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KIERKEGAARD E O NASCIMENTO DO EXISTENCIALISMO

ALUNO: JUNIOR, Robson Pierre de Moura

RU: 2029893
PROFESSOR ORIENTADOR: DOS SANTOS, Wilson Xavier

RESUMO
Sören Aabye Kierkegaard é amplamente reconhecido como o primeiro
existencialista, fato do qual aqueles que possuem computador e/ou celular em casa
e acesso à Internet estão separados por apenas uns poucos cliques. Notórios
pensadores que viveram em tempos posteriores aos do dinamarquês – tais como
Karl Jaspers, que discorreu acerca de temas kierkegaardianos durante boa parte de
sua carreira, Wittgenstein (o qual, em uma conversa privada com um de seus
amigos, chegou a afirmar que Kierkegaard era 'um santo'), Sartre e Heidegger – se
aproveitaram grandemente do seu pensamento. Sua influência não está restrita ao
campo da filosofia, se estendendo a áreas como a literatura e a psicologia. O
presente trabalho intenciona: (I) apresentar as principais contribuições de
Kierkegaard à filosofia; (II) demonstrar a influência que a sua vida pessoal exerceu
sobre o seu pensamento; (III) explicitar os motivos pelos quais Kierkegaard é
considerado o pai do existencialismo; (IV) evidenciar como o seu pensamento
influenciou outros pensadores, sobretudo os demais existencialistas. Através da
leitura das bases bibliográficas primárias da dissertação corrente – as quais podem
ser encontradas nos livros 'Kierkegaard: Uma Vida Extraordinária', 'O Desespero
Humano' e 'O Conceito de Angústia' –, o processo de realização deste TCC teve o
seu início. Posteriormente, reflexões pessoais do autor e análises criteriosas dos
conteúdos destas obras foram indispensáveis à sua confecção. As principais
conclusões a que o autor chegou foram as de que Kierkegaard é absolutamente
subvalorizado nos meios acadêmicos, suas obras deveriam ser mais lidas e sua
importância para a filosofia é tremenda.

Palavras-chave: Kierkegaard. Existencialismo. Filosofia.


1
INTRODUÇÃO
Hoje, talvez mais do que nunca, pensadores de tendência existencialista, bem
como obras literárias, cinematográficas e até mesmo composições musicais que
compartilham de propensões usualmente associadas aos filósofos do
existencialismo, são extremamente populares. As razões para tanto são inúmeras, e
mereceriam um estudo mais aprofundado. Não obstante, como entre as quatro
motivações primárias do autor deste artigo não estava a de elencar os porquês da
atual fama dos existencialistas e a enunciação destes porquês definitivamente
(segundo o entendimento do autor) tornaria o corrente artigo demasiado longo e
prolixo, o mesmo se limitou a citar aqueles que lhe aparentaram ser os motivos mais
evidentes para o interesse generalizado nestes pensadores que os nossos
contemporâneos evidentemente nutrem.

Isso posto, no que tange à temática deste documento, há de se ressaltar que


o seu título visa, precisamente, à apresentação do tema principal: discorrer acerca
de Kierkegaard e dar à luz a compreensão dos fatores segundo os quais este
melancólico dinamarquês é presentemente reconhecido como o primeiro
existencialista. Mais precisamente, os objetivos deste trabalho são quatro: (I)
apresentar as principais contribuições de Kierkegaard à Filosofia; (II) demonstrar a
influência que a sua vida pessoal exerceu sobre o seu pensamento; (III) explicitar os
motivos pelos quais Kierkegaard é considerado o pai do Existencialismo; (IV)
evidenciar como o seu pensamento influenciou outros pensadores, sobretudo os
demais existencialistas.

O tema principal deste artigo e os quatro objetivos derivados deste foram


escolhidos em virtude do fato de que o autor, logo em seu primeiro contato com
Kierkegaard, sentiu-se maravilhado pelo pensamento deste filósofo. Deste espanto
inicial, emergiu nele um interesse mais aprofundado por esta figura, o qual não se
reduzia ao entendimento do seu pensamento: também abarcava a sua vida pessoal
e a influência que esta exerceu sobre a sua obra. Eventualmente, a sua consciência
não o permitiu que ele chegasse à outra conclusão: estava em seu destino dissertar
a respeito de Kierkegaard em seu trabalho de conclusão de curso.
Mais adiante, quando finalmente decidiu que era o momento de se dedicar à
confecção deste artigo científico, a seguinte questão repousou sobre a cabeça do

autor: ‘Devo me utilizar de qual material bibliográfico para escrever este trabalho?’.

A resposta a esta indagação não tardou a chegar, posto que, momentos


depois de fazer tal inquirição a si próprio, com o auxílio do Google teve acesso a
informações relacionadas a três livros: (I) ‘Kierkegaard: uma vida extraordinária’, de
Stephen Backhouse; (II) ‘O desespero humano’, daquele a quem este trabalho é
dedicado - Sören Kierkegaard; (III) e ‘O conceito de angústia’, também de
Kierkegaard. Naquele momento, dentre os livros disponíveis para compra, esses três
pareciam os mais adequados a serem utilizados como base bibliográfica ao seu
TCC, dado que estavam em concordância com o tema e os objetivos que o autor
havia estipulado a ele. Tal impressão não perdeu o seu sentido mesmo após o autor
realizar uma série de averiguações posteriores. Posteriormente, o autor efetuou a
compra desses livros e leu-os, de cabo a rabo, anteriormente ao processo de escrita
do corrente artigo. Tais livros, agora, estão todos rabiscados, devido ao fato de que
o autor deste artigo, no período em que se dedicou a lê-los, realizou uma série de
anotações em cada uma das obras selecionadas, com vistas a salientar os pontos
mais importantes de cada uma delas. Também não deixou de refletir acerca dos
conhecimentos adquiridos ao decorrer de suas leituras em momento algum – nem
mesmo após ter finalizado a leitura de todos os livros.

