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Barcos e artes de pesca nas costas da Nazaré e de S.

Martinho, entre o século XVIII e 1930

Barcos e artes de pesca


nas costas da Nazaré e
de S. Martinho, entre o
século XVIII e 1930

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José Manuel de Mascarenhas | António Valério Maduro

Título: Barcos e artes de pesca nas costas da Nazaré e de S. Martinho,


entre o século XVIII e 1930

Autor: José Manuel de Mascarenhas e António Valério Maduro

Concepção e arranjo da capa: Gonçalo Fernandes

Imagem da capa: Varando o batel, de Laborinho Lúcio

© José Manuel de Mascarenhas e António Valério Maduro

Edição: AMA - Associação dos Amigos do Mosteiro de Alcobaça

Patrocínio: Município de Alcobaça

Colecção: História & Memória - 35

© para a produção
Hora de Ler, Unipessoal Lda.
Urbanização Vale da Cabrita
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Revisão e coordenação editorial: Autor e Hora de ler


Montagem e concepção gráfica: Hora de ler
Impressão: Artipol - www.artipol.net

1.ª edição: Outubro 2022

Edição 1161/22
Depósito Legal: 505586/22
ISBN: 978-989-9128-14-9

Reservados todos os direitos de acordo com a legislação em vigor.

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Barcos e artes de pesca nas costas da Nazaré e de S. Martinho, entre o século XVIII e 1930

Barcos e artes de pesca


nas costas da Nazaré e
de S. Martinho, entre o
século XVIII e 1930

JOSÉ MANUEL DE MASCARENHAS


e
ANTÓNIO VALÉRIO MADURO

OUTUBRO 2022

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José Manuel de Mascarenhas | António Valério Maduro

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Barcos e artes de pesca nas costas da Nazaré e de S. Martinho, entre o século XVIII e 1930

A pesca deve, pois, merecer á lei a mais grave atenção,


não é a bem dizer um officio, mas uma sina;
não é propriamente uma vida, é ás vezes uma morte.

A. C. S. MACEDO,
Estatística do Districto Administrativo de Leiria,
Leiria, 1855, 33

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José Manuel de Mascarenhas | António Valério Maduro

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Barcos e artes de pesca nas costas da Nazaré e de S. Martinho, entre o século XVIII e 1930

Barcos e artes de pesca


nas costas da Nazaré
e de S. Martinho,
entre o século XVIII e 1930

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José Manuel de Mascarenhas | António Valério Maduro

Agradecimentos

- Nicole Costa, Diretora do Museu Dr. Joaquim Manso, pela autorização


concedida para a inserção no livro de algumas fotografias de Álvaro
Laborinho;
- Isabel Beato, pela orientação disponibilizada nas consultas efetuadas
na Biblioteca Central de Marinha - Arquivo Histórico;
- Direção da Biblioteca Central de Marinha – Arquivo Histórico, pela
autorização concedida para a publicação de um documento de arquivo;
- 1.ª Tenente Ana Tavares, Chefe do Serviço do Património do Museu
da Marinha, pelas facilidades concedidas para a realização de
fotografias de maquetas de embarcações, em particular de uma
existente em depósito;
- Ana Patrícia Ramos, do Museu de Portimão, pelo apoio dado durante a
consulta de documentos do arquivo;
- Direção do Museu de Portimão, pela autorização concedida para a
publicação de três documentos do arquivo;
- Adriano Monteiro e João de Oliva Monteiro, pela disponibilização para
o uso de postais antigos das suas coleções;
- Biblioteca Municipal de Alcobaça;
- Carlos Fidalgo por informações e sugestões bibliográficas;
- Rui Rasquilho pelo prefácio;
- Artur Marques, mestre maquetista de Olhão, pelas informações e
fotografias de embarcações disponibilizadas;
- Helena Mascarenhas, pelo apoio dado no âmbito da cartografia digital;
- Câmara Municipal da Nazaré pela oferta do livro de Actas da Pederneira
1898-1912 e Seca do Peixe: uma arte;
- Associação dos Amigos do Mosteiro de Alcobaça (AMA) que, em boa
a hora, levou a cabo a edição desta obra como o apoio da Câmara
Municipal de Alcobaça.

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Barcos e artes de pesca nas costas da Nazaré e de S. Martinho, entre o século XVIII e 1930

ÍNDICE

Prefácio ...................................................................................... 11

1. Os coutos de Alcobaça: aspetos relevantes da geografia


física do território ................................................................ 15
2. Assoreamento das lagoas da Pederneira e de Alfeizerão
e comprometimento das atividades portuárias ........................ 19
3. A Praia da Nazaré: notas sobre a sua origem e desenvolvimento .. 28
3.1 - Tipologia e vocabulário marítimo ...................................... 30
3.2 - Tipologia das embarcações nazarenas .............................. 32
3.2.1 - Pesca Marítima ....................................................... 37
3.2.2 - Pesca Fluvial e Lagunar .......................................... 37
3.3. Caracterização sinóptica dos diferentes tipos de barcos
de pesca nazarenos ............................................................. 39
3.3.1 - Barcos vocacionados para a pesca marítima:
Pesca do Alto ............................................................ 40
3.3.2 - Barcos vocacionados para a pesca marítima:
Pesca Costeira .......................................................... 51
3.3.3 - Embarcações motorizadas ....................................... 55
3.4 - Pesca Local .................................................................. 69
3.5 - Barcos vocacionados para a pesca fluvial e lagunar .......... 74
3.6 - A evolução da frota pesqueira da Nazaré e de
S. Martinho do Porto ........................................................... 77
3.7 - Aparelhos de Arte Piscatória, Embarcações e Espécies-Alvo.
A evolução, em Portugal, das artes de pesca marítima ........... 79
3.8 - Artes, embarcações e espécies-alvo na Capitania da
Nazaré e na Delegação Marítima de S. Martinho do Porto ..... 79
3.8.1 - Aparelhos de rede envolvente fixos .......................... 81
3.8.2 - As novas artes envolventes – Cerco ........................ 85
3.8.3 - A Arte de Xávega Moderna ..................................... 89
4. Os peixes e o seu consumo no território dos coutos ..................... 93
5. Os sistemas tradicionais de conservação do pescado ................... 98
6. A constituição de sociedades e parcerias de pesca .................... 103

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7. A indústria conserveira da Nazaré ............................................ 109


8. A indústria de adubos de peixe .................................................. 114
9. Conclusão .............................................................................. 117

ANEXO I – Quadros e Gráficos ................................................... 121


ANEXO II – Termos náuticos e de pesca presentes
nas escrituras notariais ....................................................... 155

Notas das legendas das ilustrações ............................................... 159


Fontes e Bibliografia .................................................................... 161

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Barcos e artes de pesca nas costas da Nazaré e de S. Martinho, entre o século XVIII e 1930

PREFÁCIO

No século XII, os crúzios de Coimbra vinham pescar o seu peixe


à Serra da Pescaria, a “ilha” entre os dois mares, o do oceano e o do
interior, criando um interdito à pesca por outros entre a Pederneira e
Alfeizerão. Talvez por isto na carta de doação, de 8 de abril de 1153,
esteja omisso o vasto mar da Pederneira em acelerada regressão1.
Sabemos pouco deste espaço de outro tempo. Os golfos, as arri-
bas, as dunas não pararam de mover-se ao longo dos séculos infindos
obrigando os homens e as mulheres da linha costeira, que viria a ser
dos Coutos, a deslocar-se constantemente quando olhamos do ponto
de recuo cristalizado que é o nosso tempo.
Na temporalidade por onde o livro se espraia escolhemos duas
referências, os aforamentos na nova costa húmida do lado nascente da
Lagoa da Pederneira e o fim da administração Filipina. Neste período
de tempo deu-se um “abaixamento” do nível do mar que drenou a
lagoa, obrigando à abertura de leitos para os rios. Considera-se ser
1381 o ano dos primeiros assoreamentos que foram progredindo irre-
versivelmente nas águas de Alfeizerão, Paredes e barra da Pederneira.
Os monges, dessas épocas, arroteavam sem parar porque queri-
am vinhas e pomares e nesse longo e constante movimento erodiram a
terra transformando as águas em pauis, e os pauis em terras de lavradio.
De longe, a Serra olhava para camponeses e pescadores, nunca os
mesmos, apesar de iguais no eterno e esforçado labor.
Este texto de José Manuel de Mascarenhas e António Valério
Maduro consolida a fragilidade do nosso conhecimento que supú-
nhamos sólido.
Dois metros de água para oferecer caminho livre às caravelas quan-
do a barra estava aberta, o que acontecia apenas amiúde.

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Rui RASQUILHO, Peregrinação na memória – Datas e notas à volta de
Cister. Alcobaça: Cooperativa Agrícola de Alcobaça, 2015.

