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RESENHA

ISSN 2526-5466

HOMENS DO MAR: o jangadeiro e a pesca no Brasil

doi: 10.33501/revetos.2017.010

CASCUDO, Luís da Câmara. Jangada: uma pesquisa etnográfica. 2. ed. São Paulo: Global, 2002,
170p.

Eduardo Beltrão de Lucena Córdula1

1
Dourando e Mestre em Desenvolvimento e Meio Ambiente – UFPB; Licenciatura em Biologia – UFPB; Prefeitura
Municipal de Cabedelo-PB; ecordula@hotmail.com

Luís da Câmara Cascudo, historiador, antropólogo, advogado e jornalista, nas em Natal-RN


em 1898 e faleceu em 1986, na mesma cidade. Durante sua vida profissional, vivenciou a cultura e
os povos praieiros, consagrando seus estudos nesta obra, com primeira edição em 1959, e 43 anos,
em sua homenagem, é lançada esta segunda edição.
A obra está divindade em 11 partes, que compreendem: O Jangadeiro; O Nome da Jangada,
Presença no Brasil; Modificações: a vela, a bolina e o remo de governo; Nomenclatura (na jangada,
linhas e anzóis, a tripulação, utensílios, na jangada de tábua); Construção; Geografia da jangada;
Economia da jangada; Pequena antologia da jangada: dos dicionários e na poesia, e; Vocabulário da
jangada.
O autor descreve com riqueza de detalhes minimalista e ao mesmo tempo impregnada de
simplicidade que transcreve em suas entrelinhas o respeito por esta brava gente e o valor de sua
atividade para a comunidade e a sociedade. Utiliza-se de uma narrativa descritiva eloquente e afetiva,
mesclando ao mesmo tempo com uma discussão dissertativa dos fatos por ele vivenciados junto a
estas comunidades. A sua vivência etnográfica com os pescadores, os quais denomina de Jangadeiros,
trouxe-lhe uma riqueza de informações privilegiadas, por ter vivido entre eles e como um deles, pode
entender e conhecer intimamente seus hábitos, linguagem, costumes, comportamentos, crenças,
saberes, práticas e todas as histórias e cultura que os cercam. Foram 30 anos de longas amizades e
que lhes permitiu adentrar neste universo e desmistificar e revelar os segredos da arte da pesca.
Cascudo navega pelo tempo, desde o império até os dias atuais da feitura deste manuscrito, inclusive
com singelo trecho, onde menciona escassez de uma das espécimes pescadas, a Albacora, e
enfatizando a proteção da Toninha (Golfinho), um misto de mito e respeito.
O Jangadeiro (p. 15 a 59), faz alusão de que a atividade do pescador é repassada de geração
à geração, e o os mistérios do mar são um convite a esta herança. Compara a vida do pescador

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brasileiro (Natal e principalmente Ceará), com o do marujo Português - do qual herdou-se desde a
colonização, dos hábitos – devido as esposas de ambos, serem rendeiras e terem esta atividade, como
um dos seus afazeres diários.

O jangadeiro tem horário certo. Sol fora deve estar navegando rumo aos pesqueiros. Na roda
do sol para se pôr a jangada está abicando, pronta para ir subindo nos rolos, caminho do
descanso noturno. As jangadas de alto é que pescam longe, nas paredes, cinqüenta e sessenta
milhas ao largo, terra assentada e vento rodante e gemedor (p. 16).

Adentrando a atividade da pesca, às espécies mais apreciadas pelo sabor e pelo valor
econômico, lista durante a sua escrita, a safra de peixes como a Albacora, o Voador, o Bejupirá, a
Bicuda e os Cações; coloca em cada detalhe da sua redação, o modo de expressar-se do jangadeiro,
com suas palavras próprias do seu vocabulário, para identificar os objetos, lugares e apetrechos de
pesca por eles utilizados: jangada de alto, samburá, anzol, linha, garajau, rede, rolos, isca, jereré,
remo, caiçara. E da árvore que mais aprecia, que é o cajueiro, pela fruta que fornece e serve de
acompanhamento durante o deguste da aguardente, em suas rodas de conversa, no descanso pós-
serviço e nas comemorações.

Enquanto o Voador morre as ovas expelidas alastram-se, tapando a rede dos jererés pelas
malhas, subindo pelos cabrestos do banco de vela, fechando o samburá, agarrando-se às
tamancas dos calços do remo e do banco de governo, cobrindo com sua viscosidade luminosa
a jangada inteira, dificultando o passo, ameaçando afundá-la (p. 16).