No tocante às partes do presente artigo, este se divide em quatro momentos.


Primeiramente, a vida de Kierkegaard é exposta, e busca-se estabelecer uma
correlação entre as suas experiências pessoais e a sua obra. Após isso, a pauta
volta-se para a corrente filosófica existencialista, focalizando nas principais ideias
comumente atribuídas a mesma e nos prováveis motivos segundo os quais os
pensadores pertencentes a este movimento são tão populares, nos tempos atuais.
Mais à frente, o escopo passa a ser a evidenciação do pensamento kierkegaardiano
e da influência que este exerceu sobre outros pensadores, sobremaneira os
existencialistas extemporâneos a ele. O capítulo final é reservado às conclusões
finais. Uma última página, ademais, é dedicada à exposição das referências
bibliográficas deste trabalho.
3

KIERKEGAARD: UM GÊNIO SOFREDOR

No dia 5 de maio de 1813, nasce Sören Aabye Kierkegaard. Era filho de


Michael, um rico comerciante. Sua mãe, Ane, fora empregada doméstica de seu pai
antes de casar-se com ele. Kierkegaard possuía, outrossim, três irmãs, as quais
atendiam pelos nomes de Maren, Nicoline e Petrea; e três irmãos, os quais
chamavam-se Sören Michael, Niels Andreas e Peter Christian.

Notadamente, Michael, tal como Kierkegaard, adorava ler e ostentava um


intelecto aguçado. No que diz respeito a questões financeiras, em virtude de sua
natural aptidão e profunda dedicação aos negócios, o patriarca dos Kierkegaards
fora a principal razão do amplo conforto material do qual estes dispuseram ao
decorrer de suas vidas.

Todavia, nem tudo são flores, e o chefe da família Kierkegaard, como todo
mundo, também possuía os seus defeitos e conflitos internos dos mais complexos.
Sua severidade, bem como a sua aparente insensibilidade, era notória. Quanto às
suas guerras interiores, a sua depressão – a qual, segundo palavras do próprio
filósofo a quem este trabalho é dedicado, era ‘assustadora’ – e a culpa resultante de
uma memória indesejada de infância o corroíam diariamente, e em momento algum,
nem mesmo em seu leito de morte, cessaram de atormentá-lo. Tal memória, vale
notar, estava intrinsicamente relacionada à sua relação com Deus, tópico o qual ele,
e tampouco o seu mais notável filho, jamais deslocou a uma posição secundária.
Ademais, uma questão mais socialmente sensível muito possivelmente suscitou no
pai de Kierkegaard sentimentos carregados da mais profunda negatividade: seu
casamento com Ane Lund, mãe de Sören, se deu somente um ano após a morte de
sua primeira esposa. Além disso, a primeira filha do casal, Maren, nasceu somente
cinco meses depois da data deste matrimônio. Tal desfavorável início a esta nova
família decerto contribuiu para a intensificação da melancolia de Michael.

É peremptório salientar, também, que Michael era um luterano dos mais


devotos. Isso posto, não é de se surpreender que todos os seus filhos tenham sido
batizados e confirmados na Igreja Luterana do Estado. A ênfase da Irmandade local
recaía sobre Cristo torturado e crucificado, e pouquíssimas palavras eram

pronunciadas acerca do Espírito Santo e da Ressureição. Portanto, a religiosidade


de Michael, no que concerne à expiação dos seus pecados, não foi das mais úteis. A
respeito disso, diz Kierkegaard ([19-] apud Backhouse, 2019, p. 54): ‘

Eu, quando criança, fui educado rigorosa e seriamente no cristianismo,


educado de forma insana, humanamente falando – já na mais tenra infância,
eu me sobrecarregara com a impressão de que o velho homem deprimido,
que jazia sobre mim, estava sucumbindo – uma criança que se revestiu,
quão insano, como um velho homem deprimido. Que assustador! Não é de
admirar, então, que houve momentos em que o cristianismo me pareceu a
crueldade mais desumana, embora eu, mesmo quando estava mais
distante, nunca me abstive da veneração que tenho por ele.

A ambivalência que Kierkegaard, em sua juventude, sentiu em relação a seus


estudos teológicos fora, destarte, absolutamente compreensível. Também não é de
causar estranheza o fato de que a obra de Kierkegaard por raras vezes não se
ocupou de temas concernentes a questões intimamente ligadas a Deus e às dores
do mundo.

Após a morte de sua mãe e da expansão subsequente dos seus sentimentos


de alienação social, a melancolia de Sören distancia-se ainda mais de sua extinção.
Em 1837, escreve em seu diário:

Não sinto vontade de fazer nada – é cansativo; não tenho vontade de me


deitar, pois ou me deitaria por muito tempo, e não sinto vontade de fazer
isso, ou me levantaria imediatamente, e também não sinto vontade de fazer
isso. [...] não tenho vontade de escrever o que escrevi aqui, e não tenho
vontade de apagá-lo. (KIERKEGAARD, 1837 apud BACKHOUSE, 2019, p.
69)

Passada esta lamentável fase de sua vida, Kierkegaard conhece Regine


Olsen, uma modesta jovem que eventualmente se tornaria o seu objeto de devoção
e fonte de grandes felicidades e, concomitantemente, incomensuráveis sofrimentos
para o mesmo. Ser um solitário espirituoso ou um amante honesto, eis a questão.
Nada além do esperado a um homem dotado de tão intensa vida interior.
Transcorridos alguns meses após o início do relacionamento entre os dois,
eles entram em um noivado. Entretanto, na data de 11 de agosto de 1841, Regine
recebe

um pequeno pacote embrulhado com papel. É o anel que ela deu a Sören quando
ficaram noivos. A nota explicativa (Kierkegaard, 1841 apud Backhouse, 2019, p. 92)
não é das mais animadoras:

Acima de tudo, esquece quem te escreveu isto; perdoa um homem que,


mesmo que fosse capaz de fazer alguma coisa, no entanto, seria incapaz de
fazer uma garota feliz. No Oriente, enviar um cordão de seda significa pena
de morte para o destinatário; neste caso, enviar um anel significa, muito
provavelmente, pena de morte para a pessoa que o enviou.

