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36 | 2021
Periferias urbanas: transformações e ressignificações
Edição electrónica
URL: https://journals.openedition.org/eces/6845
ISSN: 1647-0737
Editora
Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra
Refêrencia eletrónica
Joaquim Miranda Maloa, «Periferias urbanas moçambicanas e a sua nova paisagem», e-cadernos CES
[Online], 36 | 2021, posto online no dia 02 maio 2022, consultado o 02 maio 2022. URL: http://
journals.openedition.org/eces/6845
e-cadernos CES, 36, 2021: 149-164
Resumo: Este artigo procura mostrar como a nova paisagem entra nas periferias
urbanas moçambicanas. As paisagens das periferias urbanas moçambicanas foram,
durante muitos anos, caracterizadas como sendo constituídas por habitações precárias,
chamadas na geografia urbana moçambicana de “cidades de caniço” em oposição ao
centro, considerada “cidade de cimento”. Atualmente, a paisagem da periferia está
ganhado uma nova ressignificação histórica e conceitual face à instalação de novos
empreendimentos habitacionais, que vão substituindo a paisagem de “cidade de caniço”
pela “cidade de cimento”, com intensificação de autoconstruções de blocos e tijolos, que
substituí, por um lado, as habitações que outrora eram de caniço, paus e adobe (matopé
ou barro) e por outro, implantados novos empreendimentos habitacionais. Transpondo o
paradigma de dualidade da paisagem, “cidade de cimento” versus “cidade de caniço”, em
voga nas décadas de 1960 e 1990.
Palavras-chave: cidade de caniço, cidade de cimento, Moçambique, paisagem,
periferias urbanas.
Abstract: This article seeks to show how the new landscape enters the Mozambican
urban peripheries. The landscapes of the Mozambican urban peripheries were for many
years characterized as consisting of precarious housing, the so-called in Mozambican
urban geography of “reed city” as opposed to the centre, considered a “cement city”.
Currently, the landscape of the periphery is gaining a new historical and conceptual re-
signification due to the installation of new housing projects, which are replacing the
landscape of the “reed city” with that of “cement city”, with increasing numbers of self-
constructions made of blocks and bricks, which participate in the regeneration of the
periphery, which on one hand, replaces the houses that were once made of reeds, sticks
and adobe (matope or clay) and on the other, implements the new housing
developments, transposing the paradigm of the duality of the landscape, “cement city”
versus “reed city”, in vogue from the 1960s to 1990s.
Keywords: cement city, landscape, Mozambique, reed city, urban peripheries.
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INTRODUÇÃO
Este artigo procura mostrar como a nova paisagem entra nas periferias urbanas
moçambicanas. Para a Geografia, a paisagem corresponde a taxionomias de
tonalidades que sintetizam a descrição e a explicação dos territórios. É por isso que
nos estudos dos territórios a paisagem é adjetivada de rural, urbana, industrial, natural,
florestal, etc. (Domingues, 2019). A paisagem descreve também os traços dominantes
que se destacam numa realidade geográfica. Segundo Domingues (ibidem), longe das
regras compositivas da arte, da diversidade das estéticas ou das idealizações
paisagísticas da pintura ou da literatura, a paisagem tornou-se um objeto científico de
análise fundamental para o geógrafo. Produto das interações biofísicas e das
dinâmicas de transformação social, a paisagem corresponde ao visual do território, a
uma espécie de marca permanentemente mutável do que que vai acontecendo
através das formas de territorialização da sociedade.
