Você está na página 1de 50

Barcos e artes de pesca nas costas da Nazaré e de S.

Martinho, entre o século XVIII e 1930

3.3.2 - Barcos vocacionados para a pesca marítima:


Pesca Costeira

Galeão da Nazaré
Os barcos tipo galeão foram introduzidos em Portugal, a partir
de Espanha, em 189895, e utilizavam-se na arte da rede de cerco (cer-
co americano)96 – arte que se extinguiu por volta de 1930. Um arma-
dor de fora da Nazaré trouxe, de Vila Real de Santo António, o pri-
meiro galeão. As grandes redes de cerco são então instaladas por
grandes embarcações a remos que os pescadores autóctones, durante
uma trintena de anos, vão manobrar97.
De forma alongada, tratava-se de uma grande e larga embarcação
(comprimento entre 9 e 17 m e largura da ordem dos 4 m), caracteri-
zava-se ainda por possuir quilha e costados reforçados com cintas,
proa ogival e popa arredondada, sendo capaz de suportar até 9 tone-
ladas de arqueação bruta (Fig. 30). Tinha leme por fora, de forma
alongada, e a ponte do convés contava com duas a três escotilhas para
acesso aos compartimentos inferiores, os porões do peixe. A propul-
são era garantida por uma vela bastarda içada em mastro ligeiramente
inclinado para vante; quando não havia vento e também no lançar das
redes, era propulsionada a remos (três a sete por banda), se bem que
ao navegar em círculo (no sentido dos ponteiros do relógio) apenas se
utilizava um remo a estibordo – o remo do castelo, e os restantes a
bombordo98 (Fig. 31 e Fig. 32). Dispunha de uma companha grande

95
José MATIAS, Nazaré – Cronologia dos Factos Mais Importantes (publica-
do em Abril 1, 2014; consultado em 23 de Maio de 2022). https://www.
josematias.pt/eletr/biografia_de_ze_da_palacida2/ Segundo este autor, o pri-
meiro galeão da Nazaré pertenceu a António Raposo.
96
Segundo C. ESCALLIER (op. cit., 1995, 203 e Quadro 9), conhece-se a inscri-
ção de um barco tipo galeão com data de 16 de agosto de 1901, não se podendo,
todavia, afirmar tratar-se da primeira inscrição de um destes barcos, devido à
impossibilidade de consulta de arquivos anteriores a 1893. Naquele mesmo ano,
quatro outros barcos galeão e quatro auxiliares (batel e barco) foram inscritos.
97
C. ESCALLIER, op. cit., 1995, 203.
98
Idem, 114.

51
José Manuel de Mascarenhas | António Valério Maduro

(cerca de 20 homens), e era auxiliado por 5 a 6 barcas associadas99,


as vigias. Geralmente ficava nas Boias, não vindo a terra100.

Fig. 30 - Galeão da Nazaré11. (Postal, Typ. Borges - Nazareth)

Fig. 31 - Galeão que se


utilizava na arte do
cerco americano,
segundo A. A.
Baldaque da Silva,
1892, 386.
(Autor: J. Almeida)

99
J. MATIAS, op. cit., 2014.
100
O grande volume destes barcos obrigava os pescadores a amarrá-los na
enseada durante a estação piscatória, evitando assim o risco de encalhe (C.
ESCALLIER, op. cit., 1995, 203).

52
Barcos e artes de pesca nas costas da Nazaré e de S. Martinho, entre o século XVIII e 1930

Fig. 32 - Maqueta de
Lancha ou Galeão,
Museu da Marinha,
MM.05375. (Fot. de
José Manuel de
Mascarenhas, 2022)

Fig. 33 - Buque,
segundo A. A.
Baldaque da Silva,
1892, 388.
(Autor: J. Almeida)

53
José Manuel de Mascarenhas | António Valério Maduro

As embarcações auxiliares podiam ser de vários tipos (galeonetes,


buques e canoas), desempenhando cada uma um papel diferente na
manobra do lançamento da rede de galeão101 (Fig. 33). O número de
galeões vai pouco a pouco desenvolver-se até atingir o auge entre a
Primeira e a Segunda Guerra Mundial. Conta-se então nos melhores
anos, até 16 galeões na enseada102. No Quadro 3 pode observar-se a
tipologia das embarcações ao serviço da arte do cerco americano,
registados na Nazaré.
Por volta da década de 1920, estas embarcações foram sendo
gradualmente substituídas por congéneres a vapor, cuja morfologia se
aproximava muito da das traineiras103 (Fig. 34)104.

Fig. 34 - Maqueta de um dos


primitivos modelos de embarcação
propulsionada com motor a vapor,
utilizados em Portugal. Museu
Marítimo "Almirante Ramalho
Ortigão" (MMARO.00019), Faro.
(Fot. de José Manuel de
Mascarenhas, 2022).
101
A. A. Baldaque da SILVA, op. cit., 1892, 386.
102
C. ESCALLIER, op. cit., 1995, 203.
103
Ver capítulo Embarcações Motorizadas.
104
Segundo C. ESCALLIER (op. cit., 1995, 204), em 1931, o Gladiador, última
embarcação deste tipo a ser registada com determinada finalidade, foi motoriza-
do (com motor de explosão a gasolina), supondo-se que tenha passado a funcio-
nar como uma traineira, i. e. que tenha sido adaptado para pescar com uma
traina (rede de cerco).

54
Barcos e artes de pesca nas costas da Nazaré e de S. Martinho, entre o século XVIII e 1930

Batel Lagosteiro de S. Martinho do Porto


Embarcação de boca aberta, fundo chato e popa de painel (direi-
ta), propulsionada por uma vela bastarda, ou por seis remos (três em
cada lado do casco), dedicava-se sobretudo à pesca da lagosta nos
meses de janeiro a setembro; de outubro a dezembro, meses do defeso
da lagosta, pescavam solha com o “espinel” (aparelho de muitos an-
zóis) e por vezes também pescavam ao alto, com outros aparelhos de
anzóis (Fig. 35).

Fig. 35 - Batel
lagosteiro de S.
Matinho do Porto,
Museu da Marinha,
MM.05421 (Fot. de
José Manuel de
Mascarenhas, 2022).

3.3.3 - Embarcações motorizadas

Data de 1887 a 1888 a introdução nas nossas águas de barcos de


pesca propulsionados por motores a vapor, que eram sobretudo em-
pregados em alar a reboque as redes de arrastar pelo fundo105, tendo
105
Ministério da Marinha e Ultramar. Collecção de Leis e Disposições Diversas
com Relação à Pesca e Serviço Marítimo dos Portos no Continente do Reino e
Ilhas Adjacentes e no Ultramar. Anno de 1896 a 1905, Lisboa, Imprensa Nacio-
nal, 1907, 28 [Arquivo Histórico da Marinha].

55
José Manuel de Mascarenhas | António Valério Maduro

havido uma prévia tentativa, de pouca duração. Estas embarcações


não diferiam muito das de reboque movidas a vapor que se usavam na
marinha mercante, excetuando as condições internas apropriadas à
manobra da rede, e ao uso da energia do vapor para deitar e suspen-
der o aparelho de pesca106 (Fig. 34; Fig. 36; Fig. 37). Eram, em geral,
“vapores de helice, com 400 metros cúbicos de arqueação, tripolados
por 11 homens, dos quais 3 da machina, com valor medio de
27.000$000 réis, rebocando as redes de arrastar, denominadas
chalut”107. No mapa de pessoal e aparelhos de pesca utilizados na
Nazaré, no ano de 1903, consta um vapor de 75 toneladas108 que,
com toda a probabilidade, corresponde ao referido no Despacho da
Direção Geral da Marinha, de 9 de Julho de 1903 que defere o reque-
rimento em que António Marques dos Santos e António Joaquim
Fernandes pediam para exercer a indústria de pesca no alto mar, na
costa da Nazaré, em barcos, de linha e espinel e com cercos america-
nos, servindo-se de vapores unicamente para reboque e condução de
pequenas embarcações e não fazendo tais vapores uso de redes de
qualquer natureza109. Não se conhece a tipologia deste barco, sendo
provável que já se aproximasse dos modelos de galeão a vapor que,
com frequência crescente começaram a marcar presença em vários
portos pesqueiros (como Portimão, Matosinhos, etc.).

106
A. A. Baldaque da SILVA, op. cit., 1892, 384.
107
Pesca. Segunda Circunscripção, Costa Occidental do Sul, Comprehendendo
os Districtos Administrativos de Leiria, Lisboa, Beja, e uma pequena parte do
de Faro, 295 [Arquivo Histórico da Marinha, 254]. As referidas redes de arrastar,
de invento estrangeiro, também eram designadas por trawls e, mesmo aperfeiço-
adas, os seus efeitos eram considerados destruidores.
108
Adolpho LOUREIRO, Os Portos Marítimos de Portugal e Ilhas Adjacentes,
Vol II, Lisboa, Imprensa Nacional,1904, 239, 275.
109
P. I. Rio CARVALHO, Informação de 09 de julho de 1903, Ministério da
Marinha e Ultramar, Collecção de Leis e Disposições Diversas com Relação à
Pesca e Serviço Marítimo dos Portos, Lisboa, Imprensa Nacional, 1907, 524
[Arquivo Histórico da Marinha].

56
Barcos e artes de pesca nas costas da Nazaré e de S. Martinho, entre o século XVIII e 1930

Fig. 36 - Maqueta do galeão a vapor Novo Oceano (construído em Lisboa, em 1925). Museu da
Marinha, MO-I-90. (Fot. de José Manuel de Mascarenhas, 2022)

Fig. 37 - Pormenor da maqueta do galeão a vapor Novo Oceano, mostrando um guincho destinado
a facilitar as manobras com a rede de pesca. Museu da Marinha, MO-I-90.
(Fot. de José Manuel de Mascarenhas, 2022)

57
José Manuel de Mascarenhas | António Valério Maduro

Fig. 38 - Galeão a vapor Cerco Portugal 5 (1918), em plena atividade pesqueira, Museu de
Portimão, MP-D8-7B. (Fot. de Júlio Bernardo)

O mesmo acontece no que se refere ao galeão a vapor, que deu


apoio, na Nazaré, aos cercos americanos, em 1914110. No que res-
peita estes galeões a vapor utilizados para a arte do cerco, já efetivos
desde finais do século XIX111,existe documentação disponível nos ar-
quivos do Museu da Marinha e em arquivos de firmas conserveiras,
como o da firma Júdice Fialho, disponível no Museu de Portimão112
(Fig. 39). Observou-se nestas embarcações, sobretudo ao longo do

110
Portugal – Ministério da Marinha, Estatística das Pescas Marítimas no con-
tinente e ilhas adjacentes no ano de 1914, Comparada com a dos cinco anos
de 1910 a 1914 e coordenada pela Comissão Nacional das Pescarias, Lisboa,
Imprensa Nacional, 1916, 156-157 [Arquivo Histórico da Marinha]. Tudo leva a
crer ser esta embarcação, a referida por C. ESCALLIER (op. cit, 1995, 212) como
tendo sido importada de Vigo, em 1914.
111
Como, por exemplo, o galeão Cerco Portugal 1.º, da firma Júdice Fialho
(Portimão), que iniciou a sua atividade em 1899 (ver nota seguinte).
112
Ana Rita FARIA, A organização contabilística numa empresa da indústria
de Conservas de Peixe entre o final do Século XIX e a primeira metade do
Século XX. O Caso Júdice Fialho, Dissertação de Mestrado em Ciências
Económicas e Empresariais, Faro, Universidade do Algarve, janeiro de 2001.