No trecho da obra há uma grafia errada, oraçanga, pois em pesquisas bibliográficas não
tiveram ocorrência, durante a leitura de toda a obra, surgiu a palavra araçanga, que significa “(...)
bastão curto, espécie de casse-tête, com que o jangadeiro mata o peixe ferrado, ferindo-o na cabeça”
(p. 110), fazendo toda semântica com a frase em questão,

Dizem que no Império pescador que matasse toninha 1 ia para a cadeia sem remissão. Era
penalidade inútil porque todos a tinham como madrinha dos jangadeiros, garantia e segurança
da tranqüilidade em cima da água do mar. Quando vinha no anzol e pescador retirava-o,
deixando-a ao mar ou mesmo cortava a linha, libertando-a. não se levava toninha para a terra.
Hoje em dia, pescam-se e às vezes ferem-na à oraçanga2” (p. 19) (grifso nosso).

O autor descreve com maestria os locais de pesca utilizados, os perigos desta atividade,
elencando os nomes dos mestres da pesca que mui admirava e que lhes tinha amizade, sendo os

1
Toninha é golfinho.
2
Oraçanga é araçanga.

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oráculos do saber desta arte, em suas comunidades: da técnica, das condições do mar, da natureza e
do clima, dos locais de pesca, da navegação e dos pontos de orientação: sejam em terra (em três) ou
no céu. Alguns destes, são os segredos que o jangadeiro encontra, seus pesqueiros miraculosos,
guardando como local inviolável, só passando de “(...) geração em geração m seio da família
pescadora” (p. 28).
E quando o produto da pesca chega, parte é comercializado e parte salgada, servindo como
alimento para posterior, pois o peixe fresco é cozido em água e sal, comido com pirão escaldado e o
caldo bebido ao final, para dar-lhe a força necessária para a sua vida e lutas diárias. Pois o pescador
é um ofício que não se permite algazarras e músicas de estímulo ou folclóricas para serem cantadas
em sua labuta, porque espantam o produto de seu trabalho: o peixe. “Quase todos morreram no mar
o no casebre de palha, curtindo fome, velhos mais orgulhosos da sabedoria náutica, da ciência do
mar, falando como príncipes, recordando as proezas fabulosas” (p. 30).
Narra as histórias das e suas atividades das grandes de pescado e suas fastas safras, os
acontecimentos dos mais intrigantes aos mais alegres, desde o surgimento do ofício, dos
mergulhadores e suas proezas, dos escravos pescadores e suas habilidades na pesca. E sempre,
voltando-se ao homem do mar, comparando-os com “(...) o outro lado do mar, móbil, vago, indeciso,
sem merecer confiança. A frase comum, se Deus quiser, explica o desenlace aos seus olhos
resignados. Deus quis, Deus permitiu, seja feita a vontade de Deus” (p. 33).
A haliêutica é desvelada página à página, como se um dos próprios estivesse escrevendo a
obra. Desde as práticas, as crenças, os mitos, os ritos, as lendas, os contos, os ganhos e achegando
aos saberes da natureza, inclusive do comportamento dos peixes para os saberem pescar. Os caiçaras
e sua história desde o século XVIII, como referência da atividade haliêutica em 1849. “Ali moravam
pescadores e havia longa fila de choupanas de palha de coqueiro e carnaúba, água fria de cacimba e
farto peixe” (p. 37). Mas não só a pesca, os costumes de diversão foram descritos, como o Coco de
Roda como expressão de diversão coletiva e as corridas de jangada em epríodos de festejo. A música
faz parte nos momentos na comunidade, mas há outra música. “Uma confidência quase geral é a
existência da música no mar. Não apenas sons identificáveis de determinados instrumentos, mas
melodia concordante e audível inesquecível de beleza. Mas é sempre música perpetuamente inédita.
Nem antes nem depois ouviram harmonia semelhante” (p. 41).
O autor narra qas fugas da prosão em Fernando de Noranha, através de jangadas de paus
improvisadas, feitas pelos fugitivos e, quando encontradas pelos jangadeiras, recebia seu tripulante
água e comida, porém,

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Houve tragédias impressionantes. Jangadas trazendo apenas cadáveres. Jangadas com um


único tripulante, semilouco, gaguejando a história espantosa da morte pela fome e sede e os
tubarões rasgando o corpo dos companheiros mortos, espalhando sangue no mar. Jangadas
inteiramente vazias, boiando, sem vela sem víveres, sema cabaça d’água (p. 42).

Em meio a tantos vislumbres, o Navio Fantasma não iria faltar. Como o malassombro
recorrente em outros estados, em Natal o mesmo ocorria pela contos dos pescadores: “Vêem-no de
dia, todo branco e veloz, ou de noite, iluminado lindamente, com reflexos azulados de surpreendente
efeito na memória dos pescadores” (p. 45). Mas estes homens do mar, sempre pareceram pobres e
para o autor,

Podia ter melhor deduzido que a miséria decorrida do primitivismo da aparelhagem e não da
espécie profissional. A quase nenhuma margem de saldo financeiros, ausência da propriedade
da embarcação, o próprio equilíbrio das necessidades, reduzidas pela tradição ao mínimo das
despesas, o espírito exatamente conservador, explicariam o lado econômico e social deste
conformismo (p. 49).