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José Manuel de Mascarenhas | António Valério Maduro

Olhe-se no tempo o espaço amovível da foz explicado pelo que


se disse, um movimento entre o promontório e o porto da Barca, o
que não impediu, contudo, os estaleiros de fornecerem navios para
Carreira das Índias e outros longínquos lugares.
A pesca é recorrente neste cenário e tem um “highlight” no
assoreamento da Póvoa de Paredes, porto do rei com seis caravelas
que passariam para a Pederneira em 1368. Há muito para ler e preci-
sar neste precioso livro de dois notáveis investigadores.
Transportemo-nos agora para um tempo mais próximo no princí-
pio do século XIX quando os franceses invasores e os ingleses aliados
guerrearam, mataram e roubaram nas terras dos coutos de Alcobaça.
No século XIX, a ribeira da Pederneira (Nazaré) vai acolher mui-
tas famílias ligadas ao mar e à pesca deixando no alto da arriba, na vila,
os camponeses. De Ílhavo e Aveiro vieram pescadores que se fixaram
no areal da Nazaré, sabendo que, em 1780, havia já 29 barcas, 11
redes e 203 pescadores.
No livro há, em anexo, inúmeros e esclarecedores quadros e grá-
ficos que permitem ao leitor, seja qual for a sua formação, entender
várias coisas desta vida então demasiado perigosa e que motivava inú-
meras superstições2. A movimentação pesqueira, seja local, costeira e
do alto, os barcos para cada uma e os meios utilizados estão plasma-
dos para além da narrativa. Informam-nos ainda sobre o desenvolvi-
mento das parcerias e sociedades de pesca fruto do associativismo e
de práticas que se podem reputar de matriz capitalista, das novas artes
de pesca à sardinha e de sua intensificação, o que conduz a um boom
da indústria conserveira, da riqueza piscícola deste mar generoso, dos
consumos de peixe miúdo e grosso, fresco e seco, pelo povo e privile-
giados, tendo como referência os abastados monges cistercienses.

2
O Senador Faustino da Fonseca, a propósito da falta de providências para criar
maior segurança da vida do mar refere: “Resistem aferradamente nos homens do
mar as pavorosas superstições duma diabólica natureza capitaneada por Satanaz.
Com medo dêle, os pescadores da Nazaré sagram com padres e com missas o
que lhes daria de sobra para um rebocador que lhes valesse em meio das refre-
gas, indo recolher os barcos para o mar”. Assembleia da República, Senado da
República, n.º 68, 15 de abril de 1912, 5.

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Barcos e artes de pesca nas costas da Nazaré e de S. Martinho, entre o século XVIII e 1930

A um título mais pessoal há ainda a memória dos que brincavam


no século XX durante as férias grandes nas praias da Nazaré e de S.
Martinho do Porto. E das barracas às listas e dos barcos coloridos
puxados para a areia por possantes juntas de bois, que também puxa-
vam as redes a abarrotar de pescado que vinha morrer na praia.
Este livro que agora prefacio integra-se na produção editorial da
Associação dos Amigos do Mosteiro de Alcobaça sempre com o apoio
do município através da sua Câmara Municipal.

Rui Rasquilho
(Presidente da Associação
dos Amigos do Mosteiro de Alcobaça – AMA)

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José Manuel de Mascarenhas | António Valério Maduro

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Barcos e artes de pesca nas costas da Nazaré e de S. Martinho, entre o século XVIII e 1930

1. Os coutos de Alcobaça:
aspetos relevantes da geografia
física do território
O antigo domínio monástico alcobacense pode caracterizar-se,
em termos de geografia física, pelas seguintes unidades essenciais: “cos-
ta rochosa, com arribas; faixa dunar litoral estreita; grande mobilidade
de areias, apenas moderada pelas matas que ocupavam os solos mais
pobres e arenosos; linha de costa recortada por dois grandes golfos,
totalmente assoreados na atualidade, quer pela dinâmica natural quer
pela ação humana. Eram as designadas lagoas da Pederneira, mais a
norte, e de Alfeizerão, da qual ainda resta a concha de São Martinho”3.
A densa rede de linhas de água de regime torrencial, acompanhada de
difíceis condições de drenagem, criou condições para que os terrenos
aluvionares correspondentes aqueles antigos “mares” se encontrassem
permanentemente encharcados, necessitando de constante regulação
hídrica. A área paralela à costa, caracterizada por colinas de relevo
suave, permite definir uma segunda zona, na qual se identificam tam-
bém vales apertados cujas linhas de água apresentam frequentemente
regime sazonal4. Um vale tifónico e pedregoso, delimitado a Este pelo
maciço calcário da Serra dos Candeeiros, permite definir uma terceira
unidade geográfica5.
Entre os séculos XIV e XVI terá ocorrido um ligeiro arrefecimento
(“Pequena Idade do Gelo”), que nos séculos XVI e XVII se terá acen-

3
José Manuel de MASCARENHAS, “Os campos dos coutos de Alcobaça:
ordenamento hidráulico e valorização do território”, in A. V. MADURO & R.
RASQUILHO (coords), Um Mosteiro entre os Rios. O território alcobacense,
Alcobaça, Hora de Ler, 2021, 483-539, 485.
4
Ibidem.
5
Ibidem.

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José Manuel de Mascarenhas | António Valério Maduro

Fig. 1 - Limites do antigo couto da abadia cisterciense de Santa Maria de Alcobaça. Tracejado:
limites em 1153; Traço-ponto: limites em 1358; Ponteado: limites de 1368 a 1374; Manchas
ponteadas: áreas correspondentes às antigas lagoas de Pederneira (a norte) e de Alfeizerão (a sul).
Autor: José Manuel de Mascarenhas, 2015.

tuado e sido acompanhado por forte transporte sólido para o litoral e


por suposto abaixamento do nível do mar6.
6
Maria Virgínia HENRIQUES, “Enquadramento Geográfico da Região de S.
Martinho do Porto”, in Maria Cândida PROENÇA (coord.), A baía de S. Martinho
do Porto. Aspectos Geográficos e Históricos, Lisboa, Edições Colibri & Associ-
ação de Defesa do Ambiente de São Martinho do Porto, 2005, 15-49, 30.

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Barcos e artes de pesca nas costas da Nazaré e de S. Martinho, entre o século XVIII e 1930

Cartas coevas deste período mostram uma linha de costa mais


recortada que a atual, vastos estuários e restingas arenosas em forma-
ção7. Esta “Pequena Idade do Gelo” terá perdurado até ao século
XIX e dado origem às atuais características climáticas médias8. Se a
colmatagem das abras e da parte vestibular dos rios deve ser conside-
rada como um fenómeno geral, acontecimentos locais como o arrote-
amento de terras exercido pelos monges de Alcobaça em áreas mais
ou menos declivosas de matas e de matos, nomeadamente para meter
vinhas e pomares, podem, em grande parte, ter sido responsáveis pela
erosão dos solos e por um assoreamento galopante, o que terá em
particular acontecido com a intensificação das arroteias, em muito de-
rivadas das providências de D. Dinis sobre o incremento da agricultu-
ra9, vindo tal assoreamento a comprometer progressivamente a pos-
sibilidade de navegação na lagoa10.

Fig. 2 - Aspeto da enseada e promontório da Nazaré.


(Fot. de José Manuel de Mascarenhas, 2021)

7
Ibidem.
8
M. V. HENRIQUES, op. cit., 2005, 31.
9
Orlando RIBEIRO, Introduções Geográficas à História de Portugal, Lisboa,
Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 1977, 110.
10
J.M. de MASCARENHAS, op. cit., 2021, 486.

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José Manuel de Mascarenhas | António Valério Maduro

Fig. 3 - Aspeto da barra da concha de S. Martinho do Porto.


(Fot. de José Manuel de Mascarenhas, 2021)

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Barcos e artes de pesca nas costas da Nazaré e de S. Martinho, entre o século XVIII e 1930

2. Assoreamento das lagoas


da Pederneira e de Alfeizerão
e comprometimento das atividades
portuárias
Maria Virgínia Henriques mostra bem como, nos séculos XII-XIII,
a navegação lagunar já se encontraria seriamente comprometida, con-
siderando “efabuladas” as referências a movimento de barcos, no tempo
de D. Sancho I que, vindos de Lisboa, descarregavam géneros para
os monges e carregavam madeiras na Fervença, “pois não haveria
condições naturais para que barcos com calado suficiente para nave-
gar até Lisboa pudessem transpor a área do Valado, Fervença seria
apenas um pequeno porto fluvial para serventia do Mosteiro, onde
eram embarcadas as mercadorias que na Pederneira seriam carrega-
das em barcos maiores”11.
Em finais do século XIII, já aparece referido num aforamento, um
paul no lugar da Fervença12. Por outro lado, no século XVI, as limita-
ções à navegabilidade devem-se, logicamente, ter ainda mais agrava-
do pois “já só hus barcos pequenos, que sobem do mar por hua
lagoa acima, & vão algum espaço subindo pello Rio que vem de
11
Maria Virgínia HENRIQUES, “Caracterização geográfica do território de
Alcobaça”, in António Valério MADURO & Rui RASQUILHO (coords.), Um
Mosteiro entre os Rios. O território alcobacense, Alcobaça, Hora de Ler, 2021,
27-92, 64.
12
Pedro Gomes BARBOSA, Povoamento e Estrutura Agrícola na Estremadura
Central. Séc. XII a 1325. Lisboa, Instituto Nacional de Investigação Científica,
199, 143, 161, nota 235, cit. por João Pedro BERNARDES, “A Arqueologia Roma-
na e o Estudo das Paisagens Medievais: o caso da Lagoa da Pederneira”, in Iria
GONÇALVES (coord.), Paisagens Rurais e Urbanas. Fontes, Metodologias,
Problemáticas I, Lisboa, Centro de Estudos Históricos – Universidade Nova de
Lisboa, 2005, 133- 151, 141.