58
Barcos e artes de pesca nas costas da Nazaré e de S. Martinho, entre o século XVIII e 1930

1.º quarto do século XX, uma evolução tecnológica dos barcos, em


particular no que respeita os motores a vapor113 (Fig. 40).

Fig. 39 - Planta do galeão a vapor Cerco Portugal 9 (1927), da firma Júdice Fialho
(Portimão), Museu de Portimão, AD1(MP-AD1-16). (Litografia de Humberto Martins)

Fig. 40 - Pormenor do
motor a vapor do
galeão Cerco Portugal
6 (1920), da firma
Júdice Fialho
(Portimão), Museu de
Portimão, MP-AD7-
419. (Fot. de José
Manuel de
Mascarenhas, 2022)
113
Podem-se considerar duas gerações de motores a vapor (antes da expansão
da turbina): motores a vapor da 1.ª geração: motores a vapor simples (um único
cilindro/pistão) e compostos (2 cilindros/pistões); motores a vapor da 2.ª gera-
ção: motores a vapor de expansão tripla (3 cilindros/pistões) e motores a vapor
de expansão quádrupla (4 cilindros/pistões).

59
José Manuel de Mascarenhas | António Valério Maduro

Mas nem só o vapor foi utilizado como fonte energética no primei-


ro decénio do século XX. Em 1908, assistiu-se ao aparecimento, na
Nazaré, da primeira embarcação a motor funcionando a petróleo, que
foi adquirida por Cândido Rodrigues, sem que, todavia, tivesse havido
continuidade na construção de outros barcos semelhantes114.

A Traineira
Se bem que o termo traineira, signifique um “barco a vapor para a
pesca do arrasto”115, pode definir-se, mais especificamente, como uma
embarcação vocacionada para a pesca de cerco, através do uso de
trainas (redes de cerco destinadas, sobretudo, à pesca da sardinha)116.
A traina (ou traineira) é uma variedade de cerco americano que, em
comparação com a rede do galeão, apresenta a particularidade de
“franzir pela tralha inferior, no momento de copejar”117. A traineira,
utiliza assim o mesmo tipo de engenho de captura, mas com dimensões
intermédias, entre a rede candil e a rede galeão, explorando fundos já
fora da enseada e havendo permitido retomar a pesca costeira à sardi-
nha, que havia sido abandonada pelos galeões 118.
A traineira foi introduzida em Portugal (Peniche) há cerca de um
século (1913), tendo sido o primeiro exemplar adquirido em Vigo119.
Octávio L. Filgueiras refere, todavia, que a mais antiga traineira a va-
por, de matrícula nacional, de que existe documentação no Museu da
Marinha, em Lisboa, foi a S.S. Germano 3.º, cujos planos datam de
27/02/1912120. Por outro lado, há notícia de que primeira traineira
114
J. MATIAS, op. cit., 2014.
115
A. de MORAIS e SILVA, Novo Dicionário Compacto da Língua Portuguesa,
Mem Martins, Ed. Confluência, 4.ª edição, 1988, 333.
116
PORTO EDITORA – traina no Dicionário Infopédia da Língua Portuguesa
[em linha]. Porto: Porto Editora. [consulta em 2022-05-26 14:07:24]. Disponível
em https://www.infopedia.pt/dicionarios/lingua-portuguesa/traina.
117
F. G. PEDROSA, A evolução das artes de pesca em Portugal, Anais do Clube
Militar Naval, vol. CXV, abr.-jun. 1985, 308,309.
118
C. ESCALLIER, op. cit., 1995, 204.
119
MESTRE DO MAR, 2021.
https://mestredomar.com/almanaque-do-oceano/almanaque-traineiras/ [consul-
tado em 26 de maio de 2022]
120
O.L. FILGUEIRAS, Traineiras da Costa Portuguesa, Lisboa, CTT Correios

60
Barcos e artes de pesca nas costas da Nazaré e de S. Martinho, entre o século XVIII e 1930

com motor de explosão121, data de 1914, encontrando-se em Peniche


e tendo sido pertença de Manuel Farto122. Este tipo de embarcação
rebocava, em geral, um pequeno barco a remos, a chalandra, desti-
nada a apoio durante as operações de pesca com a traina123. Em
virtude das semelhanças morfológicas entre galeões (motorizados) e
traineiras, de realçar que existe desde há muito uma confusão entre
estes dois tipos, alimentada em grande parte pelo Decreto 18023 de
01/03/1930, que definia traineiras como “embarcações de pesca, uti-
lizando redes de cerco e com menos de 20 tripulantes; com uma tripu-
lação maior, classificava-as como galeões ou cercos”124. Quanto à clas-
sificação das traineiras, o Grémio dos Armadores da Pesca da Sar-
dinha, considerava-as “grandes” ou “pequenas”, conforme a respetiva
arqueação fosse superior ou inferior a 20 toneladas125. Por outro lado,
a costa portuguesa pode ser dividida em três sectores, consoante as
características e dimensões de tais embarcações: Zona Norte – domí-
nio das traineiras grandes; Zona Centro – domínio das traineiras pe-
quenas; Zona Sul – zona dos cercos americanos126 (Fig. 41). É de
notar que mesmo a traineira grande empregava, relativamente ao cer-
co americano, uma rede menor, menos homens e era mais indepen-
dente127.
Mas a traineira não era necessariamente sempre motorizada. Sabe-
se da existência de traineiras à vela, pelo menos nos portos de Peniche128
(Fig.42) e da Nazaré.

de Portugal, S.A., 1994, 35.


121
Motor a gasolina, com 15 HP.
122
José Manuel ROMÃO in Ana Maria LOPES, Modelo de traineira do MMI.
http://marintimidades.blogspot.com/ [publicado em 18 / 02 / 2009; consultado
em 30 / 05 / 2022]
123
MESTRE DO MAR, op. cit., 2021.
124
O.L. FILGUEIRAS, op. cit., 1994, 35.
125
Idem, 36.
126
Salviano CRUZ, A economia das pescas em Portugal, Revista de Pesquisas
Económico-Sociais, Vol IV, 1-6, 1955-1958.
127
O.L. FILGUEIRAS, op. cit., 1994, 43.
128
Em 1910, uns galegos terão levado para Peniche uma traina com traineira a
remos (F.G. PEDROSA, op. cit., 1985, 309).

61
José Manuel de Mascarenhas | António Valério Maduro

Fig. 41 - Traineira propulsionada com motor a combustão (anos 40?). Postal (sem identificação de
autor e de editor)12.

Fig. 42 - Maqueta de traineira à vela (e a remos), de Peniche, Museu da Marinha, MO-I-25 (Fot. de
José Manuel de Mascarenhas, 2022).

62
Barcos e artes de pesca nas costas da Nazaré e de S. Martinho, entre o século XVIII e 1930

Relativamente a este último porto, teve-se conhecimento do con-


trato celebrado na Praia da Nazaré, em 28 de março de 1914, para a
construção de uma traineira de dois mastros, estabelecido entre José
Maria Vitorino da Rosa, calafate da Praia da Nazaré, com António
dos Santos, de Peniche: “Que pela presente escritura se obriga a cons-
truir para o segundo outorgante, António dos Santos, uma embarca-
ção traineira, systema hespanhol, nas seguintes condições: Primeira –
Que a referida embarcação terá as seguintes dimensões: de quilha,
onze metros e sessenta centimetros; de boca, dois metros e oitenta
centimetros e de pontal, um metro e treze centimetros; segunda – que
se obriga a subministrar os materiaes necessarios, todos de boa quali-
dade, sendo as madeiras a aplicar das seguintes especies: para a qui-
lha, madeira de sobreiro; para o cavername e braços, madeira de pi-
nheiro manço e taboado, inteiriças, de pinheiro bravo, fornecendo
tambem dois mastros e duas vergas desta especie de madeira; terceira
– que esta embarcação será entregue em branco, isto é, sem pintura
mas calafetada; quarta – que se obriga a ter esta embarcação construida,
nas condições expostas, em trinta e um de Agosto do corrente ano,
sob pena de lhe ser diminuida em cinquenta escudos a ultima presta-
ção que houver de receber e que como abaixo será estipulado haode
ser de cento e setenta escudos e se porventura a construção ainda não
estiver construida em quinze do mês de Setembro seguinte e proximo,
perder o restante desta prestação; quinta – que a embarcação será
construida nesta Praia da Nazaré. Pelo segundo outorgante foi dito:
Que pela sua parte se obriga a pagar ao primeiro outorgante, nesta
localidade, a quantia de duzentos e setenta escudos, preço desta em-
preitada, em três prestações; sendo, a primeira de cinquenta escudos
e paga nesta data; a segunda, tambem de cinquenta escudos, que será
paga quando a embarcação estiver encavernada e a terceira que é de
cento e setenta escudos que será paga na entrega, salvo as penalida-
des estipuladas se a ellas der causa”129.

Arquivo Distrital de Leiria, L.N.N., Dep. V-86-E-4, fls.13v-15; Miguel PORTELA


129

e António Valério MADURO, “Património industrial de Alcobaça e Nazaré nos


séculos XVIII-XX Parte I, in Cadernos de Estudos Leirienses, 9, 2016, 377-378.

63
José Manuel de Mascarenhas | António Valério Maduro

As gentes da Nazaré assistiram à ocorrência de duas gerações de


traineiras motorizadas130, havendo referências documentais de que as
primeiras tenham aparecido a partir de 1914, na Nazaré e em S. Mar-
tinho131 (vide Quadro 4). Também o barco a motor indicado neste Qua-
dro, em S. Martinho, em 1917, deve, com muita probabilidade, ter sido
uma traineira, já que nesta data esteve ali, em laboração, um aparelho de
arte traina132. Por outro lado, a primeira embarcação à vela, tendo um
motor auxiliar de combustão (gasolina) com a menção de que se destina
“à pesca de alto mar e traineira”, aparece registada em 1925133.
Quanto às traineiras da segunda geração, terão aparecido cerca
de 1955134 (cronologicamente fora do âmbito deste estudo). Os bar-
cos da primeira geração apresentavam geralmente um convés corrido
com borda falsa, sendo dotados de um mastro desprovido da vela, de
leme exterior dotado de cana, e de um motor a vapor, cuja potência
variava entre os 18/24 HP e os 30/35 Hp. Na proa situava-se o posto
da equipagem (rancho, ou leito de proa) e o porão do peixe135.

