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Ficha Técnica Copyright © 2014 Pedro Mendonça

Burgos Todos os direitos reservados.

Diretor editorial: Pascoal Soto Editora executiva: Tainã Bispo Produção editorial: Pamela J. Oliveira, Renata Alves,
Maitê Zickuhr Diretor de produção gráfica: Marcos Rocha Gerente de produção gráfica: Fábio Menezes
Preparação de texto: Marleine Cohen Revisão: Iracy Borges Capa: Mateus Valadares Ilustração de capa: Stefano Marra

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) Angélica Ilacqua CRB-8/7057


Burgos, Pedro
Conecte-se ao que importa : um manual para a vida digital saudável / Pedro Burgos. – São Paulo : LeYa, 2014.

Bibliografia
ISBN 9788580447583

1. Tecnologia da informação 2. Redes de relações sociais 3. Internet 4. Tecnologia e civilização I. Título


13-1047 CDD 004.6
Índices para catálogo sistemático: 1. Internet – aspectos sociais

2014
Texto Editores Ltda.
[Uma editora do Grupo LeYa]
Rua Desembargador Paulo Passaláqua, 86
01248-010 – Pacaembu – São Paulo – SP
www.leya.com.br
Dedicatória

Para Nina, por todo o amor. Para meu pai, por me ensinar o valor de
conhecer melhor a tecnologia. E a minha mãe, por me inspirar a
compreender e amar as pessoas.
Apresentação “A gente devia fazer isso mais
vezes.”

É a minha e possivelmente a sua despedida padrão, parecida com o


“vamos combinar outro dia”. É uma frase que eu ouvi e me peguei falando
ou pensando inúmeras vezes nos últimos anos. Em várias situações: depois
de um jantar com amigos em casa, de uma peça de teatro sensacional, de
assistir a um desses filmões de cinema com amigos que apreciam os
mesmos heróis, depois de uma manhã no parque jogando basquete com
estranhos, de ler um romance incrível ou de ficar sozinho apreciando a
grandiosidade da natureza. Inevitavelmente, depois de coisas legais assim, é
o que eu penso. E se estou com alguém, o meu sorriso é sempre
correspondido: “É, precisamos”.
Comecei a perceber que há algo que une as experiências que “precisamos
fazer mais vezes”, as que ficaram na memória com detalhes e gosto de
quero mais: são coisas, digamos, reais, em lugares reais, que você pode
apreciar não apenas com os olhos, mas com todos os sentidos. Seja com
outras pessoas ou sozinho, prestando toda a atenção. Isso parece óbvio, se
pararmos para pensar. Mas por que, então, estamos favorecendo –
inconscientemente ou não – a realidade mediada pelas telas de diversos
tamanhos, que nos acompanham desde que acordamos até pouco antes de
dormir?
Nos últimos anos, vivi alguns episódios bem interessantes, que
aconteceram diante do computador ou da telinha do celular, mas, quando
parei para contabilizar os melhores momentos da minha vida recente e pedi
para outras pessoas fazerem o mesmo, percebi que as novas tecnologias
nunca estiveram em primeiro plano, por mais conectada que a pessoa
estivesse. Daqui a alguns anos, não vou lembrar se a longa conversa que
tive com um amigo outro dia foi combinada pelo Facebook ou por telefone,
se usei o Google Maps para chegar ao local ou se o aparelho que tinha em
mãos quando vi a mensagem “estou chegando” era um Android ou um
iPhone. As novas tecnologias estavam lá o tempo todo, e elas são
importantíssimas. Mas elas são mais importantes quando nos conectam ao
que importa.
A “boa tecnologia é a que está basicamente invisível”, diria Steve Jobs. O
objetivo de todo o aparato tecnológico é (ou deveria ser) servir como meio
para crescermos como pessoas, não como um fim em si. Passamos da era do
computador pessoal para a do computador íntimo, o das telinhas que nos
acompanham e nos conectam a tudo e a todos o tempo inteiro. É hora de
colocar o smartphone sobre a mesa, no silencioso, e refletir sobre o que ele
representa.
A vontade de escrever sobre o assunto surgiu no início de 2011, depois da
melhor viagem da minha vida, precedida por alguns momentos de estresse
absoluto, em que passei o tempo todo checando emails no celular e
participando de inúmeras discussões online. Estava de férias, no deserto do
Atacama. Longe da minha cidade e do trabalho, tive tempo de ler livros e
artigos que tratavam dos efeitos de algumas tecnologias sobre as pessoas –
e, o mais importante, pude meditar sobre eles. Comecei a observá-los em
mim: conectado, o tempo todo, a um celular de distância dos amigos e do
trabalho, estava mais ansioso, menos atento, com menos tempo, menos
sociável (apesar dos mais de 2 mil amigos nas redes sociais) e, em última
instância, mais gordo.
É difícil dizer que minha vida estava pior “por causa da tecnologia”, pois
há dezenas de benefícios nisso tudo e, convenhamos, temos uma certa
tendência em eleger grandes culpados pelos males da humanidade. Toda
geração elege seu grande mal do século: se hoje existem os “perigos da
hiperconectividade”, há 15 anos era lançado um novo livro sobre “como
combater o estresse” por dia. E, durante a gestação do livro, para cada
pessoa que reconhecia haver algo de errado na maneira como lidamos com
os nossos aparatos, havia outra para dizer que o problema “não é da
tecnologia, mas das pessoas”. O que é quase certo. A culpa de recebermos
emails de trabalho no fim de semana, quando estamos no cinema, por
exemplo, é da cultura workaholic de chefes sem empatia e da linha cada vez
mais tênue que separa a vida pessoal da profissional. Mas enquanto não
podemos mudar estruturas capitalistas, podemos desligar as notificações do
celular por mais tempo e chegar quase ao mesmo resultado. O ponto aqui
não é demonizar os nossos smartphones, mas entender as consequências de
um modo de viver onde eles são peça fundamental no cotidiano de cada vez
mais pessoas, e como fazer, enfim, para usar a conexão para o que importa.
Há motivos bem estabelecidos e embasados na Ciência para explicar por
que ficamos tão felizes diante de situações que alguns chamariam de reais.
Sim, parece que precisamos que algum cientista explique por que o abraço
de alguém querido é importante (oxitocina!) e por que precisamos sair mais
para fora (pela vitamina D, pelo menos). Da mesma forma, já sabemos
agora como o cérebro é enganado para acreditar que a simulação da
realidade – o amigo curtindo uma foto sua em vez de uma pessoa sorrindo
enquanto você relata uma viagem – nos parece suficientemente legal e nos
traz uma efêmera alegria, embora não seja necessariamente desejável ou
sustentável no longo prazo.
Não faltam críticos mais apocalípticos e intelectuais saudosistas
acreditando que estamos caminhando para um futuro inexoravelmente mais
triste, mais solitário e até mais ignorante. É absolutamente verdade que
quanto mais usamos as telas onipresentes, mais a qualidade das relações
com o mundo e com as pessoas muda. Mas o impacto disso ainda está sob o
nosso controle – e ele pode inclusive ser bastante positivo.
Então por que não estamos fazendo “isso” mais vezes? Todos parecem ter
uma desculpa padrão. Talvez ela esteja na sua cabeça agora. É bom tirá-la
da frente logo.
Quando perguntava às pessoas que boas lembranças tinham dos últimos
meses – a fim de entender o que “realmente importa” –, os sorrisos
saudosos vinham com um “falta tempo” dito com um suspiro. Parece que
falta. Mas não deveria faltar. Porque a tecnologia não está acabando com a
nossa vida e o nosso tempo, ela está nos dando mais. Não precisamos mais
ir ao banco, ou a um outro setor da empresa para resolver um problema,
largamos mão dos Correios e considero não ser mais necessário bater perna
em lojas de eletrodomésticos para comparar preços. Pense em todos os
serviços delivery que apareceram nos últimos anos, e como é fácil achar
qualquer endereço ou telefone. A internet e os smartphones nos deram a
chance de nos concentrarmos apenas no que importa. A rede nos dá um mar
de possibilidades, e o que fazemos com ela?
Gastamos um terço (e cada vez mais) do tempo online apenas nas redes
sociais, clicamos em sites com notícias desimportantes e vídeos pouco
engraçados e lemos milhares de emails que por algum motivo não caíram
na lixeira. No fim do dia, tal como a peixe Dori de Procurando Nemo, não
nos lembramos do que fizemos. Só sabemos que é tarde, uma vez que, por
conta de tudo isso, acabamos ficando mais tempo nos escritórios, seja para
responder àquele último email, seja para escapar do trânsito.
Mas vamos nos concentrar na vida profissional por um instante: a
tecnologia hiperconectada ao trabalho traz benefícios claríssimos.
Quando penso em como, décadas atrás, os jornalistas tinham de descer ao
centro de documentação para conferir uma única data, enquanto eu uso um
atalho no teclado, faço uma busca no Google e respondo à dúvida com
precisão, sinto que deveria estar escrevendo artigos cada vez melhores e
mais profundos, em menos tempo. Mas não estou. Ao invés disso, caí no
conto da multitarefa, acumulo algumas dezenas de emails por dia e passo
horas lendo coisas inúteis. Em vez de ganhar tempo e profundidade, fiquei
mais atarefado e superficial em mais níveis que gostaria de admitir.
É claro que pessoas diferentes têm níveis de conexão diferentes, mas
tenho certeza de que este livro servirá tanto para quem passa o dia todo com
o smartphone vibrando, cheio de mensagens, quanto para alguém
razoavelmente offline, que está testando a temperatura antes de cair na
água. Mesmo quem não está tão online conscientemente, precisa saber lidar
melhor com as telas no trabalho, já que um número cada vez maior de
empregos envolve estar no computador o dia todo e fazer hora extra com o
celular. E quando não estamos fazendo isso, no trabalho, muitos de nós têm
uma telinha de smartphone aberta no bolso, uma TV “inteligente” na sala,
um notebook no quarto ou um tablet para levar para a cama ou ao banheiro.
Se passamos tanto tempo com objetos tecnológicos conectados, é preciso
saber como se relacionar com eles, como não gastar tempo ou dinheiro
demais com eles e como a sociedade precisa se comportar para não ser
engolida pela tecnologia. A informação, os dispositivos e a conexão estão
ágeis demais. É importante avaliar a nossa relação com tudo isso.
“Você precisa escrever um livro com essas dicas de tecnologia”, era o que
ouvia de amigos, toda vez que indicava um aplicativo que melhorava a vida
cotidiana ou um atalho do navegador para economizar milissegundos.
Quando tive a ideia de escrever este livro, estava no meu terceiro ano como
editor-chefe do Gizmodo Brasil, um blog de tecnologia independente,
acessado por mais de um milhão de pessoas todo mês. Já tinha participado
das principais feiras de tecnologia do mundo, de Las Vegas ao Japão,
conhecendo as novidades que fariam parte do cotidiano das pessoas anos
mais tarde. Toda semana, tinha um gadget novo em casa ou no bolso e
testava smartphones, tablets e TVs 3D antes de eles chegarem ao mercado.
Era um trabalho invejável, divertido, que poderia ser bem aproveitado em
um “guia de compras” e dicas, numa versão estendida.
Mas quando eu parei para pensar, a minha necessidade de escrever o livro
vinha justamente do esgotamento do assunto tecnologia. A minha sensação
é que os jornalistas e leitores ficavam muito ligados às especificações do
produto (os gigahertz, polegadas e sistemas operacionais) e deixavam de
lado o que importava na tecnologia: de que maneira ela tornava a vida fora
da tela mais rica. “Tecnologia é um meio, não um fim”, virou o meu slogan
oficial. Eu defendia, por exemplo, a ideia do tablet não por ser ele um
“notebook mais leve”, mas porque com o iPad redescobri minha paixão por
histórias em quadrinhos e pude assinar revistas estrangeiras, além de soltar
a imaginação mexendo com fotos e jogando jogos de tabuleiro com amigos
distantes. Mas era difícil defender essas questões subjetivas perante uma
plateia ansiosa por comparativos técnicos e testes de laboratório, a minha
labuta diária no Gizmodo.
E à medida que fui pesquisando para selecionar as maneiras como a
tecnologia enriquecia nossas vidas, quais as melhores ferramentas e
programas, passei a entender melhor a influência deles sobre os nossos
comportamentos. Será que o limite de 140 caracteres imposto às mensagens
no Twitter e a opção única de “gostar” no Facebook mudam de alguma
forma o nosso discurso e as nossas relações? Qual o impacto da multitarefa
na nossa produtividade? E o papel das redes sociais no discurso político e
nas manifestações populares de 2013? Existe algo como uma overdose de
informação? A pirataria digital é a popularização da cultura ou o
empobrecimento da arte? Quais os efeitos da memória perfeita do Google
sobre a nossa privacidade? E o vídeogame como aproveitá-lo sem se viciar?
Será que, por causa das novas tecnologias, esta é a “geração superficial”,
como sugeriu Nicholas Carr em seu controverso livro, ou será que estamos
“sozinhos, juntos, e esperamos mais da tecnologia do que das pessoas”,
como prega Sherry Turkle?
Há muitas perguntas no ar e poucas respostas definitivas porque estamos
passando por um daqueles raros momentos da história em que a tecnologia
muda profundamente a vida das pessoas. E de maneira incrivelmente
rápida. Das definições dos transtornos psiquiátricos às regras de etiqueta,
tudo está mudando enquanto você lê estas páginas. Mais importante do que
dar soluções para o que nos aflige nas relações com a tecnologia, quero
suscitar reflexões e debates.
Mas o que eu quero mesmo é que, ao final de cada capítulo, você tenha
vontade de dar uma olhada na sua lista de amigos do Facebook, pegue o
telefone e ligue para alguém que não vê há algum tempo, convidando-o
para um jantar. Quero que vasculhe na internet uma receita interessante,
prepare uma playlist que tem a ver com as preferências das suas visitas e as
receba em casa, ou saia para algum bar recomendado naquele aplicativo de
smartphone. Experimente deixar o celular no bolso, tirar fotos mentais,
sorrir mais e escrever menos “risos”. No fim, conte quantos convidados
dirão: “Precisamos fazer isso mais vezes”. Todos nós precisamos.
Introdução “Cada nova tecnologia é uma
reprogramação da
nossa vida sensorial.” – Marshall McLuhan1

Usar ferramentas não é uma exclusividade do ser humano. Outros


animais, como os castores, as formigas e até os polvos são capazes de criar
tecnologias para modificar seu ambiente e aumentar as chances de
sobrevivência. Era o que fazia o nosso parente direto mais antigo, o Homo
habilis, que surgiu no Leste da África há cerca de 2,5 milhões de anos. Ele
não era muito melhor que os outros macacos, mas usava o seu cérebro de
630 cm³ (maior que o dos primatas da época, mas equivalente à metade do
que temos hoje) para jogar pedras em outros animais e usar ossos e gravetos
como ferramentas rudimentares. Os habilis, que não eram tão habilidosos,
viveram assim por 25 mil gerações, até basicamente sumir do mapa,
provavelmente porque não se adaptaram às mudanças climáticas. Eles
precisavam de tecnologias melhores.
Depois da extinção do habilis, que mal andava em pé, outros membros do
gênero homo apareceram, com cérebros cada vez maiores. Algumas ossadas
datadas de até 1,7 milhão de anos atrás mostram que outros “homens das
cavernas” (como o Homo erectus, espécie que veio depois do habilis)
estiveram por toda a parte, da África e Europa até a China. Naquela época e
por milhares de anos depois, as ferramentas dos hominídeos não mudaram
significativamente e os agrupamentos eram pequenos. A tecnologia se
limitava aos instrumentos de caça e ainda não tinham sido inventadas
roupas ou mesmo cabanas (a expressão “homem das cavernas” não existe à
toa), o que restringia a colonização a zonas tropicais e os tornava bastante
suscetíveis às mudanças mais drásticas do ambiente. Os homens e as
mulheres daquele tempo comiam os animais que conseguiam matar e as
frutas e vegetais que colhiam. O futuro dos homens das cavernas não
parecia dos mais brilhantes, especialmente porque eles não eram amigos do
meio ambiente: qualquer animal grande e relativamente lento virava comida
e 90% de todas as espécies da megafauna (como o mamute) desapareceram
na época dos nossos ancestrais por falta de consciência ecológica.
Então surgiu o Homo sapiens, outra subespécie que se desenvolveu
paralelamente e saiu da África há cerca de 100 mil anos. Mais esperto, o
sapiens desenvolveu tecnologias especializadas, como as roupas (para
suportar climas mais frios), redes de pesca e anzóis, para poder se assentar
próximo aos rios e praias, capturando peixes e usando pedras quentes para
cozinhar. Achados recentes mostram que mesmo os sapiens mais antigos
tinham cerca de 40 ferramentas a seu dispor.
Mas a melhor ferramenta do Homo sapiens, na verdade, não era feita de
pedra, marfim ou madeira. “Eles usavam os dentes menos como
ferramentas, tinham membros mais longos e menos musculosos, e tinham
canais neurais e laringes posicionadas de uma maneira melhor para falar. As
suas cavidades cerebrais eram um pouco menores que a dos neandertais,
mas o topo do crânio era mais alto e mais arredondado, deixando espaço
para centros de linguagem e fala, além de camadas de neurônios
sobrepostas que poderiam executar uma grande quantidade de cálculos em
paralelo”, descreve o arqueólogo Ian Morris, da Universidade de Stanford.2
O segredo do domínio tão preponderante dos sapiens estava nos tais
“cálculos em paralelo”. Usar decentemente uma lança pontiaguda, uma das
novas armas dos sapiens, por exemplo, exigia uma série de cálculos assim.
Ao arremessá-la contra uma hiena, o caçador estaria levando em conta o
vento, o peso da ponta, a inclinação que ela teria, a sua velocidade de
deslocamento e a da presa. Tudo isso exigia rapidez e alguma abstração das
coisas externas ao corpo. O cérebro precisava ser diferente, não só maior,
mas com as áreas certas para permitir isso, como notou Morris. Usar lanças
era algo tão complexo (experimente você caçar com uma) que alguns
pesquisadores dizem que este é um dos primeiros indícios de como a
tecnologia estava de certa forma moldando o comportamento, ou a
capacidade cerebral do homem, bem antes de você ficar ansioso ao sentir o
celular vibrar no seu bolso.
O neurobiólogo da Universidade de Washington, William Calvin, acredita
que, uma vez que o cérebro pôde fazer tantas ponderações simultâneas para
lançar uma arma rápido, ele começou a poder ser usado para fazer uma
série de maquinações em cima de noções mais abstratas3. Por meio de
imagens, gestos e vocalizações cada vez mais complexos, os sapiens
conseguiram comunicar o que se passava no seu cérebro. E sem o
desenvolvimento do código e da linguagem, por melhor atirador que o
nosso ancestral fosse, suas chances de sobrevivência seriam menores,
porque as próprias instruções para criar utensílios não seriam passadas
adiante.
“Se nossas mentes não conseguem contar histórias, não há criação
consciente; nós só conseguimos criar por acidente. Até que domemos a
mente com uma ferramenta organizacional capaz de se comunicar com ela
própria, nós temos pensamentos largados sem uma narrativa. Temos uma
mente bestial. Nós temos a esperteza sem a ferramenta”, argumenta o
historiador americano Kevin Kelly, completando: “Do ponto de vista
evolutivo, a linguagem permitiu aos humanos se adaptarem e transmitirem
conhecimento mais rápido que seus genes possibilitariam”. Com a
tecnologia sendo passada entre gerações e mesmo entre povos, a
expectativa de vida aumentou e a inovação não parou mais. Para Kelly, a
invenção da linguagem foi a primeira grande tecnologia que mudou não só
a vida dos humanos, mas a maneira de pensarmos.4
O outro grande salto tecnológico viria a acontecer em relativamente
pouco tempo, do ponto de vista da vida na Terra. Não é possível definir
exatamente quem inventou a escrita, mas sabemos que foi um processo que
aconteceu quase simultaneamente em diversas partes do mundo: grupos dos
sapiens chegaram à conclusão de que era necessário padronizar símbolos
que sistematizassem raciocínios cada vez mais complexos. Depois de
ensaios no Oriente Médio, como no Egito e Suméria, o código se
consolidou há cerca de 3 mil anos na Grécia. O alfabeto grego era uma
ferramenta para a mente, mais poderosa e afiada que as demais. Em vez de
desenhos ou símbolos, o código grego tinha letras, vogais e consoantes, que
poderiam ser reordenadas para dar nome e sentido a todo tipo de conceito.
O alfabeto permitiu a criação de leis, a matemática e o comércio, o que por
sua vez tornou possível gerenciar não apenas agrupamentos de pessoas, mas
também grandes cidades e reinos. Ainda que pouca gente fosse
alfabetizada, estava claro que não haveria mais volta. A escrita estava
mudando tudo, empurrando a humanidade para a frente.
Mas da mesma forma que há bastante gente hoje que desconfia que os
benefícios da internet não sejam maiores que os problemas que ela traz,
havia quem não engolisse essa história de escrever. Gente como o filósofo
grego Sócrates.
Em um diálogo amplamente citado pelos estudiosos da linguagem,
Sócrates diz ao colega Fedro que a escrita é uma invenção “perigosa”,
porque não permite que as ideias “fluam livremente e mudem em tempo
real”, da forma que acontece durante um debate boca a boca. “Podemos
pensar que elas [as palavras escritas] falam como se tivessem inteligência,
mas se lhes perguntamos algo desejando saber mais sobre seus dizeres, elas
sempre indicam só uma única coisa, o mesmo. E toda palavra quando é
escrita uma vez, está fadada a dizer o mesmo entre aqueles que
compreendem e aqueles que não têm o mínimo interesse, e não sabe a quem
se deve falar e a quem não se deve. Quando mal tratadas ou injustamente
reveladas, sempre precisam de seu pai para ajudá-las, não têm poder de
protegerem a si mesmas.”5
A crítica de Sócrates fazia algum sentido, se você considerar o viés do
grande orador, defendendo o seu peixe – e até hoje é importante fortalecer o
debate em tempo real como forma de expandir e questionar ideias. O
problema de Sócrates e outros que se opunham à escrita na época é que eles
se concentravam na faceta potencialmente negativa da nova tecnologia, à
luz dos velhos hábitos. Mas era claro para outros pensadores que as
palavras no papel seriam extremamente benéficas no longo prazo.
O potencial do alfabeto foi visto com clareza logo no início pelo também
filósofo grego Platão, 40 anos mais jovem e um adepto da escrita (por meio
de seus livros, aliás, que conhecemos o pensamento de Sócrates). Com essa
tecnologia, a cultura se sobrepunha a dois fatores limitantes, observava
Platão: o tempo, já que agora era possível guardar conhecimento para
sempre, mesmo após a morte do seu criador; e o espaço: eu não posso dar
uma palestra sobre o tema deste livro em todos os lugares, mas você, em
qualquer ponto, pode ter este conhecimento por meio do livro. Como
veremos, são as tecnologias que alteram essas duas noções que têm o maior
impacto na nossa vida.
Hoje, quase 3 mil anos depois da polêmica grega, fica claro o efeito que
as tecnologias, especialmente as relacionadas à linguagem, tiveram em
termos civilizatórios. A linguagem permitiu ao homem aumentar suas
chances de sobrevivência e a escrita acelerou o ritmo da inovação,
possibilitando a nossa organização em sociedades mais complexas. E não
apenas em cidades e estados. O etnólogo inglês Jack Goody argumenta que
não seria possível o surgimento de religiões universalistas, que possuem um
código moral que precisa ser interpretado fora do seu contexto de origem
(como a Bíblia), sem a palavra no papel.6
Podemos ver o efeito macro da escrita de diversos ângulos na história. E
como através de um raio X, é possível especular que as tecnologias também
tiveram um profundo impacto na nossa intimidade, não só mudando os
comportamentos, mas também as necessidades do nosso corpo em relação
ao ambiente. Há bastante debate entre especialistas da área hoje, mas alguns
dizem que apenas nos últimos 10 mil anos, os genes do ser humano
evoluíram a uma velocidade 100 vezes maior do que nos 600 mil anos
anteriores. “Não somos os mesmos que saíram da África. Os nossos genes
coevoluíram com nossas invenções”, observa o biólogo americano Gregory
Cochran.7 Um dos argumentos para sustentar a tese é de que a nossa testa é,
em média, 20% mais alta do que as encontradas em escavações datadas do
século 14 e 16,8 dando mais espaço ao córtex pré-frontal, a parte onde
acontecem nossos pensamentos mais sofisticados. Essa parece uma solução
muito fácil ao problema, que nos leva à já clássica previsão de que, no
futuro, teremos olhos enormes e mãos maiores, além de depilação a laser de
fábrica. Como não sabemos exatamente como a evolução funciona, é difícil
prever tudo isso – há uma corrente que diz que como precisamos mover
menos músculos hoje, nosso cérebro está de fato diminuindo.9
Se, por um lado, não conseguimos ter certeza de quanto a evolução das
nossas ferramentas mexeu com o nosso cérebro durante a história humana,
é possível perceber com mais clareza o quanto mudamos, biologicamente,
quando tomamos contato com outras tecnologias durante uma vida,
reorganizando nossos circuitos internos. “Experimentos recentes revelaram
que o cérebro de uma pessoa alfabetizada é diferente de alguém analfabeto
em diversas maneiras: não apenas em como ele entende a linguagem, mas
como raciocina, processa sinais visuais e forma memórias”, explica a
psicóloga mexicana Feggy Ostrosky-Solís.10
Essa percepção de adaptação constante do cérebro é relativamente
recente. Até o final do século 19, havia uma crença enraizada de que o
cérebro, a partir do momento que formava conexões neurais durante a
infância, não mudava, ou não poderia ser reprogramado. Essa visão foi
passada por gerações na forma de ditados tais como “cachorro velho não
aprende novos truques”. Mas ao longo do século 20, a chamada
neuroplasticidade foi demonstrada em diversos experimentos, que
revelaram que os cérebros dos adultos poderiam ter suas conexões neurais
mudadas de maneira significativa. Uma pessoa que ficou cega depois de
adulta, por exemplo, de certa forma passa a “ver” por meio do reforço de
outros sentidos, como o tato e a audição. É possível adquirir novas
“memórias motoras” com a prática de esporte ou de fisioterapia, por
exemplo.
As diferenças do cérebro de uma pessoa analfabeta parecem óbvias a
partir do momento em que consideramos a neuroplasticidade: quem
consegue ler e abstrair significados, ou visualizar qualquer coisa a partir de
letras juntas, precisa ter circuitos bem sofisticados ligando todas as áreas do
cérebro. Seguindo essa lógica, parece claro que qualquer tecnologia que
modifique mais profundamente nossa forma de interagir com o mundo e
seja incorporada ao nosso cotidiano, deve ter impacto no nosso cérebro e,
por conseguinte, na nossa forma de pensar11.