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José Manuel de Mascarenhas | António Valério Maduro

Alcobaça”, é que conseguiriam ter acesso ter acesso à zona de


Fervença, “ficando as embarcações grândes no mar alto defronte
da villa de Pederneira, sem poderem entrar plla foz do Rio, impidido
com muitos baixios de area, que o contino movimento das ondas
do mar, fazem toda aquella praya”13.
O assoreamento da lagoa, sobretudo a partir do século XIV, as-
sume uma gravidade crescente ficando, cada vez mais, as populações
obrigadas a trabalhos de remoção de areias. Em 1455, o assunto as-
sume tal gravidade que os trabalhadores dizem ser impossível abrir o
caminho para o mar devido à quantidade de areia acumulada, e “por-
que o vento levantando nova areia, voltaria a tapá-lo”14. No século
XVI, já dificilmente os navios de alto bordo podiam entrar na barra,
em resultado da areia arremessada pelas marés e, em meados do sé-
culo seguinte, o cronista Brito Alão indica claramente “a impossibilida-
de de entrada e navegação duma caravela na Lagoa da Pederneira,
embarcação que necessitaria de apenas cerca de 2 metros de água
para navegar”15. A primitiva vila da Pederneira, já assinalada na carta
de doação do couto de Alcobaça a Bernardo de Claraval (1090-1153)
por D. Afonso Henriques, ter-se-á desenvolvido a Sudeste da sua atu-
al localização, acima da Ponte das Barcas onde se situaria o “porto” e
os estaleiros16, e apesar das condições naturais não serem favoráveis,
o porto e a vila tiveram nos séculos XIV e XV grande prosperidade e
privilégios reais17. Em virtude do progressivo assoreamento, o porto
13
Bernardo de BRITO, Monarchia Lusytana, 1.ª parte (liv. 3.º, cap. XI), Lisboa,
1597 (edição fac-similada de 1971), fl. 245, 245 vº, cit. por J. P. BERNARDES, op.
cit., 2005, 141, 142.
14
Iria GONÇALVES, O Temporal do Mosteiro de Alcobaça nos séculos XIV e XV,
Lisboa, Dissertação de Doutoramento em História apresentada á F.C.S.H. da Uni-
versidade Nova de Lisboa, 1984, 375, cit. por J. P. BERNARDES, op. cit., 2005, 147.
15
Manuel de Brito ALÃO, Prodigiosas Historias e Miraculosos Successos Acon-
tecidos na Casa de Nossa Senhora da Nazaré. Lisboa: Lourenço Craesbeeck
Impressor del Rey, 1637, 34, cit. por Luís Filipe HENRIQUES, O Porto da Lagoa
da Pederneira, Problemática e Interrogações, Relatório de Pós-Graduação em
Arqueologia Subaquática, Lisboa, Universidade Autónoma de Lisboa e Tomar,
Instituto Politécnico de Tomar, novembro de 2017, 17.
16
M. V. F. HENRIQUES, op. cit., 2021, 65.
17
Ibidem.

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Barcos e artes de pesca nas costas da Nazaré e de S. Martinho, entre o século XVIII e 1930

Fig. 4 - Fotografia Aérea Vertical (Missão FAP, 1989), na qual se indica: (1) localização provável do
porto e estaleiros da Pederneira, na época medieval (indícios arqueológicos1); (2) localização
provável do porto e estaleiros, na época moderna2; (3) Rio Alcoa; (4) Rio do Meio; (5) Rio da Areia;
(6) Rio da Levadinha; (7) Ponte da Barca; (8) Porto de Abrigo da Nazaré; (9) Nazaré; (10)
Pederneira (Trabalho Gráfico: Helena de Mascarenhas, 2022).
[Ver notas das legendas na pág. 159]

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José Manuel de Mascarenhas | António Valério Maduro

da Pederneira deve ter tido várias localizações, ao longo do tempo,


“deslocando-se” de nascente para poente, aproximando-se da barra
da lagoa18. Num documento de 1332, aparece mencionado o “Porto
da Barca”, o que indicia que, nessa data, o porto já se localizaria a
oeste da sua posição original, já próximo da barra, num local hoje
denominado “Ponte da Barca”19 (Fig. 4).
O fecho constante da barra, devido ao assoreamento, e o esforço
exigido para a manter aberta, é assunto já referido em documentos,
desde pelo menos o século XII20. Por outro lado – “O crescimento

Fig. 5. Puerto y Villa da Pederneira (Pedro Teixeira Albernaz, 1634), in Marías & Pereda, 20033.
Nesta gravura, observa-se que a foz do Alcoa se situava junto do promontório da Nazaré e que a
maior parte da área da antiga lagoa da Pederneira já se encontrava ocupada por pauis.

18
L.F. HENRIQUES, op. cit., 2017, 32.
19
Ibidem.
20
M.V.F. HENRIQUES, op. cit., 2021, 64.

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Barcos e artes de pesca nas costas da Nazaré e de S. Martinho, entre o século XVIII e 1930

dos cordões litorais, o avanço das dunas, a constante migração da foz


do rio Alcoa e o aumento de calado das embarcações obrigaram, cer-
tamente, à mudança do “porto” e dos estaleiros para fora da Ponte
das Barcas, instalando-se na “Ribeira”, situada abaixo do Promontó-
rio do Sítio.
Neste amplo espaço, mais protegido do mar pelo robustecimento
do cordão litoral, são retomadas as atividades de construção naval,
comércio marítimo e pesca.21 “Fabricam-se agora cascos de naus de
bom calado e respetivas cobertas e provavelmente mastros e velas
que até aí eram colocados na Ribeira das Naus”22.
De entre as embarcações construídas na Pederneira algumas hou-
ve que assumiram papel de destaque na história da marinha portugue-
sa, como a nau encomendada por D. João II, em 1489, a que foi dado
justamente o nome de Nossa Senhora da Nazaré, “sendo mais vul-
garmente referida na documentação apenas pelo vocábulo Nazaré.
Era uma grande nau, a qual andou na carreira do Levante, da Flandres
e da Índia, vindo a cessar o seu período de vida em 1526”23. Saul
António Gomes, refere alguns dos navios construídos nos estaleiros da
Pederneira, ou noutros lugares, que receberam o nome de Nossa Se-
nhora da Nazaré, demonstrativo da devoção que este orago Mariano
despertava entre as gentes do mar24.
No que respeita a atividade comercial e piscatória, os portos dos
Coutos, em meados da 1.ª dinastia, e sobretudo em resultado do fo-
mento Fernandino, desenvolveram importante atividade. Certas técni-
cas piscatórias, há muito desaparecidas da costa ocidental (central), como
as almadravas, foram identificadas nessa época. “Além da pesca da
sardinha existiam ao longo da costa significativos cardumes de atum que
desde o período Romano eram pescados com o cerco de almadravas,
21
Idem, 65.
22
Rui RASQUILHO, “Estaleiros e portos: Ensaio curto em tempo longo”, Anais
Leirienses – estudos & documentos, 6 de setembro 2020, 215-230, 219.
23
Saul António GOMES, “Culto Régio de Nossa Senhora da Nazaré – Idade
Média”, in Anais Leirienses. Estudos & Documentos, 5, 2020, 11-55, 22. R.
RASQUILHO, op. cit., 2020, 219, apresenta um resumo das atribulações e impor-
tantes intervenções em que esta nau operou.
24
S.A. GOMES, op. cit., 2020, 23.