130
C. ESCALLIER, op. cit., 1995, 116-118.
131
Portugal – Ministério da Marinha, op. cit., 1916, 156-157 [Arquivo Histórico
da Marinha]. Havendo C. ESCALLIER (op. cit., 1995, 206) referido que data de
1922, o primeiro registo de uma unidade a vapor (vapor traineira N-873-A,
denominada Sisal V), se bem que destinada à pesca com a palangre, os autores
consideram que tal introdução se deu em 1914, em S. Martinho, com base na
referência indicada (AHM). Pensa-se, por outro lado, que as embarcações mo-
torizadas referidas para o período 1926-1930, no QUADRO 4, poderão
corresponder, ou a traineiras (destinadas à arte da traina), como sucedeu em
1930, na Nazaré, ou a batéis motorizados para a pesca no mar alto, como poderá
ter ali acontecido, pelo menos em 1920, 1926 e 1927, já que nestas datas não
existiram aparelhos de arte de traina em funcionamento naquela zona (Portugal
– Ministério da Marinha, Estatística das Pescas Marítimas no continente e
ilhas adjacentes no ano de 1920, Comparada com a dos cinco anos de 1916 a
1920 e coordenada pela Comissão Central das Pescarias, Lisboa, Imprensa
Nacional, 1922, 114-115 [Arquivo Histórico da Marinha]. Idem, no ano de 1930,
comparada com a dos quatro anos de 1926 a 1929. Lisboa, Imprensa Nacional,
1931, 242. [Arquivo Histórico da Marinha]).
132
Idem, 1922, 114, 115, 163 [Arquivo Histórico da Marinha].
133
C. ESCALLIER, op. cit., 1995, 206.
134
C. ESCALLIER, op. cit., 1995, 116-118.
135
Ibidem.

64
Barcos e artes de pesca nas costas da Nazaré e de S. Martinho, entre o século XVIII e 1930

Barca de Armação
Embarcação de boca aberta, de quilha e coberta, destinada ao
serviço das Armações Valencianas, sistema complexo de captura de
pescado, nomeadamente da sardinha, que exigia pelo menos quatro
embarcações no mar, estrategicamente colocadas. A armação perma-
necia no mar o Verão todo, até setembro. Também teria sido utilizada
na pesca do “cerco americano” (galeão).
Apresentava proa e popa arredondadas, quase idênticas, sendo,
uma e outra, cobertas por uma tilha. O seu comprimento variava, em
geral, entre os 9,5 e os 11 m, sendo a largura do casco da ordem dos
3,5 m. Ao longo do costado, dois verdugos separados entre si, e à
proa e à ré duas malaguetas de cada lado e dois cunhos, um paneiro à
vante e outro à popa. Possuía 4 bancos e navegava a remos (3 de
cada lado, ou, nas barcas de maiores dimensões, 4 de cada lado e um
colocado na popa, próximo do leme136), (Figs. 43 a 49).

Fig. 43 - Batel da armação, à vela, Museu Dr. Joaquim Manso, Nazaré. (Fot. de Álvaro Laborinho)

136
C. ESCALLIER, op. cit., 1995, 105.

65
José Manuel de Mascarenhas | António Valério Maduro

Fig. 44 - Batel da armação, a remos. Museu Dr. Joaquim Manso, Nazaré.


(Fot. de Álvaro Laborinho)

Fig. 45 - Batel de armação, à vela, a ir para a faina. Museu Dr. Joaquim Manso, Nazaré.
(Fot. de Álvaro Laborinho)

Fig. 46 - Batel
"Mimosa", construída
em 1910, e que
pertencia à armação
denominada "Juncal";
faz atualmente parte
do espólio do Museu
Dr. Joaquim Manso,
Nazaré. (Fot. de José
Manuel de
Mascarenhas, 2022)

66
Barcos e artes de pesca nas costas da Nazaré e de S. Martinho, entre o século XVIII e 1930

Estas barcas tinham funções diversas, pois além de servirem as


armações, eram também utilizadas para o transporte de redes dos an-
tigos galeões e das traineiras, bem como de homens, e de peixe, entre
os arrastões e terra, ou como auxiliares das armações (Figs. 43 a 46),
de que um dos exemplos é a barca "Maria Eulália", construída em
1967 por José Rosado de Oliveira (Figs. 47 e 48). Embarcações au-
xiliares, como a barca da testa (ou testinha), barca das portas ou
barca das gachas137 atingem frequentemente a mesma tonelagem da
embarcação-mãe, nas grandes armações, sendo, todavia, ligeiras, nas
pequenas, passando a designar-se por lanchas138.

Fig. 47 - Batel
"Maria Eulália"
preparando-se
para zarpar.
Postal "170-
NAZARÉ
(Portugal),
Barco". (Sem
identificação
de autor e de
editor)

Fig. 48 - Batel
"Maria Eulália", com
8,6 ton de
arqueação,
construída em 1967
e, atualmente,
parte do espólio do
Museu da Marinha.
(Fot. de José
Manuel de
Mascarenhas,
2022)

137
Parte de uma armação.
138
C. ESCALLIER, op. cit.,1995, 107.

67
José Manuel de Mascarenhas | António Valério Maduro

Fig. 49 - Netas e barcas auxiliares das armações, dos cercos americanos ou de vários tipos de
transporte, varadas em terra. Postal "Praia da Nazareth, 7, Barcos". (Fot. de L. Souza; Pap. e Typ.
de Paulo Guedes)13

Fig. 50 - Barca das


gachas, auxiliar das
armações, segundo
A. A. Baldaque da
Silva, 1892, 394.
(Autores: J. Almeida
e P. Netto)

68
Barcos e artes de pesca nas costas da Nazaré e de S. Martinho, entre o século XVIII e 1930

3.4 - Pesca Local

Barco de Bico ou Neta ou Barco de Arte Xávega


Desde o início do século XX, passaram a dominar na Nazaré as
originais barcas de bico, de larga popa e com a proa em bico vertical,
sem vela e sem leme, e que constituíram até recentemente a marca
local dominante (Fig. 51; Fig. 52).
Octávio Lixa Filgueiras caracteriza sucintamente esta embarcação
do seguinte modo: “a proa com a lapa do fundo à mostra, dado o largo
encurvamento deste na zona da frente; em vez de capelo um agressivo
bico – pirâmide triangular alongada, erguida quase a prumo139; as
formas largas e atarracadas; a popa larga, continuação das tábuas do
fundo chato e sem quilha, encurvado a ¼ de volta” 140. Este autor inclui
este barco na classificação genérica das” canoas de tábuas”, tal como
o barco do mar141 (Fig. 53), se bem que pertencendo a um subgrupo
diferenciado142. Mais concretamente tratava-se de uma embarcação
de boca aberta, de fundo chato, com tábua de armar, a partir da qual
são fixas cada uma das 15 cavernas transversais aonde os braços an-
gulares são pregados e que suportam o tabuado do costado, aonde se
fixa exteriormente a tábua da boca143 (Fig. 51; Fig. 52). Com cober-
ta arqueada (pelé) situada à proa, além do banco da ré, apresenta
outros dois bancos apoiados sobre os dormentes e com as respetivas
anteparas (para apoio dos pés dos remadores). A popa direita, conti-
nuação do fundo, terminava por uma peça de madeira transversal (cepo
da ré) que reforçava o casco. Delimitado pelo pau do meio e pelo
último banco, existia um espaço livre (casa de água), destinado a re-
colher e permitir extrair a água. À proa e à ré, localizava- se um paneiro.
As dimensões deste tipo de barco são da ordem dos 4,7 m (compri-

139
Inclinação de 47 graus relativamente ao fundo (C. C. ESCALLIER, op. cit.,1995,
100).
140
O. L. FILGUEIRAS, op. cit., 1981b, 12.
141
Este barco, em virtude do seu perfil, também é vulgarmente conhecido por
“meia-lua”.
142
O. L. FILGUEIRAS, op. cit., 1981b, 13.
143
C. ESCALLIER, op. cit.,1995, 100.

69
José Manuel de Mascarenhas | António Valério Maduro

mento) e 2,2 m (boca)144 e a sua propulsão, desde há alguns decénios,


fazia-se através de quatro remos de madeira (dois por bordo), não
tendo tido no passado senão um único par145.

Fig. 51 - Barco de bico (ou neta, ou barco de arte xávega) que se destinava à pesca local com
rede xávega. A proa alta, em bico, facilitava a entrada na ondulação. Museu Dr. Joaquim Manso,
Nazaré. (Fot. de Álvaro Laborinho)

Fig. 52 - Barco de bico "Perdido", construído em 1949, por Porfírio do Carmo Oliveira. Faz atualmente
parte do espólio do Museu Dr. Joaquim Manso, da Nazaré. (Fot. de Caroline de Mascarenhas, 2018)

144
O. L. FILGUEIRAS, Barcos de Pesca de Portugal, Centro de Estudos de Carto-
grafia Antiga, Coimbra, Junta de Investigações Científicas do Ultramar, 1981a, 363.
145
C. ESCALLIER, op. cit.,1995, 105. Segundo esta autora, a capacidade da
embarcação ia de 2 a 9 homens.

70
Barcos e artes de pesca nas costas da Nazaré e de S. Martinho, entre o século XVIII e 1930

Fig. 53 - Barco a encalhar. Museu Dr. Joaquim Manso, Nazaré. (Fot. de Álvaro Laborinho)

O barco de bico adaptava-se muito bem às praias arenosas e à


ondulação alterosa característica da Nazaré e era utilizada para a prá-
tica de diferentes artes de pesca, como o arrasto de praia (à xávega)
e o uso de outros tipos de redes drenantes, como a mugiganga em
que a alagem era feita para bordo (Fig. 54).

Fig. 54 - Preparando a pesca com rede xávega. Postal "NAZARETH - Coração de Portugal -
Aprestando para a pesca da sardinha"14. (Fot. NIONE)

71
José Manuel de Mascarenhas | António Valério Maduro

Barco do Candil
Esta embarcação destinava-se à pesca do candil, arte de pesca
marítima, com rede de cerco (rede envolvente), utilizando uma fonte
luminosa, para atrair o peixe para a rede. Praticava-se à noite nas
baías da Nazaré146 e de S. Martinho e destinava-se à captura de pe-
quenos pelágicos (sardinha, carapau, biqueirão e cavala, sobretudo).
De construção idêntica e com características técnicas próximas do barco
de bico, distinguia-se deste, principalmente, por uma roda de proa
mais curta e menos saliente (cortada) (Fig. 55). Dispunha de um paneiro
à proa e à ré e de quatro enxamas (duas de cada lado) corresponden-
tes a igual número de remos. Apresentava, além do banco da ré, dois
bancos com as respetivas anteparas. A sua tonelagem ia de 1,5 a 3,5
ton147; as suas dimensões da ordem dos 5,7 m (comprimento) e 2,2 m
(boca)148, podendo navegar com equipagens reduzidas, indo de dois a
cinco homens149.
Como barco auxiliar, utilizava em geral uma lancha que possuía
na ré uma cruzeta que suportava archotes (fogachos), mais tarde subs-
tituídos por fontes mais eficazes (dispositivos a petróleo, e posterior-
mente a gás) com vista a iluminarem o espaço onde o pescador traba-
lhava, atraindo o peixe à superfície (Fig. 56). O barco do candil come-
çou a marcar presença nos anos vinte, se bem que o seu crescimento
se tenha apenas dado a partir de meados dos anos trinta.