Código.doc O sociólogo francês Pierre Lévy chama de


“tecnologias da inteligência” todas as invenções humanas
com o poder de reorganizar a maneira que pensamos –
sejam apetrechos físicos, como o computador, ou códigos,
como a linguagem. Pense como o mundo seria diferente se
não tivéssemos inventado tecnologias da inteligência
como o cálculo de probabilidade (importante para seguros
e campeonatos de pôquer televisionados), ou quão maiores
seriam os departamentos de contabilidade sem o advento
do Excel.12
Lévy lembra que a revolução que a imprensa de Gutenberg provocou no
século 15 não foi simplesmente o barateamento das cópias (até porque os
chineses tinham a tecnologia quatro séculos antes) ou a democratização do
conhecimento, mas a organização dele em livros encadernados: “Estamos
hoje tão habituados com essa interface que nem notamos mais que ela
existe. Mas no momento em que foi inventada, ela possibilitou uma relação
com o texto e com a escrita totalmente diferente do que havia sido
estabelecido com o manuscrito: a possibilidade de um exame rápido do
conteúdo, de um acesso não linear e seletivo ao texto, de uma segmentação
do saber em módulos, de conexões múltiplas com uma infinidade de outros
livros graças às notas de pé de páginas e às bibliografias”.13
Se a maneira de consumir conhecimento mudou a maneira de pensar,
pode-se dizer o mesmo das ferramentas para produzi-los. Em 1879, aos 34
anos e com problemas graves de saúde, o filósofo alemão Friedrich
Nietzsche foi forçado a deixar seu posto de professor da Universidade de
Basel. A sua visão estava piorando a cada dia, de forma que ele não
conseguia passar tanto tempo olhando para o papel e escrevendo à mão. Sua
carreira poderia ter chegado ao fim, mas em 1882 ele recebeu uma das
primeiras máquina de escrever. Depois de pegar o jeito, Nietzsche foi capaz
de digitar com os olhos fechados. Os jornais publicaram a notícia de que o
grande pensador estava de volta às suas atividades, mas um amigo próximo,
o compositor Heinrich Köselitz, notou uma mudança no seu estilo de
escrever. O texto de Nietzsche estava mais sucinto, “telegráfico”. Em uma
troca de correspondências, Nietzsche reconheceu: “Você está certo. Nosso
equipamento de escrita toma parte na formação de nossos pensamentos”.
Ao ser chamado à atenção, Nietzsche percebeu que estava raciocinando
de forma diferente. Em 1916, T.S. Eliot também viu mudanças na sua
poesia: “A máquina de escrever ajuda a criar clareza, mas não tenho certeza
que ela encoraja a sutileza”.14 A velocidade com que era possível jogar os
pensamentos no papel permitiu o chamado “fluxo da consciência” e até
novos estilos literários. Em 1951, por exemplo, Jack Kerouac passou uma
semana na frente da máquina de escrever, com um papel de 36 metros,
digitando o seu livro On the Road (Pé na Estrada, em algumas traduções
brasileiras). Truman Capote desdenhou e usou a ferramenta para criticar a
obra clássica da geração beat: “Isso não é escrita, mas digitação” (that’s not
writing, that’s typing).15
A mudança do lápis e caneta para a máquina teve para muitos um impacto
na forma de escrever e pensar, e ela continuou quando começamos a usar os
processadores de texto, como o Word, para externalizar os pensamentos.
Um estudo da Universidade da Antuérpia aponta que as pessoas que
escrevem diretamente no computador (em vez de usar o papel e a caneta)
“gastam mais tempo em um primeiro rascunho e menos finalizando o texto;
têm um processo de escrita mais fragmentado e não fazem uma revisão
sistemática do trabalho antes de terminar”16.
Escrever graças a um editor de textos em um computador ligado à
internet é outra mudança importante do processo criativo. E é, ao menos
para mim, algo muito mais próximo da escultura que da pintura de escribas
anteriores. Quando estou com um editor aberto, eu penso em uma estrutura,
jogo um monte de coisas, colagens, frases soltas, links para consulta
posterior e depois vou redefinindo, refinando, cortando e usando restos para
criar apêndices17.
Outra forma de comunicação de ideias que tem um impacto importante na
nossa vida, especialmente para quem trabalha em grandes empresas, é a
apresentação em PowerPoint. Desde que foi lançado em 1990, o programa
da Microsoft que gera os tais arquivos em .ppt virou um clássico para
apresentar frases de impacto e gráficos em apresentações, especialmente em
reuniões corporativas. E, inconscientemente, ajudou a moldar as próprias
mensagens que trazia em fonte 80. Segundo o especialista em design
Edward Tufte, o fato de o PowerPoint ter baixa resolução, com slides feitos
para serem projetados em uma parede e lidos à distância, encoraja que as
mensagens sejam muito concisas. Em um estudo que analisou 217 gráficos
de PowerPoint, Tufte descobriu que havia apenas 12 pontos de informação
nos slides, enquanto os semelhantes do New York Times tinham 120
elementos. O problema disso? Em um gráfico em alta resolução e com
muitos números, é possível detectar diversos padrões e formular teorias,
enquanto o minimalismo do PowerPoint serve apenas para apresentar uma
ideia pronta.
Além disso, os padrões de texto no PowerPoint usam os bullet-points,
criando uma hierarquia e gerando uma série de ações razoavelmente
ordenadas, que não fazem sentido necessariamente. Quando saem da sala de
reunião e são repassadas por e-mail, perdem o contexto: ficam apenas as
tais buzzwords (palavras da moda, de impacto) e as chamadas para ações.
“O formato reflete um erro conceitual comum em design analítico: a
arquitetura da informação imita a estrutura hierárquica das grandes
burocracias que vendem a informação”, avalia Tufte18.
Saindo um pouco do pacote Office, o software que usei para organizar e
revisar este livro tem o pretensioso nome de Ulysses, e é feito
especificamente para escritores. A última vez que reli uma versão não
editada deste capítulo (e resolvi inserir este parágrafo), vi que alguém com
uma leitura de “velocidade média” levaria pelo menos 22 minutos para ler
as primeiras páginas. O que me fez pensar em algo como: “Meu Deus, a
pessoa compra um livro para saber dicas de como se comportar no
Facebook e passa 20 minutos lendo sobre Homo sapiens! Ela vai desistir”.
Se não tivesse a informação acerca do tempo de leitura estampada de forma
tão proeminente na minha frente o tempo todo, enquanto escrevia,
provavelmente teria ido adiante em uma discussão neurocientífica, e não
cortado parágrafos sobre tecnologias ancestrais. Mas em tempos de déficit
de atenção, resolvi acelerar. O ponto é: se estivesse usando outro programa,
este livro seria diferente?
Do programa que você usa para escrever à rede social da qual faz parte,
há muitas outras ferramentas que têm um certo viés e podem influenciar ao
nosso comportamento. Mas quão profunda é essa influência? Infelizmente –
em termos de manchetes sensacionalistas, ao menos –, não há exatamente
um consenso entre os cientistas sobre quais das tecnologias digitais usadas
de maneira contínua alteram permanentemente e de maneira significativa o
nosso corpo. Algumas pesquisas apontam para mudanças de
comportamento sensíveis, é verdade, mas há tantas e com resultados tão
diversos (o campo de estudo é bastante recente) que é possível escolher um
punhado delas e montar teses tão entusiasmadas quanto apocalípticas sobre
o uso das tecnologias digitais na nossa vida.
Quem observa como a mídia aborda o assunto, percebe uma relação um
pouco esquizofrênica. Pegue por exemplo a revista Época, segunda maior
publicação semanal do Brasil. Em outubro de 2011, quando os livros
pessimistas sobre o impacto da internet, como Geração Superficial, de
Nicholas Carr, e Gadget, você não é um aplicativo!, de Jaron Lanier,
começaram a ganhar destaque no Brasil, a revista publicou uma reportagem
de capa em que colocava em dúvida essas céticas teorias sobre os
benefícios da conexão contínua. Com um tom otimista e um artigo do
respeitado neurocientista António Damásio dizendo que “estamos mais
inteligentes”, a Época comunicava aos leitores que havia alarmismo
demais, que o nosso cérebro é adaptável e não muda tão permanentemente
assim.
Oito meses depois, a capa da revista trazia uma reportagem intitulada
“Escravos do celular”, com o seguinte diagnóstico: “Eles tornaram a vida
mais fácil. Mas roubam nosso tempo, atrapalham o dia a dia e causam até
acidentes de trânsito.” Nas páginas, novas pesquisas, uma do Reino Unido
apontando que 60% das crianças se declaravam viciadas em internet, e
outra, da Universidade de Harvard, que mostrava que executivos com
smartphones se sentiam mais ansiosos. A própria revista reconheceu (ou
mudou de opinião para vender mais exemplares) que não é preciso ser
cientista para mostrar que essas ferramentas digitais estão mudando o nosso
comportamento: basta ir a qualquer bar em uma grande cidade ou a um
escritório. Em outubro de 2013, a IstoÉ saiu com uma manchete segundo a
qual “10% dos brasileiros são viciados digitais”, o que quer que isso
signifique.
O meu problema em relação à maneira com que parte importante da
mídia – e muitos livros – trata o tema é a excessiva generalização. A
internet não é muito diferente da luz elétrica, no sentido de que é um
possibilitador de outras atividades, aplicações, aparelhos. Perguntar se a
“internet” faz mal é um pouco como questionar se a “cidade” faz mal.
Mesmo com o risco de relativizar demais, eu prefiro focar exemplos
práticos neste livro, para ajudar a desenvolver uma relação não apenas
saudável, mas enriquecedora com as tecnologias conectadas.
Nós precisamos expor e analisar de maneira crítica os nossos hábitos e as
novas interações possibilitadas por inovações recentes. Pesquisar a história
das lanças, a escrita e a máquina de escrever são, sem dúvida, boas
maneiras de refletir sobre o impacto da tecnologia em nossas vidas. Mas,
para aproveitar os benefícios e mitigar os problemas, precisamos primeiro
parar e olhar a questão de fora.

Reinventando a roda É comum descrever o morador de


Brasília como um ser formado de “cabeça, tronco e rodas”.
Basta parar em qualquer local do Plano Piloto e ver a
movimentação de automóveis e pessoas: e parece bastante
claro que a enorme maioria dos brasilienses não está
acostumada a estacionar o carro e andar um pouco. O
raciocínio é simplista: sendo o carro a tecnologia que leva
de A a B, pessoas que consideram o automóvel como uma
extensão do corpo, tentam chegar o mais perto possível de
B para parar. E isso provoca todo tipo de problema e só é
mais claramente observável quando você muda o hábito e
reconecta os circuitos do cérebro. No meu caso, ocorreu
quando deixei a capital para morar em São Paulo, há sete
anos, e não senti mais necessidade de comprar um carro.
Hoje, praticamente só dirijo quando volto à terrinha.

Em um domingo ensolarado, estava na capital dirigindo em direção à


Feira dos Importados – uma enorme aglomeração de barracas e gente
vendendo todo tipo de bugiganga, apetrechos eletrônicos e pirataria em
geral. Quando estava perto do destino, vi uma fila de carros gigantesca em
frente e parei logo na primeira vaga que avistei, a uns 300 metros da feira.
O estacionamento público ali estava vazio. A pé, cheguei mais rápido que
os carros engarrafados. Era possível ver gente sofrendo com o calor dentro
dos automóveis e quanto mais próximos eles chegavam do relativamente
pequeno estacionamento ao lado da feira, mais difícil ficava conseguir uma
vaga. Refletindo por alguns segundos, era óbvio que parar onde eu parei era
melhor: os que seguiram para ter a “vantagem” de andar menos, não
levaram em conta as voltas dadas a mais, o tempo parado esperando alguém
sair e o estresse provocado pelo motorista buzinando atrás. Além disso,
quem parou mais longe, também sairia mais depressa, já que não pegaria o
engarrafamento da saída. Enumerando tudo, é difícil entender por que tanta
gente faz algo tão sem sentido lógico, tão frequentemente.
O que ocorre é que quando incorporamos uma tecnologia ao nosso
cotidiano, raramente paramos para pensar sobre o uso dela em si, apenas
seguimos usando – nem todos aqui são filósofos gregos ou alemães que
usam a dialética para questionar o impacto das ferramentas no nosso
cérebro o tempo todo. Subliminarmente, “todas” têm algum tipo de
impacto.19
Não notamos porque desenvolvemos novos hábitos rapidamente, o tempo
todo. As primeiras consultas ao Google, por exemplo, são escolhas
racionais: depois de passar um tempo com uma dúvida na cabeça, seu
cérebro pensa: “Ah, o Google deve saber!” Meses fazendo isso e a busca
frenética ao google.com.br (ou, mais recentemente, a pergunta em voz alta
ao Google Now ou Siri) passa a ser automática.
Da mesma forma, dirigir um carro, especialmente por caminhos
conhecidos, não é uma tarefa racional: à medida que nos acostumamos a
fazê-la, os gânglios da base, a parte do cérebro responsável pelos instintos e
memórias motoras, fica responsável pela ação. Hábitos enraizados, que
repetimos de maneira inconsciente, são mais difíceis de serem mudados.
Mas, em algum momento, podem ser questionados.
Carros e dispositivos conectados, se usados de maneira exagerada e sem
uma reflexão sobre a sua utilidade, são prejudiciais para a maior parte das
pessoas, tanto no nível pessoal quanto para a humanidade: uma cidade onde
todos andam de carro é desumana e engarrafada, e uma sociedade onde
todos só se comunicam pela internet é mais ansiosa, narcisista e com laços
potencialmente mais fracos. Se soubermos usar de maneira correta, com
alguma parcimônia, carro e smartphones, por exemplo, podem ter um
impacto claramente positivo.
Poder acessar a rede mundial nos permite, numa avaliação superficial,
uma maior liberdade de escolha e, por consequência, um (potencial) maior
desenvolvimento pessoal e social. É a mesma lógica do carro, vendida em
milhares de comerciais ao som de Born to be wild: com ele podemos morar
um pouco mais longe, ir àquele restaurante à meia-luz em outro bairro,
viajar, transportar pessoas e objetos, nos conectar a mais gente. Tudo na
hora que quisermos, sem depender basicamente de nenhuma outra pessoa.
Mas para todas as vantagens individuais que o carro traz, há um impacto
para a sociedade que é cada vez mais claro e (já me desculpando pelo viés
ex-dono de carro) nocivo. Há uma questão de saúde pública importante, já
que acidentes automobilísticos são hoje a maior causa de mortes entre
pessoas de 15 a 29 anos de idade no mundo. Quem não é envolvido em
batidas e atropelamentos, pode ser vítima do estresse causado dentro do
carro: estima-se que um em cada 12 ataques cardíacos tem relação com
engarrafamentos.20 O excesso de carros também gera um problema
econômico, que começa no investimento em obras de engenharia cada vez
mais complexas, como vias elevadas, viadutos e duplicações que custam
caríssimo e termina, literalmente, no próprio trânsito: o tempo perdido nos
engarrafamentos custa à cidade de São Paulo entre R$ 30 e 40 bilhões todo
ano.21 Há outros efeitos negativos não tão facilmente mensuráveis, como a
perda do hábito de andar na rua, o enfraquecimento do pequeno comércio
local e a mudança na paisagem.
Mas vou parar com a lista de motivos contra aqui. Não estou pregando
que todos possam de uma hora para outra largar os carros e andar de
bicicleta ou transporte público sem muita perda de qualidade de vida. Na
maioria das grandes cidades do Brasil, este cenário é difícil, apesar de as
recentes manifestações jogarem luz sobre a necessidade de uma política de
mobilidade urbana. Mas, como no caso da internet ubíqua, o uso do
automóvel pode e deve ser racionalizado. Diria que ele já está sendo.
Algumas das cidades com melhor qualidade de vida do mundo hoje
colocaram limites para o uso do carro, seja de maneira econômica
(aumentando o imposto sobre a gasolina, criando pedágios urbanos e
rodízios), seja mudando o planejamento urbanístico, fechando áreas centrais
para a circulação apenas de pedestres ou proibindo que novos prédios em
áreas congestionadas tenham estacionamento. É claro que só punir quem
escolheu o carro não é suficiente: a limitação do uso do automóvel
individual é acompanhada de investimentos em outras formas de
locomoção, desde a criação de ciclovias ou faixas exclusivas para ônibus,
subsidiados, até bilhões gastos com o metrô.
Além dos governos, outros setores da sociedade estão tomando medidas
para o uso mais racional do carro. Na França e na Bélgica, algumas
empresas oferecem uma espécie de bolsa-pedal, pagando para os
funcionários irem ao trabalho de bicicleta; em São Paulo, ONGs promovem
a carona solidária, dando desconto em estacionamentos. E por todo o
mundo, uma quantidade cada vez maior de empresas começou a ver que o
trabalho remoto é mais econômico e muitas vezes igualmente efetivo. A
gigante da tecnologia IBM, por exemplo, tem 40% dos seus funcionários
fora do escritório, trabalhando em computadores em casa ou em cafés e
desengarrafando as vias públicas.
Aqui vale um parêntese: para além de ajudar a melhorar o trânsito, a
possibilidade de executar o trabalho remotamente, com a internet ubíqua, é
uma das vantagens mais fascinantes. Mas se for usada de maneira errada
por empregadores, empreendedores e mesmo empregados com tendências
workaholic, a bênção vira maldição. Como essa possibilidade é bastante
recente, é compreensível que não tenhamos muita ideia de como aproveitá-
la melhor.
Eu me alongo na analogia com o carro porque acredito que podemos estar
passando por algo bem semelhante em relação à nossa percepção e uso das
tecnologias conectadas. Em pouco mais de cem anos, já enxergamos o carro
de diversas formas. Começamos com um profundo deslumbramento,
passamos pela mudança das cidades para privilegiar o transporte individual
e – especialmente no Brasil – ficamos felizes diante da maneira como os
automóveis expandiram nossa indústria. Mas já chegamos, mais
recentemente e especialmente na Europa, à racionalização do ato de dirigir.
Já sabemos, em teoria, que o motor a combustão em um veículo de quatro
rodas é incrível, mas também nos acostumamos à ideia de que se todo
mundo usá-lo indiscriminadamente não chegaremos, literalmente, a lugar
algum.
Isso é provavelmente verdade para os apetrechos que usamos para ficar
online. Estamos deslumbrados, mas já estamos ficando preocupados, e em
algum momento chegaremos ao equilíbrio. “Mil câmeras ligadas o tempo
todo transmitindo ao vivo fazem o centro da cidade ficar livre de batedores
de carteira, diminuem os motoristas que furam o sinal vermelho e gravam o
abuso policial. Um bilhão de câmeras ligadas o tempo todo servem como
um monitor da comunidade e sua memória, reestruturam a noção de ‘eu’ e
reduzem a autoridade das autoridades”, especula Kevin Kelly.
É possível ir adiante com analogias sobre avanços que têm mudado
profundamente o nosso cotidiano – poderíamos falar da invenção do
relógio, por exemplo –, mas eu gosto da história do carro especialmente por
dois motivos: se você é otimista como eu, percebe pelos bons exemplos
vindos de fora que nós já temos boas pistas de qual é o ponto de equilíbrio
no campo automobilístico. Achamos, em teoria, uma solução. Basta ver o
exemplo de cidades como Copenhague, na Dinamarca. Mesmo que a
população tenha dinheiro, lá o carro é apenas o terceiro veículo mais usado
para deslocamento até o trabalho no dia a dia, atrás das bicicletas e do
ônibus. O bom funcionamento do transporte público, as ciclovias que
cobrem todos os bairros, a segurança e as ruas feitas exclusivamente para o
pedestre são motivo de orgulho para a população local, que resistiu quando
essas mudanças surgiram, ainda nos anos 1970, mas hoje considera a cidade
como modelo.
O segundo aspecto que faz a analogia com o automóvel ser interessante é
a diferença sobre os motivadores de um uso mais consciente da tecnologia.
A pressão de setores da sociedade e a consequente (em um cenário ideal)
atuação de governos interferiram, em última instância, na percepção do
“direito” de ir e vir do cidadão motorizado. Quando foi aplicado
corretamente, o resultado foi entendido como benéfico pela maioria. Das
multas por não respeitar a faixa de pedestre ou não usar o cinto de
segurança aos rodízios baseados no emplacamento, as autoridades usam
regularmente o seu poder para nos lembrar de que não temos capacidade de
autorregulação ou auto-organização quando o assunto são os autos. E isso é
bom, na maioria das vezes.
A internet onipresente é uma tecnologia que já está se tornando muito
mais influente que o carro e tem modificado profundamente a sociedade e
os indivíduos, mas não tem praticamente nenhuma regulação. Não teremos
fiscais de um órgão equivalente ao Detran para multá-lo quando você
perder a manhã inteira comentando fotos e discutindo com estranhos na
web. Então, mudar os hábitos em relação à vida superconectada – usando a
internet não só de maneira mais seletiva para melhorar sua qualidade de
vida, mas também menos tempo, para conter uma relação obsessiva – é algo
que caberá provavelmente só a você e à sua força de vontade. É claro que
ajudá-lo nessa tarefa é o propósito deste livro.
Para a maioria das pessoas que conheço, as pressões externas para mudar
hábitos nesse sentido são consideradas irritantes, na melhor das hipóteses.
Para os mais jovens, censurar o uso excessivo de tecnologia é a repetição de
uma experiência comum na adolescência: a mãe pedindo para “sair da
frente da TV” ou “desligar o videogame”. O argumento é um clássico “não
estou fazendo mal a ninguém” e na maior parte das vezes isso é
aparentemente verdade. Mas, agindo assim, o pequeno infrator pode estar
minando uma relação amorosa por não dar atenção presencial, por exemplo.
Nas empresas, o “pessoal da TI” que bloqueia certos sites é tachado nos
corredores como “pessoas que limitam o acesso à informação”, como se
alguém da contabilidade realmente precisasse acessar o Youtube ou o
Facebook no trabalho.
A regulação do uso de tecnologias sempre conectadas por parte do
governo é ainda mais complicada. Os mais proeminentes estudiosos da
internet e governos ocidentais defendem a liberdade irrestrita e
“neutralidade” da rede, e ficamos horrorizados com a censura imposta na
China, onde sites de opositores e certos temas de buscas não aparecem no
Google. As leis que limitam ou coíbem o uso são bem específicas, como as
medidas antibullying na Coreia do Sul, as multas para quem atravessa a rua
usando o celular nos EUA, ou ouve um celular sem fones de ouvido no Rio
de Janeiro.
Parece que, por ora, não ficaremos confortáveis se alguém mexer na
nossa capacidade de estarmos conectados o tempo todo a tudo o que
quisermos, acariciando nossos brinquedos tecnológicos. Mas também é
ilusão pensar que essa liberdade irrestrita vá durar para sempre: quando os
efeitos do abuso das telas onipresentes ficarem mais claros para a
sociedade, um futuro com regulações mais severas se tornará tão factível
quanto o atual “vale-tudo”. Basta olhar o país mais conectado do mundo, a
Coreia do Sul, sempre no topo do ranking de “banda larga mais rápida”,
horas gastas na internet e porcentagem da população com smartphone
(70%).22
Nos últimos anos, recebemos algumas notícias assustadoras do tigre
asiático, desde jovens que morreram depois de três dias seguidos em uma
lan-house até um casal que esqueceu o filho dentro do carro depois de uma
maratona de jogos online. Para lidar com o problema, o governo subsidia
mais de uma centena de clínicas de desintoxicação para viciados em
internet e estabeleceu, no fim de 2011, a “Lei da Cinderela”, que proíbe o
acesso de menores de 16 anos a servidores de jogos online. As medidas não
se limitam aos jovens, teoricamente mais suscetíveis. Depois de lidar com
uma crescente quantidade de processos por difamação e até suicídios
causados por bullying virtual, o país passou a exigir uma espécie de “RG de
internet” para quem quisesse deixar comentários em grandes sites. O
anonimato na rede, tão celebrado por muitos, praticamente deixou de existir
lá.
É melhor para todos que não precisemos chegar ao extremo da Coreia do
Sul para perceber que o uso excessivo das tecnologias digitais, a conexão
ininterrupta e a consequente desconexão do mundo à nossa volta são
perigosos. É mais saudável prescindirmos de governos dizendo o que
podemos fazer ou não com nossos apetrechos, assim como seria melhor se
aprendêssemos a usar melhor o carro antes do caos que está aí. Se você tem
alguma tendência ao “vício” (aspas importantes, já vamos falar disso) da
internet, das redes sociais, e-mails ou coisas do tipo, comece a refletir sobre
as maneiras como estes novos hábitos podem estar afastando-o do que
importa. Mesmo que o impacto não seja exatamente negativo, precisamos
olhar para as nossas ferramentas com um olhar mais crítico, observando o
que de certa forma elas “querem”.

Você quis dizer... ?

Os defensores da não regulação de armas de fogo pregam que não são os


revólveres e as metralhadoras que matam as pessoas, mas elas próprias. É
verdade, mas também é verdade que países que tiveram uma política de
controle de armas agressiva nos últimos 15 anos (após tragédias,
especialmente, como Escócia e Austrália) viram o número de homicídios
cair drasticamente, como apontam vários estudos.23 No Japão, 11 pessoas
foram mortas em 2008 com o uso de armas de fogo. O estado de Alagoas,
que tem 2,5% da população japonesa, bate essa marca em um fim de
semana.24 Há questões culturais, é claro, mas é possível negar o viés
destrutivo das armas? Sempre existiram psicopatas, mas os casos em que
jovens problemáticos matam várias pessoas em um curto espaço de tempo
não seriam possíveis apenas com facas.
O exemplo pode ser extremo, mas o primeiro passo para discutir a nossa
vida digital é entender que um bom número das ferramentas que usamos
diariamente na internet apresentam algumas tendências que podem mudar,
de maneira sutil, a nossa relação com o mundo. As redes sociais bancadas
por anúncios gostam de simplificações, e não de complexidade – para
poderem servir publicidade mais direcionada. Normalmente, os formulários
online têm um limite de opções quando precisamos nos definir – e isso afeta
o tipo de conteúdo que chega até nós, as amizades e grupos sugeridos. O
Grindr, popular aplicativo de smartphone que serve para homens gays
marcarem encontros com outros que estão próximos, permite filtros
baseados nas preferências. Quem usa o aplicativo, precisa dizer a qual
“tribo” pertence: se é um “urso”, uma “lontra”, se não saiu do armário, se
tem fetiche por couro… Se o cara quiser se definir com mais de uma
característica, para atrair parceiros que escolheram outros filtros, precisa
pagar um extra.25
A maioria das mídias que consultamos “prefere” a novidade ao que é
antigo ou clássico: isso é perceptível desde a lógica dos blogs ou Twitter,
com a cronologia reversa (o mais recente em cima) que emula os canais de
notícia que ficam 24 horas no ar. Nesse sistema, gera-se mais informação
perecível, cria-se um incentivo para falar primeiro, mais alto, e alimenta-se
uma cultura de hits virais, de produtos criados para ter alto impacto em
pouco tempo. Google e Facebook já perceberam os problemas dessa nossa
nova mania pela novidade e tentam ajustar suas ferramentas para servir
primeiro o mais relevante, e não o mais novo. Mas, sabendo como os
algoritmos por trás dessas ferramentas funcionam, temos que ativamente
buscar (conhecendo os filtros e configurações de busca, por exemplo) o que
é mais relevante e evitar as armadilhas de viver presos demais no presente.
Graças aos sistemas operacionais com multitarefa, várias janelas abertas e
navegadores cheios de abas, as ferramentas que usamos no computador
favorecem as atividades de distração e interrupção em detrimento do que é
focado. Isso pode ser útil em alguns tipos de trabalho, sem dúvida. Mas, por
outro lado, essa não é a única forma de se conectar ao mundo hoje. Basta
mudar de máquina. A ausência de teclado e o sistema de um aplicativo por
vez ocupando toda a tela nos tablets, por exemplo, permitem uma imersão
maior. Alguns estudiosos de mídia acreditam que o surgimento de
narrativas maiores na internet, com reportagens cada vez mais longas, é um
fenômeno intimamente ligado ao crescimento do uso de tablets, já que neles
as pessoas consomem conteúdo por mais tempo, com menos distrações.26
Eu até hoje não consigo ler um livro em um notebook, mesmo com o
aplicativo do Kindle e o PDF facilmente acessível, mas devorei textos com
600 páginas no iPad. Cabe ao usuário saber quando “aproveitar” o que seria
uma fraqueza da ferramenta. Mas é preciso refletir sobre quais são suas
“preferências” (da ferramenta, não do usuário) antes.
É possível dizer que o design de sites de notícias, com espaço destacado
para comentários (colados nas matérias), juntamente com a possibilidade de
manter o anonimato, ajudaram a criar um ambiente hostil a opiniões
divergentes e o aparecimento de pessoas que só querem causar tumulto em
muitos ambientes da internet. Assim como na discussão sobre armas de
fogo, você pode argumentar que quem agride no caso dos comentários é
uma pessoa, e não a caixinha embaixo da notícia. O que também é verdade,
mas uma mudança de design pode alterar o comportamento – possivelmente
para o bem. Desde 2010, muitos sites começaram a adotar o sistema de
comentários do Facebook, exigindo que as pessoas mostrassem sua cara
“real” – o que desencoraja os tipos mais radicais de agressão verbal. O
Tumblr, a mais ativa rede de blogs do mundo, não cola os comentários das
pessoas ao conteúdo: se você tem algo a dizer sobre algo que viu ali, é
preciso levar a sua opinião para outro lugar, apenas com a referência (o
link) para o original. “Se você quiser ser um babaca, você parecerá um
babaca no seu próprio espaço, e deixará a minha casa limpinha”, defende
David Karp, criador do Tumblr.27
As ferramentas conectadas também ajudam a moldar cada vez mais nossa
vida política. As manifestações de junho de 2013 foram ligadas às redes
sociais em todas as reportagens. É impossível dizer que elas “não seriam
possíveis” sem o Facebook. Mas dá para dizer que a natureza dos protestos,
a ausência de uma pauta unificada e a velocidade com que foram
organizadas têm, sim, a ver com a internet. Augusto de Franco, um dos
maiores estudiosos do tema no Brasil, comparou os eventos com as marchas
das quais ele mesmo participou no passado. “Antes havia assembleísmo,
recrutamento para organizações hierárquicas, militantes obedientes às suas
direções que atuavam como agentes no meio da ”massa“ para conduzi-la.
Agora temos interativismo (ativismo interagente, no qual cada pessoa
comparece nos seus próprios termos e desobedece aos que querem lhe dar
ordens) compondo uma espécie de sistema nervoso fractal de diversas
multidões”.28
Mais gente, com mais bandeiras, puderam participar, e foi mais fácil e
rápido organizar tudo. Mas isso não quer dizer que a nova ferramenta seja
genuinamente melhor dentro do nosso sistema político atual – tanto que a
única pauta que efetivamente avançou foi justamente a de um grupo que já
estava organizado offline há anos, discutia frequentemente, fazia
campanhas de conscientização e tinha alguns líderes, o Movimento Passe
Livre. O que fazer, então? Mudar a estrutura política para se adequar à
sociedade em rede ou usá-la de outra forma? Qualquer que seja a decisão, é
preciso entender os seus limites e vícios.
Podemos dar mais exemplos dos vieses das nossas ferramentas digitais, e
eles são muitos, alguns muito sutis. Há outro viés, quase universal, das
nossas ferramentas conectadas, sejam programas ou aparelhos: elas
“querem” ser cada vez mais usadas. Na chamada “economia da atenção”
(discutiremos isso mais adiante), usar mais é dar mais valor. E temos que
começar, antes de tudo, a avaliar quanto tempo estamos dedicando a elas.
Funcionou para mim, e o primeiro diagnóstico foi negativo. Percebi que
estava deixando de fazer coisas que eram mais importantes no longo prazo,
que minha saúde estava se deteriorando, com menos sol e exercícios, que o
contato real com os amigos, com risos e troca de ideias mais profunda,
estava diminuindo, que estava perdendo tempo demais lendo notícias bobas
e rasas e entrando em discussões bobas e rasas. Não foi difícil associar boa
parte desses problemas aos meus excessos tecnológicos. Este livro é parte
da minha jornada de autodescoberta e desintoxicação e, como dizem nas
reuniões dos alcoólicos anônimos, o primeiro passo é reconhecer o
problema.
1 Marshall McLuhan & Carson David, The Book of Probes, Gingko Press, 2003.