Eles estiveram noivos por treze meses.

Em seguida, Olsen implora, em várias ocasiões e repetidamente, para que


Kierkegaard reconsiderasse a sua decisão, porém tais tentativas de reatar o seu
vínculo com este enigmático dinamarquês resultam infrutíferas. É com imenso pesar
em seu coração que Kierkegaard tenta se convencer de que deveria ser cruel a fim
de ajudá-la. Ele a amou até o último dia de sua vida.

A filosofia de Kierkegaard fora profundamente influenciada pelo fracasso de


seu matrimônio com Regine. Mais precisamente, no que concerne a questões como
o amor, matrimônio e compromisso, é patente a possibilidade de que as visões de
Kierkegaard seriam distintas daquelas que, consecutivamente ao seu rompimento
com Olsen, o filósofo tomou diante delas caso: (I) os dois houvessem consumado o
casamento; (II) nunca tivessem tido nenhum contato digno de nota um com o outro;
(III) ou quiçá jamais tivessem se conhecido.

Notavelmente, outrossim, mesmo a postura de Sören no que tange à fé e à


relação do homem com Deus enfrentou mudanças significativas, depois disso.

Em Ou isso, ou aquilo: Um fragmento de vida, Kierkegaard realiza uma série


de referências veladas ao seu relacionamento com Olsen, nomeadamente, nas
sessões do livro destinadas a questões atinentes à sedução erótica e em um sermão
que trata das virtudes do casamento. Incluído nesta obra, ademais, está o Diário de
um sedutor. Ele contém um jovem rapaz que seduz uma moça para, em seguida,
desfazer-se dela. Não é necessário empreender um exercício mental dos mais
desgastantes para se estabelecer uma correlação entre a história ficcional que

Kierkegaard conta neste livro e a história real vivida por ele e Regine.

À luz deste fato tão essencial à sua biografia e ao entendimento de sua obra –
isto é, o seu rompimento com Olsen –, o seu famoso livro Temor e tremor também
adquire novos significados. Por qual razão? Bom, a obra – construída a partir da
análise da história de Abraão e de seu filho, cujo postulado é o de que o homem
passa do estado ético ao religioso por via do salto da fé – possui uma contraparte na
realidade: no caso, Kierkegaard está para Abraão assim como Isaque está para
Olsen. O pensador sacrificou uma vida com Regine à custa de sua própria
felicidade, sua honra e a honra de sua família. A razão para a sua decisão, como a
fé, é difícil de se explicar por vias meramente racionais. É o crer sem ver.

Acerca do amor que nutria por Regine, Kierkegaard (1848 apud Backhouse,
2019, p. 97) escreve: ‘Os poucos dias dispersos que eu tenho, humanamente
falando, muito felizes, eu sempre ansiei indescritivelmente por ela, a quem amei
muitíssimo, e que também, com suas súplicas, me emocionou profundamente’.

Mais adiante em sua vida, o trabalho de Kierkegaard é positivamente


reconhecido pela Corsaren, um semanário satírico e político de sua época. Todavia,
o semanário em questão ressaltava somente as suas reflexões concernentes à
camada estética do homem, deixando em segundo plano tudo aquilo que dizia
respeito às suas digressões sobre os estágios ético e religioso – os mais essenciais
ao filósofo –, motivo de infindável frustração para Sören. Em seu diário, não deixa
margem para dúvidas quanto ao grau de sua desolação: ‘Não, obrigado, eu posso
pedir para ser insultado, em vez disso. Ser insultado não prejudica essencialmente o
livro, mas ser elogiado dessa maneira é ser aniquilado.’ (KIERKEGAARD, [entre
1845 e 1847] apud BACKHOUSE, 2019, p. 127)

Diante disso, Kierkegaard toma uma atitude que a princípio pode soar
absurda, porém inapelavelmente de maneira alguma incondizente com a sua intensa
personalidade: ele solicita ao jornal que este publique sátiras ao seu respeito. Os
corolários de tal pedido e do eventual acato deste são dos mais nefastos ao
pensador dinamarquês: uma série de caricaturas direcionadas à sua pessoa são
publicadas no

referido jornal e a resposta popular, a qual caracterizou-se primariamente por


incessantes deboches ao pensador, é de prontidão sentida por Sören e com muita
amargura. São de partir o coração as palavras que, em seu diário, ele escreveu
acerca deste lôbrego período de sua vida:

Cada ajudante de cozinha se sente justificado em quase me insultar em


conformidade com as ordens da Corsaren, estudantes jovens riem consigo
e se arreganham, e ficam felizes em ver uma pessoa proeminente sendo
pisoteada. [...] A menor coisa que eu faça, se é simplesmente uma visita [...]
se a Corsaren descobrir, isso é impresso e lido por todo mundo; a pessoa
que eu visito fica constrangida, quase com raiva de mim, e não se pode
culpá-la. (KIERKEGAARD, 1846 apud BACKHOUSE, 2019, p.137)