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José Manuel de Mascarenhas | António Valério Maduro

técnica aperfeiçoada pelos árabes”25. Sabe-se também que, em 1286,


na vila da Póvoa de Paredes, existiam seis caravelas destinadas à faina
da pesca26, obrigação decorrente do foral concedido por D. Dinis.
Relativamente ao estuário lagunar de Alfeizerão, os seus limites
pouco se modificaram até ao século XIV, período em que os portos
de Alfeizerão e Salir se evidenciaram pela sua operacionalidade. To-
davia, a partir desta data, assistiu-se a um assoreamento acelerado,
resultante sobretudo de uma intensificação da erosão, motivada pela
expansão do povoamento e pelos arroteamentos, na bacia vertente,
para criação de novas áreas agrícolas27. As alterações hidrodinâmicas
decorrentes levaram, em finais do século XV, ao “abandono do porto
de Alfeizerão, por falta de condições de navegabilidade, em detrimen-
to dos de Salir e S. Martinho, mais próximos da atual barra e menos
afetados pelo assoreamento”28. Neste último porto, tem-se conheci-
mento de que, em 1284, já existiam estaleiros em funcionamento bem
como atividades piscatórias, pois o rei terá concedido isenção de foro
a três barcas destinadas à pesca que ali haviam sido construídas29.
No que respeita ao antigo “mar” de Alfeizerão, as informações
disponíveis relativas à sua evolução e à recuperação dos campos são
ainda vagas e dispersas. Nos primeiros tempos da nacionalidade, o
esteiro resultante da foz conjunta dos rios de Alfeizerão e de Tornada
permitia o funcionamento de um duplo porto: o porto realengo de Salir
e o porto alcobacense de Alfeizerão.
Já no século XIV, a construção naval em Alfeizerão era muito in-
tensa30, sendo o máximo da laboração atingido nos séculos XV e XVI31.

25
R. RASQUILHO, op. cit., 2020, 217.
26
Ibidem.
27
J.M. de MASCARENHAS, op. cit., 2021, 487.
28
M. V. J. HENRIQUES, op. cit., 2005, 32.
29
R. RASQUILHO, op. cit., 2020, 217.
30
Iria GONÇALVES; Manuela Santos SILVA, “São Martinho do Porto e a Lagoa
de Alfeizerão, na Idade Média”, in Maria Cândida PROENÇA (coord.), A Baía de
S. Martinho do Porto, Aspectos Geográficos e Históricos, Lisboa, Ed. Colibri/
Associação de Defesa do Ambiente de São Martinho do Porto, 2005, 51-68, 59.
D. Afonso IV mandou construir aí as suas galés.
31
Idem, 60.

24
Barcos e artes de pesca nas costas da Nazaré e de S. Martinho, entre o século XVIII e 1930

Até meados deste último século, chegavam a estacionar 80 navios de alto


bordo32 que utilizavam este abrigo como fundeadouro seguro, e de possí-
vel embarque e desembarque de mercadorias33. Este porto, que exporta-
va sobretudo madeira e sal, integrava-se num comércio de cabotagem
entre Lisboa e a Galiza, particularmente nos séculos XV e XVI34.
À medida que foi evoluindo o processo de assoreamento do siste-
ma lagunar de Alfeizerão, comprometendo a navegabilidade, foram-se
incrementando obras de saneamento, através da abertura de valas de
desvio e canalização de ribeiras35. Segundo António Valério Maduro,
ao longo do século XVII/XVIII, com esforço económico significativo,
o mosteiro e os enfiteutas, com o apoio da mão-de-obra das popula-
ções deram lugar a recorrentes trabalhos de abertura e canalização de
rios e valas, nos campos da Pederneira, Alfeizerão e S. Martinho, sen-
do estas obras tanto de caráter estrutural, como de manutenção36 (vide
Gráfico 1).
Sabe-se que em finais de século XVI/inícios do seguinte, o porto
de Alfeizerão já se encontrava praticamente inoperacional, devendo o
esteiro através do qual os barcos acediam a este porto se encontrar já
muito assoreado e dificilmente transitável37.
32
Iria GONÇALVES, O Património do Mosteiro de Alcobaça nos Séculos XIV e
XV, Lisboa, Universidade Nova de Lisboa, 1989.
33
Maria Luísa Pinheiro BLOT, Os portos na origem dos centros urbanos.
Contributo para a arqueologia das cidades marítimas e flúvio-marítimas em
Portugal, Trabalhos de Arqueologia, 28, Lisboa, Direcção-Geral do Património
Cultural, 2003, 218.
34
José Lopes COUTINHO (a), Notas avulsas sobre os barcos e o porto de
Alfeizerão - 2. https://alfeizerense.blogspot.pt/2015/09/notas-avulsas-sobre-os-
barcos-e-o-porto_24.html?m=1. Publicado em 24 de setembro de 2015. [consul-
tado em 21 / 06 / 2016].
35
Virgínia RAU, Estudos sobre a história do sal português, Lisboa, Editorial
Presença, 1984.
36
António Valério MADURO, “Hidraulique planning and irrigation in the lands
of the monastery of Alcobaça. Management anda conflict (17th-18th centuries)”,
in Les Cisterciense et l’eau. Hommage `a Paul Benoit, Citeaux. Commentarii
cistercienses, t. 71, fasc. 1-4, 2020,359 (vide Gráfico 1).
37
José Lopes COUTINHO (b), Uma citação de Frei Manuel dos Santos, e um
dado cronológico para o fim do porto de Alfeizerão, 28 de Julho de 2020.
https://alfeizerense.blogspot.com/2016/07/uma-citacao-de-frei-manuel-dos-san-

25
José Manuel de Mascarenhas | António Valério Maduro

Fig. 6. Barra do Porto de S. Martinho-do-Porto (Pedro Teixeira Albernaz, 1634), in Marías & Pereda,
20034. Nesta gravura, representa-se a concha e vila de S. Martinho, bem como o esteiro através
do qual pequenas embarcações acederiam ainda ao porto de Alfeizerão, e que desaguava a meio
da concha, aproximadamente.

tos-e.html [consultado em 26 / 09 / 2020].Este autor, apoiando-se na descrição


do Mosteiro, de Frei Manuel dos Santos (1672-1740) , estima que o fim do porto
de Alfeizerão se tenha dado nas primeiras décadas do século XVII, o que se
coaduna com a data das primeiras instruções reais (1616) para a abertura do Rio
de Alfeizerão.

26
Barcos e artes de pesca nas costas da Nazaré e de S. Martinho, entre o século XVIII e 1930

Se o porto de Alfeizerão perdeu toda a sua importância no século


XVII, tal não aconteceu, como referido, com o porto de S. Martinho
onde, segundo o Padre João Baptista de Castro, se abrigavam caravelas
e patachos, e se chegaram a construir naus de certa envergadura. As-
sim, sabe-se que no fim do século XVII, foram construídas as naus
Nossa Senhora da Conceição e Oliveirinha, cada uma de 60 peças
e, em inícios do século XVIII, duas fragatas de 30 peças cada uma38.
A maioria das intervenções promovidas pelo Mosteiro de Alcobaça
deram-se nas centúrias seiscentistas e setecentistas, com particular re-
levo para o período da administração do abade Frei Manuel de Men-
donça (1768-1777)39. Tais trabalhos devem ter sido particularmente
árduos, já que no decurso deste século violentas marés e grandes cheias
assolaram a região.
Encontrando-se o porto de São Martinho muito assoreado em iní-
cios do século XIX, executaram-se obras para a sua restauração, que
basicamente consistiram no encaminhamento do Rio de Alfeizerão para
a sua antiga direção, havendo-se aberto um novo leito40. Obras
subsequentes tiveram ainda lugar41 e após o desassoreamento da baía,
podiam nela estacionar sessenta navios. Segundo Luís Gomes de Carva-
lho, S. Martinho é um porto de mar “que a obra de arte ganhou para a
nação, que já não contava com ele e para que ninguém achava remédio”42.

38
Adolfo LOUREIRO, Os Portos Marítimos de Portugal e Ilhas Adjacentes, vol.
II, Lisboa, Imprensa Nacional, 1904.
39
J. M. de MASCARENHAS, op. cit., 2021.
40
Obras concluídas em outubro de 1828.
41
Para o conhecimento global das obras e projetos de saneamento e ordenamento
hidráulico dos antigos campos da Pederneira e de Alfeizerão, ver, entre outros:
J.M. de MASCARENHAS, op. cit., 2021; António Valério MADURO; José Manu-
el de MASCARENHAS; Virgolino Ferreira JORGE, “Water planning in Alcobaça
cistercian lands”, Riparia, 3, 2017, 95-126; António Valério MADURO; José Ma-
nuel de MASCARENHAS; Virgolino Ferreira JORGE, “A construção da paisagem
hidráulica no antigo couto cisterciense de Alcobaça”, Cadernos de Estudos
Leirienses – 4, Maio 2015, 29-60; António Valério MADURO, “Hidraulique planning
and irrigation in the lands of the monastery of Alcobaça. Management and conflict
(17th-18th centuries)”, in Les Cisterciense et l’eau. Hommage à Paul Benoit,
Cîteaux. Commentarii cistercienses, t. 71, fasc. 1-4, 2020, 351-365.
42
A. LOUREIRO, op. cit., 1904, 281.