2 Ian Morris, Why the west rules - for now: the patterns of history, and what they reveal about the
future, Farrar, Straus and Giroux, 2010.

3 William H. Calvin, The Cerebral Code: Thinking a Thought in the Mosaics of the Mind, MIT
Press, 1996.

4 Kevin Kelly, What Technology Wants, Viking, 2010.

5 Platão, Fedro, citado por Marcus Reis Pinheiro, “O Fedro e a Escrita”, em Anais de Filosofia
Clássica, vol. 2 n. 4, 2008. Acessado em: http://www.ifcs.ufrj.br/~afc/2008/REIS.pdf

6 Jack Goody, Literacy in traditional societies, Cambridge University Press, 1975. Disponível em:
http://books.google.com.br/books/about/Literacy_in_Traditional_Societies.html?id=B9SUyI–
3tRwC&redir_esc=y

7 Gregory Cochran, juntamente com o antropólogo Henry Harpending, explica o argumento de que o
homem está evoluindo mais rapidamente nos últimos anos no documentário Nova, da PBS.
Disponível em: http://www.pbs.org/wgbh/nova/evolution/are-we-still-evolving.html e no livro 10,000
Year Explosion: How Civilization Accelerated Human Evolution, Basic Books, 2009.

8 Crânios da Idade Média eram menores do que os de hoje - ver Rebecca Morelle, “Time changes
modern human’s face”, BBC, 25 jan. 2006. Disponível em: http://news.bbc.co.uk/2/hi/4643312.stm.

9 Kathleen McAuliffe, “If Modern Humans Are So Smart, Why Are Our Brains Shrinking?”,
Discover Magazine, set. 2010. Disponível em: http://discovermagazine.com/2010/sep/25-modern-
humans-smart-why-brain-shrinking#.UeIPn2TOtW1

10 Feggy Ostrosky-Solís e outros cientistas exploram a teoria no artigo “Can literacy change your
brain anatomy?”, Edição especial do International Journal of Psychology, Psychology Press, v. 39,
ed. 1, fev. 2004. Disponível em: http://www.tandfonline.com/toc/pijp20/39/1#.Ug_qYZK1HnE

11 Marshall McLuhan, o pensador americano citado no início deste capítulo, ficou famoso por dizer
que “o meio é a mensagem”. A interpretação mais comum é que nunca discutimos a tecnologia, mas
o conteúdo levado por ela. Quando falamos que “a TV é uma lástima”, falamos dos programas
policiais, das novelas apelativas e dos reality shows, e não da tela plana de 42 polegadas. Mas havia
mais no aforismo de McLuhan, que via ainda em 1964 que a tecnologia, como janela para o mundo,
alterava nossos “padrões de percepção paulatinamente e sem resistência”.

12 O VisiCalc, primeiro programa de planilha eletrônica para computadores domésticos, lançado em


1983 para Apple II, é considerado por historiadores da computação como um dos maiores motivos
(junto com os processadores de texto) para a popularização do computador pessoal. Antes da internet,
lembro que o computador da casa era uma máquina de Excel, Word e Paciência.

13 Pierre Lévy, “A metáfora do hipertexto”, in As tecnologias da inteligência: o futuro do


pensamento na era da informática. 2ª ed., São Paulo: Editora 34, 2010.

14 Disponível em: http://blog.inkyfool.com/2011/05/eliot-on-typewriters.html

15 Disponível em: http://www.us.penguingroup.com/static/rguides/us/on_the_road.html

16 Disponível em: http://www.sciencedirect.com/science/article/pii/S0378216602001212

17 Eu particularmente abandonei o Word há alguns anos. Acho o excesso de elementos uma grande
distração. Vejo muita gente gastar tempo demais ajustando fontes e parágrafos depois de colar um
texto, ou vendo a fonte certa para os entretítulos, brigando com os sublinhados verdes e vermelhos,
em vez de se preocupar com o que escreve de fato.

18 O uso excessivo de PowerPoints é apontado como uma das razões para a falha mecânica que
destruiu o ônibus espacial Columbia, em 2003. A comissão independente para investigar as causas do
desastre percebeu que comunicações críticas que poderiam ser usadas para prevenir o acidente
estavam sendo passadas para a equipe em forma de apresentações, com muitas informações deixadas
de lado. “A comissão vê o uso endêmico de slides de PowerPoint em briefings em vez de trabalhos
técnicos como a ilustração dos métodos de comunicação problemáticos dentro da NASA”, concluiu
no relatório. Disponível em: http://www.edwardtufte.com/bboard/q-and-a-fetch-msg?
msg_id=0001yB&topic_id=1
19 Há um grande corpo de pesquisa, por exemplo, sobre a relação entre a cor dos utensílios de
cozinha e o que comemos. Estudos mostram que sentimos que uma bebida mata mais a sede quando
a tomamos em um copo de cor fria (como azul) e que comemos menos quando há um contraste maior
entre a cor da comida e o prato. http://www.npr.org/blogs/thesalt/2013/06/30/196708393/from-farm-
to-fork-to-plate-how-utensils-season-your-meal

20 “Heavy Traffic Bad for your heart”, BBC News, Outubro de 2004. Acessado em:
http://news.bbc.co.uk/2/hi/health/3761012.stm

21 “Trânsito lento faz São Paulo perder R$ 40 bilhões por ano”, Revista Exame, Maio de 2005.
Acessado em: http://exame.abril.com.br/economia/noticias/transito-faz-sao-paulo-perder-r–40-
bilhoes-por-ano

22 Jung Ha-Won, “Ultra-wired South Korea battles smartphone addiction” Phys.org, Junho de 2013.
Acessado em: http://phys.org/news/2013–06-ultra-wired-south-korea-smartphone-addiction.html

23 Harvard Injury Control Research Center, Acessado em:


http://www.hsph.harvard.edu/hicrc/firearms-research/guns-and-death/

24 http://www.tribunahoje.com/noticia/26826/cidades/2012/05/14/iml-registra–33-assassinatos-
durante-final-de-semana-em-alagoas.html

25 http://techcrunch.com/2013/10/02/gay-gets-better-and-more-targeted-say-hello-to-the-next-
generation-of-grindr/

26 Jacqueline Marino, “How tablets are changing the way writers works”. Poynter, outubro de 2013.
Acessado em: http://www.poynter.org/how-tos/digital-strategies/224805/how-tablets-are-changing-
the-way-writers-work/

27 Rob Walker, “Can Tumblr’s David Karp Embrace Ads Without Selling Out?” New York Times,
Julho de 2012. Acessado em: http://www.nytimes.com/2012/07/15/magazine/can-tumblrs-david-
karp-embrace-ads-without-selling-out.html?pagewanted=all&_r=0

28 Augusto de Franco, Os 7 Dias que abalaram o Brasil. Acessado em:


http://www.slideshare.net/augustodefranco/os–7-dias-que-abalaram-o-brasil
1. Meu nome é Pedro
e faz 3 minutos que não
olho para o celular
“O homem bebe a bebida, então a bebida bebe a bebida e, por fim, a bebida bebe
o homem.” – Cartilha dos Alcoólicos Anônimos nos EUA Em meados de 2013, a
Apple veiculou um comercial em vídeo29 que começava com a seguinte frase:
“Isso é o que importa: a experiência de um produto”. Ao som de uma trilha
minimalista, sucediam-se várias cenas de pessoas interagindo com iPhones, iPads
e MacBooks: uma criança usava o tablet em sala de aula e levantava a mão
rapidamente para responder; um casal se beijava com um lindo cenário atrás,
tirava uma foto com um iPhone e em seguida checava se a imagem ficou boa; um
pai mostrava alguma coisa no iPad à filha no escuro, com a tela iluminando a cara
dos dois. A narração autocongratulatória explicava como a empresa da maçãzinha
é capaz de criar produtos que possibilitam esses momentos.

Há dois anos, quando Steve Jobs ainda estava vivo e a concorrência entre
produtos top de linha era menor, o tom era um pouco diferente. Para a
Apple, era fundamental que a tecnologia “saísse da frente”, que fosse
invisível. Quando ele morreu, em outubro de 2011, escrevi no seu obituário:
“Por mais que tenha feito uma fortuna de bilhões com gadgets em vidro e
alumínio que amamos, Steve Jobs sempre viu a tecnologia como meio, e
não como fim. Um meio para que gastássemos mais tempo com o que
realmente importa, com a nossa criatividade, com as pessoas queridas, com
a cultura, com o conhecimento do resto do mundo. Esta preocupação, a
busca pela tecnologia mais “humana”, e não a obsessão por detalhes e
design incrível, é, para mim, o seu maior legado”.30
O foco da Apple parecia ser – ou pelo menos era nisso que o discurso de
Steve Jobs me fazia acreditar – as experiências humanas criadas ou
facilitadas pela tecnologia. Mesmo nos comerciais antigos, os produtos
estavam sempre lá, é claro, mas o foco era a reação, ou a maneira como a
vida se tornava melhor e mais simplificada. Ultimamente, não. O que
parece importar é o produto, o gadget.31 Poderíamos discutir longamente se
esse não é um problema apenas da Apple, mas do capitalismo, do modelo
econômico de consumo desenfreado e obsolescência programada. Mas
vamos ficar apenas nisso: o comercial da mais importante fabricante de
apetrechos tecnológicos celebrando que ficamos tempo demais com eles.
O comercial em questão dividiu opiniões: alguns, especialmente
profissionais de publicidade, acharam a montagem bonita, tocante. Um
outro grupo ficou incomodado, justamente porque, de certa forma, a visão
da “tecnologia invisível”, coadjuvante, estava sendo traída. Quem melhor
expressou esse desapontamento foi o jornalista Mark Wilson, em um artigo
intitulado “Em 20 anos, nós todos vamos perceber que esta publicidade da
Apple é loucura”32.
“No que deveria ser uma montagem reconfortante e humanizadora, as
pessoas estão constantemente direcionando a sua atenção para longe das
outras e para fora do mundo panorâmico, úmido, real, para se perder em
pixels. Elas estão escolhendo a experiência de seus produtos sobre a
experiência de outras pessoas várias vezes, em uma rápida sucessão. E a
Apple tem uma voz suave ao fundo, tocando a gente (como gado) pra
dentro.”
Obviamente, a Apple não está sozinha nessa glorificação dos aparelhos
conectados. No momento em que escrevo, as duas maiores empresas de
telecomunicações do Brasil têm como slogans “Compartilhe cada
momento” e “Conectados vivemos melhor” e a Sony usa para a sua
propaganda de videogames o mote “Nunca pare de jogar”. Por ora, não
vemos mal. Mas será que realmente, no futuro, quando encontrarmos o
equilíbrio no uso dos gadgets sempre conectados, não vamos olhar para
esse vídeo e esses comerciais e achá-los bizarros, assim como achamos hoje
bizarros aqueles reclames de eletrodomésticos sexistas dos anos 60?33
Não me arrisco a tanto. Porque ainda não concordamos exatamente no
que consiste um uso excessivo, quando estamos focando mais na tecnologia
e menos no que está à nossa volta. Até porque será cada vez mais difícil
separar o “mundo online” daquilo que poderia ser chamado de “mundo
físico”, à medida que não nos desconectamos completamente.
Então, estamos começando a descobrir o que é errado e o que é ok.
Quando vemos uma pesquisa que diz que 20% dos jovens adultos
americanos usam smartphones durante uma relação sexual34 (não para
baixar um app de Kama Sutra, suponho), podemos concordar que isso é
estranho. Mas e em relação às horas gastas no Facebook? O que é normal?
Meia hora por dia? Duas? Três?
Se isto fosse uma revista para adolescentes, eu teria começado este
capítulo com um questionário e uma tabela de pontuação para definir em
que ponto da escala de hiperconectividade você está. “Você consulta o seu
e-mail antes de escovar os dentes?” seria uma pergunta e, no final, haveria
uma tabela, com conselhos genéricos de um “especialista”: “5 a 10 pontos –
você pode estar gastando horas demais em redes sociais. Aprenda a
gerenciar melhor o seu tempo”.
Na verdade, todas as grandes revistas e jornais do Brasil já fizeram isso.
Porque é relativamente fácil dividir o público em “viciados”, “moderados”
e “desconectados” e fazer guias de acordo. Isso simplifica o problema, o
argumento e a solução. Facilitaria a vida de todo mundo. Mas acontece que
o tempo gasto (e o propósito) com as tecnologias digitais é tão variável,
inclusive para uma mesma pessoa e em diferentes cenários, que é inócuo
colocar os leitores em caixinhas e prescrever os remédios.
Em conversas que tive sobre o assunto deste livro, não raramente
interrompidas por uma nova mensagem no celular, a maior parte dos meus
amigos concordava: tem muita gente “viciada” em “tecnologia”. Ninguém
se reconhecia como alguém com “problemas”, é verdade, mas sempre
poderia falar do namorado, do irmão ou do amigo que morreria se lhe
tirassem o celular.
No meu pequeno universo, então, os problemas da conexão obsessiva
eram aparentes a cada minuto. Trabalhei durante os últimos quatro anos em
uma editora digital, com vários sites de notícia funcionando 24 horas por
dia. Todos no escritório passam o dia inteiro em frente do computador;
meus amigos têm entre 25 e 35 anos, com uma renda acima da média, todos
com smartphones e tablets conectados 24 horas por dia. Com este cenário,
era claro para mim que a questão do “vício” era urgente e alarmante, e já
estranhava não haver 85 livros por mês sobre o assunto.
Cheguei a temer que a minha principal amostra, que me levou a refletir
mais sobre esse assunto, fosse um pouco, digamos, viciada. Ela não é a
“média” da população: a rede 3G, que permite acesso rápido à internet de
qualquer lugar e é um componente importante do uso problemático que se
possa fazer da web, não estava presente nem em 30% dos aparelhos
celulares no Brasil, em 201335. Neste ano, a maior parte da população ainda
acessava a grande rede pelo desktop, o velho computador de mesa de casa
ou do trabalho, e passava razoáveis 30 horas conectada – até porque menos
de 40% das casas brasileiras tinham acesso à internet36.
Mas, como disse o autor de ficção científica William Gibson, “o futuro já
chegou. Ele só não está uniformemente distribuído”. Se olharmos para
outros países, ou mesmo para a juventude das classes A e B do Brasil,
podemos imaginar que estar sempre conectado será mais próximo da regra,
e contar as “horas por semana” será tão inútil quanto “as horas em contato
com a eletricidade”.
Em 2013 alcançamos duas marcas importantes, pelo menos do ponto de
vista dos números redondos: somos mais de 100 milhões de brasileiros
conectados37 e os smartphones respondem finalmente por mais da metade
dos aparelhos celulares vendidos38. Este livro não é, como disse na
introdução, apenas para os meus amigos obsessivos, mas para ajudar nas
discussões que começam a aparecer no momento que muitos brasileiros
passam a viver essa revolução em suas vidas: a mudança de paradigma do
“computador pessoal” para o “computador íntimo”39. Para minha pesquisa
ficar completa e ser útil ao maior número de pessoas, precisava não apenas
observar meus colegas jornalistas viciados em telas, mas também uma
espécie de tábula rasa tecnológica, que passasse por diversas fases de
conexão em um curto espaço de tempo.

O primeiro trago Em pleno ano de 2011, minha mãe –


uma médica estudiosa e inteligentíssima (a própria
definição de “CDF”) – era razoavelmente avessa a e-mails,
não respondia a mensagens em seu velho Nokia que
costumeiramente ficava esquecido em casa ou desligado,
sem bateria, e anotava tudo em infindáveis folhas de papel.
Ela sempre ficava impressionada com as novidades
tecnológicas que eu apresentava, mas nunca investiu muito
dinheiro e tempo no assunto. Até ela comprar um iPad em
abril daquele ano. Chegamos da loja e eu configurei tudo,
coloquei alguns aplicativos, mas não fui muito além.
Queria vê-la descobrindo tudo por conta própria e o tablet
da Apple40, com sua interface intuitiva, era perfeito para o
cenário. Poucos meses depois, eu recebia as primeiras
imagens do meu sobrinho recém-nascido, direto da
Espanha, tiradas com a própria câmera do iPad. E-mails e
mensagens começaram a aparecer com mais frequência e a
videoconferência de domingo virou hábito para diminuir a
distância de mil quilômetros que nos separa. Meses mais
tarde, ela ficou com o meu iPhone quando troquei de
aparelho, e agora passava a receber mensagens de texto.
Ela estava longe de ficar “viciada”, mas cada vez que a
encontrava, monitorava as suas percepções sobre a
tecnologia e a influência da ferramenta.

Em uma de suas recentes visitas à minha casa, notei que ela mostrava
vários e-mails do estilo “corrente”. Das apresentações em PowerPoint que
reciclam piadas sexagenárias, poemas atribuídos erroneamente ao Jabor ou
a Veríssimo, teorias da conspiração genéricas e vídeos com “invenções
revolucionárias da Alemanha”, toda a cesta básica de spam, o lixo do e-
mail, estava lá. Ela falava feliz pois “agora, com o iPad, não sentia mais
tédio” e o e-mail a entretinha. Eu a provoquei: “E os livros, mãe? Você
sempre estava lendo alguma coisa importante. Substituí-los por esse monte
de besteira vale?” Antes, era comum vê-la no sofá ou na rede lendo algo
novo. Agora, com o iPad, ela sorri mais, mas, no longo prazo, o que fica?
Ela vai se lembrar de algum desses e-mails da mesma maneira que de um
livro daqui a alguns meses? Tivemos uma leve discussão, mas eu provava o
meu ponto que mesmo neófitos tecnológicos e pessoas evoluídas
espiritualmente (minha mãe medita diariamente e tem uma capacidade
ímpar de concentração) podem cair nas armadilhas da hiperconexão.
Coincidentemente, na visita seguinte, assistimos a um filme sobre Deepak
Chopra, feito por seu filho Gotham, tentando humanizar a figura do guru
espiritual, que sempre foi uma influência para a minha mãe. A surpresa foi
ver que o autor de As sete leis espirituais do sucesso e mais de 50 outros
guias de autoajuda era um típico “viciado” em Blackberry, que não
conseguia se desvencilhar do smartphone nem quando estava em um retiro
com monges indianos.41. Analisando o filme depois com a minha mãe,
concluímos que Deepak era na verdade viciado em ver sua mensagem
chegando ao maior número de pessoas, e a tecnologia só amplificava as
possibilidades – e necessidades – associadas a este desejo. Da mesma
forma, minha mãe sempre foi uma pessoa gregária e tem amigos espalhados
por todo o mundo. O e-mail foi a maneira que ela encontrou de jogar
conversa fora. Eternamente conectados, a tecnologia tem a capacidade de
potencializar nossos vícios e virtudes. Como chegar ao equilíbrio? Como
detectar um comportamento doentio?

Não é vício, mas é viciante Houve um grande debate nos


últimos anos sobre a possibilidade de o Manual
Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM),
editado nos EUA, mas seguido como bíblia do assunto
pelo mundo, incluir o “vício em internet” na sua quinta
revisão, lançada em maio de 2013. Ele quase foi incluído
no tópico “vício em jogos de azar”, por ter uma relação
com o cérebro parecida, mas em última instância foi
deixado de lado, no apêndice, à espera de “mais
estudos”42. Ou seja: para a maior parte dos psiquiatras do
mundo, não existe algo como um paciente “viciado em
internet/celular/gadgets/redes sociais”.

Em alguns poucos países, o diagnóstico é comum. China, Taiwan e


Coreia usam o termo internet addiction disorder, ou transtorno de vício em
internet para designar os seus pacientes que muitas vezes são classificados
segundo questões arbitrárias, como o uso excessivo de internet. Por lá, há
campanhas preventivas do governo e até campos de desintoxicação estatais.
Aqui no Brasil há um cuidado imenso entre os profissionais de saúde em
denominar o uso excessivo da tecnologia de “vício”, porque não se sabe
quanto as telas são causa ou consequência de um comportamento não
desejado. Em uma reportagem da Folha de S. Paulo com o título “Viciados
em jogos preocupam pais e psicólogos”, os doentes por joguinhos são
descritos normalmente como “jovens, homens, mais impulsivos, com
dificuldade de convívio social, baixo nível de empatia e pior capacidade de
lidar com as emoções”43.
Falo dos “viciados em videogame” especificamente mais adiante, mas é
importante ter em mente que o fato de não haver uma descrição clássica
tanto para o tipo de paciente quanto de doença não quer dizer que alguns
comportamentos relacionados à tecnologia, como checar as atualizações no
Facebook ou novos e-mails o tempo todo, por exemplo, não seja
problemático.
“Redes sociais fornecem uma série de minirrecompensas mentais que não
necessitam de muito esforço para serem recebidas. Essas recompensas
servem como descargas elétricas que recarregam o motor de compulsão,
algo bem parecido com o frisson que um jogador recebe no cassino quando
uma carta é aberta na mesa. Cumulativamente, o efeito é potente e difícil de
resistir”, explica a professora Judith Donath,44 diretora do Grupo de Mídias
Sociáveis do Instituto de Tecnologia de Massachusetts (MIT). Isso parece
um bocado com a definição, se não de vício, pelo menos de “transtorno de
controle dos impulsos” (como definido pelo DSM para designar jogadores
inveterados).
Em diversos livros e estudos é feita a analogia do cérebro viciado em
tecnologias hiperconectadas com o de um jogador em uma daquelas
máquinas caça-níqueis de cassinos. Quando minha mãe abre o e-mail
seguinte, ela está se lembrando que já recebeu mensagens interessantes, e o
cérebro se arma em expectativa. Mesmo que o e-mail que ela acabou de
abrir não tenha sido interessante, não é necessário muito esforço para clicar
e abrir o próximo, e a própria expectativa criada já é suficientemente
prazerosa para o cérebro. É exatamente o mesmo processo que acontece no
cérebro de um sujeito que fica horas só apertando um botão ou puxando a
alavanca de uma máquina em Las Vegas. Ele já recebeu recompensas
variadas, e a simples esperança ou curiosidade de ter uma nova faz com que
ele continue perdendo centavos, da mesma forma que o guru Deepak
Chopra gasta horas alimentando o ego com novas respostas no Twitter.
Se pudéssemos eleger uma culpada por esse comportamento ilógico, seria
a dopamina, um neurotransmissor produzido bem no meio do cérebro, na
área tegmental ventral, que “liga” quando há uma recompensa em potencial
– ela aumenta o estado de alerta do nosso cérebro e nos deixa mais
motivados. É comumente descrita como o “neurotransmissor do desejo e
prazer” e é produzida em altas quantidades quando alguém usa cocaína ou
outras drogas estimulantes, por exemplo. Antes que ela seja amaldiçoada, é
importante lembrar que este neurotransmissor é essencial para a nossa
sobrevivência: ratos tratados para não produzirem dopamina simplesmente
desistem de comer e morrem. A falta dela está ligada a problemas de
locomoção, como a doença de Parkinson, e tremores. A dopamina também
age na formação da memória: quando estamos interessados e motivados, há
uma chance maior de aprendermos alguma coisa.
“Querer é crucial para a sobrevivência e a reprodução. Mas quando os
benefícios são pequenos, irregulares e facilmente saciados, como o e-mail,
o ciclo vira viciante”, afirma Steven Grant, do Instituto Nacional do Abuso
de Drogas em Maryland,45 nos EUA. A possibilidade de um contato com
alguma informação interessante ou uma pessoa importante faz a roleta
dopaminística funcionar toda vez que estamos no computador checando a
caixa de e-mail. Mas quando estamos conectados o tempo todo, o simples
fato de ter um celular no bolso já cria essa expectativa, de certa forma.
No fim de outubro de 2012, a Folha de S. Paulo publicou um estudo
bastante alardeado, informando que “83% dos usuários brasileiros ficam
alterados se esquecem o celular em casa”.46 Na mesma pesquisa, 35% dos
compatriotas disseram consultar o celular a cada dez minutos ou menos.
Alguns psiquiatras americanos chamam esse distúrbio de nomofobia, ou o
medo de ficar sem celular, e Anna Lucia Spear King, doutora em saúde
mental e pesquisadora do Laboratório de Pânico e Respiração da UFRJ,
explica que é um transtorno típico de ansiedade como outras fobias: a
respiração fica alterada, há angústia e nervosismo.
Como se vê, se não há exatamente uma doença bem definida associada ao
uso de tecnologias conectadas, há uma série de sintomas conhecidos.
iDoentes O PhD em Psicologia americano Larry D.
Rosen, que estuda a relação das pessoas com a tecnologia
há 25 anos, batizou de iDisorder o que ele considera uma
doença do nosso tempo.47 A tese do dr. Rosen é que a
iDisorder seria consequência do uso excessivo das
tecnologias conectadas, que pode potencializar transtornos
psíquicos que todo mundo tem em maior ou menor grau,
como os do Eixo I, os chamados transtornos de humor
(depressão, déficit de atenção e hiperatividade,
esquizofrenia) e do Eixo II, ou distúrbios de personalidade
(transtorno de personalidade antissocial, narcisista,
obsessivo-compulsiva).