146
A pesca do candil executava-se a partir dos 20 metros de profundidade, na
enseada desde a Pedra do Guilhim, ao longo da praia até à zona do atual Porto de
Abrigo, podendo esporadicamente ter-se realizado fora da enseada, nas zonas a
norte e a sul da Nazaré.
147
C. ESCALLIER, op. cit.,1995, 116.
148
O. L. FILGUEIRAS, Barcos de Pesca de Portugal, Centro de Estudos de
Cartografia Antiga, Coimbra, Junta de Investigações Científicas do Ultramar,
1981a, 363.
149
C. ESCALLIER, op. cit.,1995, 116.

72
Barcos e artes de pesca nas costas da Nazaré e de S. Martinho, entre o século XVIII e 1930

Fig. 55 - Candil "Vagos", barco construído em 1956 para a pesca do candil, com rede de cerco.
Faz atualmente parte do espólio do Museu Dr. Joaquim Manso, da Nazaré.
(Fot. de José Manuel de Mascarenhas, 2022)

Fig. 56 - Lancha "Ilda", auxiliar do candil "Vagos", construída em 1948. Faz atualmente parte do
espólio do Museu Dr. Joaquim Manso, da Nazaré. (Fot. de José Manuel de Mascarenhas, 2022)

73
José Manuel de Mascarenhas | António Valério Maduro

Lanchas
Estas embarcações, a que já se fez anteriormente referência, como
barcas auxiliares, apresentavam uma forma alongada e o fundo chato,
de proa saliente sem bico e popa de painel, eram propulsionadas por
um ou dois pares de remos, havendo sido tradicionalmente utilizadas
como lanchas-vigias dos grandes arrastões, ou como auxiliares por-
ta-fogachos, como atrás referido150. Podiam ainda ser usadas, local-
mente, para a pesca com aparelhos de anzol ou com redes.

3.5 - Barcos vocacionados para a pesca fluvial e lagunar

Pesca nos rios Alcoa (Fig. 15), Alfeizerão e Tornada (Fig. 16) e nas
áreas lagunares residuais, resultantes do assoreamento progressivo dos
antigos “mares” interiores da Pederneira e de Alfeizerão (Fig. 17).

Masseira
Este tipo de barco, propulsionado em geral por uma vara, era
usado na pesca à tarrafa, no Alcoa e nas lagoas residuais adjacentes a
este rio. Integra-se, na opinião de Octávio Lixa Filgueiras, nas “canoas
de tábuas” de tipo mesopotâmico, nele se observando uma identidade
estrutural dos seus extremos (iguais) com a popa do barco nazareno
(neta e candil) e da xavasca de S. Martinho151.

Barca chata do Rio Alcoa


Também designadas por barca da lagoa, tratava-se de uma em-
barcação miúda, de boca aberta e fundo chato, destinada à pesca
fluvial, com um a dois remos por bordo, podendo também ser mano-
brada com uma vara (frequentemente terminada por um esgalho). Este
barco de pequena talha, em geral pintado de preto, lembrava em cer-
tos aspetos o barco de bico (neta) e noutros (forma da proa) o barco

C. ESCALLIER, op. cit.,1995, 107.


150

151
O. L. FILGUEIRAS, Os barcos da Nazaré no panorama da nossa Arqueolo-
gia Naval. Lisboa, Centro de Estudos da Marinha, 1981b ,17. Este investigador
apresenta, nesta obra, duas fotografias da masseira. Na sua opinião existem
analogias estruturais entre este barco e o “shartoush” do Eufrates.

74
Barcos e artes de pesca nas costas da Nazaré e de S. Martinho, entre o século XVIII e 1930

do candil, repousando sobre a coberta uma travessa de madeira que


servia de assento152 . Os pescadores deslocavam-se com este barco,
no Alcoa e nas lagoas residuais a ele adjacentes; no estuário do rio, em
particular nas proximidades da sua foz, onde se formava uma pequena
lagoa na base da encosta da Pederneira (junto à Nazaré), pescavam
com chincha (rede de arrasto para terra), utilizando nas outras zonas
artes várias, como os galrichos, os boqueirões e as sertelas. Estas
embarcações mediam cerca de 2,9 metros de comprimento e 1,3 metros
de boca153 (Figs. 57, 58 e 59).

Fig. 57 - Barca chata do Alcoa. Maqueta do Museu da Marinha, MM.05404. (Fot. de José Manuel
de Mascarenhas, 2022)

C. ESCALLIER, op. cit.,1995, 107.


152

153
O. L. FILGUEIRAS, Barcos de Pesca de Portugal, Centro de Estudos de
Cartografia Antiga, Coimbra, Junta de Investigações Científicas do Ultramar,
1981a, 363.

75
José Manuel de Mascarenhas | António Valério Maduro

Fig. 58 - Barca chata do Alcoa, como se pode observar no Centro de Interpretação do Museu do
Peixe Seco, da Nazaré. (Fot. de José Manuel de Mascarenhas, 2022)

Fig. 59 - Barcas chatas do Alcoa, durante uma pescaria às enguias. Museu Dr. Joaquim Manso,
Nazaré. (Fot. de Álvaro Laborinho)

76
Barcos e artes de pesca nas costas da Nazaré e de S. Martinho, entre o século XVIII e 1930

Xavasca de S. Martinho do Porto


Pequeno barco de pesca, de boca aberta e fundo chato que, à
semelhança dos tradicionais barcos nazarenos (neta e candil), se inte-
gra na família das “canoas de tábuas”. Mais especificamente, inclui-se
nos barcos de popa larga, constituída pelo natural prolongamento (em
curva) do fundo chato, situando-se na linha de evolução patente no
barco do candil154. A sua proa era morfologicamente próxima da bar-
ca chata do Alcoa, se bem que menos saliente. Era acionado por
dois remos e empregava-se no quadro das artes da rede de arrastar e
da pesca da enguia (sobretudo nos rios Alfeizerão e Tornada e nas
lagoas residuais adjacentes a estes cursos de água, como a lagoa do
Paul da Tornada) (Fig.17). O seu comprimento era da ordem dos 3,1 m
e a sua boca dos 1,3 m155.

3.6 - A evolução da frota pesqueira da Nazaré


e de S. Martinho do Porto

Como citado anteriormente, aparece referido no livro de Receitas


e Despesas da Misericórdia da Pederneira a existência naquele porto,
em 1695, de nove barcas e cinco redes, o que contrasta com a exis-
tência em 1780, na Praia da Nazaré, de 29 barcas e 11 redes156. Du-
rante aproximadamente um século o número de barcos e de redes
pouco se alterou, neste mesmo local, já que em 1885, se contavam 27
barcas e 15 redes157, se bem que haja também a indicação de existên-
cia, nesta data, de 65 embarcações158. Em S. Martinho, nesta data
(1885 e 1886), operariam 12 embarcações159.

154
O. L. FILGUEIRAS, Os barcos da Nazaré no panorama da nossa Arqueolo-
gia Naval, Lisboa, Centro de Estudos da Marinha, 1981b, 24, fig. 31, fig. 32.
155
O. L. FILGUEIRAS, op. cit., 1981a, 363.
156
Frei Manoel de FIGUEIREDO cit. por M.V. NATIVIDADE, op. cit., 1960, 122.
157
Fonte: Confraria da Misericórdia da Pederneira, cit. por Christine
ESCALLIER, op. cit., 1995, Tableau 6A, 69.
158
A.A. Baldaque da SILVA, op. cit., 1892, 125.
159
Idem, 126.

77
José Manuel de Mascarenhas | António Valério Maduro

Até finais dos anos 1920, as flotilhas da Nazaré e de S. Martinho


eram principalmente compostas de barcos navegando unicamente com
velas (latinas ou bastardas) ou a remos, destinando-se os primeiros às
pescarias de alto mar, como o espinel e a palangre, e os segundos às
costeiras e locais (xávega/mugiganga, rede de cerco, armação, etc.).
Analisando o Quadro 5, pode fazer-se uma leitura da evolução
do número de embarcações a remos ou à vela, e motorizadas, bem
como da tonelagem de arqueação total, nas atividades de pesca marí-
tima. No que respeita as primeiras, verifica-se que, entre 1898 e 1930,
a flotilha nazarena foi praticamente crescendo, com maior ou menor
regularidade, quer em número, quer em tonelagem. Tal regularidade,
já não se manifesta na flotilha de S. Martinho, muito mais restrita, a
qual, no referente ao número de barcos, atinge um pico entre 1912 e
1914 e, no que respeita a tonelagem, picos em 1912-1916 e, em 1926.
No que respeita à pesca em águas salobras, apenas se apresen-
tam dados relativos a S. Martinho do Porto, para o período 1899-
-1919 (vide Quadro 6), desconhecendo-se a situação no rio Alcoa e
nas charcas adjacentes160. Verifica-se, da análise deste quadro, que a
flotilha se foi desenvolvendo, quer em número, quer em tonelagem, até
1909-1913, após o que parece ter entrado em decréscimo. Embarca-
ções desta flotilha devem ter estado em atividade não só na “concha”,
mas também nos rios Tornada e Alfeizerão e mesmo, possivelmente,
nas lagoas do Paul de Tornada161.

160
Nas Estatísticas citadas na nota anterior não constam, nos mapas da Nazaré,
dados relativos às águas salobras. Por outro lado, os dados referentes a S.
Martinho, entre 1920 e 1930, passaram a estar contabilizados juntamente com
os da Lagoa de Óbidos, o que inviabilizou a extensão deste quadro a anos
posteriores.
161
José Manuel de MASCARENHAS, “Os campos dos coutos de Alcobaça:
ordenamento hidráulico e valorização do território”, in A. V. MADURO, & R.
RASQUILHO. (coords.), Um Mosteiro entre os Rios. O território alcobacense,
Alcobaça, Hora de Ler, 2021, 483-539. Ver sobretudo p. 486, 487 e Fig. 17.

78
Barcos e artes de pesca nas costas da Nazaré e de S. Martinho, entre o século XVIII e 1930

3.7 - Aparelhos de Arte Piscatória, Embarcações


e Espécies – Alvo
A evolução, em Portugal, das artes de pesca marítima

Fernando Gomes Pedrosa oferece-nos um quadro resumido da


evolução, no território português, das principais artes de pesca maríti-
ma162. Assim, no decurso da primeira dinastia, as referidas artes resu-
miam-se sobretudo à linha (peixe grosso) e às redes de emalhar de
superfície (sardinha) que, apesar de sucessivas inovações técnicas, se
mantiveram operacionais até ao século XIX, considerando mesmo duas
verdadeiras revoluções que tiveram lugar nos séculos XIV/XV e XVIII/
XIX, respetivamente.
Nos séc. XIV/XV, assistiu-se ao aparecimento das armações fi-
xas, das redes de emalhar de fundo, de novas redes de cerco (tarrafa
e acedar) e de arrasto (chincha, chinchorro, xávega, bugiganga, cama-
roeira e zorra), as quais favoreceram zonas relativamente abrigadas.
Nos séc. XVIII/XIX assistiu-se ao aparecimento de novas redes
de cerco (galeão e cerco americano), da “arte” de arrasto para a praia
(xávega moderna), das armações fixas de copo à valenciana e do ar-
rasto pela popa (peixe grosso) havendo esta última, juntamente com o
cerco americano (sardinha), arruinado as restantes163.