27
José Manuel de Mascarenhas | António Valério Maduro

3. A Praia da Nazaré: notas sobre


a sua origem e desenvolvimento
O Sítio da Nazaré, desenvolveu se em torno do Santuário Mariano
fundado, em 1377, pelo Rei D. Fernando I de Portugal. Foi nas cer-
canias deste santuário, e para acolher os romeiros que o procuravam,
que se instalaram os primeiros habitantes, fazendo erguer as primeiras
casas. Deve-se muito a este Santuário o crescimento que o Sítio e a
vila da Pederneira conheceram a partir do século XVII. Em resultado
do assoreamento crescente do antigo “mar” da Pederneira, o primitivo
local do porto e estaleiros da Pederneira foi-se progressivamente tor-
nando inviável, o que levou a que a Praia da Nazaré, inicialmente co-
nhecida por Ribeira da Pederneira, tivesse vindo a ser cada vez mais
procurada por pescadores, construtores navais e gente ligada ao co-
mércio marítimo, a que se vieram juntar, em meados do século XVIII,
pescadores de Ílhavo43. A referida Praia, nesta época, seria ocupada,
segundo José de Almeida SALAZAR44, por uma espécie de arsenal
com telheiros e acomodações aonde se recolhiam ferramentas e madei-
ras destinadas aos Arsenais Reais, em Lisboa, além de umas dez ou
quinze barracas de madeira, aonde os pescadores recolhiam as suas
redes e aparelhos. Em 1760, segundo este mesmo autor, ”apenas have-
ria na dita Praia quando muito quinze propriedades de casa de pedra e
cal, e poucas barracas de madeira, inclusive umas grandes casas de
residência dos Religiosos Bernardos, que tinham uma pequena capella,
aonde celebravam as suas missas quando estava a banhos na Praia” 45.

43
José Maria TRINDADE, “Nazaré: a evolução de uma comunidade piscatória”,
Argos – Revista do Museu Marítimo de Ílhavo, 08, out. 2020, 62-71, 63.
44
José de Almeida SALAZAR, Memórias da Real Casa de Nossa Senhora da
Nazareth, Nazaré, Confraria de Nossa Senhora da Nazaré, Arquivo Histórico, 1842.
45
J. A. SALAZAR, op. cit., 1842 2, 533 534, cit. por J.M. TRINDADE, op. cit.,2020, 64.

28
Barcos e artes de pesca nas costas da Nazaré e de S. Martinho, entre o século XVIII e 1930

Verificou-se ainda, segundo ele, a partir desta altura, um grande incre-


mento da atividade piscatória, que atribui “à grande actividade dos
senhorios ou donos dos barcos e redes, que nesses felizes e venturo-
sos tempos as principais pessoas destas duas terras, a villa da Peder-
neira, e o Sítio da Nazareth, junto com o grande respeito que lhe ti-
nham os seus súbditos” 46. Enquanto os pescadores locais usavam re-
des pequenas, os chinchorros, com os quais “pescavam grande quan-
tidade de peixe” 47, os pescadores de Ílhavo, usavam grandes redes, a
que chamavam artes, com as quais pescavam grande abundância de
peixe, ao sul da praia48. Havendo durante as Invasões Francesas, mui-
tas daquelas casas sido queimadas, só após estes eventos, é que se
terá dado a deslocação, da Pederneira para a Praia, da maioria das
famílias ligadas às actividades marítimas, as quais “usaram os materiais
das antigas habitações para a construção das novas casas na Praia.
No velho burgo, que até ao princípio do século XX continuará como
sede do concelho, permaneceram sobretudo as famílias ligadas à agri-
cultura”49. Com o desenvolvimento do lugar na Praia, “muitos habitan-
tes da Pederneira abandonaram aquella villa e vieram estabelecer se
na praia”, passando a viver “dos interesses do pescado e alugueis de
suas casas às gentes que vem a banhos do mar, e dos imensos lucros
que tem tido nas salgas e secas do peixe”, o que levou ao surgimento
ao longo da praia, de grande número de casas e armazéns “para depó-
sitos de pescarias pra negocio” 50.
Em 1757, a Mesa da Misericórdia da Pederneira autorizava os
pescadores que tinham vindo da região de Ílhavo e de Aveiro, para a
Praia da Pederneira, a serem recebidos no seu hospital, para trata-
mento, pagando à Confraria o terço do que pescavam aos domingos e
dias santos, depois de tirada a dízima para o Mosteiro de Alcobaça51.

46
J.A. SALAZAR, op. cit., 1842 2, 535, cit. por J.M. TRINDADE, op. cit.,2020, 64.
47
J.A. SALAZAR, op. cit., 1842 2, 535 536, cit. por J.M. TRINDADE, op. cit.,2020, 64.
48
J.M. TRINDADE, op. cit.,2020, 64.
49
Ibidem.
50
J.A. SALAZAR, op. cit., 1842 2, 539 546, cit. por J.M. TRINDADE, op. cit.,2020, 65.
51
Pedro PENTEADO, História administrativa do Fundo da Santa Casa da
Misericórdia da Pederneira (extraído do “Inventário” do arquivo da entida-

29
José Manuel de Mascarenhas | António Valério Maduro

A partir de 1795, esta Mesa resolveu passar a missa dos homens do


mar para a capela da Praia da Nazaré, localidade que ia em cresci-
mento52. Segundo Frei Manoel de Figueiredo, em 1780, os pescado-
res residiam na vila da Pederneira ou no Sítio da Nazaré, se bem que
as suas atividades se desenrolassem na Praia, especificando que neste
local existiam 7 cabanas de sobrado e 51 cabanas térreas53. Escreve
ainda este autor que “Nesta Praia há casas de sobrado e terreas em
que os pescadores guardão os aparelhos das suas embarcações, salgão
o peixe e vivem de verão com muitas pessoas que aqui veem tomar
banhos salgados”54. Nesta data, refere ainda, já existiam na Praia da
Nazaré, 29 barcas e 11 redes, sendo de 203 o número total de pesca-
dores55. Durante aproximadamente um século o número de barcos e
de redes pouco se alterou, neste mesmo local, já que em 1885, se
contavam 27 barcas e 15 redes56. Em S. Martinho, nesta data, conta-
vam-se 12 embarcações e 46 tripulantes57.

3.1 - Tipologia e vocabulário marítimo

Um dos problemas que mais afeta a análise da tipologia dos barcos


de pesca relaciona-se com o facto do léxico técnico variar ao longo da
costa de tal modo que frequentemente a um mesmo tipo de embarcação

de existente no Arquivo da Confraria de N.ª Sr.ª da Nazaré). [Nazaré, 1999]. 01.


https://www.academia.edu/38477043/Hist%C3%B3ria_administrativa
_do_Fundo_da_Santa_Casa_da_Miseric%C3%B3rdia_da_Pederneira_extra%C3%
ADdo_do_Invent%C3%A1rio_do_arquivo_da_entidade_existente_no_Arquivo_da
_Confraria_de_N_a_Sr_a_da_Nazar%C3%A9_ (consultado em 21 /06/ 2022).
52
Idem, 03.
53
Códice E-3-8 [Biblioteca Nacional de Lisboa], cit. por M.V. NATIVIDADE, op.
cit., 123.
54
Ibidem.
55
Ibidem, 122.
56
Fonte: Confraria da Misericórdia da Pederneira, cit. por Christine
ESCALLIER, L’Empreinte de La Mer, Identité des Pêcheurs de Nazaré – Portu-
gal, Thèse de Doctorat en Ethnologie, Vol.1, Université Paris X – Nanterre, 1995,
Tableau 6A, 69.
57
António Arthur Baldaque da SILVA, Estado Actual das Pescas em Portugal,
Lisboa, Imprensa Nacional, 1892, 126.

30
Barcos e artes de pesca nas costas da Nazaré e de S. Martinho, entre o século XVIII e 1930

são atribuídos termos diferentes consoante os portos. Este problema


assume ainda maior complexidade quando se aborda o assunto crono-
logicamente, já que para diferentes épocas se verificam alterações lexicais,
com especial relevância para a transição entre os séculos XIX e XX.
Este assunto foi abordado com certa profundidade por Christine
Escallier (1995)58, segundo a qual a origem dos vocábulos assenta na
interdependência do objeto (o barco) com três elementos relaciona-
dos com a prática da pesca: a técnica empregue (características técni-
cas do barco associadas ao equipamento pesqueiro utilizado); a de-
signação do território explorado; a finalidade (designação da espécie
piscícola explorada)59.
No que respeita a associação da embarcação com o equipamento
pesqueiro, os casos mais evidentes são: o do barco do candil e o candeio
(e correspondente rede); o barco de armação e a armação valenciana;
o barco (ou “neta”) da arte xávega (também designado barco de bico)
e a rede de arte xávega (“neta”). Também o termo traineira (barco
motorizado, destinado à pesca de arrasto) deriva de traina, rede de
arrasto utilizada na costa setentrional de Espanha60.
No que respeita a associação da embarcação com a zona de pes-
ca explorada, a situação talvez de maior evidência é a do barco da
carreira ou de mar e fora, que induz não só pesca no mar alto, como
também a sua utilização, em tempos idos, na navegação de cabotagem.
Quanto à associação da embarcação com a espécie piscícola ex-
plorada, conhecem-se vários casos como o barco de pesca carangue-
jo, o batel da lagosta, a lancha da pesca do robalo, ou “robaleira”.
Frequentemente, a designação dos barcos deriva também das suas
características técnicas. Assim, por exemplo o barco do candil apare-
ce registado administrativamente pelo vocábulo “chata”, termo aliás
utilizado numa área que ultrapassa em muito a da Nazaré. Da observa-

58
Christine ESCALLIER, L’Empreinte de La Mer, Identité des Pêcheurs de Nazaré
– Portugal, Thèse de Doctorat en Ethnologie, Vol.1, Université Paris X – Nanterre,
1995.
59
C. ESCALLIER, op. cit., 1995, 174.
60
António de MORAIS E SILVA, Novo Dicionário Compacto da Língua Portu-
guesa, 4.ª edição, Lisboa, Editorial Confluência, 1988.