O psicólogo explica como os narcisistas, obcecados por causar sempre


uma boa impressão, entram em um círculo vicioso nas redes sociais.
“Narcisistas são conhecidos por terem relações superficiais com as pessoas,
particularmente focadas nos ‘amigos-troféu’, que podem fazer com que eles
pareçam mais populares do que realmente são e aumentem a sua
popularidade e prestígio. Que lugar melhor para exibir isso do que nas redes
sociais?”, explica Rosen. OK, Facebook, Twitter e afins são terrenos férteis
para pessoas com distúrbios de personalidade; mas será que estamos mais
narcisistas por ter essa ferramenta à disposição?
É difícil estabelecer o que veio primeiro, mas o argumento de Rosen
sobre a potencialização de nossas “pequenas loucuras” com as novas
tecnologias é interessante. O narcisismo alimentado pelos “curtir” é um.
Outro exemplo: os sintomas do que é conhecido em psiquiatria como
transtorno de personalidade esquizoide, ou a “falta de interesse nas relações
sociais, a tendência ao isolamento e à introspecção, a frieza emocional, e,
simultaneamente, uma rica e elaborada atividade imaginária interior”48,
estão diretamente associados, em pessoas “normais”, ao uso prolongado de
tecnologias conectadas. Nos testes de laboratório conduzidos pela equipe de
Rosen, depois de uma longa sessão de videogame, a pessoa demonstrava
menos empatia (provavelmente por ainda estar com a cabeça em outro
mundo) e o uso obsessivo de redes sociais aumentava a paranoia (desde
uma crise de ciúmes por causa do comentário do namorado até a crença em
golpes propalados por blogs radicais). “Apesar de algumas pesquisas
sugerirem que a internet ajuda a aumentar as conexões sociais, a nossa
pesquisa mostra o oposto: o uso da mídia e da tecnologia tem uma
correlação elevada com isolamento e retiro.”
Em tempos de autodiagnóstico via Google, não foi muito difícil ver
indícios de todos esses transtornos no meu próprio comportamento. Eu era
esquizofrênico quando assumia outra persona nas redes sociais; vangloriava
a minha “capacidade de multitarefa” que se escondia em traços de déficit de
atenção e me escondia na tela do iPhone para fugir de desconhecidos sem
sair do lugar, assumindo a paradoxal figura do “antissocial-social” de hoje.
É fácil, então, para um especialista como Rosen defender de maneira
bastante convincente que “todas” as pessoas mais conectadas têm traços
dessas disfunções psicológicas. E mais conexão é quase sempre mais
“iDoença”. É comum acreditar que esses problemas são mais agudos com
pessoas mais jovens, e eu tenho alguns amigos com filhos que fazem
questão de notar – às vezes com um bizarro orgulho – que a criança “sabe
mexer” com o iPhone e não larga o tablet. A nova geração estaria fadada a
ficar ainda mais obcecada pelas ferramentas de conexão?
Não há nenhum indicativo de que isso “precise” ser verdade. Linda Stone,
pesquisadora que já passou por muitas grandes empresas americanas de
tecnologia, acha que o problema é outro. “Nós podemos achar que as
crianças e os adolescentes têm uma fascinação natural por telefones. Mas,
na verdade, os filhos têm uma fascinação por qualquer coisa que papai e
mamãe achem fascinante. E se papai e mamãe não conseguem largar os
seus dispositivos com telas, a criança vai pensar: ‘Então, é lá que está tudo,
é lá que eu preciso estar!’ Eu entrevistei crianças entre 7 e 12 anos sobre
isso. Elas diziam coisas como ‘minha mãe deveria fazer contato visual
comigo quando ela fala comigo’ e ‘eu costumava ver TV com meu pai, mas
agora ele tem um iPad, e eu assisto sozinho’. Crianças aprendem empatia
através de contato visual e olhar na mesma direção. E se o contato do nosso
olho está nos dispositivos, elas não serão empáticas.”49
O que a tecnologia faz para você?

Ainda que teses como a de Rosen sejam interessantes para explicar


melhor o que se passa no nosso cérebro e por que a tecnologia nos atrai
tanto, entender o mecanismo relacionado a compulsões é só um passo para
a mudança de hábitos. Parece haver hoje uma certa mania de achar que o
diagnóstico seguido de medicação e duas sessões com um profissional
acabam com o problema, como descreveu a jornalista Eliane Brum em uma
coluna recente, com o sugestivo título de “Os robôs não nos invejam mais”:
“Hoje parece mais fácil para os pais lidar com um diagnóstico de transtorno
psiquiátrico e tentar calar seus filhos com medicamentos do que
empreender uma travessia que seguramente será mais espinhosa, exigirá
tempo e dedicação maiores e poderá levar a respostas impossíveis de prever
– quando não a novas perguntas. Se aceitarmos como verdade única que o
problema se resume a uma disfunção química no nosso cérebro, alheia ao
viver, algo da ordem dos mecanismos fisiológicos, como o desarranjo de
um sistema robótico, não bastaria ‘corrigir’ com drogas para ser
‘curado’?”50
Então, novamente, não creio haver uma epidemia de “internet do mal”
com uma série de sintomas claros, nem acho que os mais jovens estão
fadados a uma vida mais infeliz com os olhos que não desgrudam das telas.
Algumas pessoas conseguem trabalhar o dia inteiro com o computador e
viver em harmonia com o resto do mundo, e outras podem ser usuários mais
casuais, mas ter uma relação menos controlada. Seria fácil culpar um
neurotransmissor pela nossa relação obsessiva com as telas. Mas o caso é
mais complexo e a “armadilha da dopamina” ou as tendências narcisísticas
explicam apenas uma parte da nossa utilização irracional da tecnologia.
De todo modo, acho que podemos usar – com alguma parcimônia – a
palavra “vício” quando falamos de relações obsessivas com as tecnologias
conectadas. Porque um “vício”, qualquer que seja, é efetivamente
preocupante não só por causa das coisas que você faz por ele, mas
especialmente pelas coisas que você deixa de fazer. Volto ao “precisamos
fazer isso mais vezes”. A meia hora a mais discutindo no Facebook impediu
você de tomar o café com um amigo? A hora que você não viu passar
jogando coisinhas viciantes no tablet adiou ainda mais o fim daquele livro
que você “queria ter tempo” para terminar?
Toda vez que investimos nossa atenção em algo estamos, obviamente,
deixando outras opções de lado. Como decidir o que deve ser prioridade? O
budismo tem a resposta: “Se nos lembrarmos da inevitabilidade da morte,
geraremos o desejo de usar nossa preciosa vida humana de modo
significativo”, ensina Ani-la Kelsang Pälsang, do Centro Budista
Mahabodhi.51 Contemplar a possibilidade da morte pode parecer sombrio
demais para muitos, mas ter essa possibilidade sempre em xeque ajuda a
tomar algumas decisões. Pense na finitude da sua existência antes de clicar
no décimo sexto vídeo em sequência no Youtube (de alguém ou algum
assunto, cada vez menos interessante). Como você pode morrer a qualquer
momento, o que você terá feito com o seu tempo?
A finitude do tempo traz dilemas diferentes para cada pessoa. Mas uma
coisa é indiscutível: no caso da relação com os gadgets, o uso excessivo e
em horas não regradas traz prejuízos para o físico. Uma recente pesquisa
feita nos EUA, na Universidade de Kent, mostra que os usuários de
smartphones são mais propensos a não serem tão saudáveis fisicamente
quanto os que usam menos esses aparatos tecnológicos.52 Na Coreia do Sul,
as 160 mil crianças de 5 a 9 anos diagnosticadas pela agência
governamental como “viciadas em internet” têm problemas que vão desde
esquecer de comer no almoço, na escola, até não participar das aulas de
educação física porque estão fixadas nos seus dispositivos móveis53.
Pesquisadores americanos demonstraram que a exposição à luz que emana
dos tablets na cama, logo antes de dormir, diminui significativamente a
produção de melatonina, hormônio que regula nosso relógio biológico e o
ciclo do sono.54 E existe a síndrome da visão de computador (CVS, na sigla
em inglês), que acomete 90% das pessoas que passam mais de três horas
ininterruptas na frente de monitores (cada vez mais gente) e provoca olhos
ressecados, visão embaçada e eventual miopia.55
O excesso de telas pode ser problemático de diversas maneiras. Então, é
importante discutir o tempo todo de que maneira a tecnologia o conecta ao
que importa. O seu aparato tecnológico está aprofundando laços com os
seus amigos? Por ser mais eficiente, você se sente com mais tempo para
fazer mais coisas diferentes? A tecnologia o está ajudando a achar o tão
necessário equilíbrio entre a vida pessoal e profissional? As suas
explorações no mundo da web o ajudam a entender melhor o que está à sua
volta? A maneira que você escolhe para se manter informado lhe permite
tomar melhores decisões? Você usa a tecnologia para melhorar a sua saúde
ou ela tem piorado porque você se mantém muito tempo sentado? É preciso
responder este e-mail, esta mensagem de texto agora, rapidamente, ou é
possível deixar para depois, de maneira mais elaborada?
Há, é claro, uma infinidade de questionamentos nessa linha. O importante
aqui é exercitar a milenar estratégia de “pensar sobre o pensar”, a
metacognição. Tente criar uma disciplina para fazer esses questionamentos
ao longo do dia. Eu mesmo era o pior exemplo de uso equivocado e não
enriquecedor de tecnologias. Tinha acesso aos brinquedos mais
interessantes e estava sempre na primeira leva dos adeptos das novas redes
sociais, mas não sentia minha vida necessariamente melhor por isso. E um
bocado do problema tinha a ver com a simples obsessão de estar sempre
conectado. Curiosamente, eu encontrei na própria tecnologia formas de
lidar com o problema do excesso de tecnologia.

Recuperando o controle Eu poderia criar uma história


bonita sobre o momento em que tive o “estalo”. Para criar
uma narrativa mais interessante, tentei delimitar o
momento em que eu mesmo descobri que estava com um
sério problema de relacionamento com as tecnologias
digitais. Mas, é claro, não foi só uma situação. Nem só
dez, mas várias dezenas delas. Olhando em retrospectiva,
entretanto, eu posso citar alguns momentos significativos,
quando eu notei (muito tempo depois) que ia ao banheiro
em jantares com a minha namorada para checar o Twitter;
ou quando briguei com a minha mãe e disse que “não
poderia mais ir a Brasília com a conexão dela sendo tão
ruim” – argumentava que meu trabalho dependia daquilo,
quando, na verdade, eu só estava querendo baixar mais
coisas; ou quando paguei um valor absurdamente alto de
roaming (conscientemente) apenas para checar se alguém
tinha respondido um comentário meu no blog quando
estava na rua, na China.

Se eu fizesse mais questionamentos diários, meditasse mais sobre o


assunto, como sugiro hoje, provavelmente não teria chegado a esse ponto.
Mas achar alguns momentos pivotais, mesmo que eles não sejam decisivos
na prática, ajuda a construir uma história e definir o que funciona e melhora
a sua vida e o que te escraviza. Além de momentos de reflexão em lugares
de fato mais tranquilos – eu repensei boa parte da minha vida quando andei
pelo deserto do Atacama, como num clichê ruim de livro de autoajuda –, eu
tive a ajuda de algumas ferramentas importantes para contornar o meu
vício, que não podemos chamar de vício.
Hábitos, como define Charles Duhigg no excelente livro O poder do
hábito, são “as escolhas que fazemos deliberadamente em algum ponto, e
nas quais depois paramos de pensar e continuamos fazendo, por vezes todos
os dias”. Uma pesquisa publicada pela universidade de Duke em 2006
mostrou que mais de 40% das ações que as pessoas fazem todos os dias não
são decisões, na realidade, mas hábitos. Nós nos voltamos aos hábitos por
uma simples questão de economia de energia do cérebro. Depois de um
tempo fazendo uma ação, quem toma o controle são os gânglios basais, que
usam menos energia que o complicado e reflexivo córtex pré-frontal.
Um dia você escolheu fazer uma conta de e-mail, ou comprou um
smartphone, ou resolveu entrar nas redes sociais. Checar novas mensagens
o tempo todo ou escolher mandar várias mensagens de texto em vez de
pegar o telefone é um hábito, que pode se desenvolver em menos de uma
semana. É importante ressaltar que a relação de causa e consequência de
tecnologia e ansiedade/comportamentos obsessivos é muito complexa e
apenas recentemente explorada, mas, para a minha narrativa, a raiz do meu
problema era o vício por “novidades”. Isso fazia bem quando era criança –
não conseguia ir ao banheiro sem pegar algo para ler, ou tomar o café da
manhã sem pegar a caixa de Nescau e decorar a quantidade de vitamina
B12 que ingeria. Essa curiosidade me fez bem e atribuo a ela a minha
paixão pelo jornalismo. Mas há duas décadas, quando era pequeno, a
quantidade de informações em objetos físicos era finita: em determinado
momento, eu enjoava do atlas no banheiro ou descartava a revista do
consultório da minha mãe, que já tinha relido três vezes. Até que, em 2008,
apareceu o smartphone.
Jonathan Franzen, que escreveu um dos meus romances favoritos de
todos os tempos, Liberdade, resumiu o efeito do celular que acessa a rede o
tempo todo na vida de boa parte das pessoas em uma entrevista à revista
Época, em 2012. Ele contestou a adoração que se tem pelo criador da
Apple, que, na minha visão, usava tecnologias “enriquecedoras” (não
apenas para ele): “Não acho que Steve Jobs tenha feito um bem à
humanidade. O iPhone e similares substituíram o cigarro. Os tabagistas
trocaram a compulsão do cigarro pela do celular. A razão é que as pessoas
ficam nervosas quando não estão fazendo alguma coisa. Aí entra o celular
como elixir para a obsessão de fazer algo. Precisamos aprender a não fazer
nada”.56
Estamos com um déficit de tédio. Essa é uma das consequências mais
terríveis de termos mecanismos simplificados de entrega de dopamina o
tempo todo em nossos bolsos. No próximo capítulo tratarei com mais tempo
e profundidade o assunto, mas por ora voltemos à sessão de alcoólicos
anônimos em que eu conto a minha jornada.
A minha obsessão por ficar sempre “informado” ou com a mente ocupada
com novas informações piorou com as redes sociais e, depois, quando virei
editor do Gizmodo, já que exigia de mim mesmo ficar atualizado sobre o
assunto tecnologia o tempo todo. Aquilo estava me fazendo bastante mal:
tinha sono o tempo todo, estava mais irritadiço e menos saudável. Eu
poderia dizer que simplesmente não sabia gerenciar meu tempo direito, mas
há sempre novas maneiras de reenquadrar o problema que envolve
disfunções psicológicas e neurotransmissores fora de controle.
Em 2011, os americanos criaram um nome para a síndrome que caía
como uma luva para descrever a minha condição: fear of missing out, que
tem o simpático acrônimo de FOMO. A neurose foi traduzida aqui pela
jornalista e estudiosa do assunto Rosana Hermann como “porforofobia”.57
Podemos dizer que é um nome mais interessante para um problema comum
da adolescência: o medo de, em uma conversa qualquer, mostrar ignorância
em algum assunto e ouvir “como você não conhece isso?” A nossa conexão
eterna e atualização constante das notícias agravam o problema que, na
descrição de Rosana, vira “a ideia desestabilizadora de que seus pares e
amigos conectados estão sabendo mais e fazendo tudo melhor que você”.
Quando era apenas um jornalista querendo me informar, o excesso de
curiosidade parecia bom. Quando as redes sociais entraram na equação, a
porforofobia me pegou de jeito.
Logo estava gastando uma quantidade incrível de horas diárias para saber
o que aquela colega do ensino fundamental fazia no Facebook ou
participando de acaloradas discussões no Twitter com pessoas que nunca vi.
A internet não nos dá apenas mais escolhas e acesso mais fácil a elas, mas
deixa claro que o que não escolhemos não deixou de existir – está lá para
ser acessado em fotos não curtidas e e-mails não lidos. O problema durou
mais de um ano, provocou crises de abstinência severas em alguns períodos,
até que, em um desses momentos de busca incessante por novas
informações, eu comecei a ler sobre o assunto e aprender algumas técnicas
para retomar o controle.
Voltando ao Poder do Hábito, Duhigg explica que, antes de mudarmos
hábitos que avaliamos como sendo prejudiciais, temos que identificar os
três componentes deste comportamento: a “deixa” (ou o “gatilho”, na
tradução literal), a “rotina” e a recompensa que buscamos nestas situações.
Por exemplo: uma pessoa com dificuldade de emagrecer (e, por
conseguinte, com o hábito de comer muito) pode perceber que todo dia, por
volta de 5 da tarde (a “deixa”), alguns colegas se reúnem na lanchonete da
empresa e comem algum salgadinho e tomam café (a rotina). Duhigg sugere
que a pessoa, tendo ciência do hábito, procure saber qual é a recompensa
que está sendo buscada. É a socialização? É uma simples pausa? É algo
para comer? Para mudar o hábito, é preciso antes de tudo buscar outras
rotinas para a mesma recompensa, ou substituí-la totalmente. No exemplo
da rotina de comer guloseimas à tarde, a pessoa pode perceber que o que ela
quer é apenas conversar com os amigos, e ela pode esperar meia hora para
bater papo depois em uma baia adjacente. Arranjar alguma coisa para fazer
naquele horário específico pode evitar que a “deixa” apareça. E o loop do
hábito não se completa.
Foi mais ou menos o que eu comecei a fazer. A minha recompensa
sempre foi, desde o início, “matar o tempo” com doses de dopamina cada
vez menos intervaladas. Precisei focar mais em “atrasar a recompensa”: se
passasse o dia controlando melhor as coisas que acessava – evitando entrar
em um portal de notícia a cada 20 minutos, por exemplo –, estaria livre do
trabalho mais cedo e poderia fazer coisas mais significativas, como ficar
mais tempo com as pessoas queridas e assistir a um dos filmes que está em
uma lista que só cresce.
Como a criança que aceita não comer um chocolate agora para ganhar um
brinquedo no fim do dia, fui experimentando as “deixas”, identificando as
rotinas e atingindo recompensas semelhantes, e muitas vezes melhores.
Estudando meus hábitos, vi que muitas deixas e gatilhos eram meramente
visuais, e cheguei à conclusão de que um simples rearranjo de ícones já
diminuía a quantidade de vezes que acessava alguns sites, apenas porque
agora eu gastaria um segundo a mais. Tirar o atalho do Twitter da tela
principal do meu iPhone já evitou que eu checasse a rede social o tempo
todo e esconder o ícone do Instagram em uma pasta específica também
refreou minha compulsão em saber mais da vida alheia.
O segundo passo foi eliminar as notificações, tanto no celular, evitando
que eu pegasse o telefone do bolso a cada tremida, quanto no computador,
com seus números em vermelho58 que iam crescendo quase
indefinidamente: quando “zerava” a minha caixa de e-mail, passava para ler
os tuítes que não tinha acompanhado nos últimos 30 minutos. Quando
zerava essa notificação, ia para os compartilhamentos do Facebook, e por
último para o meu leitor de notícias compactadas59. Quando zerava tudo e
trabalhava meia hora, já surgiam novos números vermelhos. Tenho noção
de quão extremo era o meu caso, mas a “síndrome de zerar a Caixa de
Entrada” é certamente um dos primeiros e mais comuns sintomas da
“iDoença”. Se não eliminasse os gatilhos, estava perdido.
Além de diminuir a forma como a tecnologia me interrompia, passei a
prestar atenção na natureza das minhas interações online: diminuí
drasticamente a quantidade de discussões online das quais participava – em
e-mails, redes sociais e comentários do blog – quando percebi que aquilo
provocaria uma espiral de quase insultos e a ânsia para estar mais “certo”. E
parei de publicar mensagens e fotos que eram claramente iscas para afagar
o meu ego, já que a ansiedade por curtidas me colocava em um loop
obsessivo.
Com tudo isso, minha namorada disse que eu estava ficando mais zen,
mas ainda faltava um bocado para conseguir gerenciar melhor meu tempo,
delimitar melhor onde terminava meu trabalho e começava a minha vida
pessoal, quando as ferramentas largamente se confundiam, por exemplo.
Quando vi que a compulsão por microdistrações era um pouco mais forte
que a minha força de vontade, tomei algumas medidas mais drásticas. Para
conseguir escrever este livro, saí completamente do Facebook por alguns
meses e pedi para minha namorada mudar a minha senha do Twitter, e só
me devolvê-la quando eu entregasse os originais60. Mais adiante, quando
voltei gradativamente às redes de maneira mais saudável, resolvi bloquear
alguns sites no meu computador principal e deixei atalhos para qualquer
rede social apenas no tablet que fica no sofá. De forma que, para acessar
esse tipo de conteúdo, eu tinha que me mover fisicamente para um lugar de
“descanso”. Funcionou para mim.
Tudo isso me ajudou a ficar pelo menos mais calmo, mas ainda parecia
faltar tempo para tudo. Para onde ele estava indo, afinal? Deveria seguir a
máxima de Peter Drucker, o papa da administração, que diz que “o que é
medido, é gerenciado”.
O primeiro passo para uma boa dieta é controlar melhor o que se coloca
no carrinho de compras. Você não comerá barras de chocolate de manhã ou
atacará um bolo na geladeira se estas coisas não existirem na sua casa. Isso
eu comecei a fazer, tirando os ícones apetitosos do campo de visão. Mas,
seguindo a analogia, as pessoas que perdem peso usam métodos que
atribuem pontos para tudo o que comem: eu precisava entender melhor a
minha dieta de atenção. Comecei então a usar dois interessantíssimos
programas no meu computador. O primeiro chamado “RescueTime”61, que,
como o nome diz, tem o propósito de recuperar o tempo perdido. Funciona
assim: ele monitora cada programa e site que você abre, e define cada
operação em uma escala que vai de “muito distrativo” a “muito produtivo”.
Tudo é calibrável: então, se você for um desenvolvedor de jogos, jogar pode
ser considerado “trabalho”. Com alguns ajustes, ele passa a dar algumas
estatísticas bem interessantes. Na primeira semana, eu descobri que era
produtivo menos de 50% do tempo no escritório. Além do tempo
interminável em reuniões, todo sábado recebia um novo gráfico mostrando
o quanto permanecia em alguns sites e joguinhos, e isso abriu meus olhos.
Fui melhorando minha performance e, de repente, não saía do escritório
mais depois das oito da noite, ao mesmo tempo em que o livro começava a
ganhar forma. Ver a linha azul do “produtivo” aumentando foi um estímulo
interessante.
A ciência “autoanalítica”, de mensurar cada passo, está apenas
engatinhando, e é um dos desdobramentos mais interessantes e saudáveis
(se usado com moderação, é claro) da capacidade que as novas tecnologias
têm de monitorar o nosso comportamento, seja no aspecto de
gerenciamento de tempo, com o RescueTime, seja do controle de glicose ou
calorias gastas, com alguns apetrechos para smartphone. Pontuações altas
lhe permitem questionar para onde está indo a sua atenção. As horas de
jogo, as horas na frente da TV, os dias gastos olhando fotos de gatinhos e
vídeos no Youtube: o que você poderia fazer com isso? Lembra do
“precisamos fazer mais isso”? Então.
O monitoramento dos hábitos aumentou o meu controle, mas eu ainda
tinha recaídas. Como além de querer mais tempo para fazer as coisas que
gosto, eu tinha um grande projeto (este livro) e um tempo finito, precisava
de uma bala mais poderosa. Pesquisando na internet, achei um programa
simples e perfeito para as minhas necessidades chamado Freedom.62 O que
ele faz é dar uma forma muito discutível de “liberdade” ao usuário. Basta
clicar no ícone, digitar quanto tempo de “alforria” você quer – digamos,
120 minutos – e, pronto, durante este tempo, seu computador não se conecta
mais a nenhuma rede. Não adianta reiniciar ou terminar o programa “na
unha”: o Freedom muda várias configurações ao mesmo tempo e você de
repente se vê ilhado em um computador sem conexão à rede. O programa
me tirava a liberdade de poder ir a qualquer lugar na internet, mas me dava
em troca tempo para tarefas importantes que exigiam mais foco, como
concatenar ideias complexas em textos longos.
É uma ferramenta radical, sim, mas quando pude finalmente desinstalar o
Freedom, vi que tinha mais controle. A autoanálise, tomar consciência de
quais são as “deixas” e o monitoramento do hábito são algumas das
estratégias possíveis no processo de relação mais sadia com a tecnologia,
que tiveram um efeito fundamental na mudança do meu comportamento.
Creio que o uso moderado das ferramentas que temos à disposição – do
smartphone às redes sociais – pode ser certamente mais enriquecedor que a
negação total, e o tempo necessário para uma desaceleração pode variar
bastante de pessoa para pessoa. Mesmo que você não esteja passando por
uma situação de relação obsessiva tão grave quanto aquela em que eu me
encontrava, é importante notar que, da mesma forma que outros “vícios”, o
excesso de conexão afeta não apenas um indivíduo, mas as pessoas em
volta. E raramente isso é mais claro do que na relação com gente que não
larga aquele maldito videogame.

Próxima fase Para muitas pessoas, o elemento distrativo


da tecnologia não está só nas redes sociais e notificações
de novos e-mails, mas também – e às vezes principalmente
– nos joguinhos. Para mim, em diversas fases da vida,
descobrir por que eu não estava “fazendo isso mais vezes”
era uma questão de observar a caixinha verde em cima do
Xbox ou o ícone mais proeminente no meu PC. Eu não
andava mais de bicicleta – que adorava, em retrospectiva –
porque pegar o controle e ligar a TV era mais fácil. Ao
todo, eu certamente já passei muito mais de 365 dias
olhando para telas de mundos imaginários, mais do que
gastei (ou “investi”, como dizem) lendo livros ou
assistindo a filmes. Isso é algo comum à minha geração,
então, certamente é natural questionar se são horas bem
gastas. Vale tratar o videogame como só mais uma
manifestação artística, uma forma de entretenimento?