3.8 - Artes, embarcações e espécies-alvo na Capitania da


Nazaré e na Delegação Marítima de S. Martinho do Porto

Com a introdução pelos pescadores de Ílhavo, cerca de 1760, na


Pederneira, da pesca com artes ou redes grandes, assistiu-se a um
desenvolvimento da atividade pesqueira, se bem que só após as inva-
sões francesas, se tenham vindo a abandonar as redes pequenas, so-
bretudo no que se refere à pesca marítima164. De notar que das 11

162
Fernando Gomes PEDROSA, “A evolução das artes de pesca em Portugal”, in
Anais do Clube Militar Naval, vol. CXV, abr.-jun. 1985, 287-319.
163
F. G. PEDROSA, op. cit., 1985, 313.
164
J. de Almeida SALAZAR, Memorias manuscriptas da Real Casa da Nazareth,
tomo 2.º, pag. 536, cit. por M.V. NATIVIDADE, op. cit., 1960, 122.

79
José Manuel de Mascarenhas | António Valério Maduro

redes referidas em 1780165, 5 eram chinchorros166, donde se infere a


existência, nesta data, de áreas lagunares interiores ainda significativas.
Aliás, Frei Manoel de Figueiredo esclarece que não contabilizou nesta
data, os “barquitos pequenos chamados da Lagoa em que os mes-
mos mareantes vão pescar ao rio, estando o mar bravo, nem os pe-
quenos batéis em que os rapazes no tempo do verão fazem alguma
pescaria, especialmente de noite porque naqueles barquinhos pesca
um homem só”167.
Em finais do século XIX e inícios do seguinte assistiu-se ao desen-
volvimento do número de pescadores e da indústria da pesca, em par-
te materializada pelo emprego de armações de sardinha fixas, redon-
das e valencianas. Destas últimas, já operavam na Nazaré, em 1896,
quatro unidades: Foz, Juncal, Fraternidade e S. Gião168 e, no que se
refere às armações redondas, as primeiras de que se tem conhecimen-
to datam de 1899169 (duas armações junto do morro da Nazaré). No
entanto, já existem referências de duas armações de pesca, em 1885 e
1886, sem que, todavia, se conheça a tipologia destas armações170.
Quanto aos cercos americanos, sabe-se que o primeiro operou em

165
Frei Manoel de FIGUEIREDO, Mapa do Estado Da Marinha de Pesca na
Praia da Nazaré em 1780, cit. por M.V. NATIVIDADE, op. cit., 1960, 122.
166
Rede envolvente-arrastante de alar para a praia com aparelho de um saco e
asas, mas em que, o saco é extremamente pequeno em relação às mangas laterais
(Diana SILVA, Comunidade Piscatória de Vila Chã (Vila do Conde), Porto,
Faculdade de Letras da Universidade do Porto, 2014,90). Estas redes eram usa-
das em águas interiores não oceânicas, segundo Rogélia MARTINS e Miguel
CARNEIRO, Artes de pesca artesanais em Portugal, Lisboa, Instituto Portugu-
ês do Mar e da Atmosfera (IPMA), 2021, 115.
https://www.ipma.pt/pt/media/noticias/documentos/2021/Artes_
Pesca_artesanais.pdf [consultado em 01/06/2022].
167
Frei. Manoel de FIGUEIREDO, cit. por M.V. NATIVIDADE, op. cit., 1960, 122-123.
168
Portugal – Ministério da Marinha, Estatística das Pescas Marítimas no Conti-
nente do Reino e Ilhas Adjacentes no ano de 1900, comparada com a de 1896,
1897, 1898 e 1899, Coordenada pela Commissão Central das Pescarias, Lis-
boa, Imprensa Nacional, 1902, Mappa 15, 38 [Arquivo Histórico da Marinha].
169
Mapa do Pessoal e Aparelhos de Pesca Empregados na Praia da Nazaré, de
Adolpho Loureiro, cit. por M.V. NATIVIDADE, op. cit., 1960, 123.
170
A. A. Baldaque da SILVA, op. cit., 1892, 125.

80
Barcos e artes de pesca nas costas da Nazaré e de S. Martinho, entre o século XVIII e 1930

1901, funcionando já seis, em 1903171. Por outro lado, S. Martinho,


em 1885 e 1886 dispunha de um pequeno número de embarcações
para a pesca ao anzol de fanecas e safios, para a pesca das lagostas,
com cachoceiras, e para operarem com uma ou outra zorra de arras-
tar, destinada à captura de linguados, solhas e enguias172.
A principal pescaria na costa nazarena era a sardinha, se bem que
também apanhassem no alto, em grande quantidade, muitas variedades
de outros peixes de valia como são: a pescada, pargo, linguado, etc.
Tendo em vista a perceção da evolução das artes piscatórias, para
o período em estudo, e no que se refere à Capitania da Nazaré e à
Delegação Marítima de S. Martinho, apresentam-se dois quadros, alu-
sivos respetivamente à pesca marítima e à pesca em águas salobras
(vide Quadros 6 e 7).
Se bem que neste estudo não tenha sentido proceder-se a uma
descrição de todas as “artes” indicadas nestes quadros, optou-se, to-
davia, por uma descrição sinóptica das que constituíram uma inovação
técnica nos séculos XVIII, XIX e XX (inícios), i.e. as armações fixas
redondas e de copo à valenciana, as novas redes de cerco (cerco
americano, e traineira) e a “arte” de xávega moderna.

3.8.1 - Aparelhos de rede envolvente fixos

Trata-se de armadilhas oceânicas de grandes dimensões e relati-


vamente complexas, no que se refere à organização, composição e
montagem, destinadas sobretudo à captura, na costa ocidental, de sar-
dinha e de outras espécies pelágicas173.
Estes aparelhos são constituídos por panos de diferentes tama-
nhos e malhagens e que ficam de forma permanente dentro de água,
em local apropriado, bem escolhido. A disposição destas redes é feita
de forma a que o peixe possa entrar livremente para o espaço por elas

171
Mapa do Pessoal e Aparelhos de Pesca Empregados na Praia da Nazaré,
de Adolpho Loureiro, cit. por M.V. NATIVIDADE, op. cit., 1960, 123.
172
A. A. Baldaque da SILVA, op. cit., 1892, 126.
173
Fernando Rui REBORDÃO, Classificação de Artes e Métodos de Pesca,
Lisboa, Publicações Avulsas do IPIMAR, 4, 2000, 28.

81
José Manuel de Mascarenhas | António Valério Maduro

limitado, mas de modo a que não possa sair, ficando aí em condições


de ser apanhado com facilidade e segurança174.
Os aparelhos fixos destinados à pesca da sardinha, são de meno-
res dimensões e de construção mais simples do que os do atum, e
abrangem dois tipos: as armações de sardinha redondas e as arma-
ções de sardinha à valenciana175 .
As armações de sardinha redondas apenas se usaram, desde
longa data, na enseada de Peniche, havendo algumas vezes sido insta-
ladas no mar das Berlengas e na enseada da Pederneira. Constavam
de um quadrado de redes de linho (encoadura) dispostas vertical-
mente desde a superfície
até ao fundo, com uma
abertura num dos lados,
de uma barreira de rede
para dirigir o peixe, e de
três redes volantes (en-
cantadeira, sacada e en-
chelevar) para o captu-
rarem dentro do quadra-
do. As redes da encoa-
dura dispunham na tralha
superior de flutuadores de
cortiça e na inferior uns
pesos de barro, denomi-
nados bolos176.

Fig. 60 - Armação redonda, em


Peniche: estrutura espacial,
segundo A. A. Baldaque da Silva,
1892, 234v.

174
A. A. Baldaque da SILVA, op. cit., 1892, 214.
175
Idem, 225.
176
Idem, 232.

82
Barcos e artes de pesca nas costas da Nazaré e de S. Martinho, entre o século XVIII e 1930

Fig. 61 - Encoadura de
uma armação de sardinha
redonda, segundo A. A.
Baldaque da Silva, 1892,
232v. (Autores: J.
Almeida e D. Netto)

As armações de copo à valenciana eram um sistema de captura


de pescado mais complexo, nomeadamente no que se refere à sardi-
nha, que exigia pelo menos quatro embarcações no mar, estrategica-
mente colocadas. A armação permanecia no mar todo o Verão, até
setembro177. De modo muito resumido, podem caracterizar-se do se-
177
José BARBOSA - Visto e ouvido... em Olhão... reflexões - Câmara Municipal
de Olhão, 1993, 107-113. https://www.olhaocubista.pt/pesca/pesca.htm. (con-
sultado em 26/06/2022).

83
José Manuel de Mascarenhas | António Valério Maduro

guinte modo: eram “complexas armadilhas de barragem destinadas à


captura de peixe miúdo e constituídas por conjunto de redes de dife-
rentes malhagens e cabos sustentados por âncoras ou ferros. Exposta
no mar, apresentava uma extensa “parede” vertical de rede (rabeira),
cuja aresta final, perpendicular ao fundo do mar, entrava numa câmara
de rede (bucho). O peixe nadava ao longo dessa “parede”, passava
pelo buxo e daí para o copo de onde já não saia”178.
“No levantar das redes do copo, efectuado duas vezes ao dia,
intervinham barcas que se localizavam estrategicamente: a barca das
portas junto à testinha; a gacha do mar e a gacha de terra, uma de
cada lado da área do copo; o batel junto à testa, cuja rede se suspen-
dia da própria embarcação por meio de levas. Durante o levantar das
redes, o batel mantinha-se fixo, suspendendo a rede da testa que reti-
nha o peixe após ter sido afugentado e orientado na direcção dessa
rede pelos camaradas das outras barcas”179.
A composição de uma armação redonda apresentava maior sim-
plicidade que a de uma armação à valenciana, não dando, todavia, o
resultado desta última, em virtude das suas dimensões serem muito
reduzidas e de apresentarem menor resistência às condições do mar,
em situação de fortes correntes ou de mar bravio, circunstâncias que
prejudicavam a quantidade de peixe que podia entrar no corpo da
armação e o número de dias úteis de permanência no mar e de explo-
ração180 .
Nos finais do século XIX, a Nazaré distinguia-se pela utilização
de aparelhos de rede envolvente fixos havendo, em 1892, sido inaugu-
rada a primeira armação de copo à valenciana, pertencente à Parceria
União de Pesca da Nazaré181. Da análise de uma tabela sobre as em-
barcações registadas pela primeira vez na Nazaré, verifica-se que foi

178
Adelina Gomes DOMINGUES, “As artes de pesca em Sesimbra”, in Musa, 3,
2010, 229-236, 233.
179
Ibidem.
180
A. A. Baldaque da SILVA, op. cit., 1892, 235.
181
José MATIAS, Nazaré – Cronologia dos Factos Mais Importantes (Publica-
do em abril, 1, 2014; consultado em 23 de Maio de 2022).
https://www.josematias.pt/eletr/biografia_de_ze_da_palacida2/

84
Barcos e artes de pesca nas costas da Nazaré e de S. Martinho, entre o século XVIII e 1930

no triénio 1901-1903 que houve maior número de registos relativos à


armação de copo à valenciana182 (vide Tableau 19 de C. Escallier,
1995, 221).