Não se deve subvalorizar os efeitos colaterais que tais acontecimentos


exerceram sobre a psique de Kierkegaard e sobre o seu destino. Um livro contendo
somente as anotações em seu diário referentes a questões diretamente
relacionadas às provocações que Sören sofreu, nesta época, poderia ser facilmente
publicado, dada a ampla quantidade de escritos respeitantes a este tópico que ele
nos deixou. Ademais, engana-se quem possa pensar que os supraditos insultos
tiveram uma influência restrita à vida interior de Kierkegaard: em decorrência deles,
e da reação emocionada de Sören a estes, sua vida prática também enfrentou
câmbios bem significativos, posto que, posteriormente a este tempo, manifestou-se
no pensador uma audaciosa convicção: a de que o seu rumo era nada menos que
uma colisão com toda a cristandade. No que tange a este ponto, faz-se mister
levantar a seguinte reflexão do filósofo:

Expor-me voluntariamente ao ataque da Corsaren é, sem dúvida, a coisa


mais intensa, na condição de gênio, que eu fiz. Terá consequências em
todos os meus escritos; será extremamente importante para todo o meu
trabalho sobre o cristianismo e sobre a minha elucidação do cristianismo.
(KIERKEGAARD apud BACKHOUSE, 2019, p. 143)
Essa epifania recaiu sobre Sören em seus últimos anos de vida, e, dada a
intensidade deste excerto, não é de se assombrar que os seus anos finais, no que
se refere ao seu trabalho filosófico, tenham sido também os mais produtivos de toda
a sua existência humana. De 1846 a 1854, sob o seu próprio nome, Kierkegaard
trouxe As duas eras, Discursos edificantes em vários espíritos, As obras do amor,
Discursos

cristãos, Os lírios do campo e as aves do céu, Três discursos para a comunhão de


sexta-feira, Do meu trabalho como escritor e Para o exame de si mesmo. Sob
pseudônimos, também lança as obras O desespero humano (ou A doença até à
morte), Dois ensaios ético-religiosos, A crise e uma crise na vida de uma atriz e
Prática do cristianismo. E não para por aí (!), uma vez que outros livros de sua
autoria e de indubitável relevância não viram a luz do dia enquanto Kierkegaard
ainda estava vivo: o lançamento destas obras deu-se postumamente. Os nomes
destes livros são Ponto de vista do meu trabalho como escritor, O livro sobre Adler,
Neutralidade armada e Julgue por si mesmo!

Em virtude do conteúdo das obras supramencionadas, as quais são


permeadas por críticas consideravelmente incisivas à cristandade, Sören torna-se
uma figura ainda mais controversa entre a comunidade que o abrigava, mormente
aos clérigos que integravam a comunhão religiosa local – que também eram os
principais alvos dos juízos de valor antagonísticos do filósofo. Ora, alguém
destemido o suficiente o suficiente para emitir frases como ‘toda a cristandade
moderna é uma substituição da base essencialmente cristã pela estética’ nunca
poderia ser uma unanimidade entre os membros de qualquer civilização.

Ele morreu como um defensor apaixonado de suas ideias e sem nunca


renunciar a nenhuma delas em virtude de quaisquer convenções sociais.

O trabalho intelectual de Kierkegaard é formidável e a sua relevância,


atemporal. Sua vida, da mesma maneira, fora das mais memoráveis, digna de
maiores menções e frutuosas discussões. A confluência entre o seu trabalho
intelectual e a vida pessoal deste autor podem nos ajudar a entender as razões
segundo as quais o filósofo dinamarquês é amplamente reconhecido como o
primeiro existencialista.

Mas, afinal, o que foi o existencialismo e por que os pensadores deste


movimento são tão influentes? Trataremos dessas questões no próximo capítulo.

O EXISTENCIALISMO

Surgido em meados do século XX, seguinte àquele em que viveu


Kierkegaard, e popularizado após a Segunda Guerra Mundial, o existencialismo
postulava que a essência humana é erigida ao decorrer de sua existência terrena.
Nesse contexto, em virtude de sua liberdade irrestrita, o ente humano confere
sentido à sua vida a partir de suas escolhas pessoais.

Nenhuma escolha é intrinsicamente boa ou ruim: independentemente do


caminho escolhido pelo indivíduo, este deverá renunciar algo para que possa
alcançar os fins pretendidos pelo mesmo. Todo ganho implica uma perda.

O existencialismo, portanto, é um movimento filosófico que possui em seu


centro o indivíduo, no qual há o primado da subjetividade individual sobre quaisquer
outras questões de ordens distintas. Temas como o sentido da existência terrena e o
desespero humano são tidos na mais alta conta por pensadores pertencentes a esta
corrente filosófica, ao passo que tópicos atinentes a questões políticas ou relativas à
filosofia da ciência, por exemplo, são relegados a um segundo plano. A célebre frase
de Albert Camus, a qual inaugura o seu ensaio ‘O mito de Sísifo’, dá o tom do
movimento: ‘Só existe um problema filosófico realmente sério: é o suicídio.’
(CAMUS, 2004, p. 7)

Nesse sentido, pode-se dizer que, em relação ao seu diálogo com as demais
áreas do conhecimento, o existencialismo encontra-se muito mais próximo da
psicologia e da sociologia que da ciência, da matemática, da biologia ou quaisquer
outras áreas do saber carregadas de um caráter mais técnico, objetivo, exato.
Dentre os principais autores pertencentes a este movimento – ou associados
a ele, ainda que não necessariamente existencialistas propriamente ditos -,
podemos citar Jean-Paul Sartre, Martin Heidegger, Karl Jaspers, Maurice Merleau-
Ponty, o susodito Albert Camus e a afamada feminista Simone de Beauvoir.