Mudam-se os tempos, mudam-se as realidades e, por isso, mudam-se as
paisagens. É escusado confiar em tipologias demasiado estáticas e rigorosamente
definidas, porque o mais certo é que a aceleração das dinâmicas de transformação
social nos dará novidades constantes Por isso, atualmente a paisagem das periferias
urbanas moçambicanas está ganhando novas ressignificações históricas e conceituais
face à instalação de novos empreendimentos habitacionais que vão substituindo a
paisagem de “cidade de caniço” por “cidade de cimento”. Neste artigo, o termo
periferia deve ser entendido, como afirma Domingues (1994: 5), como aquela área da
cidade que situa-se em torno do centro. Para este autor,
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Este artigo está dividido em três partes: a primeira apresenta formações das
periferias urbanas que dão origem à paisagem dual de “cidade de cimento” versus
“cidade de caniço”; a segunda debruça-se sobre a expansão das periferias urbanas
das áreas suburbanas para as periurbanas; e na terceira e última parte evidenciam-se
as transformações que estão a decorrer nas periferias urbanas, com novos
empreendimentos nas paisagens com novas ressignificações.
1 Xilunguine, a cidade dos valungos, ou seja, dos “senhores” em línguas nativas, como ronga, changana e
xítsua (cf. Honwana, 2016).
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O crescimento da “cidade de cimento” – ou, para falar como Maria Clara Mendes
(1979), da “cidade branca” – dependia cada vez mais do trabalho negro para dar vida
à “cidade colonial”, principalmente em trabalhos precários que iam desde
empregadas/os domésticas/os, serventes dos restaurantes, estivadores, ajudantes,
carregadores, funcionários públicos de baixo escalão, etc. Como diz Penvenne (2012:
175), estes “não eram cidadãos nem mesmo, apenas pessoas”. Isto faz lembrar a
famosa doutrina Sallard da década de 1920, na África do Sul, que estipulava que os
negros estavam autorizados nas cidades dos colonos na medida em que serviam às
necessidades dos brancos. Como fica patente na poesia “Patrão”, de Noémia de
Sousa, a autora denuncia a experiência histórica do trabalho nos espaços urbanos, no
regime colonial:
Ah patrão, eu levantei
Esta terra mestiça de Moçambique
Com a força do meu amor,
Com o suor do meu sacrifício, com os músculos da minha vontade!
Eu levantei-a, patrão!
Pedra por pedra, casa por casa,
Árvore por árvore, cidade por cidade,
Com alegria e com dor!
Eu a levantei!
Se teu cérebro não me acredita,
Pergunta à tua casa quem fez cada bloco seu,
Quem subiu aos andaimes,
Quem agora a limpa e a põe tão bonita,
Quem a esfrega e a varre e a encera...
Pergunta ainda às acácias vermelhas e sensuais
Como os lábios das tuas meninas,
Quem as plantou e as regou,
E, mais tarde, as podou...
Pergunta a todas essas largas ruas citadinas,
Simétricas e negras e luzidias,
Quem foi que as alcatroou,
[...].
Pergunta quem morre no cais
Todos os dias - todos os dias!
[...].
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2 A Circular 818/D7, emitida pelo Governador-Geral José Tristão de Bettencourt a 7 de Outubro de 1942,
introduziu novos regulamentos de identificação da população negra, como forma de resolver a falta de
mão de obra nas plantações e coleta de imposto.
3 Por exemplo, em 1940 existiam 45 070 indígenas na cidade (Plano geral de urbanização de Lourenço
Marques, 1955).
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CONCLUSÃO
A história da transformação das periferias urbanas tem início no início da década de
1990, como mencionamos, com o primeiro esforço de valorização do espaço urbano
periférico para construção de casa própria e o surgimento da indústria de construção
imobiliária privada – a partir de capital nacional e internacional –, principalmente a
incidir nas áreas urbanas de Moçambique nos anos 2000 como modelo de
financiamento e constituição do sistema financeiro imobiliário. Como sabemos, a
urbanização moçambicana pós-colonial contou com algumas soluções acomodatícias
estatais para o problema habitacional dos altos funcionários do Estado e para um
grupo com poder aquisitivo em ascensão. Nos anos 2000 houve o surgimento de
muitas empresas de construção civil que passaram a configurar a nova paisagem das
periferias urbanas moçambicanas, com intensificações de construções habitacionais
convencionais de blocos e tijolos, participando na regeneração da periferia –
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