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RIKBAKTSA, OS CANOEIROS DO RIO JURUENA 99

Rikbaktsa, os canoeiros
do Rio Juruena

RINALDO S. V. ARRUDA

Habitantes imemoriais da bacia do rio Juruena, no norte do


estado de Mato Grosso, vivem em três terras indígenas na mes-
ma região: a Terra Indígena Rikbaktsa, a T. I. Japuíra e a T. I.
Escondido, num território de cerca de 320 mil hectares de mata
amazônica. São cerca de 1.100 pessoas distribuídas por mais de
30 aldeias localizadas ao longo dos rios Juruena, Sangue e Arinos,
que circundam seus territórios.
Sua autodenominação – Rikbaktsa – significa “os seres huma-
nos”. Rik é pessoa, ser humano; bak é um reforço de sentido e tsa
é o sufixo para a forma plural. Também são conhecidos regional-
mente por Canoeiros, por referência à sua habilidade no uso de
canoas ou, mais raramente, são chamados de “orelhas de pau”,
pelo uso de enormes botoques feitos de caixeta, introduzidos nos
lóbulos alargados das orelhas.
São falantes de uma língua isolada, do tronco lingüístico
macro-jê e sua sociedade divide-se em duas metades, a da arara
amarela e a da arara cabeçuda. Cada metade, por sua vez, é divi-
dida em vários clãs. O casamento entre membros da mesma me-
tade é considerado incestuoso.
Seu ciclo de subsistência acompanha os ritmos naturais. Ao
longo do ano desenvolvem inúmeras atividades ligadas à agri-
cultura, caça, pesca e coleta. Todas elas acompanhadas de rituais,

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através dos quais se organizam e se preparam para as tarefas


procurando estabelecer a sintonia com os ritmos cósmicos de seu
universo. Para eles, a música, as canções e os enfeites plumários
têm uma importância fundamental, expressando de forma sensí-
vel seu universo social e mítico, suas formas de sensibilidade
afetiva, estética e religiosa.
Sua renda monetária vem da venda de castanha e de peque-
nas quantidades de peixe, de óleo de copaíba, de borracha, às
vezes produtos agrícolas, sementes e mudas de árvores em
extinção, como mogno ou cerejeira e, também, do comércio de
sua arte plumária, uma das mais sofisticadas e belas dentre os
povos indígenas do Brasil.
São alegres, riem muito. As crianças são muito meigas, ami-
gas. Estóicos, aguentam esforço físico sem dar muita trela para
dor, doença e sofrimento. Alimentar a tristeza não vale a pena.
Não há um chefe geral. Cada aldeia tem seu chefe, o qual, na
verdade, não manda muito. Os chefes de aldeia orientam no tra-
balho, nas festas e nos rituais, representando e interpretando a
vontade soberana da comunidade.
Boa parte do povo é alfabetizada, existindo escolas na maioria
das aldeias, dirigidas por professores Rikbaktsa. Atualmente,
vários desses professores fazem curso superior para se capacita-
rem a lecionar para turmas de segundo grau, atendendo a uma
demanda que é crescente nas aldeias.
A situação atual, entretanto, é problemática. Em muitos tre-
chos do rio Juruena, as enormes derrubadas nas margens dos
“civilizados” criaram uma paisagem desoladora, habitada ape-
nas por gado e por uma rarefeita população sujeitada pelo medo
e pela miséria.
A pressão e a sedução para que vendam madeira como for-
ma a resolver seus problemas aumentam na medida do crescen-
te esgotamento das espécies valorizadas na região circundante.
O adensamento da colonização pressiona os Rikbaktsa para
a adoção do modelo econômico regional, caracterizado pela subs-
tituição da floresta por monoculturas de soja e arroz, pela proli-
feração dos pastos, da mineração, da extração da madeira e dos
conflitos sociais provocados por uma estrutura agrária marcada
pela concentração fundiária.
Nessa região, assolada nas últimas décadas por um
desmatamento crescente, pela expansão do garimpo e pela colo-
nização mal planejada, os Rikbaktsa são um dos poucos povos

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indígenas da região a resistir à destruição de suas matas, negan-


do-se a qualquer associação mais estreita com o modelo de “de-
senvolvimento” que se abate sobre a Amazônia.
Por isso procuram persistentemente uma saída econômica
para as novas gerações no mundo de hoje: querem desenvolver o
que os brancos chamam de projetos econômicos auto-sustentá-
veis. Procuram financiamentos e ajuda técnica, antes que as pres-
sões para a venda de madeira ou para exploração de minério
abram frestas na sua resistência
Convivi com eles mais intensamente em meados da década
de 1980, fazendo pesquisa de campo. Mas, desde então, visitei-
os muitas vezes, quase todos os anos até hoje, algumas vezes só
para matar as saudades dos amigos, outras para trabalhar junto
com eles em algum projeto de seu interesse.
Aprendi muito sobre a vida Rikbaktsa e com eles aprendi
muito sobre a vida. Porém, apesar da longa convivência, sei que
não consegui nem chegar perto do imenso e diversificado conhe-
cimento teórico e prático que qualquer adulto Rikbaktsa tem so-
bre seu ambiente e nem da profundidade de suas reflexões sobre
a vida social.
O velho Tapema, hoje falecido, contou-me que antes todos
falavam a mesma língua e viviam em festa constante, os
Rikbaktsa, os outros povos indígenas, os americanos, alemães,
todos os brancos e também os negros. Um dia, um grupo se atra-
sou para uma dessas festas e quando chegou já não havia comida
e bebida. Um homem irritou-se e acabou havendo uma briga
mortal entre este e um outro, provocando o medo e a dispersão
de todos. Desde então, diz ele, os povos se separaram, desenvol-
veram línguas e costumes diferentes, competem e guerreiam en-
tre si. Pensou um pouco e concluiu: – “Pois é, hoje parece que
todos estão ficando juntos novamente: os povos indígenas já não
brigam mais entre si, estamos todos nos misturando de novo,
só não pode faltar comida e bebida para ninguém, como da
outra vez”.
Fotografei-os bastante, procurando captar fragmentos signi-
ficativos de suas vidas, de suas maneiras de expressar-se e, prin-
cipalmente, sua capacidade de procurar a alegria de viver na con-
vivência com os outros, na imersão na atmosfera do rio Juruena e
nas suas florestas tão cheias de vida, prazeres e perigos. Espero
que as fotos escolhidas, principalmente de mulheres e crianças,
consigam transmitir um pouco dessa atmosfera e nos inspirem a

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repensar nossa persistente atitude, de autoridade civilizatória,


ante o mundo e seus desafios.

Recebido em 22/4/2002
Aprovado em 25/4/2002

Rinaldo S. V. Arruda, professor do Departamento de Antropologia da PUC-SP.


E-mail: rinaldo@pucsp.br .

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