A questão não é preto no branco como muitas vezes os dois lados do


debate tratam. E seria difícil aqui assumir a posição de demonizar o
comportamento dos gamers ou dizer que jogar é uma diversão
necessariamente “inferior”. Até porque há jogos e “jogos”, assim como há
livros e livros. Toda pessoa que joga muito, como eu, já tem um discurso
pronto para justificar tanto tempo gasto na atividade. Eu sempre começava
dizendo que devo ao vício precoce em videogames boa parte do meu
vocabulário inglês, muitos amigos e, por que não?, este livro: eu comecei a
escrever para grandes publicações justamente falando de videogames – foi
por onde minha carreira jornalística decolou.
Mas a verdade é que variações desse discurso não são usadas apenas para
dar satisfação aos críticos – seja eles a mãe, que ordena “desliga o
videogame”, ou a mídia tradicional, que coloca na conta dos jogos violentos
cada homicídio cometido por adolescentes problemáticos. Ele também
serve para enganar os próprios jogadores. É o que o autor americano Clive
Thompson definiu como “remorso gamer”,63 “uma sensação súbita e
assustadora de vazio quando consideramos todas as outras coisas que
poderíamos ter feito durante o nosso tempo jogando”. É claro que essas
horas “desperdiçadas” no videogame não seriam automaticamente
convertidas em atividade física, leitura de Graciliano Ramos e James Joyce
ou a filmografia de Kurosawa. Mas esse remorso descrito é uma sensação
muito comum – e muito mais recorrente do que em apreciadores de outras
formas de entretenimento. É difícil achar alguém que diga: “Nossa, acho
que eu passei tempo demais lendo esse livro”. Por quê?
Creio que ainda não sabemos a resposta. Pode ser algo circunstancial, e
eu aqui, ao criticar quem gasta tempo demais com jogos, posso soar como
as pessoas que atacavam os romances no século 19 (“os jovens estão sendo
consumidos por essas históricas pervertidas!”). Mas se pegarmos a lista de
aplicativos mais baixados para smartphones e tablets, pelo menos 50% são
jogos e os videogames são a categoria de produtos de consumo que mais
cresceu em vendas nos últimos anos64 no Brasil. Então, já que estamos
colocando bastante dinheiro e tempo nisso, é bom discutir a relação.
Ao mesmo tempo, devemos também afastar o problema dos estereótipos,
ou, pelo menos, expandir o universo do “problema”. No imaginário popular,
o viciado em jogos eletrônicos é o rapaz adolescente que fica dando tiros,
hipnotizado na TV. Mas a relação obsessiva com as diversões eletrônicas
tem se democratizado enormemente com a popularização de todo tipo de
dispositivos eletrônicos. Hoje, da mesma forma que há jovens adultos
gastando 10 horas por dia em RPGs online, há mulheres cinquentonas
acumulando centenas de dias (se somarmos tudo) em partidas do velho
Paciência ou Freecell do Windows e homens de negócios perdendo
incontáveis dólares em joguinhos de Facebook, como Candy Crush. Há
opções para todos os tipos de consumidor/vítima.
Assim como fazemos quando estamos checando e-mail ou as redes
sociais, o ideal é parar para analisar se estamos no modo piloto automático
ou se há algum propósito quando estamos jogando. Estamos ali realmente
felizes pela imersão no que é o cruzamento de um hobby, um esporte e uma
narrativa ficcional? O objetivo é tão somente “esvaziar a mente”, relaxar,
para alternar entre os outros estresses do dia? Ou é um consumo
compulsivo? O mesmo jogo pode ser coisas diferentes em situações
diferentes. Mas o último caso preocupa bastante gente.
Em primeiro lugar, eu gosto das pessoas que dizem que jogam para
“esvaziar a cabeça” porque elas são honestas e não tentam justificar demais
o que o resto da sociedade vê como tempo perdido. O nadador Cesar Cielo
disse que para acalmar a mente e amenizar o estresse antes do mundial de
natação de 2013, ele viu séries bobas de TV e jogou Candy Crush Saga.65
Parece ter dado certo: ele acabou campeão da prova mais disputada. A
estratégia faz sentido: jogos monopolizam a atenção ao mesmo tempo em
que exigem decisões instintivas, o tempo todo. Não raciocinamos muito
profundamente quando jogamos, já que tudo é muito rápido.
Recentemente, quando uma tragédia aconteceu com amigos próximos,
minha mãe teve que viajar e contou para mim que conseguiu parar de
pensar no pior quando, no avião, sacou o iPad e jogou Fruit Ninja, que testa
ao máximo a atenção e os reflexos em um tema abstrato. Ele parece ter
funcionado melhor para tirar os pensamentos ruins que o outro método
favorito dela, a meditação. Colecionando casos assim, quando encarno o
conselheiro sentimental, recomendo às pessoas que acabaram de terminar
um relacionamento que joguem bastante videogame. É a arte superior para
“resetar” o cérebro nessas situações. Assistir a um filme pode lembrar uma
situação X, que os recém-terminados viveram juntos; em livros, a mente
facilmente cai em devaneios; qualquer música pode ter sido a trilha de
algum momento juntos. Em jogos, estamos em um mundo à parte. E isso
pode ser – com parcimônia, é claro – uma terapia. Jogar é zen. Pense no
termo usado para descrever o simples e solitário jogo de cartas, com mais
de 200 anos, instalado em todo PC: “paciência”.66
É certo que “esvaziar o cérebro” não é uma defesa muito abonadora, e
obviamente não funciona para todo mundo. Então, os defensores mais
ferrenhos dos games, os que gastam mais atenção, tempo e comentários na
internet, preferem apontar outras vantagens: as pesquisas que mostram que
jogos ensinam conceitos de lógica, bem como a habilidade de tomar
decisões e priorizar em situações de estresse;67 as que mostram que as
pessoas que jogam títulos de ação de 5 a 10 horas por semana, conseguem
distinguir melhor os detalhes visuais no meio de muitas informações –
virando melhores motoristas no processo;68 ou que a maneira como nos
comportamos e parecemos ser no mundo dos jogos online pode ter efeito
positivo no comportamento “real”.69
São argumentos que fazem sentido mas, cá entre nós, há pesquisas que
apontam benefícios para qualquer coisa que é consumida em larga escala e
tem seus apreciadores. Até a apreciação por armas de fogo já serviu para
unir pais e filhos. Esses estudos sempre rendem muitas citações ao autor e
grandes manchetes em portais. Alternativamente, digite no Google “cerveja
benefícios” e verá dezenas de reportagens. Chequei aqui e acabo de
descobrir que cervejas são menos calóricas que sucos de laranja e vinhos.70
Prefiro as explicações mais fundamentais sobre os benefícios de jogar,
qualquer coisa que seja. A julgar o que se encontra junto de ossos em sítios
arqueológicos, jogar é algo que faz parte da natureza do ser humano há
muito tempo. Os jogos sempre nos permitiram testar os limites, desenvolver
habilidades e, no caso dos jogos que praticamos sozinhos, fazer com que
nos sintamos “efetivos”. Gostamos de nos sentir bons em qualquer coisa, e
jogos, especialmente de videogame, são um caminho extremamente eficaz
para isso. Desde as cartas pulando em cascata ao fim de um jogo de
paciência ao YOU ROCK!! quando terminamos de “tocar” uma música em
Rock Band (qualquer que seja a pontuação), temos a confirmação de que
somos bons. Mesmo antes de completar um objetivo, cada ding das moedas
que coletamos em Super Mario Bros, cada swoosh das frutas fatiadas de
Fruit Ninja, cada aplauso de uma multidão imaginária por uma nova
conquista em Civilization, nos mostra que estamos “produzindo” algo.
Por isso, jogos podem ajudar a aumentar a autoestima. Em um dia ruim e
burocrático no trabalho, matar alguns monstrinhos e ser elogiado pelos
colegas online em uma partida de League of Legends, ou mesmo sozinho,
passando de uma fase qualquer, reforça a sensação que fazemos “algo”
bem. E se não somos bons em algo, o jogo se adapta, mudamos a
dificuldade, ou trocamos. Sempre há progresso.
Quando estamos realmente entretidos em um jogo, atingimos o chamado
“estado de fluxo”, ou “estado mental de operação em que a pessoa está
totalmente imersa no que está fazendo, caracterizado por um sentimento de
total envolvimento e sucesso no processo da atividade”, como definiu o
psicólogo Mihaly Csíkszentmihályi, em 1975.71 O “fluxo” é atingido por
meio de diversas atividades que não sofrem tanto preconceito social quanto
os videogames, como a dança, a escalada ou o crochê. Ficamos imersos,
nos sentimos no ápice da nossa habilidade, felizes por estar realizando algo
que se materializa na nossa frente. Isso provoca um tipo de estresse bom.
Há algumas regras para caracterizar o “fluxo”, como definir objetivos
claros, ter um feedback direto e imediato, além do fato de a atividade em si
(e não necessariamente o “produto” dela) ser recompensadora.
O trabalho de Csíkszentmihályi foi levado para diversas outras
disciplinas, porque no fim faz eco à ideia de que “temos de fazer algo que
nos deixe felizes”. O psicólogo é citado em quase todas as defesas do valor
intrínseco de jogar videogame, mas acho que faz mais sentido a leitura de
Alex SoojungKim Pang, autor de The Distraction Addiction (‘O vício da
distração’, sem tradução para português), que usa as partidas de videogame
com os filhos para, de certa forma, treiná-los para a vida. “A chave para
vencer é se concentrar, aprender a excluir distrações e focar apenas no que
importa. Eu sou bom no jogo porque eu sei me focar. Eu sempre amei essa
qualidade imersiva nos jogos, e quero que meus filhos apreciem este prazer.
E quero que eles estejam cientes do valor decisivo do foco.”72
O problema da explicação de Csíkszentmihályi (que não é mera teoria,
mas partiu de estudo e observação de milhares de cobaias) é que ela se
aplica como uma luva para os jogos mais viciantes: no jogo, sabemos muito
claramente o que precisamos fazer para chegar ao objetivo, a cada pequeno
passo em direção a ele somos recompensados, quando falhamos,
aprendemos algo, ganhamos uma nova chance imediatamente depois e
temos a sensação de tempo distorcida. São “qualidades” dos jogos em que
as pessoas gastam mais tempo. World of Warcraft (onde o típico usuário
investe 468 horas por ano73) ou jogos sociais como os finados FarmVille e
Colheita Feliz têm exatamente essa estrutura e estão adaptados às nossas
habilidades e expectativas. Pela repetição de tarefas, eles parecem, para
quem vê de fora, ser um “trabalho”. E isso não é coincidência.
“Jogos nos fazem felizes porque são trabalho duro que nós escolhemos
fazer nós mesmos. E não há nada que nos deixe mais felizes que um bom
trabalho duro”, explica Jane McGonigal, que escreveu Reality is Broken –
traduzido por aqui como A Realidade em Jogo. A tese dela faz mais sentido
no título em inglês: para resolver problemas do mundo, precisaríamos fazer
com que os desafios da vida, do trabalho à participação social, parecessem
mais como videogame, já que a realidade está “quebrada”. A lógica de
aplicar esses conceitos a outros problemas é o chamado gamification, termo
que até pouco tempo atrás estava circunscrito aos discursos de marketeiros,
mas começa a aparecer em diversos aspectos da nossa vida conectada, e é
algo que merece ser melhor entendido.
Pelas teorias de McGonigal e defensores da gamificação (como foi
parcialmente traduzido no Brasil), alguns dos maiores problemas dos
nossos trabalhos – e da nossa vida em geral – é que não há micro-objetivos
o tempo todo, não temos pequenas recompensas no caminho, não somos
instigados a “quebrar recordes”. E se ficarmos só voltando para os jogos
para nos sentirmos mais “produtivos”, o mundo não gira. “O que
precisamos é de jogos que nos fazem felizes no momento, que produzam
um tipo de recompensa emocional mais duradoura. Nós precisamos nos
sentir felizes mesmo quando não estamos jogando. Só então encontraremos
o equilíbrio certo entre jogar nossos jogos favoritos e fazer o melhor nas
nossas vidas reais”, diz McGonigal.
Na visão dela, o conceito da gamificação (a coisa não foi traduzida, até
para ficar mais “moderna”) poderia ser usado, por exemplo, para incentivar
as pessoas a fazerem tarefas chatas, como lavar a louça ou limpar a casa (há
um jogo estilo RPG chamado Chore Wars74) ou melhorar a participação de
alunos em projetos fora da escola (em Nova York, no Quest to Learn75). Os
exemplos parecem realmente interessantes. Quando tivermos o smart grid e
o consumo de energia de cada cidade puder ser visto a qualquer momento,
poderemos criar uma espécie de jogo entre os moradores de uma rua para
ver quem consegue reduzir mais o consumo, dando prêmios (simbólicos ou
não) para os mais conscientes no gasto da energia e instituir a “provocação”
sadia entre os competidores. É o que está fazendo a Simple Energy, nos
EUA.76
Além de tentar melhorar o mundo, a gamificação também está em
aplicativos mais triviais, mas bastante populares: no Foursquare, quem
visita mais vezes um lugar – e “anota” o ato pelo smartphone – vira
“prefeito”, e pode ganhar descontos no processo; no GoodReads, dá para
medir quão rápido você está na leitura em comparação com os seus amigos
ou ganhar medalhas por atingir metas de livros concluídos; no FitoCracy,
Runkeeper ou quase qualquer app de malhação, somos motivados a
competir com os amigos e colecionamos troféus virtuais pelo nosso esforço
e calorias gastas.
Tudo parece lindo e os objetivos, nobres. Mas será que os fins justificam
os meios? Os advogados da gamificação reconhecem que não podemos
resistir a essa estrutura dos jogos viciantes, então temos que transformar o
mundo em um grande jogo – algo que era reservado aos escoteiros e seus
distintivos, antes da invenção dos smartphones. Talvez seja mais fácil criar
um sistema cheio de bônus, ícones coloridos e competições entre amigos
para diminuir o desperdício de energia, por exemplo. Mas qual será o
impulso real das pessoas que participam? Ganhar o jogo ou salvar o
mundo? Será que alguém aprende valores reais ao participar dessas
gincanas conectadas? Não há muita confirmação científica de que o
comportamento “aprendido” (ou seria apenas repetido?) no jogo se estende
para o resto da vida das pessoas e a discussão moral fica em segundo plano.
Somos tratados como crianças. E quando as pessoas ficam realmente
“viciadas” nas recompensas intrínsecas do jogo, a questão moral fica em
segundo plano: elas começam a repetir o que a dopamina diz ser o certo,
não necessariamente o que a consciência manda. Exemplo disso: os agentes
da NSA, a agência americana que, como se revelou em 2013, espiona uma
enorme parte da comunicação mundial, competiam entre si, valendo troféus
virtuais, um “XKeyscore” e ranking, para ver quem conseguia encontrar
mais suspeitos.77
A digressão sobre gamificação é necessária porque essa é uma solução
vendida como sendo mágica para as mais diversas atividades – muitos
defendem mais videogames nas escolas, por exemplo78 – e que ainda não
enfrentou a devida crítica. Antes de abraçar os mecanismos do vício em
joguinhos e aplicá-los em causas mais belas, talvez seja o caso de discutir
por que ficamos viciados em coisas tão bobas e gastamos tanto tempo nisso.
Uma coisa é jogar para esvaziar a cabeça ou para entrar no “fluxo”,
desenvolver habilidades ou avançar em uma história interativa. Outra é
jogar porque você não consegue parar.
Só mais uma vida…

Pela facilidade em absorver o jogador e fazê-lo perder a noção do tempo,


qualquer bom jogo tem a chance de ser, olhando de fora, “viciante”. Mas há
uma variedade que é “projetada” para prender as pessoas. De tempos em
tempos, surge algum desses joguinhos que absorve a atenção de uma
parcela grande da população que usa tecnologias digitais, sem escolher
vítimas – de crianças a idosos. Campo Minado, Bejeweled, Hexic,
FarmVille, Candy Crush, Mafia Wars, Angry Birds, Zynga Poker. Eles têm
algumas coisas em comum: as regras são relativamente simples, há pouca
variedade e um punhado de sorte envolvida. Isso não é por acaso.
John Hopson, PhD em psicologia que trabalhou como “pesquisador de
usuários” na Microsoft, escreveu um influente artigo em 2001,79 falando da
importância de aplicar as descobertas de BF Skinner nos games. Skinner,
pai do chamado behaviorismo radical, acreditava no condicionamento
operante: ações geram reações, podemos ser treinados ou condicionados a
qualquer comportamento. Em última análise, para Skinner, o livre arbítrio é
uma fantasia. O que interessa para nós aqui é que as pesquisas dele
solucionam o “problema” (para as pessoas que fazem jogos) das pessoas
que param de jogar.
Em um experimento de 1932 conhecido como “Máquina de Ensinar”,
Skinner colocou pombos em uma caixa e uma tigela de comida vazia. Havia
uma alavanca ou botão, e os animais rapidamente, por experimentação,
“entenderam” que apertá-la fazia com que bolinhas de ração caíssem no
prato. A partir daí, Skinner foi mudando o ritmo da entrega das
recompensas: a bolinha era entregue apenas na décima apertada, e os bichos
descobriam o novo mecanismo e continuavam apertando. Em outro grupo
de ratos e pombos, a comida era entregue em intervalos aleatórios: às vezes
na décima pressionada, outras na centésima.
O que ele descobriu, e isso é relevante e replicável no mundo dos games,
é que as “recompensas em intervalos aleatórios” são mais motivadoras que
as em intervalos fixos. Se o rato está condicionado a receber sempre a
comida a cada 5 vezes que pressiona a alavanca e de repente ele para de
recebê-la, ele rapidamente para de pressionar a alavanca. Se ele está
acostumado a intervalos aleatórios, mesmo quando o estímulo some
temporariamente, ele ficará pressionando centenas de vezes antes de
desistir. A brincadeira fica melhor quando, além de deixar o intervalo
variável, a recompensa é variável também. É uma implementação ainda
mais viciante das máquinas caça-níqueis dos cassinos, o velho truque da
dopamina da expectativa.
Nós sabemos que há uma recompensa, e ela própria pode ser enorme, mas
não sabemos quando ela chegará. Nós trabalhamos com a lembrança, que
envolve dinheiro, luzes e sons, e cada vez que giramos a alavanca há uma
descarga de dopamina, apenas pela expectativa de recompensa – como no e-
mail, ou na checagem do Facebook, nem é preciso “ganhar” nada.
Jogos viciantes são totalmente baseados nas recompensas programadas
em intervalos variáveis. Como não sabemos quais peças cairão no Candy
Crush (o jogo do momento enquanto escrevia este livro), continuamos
fazendo combinações para ver doces maiores se juntarem e explodirem.
Como o evento é relativamente curto (um jogo, bem-sucedido ou não,
raramente demora mais que 8 minutos), tentamos de novo quando
falhamos. E de novo. É claro que há outros elementos que nos compelem a
jogar mais: há a pressão de superar nossos amigos (havia mais de 40
milhões de jogadores ativos em agosto de 2013); há a curiosidade pelo
próximo desafio: Candy Crush não é rigorosamente o mesmo em todas as
fases. As minúsculas variações de regras que são apresentadas fazem
parecer que precisamos melhorar as nossas habilidades, quando, na
verdade, a sorte tem uma importância tremenda. Há uma curva de
aprendizado e começamos a detectar melhor os padrões que levarão a
soluções das fases mais rapidamente – como qualquer jogo, jogamos para
ficarmos melhores. Mas o “platô de habilidade”, o momento que não
sentimos mais o aprimoramento da técnica, surge depois de poucas horas de
prática. A partir desse momento entramos na caixa de Skinner, estamos
apertando botões e ganhando doces. Literalmente.
Luciana Ruffo, psicóloga do Núcleo de Pesquisas de Psicologia em
Informática da PUC-SP, explica, para não deixar dúvidas, que o “vício” em
jogos eletrônicos funciona da mesma forma que qualquer outro: “Os jogos
têm por característica o prazer da satisfação imediata. Quando se vence uma
partida, a euforia da vitória e a ansiedade de conseguir viver aquela
satisfação de novo tomam conta da pessoa e a levam a perseguir esta
sensação de bem-estar. No universo dos vícios, químicos ou não, quanto
mais rápido atinjo o prazer e menor o seu tempo de duração, mais persigo
continuamente aquela sensação. Esse processo tem a ver com nosso sistema
cerebral de recompensas para a sobrevivência da espécie. Ele lhe dá o
prazer a fim de repetir um comportamento. O problema é que deturpamos o
caminho e então vamos atrás dessa sensação onde ela nem sempre deveria
existir”.80
Fazer um jogo todo baseado nas nossas fraquezas psicológicas é ético? E
o pior: quando há dinheiro – de verdade – envolvido no vício? Candy
Crush, por exemplo, tem um mecanismo que alguém pode dizer que é
saudável, de limitar a poucas, normalmente cinco “tentativas” (ou vidas): a
cada meia hora você ganha uma nova tentativa para passar da fase, então é
bom intervalar a jogatina, evitando maratonas comuns a outros tipos de
jogos. Mas é sempre possível pagar um dólar por um pacote com mais
chances. O jogo é gratuito, mas é justamente explorando a impaciência e a
ansiedade (subprodutos do vício) que a produtora ganha dinheiro:
movimentos extras e vidas extras, a um dólar cada, são os itens mais
vendidos dentro do jogo. Alguns jogadores, conhecidos pelos
desenvolvedores como whales (baleias) são capazes de gastar milhares de
dólares em jogos tecnicamente gratuitos,81 mordendo as iscas. As vítimas
são normalmente pessoas que têm menos traquejo com tecnologia. Segundo
a própria produtora de Candy Crush, 80% dos seus jogadores são mulheres,
e apenas 34% têm menos de 30 anos.82
É preciso começar a reconhecer jogos feitos para que percamos o nosso
tempo e dinheiro, e recusar o consumo, por mais inofensivo que ele pareça.
Sem querer soar como o chato dos orgânicos, é mais ou menos o que está
acontecendo agora com a recusa de determinados produtos alimentícios. Na
indústria de junk food, dos salgadinhos a refrigerantes, há toda uma ciência
para você apreciar coisas que atestam que “é impossível comer um só”.83 O
objetivo dos engenheiros de “alimentos” é atingir a “saciedade sensorial”,
que é o que explica por que tanta gente come besteiras em quantidade bem
maior do que comidas com sabores muito mais notáveis. “Sabores fortes e
distintos podem sobrecarregar nosso cérebro, que responde deprimindo a
nossa vontade de comer mais”, escreve Michael Moss, autor de Salt Sugar
Fat: How the Food Giants Hooked Us.
Então os maiores hits – sejam eles Coca-Cola ou Doritos – devem o seu
sucesso a fórmulas complexas que excitam nossas papilas gustativas o
suficiente para serem atraentes, mas não têm um sabor único, distinto, que
diria ao nosso cérebro para parar de comer. Talvez precisemos parar de
celebrar jogos projetados com essa mesma intenção. Muitos sites de
tecnologia criaram seções com os “joguinhos viciantes da semana”, ou os
“destruidores da produtividade”, como se tudo fosse inofensivo. Não é. É
importante ter uma visão um pouco mais crítica e ponderada em relação ao
custo social de coisas aparentemente inofensivas, como esses passatempos
coloridos.
É preciso reconhecer que 1) somos fracos e caímos rapidamente na
tentação dos joguinhos; 2) a indústria busca mecanismos cada vez mais
viciantes, de maneira pouco ética e 3) a partir de um certo ponto, a diversão
vira compulsão. Um “vício”, qualquer que seja, é efetivamente preocupante
não só por causa das coisas que você faz por ele, mas, de novo, pelas coisas
que você “deixa” de fazer.

O problema do fumante passivo Por ser um fenômeno


novo, o uso obsessivo de tecnologias conectadas
normalmente é tratado como um problema individual, e
raramente é visto como um caso de intervenção do
governo ou mesmo da família. As exceções a essa regra
apontam como é difícil dizer quando um comportamento
obsessivo em relação às tecnologias é causa ou mera
manifestação de outros problemas. Pegue como exemplo,
de novo, a Coreia do Sul: lá, há leis para desencorajar o
excesso de jogos eletrônicos, exigindo que menores de 16
anos sejam desconectados de servidores online depois das
22 horas. O Ministério da Educação do país tentava passar
em 2013 leis ainda mais restritivas, requerendo que
qualquer jogo fosse pausado depois de duas horas
seguidas.84 A medida, segundo o governo, seria uma
resposta aos casos de bullying e suicídios motivados por
desavenças online. Mas os jogos aqui são a causa do
problema ou seria a cultura extremamente competitiva e
sem margem para erro daquele país?

Seja como for, o excesso de álcool ou outros tipos de droga também pode
ser confundido como causa ou consequência de outros problemas, e nem
por isso os governos se eximem de legislar sobre ele. A questão “social” do
vício em joguinhos raramente é discutida no Ocidente. O governo alemão já
tentou estipular como fator para considerar a “censura” de um jogo o quão
viciante ele é,85 mas a discussão não avançou. O que precisaremos para
colocar isso na pauta?
É comum vermos reportagens mostrando o quanto o vício pelo cigarro
custa aos cofres públicos em forma de tratamento gratuito, ou quantas vidas
perdemos no trânsito por causa de motoristas bêbados, mas é um pouco
mais difícil quantificar o prejuízo do mau uso das novas tecnologias. E
mesmo quando conseguimos chegar a uma cifra, não levamos muito a sério
a conta. Quando o Google trocou o seu logo por uma tela jogável do
clássico Pac-Man, em 2010, em todo o mundo, as pessoas gastaram,
somadas, 4,8 milhões de horas. Os especialistas do RescueTime fizeram a
conta: a economia “perdeu” US$ 135 milhões em horas improdutivas
durante o horário comercial.86 A notícia foi dada por dezenas de sites do
Brasil de forma bem-humorada. Rimos da estatística, mas até quando
acharemos graça da quantidade de horas que perdemos com joguinhos sem
sentido, que são cuidadosamente projetados para nos viciar? Quantas horas
de Candy Crush ou de FarmVille são suficientes para configurar uma
“doença”? Por que ela não é tratada com a devida seriedade? Acho que
jogos são legais e têm seu espaço no nosso cotidiano – como outros tipos de
droga ou entretenimento –, mas creio que o problema das interações
eletrônicas “viciantes” ainda não é tratado com a devida seriedade.
Talvez seja preciso parar de individualizar esse tipo de prejuízo. Um pai
que passa tempo demais jogando online, pode dar menos atenção aos filhos;
a funcionária que passa metade do dia rindo de vídeos aleatórios no
Youtube, diminui a produtividade da empresa em que trabalha; o chefe que
assume um comportamento destrutivo com xingamentos nas redes sociais e
comentários nos sites, pode contaminar a equipe com mau humor. Ao
contrário de Las Vegas, o que acontece na internet não fica na internet.
Reforço aqui que é bastante difícil criar um tratamento sistematizado e
único para quem tem uma relação obsessiva com a tecnologia, mas isso não
torna a questão menos séria e urgente. As dicas de autodiagnóstico que
listei acima, o conhecimento sobre os mecanismos do vício e as ferramentas
que usei para mudar os meus hábitos foram bastante úteis para mim.
Mesmo que você não seja um paciente quase terminal como eu era, pode
usar essa experiência para ver os casos que inspiram cuidados à sua volta.
Seja como for, o foco tem de ser menos na censura e mais na recompensa,
nas coisas que precisamos fazer mais. O uso mais consciente de tecnologias
conectadas literalmente cria mais tempo na nossa vida para passarmos com
nós mesmos, em atividades que exigem mais aprofundamento, ou com as
pessoas próximas e queridas, o que acaba criando um círculo virtuoso.
Quando conversava sobre o assunto com as pessoas à minha volta, era
muito raro alguém se reconhecer no problema. Há alguns motivos para isso,
mas o principal é que hábitos arraigados, que não têm consequências muito
claras, acabam sendo ignorados pelo cérebro. É preciso fazer um exercício
consciente de tentar olhar de fora para o que estamos fazendo antes de
mudar qualquer coisa.
Encerro essa discussão aqui com um case contado no livro Poder do
Hábito, que ilustra bem as nossas limitações em reconhecer problemas.
Duhigg narra a história do desenvolvimento de um produto revolucionário
de limpeza, o Febreze, introduzido pela Procter & Gamble nos EUA em
1998: descoberto quase por acaso, o produto tirava odores fortes com uma
simples borrifada. Donas de casas onde moram fumantes ou onde os
animais sentam no sofá, por exemplo, iriam se beneficiar enormemente.
Apesar da confiança dos executivos, os primeiros meses do produto no
mercado foram um fracasso absoluto de vendas. Depois de exaustivas
entrevistas com grupos focais, o time de marketing da P&G percebeu que as
pessoas que moravam em ambientes malcheirosos não viam isso
exatamente como um problema. Aliás, elas não “sentiam” o problema. Isso
porque, depois de um certo tempo, o cérebro deixa de registrar os odores
familiares. Foi preciso alterar a fórmula (colocando um pouco de perfume,
mais perceptível ao olfato) e redirecionar a publicidade, vendendo o
Febreze como um “toque final” para a limpeza da casa. Em vez de focar no
problema, o marketing do produto vendeu a “recompensa” da casa não
apenas livre de fedor, mas cheirosa. Hoje, o Febreze se expandiu para toda
uma categoria de produtos e representa um faturamento de cerca de US$
240 milhões para a empresa. Segundo os depoimentos dos usuários, quem
não via antes problemas no mau cheiro, agora relatava como a vida havia
mudado com um número maior de visitas em casa, entre outras coisas.
29 Apple ad: Designed by Apple in California. Disponível em: http://www.youtube.com/watch?
feature=player_embedded&v=170fh2mvog0.

30 “O que aprendi com Jobs: tecnologia, sozinha, não é suficiente”, Gizmodo Brasil, 6 out. 2011.
Disponível em: http://gizmodo.uol.com.br/o-que-aprendi-com-jobs-tecnologia-sozinha-nao-e-
suficiente.

31 Gadget é um termo genérico que designa uma ferramenta ou aparato tecnológico, normalmente
novo. Virou uma palavra consagrada para descrever de celulares a pequenas filmadoras.

32 Mark Wilson. “In 20 Years, We’re All Going To Realize This Apple Ad Is Nuts”, Co.Design, 16
jul. 2013. Disponível em: http://www.fastcodesign.com/1673020/in–20-years-we-re-all-going-to-
realize-this-apple-ad-is-nuts.