Fig. 62 - Armações de sardinha à valenciana – “Uma armação de pesca d’este genero compõe- se
das seguintes partes principaes: Q- copo, bd- bucho, k- rabo e hh- boca” ( SILVA, 1892, 225).

3.8.2 - As novas artes envolventes – Cerco

Envolvem redes longas com altas paredes de rede, que se põem no


mar em posição vertical e são largadas por uma ou duas embarcações
que descrevem uma trajetória circular. A rede possui na parte superior,
cabos com flutuadores e no limite inferior, cabos com chumbo.
As diferenciações tipológicas relacionam-se com vários fatores,
como a dimensão da malha de cada aparelho e a maneira como os
flutuadores e os lastros eram colocados na rede.
Podem dispor, ou não, de retenida, cabo que se encontra no fun-
do da rede e faz com que este se feche como um saco, formando uma
182
C. ESCALLIER, op. cit., 1995, Tableau 19, 221.

85
José Manuel de Mascarenhas | António Valério Maduro

enorme bolsa. Ao serem aladas para bordo da embarcação, estas re-


des “levam a que as presas fiquem concentradas numa zona especial-
mente preparada para suportar a concentração do pescado que tenha
ficado retido – a copejada -, de onde as capturas são, por fim, retira-
das para bordo183. Quando não dispõem de retenida, e nesse caso
“são constituídas por duas mangas separadas por um saco “em forma
de colher”. A rede é conduzida e alada pelas duas mangas que orien-
tam o peixe em direção ao saco, onde fica preso”184 .
A Arte do Galeão já seria conhecida em Setúbal, em 1850, mas,
por ser muito dispendiosa, só mais tarde viria a ser adotada na região
de Peniche185, se bem que A. Baldaque da SILVA, defenda que para
norte do cabo da Roca “não se emprega este systema de pesca em
nenhum ponto da costa do reino”186. 0 aparelho de galeão compõe-se
de duas partes principais: a copejada e as bandas ou alares, constitu-
indo a primeira a peça onde se apanha o peixe, e as últimas os panos
de rede que o cercam e encaminham até à primeira187. Segundo
Fernando G. PEDROSA, “cada companha tinha 60 a 80 homens, uma
embarcação de 16 a 20 metros de comprimento (também chamada
galeão), coadjuvada por 6 ou 7 de menor porte, e uma rede contínua
de 800 a 900 metros de comprimento. Manifesta ainda várias defici-
ências: pouca celeridade na manobra de largar e cercar devido à limi-
tação imposta pela movimentação a remos; imperfeita vedação por
baixo da rede; falta de presteza na manobra de recolher”188.
Outro tipo de arte envolvente é o Cerco tipo Americano, cuja
rede é semelhante à do galeão, mas com a particularidade de “franzir
pela tralha inferior no momento de copejar”189. Nesta arte, a malhagem
é constante ao longo de toda a rede, o cabo dos chumbos um pouco

183
F. R. REBORDÃO, op. cit., 2000, 36.
184
Diana I. R. SILVA, Comunidade Piscatória de Vila Chã (Vila do Conde),
Porto, Faculdade de Letras da UP, 2014, 91.
185
F. G. PEDROSA, op. cit., 1985, 308.
186
A. A. Baldaque da SILVA, op. cit., 1892, 235.
187
Ibidem.
188
F. G. PEDROSA, op. cit., 1985, 308.
189
Ibidem.

86
Barcos e artes de pesca nas costas da Nazaré e de S. Martinho, entre o século XVIII e 1930

maior que o da flutuação, operando com retenida. “Tipicamente pos-


suem a copejada num dos extremos; por vezes apresentam duas
copejadas, estando a segunda zona de copejo situada próximo da re-
gião média da rede”190 .

Fig. 63 - Maqueta de galeão a vapor e de cerco americano. Museu Marítimo "Almirante Ramalho
Ortigão", MMARO.00027, Faro. (Fot. de José Manuel de Mascarenhas, 2022)

A rede utilizada no cerco americano tinha de ser comprida e larga,


e uma vez que era de algodão, alcatroada, com muito chumbo, argolas
de bronze e cabos grossos de esparto, era muito pesada e, por conse-
guinte, só podia ser alada para bordo por pelo menos vinte homens.
Os barcos a remos tinham de ser grandes e pesados, devendo os tri-
pulantes trabalhar quase vinte horas seguidas, com poucas horas de
descanso. Não havia assim horário de trabalho: enquanto havia peixe,
pescava-se. Por vezes apanhava-se tanta sardinha que se levava um
dia inteiro a copejá-la para bordo de outros barcos191. Estes barcos,
transportando o peixe, vinham para terra pelos seus próprios meios,
ou o galeão trazia-os de reboque. Estas condições laborais tornaram-

190
F. R. REBORDÃO, op. cit., 2000, 37.
191
J. BARBOSA, op. cit., 1993.

87
José Manuel de Mascarenhas | António Valério Maduro

se menos penosas com o aparecimento dos galeões a vapor, barcos


com cerca de 30 metros de comprido, de borda baixa e popa redon-
da, que transportavam toda a tripulação (ca. 30 homens) e carrega-
vam a rede na popa, dispondo frequentemente na coberta, de um guincho
com um sarilho, movidos a vapor, para puxar o cabo da retenida192.
O primeiro galeão com cerco americano, na Nazaré, terá sido
inaugurado em 1898, havendo pertencido a António Raposo193. Da
análise de uma tabela sobre as embarcações registadas pela primeira
vez na Nazaré, verifica-se que foi no quadriénio 1901-1904 que hou-
ve maior número de registos relativos à arte do cerco americano194
(vide Tableau 19 de C. Escallier, 1995, 221).
Quanto à Arte da Traineira (ou Traina), trata-se de uma varie-
dade de cerco americano, que utiliza assim o mesmo tipo de engenho
de captura, mas com dimensões intermédias, entre a rede candil e a
rede galeão. Esta arte permitiu exercitar a faina durante todo o ano,
de modo mais versátil, com maior mobilidade e rapidez do cerco, e
com menor carga de pessoal. No caso da Nazaré, esta arte fez com
que fosse possível explorar fundos já fora da enseada e retomar a
pesca costeira à sardinha, que havia sido abandonada pelos galeões195.
Uma vez localizado um cardume, através de sinais no mar típicos, como
deteção de golfinhos, concentração de aves etc., saía a traineira para o
local, rebocando um pequeno barco a remos (a chalandra)196. Uma
vez lá, a chalandra permanecia no sítio do lançamento da rede, apres-
sando-se os pescadores a lançar uma ponta desta, que tinha um peso
de chumbo de um lado e uma boia de cortiça no lado oposto, descre-
vendo de seguida a traineira, acionada pelo seu motor a “fogo” (a
vapor), um grande círculo, envolvendo rapidamente o cardume com a

192
Ibidem.
193
J. MATIAS, op. cit., 2014. Segundo este autor, era um barco pesado, com 15
a 20 metros, companha grande (cerca de 20 homens), com 5 a 6 barcas associa-
das.
194
C. ESCALLIER, op. cit., 1995, Tableau 19, 221.
195
C. ESCALLIER, op. cit., 1995, 204.
196
Na maior parte dos casos, havia três embarcações envolvidas nesta arte: a
traineira, a enviada e o bote.

88
Barcos e artes de pesca nas costas da Nazaré e de S. Martinho, entre o século XVIII e 1930

rede. Neste percurso, os pescadores deixavam cair os sucessivos pe-


sos da rede, ficando as boias à vista. Uma vez fechado o círculo, co-
meçavam de imediato a puxar a rede pelo fundo, através dum cabo
(retenida) que passava pelas boias. Formavam desta forma uma es-
pécie de saco, que iam apertando, até poderem despejar o seu con-
teúdo piscícola para o interior da embarcação. Caso a traineira dispu-
sesse de um guincho, a ponta da retenida era entregue à embarcação e
a rede alada através deste dispositivo197. Como atrás referido, esta
arte encontra-se identificada na Nazaré, desde 1914. Da análise de
uma tabela sobre as embarcações registadas pela primeira vez na
Nazaré, verifica-se que foi nos anos 1930 e 1931 que houve maior
número de registos relativos à arte da traineira198 (vide Tableau 19 de
C. Escallier, 1995, 221).

3.8.3 - A Arte de Xávega Moderna

Segundo F. G. PEDROSA, a antiga arte de arrasto, de origem


medieval, conhecida por “enxavega” nunca se terá difundido para nor-
te de Lisboa199. Este mesmo autor defende que a moderna xávega da
costa ocidental é semelhante à “jábega” que valencianos e catalães
haviam levado para a Galiza em 1750, conhecendo-se já sete xávegas,
em 1758, em Buarcos200, e havendo-se instalado outras, em Ovar, em
1776201. Os varinos e os ílhavos disseminaram-nas depois para norte
até à foz do Douro e para sul até Sines. “Cada companha envolvia um
buliçoso arraial semi-nómada de cerca de 200 pessoas entre tripulan-
tes, auxiliares de terra e familiares, que construíam palheiros amoví-

197
MESTRE DO MAR, 2021. https://mestredomar.com/almanaque-do-oceano/
almanaque-traineiras/ (consultado em 26 de maio de 2022).
198
C. ESCALLIER, op. cit., 1995, Tableau 19, 221.
199
F.G. PEDROSA, op. cit., 1985, 296,297.
200
Segundo consta nos livros de notariado de Aveiro, em 1751, 1764 e 1765
existiriam já diversas companhas a pescar na costa, como refere Maria João
MARQUES, Arte Xávega em Portugal, Uma arte secular em decadência, Or-
ganização, caracterização e declínio, Porto, Faculdade de Letras da UP, 2011.
201
Idem, 302.