Em o Nome da Jangada (p. 60-62), Cascudo traça a história deste veículo da atividade
profissional, partindo de sua etimologia à sua ocorrência global, chegando as similaridades indígenas
no Brasil: bastida, janga, jangada, piperi, paquete, ximbelo, catraia entre tantos outros nomes, de
origem indígena (Tupi), portuguesa e da miscigenação de ambos. E na Presença no Brasil (p. 63-
79), o autor enfatiza a importância da jangada como meio de transporte de inúmeros produtos, objetos
e pessoas, como um instrumento vital par ao pescador e vinculado à sua história desde a colonização.
Em Modificações: a vela, a bolina e o remo de governo (p. 80-100), Cascudo descreve Às
mudanças e evoluções que até então a jangada indígena sofreu, passando a ter primeiramente a vela
triangular acrescida, depois a bolina e, por fim, o remo de governo pois até então era apenas navegada
pelas mãos do pescador, na força do remo. Do século XV ao XVI, o autor não encontrou registros de
nenhum destes três avanços tecnológicos à época. A jangada era apenas utilizada nos rios, mangues
e ao longo das praias. Com a vela, surge a possibilidade de navegar e pescar em locais mais distantes,
como em alto mar. A jangada passou a ganhar velocidade e agilidade. Estas tecnologias trazidas pelos
portuguesas e acrescidas na jangada indígena, para dotar este veículo de maior capacidade para pesca,
passando a ser chamada de jangada de pescaria.
A vela triangular de fácil manejos e que passou a dar propulsão à jangada pesqueira; a bolina
é uma tábua de madeira introduzida no meio da jangada, transpassando-a na vertical, tendo função
similar a uma grande quilha, para dar estabilidade na jangada durante a navegação coma vela,

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impedindo-a de virar; e o remo de governo, como um leme, mas semelhante a um grande remo com
vários metros, para direcionar a jangada durante a navegação. Surge depois o banco de governo para
o pescador sentar e tornar sua navegação mais confortável e precisa.
Em Nomenclatura (p. 101-113), a jangada é medida pela quantidade de paus amarrados
(troncos) que a compõe, sendo a mais popular de 6 paus. Pelo perímetro, esses paus são chamados de
bordas (grosso), mimburras (médio) e meios (delgados). O autor começa a desvelar a jangada, parte
a parte, das madeiras empregadas, das peças utilizadas e suas funções, dos furtos nas madeiras para
fixação, chegando a âncora de pedra (tuaçu) e fateixa (madeira e pedra amarradas). Para Cascudo,
devido a tanto saber e fazer, o pescador é considerado um Mestre, mestres do mar e da jangada. Por
volta de 1940, Cascudo afirma que surge a jangada de tábua no Ceará, com “(...) capacidade maior,
durabilidade incontestável, resistência provada, foram esquecidos dotes perfeitamente silenciados”
(p. 113).
Na Construção (p. 114-124), o autor trata da maneira como eram construídas as jangadas de
paus, sendo unidas e amarradas, perfurados e transpassados horizontalmente por varas finas (tornos),
e “(...) lasca-se o final do torno com formão, e mete-se uma cunha” (p. 116), para o torno não sair e
manter todos unidos. E na Geografia da Jangada (p. 125-142), da polinésia, Europa e chegando ao
Brasil, como um fenômeno e ocorrência global, o autor traça o uso da jangada, com suas diversas
adaptações, tamanhos e usos pelo ser humano ao longo das décadas. No Brasil, era amplamente
difundida, pela sua origem indígena, do amazonas (Norte) ao Sul, traça sua ocorrência, evolução e
usos, principalmente na pesca não apenas pelos indígenas, mas posteriormente pelos caboclos e
portugueses.
Na Economia da Jangada (p. 143-147), o autor trata dos custos para comprar da jangada
sedo a de paus mais barata em relação a de tábuas, e o alto valor desta última, está vinculada a sua
durabilidade.
Da jangada de pescaria, que é de paus, sua manutenção é realizada antes do verão, para que
quando esta estação se faça presente, o jangadeiro poder utilizá-la e voltar a pescar. E assim, Cascudo
vai concluindo sua obram enfatizando que as gerações de pescadores se extinguem, pelas dificuldades
da profissão.
E por sim, o autor finaliza com a Pequena Antologia da Jangada (p. 148-161), com as
descrições e definições d a jangada pelos diversas fontes etnográficas pesquisadas. E com o
Vocabulário da Jangada (p. 162-170), um glossário de termos utilizados para avivar a memória do
leitor e valorização da linguagem e da cultura do jangadeiro e sua história sobre a jangada.

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