Tais pensadores, bem como as suas principais ideias, são hoje extremamente
populares entre os mais diversos grupos sociais. Questões intimamente ligadas aos

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tópicos mais abordados pelos existencialistas são motivo de incalculáveis reflexões


e discussões, as quais não se limitam aos meios intelectuais; estendem-se,
outrossim, a conversações entre cidadãos dissociados da vida acadêmica, dentre os
quais muitos sequer possuem a consciência da existência da escola filosófica de
que estamos falando neste momento.

O autor do artigo vigente pensa que as origens do Existencialismo e de sua


subsequente popularidade remontam ao período do Renascimento, no qual o eixo
das considerações filosóficas, antes majoritariamente repousadas em tópicos
concernentes ao entendimento do sagrado e dos anseios divinos, passou a ser o
homem. Precedentemente à Idade Moderna, vigorava o pensamento teocêntrico
(definido pelo primado de uma entidade transcendente – Deus – sobre a vontade e a
racionalidade humana); com o advento do Renascimento e do Iluminismo – este, um
movimento intelectual e filosófico que elevou os princípios e considerações
renascentistas a um patamar superior –, essa hierarquia foi invertida, ou seja, Deus
foi retirado do topo dela e comutado pelo próprio homem. Principiou-se, assim, o
reinado do pensamento antropocêntrico, em que o homem está no centro de tudo e
a sua racionalidade é enxergada como o meio primário de sua emancipação. Isso
posto, está claro para que nós que o pensamento existencialista compartilha de mais
semelhanças com aquele característico do renascimento cultural que com a visão
teocêntrica segundo a qual os principais pensadores da Idade Média iniciavam as
suas discussões, uma vez que coloca o indivíduo – e não Deus – no centro de seus
inquirimentos filosóficos, sendo este movimento, também, relativamente
despreocupado com inquirições acerca de questões metafísicas, características da
medievalidade – o que pode soar contraditório ao leitor, visto que este trabalho trata
de um autor profundamente cristão que, como vimos anteriormente, raramente
deixou de tratar de pautas respectivas à relação do homem com Deus ao longo de
seu trabalho filosófico; todavia cremos que tudo isso ficará mais claro a quem estiver
lendo mais à frente.

Há de se ressaltar, porém, que os existencialistas eram extremamente críticos


aos pensadores do movimento iluminista, mormente no que tange à sua visão,
percebida pelos filósofos do existencialismo como fantasiosa, de que a razão
sozinha seria capaz de dar um basta a todos os dilemas humanos. Contrariamente
aos

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pensadores iluministas e ao espírito renascentista, boa parte dos existencialistas


flertavam com tendências absurdistas – as quais se referem, primariamente, ao
conflito entre a inclinação humana de buscar um significado inerente à vida e a sua
inabilidade para encontrá-lo em um universo desprovido de qualquer propósito
maior. Não poderíamos deixar, além do mais, de patentear que foi o próprio
Kierkegaard o filósofo responsável pela eclosão do absurdismo como conceito e os
existencialistas do século passado, os pensadores que desenvolveram o absurdismo
como um sistema de crença.

Isso posto, nos ocorre realizar a seguinte inquirição a nós mesmos: por que
os existencialistas, no século presente, são tão populares? A tal questão, várias
respostas poderiam ser enunciadas, entretanto, focaremos aqui nas contingências
do momento histórico em que residimos e em como as circunstâncias presentes
podem justificar o crescente interesse que as massas e os intelectuais de nosso
tempo vêm desenvolvendo por tal corrente filosófica.

Vivemos em tempos permeados pelo individualismo, seja em uma esfera


puramente pessoal, quanto no campo social. Há a primazia de vaidades e anseios
particulares sobre questões que abranjam o todo coletivo do qual nós pertencemos.

Ademais, posturas materialistas, intimamente ligadas ao individualismo de


que falamos no parágrafo precedente a este, na era corrente, ocupam uma posição
privilegiada em relação a tudo aquilo que se refere ao intelecto e ao espírito. A
sociedade presente é uma sociedade de consumo e de produtividade, na qual os
indivíduos são definidos por aquilo que possuem e produzem. O atual estado de
coisas, em certa medida, é também darwinista no sentido mais negativo que possa
ser atribuído ao termo, posto que ao ostracismo social estão condenados todos
aqueles que não sucedem em adquirir – ou simplesmente não desejam conquistar –
um cargo profissional mais prestigiado segundo a valoração da nossa civilização.

Vale lembrar, outrossim, que residimos naquele que é, talvez, o século mais
secularizado de toda a história humana. O número de cidadãos que se identificam
como ateus ou agnósticos tem aumentado a cada dia e as instituições religiosas
nunca antes tiveram uma influência tão diminuta sobre os mais diversos campos da

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sociedade.

Nos é cristalino o fato de que a camada mais conformista e menos inclinada a


considerações de ordem filosófica – e também sociológica, dado que na presente
instância deste trabalho estamos discorrendo acerca de questões que
invariavelmente incidem sobre esta área do saber – da nossa sociedade tende a se
adaptar às condições societais anteriormente aludidas sem empreender maiores
questionamentos atinentes à influência que as atuais conjunturas exercem sobre si e
sobre o meio social em que ela participa.

Contudo, diversamente ao modo segundo o qual os integrantes da casta mais


acomodada da sociedade costumam lidar com as circunstâncias de vida hodiernas,
uma classe distinta de homens e mulheres, os quais (por razões práticas)
chamaremos aqui de ‘dissidentes’, propendem a tomar uma posição diametralmente
oposta àquela mais comum aos integrantes do primeiro grupo: a de adotar uma
postura mais crítica no que se refere às bases fundantes do mundo atual.