89
José Manuel de Mascarenhas | António Valério Maduro

veis”202. Na Nazaré, em meados do século XIX, coexistiram “artes


novas” (xávega moderna) e “artes velhas” (chinchorros)203.
A xávega é um tipo de arte envolvente-arrastante, grupo em que
se incluem as artes que, além de arrastarem, envolvem ou cercam o
cardume. É uma arte, ou rede de arrastar, com saco que compreende,
além do aparelho, um barco chamado calão e uma lancha denomina-
da enviadeira204.
Nesta arte, as redes podem ser largadas à mão ou com o auxílio
de uma embarcação, o que acontece quando as asas são de grande
dimensão, podendo atingir os 500 m. A faina de pesca inicia-se com o
transporte a bordo da arte, largando um cabo de alagem (cala, ou
cabo-serrador) cuja extremidade fica em terra. Navega para fora lar-
gando a rede; primeiro a manga/asa que está ligada ao cabo de terra,
depois o saco e por último a outra manga/asa, descrevendo uma traje-
tória em arco para cercar o cardume. Ruma para terra, largando a
segunda cala ou mão-de-barca, após o que se inicia a alagem na praia,
até à chegada da rede a terra. As calas são, tradicionalmente, cabos
de grande comprimento, podendo atingir os 300 m, ou mais205,206.
A companha deste aparelho de pesca “forma sociedade com o
proprietário, e compõe -se do mestre, mandador, arraes e dezesseis a
vinte e quatro companheiros”207.
Em 1906, assistiu-se a uma importante inovação que se veio a
generalizar por todas as praias: a pesca que até então era executada
com o auxílio de duas embarcações passou a utilizar uma única, de
maior dimensão, permitindo o transporte de todo o aparelho. As no-
vas xávegas, de maior envergadura, passaram a ir a maiores distâncias

202
Ibidem.
203
Idem, 303.
204
A. A. Baldaque da SILVA, op. cit., 1892, 245.
205
Rogélia MARTINS e Miguel CARNEIRO, Artes de pesca artesanais em Por-
tugal, Lisboa, Instituto Português do Mar e da Atmosfera (IPMA), 2021, 116.
h t t p s : / / w w w. i p m a . p t / p t / m e d i a / n o t i c i a s / d o c u m e n t o s / 2 0 2 1 /
Artes_Pesca_artesanais.pdf [consulta 01/06/2022].
206
F. R. REBORDÃO, op. cit., 2000, 36.
207
A. A. Baldaque da SILVA, op. cit., 1892, 246.

90
Barcos e artes de pesca nas costas da Nazaré e de S. Martinho, entre o século XVIII e 1930

da costa, dispondo de 2 ou 4 remos e de uma tripulação que oscilava


entre 36 a 46 homens, conforme, repartidos pelos remos do barco208.
Em 1885, existiam na Nazaré 7 redes da arte xávega (netas) e 8
barcos de bico desta arte. De 15 companhas em 1886, passaram
para 117 em 1924 (o máximo) e para 100 em 1945209. De referir, no
entanto, que da análise de uma tabela sobre as embarcações registadas
pela primeira vez na Nazaré210, verifica-se que foi no triénio 1914-
-1916 que se atingiu o pico sobre o número de registos de barcos
destinados à arte xávega, como mostrou Christine ESCALLIER211
(vide Tableau 19).
Esta arte caiu em desuso nas últimas décadas do século XX, devido
não só a fatores de ordem económica e social, mas, principalmente, como
resultado dos avanços na tecnologia de captura do pescado. Mesmo as-
sim, em certas praias da costa ocidental, como a Praia de Mira, esta arte,
em 2011, ainda era utilizada por pequenos grupos de velhos pescadores,

Fig. 64 - Arte de xávega, segundo A. A. Baldaque da Silva, 1892, 244v. (Autores: J. Almeida e D. Netto)

208
Maria João MARQUES, Arte Xávega em Portugal, Uma arte secular em
decadência, Organização, caracterização e declínio, Porto, Faculdade de Le-
tras da UP, 2011.
209
J. MATIAS, op. cit., 2014.
210
Classificação a partir dos códigos de matrícula.
211
C. ESCALLIER, op. cit., 1995, Tableau 19, 221.

91
José Manuel de Mascarenhas | António Valério Maduro

Fig. 65 - Rede da arte de xávega: saco e parte das asas. Museu Marítimo "Almirante Ramalho
Ortigão", MMARO.00023, Faro. (Fot. de José Manuel de Mascarenhas, 2022).

com vista à obtenção de um complemento de reforma ou em resultado de


apoios autárquicos. Nesta data, as seis companhas ainda existentes nesta
Praia, ainda tinham capacidade para mobilizar cerca de uma centena de
homens, se bem que cada vez mais dependentes do Estado212.

212
M. J. MARQUES, op. cit., 2011.

92
Barcos e artes de pesca nas costas da Nazaré e de S. Martinho, entre o século XVIII e 1930

4. Os peixes e o seu consumo


no território dos coutos
Como elucida Frei Fortunato de S. Boaventura o dever de acolhi-
mento e hospitalidade obrigava os mosteiros a sair de um regime
tendencialmente vegetariano:
“(…) além de pão, hortaliças e legumes, se provessem de
outras cousas melhores e mais substanciais, com que pudessem
regalar os seus hospedes, pelo que inda hoje sucede nos Mostei-
ros reformados se vê que a comida de peixe eram a melhor igua-
ria, que entrava nas suas mesas”213.

Na realidade, praticamente desde os alvores da Ordem Cis-


terciense, contempla-se um regime alimentar de exceção para ve-
lhos, jovens e enfermos, moderando o rigor da dieta, ao incorporar
a carne. O consumo do peixe é, no entanto, privilegiado num mo-
delo que interligava a dietética com a ascética numa lógica da sal-
vação da alma.
Em Alcobaça, o abastecimento de peixe não constituía um pro-
blema, dada a extensão da costa marítima, a existência de um espaço
lagunar (Lagoa da Pederneira), embora em acentuada regressão devi-
do ao fenómeno erosivo, os portos de pesca, não só a Pederneira,
mas também S. Martinho, e a acessibilidade a estes portos, menos de
duas léguas para a Pederneira/Nazaré e de quatro léguas para S.
Martinho, e ainda a relativa proximidade aos ancoradouros do Tejo,
entre sete a nove léguas, o que facilitava a importação de pescado.
A Lagoa da Pederneira era território coutado de pesca do Mos-
teiro e os pescadores tinham de solicitar licença para aí fazerem as

Frei Fortunato de S. BOAVENTURA, Historia Chronologica e Critica da


213

Real Abadia de Alcobaça, Lisboa, 1827, 36.

93
José Manuel de Mascarenhas | António Valério Maduro

suas pescarias pagando o respetivo dízimo, o mesmo se passando na


Lagoa de Alfeizerão214. Por sentença de 18 de março de 1747, os
pescadores do termo da Pederneira eram obrigados a pagar todos os
direitos sobre os peixes que pescarem com armadilhas e ameijoeiras215.
Em contrapartida, sabemos que os rios dos coutos de Alcobaça
eram pouco caudalosos e piscosos, mas a pesca lagunar, costeira e do
alto compensava amplamente as necessidades216.
Mas embora os rios fossem pouco copiosos de peixe, o aristo-
crata William Beckford, ao descrever a cozinha do mosteiro (1794),
refere que:
“Ao centro desta imensa divisão magnificamente abobadada,
de diâmetro não inferior a sessenta pés, corre um alegre regato de
água claríssima que alimenta viveiros perfurados, de madeira, com
os mais belos peixes do rio, de toda a espécie e tamanho”217.

O peixe fresco que abastecia a mesa monástica, ao longo do sé-


culo XVIII, provinha, sobretudo, do porto da Pederneira e, em menor
quantidade, do de Peniche (5% do quantitativo de peixe no triénio de
1747-50). Algum peixe era conduzido e adquirido na própria portaria
do mosteiro. As fontes dão nota de compras frequentes tanto de peixe
miúdo (sardinhas e carapaus) como de peixe grosso (pescadas, robalos,
chernes, corvinas, pargos, congros, besugos, gorazes, sáveis, enguias
e lampreias). Estas aquisições, no entanto, apenas representavam, no
referido triénio, 2,1% dos gastos com o peixe. De Peniche vinham

214
Iria GONÇALVES, À mesa nas terras de Alcobaça em finais da Idade Média,
DGPC/Mosteiro de Alcobaça, 2017, 258; Iria GONÇALVES e Manuela Santos
SILVA, “São Martinho do Porto e a Lagoa de Alfeizerão na Idade Média”, in A
Baía de S. Martinho do Porto. Aspectos Geográficos e Históricos”, Lisboa
2005, 59.
215
http://digitarq.dgarq.gov.pt/details?id=1459083 (lv. 39 de Sentenças, fl.548).
216
Frei Fortunato de S. BOAVENTURA, 1827, 35; António Valério MADURO, “O
Inquérito Agrícola da Academia Real de Ciências de 1787. O caso da comarca de
Alcobaça”, in Mosteiros Cistercienses. História, Arte, Espiritualidade e Patri-
mónio, Tomo III, 2013, 340.
217
William BECKFORD, Alcobaça e Batalha. Recordações de uma Viagem,
Lisboa, Vega, 1997, 36.

94
Barcos e artes de pesca nas costas da Nazaré e de S. Martinho, entre o século XVIII e 1930

chernes, congros, corvinas, pescadas, para além de alguns milheiros


de sardinha fresca. Os sáveis eram provenientes do Tejo, onde se
mandavam buscar, embora também fossem adquiridos à porta. O
marisco também era abundante na dieta alimentar, só de maio a agosto
de 1757 foram adquiridas 472 lagostas218, mas também ameijoas,
berbigões e mexilhões, lulas e polvos enriqueciam a diversidade dos
frutos do mar e logo a mesa dos cistercienses219.
O consumo de peixe por parte das classes populares privilegiava
a sardinha, o peixe miúdo, mas também integrava outros peixes de
menor consideração, como o cação, a raia. Heinrich Link, que visita
Portugal no ocaso do século XVIII, refere que a sardinha era o peixe
das classes desfavorecidas, e que até o gado suíno em regime de en-
gorda beneficiava deste alimento220.
Para além das disponibilidades de peixe fresco, podia-se sempre
contar com as provisões de peixe seco, essenciais nos períodos em
que os elementos naturais contrários limitavam a prática da atividade,
ou ainda pela ineficácia da distribuição e rápida deterioração do pes-
cado fresco.
A pescada seca que, no período setecentista, abastecia o cenóbio
alcobacense, provinha não só da seca local, como de destinos bem mais
longínquos. As aquisições deste peixe, no triénio de 1723-1726, dão
conta de 515 dúzias provenientes de Buarcos e Vila do Conde e 112
arrobas da Irlanda. Muita da pescada consumida vinha, de facto, de
fora, havendo também registos da sua importação da Holanda. A
prevalência da pescada na alimentação dos monges que, ao longo da
Idade Média, constituía uma ração repetitiva e monótona durante os
cerca de 70 dias de abstinência, começa agora a ser alternada com o
consumo de bacalhau que passa a liderar as despesas com as aquisições
de peixe seco. Destaque-se que, no triénio atrás referido, a despesa

218
A.N.T.T., Livro das Despesas do Convento de Alcobaça, n.º 7 (1756-1759),
mç. 6, cx.133.
219
António Valério MADURO, Requinte e Paladar. A Gastronomia Monástica
Alcobacense, Porto, CEDTUR/ISMAI, 2019, 37-38.
220
Heinrich LINK, Notas de uma viagem através da França e Espanha, Lisboa,
Biblioteca Nacional, 2005, 119.