31
José Manuel de Mascarenhas | António Valério Maduro

ção dos primeiros registos da capitania da Nazaré, verifica-se que


muitas designações das embarcações se relacionam com o modo como
se classificam hierarquicamente, em termos dimensionais. O termo
barco, muito genérico, relaciona-se com pequenas embarcações de
fundo chato que funcionavam sobretudo nas áreas lagunares; barca,
embarcação mais volumosa destinada à pesca local; batel, unidades
maiores que podiam ser já utilizadas ao largo; lancha, unidade peque-
na ou média, de aplicação administrativa muito mais genérica, desig-
nando embarcações muito heteróclitas, de fraca especificidade.
Apesar desta anarquia terminológica, foi possível estabelecer-se,
para a flotilha nazarena, desde os primeiros registos até aos anos seten-
ta, um léxico administrativo vernáculo, que permitiu à administração
central atuar no sentido duma simplificação do vocabulário marítimo61.

3.2 - Tipologia das embarcações nazarenas

Conhecem-se diferentes tipos de barcos de pesca na costa de S.


Martinho-Nazaré desde pelo menos a Idade Média, em que existem
referências à barca pescareza, à caravela de pesca e à pinaça, entre
outros tipos que navegavam ao longo da costa 62 .

Fig. 7 - Representação do que


poderá ter sido uma pequena
caravela de pesca (caravela
pescareza), inserida numa
gravura de Duarte d'Armas
(1509 a 1510).

C. ESCALLIER, 1995, 191.


61

Fernando Gomes PEDROSA, Os Homens dos Descobrimentos e da Expansão


62

Marítima. Pescadores, Marinheiros e Corsários, Cascais, Câmara Municipal


de Cascais, 2000; H. Quirino da Fonseca, A Caravela Portuguesa, I Parte, Lis-
boa, Ministério da Marinha, 1978, 33.

32
Barcos e artes de pesca nas costas da Nazaré e de S. Martinho, entre o século XVIII e 1930

Fig. 8 - Maqueta de barca pescareza. Museu da Marinha, MM.05157


(Fot. de José Manuel de Mascarenhas, 2017).

Mas este assunto, sem dúvida do maior interesse, não se enqua-


dra cronologicamente neste estudo, pelo que só se analisará a tipologia
das embarcações para o período século XVIII – Inícios século XX
(primeiras 3 décadas).

33
José Manuel de Mascarenhas | António Valério Maduro

Poucas referências há, literárias ou iconográficas, que permitam


uma caracterização da morfologia e dimensões das embarcações usa-
das ao longo do século XVIII e meados do século seguinte. Um dos
poucos documentos que nos elucida um pouco sobre este assunto é o
livro de João de Souza, Caderno de Todos os Barcos do Tejo Tanto
de Carga e Transporte como d’Pesca63 que contém algumas gravu-
ras de barcos não específicos do Tejo, que navegavam em várias áre-
as da costa atlântica. Destes, os que mais provavelmente tiveram algu-
ma relação morfológica com os barcos da Nazaré foram: o Saveiro
da Costa (vela de pendão; 1 mastro inc. para a popa) (Fig.9 ); o Batel
(vela latina; 1 mastro inc. para a proa) (Fig. 10 ); o Barco da Ericeira
(2 velas latinas; 2 mastros inc. para a proa) (Fig. 11 ); o Caíque (2
velas de bastarda; 2 mastros verticais) (Fig. 12 ); a Lancha do Alto (2
velas de carangueja; 1 mastro vertical e 1 mastro inc. para a popa)(Fig.
13) e o Iate (idem) (Fig. 14)64.

Fig. 9 - Saveiro da costa segundo João de Souza, fig. 20 A, 17855. (Autor: Ramalho S.)

63
Caderno de Todos os Barcos do Tejo Tanto de Carga e Transporte como
d’Pesca / por João de Souza, Lente d’Arquitectura Naval e Desenho da Compa-
nhia de Guardas Marinhas, Lisboa, Edição da Sociedade de José da Fonseca, ao
Arsenal, 1785. Reedição fac-similada da Câmara Municipal de Lisboa, 1983.
64
Octávio Lixa FILGUEIRAS, Introdução ao “Caderno de Todos os Barcos do
Tejo Tanto de Carga e Transporte como d’Pesca / por João de Souza, Lente d’
Arquitectura Naval e Desenho da Companhia de Guardas Marinhas”, Lisboa,
Academia da Marinha, 1985.

34
Barcos e artes de pesca nas costas da Nazaré e de S. Martinho, entre o século XVIII e 1930

Fig. 10 - Batel, segundo João de Souza, fig. 19, 17856.(Autor: Ramalho S.)

Fig. 11 - Barcos da Ericeira, segundo João de Souza, fig. 16, 17857. (Autor: Ramalho S.)

Fig. 12 - Caíque, segundo João de Souza, fig. 14, 17858. (Autor: Ramalho S.)

35
José Manuel de Mascarenhas | António Valério Maduro

Enquanto esta última embarcação se destinava sobretudo à navega-


ção de cabotagem, a Lancha do Alto, pelas suas características, parece
ter sido vocacionada para a pesca longínqua pelo que não deve ter tido
grande presença nas águas nazarenas. Quanto ao Caíque, embarcação
de pesca e de cabotagem, apresenta no Caderno uma feição diferente
da que ostentava em finais dos anos 50, época do seu desaparecimen-
to65. Se bem que originária do Algarve, a sua ocorrência nas pescarias
da Nazaré foi evidente, como atestam referências várias, sobretudo do

Fig. 13 - Lancha do Alto, segundo João de Souza, fig. 13, 17859. (Autor: Ramalho S.)

Fig. 14 - Iate Português, segundo João de Souza, fig. 1, 178510. (Autor: Ramalho S.)
65
O. L. FILGUEIRAS, op. cit., 1985, 27.

36
Barcos e artes de pesca nas costas da Nazaré e de S. Martinho, entre o século XVIII e 1930

século XIX. No que respeita o Saveiro da Costa e o Batel, aproxi-


mam-se já morfologicamente do batel de finais do século XIX – 1.ª
metade do século XX, o mesmo acontecendo com o Barco da Ericeira,
que deve ter frequentado a costa nazarena, à semelhança dos barcos de
Peniche e das lanchas poveiras, de que existem referências.
A descrição da tipologia dos barcos pode apresentar-se no qua-
dro das grandes áreas de pesca tradicionalmente consideradas pelos
pescadores:

3.2.1 - Pesca Marítima

- Pesca Local: desenrola-se, na enseada delimitada a norte pelo


promontório da Nazaré e a Sul pela foz do Alcoa, incluindo-se ainda a
pesca na praia e na baía de S. Martinho do Porto.
- Pesca Costeira: desenrola-se a curta distância de terra e ao
longo da costa, dentro dos limites administrativos da capitania.
- Pesca do Alto: desenrola-se numa área relativamente afastada
da costa (“alto mar”), mas dentro da plataforma continental.

3.2.2 - Pesca Fluvial e Lagunar

- Pesca nos rios Alcoa (Fig. 15), Alfeizerão e Tornada (Fig. 16) e
nas áreas lagunares residuais (Fig. 17), resultantes do assoreamento
progressivo dos antigos “mares” interiores da Pederneira e de Alfeizerão.

Fig. 15 - Rio Alcoa, nos arredores de Valado dos Frades. (Fot. de José Manuel de Mascarenhas, 2020)

37
José Manuel de Mascarenhas | António Valério Maduro

Fig. 16 - Confluência dos Rios de Alfeizerão e de Tornada, observada a partir de Salir do Porto.
(Fot. de José Manuel de Mascarenhas, 2020)

Fig. 17 - Lagoa do Paul da Tornada, uma das raras lagoas residuais do antigo "mar" de Alfeizerão.
(Fot. de José Manuel de Mascarenhas, 2020)

38
Barcos e artes de pesca nas costas da Nazaré e de S. Martinho, entre o século XVIII e 1930

No respeitante à Pesca Marítima, e tendo em vista uma melhor


perceção do enquadramento dos tipos de embarcações com as zonas
atrás referidas, com os equipamentos de captura e com a direção das
deslocações predominantes, apresentam-se, de modo conciso, tais
relações através do Quadro 166 .