Como os indivíduos dissidentes falham em se identificar com as condições de


vida modernas, é comum surgir nestes seres um profundo sentimento de alienação
em relação a estas condições mesmas, as quais em numerosas frentes se
assemelham grandemente ao contexto social das sociedades em que os
existencialistas do século passado se estabeleceram. Poder-se-ia dizer, até, que o
modus operandi das sociedades modernas constitui-se de uma intensificação dos
meios de vida das civilizações em que estes pensadores residiram.
Assim sendo, uma vez que os filósofos deste movimento se debruçaram
sobre questões ainda muito atuais, não é de se surpreender que os nossos
contemporâneos se inclinem a nutrir certa simpatia pelos existencialistas.

A ênfase destes pensadores na subjetividade pessoal, traço natural de nossa


contemporaneidade que nos condiciona a refletir cada vez mais acerca de questões
de foro individual, também é por demais atrativa aos nossos irmãos de século.

O relativo secularismo dos mais célebres pensadores existencialistas, os


quais eram majoritariamente ateus ou agnósticos, é, outrossim, mais um traço deste

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movimento que pende a despertar a curiosidade de nossos contemporâneos, haja


vista que estes pertencem a um tempo no qual, como fora anteriormente aludido, a
laicidade prevalece e pensadores mais religiosos são vistos com mais desconfiança.

Agora que entendemos os porquês de acordo com os quais os


existencialistas do século passado são tão bem estimados entre os cidadãos de
nosso tempo, procederemos a falar a respeito da filosofia de Kierkegaard
propriamente dita e acerca da influência que o seu pensamento exerceu sobre
alguns dos pensadores que foram citados no corrente capítulo desta dissertação.

KIERKEGAARD: SEU PENSAMENTO E INFLUÊNCIA

Seria pretensioso da parte do autor do corrente artigo propor-se a expor a


filosofia do pensador que tem sido examinado aqui em toda a sua inteireza, haja
vista que o mesmo realizou somente a leitura de duas de suas obras – ‘O desespero
humano’ e ‘O conceito de angústia’ –, as quais constituem apenas uma ínfima
porção de seu vasto trabalho intelectual escrito, o qual, como fora dito na introdução,
serviu de inspiração não só aos seus pares disciplinares, como também a
pensadores cujos campos primários de estudo eram distintos daquele ao qual
Kierkegaard dedicou-se primordialmente: a filosofia. Rememoremos aquilo que fora
dito no compêndio inicial da dissertação presente: sua influência se estende aos
mais diversos campos do saber, dentre os quais podemos citar a psicologia e a
literatura. Resquícios de seu legado intelectual também podem ser encontrados na
música, e de maneira a ilustrar este ponto, invocamos o fato de que, no ano de
2013, em uma entrevista concedida à revista e site estadunidense Vice, o aclamado
rapper Donald Glover – mais frequentemente reconhecido pelo seu nome artístico:
Childish Gambino –, surpreendentemente (ou não; o conteúdo lírico de sua obra
musical é fortemente carregado de temas amiudamente associados a questões que
foram previamente contempladas por uma pletora de pensadores existencialistas),
revelou ao seu entrevistador que, à época em que concedeu aquela entrevista,
estava desenvolvendo um interesse crescente pela obra de Kierkegaard.

Portanto, nosso escopo aqui não é o de esboçar uma espécie de biografia


intelectual do referido filósofo, mas, sim, o de dar à luz ao entendimento das ideias
que, no entendimento do autor do trabalho vigente, são fulcrais à compreensão do

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pensamento kierkegaardiano.

Sem mais delongas, nas próximas linhas, procederemos a expor essas ideias.

Logo no primeiro capítulo de sua célebre obra O desespero humano,


Kierkegaard (2003, p. 19) postula: ‘O homem é uma síntese de infinito e de finito, de
temporal e de eterno, de liberdade e de necessidade, é, em resumo, uma síntese.’

Portanto, ainda que a existência terrena de cada ser humano seja finita, todos
nós somos eternos, pois fomos criados por um ente superior, transcendente –
Deus–, o qual nos gerou à sua imagem e semelhança e reservou a cada um de nós
um espaço na eternidade.

O desespero, por seu turno, é universal. No que tange a este ponto, escreve
Kierkegaard (2003, p. 27):

Da mesma forma como provavelmente não haja, segundo os médicos,


ninguém completamente são, também se poderia dizer, conhecendo bem o
homem, que não há um só que esteja isento de desespero, que não tenha
lá no fundo uma inquietação, uma perturbação, uma desarmonia, um receio
de não se sabe o quê de desconhecido ou que ele nem ousa conhecer,
receio duma eventualidade exterior ou receio de si mesmo.

O desespero, dessarte, constitui um problema do qual nenhum de nós pode


escapar. Como remediá-lo? Segundo Sören, somente uma solução é possível: a de
estabelecermos uma relação com a entidade superior que nos criou – Deus. Através
deste encontro, seríamos capazes de alcançar o máximo potencial de nossas
capacidades individuais e cessarmos de nos exasperar.

Renegando a Deus, renegamos, concomitantemente, a centelha divina que


há em nós e, por consequência, renegamos a nós mesmos.

São dois os tipos primários de indivíduos que podem ser identificados como
‘desesperados’: (I) aqueles que miram no infinito, esquecendo-se, porém, da
importância daquilo que é finito – característica essencial: perderem-se em fantasias
–; (II) aqueles que, ao contrário dos pertencentes a esta primeira classe de
indivíduos, visam o finito, negligenciando o infinito – característica essencial:
perderem-se em mundanidades.

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O pecado, de acordo com Kierkegaard, ocorre quando, confrontados com


Deus, em um estado de axiomático desespero, por nada ansiamos, ou queremos ser
nós mesmos.

