrativismo possível no make neo-extractivism possible in Brazil.
Brasil. Desta forma, aponta para processos Thus, it points to processes such as the revi-
como: revisão das leis e desmanche das ins- sion of laws and the dismantling of environ-
tituições de proteção ambiental e cuidado mental protection institutions and agencies
com os direitos indígenas, quilombolas e responsible for policies related to indige-
povos tradicionais; deslocamento da políti- nous, quilombolas and traditional peoples
ca para a polícia, sinalizando as estratégias rights; the displacement of politics to the
de criminalização de movimentos sociais, police, signaling the strategies of crimina-
lideranças, mediadores e pesquisadores por lization of social movements, mediators
parte de grupos transnacionais extrativos e and researchers by transnational extracti-
do Estado. Por fim, apresenta novas gra- ve groups and the State. Finally, it presents
máticas da resistência que, no caso especí- new modalities of resistance that, in this
fico, ao atualizarem elementos da tradicio- ethnographic case, by updating elements of
nalidade, como as celebrações próprias do traditionality, such as the celebrations pro-
catolicismo popular, colocam-se de forma per to popular Catholicism, stand for auto-
autônoma em relação aos modelos conven- nomy in face of the conventional models
cionais e burocratizados de atuação política of political action under both market and
sob disciplinamento do Estado e do merca- State discipline. To make this analysis, the
do. Para fazer esta análise, o texto aciona o text triggers the heuristic principle of scale
princípio heurístico da variação de escalas variation that intertwines global, national
que entrelaça processos globais, nacionais and local processes in the reproduction of
e locais na reprodução de violências his- historical patterns of violence that, on the
tóricas que, por outro lado, fazem emergir other hand, give rise to new efforts of sub-
novos esforços de subjetivação nos territó- jectivation in the territories.
rios.
KEY-WORDS
PALAVRAS-CHAVES Disaster. Mining. Violence. Resistance. Rio
Desastre. Mineração. Violência. Resistên- Doce.
cia. Rio Doce

Recebido em: 18/06/2018


Aprovado em: 18/08/2018

68 Repocs, v.16, n.32, ago./dez. 2019

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