33 Uma publicidade do Fusca dizia que a esposa do homem de negócios que lia o anúncio certamente
iria bater o carro, e o carro da Volks era melhor porque ninguém se machucaria e as peças eram mais
baratas: http://www.businessinsider.com/the-outrageously-sexist-ads-of-the-mad-men-era-that-some-
companies-wish-wed-forget-2012-3#-7.

34 Ver http://mulher.terra.com.br/vida-a-dois/pesquisa–20-dos-jovens-adultos-usam-smartphones-
durante-o-sexo,1195ed64d78df310VgnVCM20000099cceb0aRCRD.html.

35 Ver “3G: 3ª Geração de Celular no Brasil”. Relatório Teleco de Telefonia Celular no Brasil, 24 jul.
2013. Disponível em: http://www.teleco.com.br/3g_brasil.asp.

36 Gabriela Ruic, “Pesquisa mostra um Brasil dividido pela internet”. Exame.com, 20 jun. 2013.
Disponível em: http://exame.abril.com.br/tecnologia/noticias/pesquisa-mostra-um-brasil-dividido-
pela-internet.

37 “Internauta gasta em média 10 horas e 26 minutos em redes sociais”. Ibope, 19 fev. 2013.
Disponível em: http://www.ibope.com.br/pt-br/noticias/Paginas/Internauta-gasta-em-media-10-horas-
e-26-minutos-em-redes-sociais.aspx.

38 “Vendas de smartphones crescem 86% no Brasil em um ano”. Zero Hora, 14 jun. 2013.
Disponível em: http://zerohora.clicrbs.com.br/rs/economia/tecnologia/noticia/2013/06/vendas-de-
smartphones-crescem-86-no-brasil-em-um-ano-4170047.html.
39 O termo é muito bem defendido por Tom Chatfield no livro Como viver na Era Digital. Objetiva:
Rio de Janeiro, 2012. Ele diz que a frequência com que usamos esses aparelhos “antes era reservada
a amigos ou animais de estimação”.

40 Falei certa vez que ela era minha “cobaia”, mas ela não saberá o quão sério eu falava até ler este
livro. Como estudiosa do comportamento humano, espero que ela entenda.

41 Depois do lançamento do filme, Deepak foi à TV americana dizer que ele não era “viciado em
Blackberry”, mas no Twitter. Ele ficava o tempo todo respondendo mensagens, ajudando as pessoas
em todo o mundo. “O que havia de errado em ser obcecado por isso?”, ele perguntou. Seu filho riu.

42 A Associação Psiquiátrica Americana (APA) publicou os rascunhos dos DSM-5, incluindo a


discussão sobre as novas classificações de vício. Ver
http://www.dsm5.org/Newsroom/Documents/Addiction%20release%20FINAL%202.05.pdf.

43 Mariana Versolato, “Viciados em jogos preocupam pais e psicólogos”, Folha de S. Paulo, 2 set.
2012. Disponível em: http://www1.folha.uol.com.br/ciencia/1146914-viciados-em-jogos-preocupam-
pais-e-psicologos.shtml.

44 Jusith Donath é citada no livro de Larry D. Rosen, Ph.D., iDisorder: Understanding our
Obsession with Technology and Overcoming its Hold on us. Palgrave Macmillan, 2012.

45 Depoimento dado a Michael Chorost em World Wide Mind: The Coming Integration of Humanity,
Machines, and the Internet. Free Press, 2011.

46 Denise Mota, “83% dos usuários brasileiros ficam alterados se esquecem o celular em casa”.
Folha de S. Paulo, 30 out. 2012; disponível em:
http://www1.folha.uol.com.br/equilibrioesaude/1177128-83-dos-usuarios-brasileiros-ficam-alterados-
se-esquecem-o-celular-em-casa.shtml.

47 A questão é muito bem defendida em iDisorder: Understanding our Obsession with Technology
and Overcoming its Hold on us, livro lançado por Rosen em 2012 pela editora Palgrave Macmillan.
O “i” minúsculo vem de iPhone, iPad, etc., e o Disorder é comumente traduzido dentro da psiquiatria
como “transtorno”.

48 Arthur S. Reber et al. The Penguin Dictionary of Psychology. Penguin, 1995.

49 Em entrevista concedida a James Fallows, “The Art of Staying Focused in a Distracting World”.
The Atlantic, jun. 2013. Disponível em: http://www.theatlantic.com/magazine/archive/2013/06/the-
art-of-paying-attention/309312/.

50 Eliane Brum, “Os robôs não nos invejam mais”, para o site da Revista Época, 24 out. 2011.
Disponível em: http://revistaepoca.globo.com/Sociedade/noticia/2011/10/os-robos-nao-nos-invejam-
mais.html.

51 Vânia Barcellos e Leite, Viver com Humor, Biblioteca 24 horas, 2012.


52 Cheryl Powell, “Cellphone use tied to poor fitness levels, study says”, Denver Post, 23 jul. 2013.
Disponível em: http://www.denverpost.com/ci_23710246/cellphone-use-tied-poor-fitness-levels-
study-says

53 Youkyung Lee, “South Korea: 160,000 Kids Between Age 5 And 9 Are Internet-Addicted”,
Huffington Post, 28 nov. 2012. Disponível em: http://www.huffingtonpost.com/2012/11/28/south-
korea-internet-addicted_n_2202371.html.

54 Laura Beil, “In Eyes, a Clock Calibrated by Wavelengths of Light”, The New York Times, 4 jul.
2011. Disponível em: http://www.nytimes.com/2011/07/05/health/05light.html?pagewanted=all.

55 O efeito da CVS é semelhante a colocar um ventilador apontado para o seu rosto. Ver:
http://www.allaboutvision.com/cvs/faqs.htm.

56 Entrevista de Jonathan Franzen, “A tecnologia não cura a angústia”, Revista Época, ed. 737, 2 jul.
2012.

57 Rosana Hermann, “Porforofobia, você ainda vai ter isso”, R7, 16 maio 2012. Disponível em:
http://noticias.r7.com/blogs/querido-leitor/porforofobia-voce-ainda-vai-ter-isso/2012/05/16/

58 Qualquer livro sobre psicologia das cores vai dar alguma razão para sermos tão atraídos pelo
vermelho, que chama a nossa atenção. Não é à toa que o número de e-mails e mensagens não lidas é
sempre vermelho.

59 O RSS é uma espécie de protocolo que busca notícias de vários sites e as empacota de uma forma
de consumo mais rápida. Assim, não é preciso entrar em cada site para ler as notícias. O principal
programa do tipo, o Google Reader, foi aposentado pelo Google em julho de 2013, mas há outros que
realizam a mesma tarefa.

60 Recuperar uma senha perdida é relativamente fácil, mas toda vez que eu chegava ao campo de
login e via que não sabia o que digitar, lembrava da promessa.

61 Disponível para Mac e PC, custa cerca de US$ 7 por mês e entrega relatórios detalhados do que
você faz no computador. Há vários programas semelhantes. Originalmente eram destinados a
empresas, mas funciona tão bem, ou melhor, para a pessoa física.

62 “Internet blocking productivity software”. Ver http://macfreedom.com.

63 Clive Thompson, “Battle With ‘Gamer Regret’ Never Ceases”, Wired, 10 set. 2007. Disponível
em: http://www.wired.com/gaming/virtualworlds/commentary/games/2007/09/gamesfrontiers_0910?
currentPage=all

64 “Vendas de videogames crescem mais que as de smartphones no Brasil”, UOL Economia, 19 nov.
2012. Disponível em: http://noticias.bol.uol.com.br/economia/2012/11/19/vendas-de-videogames-
cresceram-mais-que-de-smartphones-no-brasil.jhtm.

65 Mariana Lajolo, “Cielo usa série de TV, Candy crush e música feita para ele para vencer em
Barcelona”, Folha de S. Paulo, 4 ago. 2013. Disponível em:
http://www1.folha.uol.com.br/esporte/2013/08/1321490-cielo-usa-serie-de-tv-candy-crush-e-musica-
feita-para-ele-para-vencer-em-barcelona.shtml.

66 Ver http://www.davidparlett.co.uk/histocs/patience.html.

67 Jane McGonigal, Reality Is Broken: Why Games Make Us Better and How They Can Change the
World. Penguin Press, 2011.

68 Luke Reilly, “5 Reasons Video Games Are Actually Good for You”, IGN.com, 9 set. 2012.
Disponível em: http://www.ign.com/articles/2012/09/10/5-reasons-videogames-are-actually-good-
for-you.

69 Jesse Fox e Jeremy N. Bailenson, “Virtual selfmodeling: The effects of vicarious reinforcement
and identification on exercise behaviors”, Media Psychology, Stanford University, v. 12, ed. 1, p. 1-
25, 2009. Disponível em: http://www.stanford.edu/~bailenso/papers/fox-mp-selfmodeling.pdf.

70 Ver “Is beer less fattening than wine?”, BBC, 8 mar. 2005. Disponível em:
http://news.bbc.co.uk/2/hi/uk_news/magazine/4329323.stm.

71 Ver http://pt.wikipedia.org/wiki/Fluxo_(psicologia).

72 Alex SoojungKim Pang, “Mario Kart and the Challenge of Teaching Children Mindfulness”,
Huffington Post, 3 jul. 2013. Disponível em: http://www.huffingtonpost.com/alex-soojungkim-pang-
phd/mario-kart-teaching-children-mindfulne_b_3072671.html.

73 Hunter Slife, “Average weekly time spent playing World of Warcraft”, Examiner.com, 25 mar.
2011. Disponível em: http://www.examiner.com/article/average-weekly-time-spent-playing-world-of-
warcraft.

74 Ver http://www.chorewars.com.

75 Ver http://q2l.org/.

76 Pedro Burgos, “No FarmVille da conservação de energia, todo mundo ganha”, Gizmodo Brasil, 24
set. 2011. Disponível em: http://gizmodo.uol.com.br/no-farmville-da-conservacao-de-energia-todo-
mundo-ganha/.

77 Laura Poitras, Marcel Rosenbach e Holger Stark (tradução para o inglês por Christopher Sultan),
“Germany Is a Both a Partner to and a Target of NSA Surveillance”, Spiegel Online, 12 ago. 2013.
Disponível em: http://www.spiegel.de/international/world/germany-is-a-both-a-partner-to-and-a-
target-of-nsa-surveillance-a-916029.html.

78 Davi de Castro, “Gamificação da pedagogia: entenda como os jogos podem auxiliar no processo
de aprendizagem”, EBC, 31 jan. 2013. Disponível em:
http://www.ebc.com.br/tecnologia/2013/01/gamificacao-da-pedagogia-como-os-jogos-podem-
auxiliar-no-processo-de-aprendizagem.
79 John Hopson, “Behavioral Game Design”, Gamasutra, 27 abr. 2001. Disponível em:
http://sd271.k12.id.us/lchs/faculty/sjacobson/careertech/files/behavioralgamedesign.pdf.

80 Luciana Ruffo, “Por que alguém se ‘vicia’?”, Núcleo de Pesquisas da Psicologia em Informática
da PUC-SP, set. 2011. Disponível em:
http://www.pucsp.br/nppi/downloads/Porque_alguem_se_vicia_setembro_2011.pdf.

81 Ryan Rigney, “These Guys’ $5K Spending Sprees Keep Your Games Free to Play”, Wired, 1º nov.
2012. Disponível em: http://www.wired.com/gamelife/2012/11/meet-the-whales/all/.

82 Ramin Shokrizade, “The Top F2P Monetization Tricks”, Gamasutra, 26 jun. 2013. Disponível
em:
http://www.gamasutra.com/blogs/RaminShokrizade/20130626/194933/The_Top_F2P_Monetization_
Tricks.php.

83 Michael Moss, “The Extraordinary Science of Addictive Junk Food”, The New York Times, 20 fev.
2013. Disponível em: http://www.nytimes.com/2013/02/24/magazine/the-extraordinary-science-of-
junk-food.html?ref=magazine&_r=1&pagewanted=all&.

84 Chi Lee, “No, Korea, Gaming Does Not Make You a Bully”, Kokatu, 15 fev. 2012. Disponível
em: http://kotaku.com/5885248/no-korea-gaming-does-not-make-you-a-bully.

85 “Thousands of Students Addicted to Video Games, Study Says”, Deutsche Welle, 16 mar. 2009.
Disponível em: http://www.dw.de/thousands-of-students-addicted-to-video-games-study-says/a-
4101062.

86 É uma conta difícil: não necessariamente as pessoas estariam fazendo algo mais produtivo, mas
não deixa de ser uma cifra interessante.
2. Virtualmente real
“A presença física não é substituível. É a lei não escrita pelos pais da ciência,
nem relembrada em palestras ou na revisão do cursinho, provavelmente porque
não pensaram que um dia iríamos desafiá-la tão descaradamente.”

Camilla Costa87

Em 1845, o americano Henry David Thoreau abandonou a pequena


cidade de Concord, nos EUA, e foi experimentar a vida à beira de um lago,
cortando lenha para construir a própria casa, plantando a própria comida e
recebendo ajuda e visitas ocasionais. O resultado do seu experimento de
tentar diminuir a dependência da sociedade é o livro Walden – a vida nos
bosques, que desde a sua publicação, em 1854, virou algo como uma bíblia
para as pessoas incomodadas com a velocidade das novas tecnologias.
Thoreau não entendia a pressa que tínhamos em obter informações de
longe, de encurtar distâncias e ficava incomodado com o avanço do que
seria a internet daquele tempo. “Estamos na maior pressa para construir um
telégrafo magnético do Maine ao Texas; mas o Maine e o Texas
possivelmente não têm nada de importante para comunicar. Como se o
principal objetivo fosse falar rápido, em vez de falar com sensatez. Temos a
maior vontade de fazer um túnel sob o Atlântico, para trazer o Velho
Mundo algumas semanas mais perto do Novo Mundo; mas quiçá a primeira
notícia que vai vazar na grande orelha de abano americana será que a
princesa Adelaide sofre de tosse comprida.”88
Ele sabia que a história das invenções humanas é uma sucessão de
tentativas de trapacear as limitações físicas do tempo e do espaço. A
medicina e todos os seus desdobramentos buscam retardar a morte, assim
como as máquinas buscam mais eficiência do trabalho, para gastarmos
menos tempo e, em última instância, eliminar as horas perdidas sem nada
para fazer. Uma outra gama de invenções, como a carruagem, o trem e o
carro, são uma expressão da nossa busca de estarmos em mais lugares, mais
rápido. O conjunto de tecnologias que chamamos de “meios de transporte”
parece ter parado de avançar significativamente; aliás, os carros de hoje não
andam muito mais rápido do que os de 30 anos atrás, os aviões comerciais
não chegam à metade da velocidade dos Concordes dos anos 1970 e há até
um movimento para usar mais a bicicleta. Poderíamos até pensar que
pisamos no freio nessa busca pela velocidade “física”.
Mas a verdade é que desde o telégrafo (inventado na primeira metade do
século 19), como bem notou Thoreau, começamos a redefinir a noção de
“distância”. Aquela invenção permitia, de maneira rudimentar, a
comunicação em tempo real89 entre pessoas de cidades diferentes. Seria
uma carta instantânea. O telégrafo, entretanto, nunca se popularizou o
suficiente para provocar a mudança desejada. Foi a partir do telefone que a
redefinição do espaço começou com mais força. Com ele, o homem comum
poderia estar em mais de um lugar ao mesmo tempo.
“Aprecie uma ópera sem precisar ir ao teatro”90, dizia uma peça
publicitária para um dos primeiros aparelhos telefônicos da Europa. A
engenhoca não era vendida necessariamente para matar as saudades ou
receber notícias, como os anúncios que vieram décadas depois prometiam,
mas, sim, para que pudéssemos quebrar a limitação física de existir em dois
lugares simultaneamente – enfermos podiam ouvir o sermão do padre no
hospital, e mecenas, as apresentações musicais das suas mansões.
Outros modos de comunicação cumpriram melhor a função de broadcast
dos primórdios do telefone. Mas o aparelho continuou sendo um grande
símbolo de “teletransporte”. Talvez você nunca tenha pensado nele dessa
forma, mas basta examinar o papel do telefone na cultura pop que vemos
toda uma simbologia: para retratar alguém muito ocupado, especialmente
em filmes de comédia, bastava colocar um telefone em cada orelha, como
que dizendo “eu estou me multiplicando para dar conta do recado”. Nos
filmes, um dos gestos mais claros de paixão era quando o telefone tocava e
a pessoa perguntava: “Você não quer atender?” O galã olhava com desdém
para o aparelho, tirava o telefone e o recolocava no gancho. Um beijo
tórrido se seguia. A mensagem: eu estou aqui, e só aqui, para você e mais
ninguém.
O telefone permitia que pessoas comuns estivessem em outro lugar se
assim desejassem, mas era preciso acertar o horário e torcer para que o
receptor estivesse na frente de um desses portais dimensionais para a
mágica funcionar. Cem anos depois, essa limitação deixou de existir com o
telefone celular: é possível ser encontrado em qualquer lugar, agora. Uma
nova definição para “longe”, que eu ouvi muitas vezes, é: “Ali não pega
nem sinal de celular”.
Paralelamente ao desenvolvimento do telefone celular, a internet abria
uma outra janela: era possível achar pessoas, coisas, ideias, lugares, a partir
de um portal um pouco mais complexo, o computador pessoal conectado.
Era a redefinição da praça pública, da biblioteca, do bar.
Enquanto o teletransporte dos filmes de ficção científica não chega,
podemos dizer que o ápice da mudança na comunicação humana aconteceu
quando essas duas tecnologias se fundiram. O celular+internet, na forma de
smartphone e conexão ubíqua com a rede (e consequentemente com tudo e
todos), está provocando um rearranjo bastante grande das noções de tempo
e espaço, o ponto em que agora nos encontramos. Nós ainda não sabemos
muito bem quais serão as implicações dessa revolução físico-temporal, mas
temos algumas noções de como sobreviver à mudança91.

O espaço Há 20 anos, a internet era uma curiosidade


científica. Em 2002, menos de 10% da população tinha
acesso à rede no Brasil, seja no trabalho, em casa ou em
lan-houses. Era algo estranho e para pouca gente, e é
interessante ver os termos que a grande imprensa usou
neste período inicial, nas reportagens sobre a rede. Elas
mostram o quanto se acreditava que da “tela do
computador para dentro” se tratava de um mundo à parte.
O adjetivo “virtual” era usado para tudo, especialmente
para os “amigos” (sempre entre aspas) com quem
interagíamos só pela interface do computador. O termo
mais usado para dizer que usávamos a internet era
“navegar”, como se fosse um mundo aberto, inexplorado,
onde era difícil ter um destino certo. O termo para o
explorador deste outro mundo, “internauta” – que
infelizmente ainda não foi totalmente abandonado –,
também mostrava o aspecto estrangeiro, ou extraterrestre,
da experiência: eram os astronautas do mouse e do teclado
no “cyberespaço”. O Second Life92, este, sim, uma espécie
de mundo paralelo, meio jogo, meio sala de chat com
bonequinhos, ganhou capas de revistas no início de 2007
justamente porque cumpria essa profecia da vida paralela e
interessava quem acompanhava a internet como
curiosidade científica.

É incrível como essa percepção mudou em tão pouco tempo. Os termos


que usamos hoje mostram que a distinção entre os dois “mundos” está
sucumbindo93. Se antes falávamos em “acessar” tal site, hoje ouve-se frases
como “eu estava lá no UOL e vi uma notícia bizarra”. As pessoas que nos
“adicionam” no Facebook são nossos “amigos”, sem o velho “virtual”, e
conseguimos classificar alguém como “gente boa” apenas pelo que ele fala
no Twitter. É claro que ainda há os mundos fantásticos dos jogos online,
mas é mais comum hoje tratarmos os espaços da internet como extensões da
nossa vida, sem distinções estanques. Onde você ”está” é onde sua atenção
se encontra. E a nossa atenção gosta de estar em vários lugares.
É interessante ver também a evolução da opinião de quem escreve sobre
internet desde antes da sua abertura para o público. Um dos autores mais
conhecidos é o escritor e professor americano Howard Rheingold. Em
1993, quando a internet não era muito mais que umas salas de chat, ele se
maravilhava com a multiculturalidade dos bate-papos online e pensava:
“que tipos de cultura emergirão quando você remover do discurso humano
todos os artefatos culturais exceto as palavras?”94 Rheingold era o que hoje
chamamos de cyberutópicos e não conseguia ver os possíveis problemas
que as tecnologias hiperconectadas causariam.
Em seu último livro Net Smart, de 2012, ele já traz uma visão bem mais
equilibrada e descreve um exercício que faz com seus alunos das
Universidades de Princeton e Stanford todo início de semestre. Rheingold
pede para todos fecharem os notebooks e desligarem o celular. E, depois,
notarem “como você não precisa se esforçar para fazer com que a sua mente
viaje de pensamento em pensamento”. Para o escritor, as noções de
“presença” e atenção estão mudando rapidamente, e precisamos retomar o
controle: “A maneira com que nos comunicamos hoje está alterando a
forma com que as pessoas prestam atenção, o que significa que nós temos
que treinar como prestar atenção agora, para que nós, e não nossos
dispositivos, controlem a forma dessa alteração no futuro”.
Estar em um lugar fisicamente e prestar atenção alhures não é novidade.
O que a internet trouxe de diferente, ao levarmos nossa mente para outros
lugares, foi a possibilidade de interagir com pessoas que também não estão
onde fisicamente parecem estar. Nossos pensamentos voam e encontramos
outros avoados com interesses afins.
Isso não é necessariamente ruim, em princípio: o programa que uso no
trabalho para discutir as pautas e reportagens com a equipe se chama
Campfire (fogueira de acampamento, em inglês), e é onde nos reunimos
muitas vezes. A nossa fogueira permite registrar tarefas, deixar recados,
trocar piadas em forma de fotos engraçadas e, o mais importante, que as
pessoas trabalhem de onde quiserem. Essa liberdade que a tecnologia nos
trouxe não pode ser menosprezada.
Há cada vez mais empresas que permitem aos empregados “estarem” no
escritório mesmo de muito longe: basta uma conexão 3G/4G que, pronto,
estou trabalhando e tomando um ótimo café em um lugar mais arborizado.
E isso faz sentido: em várias profissões e cargos, a sua presença de fato só é
exigida no trabalho em alguns poucos momentos de reunião ou troca de
ideias. Existem algumas estratégias para fazer o trabalho remoto funcionar,
mas o que importa é que a tecnologia pode aumentar substancialmente a sua
qualidade de vida, transformando o escritório em uma paisagem mais
aprazível. Em alguns casos específicos, o impacto de ser achado em
qualquer lugar revolucionou positivamente a vida profissional: autônomos
ganharam uma incrível mobilidade com o celular. Pense no encanador que
poderia perder um serviço enquanto estava atendendo um cliente longe da
sua base.
Essas tecnologias também tiveram um impacto muito grande no que
podemos chamar de espaços transitórios. No meu trabalho, muitas vezes
saía do escritório para ir a uma coletiva de imprensa longe. No meu
trabalho anterior, anos antes, quando essa situação acontecia, eu precisava
voltar para a redação apenas para escrever um texto curto e depois ir
embora. Hoje, eu posso pegar um táxi e sair do local da coletiva direto pra
casa e, no caminho, acabar o meu trabalho usando um notebook ligado pela
rede 3G. Hoje, por exemplo, prefiro ir de ônibus ou táxi para o trabalho
porque é o momento que posso me atualizar em notícias e nas demandas da
redação. Quando chego ao escritório, já estou pronto.
Enquanto ainda não aprendemos a dosar, a desligar o celular na hora certa
ou delimitar qual o momento de trabalhar e de brincar, a possibilidade de
estar sempre disponível pode despertar tendências antissociais
(ironicamente, exercidas por pessoas que saem do espaço físico e se perdem
em outras redes sociais) ou workaholics: profissionais que usam celular
com internet trabalham o equivalente a seis semanas a mais por ano, de
acordo com John Gallagher, coordenador de pesquisa da empresa americana
de serviços de mobilidade iPass95.

Netiqueta Especialmente agora que levamos a internet nos


bolsos, tentar estabelecer regras de bons costumes na web
e em relação ao uso de aparelhos conectados parece estar
na moda e já vi algumas palestras sobre o assunto, que
chamarei aqui de “netiqueta”96. Falarei de dicas – e não de
regras – sobre redes sociais no próximo capítulo, mas,
aqui, quando falo do uso de smartphones e afins, a
“netiqueta” basicamente é uma resposta às variantes da
mesma questão: quando é aceitável sair do espaço onde
estou fisicamente e gastar tempo no meu mundo (ou no
dos outros) por meio da tecnologia?