3.3 - Caracterização sinóptica dos diferentes tipos


de barcos de pesca nazarenos

A construção naval na Nazaré foi não só influenciada por caracte-


rísticas próprias da costa atlântica, mas também por influências exógenas
que, ao longo do tempo, foram motivando adaptações técnicas67. A
ausência de porto, obrigando as embarcações a varar na praia, foi
levada em conta na sua morfologia, e respetiva evolução. Em vários
tipos de embarcações, as proas elevadas facilitavam o romper das
vagas, sobretudo na zona da rebentação, e os fundos chatos, que se
prolongavam pela popa, permitiam que os barcos deslizassem facil-
mente pela areia ao serem postos a seco (ou vice-versa)68.
Em finais do século XIX, a zona da Nazaré assumiu uma impor-
tância particular no domínio das pescas, com o aparecimento de apa-
relhos permanentes (armações fixas de pesca) e com as artes do
galeão69, o que levou a que barcos de várias estirpes e origens, a par
dos barcos nazarenos, estivessem presentes nas suas praias. No que
respeita estes últimos, segundo Octávio L. Filgueiras, é na zona da
Nazaré que se vai encontrar o “núcleo principal dos barcos de popa
larga resultante do prolongamento, em curva, do fundo chato”70, bar-
cos que aquele autor integra na classificação genérica de “canoas de

66
Quadro elaborado com base em C. ESCALLIER, op. cit., 1995, Tableau 9 (mo-
dificado).
67
C. ESCALLIER (op. cit., 1995, 201).
68
Idem, 202.
69
António Arthur Baldaque da SILVA, Estado Actual das Pescas em Portugal,
Lisboa, Imprensa Nacional, 1892, 123.
70
O.L. FILGUEIRAS, Barcos de Pesca de Portugal, Centro de Estudos de Car-
tografia Antiga, Coimbra, Junta de Investigações Científicas do Ultramar, 1981a.

39
José Manuel de Mascarenhas | António Valério Maduro

tábuas”, com afinidades tipológicas com embarcações da Me-


sopotâmia71.
De um modo conciso, pode-se apresentar uma classificação da
tipologia dos barcos nazarenos, relacionando-a com as zonas de pes-
ca e os equipamentos de captura associados, através do Quadro 272.

3.3.1 - Barcos vocacionados para a pesca marítima:


Pesca do Alto

Um dos tipos de barcos da Nazaré que terá estado mais em voga


durante o século XIX e, muito provavelmente, em centúrias anteriores,
é evidenciado no Barco da Carreira, ou de Mar e Fora, também
designado por Catraio, que se enquadra nesta família tipológica.
Pouco se conhece sobre as suas características técnicas, já que a
única documentação disponível se apoia num modelo do Museu da
Marinha de Lisboa, elaborado por Manuel Gomes Loureiro, em 189773
(Fig. 18). Foi com base neste modelo que Luís A. Marques, sob ori-
entação de Octávio L. Filgueiras, procedeu à elaboração de plantas
deste veleiro74. De fundo chato e com proa, bastante elevada, este
apresentava um bico reforçado com cobre (Fig. 19). Na popa, de
painel, fixava-se o leme de cadaste (Fig. 20). Dispunha de quatro re-
mos e de duas velas latinas, apresentando dois mastros inclinados: o de
vante no sentido da proa, e o outro no da popa. Tais mastros, providos
de teques, passavam de aberturas na coberta (“enoras”) e emechavam-
se em peças madeira (“carlingas”) fixas sobre as tábuas do fundo do
casco (Fig. 21). Dispunha de uma bancada (“paneiro”) à proa e de outra
à ré, tendo esta uma escotilha. Em tábuas superiores do forro exterior da

71
O. L. FILGUEIRAS, Os barcos da Nazaré no panorama da nossa Arqueolo-
gia Naval, Lisboa, Centro de Estudos da Marinha, 1981b.
72
Quadro elaborado com base em C. ESCALLIER, op. cit., 1995, Tableau 11,
modificado pelos autores.
73
Este modelo esteve antes em exposição no Aqueduto Vasco da Gama
(FILGUEIRAS, 1981a, 11).
74
O. L. FILGUEIRAS, Os barcos da Nazaré no panorama da nossa Arqueolo-
gia Naval, Lisboa, Centro de Estudos da Marinha, 1981b, Fig.7.

40
Barcos e artes de pesca nas costas da Nazaré e de S. Martinho, entre o século XVIII e 1930

embarcação (“tábuas de falca”) existiam quatro cavilhas de madeira


(“malaquetas”) localizadas respetivamente a bombordo e estibordo, à
vante e à ré, e que se destinavam às manobras de amarração.

Fig. 18 - Maqueta
de Barco da
Carreira, ou de
Mar e Fora,
também
designado por
Catraio, elaborado
por Manuel
Gomes Loureiro,
em 1897, Museu
da Marinha,
MM.00026. (Fot.
de José Manuel
de Mascarenhas,
2022)

Fig. 19 - Maqueta
de Barco da
Carreira, ou de
Mar e Fora.
Aspeto da proa,
Museu da
Marinha,
MM.00026. (Fot.
de José Manuel
de Mascarenhas,
2022)

41
José Manuel de Mascarenhas | António Valério Maduro

Fig. 20 - Maqueta de Barco da


Carreira, ou de Mar e Fora.
Aspeto da popa e do leme, Museu
da Marinha, MM.00026. (Fot. de
José Manuel de Mascarenhas,
2022)

Fig. 21 - Maqueta de Barco da


Carreira, ou de Mar e Fora.
Aspeto de "carlinga" aonde se
emecha um mastro, Museu da
Marinha, MM.00026. (Fot. de
José Manuel de Mascarenhas,
2022)

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Barcos e artes de pesca nas costas da Nazaré e de S. Martinho, entre o século XVIII e 1930

Na construção destes barcos, tal como noutros tipos de “canoas


de tábuas”, como os barcos de bico (netas) e outros aparentados, e os
“meias-luas” da arte xávega, assiste-se a um fenómeno de hibridismo
tecnológico entre método “cavernas-primeiro” e o método “concha-
-primeiro”75 que se infere da ordem de montagem do casco76:
1.º Tábua central do fundo (tábua da armar).
2.º Cepo de proa; e cepo de ré (o remate horizontal da popa).
3.º Acavernar (cavernar).
4.º Tábuas de boca (ou de armar).
5.º Acabamento das bordas e colocação das bancadas.
6.º Chaleira de proa, bico e malaquetas.
7.º Tábuas de alefrizes (i.e. as periféricas, do fundo).
8.º Remate do fundo.
9.º Remate dos costados.

Esta embarcação, pintada em geral de preto, destinava-se à pes-


ca do alto, com aparelhos de anzol, e era tripulada por seis a oito
homens. Tendo sido considerada pouco segura, foi proibida de nave-
gar em 189777, havendo sido substituída pelo batel do peixe grosso78,
também denominado pelos pescadores por batel de mar e fora, de-
vido à sua pesca ser distante de terra79.
O Batel do Alto, como o próprio nome sugere, dedicava-se à
pesca do alto com aparelhos de anzóis e várias redes, pescando goraz,

75
P. POMEY, Y. KAHANOV & E. RIETH, Transition from Shell to Skeleton in
Ancient Mediterranean Ship Construction: analysis, problems, and future
research, in International Journal of Nautical Archaeology, 41(2), 2012, 235-314.
76
O.L. FILGUEIRAS, op. cit., 1981b,21,22.
77
Entre 1893 e 1897, data em que foi criada a Capitania da Nazaré, não se encon-
tra qualquer traço da sua existência nos registos dos arquivos, de que se tem
conhecimento. Na memória coletiva dos pescadores, a principal razão do seu
desaparecimento deveu-se às dificuldades que havia em manobrá-la, no mo-
mento de passagem da zona de rebentação (C. ESCALLIER, op. cit., 1995, 202).
No entanto, em 1885 e 1886, ainda se encontravam operacionais, como refere A.
A. Baldaque da SILVA, op. cit., 1892, 125.
78
C. ESCALLIER, op. cit., 1995,126.
79
O.L. FILGUEIRAS, op. cit., 1981b, 11.