Sofrem mais aqueles que possuem a consciência do seu desespero – é


possível acreditar-se inteiramente desprovido de qualquer espécie de aflição,
estando, entretanto, nas camadas mais profundas de seu ser em um estado de
desespero patente –, e ainda mais os que comensuram a sua condição à luz dos
ditames divinos, os colocando acima das leis humanas.

Dessa maneira, o oposto do pecado não é a virtude, mas, sim, a fé. A fé é um


estado que só pode ser atingido a partir do momento em que o indivíduo assume um
compromisso com Deus, atingindo, por conseguinte, o ápice de suas
potencialidades humanas.

Em O conceito de angústia, Kierkegaard desenvolve a ideia de que a angústia


a que o título do livro se refere é uma forma dispersa de medo. Um homem à beira
de um precipício é acometido por duas sensações paradoxais: a primeira refere-se
ao seu medo de cair; a segunda, a de se atirar propositadamente ao precipício.
Decorre, portanto, da liberdade individual o sentimento de angústia.

No entanto, é essa mesma angústia um meio de acordo com o qual a


humanidade pode alcançar a sua salvação. Ela serve a fins oraculares a partir do
momento em que atingimos um determinado grau de autoconhecimento. Ademais,
por intermédio da experiência da angústia, um dado indivíduo torna-se
incontroversamente autoconsciente. Deste modo, se pode dizer que a angústia é
uma faca de dois gumes: ao mesmo tempo em que pavimenta o caminho para o
pecado, possui em si a potencialidade de nos indicar as veredas segundo as quais
podemos nos realizar inteiramente enquanto indivíduos.

‘Aquele que é formado pela angústia é formado pela possibilidade, e só quem


é formado pela possibilidade está formado de acordo com sua infinitude.’
(KIERKEGAARD, 2015, p. 169)

Agora, procederemos a expor uma série de autores – estes, pertencentes às


mais diversas áreas do conhecimento e das artes – que foram influenciados por

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Kierkegaard.

Karl Jaspers (1883-1969), filósofo e psicólogo alemão, amplamente


reconhecido (como Kierkegaard) como um dos fundadores do existencialismo, fora
profundamente influenciado pelo dinamarquês. Foi através do seu primeiro contato
com Kierkegaard que ele desenvolveu os meios acurados de articular a sua ideia de
que uma doença mental é um ‘incidente’ na vida de um dado indivíduo e um
fragmento do desenvolvimento existencial dessa pessoa.

No ano de 1818, em seu diário, Franz Kafka (1883-1924), um aclamado


escritor tcheco, disserta acerca dos seus contatos com Kierkegaard. Curiosamente,
este autor – cuja obra mais célebre chama-se ‘A Metamorfose’ –, rompeu com sua
noiva por uma razão idêntica àquela segundo a qual Kierkegaard cortou o seu
vínculo com Regine Olsen: o de desacreditar em sua capacidade de proporcionar à
sua amada uma vida feliz.

Karl Barth (1886-1968), teólogo suíço reformado que é reiteradamente


considerado como o maior teólogo protestante do século XX, também não escapou
da influência de Kierkegaard, tendo dito, no prefácio da segunda edição do
Comentário à sua Carta aos Romanos (apud Backhouse, 2019, p. 192), que seu
sistema está ‘limitado a um reconhecimento do que Kierkegaard chamou de
‘distinção qualitativa e infinita’ entre o tempo e a eternidade’.
Como fora exposto no anteâmbulo do presente artigo científico, para o filósofo
austríaco Ludwig Wittgenstein (1889-1951), Kierkegaard não era nada menos que
um santo.

O francês Thomas Merton (1915-1968) – o qual fora, ao longo de sua


existência humana, entre outras coisas, (I) monge, (II) escritor espiritual, (III) ativista
não violento e (IV) ativista pacífico da não proliferação nuclear – era, outrossim, um
homem dotado de imensa admiração por Kierkegaard. Recém-convertido ao
catolicismo, em seu diário, escreve, no ano de 1940, as seguintes palavras: ‘Há uma
semana, eu comprei Temor e tremor de Kierkegaard na Oxford University Press, e
desde então, falei tanto sobre isso, que sinto como se tivesse lido Kierkegaard a
minha vida inteira.’ (MERTON, 1940 apud BACKHOUSE, 2019, p. 196)

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O suprarreferido francês Albert Camus (1913-1960), no ano de 1942, lançou o


seu romance O estrangeiro e seu tratado filosófico O mito de Sísifo. Kierkegaard
fora, talvez, a principal influência de Camus. Seu pensamento fora particularmente
influenciado pela leitura que Kierkegaard fizera da história bíblica de Abraão e
Isaque.

Ser e tempo, o maior e mais influente trabalho do filósofo alemão Martin


Heidegger (1889-1976), contém três notas atinentes a Kierkegaard e está repleta de
temas kierkegaardianos, mas trata-se, todavia, de um trabalho desempossado de
quaisquer orientações que possam ser categorizadas como cristãs.

O existencialista francês Jean-Paul Sartre (1905-1980) não tarda em renegar


Kierkegaard, em virtude do agudíssimo cristianismo do pensador dinamarquês –
Sartre era ateu. Contudo, seus pensamentos concernentes à importância
fundamental do livre-arbítrio são erigidos sobre a supracitada obra Ser e tempo
(Heidegger) e, como vimos no parágrafo anterior, tal trabalho abrange uma pletora
de temas kierkegaardianos e, por conseguinte, mesmo que não soubesse disso,
Sartre fora seguramente influenciado por Kierkegaard.