Um exemplo de que é difícil estabelecer receitas fáceis vem do americano


Louis CK – provavelmente o mais badalado comediante americano, hoje.
Ele conta que certa vez estava segurando a mão de sua filha próximo ao
colégio dela e começou a digitar no Blackberry com a outra mão,
respondendo uma mensagem importante, e viu uma senhora lançar aquele
olhar de reprovação. Para a mulher que assistia à cena – cada vez mais
comum – com um olhar de censura, aquela era só mais uma situação na
qual o pai não dava atenção total à filha, imerso nos brinquedos
tecnológicos. Mas há mais nessa história. “É por causa desse celular que eu
estou com a minha filha, ok? Era meio-dia de uma quinta-feira, eu tinha um
monte de trabalho a fazer. Mas por causa dele consegui vê-la no dia da
formatura da pré-escola, depois almoçamos e eu vi os desenhos dela. O que
você sabe para me julgar?”, esbravejou Louis.
A história foi contada em um bem-humorado comercial para a rede de TV
ABC sobre os desafios da paternidade97 e mostra como quando você tem
total controle sobre qual é a tarefa prioritária (no caso, ver a filha), a
tecnologia conectada pode ser libertadora. Muitas vezes, vale estar
parcialmente em um lugar, em standby, para aproveitar uma boa
oportunidade de estar completamente em outro – basta priorizar. Ninguém
deveria recusar uma ida ao parque ou sair com amigos simplesmente por
“estar esperando um e-mail importante do trabalho”. No último ano, à
medida que fui dosando a minha conexão, por diversas vezes eu consegui
tirar uma tarde inteira longe do escritório para ficar um tempo maior com
pessoas que me visitavam – uma grande vantagem de viver longe da sua
cidade natal, aliás. Passeávamos à tarde, ou tinha um longo almoço, e em
algum momento pedia licença para “resolver coisas”, normalmente
responder dois ou três e-mails e retornar uma ligação. Não lembro de
alguém ter se incomodado.
A minha regra é o bom-senso, ou qualquer derivação da frase “esteja
totalmente no lugar onde você escolheu estar”. Mas já que, como tudo na
vida, é impossível confiar no bom senso, aos poucos aparecem regrinhas
para que os ultraconectados vivam em sociedade, tirando liberdades para
aumentar a presença – como quando uso o irônico Freedom. O Eva, um
restaurante em Los Angeles, foi notícia em 201298 por oferecer desconto
aos clientes que deixassem o celular na recepção, enquanto um outro em
Vermont cobrava uma taxa de 3 dólares para quem usasse o aparelho no
recinto.99 Até onde menos esperamos, essas limitações começam a se
desenhar: nas reuniões do Google, das empresas mais conectadas do
mundo, apenas um computador pode estar ligado por vez. A ideia é que
todo mundo preste atenção e que o encontro dure menos tempo.
Desde os templos até as cidades brasileiras que multam quem ouve
música no celular alto demais enquanto estão no ônibus, aos poucos os
espaços públicos criam regras, e não tenha dúvida que sinais de “proibido
celular” ficarão mais comuns até acharmos o equilíbrio, se ele vier. Mas a
tecnologia – ou as empresas que a controlam – já está contra-atacando para
ficar mais “discreta”: o smartwatch, relógio de pulso da Sony que se
comunica com o celular, foi anunciado da seguinte maneira pela revista
Superinteressante: “Sabe aqueles momentos em que você fica louco para
pegar o celular, mas não pode – como durante uma aula chata ou no meio
de uma reunião?”100. Será que vai dar certo? Professores são bons em notar
quando um aluno não está olhando para a lousa, e ele pode desconfiar que o
rapaz checando o relógio a cada 20 segundos está lendo atualizações dos
amigos no Facebook. O aparelho em questão acabou não decolando, mas o
conceito de um relógio que faça a ponte para notificações do celular de
maneira mais simplificada está vivíssimo, e vários modelos devem aparecer
em 2014, puxados por um iWatch da Apple101.
É possível, então, ser mais discreto: em 2012, foi apresentado ao público
o Google Glass, que nada mais é que a tentativa de colocar uma câmera e
uma pequena telinha de smartphone sobre o olho, de maneira “discreta”, um
dos primeiros exemplos da tal “computação vestível”. A intenção dos
engenheiros do Google era fazer com que você continuasse conectado, mas
não desviasse os olhos da realidade do momento. Nos vídeos de
apresentação do protótipo, o Google Glass aparecia como a salvação para
aqueles momentos cada vez mais comuns em que, no meio de uma conversa
de bar, uma pessoa baixa a cabeça para checar uma informação (no Google,
obviamente) antes de voltar para a conversa. Com comandos de voz e uma
tela na frente do olho, você continuaria mais ou menos “presente” para os
seus amigos. Ou pelo menos é assim que Sergey Brin, cofundador da
gigante de buscas e publicidade e pai do gadget, o descreve. É uma
proposição que particularmente acho bastante problemática, mas como ela
ainda não havia chegado ao grande público quando escrevi o texto, deixo
para discuti-la mais adiante, quando trato de futurologia.
No fim, não importa se o meio que você usa para driblar a limitação
espacial seja um telefone, um computador ou um relógio. A regra de ouro
da “netiqueta”, no caso de não haver bom senso, é tentar imaginar a mesma
situação com análogos analógicos. Ou, como diz o autor americano Will
Schwable, aplique-se a regra das palavras cruzadas: “no ambiente que você
se encontra é ok puxar uma revista de quebra-cabeças e fazer algumas
páginas? Se sim, é ok usar um smartphone.102” Quando estava sentado na
sala de espera do dentista, era normal até alguns anos atrás colocar a agenda
em dia, ler uma revista, ou ver os canhotos dos cheques e fazer contas. Mas
imagina quão bizarro é fazer isso no meio de uma reunião? Imagine então,
quando está em aula, conversar às gargalhadas com um colega, apontando
para um vídeo passando na TV? É isso que fazemos muitas vezes, apenas
com um dispositivo mais discreto. Não estamos lá.
É fácil, novamente, culpar exclusivamente a tecnologia pelo triste hábito
de fugir do lugar onde estamos e das pessoas que encontramos. Mas há
outras teorias concorrentes. De acordo com o educador e escritor americano
Lowell Monke, a preferência pelos smartphones é o auge de um processo
que vem acontecendo há algum tempo, de contatos cada vez mais
superficiais. Lembra quando você conhecia o vizinho, o porteiro, o padeiro
e o Zé da banca? Eu, com 33 anos, mal consigo. Hoje, quando vou ao banco
pagar uma conta, ao posto de gasolina ou ao supermercado, as pessoas que
ajudam, funcionam melhor quando se comportam exatamente como
máquinas. “Em uma sociedade na qual os adultos tratam tão comumente
uns aos outros mecanicamente, talvez não devêssemos nos supreender tanto
quando a nossa juventude está mais atraída por máquinas”, afirma Monke.
E quando passamos por aulas ou palestras conversando com outras pessoas
por meio do chat, o problema é da tecnologia que possibilita isso ou do
modelo de aula, “cuspe e giz”, que não mudou há séculos?
A juventude não está mais atraída por “máquinas”, mas por interações
mediadas por elas. Em um blog brasileiro sobre smartphones popular,
Ticiano Sampaio classificou como “chatos” e intelectuais solitários os que
reclamam dos celulares que dominam a mesa de bar: “Aqui vemos outro
grande benefício da tecnologia e outra maravilha da internet móvel. Em vez
de ficar analisando a estampa da toalha ou o rótulo da cerveja, você pode
simplesmente lançar mão do seu smartphone, dar uma olhada no Pulse
News e achar algum tema interessante que acabe com a monotonia por ali.
Caso aquele ambiente seja coisa sem salvação, você pode abrir o
Foursquare e ver se um pessoal mais interessante não fez check-in no bar ao
lado. Depois basta usar algum aplicativo que inicie uma chamada falsa e
sair de fininho falando que há uma emergência.”103
Todos os comentários no blog de Ticiano concordavam com a ideia dele
que, bem, soa um bocado com a “porforofobia” para mim. Admito que já
usei mais de uma vez, em um compromisso mais ou menos chato, a
desculpa de estar sendo chamado por outros lugares. Esperamos um bip,
uma notificação, e “Com licença, tenho que atender isso aqui”. Um dos
primeiros aplicativos desenvolvidos pelo Instituto Nokia de Tecnologia no
Brasil, aliás, foi o Desguiator, que prometia, justamente, simular que
alguém estava te chamando em outro lugar para “fugir de situações
desagradáveis e momentos chatos.”104
A tecnologia cada vez mais nos dá ferramentas para achar que o que está
acontecendo em outro lugar é mais interessante do que está à nossa frente.
E, sim, isso pode ser verdade. Mas quando engatamos em um ciclo de ficar
trocando de lugar como quem troca de canais com o controle remoto até
achar o programa menos ruim na TV, muitas vezes perdemos de vista o que
está na nossa cara. E se pode ser interessante em uma noite, quando
escapamos de uma conversa chata, no longo prazo isso pode ter
consequências bem ruins, como o sentimento de rejeição da companhia
rejeitada.
Como escrevi sobre o “vício”, precisamos saber a hora de não sair do
lugar. O cenário pode parecer apocalíptico hoje, mas se você for otimista,
poderá ver alguns indícios de que comportamentos tolerados hoje serão
ridicularizados em alguns anos, como Mark Wilson sugeriu sobre o
comercial da Apple. No início de 2012, começou-se a falar nas redes sociais
sobre o phone stacking, literalmente empilhamento de telefones. A ideia é
deixar todos os telefones no centro da mesa (normalmente em um bar) e o
primeiro que se mostrar fraco e olhar alguma notificação, paga uma prenda
– um chopp ou toda a conta, para os mais radicais. Quando surgiu, parecia
um jogo de bar interessante, que não dava (necessariamente) ressaca.
Passado mais de um ano, vi que o phone stacking acabou sendo mais
comentado nas redes sociais do que efetivamente praticado. Mas a
discussão gerada mostrou que há muita gente querendo mesas com
telefones virados para baixo e pessoas olhando umas na cara das outras.

Estar no lugar A escritora americana Susan Maushart fez


um experimento de seis meses em que limitou
pesadamente a conexão na sua casa. Ela desligou desde os
computadores à TV, forçando os habitantes da casa (ela e
três adolescentes, duas meninas e um menino) a se
reeducarem a viver, ao menos dentro de casa, na era pré-
internet. Ela conta os resultados no livro O Inverno da
Nossa Desconexão, que soa por vezes como um Walden
atualizado. Uma das primeiras mudanças observadas foi a
qualidade e o tempo gasto nas refeições. Antes, o ato de
comer era visto pela molecada como um pit stop para ter
combustível antes de voltar à sessão de videogame ou ao
Facebook. De repente, sem a perspectiva do mundo
conectado no quarto, Susan e os filhos se acostumaram a
passar mais tempo juntos, e as refeições ajudaram a
reaproximá-los. “Ficávamos um tempão, sem nenhum
motivo, à mesa de jantar. Invadimos os espaços uns dos
outros. Enquanto antes correríamos cada um para o seu
canto, agora encontrávamos desculpas para ficarmos
juntos e continuarmos assim. Como família, nossa
conversa ficou mais interessante e nossas discussões, mais
desafiadoras, por um simples motivo: porque tinham que
ficar.”105

Nem todo mundo pode se dar ao luxo de fazer uma experiência de


desintoxicação/desconexão tão radical, mas há uma infinidade de situações
em que ao menos um pouco desse ritual é aplicável, mesmo que forçado
justamente por dar a oportunidade de fazer a pessoa repensar a necessidade
de estar em todos os lugares, eternamente disponível. Além do ritual de
deixar a mente viajar na aula inaugural, Howard Rheingold adotou outra
regra nas suas aulas: apenas cinco computadores podem ficar ligados ao
mesmo tempo durante a classe. Isso fez com que os alunos ficassem mais
conscientes do tipo de uso, e se ativessem ao essencial para dar espaço aos
outros e voltar a prestar atenção na aula. Sim, porque é muito raro estar com
os amigos na rede social e na aula ao mesmo tempo. Eu peguei o método
emprestado e nas minhas palestras sobre o assunto peço para as pessoas se
desligarem do resto do mundo: não há problema em anotar coisas no
computador, desde que ele não esteja ligado na internet: somos muito
menos multitarefa do que imaginamos, como veremos adiante.
O meu ponto é que é interessante fugir do lugar, maximizar o tempo e
matar o tédio quando passamos por lugares conhecidos, transitórios e
utilitários: nas salas de espera, filas, ônibus e, sim, no banheiro.106 É claro
que pode haver um grande gênio no ônibus e eu estaria me privando de
conhecer histórias maravilhosas de taxistas se ficar no celular, mas a
verdade é que há uma série de situações em que de outra forma e em outro
tempo você apenas olharia para cima ou bateria o pé impacientemente por
não ter chegado ainda ao destino. É difícil dizer que os smartphones
“pioram” as coisas nesse sentido, mas de todo modo é sempre importante
checar em volta o que estamos perdendo, os contatos que estamos deixando
de fazer, as conversas das quais ficamos de fora, quando decidimos entrar
no portal dimensional.
A conexão ininterrupta com lugares e pessoas conhecidas pode ser
empobrecedora quando efetivamente viajamos, visitamos outros lugares.
Nessas situações, sair do lugar físico é privar-se de experiências
importantes, que enriquecem quem somos – pegar um táxi em outra cidade
é uma experiência antropológica, e se ficarmos no celular temos uma
chance maior de perdermos coisas importantes. Pegue, por exemplo, a
vivência de morar fora do país. O que é “experienciar uma nova cultura”
quando você leva seus amigos no bolso, conectado o tempo todo nas redes
sociais, em chats e videochamadas? A experiência pode virar apenas um
novo cenário para abastecer as fotos do perfil, em casos extremos – e cada
vez mais comuns. O aprendizado de línguas, por exemplo, fica dificultado
quando abdicamos de mudar de espaço efetivamente.
A professora Sherry Turkle, que estuda os efeitos da nossa conexão com
as máquinas há quase 30 anos, relatou uma conversa que teve com um
professor de línguas, preocupado com o fato de que seu programa de
mandar as pessoas para a Espanha estava dando menos resultado hoje. Para
aprender o castelhano, é preciso ser forçado a pensar naquela língua, estar
imerso nas palavras e no ambiente, o que é mais difícil hoje, especialmente
para os mais jovens. Sherry percebeu isso quando viu como a viagem da
filha adolescente a Paris não trouxe o mesmo efeito enriquecedor que ela
imaginava, apesar do que sugeriam todas as conversas deslumbradas com
seus amigos no Facebook. “Minha Paris veio com a emoção, a expectativa e
a insegurança da desconexão de tudo que eu conhecia. A Paris da minha
filha não incluiu essa noção de estar fora do lugar.”107
Viagens românticas, de intercâmbio, uma semana com amigos ou um
retiro têm um efeito mais importante quando nos desconectamos mais e
deixamos os estímulos do ambiente invadirem nossos sentidos, criando
experiências mais fortes e memórias mais duradouras. A adolescente que
vai à praia, fica embaixo do guarda-sol e passa o tempo todo conversando
com as amigas no Facebook apenas desperdiçou filtro solar e um espaço na
sombra. Na prática, para uma parte grande do seu cérebro, ela não saiu da
frente do computador de casa. William Powers, autor do excepcional livro
O Blackberry de Hamlet, define a situação: “Quer seja andando em uma rua
de uma cidade grande ou na floresta próxima a uma cidadezinha, se você
está levando um smartphone com você, a multidão global vai junto. Uma
caminhada pode ser ainda uma experiência bastante prazerosa, mas é
qualitativamente uma experiência diferente, simplesmente porque é mais
ocupada. O ar está cheio de gente”.108

Estar em todos os lugares Um dos aplicativos mais


baixados em todos os celulares é o WhatsApp,109 que
lidera, no momento que escrevo o livro, a lista de mais
vendidos tanto para o iPhone quanto para aparelhos com
Android. Ele funciona basicamente como um substituto
para o centro de mensagens do aparelho, usando a rede de
dados para enviar os chamados torpedos, em vez do
serviço da operadora. Ele é incrivelmente popular (os seus
usuários enviam quase 30 bilhões de mensagens por dia110
por três motivos: o primeiro é que nenhuma mensagem é
cobrada, e sua assinatura custa meros 2 reais por ano,
fazendo-o parecer mais “econômico”; o segundo é sobre a
natureza da mensagem: muita gente acha que telefonar é
“muito íntimo”, e prefere mandar um texto para conversas
rápidas; por último há um recibo de leitura, que permite à
pessoa saber se seu recado foi dado. Há a possibilidade de
organizar grupos e mandar fotos também, mas isso não é
exclusivo. Parece ótimo no papel, mas, nas minhas
palestras, normalmente dadas para usuários ávidos do
programinha, o primeiro conselho prático para retomar o
controle sobre a tecnologia é eliminar o WhatsApp da
vida. As pessoas se espantam no início, mas eu já recebi
alguns e-mails agradecendo pelo conselho depois. O
WhatsApp é um dos casos clássicos de como o meio altera
de maneira importante a mensagem. Ou as milhares de
mensagens.

À primeira vista, não há nada tão revolucionário nele. Pessoas de outros


países já tinham o hábito de mandar centenas, ou milhares de mensagens
por mês, a custo quase zero pelo serviço, mas parece que aqui os custos
arbitrários de uma mensagem com poucos caracteres, que é negligível para
a operadora, pode ter atrasado a adoção tão maciça dos torpedos. O
WhatsApp é uma evolução natural dos aplicativos de chat em computador
aos quais muitos de nós estamos acostumados, como o Google Talk, Live
Messenger (outrora conhecido como MSN), o próprio Skype e o pai de
todos eles, o ICQ. É possível usar esses programas nos celulares também,
mas além de eles gastarem muita bateria, é preciso ter acrescentado
informações de contato dos outros usuários antes. O WhatsAspp, por outro
lado, configura tudo automaticamente, pegando os telefones da sua lista de
contatos e fazendo com que todas as pessoas estejam acessíveis a qualquer
momento, “de graça”.
Mas qual seria o problema de algo assim? Os programas de chat
anteriores precisavam que a pessoa estivesse na frente do computador, tal
qual o telefone de linha, tempos atrás. Eles usam símbolos como “ocupado”
ou “ausente” para mostrar que, mesmo se estiver lá, a pessoa não quer ser
perturbada. O WhatsApp tira essa barreira, e deixa todo mundo disponível,
interrompível. E com o recibo de leitura (funcionalidade copiada
posteriormente), há a notificação para o remetente que o destinatário já leu,
e consequentemente, cria uma pressão para responder logo. Matt Buchanan,
no Buzzfeed, definiu corretamente que o simples recibo transforma um
meio “postal” em um meio “conversacional”. “Em outras palavras, quando
um remetente sabe que a sua mensagem foi lida, há uma pressão imediata
sobre o destinatário para responder – de outra forma é como um silêncio
embaraçoso em qualquer outra conversa. Por que você não respondeu?”111
Entrar nesse sistema é uma escolha pessoal, é claro, mas diz muito sobre
a nossa ânsia de querer estar junto e não perder nada, mesmo que seja para
reafirmar a nossa importância. O escritor português João Pereira Coutinho,
que diz checar o e-mail apenas logo de manhã e antes de dormir “por uma
questão de higiene mental”, vê isso como um sintoma da nossa “iDoença”:
“A nossa constante disponibilidade para os outros é apenas uma
manifestação mais profunda do nosso insuportável narcisismo. E o
narcisismo, como sempre, nasce de uma insegurança que procuramos
preencher com o culto doentio do ego. Pensamos que somos tão
imprescindíveis que temos de estar presentes 24 horas por dia na vida
alheia. E vice-versa: pensamos que somos tão importantes que os outros
têm de estar permanentemente disponíveis para nós”.112
Há um paradoxo aí: queremos nos dar valor e ao mesmo tempo só
começamos a nos comunicar o tempo todo quando apareceu uma
ferramenta gratuita. “Quando todo mundo está eternamente disponível,
todas as formas de contato humano começam a parecer menos especiais e
significativas. Pouco a pouco, a própria companhia vira uma commodity,
barata, facilmente tida como garantida”, alerta William Powers. Quando
você deixa de entrar em contato com uma pessoa para economizar 3
centavos, é de se pensar: será que sua mensagem ou o seu pedido de
atenção vale tudo isso?
Seduzidos pela ideia de falar de modo ilimitado gratuitamente, os
usuários compulsivos por mensagens não pensam muito que o meio “texto
escrito rapidamente em um celular” está longe de ser ideal para uma
enorme parte das nossas conversas. É incrível como, podendo usar sem
controle, as pessoas abusam da ferramenta. O SMS e o WhatsApp são mais
efetivos para iniciar conversas, ou mesmo pequenos flertes (“está livre hoje
de noite?”, “você vai à faculdade amanhã?”) e para confirmações e avisos
(“me atrasei, estou chegando em 5 minutos” é uma mensagem pré-escrita
de alguns celulares). Penso que o uso ideal de mensagens pelo celular
envolva conversas que terminem depois de meia dúzia de respostas, não
mais. Quando ela se alonga, as ineficiências do meio começam a aparecer.
Certo dia, uma amiga que se hospedou na nossa casa e não parava de
olhar para a tela do seu Nokia, ficou longos minutos no WhatsApp com
outra amiga. Esta estava longe do computador e pediu a Bárbara que
entrasse no site de uma companhia aérea para ver uma boa passagem e
comprasse para ela. Seguiu-se uma frenética troca de mensagens:
Tem amanhã, na Gol, por R$ 259.
Que horas?
19h. E às 11h30, só que é R$ 300.
Muito caro. Tem na TAM no domingo?
Deixa eu ver.
Se não tiver, será que ônibus vai ter?
Que horas você precisa chegar no trabalho na segunda?

E por aí vai. Eu estava do lado, ajudando a procurar os preços (ela não


podia digitar sem parar e ver o site) quando me cansei e pedi pra ela usar o
telefone para falar. Era óbvio que em uma ligação todo o processo duraria
bem menos tempo. Foi a partir daí que comecei a observar quão errado
muitas pessoas usavam as mensagens de texto instantâneas e como o fim
das barreiras limitantes (estar num espaço fixo, como no caso dos chats do
computador, ou o preço do SMS) fez com que as pessoas abusassem e
trocassem centavos economizados por horas de missivas mal interpretadas e
uso não otimizado do tempo. Se temos algo para “combinar”, uma conversa
que envolva mais que passar um recado e perguntas com mais de duas
respostas possíveis, a mensagem não é, nem de perto, o meio correto. Uma
colega jornalista lembrou do “dia em que parou de usar o WhatsApp”. Ela
precisava decidir onde ia jantar com os amigos. Havia tantas opções e cada
sugestão trazia um novo “porém” (Não gosto de japonês! Fui lá na semana
passada!) que conversar por telefone levou a uma resolução muito mais
rápida. É claro que o benefício de uma conversa em grupo – onde o
WhatsApp de fato tem algumas vantagens – não pode ser totalmente
desconsiderado. Mas, como em toda tecnologia, é preciso ter um uso mais
crítico. Ela está “realmente” economizando tempo e aproximando você das
coisas que gosta?
Se você não usar um serviço como esses, pode achar a questão que
levanto exagerada. Mas há, novamente, o problema do fumante passivo:
mesmo que você não use o celular assim, pode acabar sendo atingido por
tabela. O problema parece ser mais observado nos mais jovens, que – até
por uma questão econômica – se utilizam mais das mensagens pelo celular,
especialmente o WhatsApp. Ao usarem excessivamente as mensagens para
comunicações que outrora eram feitas pessoalmente ou por telefone,
perdemos o treinamento da troca de ideias “ao vivo”. O WhatsApp e as
conversas por chat parecem ser “em tempo real”, mas há sempre um
pequeno intervalo em que é possível (e de certa forma desejável) que
pensemos sobre o que vamos escrever.
Há um efeito colateral claro nisso: as conversas ao telefone indiretamente
nos ajudam a treinar reações e raciocínio rápido na hora de conversar com
alguém, a ser assertivo, a verbalizar uma ideia de fácil entendimento. Nem
sempre a comunicação “simultânea” é a mais indicada, como veremos, mas
não podemos prescindir de usá-la. Há uma geração chegando ao mercado
de trabalho agora e que não teve este treinamento, de certo modo. E é cada
vez mais comum ver jovens não preparados para lidar com chefes ou
professores, ou pelo menos é uma reclamação que ouço demais de chefes
mais velhos, atribuída à tal “Geração Z”. Eu mesmo já trabalhei com
estagiários de menos de 20 anos que basicamente não conseguiam
responder imediatamente em uma conversa cara a cara e tentavam consertar
com um e-mail, dando prosseguimento ao debate. É difícil precisar uma
relação de causa e consequência aqui e corro o risco de soar como um velho
saudosista de um tempo que não vivi, mas me parece que saber falar é uma
habilidade importante, que pode estar sendo deixada em segundo plano em
prol de mecanismos teoricamente mais eficientes.
Videoconferência O mais interessante do momento em
que vivemos é que ao mesmo tempo que trocamos bilhões
de mensagens curtas, e colocamos as ligações em espera,
há um interesse renovado, ainda que menos presente do
que imaginavam os filmes de ficção científica de décadas
atrás, pela videochamada. Os nossos encontros ganham
mais relevância quando temos a sensação de
exclusividade: um jantar a dois ou uma conversa particular
na sala do chefe são maneiras de sinalizar a importância
do interlocutor. Na comunicação mediada pela tecnologia,
acontece o mesmo: sabemos que uma conversa em um
programa de chat é só mais uma janelinha aberta no
computador e um e-mail com várias pessoas copiadas
pode parecer apenas uma bronca dada em voz alta no
escritório, que ouvimos sem querer. Nós buscamos uma
forma de aperfeiçoar o encontro exclusivo por meio da
tecnologia, de trazer a pessoa, cada vez mais realista, para
cada vez mais perto. Ainda temos um longo caminho até
chegarmos ao teletransporte ou ao holograma de massa,113
mas por enquanto o mais próximo que temos disso é a
videochamada.

Com apenas uma câmera para o computador ou, cada vez mais, o
smartphone ou tablet, basta se conectar pelo Skype, Facetime ou
Hangouts114 que temos uma conexão direta, normalmente particular e cheia
de detalhes. A tecnologia já existe há muitos anos e é usada em grandes
empresas há mais tempo, mas só muito recentemente ficou acessível e
satisfatória para todos nós, mortais, com as limitações técnicas sendo
derrubadas: as câmeras permitem ver a outra pessoa em alta definição e o
menor custo da banda larga evita que as imagens fiquem paradas e as vozes
entrecortadas. Mas talvez o sinal de que a tecnologia veio para ficar foi o
anúncio, em 2011, que a Microsoft comprou o Skype, que tem 80 milhões
de pessoas usando o seu serviço com vídeo, por US$ 8 bilhões.115
As vantagens de usar uma vídeochamada são claras: mães preferem
porque podem ver se as crias estão com a cara boa, bem de saúde,
namorados para mostrar intimidades, às vezes bem literalmente, pessoas de
negócios para apresentar documentos ou objetos ao mesmo tempo. Quanto
mais entendermos a natureza distinta da videochamada para além de uma
ligação telefônica com voz, maior serão seus benefícios.
Em uma viagem a Shenzen, na China, encontrei um executivo americano
que me contou como ele “tomava café” com a esposa, do outro lado do
mundo, todos os dias. O café da manhã dele se confundia com o jantar da
amada, e eles conversavam amenidades como se estivessem à mesa. “E se
não há nada para falar?”, perguntei. Não se diz. Não é uma ligação de
“relatórios”, como a que várias mães superprotetoras submetem às filhas
que estão longe. No caso do americano, às vezes cada um lia o jornal,
comentava as notícias quando achava algo interessante. De certa forma, não
era uma chamada de telefone acrescida de vídeo. Os “encontros” de uma
hora serviam para que a pessoa “estivesse lá” e se sentisse querida; a
ausência, notada. O americano, um cinquentão, não considerava aquilo
como um substituto para o encontro real, mas um complemento. E ao criar
um certo ritual, ele valorizava a companhia.
Um dos problemas da videoconferência, com as atuais tecnologias
disponíveis, é o fato de a câmera sempre ficar um pouco acima do olhar.
Não há a ilusão de que estamos “olhando no olho” da pessoa enquanto
falamos simultaneamente com ela. Esse detalhe é tão importante para passar
confiança que políticos e apresentadores de TV usam um teleprompter para
eliminar a inconveniência e manter a ilusão de encarar o interlocutor. Eu
recomendo usar essa “falha” como vantagem. Experimente usar a
videoconferência de uma forma mais “olhe pelos meus olhos”, em vez de
“olhe nos meus olhos”. Eu já executei chamadas de suporte técnico com
parentes usando o Skype e a câmera do celular. Em vez de passar horas ao
telefone pedindo para a pessoa descrever mensagens de erro ou
configurações, falo “aponta a câmera para os fios atrás da TV que eu te digo
o que está acontecendo”. Funciona muito melhor116. Quando converso com
minha irmã para ter notícias do meu sobrinho, usamos o Facetime e, em vez
de apontar para a cara dela, ela usa a câmera traseira do iPad, mostrando o
menino andando pela casa. Ela me vê e eu vejo meu sobrinho crescendo e
aprontando, observo como ele já corre, fala e o interesse que ele tem por
celulares de brinquedo. Eu e minha mãe chamamos essas ligações de Big
Brother Sol (Sol é o seu iluminado nome). Da mesma forma, quando estou
em uma viagem a trabalho, mostro a vista do apartamento em que estou
para minha namorada. É uma maneira mais elaborada de dizer “queria que
você estivesse aqui”.
O importante, penso, é usar a videoconferência com parcimônia, fazer
com que o encontro mediado por câmeras não vire obrigação e que tenha
algo especial. A obrigação de aparecer na tela é tão incômoda para algumas
pessoas que, atenta às reclamações, a Apple incluiu o “Facetime Audio”,
em sua grande atualização do sistema no fim de 2013: a melhoria
apresentada para a videochamada seria a possibilidade de colocar só o
áudio. Faz sentido. Eu conheço mais de um caso em que casais distantes
mantiveram “encontros” pelo Skype quase religiosamente, mas o artifício
mais atrapalhou que ajudou a relação. A explicação do fenômeno foi bem
argumentada pelo escritor americano Mickey Rapkin, que em um artigo
para a revista GQ disse quão frustrante era tentar conversar com seu
namorado todos os dias pelo Skype. “Talvez os deuses da internet
estivessem tentando nos alertar. Porque o que esta tecnologia realmente
oferece é uma intimidade falsa: é a percepção de intimidade com a ressaca
adicional que vem com o sentimento de acordar em uma cama queen-size
ao lado de um laptop. Ver o outro toda noite – mas não ser capaz de tocá-lo
– é a própria forma de punição.”