95
José Manuel de Mascarenhas | António Valério Maduro

com peixe seco representava cerca de 12% dos gastos com a alimenta-
ção e que, como se pode constatar, os gastos com o peixe seco eram
praticamente equivalentes aos do peixe fresco (vide Quadros 9 e 10).
A supressão da área lagunar remete para a Nazaré o novo porto
de pesca, o que implica maiores riscos, uma transformação das em-
barcações e adaptação das artes. Independentemente destas
especificidades abordadas nos capítulos anteriores, a safra do mar
assentava essencialmente nas seguintes capturas:
“(…) no porto da Nazaré as que aparecem mais são de sardinha,
carapau, pescada, goraz, safio, raia, cação e ruivo, na proporção de ½
de sardinha, ¼ de carapau, e ¼ de outras espécies (…). Em S. Martinho
safio, moreia e lagosta” 221. Por seu turno, Baldaque da Silva refere que
na Nazaré, para além da hegemonia da sardinha, se pesca muitos peixes
de apreço, como “a pescada, pargo, linguado”. Já em S. Martinho, as
capturas incidem, para além da lagosta, nas fanecas e safios à linha e
com boscas e linguados, solhas e enguias com zorra de arrastar222. Ou-
tra fonte refere que, em S. Martinho, para além da pesca dos crustáceos
efetuada com cachoças desde a costa até duas milhas de mar, exerce-se
a pesca à cana de espécies como o sargo, a tainha, o sarrão e o robalo,
e no período de baixa-mar captura-se moluscos, como a lapa, o mexi-
lhão, o caranguejo, o búzio e o polvo com bicheiro e na concha empre-
gam tresmalhos para a pesca da corvina e cação e netas para o linguado,
solha, tainha, robalo, boga, raia, camarão e savelha.223
Sobre o inventário geral do pescado capturado nas águas da
Nazaré refira-se a: “pescada, cherne, corvina, robalo, dourada, pargo,
pargo-morro, bica, badejo, abrótea, ricardo, juliana, cantaril, gorás,
cachucho, cardial, chaputa, sargo, besugo, besugo-trombudo, charroco
ou peixe-galo, ruama, peixão, boga, faneca, chicharro, carapau, bar-
ba-ruiva ou pichelim, sardinha, biqueirão, lavadinha, ruivo, cabrinha,

221
A. S. MACEDO, Estatística do Districto Administrativo de Leiria, Leiria,
1855, 115.
222
A. B. da SILVA, Estado Actual das Pescas em Portugal, Lisboa, Imprensa
Nacional, 1892, 125.
223
Pesca e Serviço Marítimo dos Portos nos anos de 1896 a 1905, Lisboa,
Imprensa Nacional, 1907, p.657.

96
Barcos e artes de pesca nas costas da Nazaré e de S. Martinho, entre o século XVIII e 1930

bacamarte, salmonete, rodovalho, solha, negrão, muge, tainha, peixe-


-rei, safio, moreia, peixe-espada, anequim, tintureira, boto, peixe-agu-
lha, espadarte, atum, albacora, bonito, cavala, sarda, albafar, peixe-
-prego, corvel, mandrião, lixa, negra, sapata, quelme, cascarra, cação,
melga, ferranho, leitão, pata-roxa, orega, parda, urja, arraia, tamboril,
e peixe-anjo (…) lagosta, lavagante, caranguejo, carangueja, burro,
centola, percebe.”224
Pinho Leal refere a tributação sobre os frutos do mar a que esta-
vam sujeitos os pescadores da praia da Nazaré:
“Os pescadores da praia da Nazareth pagavam até 1833 os
seguintes impostos: Aos frades bernardos, do convento de Santa
Maria de Alcobaça, 1 peixe de cada 20 que colhiam, ou 1:000
réis por cada 20:000 rs. do seu producto; ao Estado, 1 peixe por
cada 22, ou 1:000 réis por cada 22:000 réis; à Collegiada da villa
da Pederneira, 1 peixe por cada 15 que colhessem, ou 1:000 réis
por cada 15$000 réis do seu producto; e á Misericórdia, em vir-
tude de um contracto feito entre elles e os vogaes d’esta cor-
poração, a terça parte do peixe (ou do seu producto) que colhiam
aos domingos e dias santos, e nos dias de semana 200 réis por
cada 4:000 réis do producto do peixe, e d’ahi para cima sempre a
mesma quantia de 200 réis; não chegando, porém, o producto a
4:000 réis, não pagavam. A Misericórdia dava parte d’esses lu-
cros, isto é, somente metade do terço das pescarias colhidas aos
domingos e dias santos, á confraria do Santíssimo. Actualmente
pagam os pescadores para o thesouro publico o modico imposto
de 6% sobre o producto de suas pescarias, líquido de 10%, que a
lei manda deduzir para caldeiradas e comedorias; e sobre os 6%
são lançados mais 5% addicionaes, e 5% para viação. Estes im-
postos são lançados sobre o producto do peixe vendido diaria-
mente até ao fim do mez, e pagos pontualmente no mez immediato
aquelle a que dizem respeito.” 225

224
“Nazaré”, in Grande Enciclopédia Portuguesa Brasileira, vol.18, sd, 510.
Augusto Soares Barbosa de Pinho LEAL, Portugal Antigo e Moderno, vol.VI,
225

Lisboa, 1875, 25.

97
José Manuel de Mascarenhas | António Valério Maduro

5. Os sistemas tradicionais
de conservação do pescado
Para conservar o peixe e assim dilatar o seu período de consumo
recorre-se à “seca, salga, salmoira e escabeche”, no entanto, os pro-
dutos da salga lideravam os consumos226. Os frutos do mar mais re-
quisitados para estas artes eram a sardinha, o cação, a raia, o carapau,
a cavala, o polvo, entre outras espécies, que integravam na dieta ali-
mentar os comeres próprios das classes populares, mas também a
pescada, peixe que se destacava na ementa dos religiosos a fim de
satisfazer os extensos e exigentes períodos de abstinência e que tam-
bém era sujeita à conservação pela seca (vide Quadro 10).
Segundo Iria Gonçalves, desde o século XIII, os salgados de
Alfeizerão abasteciam o porto de pesca da Pederneira, estimando-se
em oito a nove moios a quantidade de sal necessária para a preserva-
ção do pescado227. Adianta ainda a autora que para conservar um
milheiro de sardinha utilizava-se pelo menos um alqueire de sal228. Num
período cronológico bem mais próximo, nomeadamente no mês de
abril de 1749 regista-se uma despesa de 20.800 réis em oito moios de
sal e sua condução da caravela para a cabana da Pederneira229.
Constantino Lacerda Lobo dedica à arte da conserva de peixe em
Portugal uma memória descritiva em que explana o carácter rudimen-

226
Vicente Almeida D’EÇA, “As Pescas em Portugal. As salinas”, in Exposição
Nacional do Rio de Janeiro em 1908. Secção portuguesa. Notas sobre Portu-
gal, Lisboa, 1908, 280.
227
I. GONÇALVES, O Património do Mosteiro de Alcobaça nos Séculos XIV e
XV, Lisboa 1989, 275.
228
I. GONÇALVES, À mesa nas terras de Alcobaça em finais da Idade Média,
DGPC/Mosteiro de Alcobaça, 2017, 271.
229
A.N.T.T., Livro de Despesas do Convento de Alcobaça, n.º 5 (1747-1750), mç
5, cx.132.

98
Barcos e artes de pesca nas costas da Nazaré e de S. Martinho, entre o século XVIII e 1930

tar dos métodos utilizados. Refere o autor que a salgação se faz quer
em tinas (pios) alternando o peixe, nomeadamente a sardinha, com
camadas de sal, ou que apenas o peixe é amontoado e salgado. A
pescada podia também ser colocada em pilhas salgada ou beneficiar
de uma salmoira230.
A importância do sal para a conservação do pescado leva à ne-
cessidade de explorar novas salinas na abertura do século XX. É o
caso da firma “Lopes & Companhia” que se constitui a 6 de abril de
1903, com sede na Pederneira e o capital social de 600.000 réis231.
Esta sociedade vai estabelecer as salinas na Aljufreira (Alfeizerão).
Mas a sociedade, embora concebida para durar 30 anos, acabou por
ter uma vida curta, sendo extinta a 23 de maio de 1911232.
A seca constituía outro importante recurso para a conservação. O
peixe era previamente amanhado, escalado e colocado em salmoira.
O tempo de preparação da moira variava, nomeadamente, entre 10 a
15 minutos para o peixe seco e 5 a 10 para o carapau enjoado. De
seguida, o peixe era levado para a seca sendo depositado no areal
sobre uma cama de junco. Para o peixe seco estimava-se 2 a 3 dias de
benefício solar, enquanto para o carapau enjoado (mais verde) basta-
vam 3 a 4 horas.”233
O peixe fumado, não seria tão expressivo, mas Iria Gonçalves
refere o caso particular das «sardinhas arencadas” de Alfeizerão»234.
Sabemos que a abadia de Alcobaça também adquiria arenques para
230
Constantino Lacerda LOBO, Memória sobre a preparação do peixe salga-
do, e seco das nossas pescarias, in Memória Económica da Academia Real das
Ciências de Lisboa (1789-1815), Tomo IV, Banco de Portugal, 198-201.
231
A.D.L., C.N.N., 1.º of., lv.143 ou 25, fls.4-7, 6 de abril de 1903. Da sociedade
faziam parte Rodrigo Lopes Gomes, proprietário das Quinta de S. Gião e Pesca-
rias que cedia o terreno e os Padres João Lopes Gomes, de Leiria, e António
Maciel Rodrigues Lima, de Forjães-Esposende, que exercia funções de pároco e
coadjutor da Pederneira. A administração da sociedade competia ao Padre Lima
e ao Padre Gomes a caixa da sociedade.
232
A.D.L., C.N.N., 1.º of., lv.207, fls.7-9, 23 maio de 1911.
233
Ana HILÁRIO; Carlos FIDALGO, Seca do Peixe: Uma Arte, Câmara Munici-
pal da Nazaré, 73.
234
I. GONÇALVES, À Mesa nas terras de Alcobaça em finais da Idade Média,
2017, 276.

99
José Manuel de Mascarenhas | António Valério Maduro

Figs. 66 e 67 - Estindarte de peixe no areal. O peixe era preservado pela salga e seca.
(Fot. de Álvaro Laborinho)

consumo, nomeadamente, no triénio de 1720-1723, menciona-se uma


despesa de 132$900 réis em 120 milheiros deste peixe. Também o
peixe preparado de escabeche chegava a terras alcobacenses prove-
niente de Aveiro235.

235
A. V. MADURO, Requinte e Paladar, 2019, 39.

100

Você também pode gostar