Tendo em vista o amplo acervo de autores que coletamos – os quais


constituem uma ínfima porção de todas as célebres pessoas que possuem
Kierkegaard na mais alta das estimas –, quaisquer tentativas de deslegitimar a
relevância do pensamento kierkegaardiano tornam-se ilegítimas, fato que independe
da nossa adesão ou do dissentimento das suas ideias.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A vida pessoal de Kierkegaard pode nos servir como um subsídio à


compreensão do seu pensamento. Nomeadamente, os acontecimentos de sua vida
familiar (especialmente, aqueles relativos à relação de seu pai com Deus e com sua
família), amorosa (evidentemente, aqui nos referimos primariamente ao seu
envolvimento com Regine Olsen) e social (mais precisamente, os ataques que
recebeu da Corsaren) serviram de grande influência às suas ideias mais notáveis.
Kierkegaard, muito possivelmente, não teria despendido tanto tempo a falar de Deus
caso não houvesse, desde a sua mais tenra infância, tido contato com um homem
tão devotamente cristão – o seu pai. Outrossim, ele presumivelmente jamais teria
dado à

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luz às suas ideias respectivas à Abraão e Isaque se o mesmo não tivesse sofrido
descomedidamente com a sua tão ousada quanto absurda escolha de cessar o seu
romance com Regine no zênite de sua paixão pela jovem. Ademais, se os ataques
da Corsaren a Sören não houvessem sido levados a cabo, o mesmo provavelmente
nunca haveria dado início ao mais prolífico período de toda a sua produção
intelectual, o qual, como vimos anteriormente, subsistiu entre os anos 1846 e 1854.

No que corresponde à corrente filosófica existencialista, esta caracteriza-se


pela supremacia da subjetividade individual sobre outras questões de ordens
diversas, tais como aquelas que concernem à metafísica, à ciência e à linguagem.
São caros aos filósofos existencialistas temas como o sentido da vida, a liberdade
individual, o sentimento de absurdo perante a existência e o desespero humano.

Hoje, os existencialistas estão em alta: muito se fala sobre eles. Há motivos


para isso: vivemos em uma era secularizada, materialista e centrada no indivíduo. O
existencialismo oferece uma perspectiva crítica à modernidade – da qual seus
precursores faziam parte –, sem, no entanto, romper inteiramente com ela. Sem
pregar um retorno à medievalidade e, simultaneamente, adotando uma postura
crítica à concepção – segundo o entendimento dos existencialistas, utópica –
iluminista de acordo com a qual a razão reduzida a si mesma seria capaz de extirpar
todos os dilemas humanos, o existencialismo serve como uma terceira via a
indivíduos dissidentes que buscam um propósito às suas vidas.

No que tange ao pensamento kierkegaardiano propriamente dito, a partir da


leitura das obras ‘O desespero humano’ e ‘O conceito de angústia’, podemos extrair,
dentre outros, os seguintes saberes: (I) a existência humana é finita; o ser humano,
eterno, posto que fomos criados por um ser transcendente – Deus – que nos gerou
para a eternidade; (II) o único meio de acordo com o qual o desespero humano pode
ser suspendido é através do estabelecimento de uma relação íntima com Deus; (III)
são dois os tipos primários de indivíduos que podem ser categorizados como
‘desesperados’: os que enxergam o homem somente em sua relação com o
transcendente, e aqueles que contemplam somente a camada terrena, material da
vida. Deve-se conciliar ambas as esferas da vida humana: a terrena, finita e a
transcendente, eterna; (IV) o oposto do pecado não é a virtude, mas a fé,

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condição necessária para qualquer indivíduo que anseie por alcançar o ápex de
suas capacidades individuais; (V) a angústia é filha da liberdade; (VI) a angústia
possui a potencialidade de nos conduzir a duas estradas: uma que nos leva à
perdição e outra que nos orienta à salvação.

Quanto à influência que Kierkegaard exerceu e continua exercendo sobre


membros dos mais diversos campos do saber e das artes, sua lista de apreciadores
é gigantesca, dentre os quais incluem-se: Karl Jaspers, Franz Kafka, Karl Barth,
Ludwig Wittgenstein, Thomas Merton, Albert Camus, Martin Heidegger e Jean-Paul
Sartre. Especialmente influentes aos existencialistas foram suas ideias respectivas
ao desespero humano, ao sentimento de absurdo perante a existência (como vimos,
o absurdismo como conceito tem suas raízes em reflexões do próprio Kierkegaard) e
a sua ênfase na subjetividade individual de cada ser.

Destarte, aquele que renega o fato evidente de que Kierkegaard é um


pensador que, em virtude do seu vasto e originalíssimo trabalho intelectual, somado
à influência que este exerce até hoje sobre componentes das mais diversas áreas
do saber e das artes, possui uma relevância à história da Filosofia que se provará
atemporal age de má-fé ou é um ignorante. Camus, Sartre e Heidegger são
interessantíssimos, sim; entretanto, também o é Kierkegaard; e, por artifício da
leitura de suas obras e de sua intrigante vida, acompanhadas por profundas
reflexões acerca de tudo que envolve este incitante pensador, devemos redescobri-
lo!

REFERÊNCIAS

BACKHOUSE, Stephen. Kierkegaard: Uma vida extraordinária. Rio de Janeiro:


Thomas Nelson, 2019.

CAMUS, Albert. O mito de Sísifo. Rio de Janeiro: Record, 2003.

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PASTUK, Slava. Donald Glover: Fear and Trembling. Vice, 2013. Disponível em:
<https://www.vice.com/en_us/article/rqexvr/donald-glover-childish-gambino-
interview/>. Acesso em 18 de agosto de 2020.

KIERKEGAARD, Sören. O conceito de angústia. Rio de Janeiro: Vozes, 2015.

KIERKEGAARD, Sören. O desespero humano. São Paulo: Martin Claret, 2003.


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