43
José Manuel de Mascarenhas | António Valério Maduro

pescada, safio, cherne, entre outros. Esta embarcação, já aparece


documentalmente referida em 1893, e desde 1894 que se sabe ter
sido utilizada em armações e como meio de transporte de homens e
pescado entre os barcos fundeados na enseada e a praia80. Caracteri-
zava-se pelo casco de forma alongada, com pouca quilha, boca aber-
ta, proa arredondada e popa elíptica, leme exterior e dois verdugos
em cada costado destinados a reforçar o tabuado. Consoante a sua
importância, dispunha de um ou dois mastros, providos de teques, que
possuíam tamanhos e inclinações diferentes e que emechavam em
carlingas. Armava uma ou duas velas latinas e podia também ser
propulsionado a remos (3 de cada lado). Dispunha de duas pavimen-

Fig. 22 - Maqueta
do Batel "Gazella",
exemplo de Batel
do Alto que, como
o próprio nome
indicia, dedicava-
se à pesca do alto
com aparelhos de
anzóis e várias
redes. Armava
velas latinas nos
dois mastros que
possuíam
tamanhos e
inclinações
diferentes. Museu
da Marinha,
MM.05420. (Fot.
de José Manuel de
Mascarenhas,
2022)

80
C. ESCALLIER, op. cit., 1995, 202.

44
Barcos e artes de pesca nas costas da Nazaré e de S. Martinho, entre o século XVIII e 1930

tações de paneiros, uma à vante e outra à ré. Media cerca de 9,50


metros de comprimento e 2,90 metros de boca.
Exemplos deste tipo de embarcações, podem ser observados atra-
vés de modelos vários, como o do Batel Gazella, representado no
Museu da Marinha (Fig. 21; Fig. 22) e o do Batel Flor do Bom Tem-
po representado no Museu Dr. Joaquim Manso (Nazaré). Existe a
indicação de que, em 1903, terá operado uma “lancha” de vela de 16
toneladas de arqueação, sem que, todavia, se saiba se terá sido utiliza-
da para a pesca no alto mar, ou para apoio à pesca com arte de galeão81.

Fig. 23 -
Maqueta do
Batel "Gazella":
detalhe da popa
e do leme.
Museu da
Marinha,
MM.05420.
(Fot. de José
Manuel de
Mascarenhas,
2022)

Mapa do Pessoal e Aparelhos de Pesca Empregados na Praia da Nazaré, de


81

Adolpho Loureiro, cit. por M.V. NATIVIDADE, op. cit., 1960, 123.

45
José Manuel de Mascarenhas | António Valério Maduro

Bote do Alto (a motor), na sua forma mais primitiva, era uma


embarcação, em geral, de forma alongada, com hélice protegida e leme
exterior, o que permitia içar o barco na areia ou puxar a rede pela
popa sem riscos de maior82. Na ponte podiam-se observar dois mas-
tros verticais, e uma escotilha para acesso ao porão do peixe. Na
primeira geração motorizada o barco era propulsionado através de
uma máquina a vapor, podendo também se necessário utilizar uma ou
duas velas latinas. As pequenas unidades estavam vocacionadas para
a pesca ao anzol (linhas
e palangres), nas áreas
costeiras, e as grandes
para a pesca em alto mar
com palangres de gran-
des dimensões e redes de
emalhar de deriva 83 .
Poucas diferenças exis-
tiam entre este tipo de
bote e os primitivos ga-
leões motorizados e trai-
neiras84 (Fig. 24).

Fig. 24 - Embarcação
propulsionada por motor a vapor,
segundo A. A. Baldaque da Silva,
1892, 384v. (Autor: J. Almeida)

82
C. ESCALLIER, op. cit., 1995,128. Numa 2.ª geração destes botes a vapor, o
leme já passou a localizar-se interiormente.
83
Idem, 128-130.
84
Para mais informações, ver subcapítulo Embarcações motorizadas.

46
Barcos e artes de pesca nas costas da Nazaré e de S. Martinho, entre o século XVIII e 1930

Numerosas embarcações de outros portos da costa portuguesa,


procuraram abrigo nos portos dos Coutos de Alcobaça, como a Pe-
derneira e Alfeizerão e, mais tardiamente na praia da Nazaré e em S.
Martinho do Porto. Um desses barcos de que existem referências, é a
Lancha Poveira do Alto que além da Nazaré visitava regularmente
outros portos da área central da costa oeste85. A de maiores dimen-
sões dispunha de dois mastros inclinados para a popa e com vergas
que lhes eram perpendiculares, as quais “ter-se-iam tornado horizon-
tais e repicado depois, enquanto os mastros diminuiriam o seu caimen-
to”86 (Fig. 25). A variante mais comum era, todavia, a de um único
mastro, inclinado para a proa, podendo o casco apresentar dimensões
variáveis87. Este, de construção segundo o método “cavernas-primei-
ro”88, era de quilha com duas proas, mais ou menos pontiagudas, com
cavername pouco espaçado e tabuado liso, podendo apresentar dois
tipos de lemes: um que ia até à quilha e que permitia a navegação em
águas pouco profundas; outro, indo além da quilha, contribuía para a
estabilidade do barco, ao navegar ao largo, à vela89. A lancha era
propulsionada por uma grande vela considerada de pendão por al-
guns, mas que era antes um bastardo quadrangular de testa alta, deri-
vado do pendão90, dispondo ainda de 4 a 5 remos por banda (Fig.
26). Era muito utilizada para a pesca da pescada, usando-se para tal
fim redes de emalhar de fundo (as volantas), e para a pesca da sardi-
nha, com redes de emalhar de superfície (as sardinheiras)91.

85
A. T. PIRES, Caravela dos Descobrimentos-II, Lisboa, Academia da Marinha,
1988, 19.
86
Ibidem.
87
Os comprimentos podiam ir de 4 a 14 m.
88
O.L. FILGUEIRAS, Os barcos da Nazaré no panorama da nossa Arqueologia
Naval, Lisboa, Centro de Estudos da Marinha, 1981b, 11. Neste método o casco
é construído a partir do esqueleto, o qual é posteriormente recoberto pelo tabua-
do; no método “concha-primeiro”, só depois de montado o casco, é que se
assenta a ossatura.
89
A. T. PIRES, op. cit., 1988, 17-19.
90
Ibidem.
91
O.L. FILGUEIRAS, op. cit., 1981b, 12.

47
José Manuel de Mascarenhas | António Valério Maduro

Fig. 25 -
Maqueta de
Lancha
Poveira,
Museu da
Marinha.
(Fot. de José
Manuel de
Mascarenhas,
2022)

Fig. 26 -
Lancha
Poveira "Fé
em Deus",
no Parque
das Nações,
após ter
participado
numa
exibição
náutica,
durante a
EXPO 98.
(Fot. de José
Manuel de
Mascarenhas,
1998)

48
Barcos e artes de pesca nas costas da Nazaré e de S. Martinho, entre o século XVIII e 1930

É muito provável que outras embarcações da área central da costa


oeste, vocacionadas para pesca do alto, como a barca da pescada de
Buarcos (Fig. 27), o barco da sacada de Peniche e, sobretudo, os
caíques, como o de Peniche (Fig. 28), e canoas de convés corrido (bailéu),
tivessem frequentemente marcado presença no porto da Nazaré.

Fig. 27 - Barca da Pescada de


Buarcos, segundo A. A.
Baldaque da Silva, 1892, 377.
(Autor: J. Almeida)

Fig. 28 - Caíque de Peniche,


segundo A. A. Baldaque da Silva,
1892, 378. (Autor: J. Almeida)

49
José Manuel de Mascarenhas | António Valério Maduro

A Rasca foi outro tipo de embarcação de pesca do alto, antiga-


mente muito utilizada, mas desaparecida nos anos 70 do século XIX92.
Se bem que haja referências da sua existência nos portos da Ericeira,
Vieira e Figueira da Foz93, deve, muito provavelmente, ter frequentado
a Nazaré e S. Martinho do Porto. Era uma embarcação “segura e
veleira, que teve um grande reinado no periodo de maior prosperidade
das pescarias nacionaes, mas que foi pouco a pouco acabando, se-
guindo a par da decadencia d’esta industria, transformando-se por
ultimo em embarcação de carga para a navegação de cabotagem” (Fig.
29). Apresentava “borda alta, poupa redonda e prôa arrufada; com
convés corrido de vante a ré; cingida em volta do costado por um
espesso cinto, ...; casco maior do que o dos modernos cahiques, e
apparelhada com quatro vélas latinas triangulares: traquete, véla gran-
de, véla de proa e catita, exigindo uma tripulação numerosa para a
manobra d’estas vélas. O mastro de traquete acunhava o pé quasi a
meio do navio, e pendia para vante
uns 25°; o de ré, situado a meia dis-
tância entre o de traquete e a pou-
pa, era menor e vertical; lançava pela
prôa fóra um pau para amurar a véla
de prôa; e tinha a ré encostado á
amurada um pequeno mastro, para
içar a verga da catita, que caçava
no laes de um pau deitado pela pou-
pa, servindo de retranca”94.

Fig. 29 - Rasca, segundo A. A.


Baldaque da Silva, 1892, 380v.
(Autores: J. Almeida e D. Netto)

92
A. A. Baldaque da SILVA, op. cit., 1892, 379.
93
Ibidem.
94
Idem, 380.

50

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