O espaço sagrado Nunca tivemos tantas oportunidades e


ferramentas para estar em contato com todo o mundo,
multiplicar a nossa presença em vários espaços e simular
um contato mais direto com as pessoas queridas. Ao
mesmo tempo, parece faltar ar e espaço, físico até, onde
possamos ficar efetivamente sozinhos.
Durante esses dois anos de pesquisas, conversei com muita gente
extremamente conectada, de blogueiros famosos a empreendedores do Vale
do Silício. Inevitavelmente, essas pessoas admitiam que estavam em um
ritmo “louco demais” e, quando lhes perguntava quando e onde elas tinham
as grandes ideias no meio de tanta coisa acontecendo, ouvia a mesma
resposta seguidas vezes: “no banho”. Não apenas os momentos “eureca”,
mas soluções para problemas no trabalho, questões de relacionamento
conjugal ou mesmo o momento em que alguém quis mudar de cidade: as
questões que matutamos aparecem entre o xampu e o condicionador. O
conforto do chuveiro parecia ter algum poder mágico e, pesquisando online,
vi que isso é aparentemente bem comum, a ponto de uma empresa chamada
“Aqua Notes” criar com algum sucesso um bloco de notas à prova d’água
para que “as grandes ideias não se esvaiam pelo ralo”.
Busquei alguma explicação científica para o fenômeno e de fato ela
existe117: há o barulho constante do chuveiro, que de certa forma anula os
sons externos, há a temperatura relaxante, a própria auto-massagem e o fato
de que o banho, normalmente matinal, é em si um ritual que substitui para
muitos a meditação. Mas o elemento mais importante – e óbvio – é que o
banho é um momento em que estamos normalmente sozinhos, sem
interrupção de qualquer pessoa e sem telas em volta. Muito se fala em como
a tecnologia isola as pessoas umas das outras, mas pouca atenção se dá ao
fato de, ao usarmos “dispositivos de interrupção constante”, escolhermos
dar menos tempo para nós mesmos.
Ao pularmos de uma tarefa para outra, ao excluirmos o tédio, ao estarmos
sempre em algum outro lugar, junto da multidão que nos acompanha,
eliminamos o tempo para ficarmos com os nossos próprios pensamentos,
em tentar criar sentido para o que está na nossa cabeça e deixar as grandes
ideias fluírem, com ou sem ajuda da água quente. Procure descobrir qual é o
gatilho para o seu “tempo de qualidade” e dê a devida importância, trate
como algo sagrado. Para mim, além do banho, sempre tive outros dois
momentos ritualísticos de reflexão mais ou menos desconectada que me
ajudaram, por exemplo, a ter os insights necessários para formular este
livro. Enquanto não desenvolvo o hábito de meditar – uma eterna resolução
de ano-novo que nunca se concretiza –, as corridas na esteira e, acredite,
longas viagens de avião me ajudam neste momento.
Nos últimos anos, por causa do trabalho, eu viajei bastante e usei
imensamente o tempo a bordo do avião. Como foram muitos roteiros
internacionais, pude pensar longamente, naqueles intermináveis estados de
consciência em que queremos dormir mas não conseguimos, por causa da
cadeira desconfortável ou porque nosso relógio biológico diz que não.
Mesmo com os gadgets ligados, podia ler profundamente, jogar e me
distrair no iPad, ouvir músicas apenas em modo monotarefa, prestando
atenção nas canções, e escrever bastante.
Pensamentos profundos e decisões importantes vieram também enquanto
corria na esteira. Eu honestamente prefiro correr ao ar livre, mas na esteira,
talvez por ficar no mesmo lugar, com a mesma paisagem e basicamente no
mesmo ritmo, entro em uma espécie de transe e minha mente vai longe.
Correndo também estou conectado aos meus aparelhos de sempre, mas de
outra forma: apenas ouvindo música e contabilizando a distância percorrida
e as calorias gastas.
O banho, as viagens e a corrida são os meus três momentos de solitude.
Cada pessoa tem momentos parecidos, ainda que em rituais diferentes. É
importante que eles sejam preservados. Se depender da indústria da
tecnologia, haverá cada vez menos desses lugares e situações em que você
fica alheio à conexão. Os meus dois rituais, por exemplo, estão
“ameaçados”.
Uma tendência no extremamente competitivo mercado das companhias
aéreas é oferecer como diferencial a conexão wi-fi para os passageiros dos
seus voos. Por sorte, eu já tinha me habituado ao momento de
descompressão internética e o preço ainda era alto demais para eu sequer
pensar na hipótese. E, como diz William Powers, em O Blackberry de
Hamlet, “se houver uma taxa pelo serviço, economize seu dinheiro. Você
terá uma atração bem mais valiosa – distância da sua própria
hiperconectividade – de graça”. Mas não se engane: a tentação será cada
vez maior.
E não pense que o ritual de correr será algo imune à tecnologia só porque
você não pode ver a tela do seu smartphone. Pouco antes do Smart Watch,
da Sony, a Motorola lançou o Motoactv, que, além de monitorar os
exercícios, também conversava com o telefone. Na coletiva de imprensa
para o lançamento do produto à qual eu fui, um vídeo mostrava um desses
executivos bem apessoados correndo próximo a um lago, ouvindo uma
música quando era interrompido por uma mensagem de uma nova postagem
no Facebook. Depois, ele parava, olhava para a telinha e via que tinha uma
mensagem sobre um compromisso no escritório, que poderia ser lida para
ele (para que a corrida não fosse interrompida). Como em todo comercial,
ele parecia feliz por “nunca se desconectar”. Eu olhava e me perguntava
como isso poderia ser uma “vantagem”.
Até o banho pode deixar de virar um momento sagrado de espaço
inviolável. No Mobile World Congress 2012, o grande evento sobre
dispositivos móveis que acontece todo ano em Barcelona, a japonesa
Panasonic apresentou um smartphone à prova d’água. No estande da
fabricante, a simpática atendente demonstrava para quem quisesse ver como
o aparelho, dentro de um aquário, recebia chamadas. No cada vez mais
competitivo mercado de celulares, é o que a japonesa tinha a oferecer de
diferente. Seria de fato uma vantagem? No dia seguinte ao lançamento, um
colunista do jornal catalão La Vanguardia escreveu um artigo revoltado,
prevendo como as suas idas à praia seriam arruinadas.
Eu não dirijo todo dia, mas reconheço que para muitos o carro pode ser
um bom espaço isolado para pensar na vida, já que andamos normalmente
por caminhos conhecidos e lentamente, por causa do trânsito cada vez pior.
O isolamento que isso provocaria também está em xeque, se depender de
recentes avanços das redes sociais e da indústria automobilística. O
aplicativo para smartphones Waze, que pegou no Brasil por ser uma
ferramenta que bêbados poderiam consultar para não serem flagrados em
blitzen, dá pontos e distintivos para quem conversa no trânsito com
motoristas próximos ou deixa dicas de congestionamento – supomos –
enquanto estão dirigindo. Quando o Google comprou o Waze em 2013 por
1,3 bilhão de dólares, um dos motivos apontados foi a “expertise em
engajamento social”118. Usamos o Google para nos comunicar com outras
pessoas o tempo todo. Faltava fazê-lo enquanto dirigimos.
Depois de colocar botões para atender o celular na direção, as montadoras
estão indo um pouco além: o sistema Fiat Social Drive, lançado em 2012
para alguns carros da empresa italiana, lê as atualizações dos seus principais
amigos no Facebook. Não está claro se isso será uma tendência, em
primeiro lugar porque leva-se muito mais tempo para ouvir algo do que ler.
E porque os consumidores não parecem tão interessados: três em cada
quatro donos de carros acham que a conectividade dentro dos automóveis
distrai muito e 55% acham que as montadoras levaram a tecnologia longe
demais119. Ainda estamos em busca do ponto de equilíbrio e a indústria que
permite conexões ainda parece não ter amadurecido a ponto de colocar um
análogo ao “se beber, não dirija” no fim dos seus comerciais. Como já
discutimos, é difícil imaginar o governo exigindo algo do tipo.
O meu ponto é que a indústria das tecnologias conectadas quer,
obviamente, que você não se desconecte. “Os vendedores de tecnologia não
estão forçando qualquer um a comprar as suas máquinas. Nós concordamos
com a noção de que os melhores dispositivos são aqueles que oferecem a
maior conexão e nós endossamos isso com nossas carteiras. Na realidade,
nós estamos projetando nosso futuro tecnológico, forçando para tornar
nossa vida ainda mais ocupada e difícil de navegar do que é hoje”, alerta
Powers.
O autor de Blackberry de Hamlet não só criou rituais de desconexão (na
sexta-feira de noite e até segunda de manhã, ele tira o modem da banda
larga da tomada), como criou um espaço “offline”. Powers afirma que toda
a arquitetura doméstica tem que ser pensada com diferentes zonas de
conexão familiar e privacidade em mente. “Toda casa deveria ter ao menos
uma “zona Walden”, um aposento onde nenhuma tela de qualquer tipo fosse
permitida”, descreve em seu livro. Mas e o sinal wi-fi? “Assim como para
Thoreau (que vivia bem próximo a uma cidade), o sentido de uma zona é
usar uma ideia como limitação de comportamento. Para uma zona Walden
funcionar, você primeiro precisa acreditar que é uma boa ideia; uma vez que
você consiga, é bem mais fácil resistir à tentação. A mente coloca um muro
invisível, que bloqueia um sinal invisível. Talvez um empreendedor
visionário com um olhar para o futuro Thoreauviano pensará em um
dispositivo que embaralhe sinais sem fio em um espaço designado”.
O momento de privacidade, desconexão e relaxamento, costumava ser no
próprio lar. Agora, nossas casas estão aparentemente vazias, mas cheias de
gente virtual, e cada vez mais precisamos buscar os momentos de solitude
em viagens, spas e aulas de ioga. Não que elas façam mal, de forma
alguma, mas vale a pena pensar em um pequeno santuário de desconexão
onde moramos e estabelecer os rituais durante os quais ficamos sozinhos
com nossos pensamentos. Fica como dever de casa do capítulo.
87 Jornalista baiana que trabalha na BBC em “Uma apostila sobre leis naturais”, escrita em O
Purgatório, um blog de crônicas. Discuti com ela a tentativa de eliminar as distâncias em uma
chamada de Skype. A conversa pode ser ouvida no iTunes, no podcast “Boas Conexões”.

88 Henry David Thoreau, Walden (1854) edição em português L&PM.

89 A própria expressão “em tempo real” se popularizou com a internet. Em vez de “ao vivo”,
começamos a ver coisas como “Notícias em tempo real” como substituto de “enquanto elas
acontecem”. Eu não sei como o tempo pode não ser real, mas essa é uma longa discussão.

90 Irving Fang em “A History of Mass Communications” (1997). Focal Press. p. 86.


http://home.lu.lv/s10178/sixrevolutions.pdf

91 Em 2012, a Apple passou, em valor de mercado na Bolsa de Valores de Nova York, a Exxon
Mobil, que mantinha o trono havia décadas. A primeira faz telefones, tablets e celulares conectados.
A outra dá combustível para o transporte “tradicional”. Ainda que as ações tenham recuado depois, a
mudança é emblemática: ela mostra que o deslocamento “virtual” poderá movimentar mais dinheiro
e interesse que o físico, especialmente para os mais jovens, a ponto de uma reportagem da Atlantic
dizer que “as pessoas mais jovens não compram carros porque elas estão comprando smartphone no
lugar” - Atlantic Magazine. http://m.theatlanticcities.com/technology/2012/08/young-people-arent-
buying-cars-because-theyre-buying-smartphones-instead/2873/

92 Curiosidade: eu comecei a escrever sobre tecnologia em tempo integral com um blog na revista
Superinteressante, no início de 2007, como espécie de enviado especial para dentro daquele mundo.

93 Há um termo para designar essa separação clara – e antiquada – entre “real” e “virtual”: dualismo
digital. Quem o cunhou foi o sociólogo americano Nathan Jungerson, que diz que ela “se origina do
viés sistemático em ver o mundo digital e físico como separados; muitas vezes como um tradeoff de
soma-zero, onde energia e tempo gasto em um é subtraído do outro”. Obviamente, a realidade é mais
complexa, como tento explicar aqui. This is digital dualism par excellence. And it is a fallacy.
Disponível em: http://owni.eu/2011/02/28/digital-dualism-versus-augmented-reality/

94 Howard Rheingold, The Virtual Community: Homesteading on the Electronic Frontier (2000),
MIT Press.

95 Em reportagem da Revista Época, 11 de junho de 2012.

96 No Brasil, netiqueta ficou consagrado como o comportamento correto “dentro da internet”, mas
acho que podemos expandir o uso do termo para falar dos gadgets que ficam online o tempo todo.

97 O vídeo é hilário e está no Youtube: http://www.youtube.com/watch?v=PkMi_X-Hwgc

98 http://money.cnn.com/2012/08/16/technology/restaurant-cell-phone-discount/index.html

99 Curiosamente, o primeiro restaurante a estabelecer o banimento dos celulares, pelas minhas


pesquisas, largou a prática seis meses depois. O dono viu que os usuários de smartphones
registravam seus pratos e compartilhavam as maravilhas culinárias no Instagram, ajudando na
divulgação do lugar.
100 Smartwatch, relógio inteligente da Sony, anunciado na Superinteressante: seção SuperRadar,
Edição número 305, maio 2012.

101 http://exame.abril.com.br/tecnologia/iphone/noticias/apple-recruta-profissionais-para-o-iwatch-
agressivamente

102 The Tech Etiquette Manual, Real Simple. http://www.realsimple.com/work-


life/etiquette/manners/tech-etiquette–00000000007938/index.html

103 Sobre buscar um encontro mais interessante do que você está através do celular:
http://www.droider.com.br/opiniao/ignoram-mundo-ao-redor-exageram-uso-smartphone-diz-
chato.html

104 Desguiator, aplicativo para celulares Nokia: http://store.ovi.com/content/40949

105 Susan Maushart, O Inverno da Nossa Desconexão, (2011). Ed. Paz e Terra.

106 Sobre isso, há algumas regras. Jogos de celular com muita ação e mesmo mensagens e e-mails
mais importantes fazem com que o esfíncter seja contraído. E aí, uma ida rápida ao banheiro pode
durar bem mais tempo.

107 Sherry Turkle, Alone Together: why we expect more from technology and less from each other.
(2011), Basic Books.

108 William Powers, Hamlet’s Blackberry (2011), Harper Perennial.

109 Falo do WhatsApp por ser mais popular, mas o princípio é o mesmo para outros serviços
populares, como o iMessage para iPhones, o BBM, da Blackberry, e o programa de troca de
mensagens para celular do Facebook.

110 http://allthingsd.com/20130612/whatsapp-hits-record-high-in-daily-message-volume/.

111 http://www.buzzfeed.com/mattbuchanan/i-can-see-you-texting.

112 João Pereira Coutinho, Redes e Aquários. Folha de S. Paulo, 24/4/12. Disponível em:
http://www1.folha.uol.com.br/fsp/ilustrada/38861-redes-e-aquarios.shtml.

113 Já temos a tecnologia para ver outra pessoa inteira em 3D, mas é algo caríssimo por enquanto,
sendo usado apenas por grandes canais de TV e shows de rock.

114 Pais com filhos distantes podem entender pouquíssimo de tecnologia, mas rapidamente
aprendem a usar algum destes serviços. Como não exige nenhuma configuração, o Facetime,
disponível em aparelhos da Apple, tem ficado cada vez mais popular para este público-alvo.

115 O Skype também é uma maneira bastante barata de fazer chamadas de voz, apenas. Mas neste
serviço, o Voice over IP (Voip), o Skype tem vários bons concorrentes. A sua expertise é a
videochamada.
116 Uma solução ainda melhor, se o problema for estritamente de PC, do tipo “filho, meus arquivos
sumiram”, é instalar algum programa de acesso remoto. Não importa onde o parente-técnico estiver,
é possível mexer nas configurações da máquina. O Lifehacker tem uma boa lista de programas:
http://lifehacker.com/399227/give-tech-support-or-grab-files-remotely-on-any-system

117 Shelley Carson, autora de “The Creative Brain”, diz que a distração (provida pelo banho) pode
fornecer “a parada necessária para você desistir da solução ineficaz.” Disponível em:
http://www.bostonglobe.com/lifestyle/health-wellness/2012/02/27/when-being-distracted-good-
thing/1AYWPlDplqluMEPrWHe5sL/story.html.

118 Disponível em: http://www.forbes.com/sites/petercohan/2013/06/11/four-reasons-for-google-to-


buy-waze/

119 Disponível em: http://www.harrisinteractive.com/vault/Harris%20Poll%2049%20-


%20Auto_tech_8%201%2012.pdf
3. Caindo na rede “Tô me afastando de tudo
que me atrasa, me engana, me segura e me
retém. Tô me aproximando de tudo que me
faz completo, me faz feliz e que me quer bem.
Tô aproveitando tudo de bom que essa nossa
vida tem. Tô me dedicando de verdade pra
agradar um outro alguém. Tô trazendo pra
perto de mim quem eu gosto e quem gosta de
mim também. Ultimamente eu só tô querendo
ver o ‘bom’ que todo mundo tem. Relaxa,
respira, se irritar é bom pra quem? Supera,
suporta, entenda: isento de problemas eu não
conheço ninguém”– Caio Fernando Abreu A
melhor coisa de ir para o escritório às
segundas-feiras é almoçar com os colegas e
ouvir histórias de fim de semana. Sempre há
alguma muito boa – se os seus colegas forem
pessoas legais, é claro. Em uma dessas
segundas, fomos em turminha para o self-
service, mas uma colega estava com uma
cara não apenas fechada, mas perturbada. O
problema da Márcia (nome fictício) não era
mau humor. Era algo aparentemente muito
sério, a ponto de ninguém ser
suficientemente simpático para chegar nela e
perguntar o que houve, com medo de ouvir
uma longa e macabra história. Ela,
obviamente, precisava compartilhar algo com
alguém no “mundo físico”. E, depois de nos
servirmos, na aleatória distribuição da mesa,
fiquei sentado na frente dela. Os outros três
quartos da nossa grande mesa discutia algo
engraçado, mas em respeito à Márcia, comi
em silêncio, como se compartilhasse o luto
dela ou o que fosse. Não sou tão íntimo dela,
mas me pareceu ser o correto a fazer. O
microsilêncio naquele canto foi quebrado
quando, depois de parar por alguns minutos,
na quarta garfada, ela me perguntou: “Pedro,
você que tem experiência nessas coisas, é
possível processar alguém por
comportamento agressivo na internet?”

Expliquei que sim, na verdade, há vários precedentes para isso,


especialmente no Brasil. No nosso país, curiosamente, quando o assunto é
“cyberbullying” ou “danos morais na internet”, preferimos processar o
equivalente ao fabricante da faca ou do revólver ao assassino – não que isso
esteja totalmente errado per se, mas falamos mais adiante. Quando estava
no Gizmodo, chegamos a cogitar a possibilidade de haver uma máfia de
processos desse tipo no auge do finado Orkut: a cada semana, surgia uma
pessoa buscando indenização do Google, empresa responsável pela rede
social, por não ter tirado do ar uma comunidade que denegria a sua imagem,
ou por não deletar uma pessoa que se passava por outra. O processo sempre
ficava em menos de R$ 25 mil, para andar rapidamente no Tribunal de
Pequenas Causas. O Google desistia na segunda instância porque, se
houvesse um precedente nacional, a coisa poderia ficar pior. Comecei a
falar das minhas teorias de que os nossos juízes gostavam de ficar a favor
dos querelantes contra as “grandes empresas imperialistas do mal”, para
tentar animar um pouco o ambiente, sem sucesso. Ela queria contar mais
detalhes sobre o caso dela.
Márcia e o namorado tinham discutido feio (ao vivo) e a briga se
prosseguiu no fim de semana seguinte na internet. Além de mandar e-mails
que a minha amiga classificou de “bem baixo nível”, ele começou algo
como uma campanha difamatória no Twitter, onde amigos em comum
seguiam ambos. O bate-boca começou a rolar no Facebook também, com a
troca de ofensas sendo assistida por todos os amigos que, assim como
acontece desde os tempos do colégio, escolheram um lado ou outro. Alguns
comentários foram apagados mas a coisa estava feia, e aparentemente não
parava. Márcia classificou como “tortura psicológica” o fato de o seu ex
persegui-la por “todos os lados”, isto é: pelo Twitter, Facebook, e-mail,
SMS, os locais onde ambos passavam a maior parte do tempo, ao menos
publicamente. Depois de pintar o assustador quadro, ela queria dicas do que
fazer. A via legal era apenas um dos caminhos possíveis.
“Eu sou contra ir na justiça por essas coisas, a princípio”, disse, sem
segurança absoluta. Enquanto falava com ela, processava uma nota mental
para checar depois o seu perfil nas redes para ver o nível da baixaria. Talvez
fosse o caso de ir à justiça, afinal. Concentra, Pedro, seja um bom amigo.
“Há maneiras de resolver essa chateação com os filtros certos.” Em linhas
gerais, expliquei a ela que poderia esconder absolutamente toda e qualquer
menção à dita pessoa da sua vida digital com alguns truques (existe até um
aplicativo para tirar um ex da sua tela): filtros no e-mail, bloqueios em
redes sociais, delete em massa e, bem, a boa e velha desconexão. Ela
explicou que não queria simplesmente “apagá-lo”, porque gostaria de ter
provas caso entrasse com algum processo, e precisava monitorar os seus
passos de alguma forma para reagir caso ele falasse algo sobre ela para
algum amigo em comum.
O almoço acabou e continuamos no caminho de volta discutindo as
soluções possíveis para o caso. Pensando melhor comigo mesmo, começava
a vê-la em um beco sem saída: ela e o ex levaram longe demais a briga e
estavam agora em praça pública, como um político que tem suas tramoias
vazadas pela Polícia Federal e não consegue retomar a carreira (em um país
ideal, quer dizer, não no Brasil). Então, pensei alto: “É engraçado como
‘terminar um namoro’ mudou com a internet hoje. Ali, no início dos anos
1990, se a menina brigava com o rapazinho, ela simplesmente não atendia o
telefone e falava para as outras pessoas dizerem ‘eu não tô’. Um ou outro
amigo em comum iria ouvir a história e, pronto, caso encerrado. Hoje é
impossível”.
O “impossível” escapou mais por compaixão diante do problema dela. É
claramente possível sobreviver a essas situações sem grandes traumas.
Durante os dois últimos anos, boa parte das minhas conversas convergia
para o tema deste livro e, ao fazer comparações e parábolas com os tempos
antigos (pré-banda larga) e dar conselhos, poderia ser visto como um pastor
da conexão responsável. Como naquele momento, e meu proselitismo pode
não ter ajudado muito a Márcia. Mas examinar a natureza distinta de um
fim de relacionamento na era do Facebook é das mais notáveis maneiras de
entender como a noção de tempo e espaço mudou radicalmente em tão
poucos anos, como vimos nos capítulos anteriores. E dá uma ideia de como
as redes sociais, mais do que qualquer outra ferramenta da era da
hiperconectividade, podem amplificar as nossas qualidades e defeitos,
especialmente quando temos um controle tão frágil da nossa privacidade.

Somos seres sociais Do ponto de vista da engenharia da


informação, o que as redes sociais oferecem não é
exatamente muito novo. Facebook, Twitter, Tumblr e
LinkedIn, para ficar nos exemplos mais presentes na nossa
vida hoje, são atualizações de ideias ensaiadas há algum
tempo. Mesmo nos primórdios da internet, você podia
juntar links de sites que viu e mandar para os seus amigos,
criar uma página com as novidades e fotos e até organizar
um diretório de pessoas – o Facebook original foi uma
reorganização das páginas pessoais de estudantes de
prestigiosas universidades americanas, em 2004. O que as
redes sociais modernas fizeram foi diminuir enormemente
a barreira de dificuldade para fazer tudo isso: se antes as
páginas no Geocities ou MySpace eram cheias de
animações, música de fundo e fontes diferentes –
consequentemente, exigindo algum conhecimento técnico
para produzi-las –, não há muita diferença entre páginas
diferentes de pessoas diferentes no Facebook, Orkut ou
Google Plus. Padronizando tudo, as redes sociais
permitiram que mais gente entrasse na brincadeira, e foi o
que aconteceu, seguindo o aumento exponencial do
número de usuários da internet, do início dos anos 2000
para cá.
Tenho consciência de que este capítulo pode ser de alguma forma
perecível. Se escrevesse este livro há poucos anos, usaria mais exemplos do
Orkut, que até o início de 2012 era a principal rede social do Brasil.120 Mas
ele perdeu o posto para o Facebook, que já tem mais de 1 bilhão de usuários
pelo mundo e acomoda mais de 70% de todas as pessoas que usam internet
no Brasil. Não podemos ter absoluta certeza de que a rede criada por Mark
Zuckerberg fará sucesso para sempre, mas se tomarmos como indicativo
que 40% das pessoas nos EUA em 2013 acessavam o Facebook pelo menos
uma vez por dia, podemos presumir que ele não morrerá tão cedo121.
O principal motivo de acreditar no Facebook é a tendência monopolística
da internet. Enquanto a rede era uma terra inexplorada, havia muito espaço
para novos sites e serviços. Mas não só o investimento necessário para criar
um concorrente é muito grande hoje, como também o efeito multiplicador
da rede – amigos usam os serviços que amigos usam, especialmente sociais
– dificulta a adoção de alternativas, mesmo que sejam melhores. Pense por
um segundo: será que alguém vai criar um canal de vídeos para desafiar o
Youtube, que agora tem aplicativos até na geladeira? É difícil a essa altura
surgir um concorrente para o Google em matéria de buscas. E boa sorte para
quem tentar um novo site de leilão para concorrer com o MercadoLivre e o
OLX. Na vida de carne e osso, ficaríamos chocados se um supermercado
controlasse mais de 90% de um determinado mercado ou uma rede de
postos de gasolina, mas, por termos coisas “gratuitas”, parece que as
pessoas não ligam.
Futuro financeiro garantido ou não, o que importa é que a rede de Mark
Zuckerberg sempre prezou a abundância e a facilidade de encontrar
informações sobre pessoas e suas preferências. Ao clicar na foto daquela
sua ex-colega de faculdade, já é possível saber se ela é casada, onde mora,
provavelmente onde esteve nas últimas férias e quais as pessoas com quem
mais conversa. Outra pequena inovação no meio foi a maneira que o
Facebook encontrou para facilitar a forma de dar uma opinião. Uma simples
clicada em um polegar para cima e, pronto, “curtimos”; com outro botão,
compartilhamos comentários. Hoje, meus colegas jornalistas medem o
impacto de uma notícia pelo número de “curtidas” e compartilhamentos,
marcas aferem o número de fãs e adolescentes inseguras contam os
coraçõezinhos para ver se aquele ângulo da foto é o melhor.
Mas a certeza de que as redes sociais são um formato duradouro traz
várias questões. A primeira, que é óbvia para quem está de fora e vê essa
juventude gastar tanto tempo nesses sites, é a fundamental e menos
levantada: para que servem as redes sociais na internet? Por que, em
relativamente pouco tempo e em meio a quase infinitas possibilidades de
entretenimento e comunicação online, elas se transformaram na parada
número um para tanta gente? E por que tantas pessoas colocam por vontade
própria fotos, ideias e pistas que um dia poderão ser usadas de alguma
forma contra elas? Como um site como o Facebook consegue concentrar
24% de todo o tempo gasto pelas pessoas na internet ou ser o destino
número um para os proprietários de smartphones no Brasil?
A resposta é razoavelmente simples: gostamos de compartilhar
experiências, fofocar e nos mostrar. A tecnologia, novamente, apenas
maximiza esse comportamento humano. Muitas vezes para além do
saudável, é verdade, mas sites como o Orkut e agora o Facebook são a
nossa nova reunião na casa de amigos ou a ida ao bar, em princípio. Somos
seres sociais.
A organização social complexa nos trouxe até aqui: as doses certas de
altruísmo, a necessidade de proteger os mais fracos e compartilhar
conhecimento garantiram a perpetuação da espécie. Mas, obviamente, os
sapiens não chegaram ao século 21 só com histórias abonadoras de vida em
comunidade. Há até algumas teorias para justificar a fofoca. O britânico
Robin Dunbar, um dos maiores biólogos evolucionistas, argumenta que o
neocórtex, a parte mais nova e externa do cérebro, se desenvolveu para
tomar conta da vida social, como lembrar de rostos, manter o histórico de
interações, reconhecer quem deve ser recompensado e quem deve ser
punido, e especialmente saber em quem se deve confiar ou não. De acordo
com Dunbar, a fofoca foi o primeiro uso da linguagem, é algo que não vai
embora: “A análise de uma amostra das conversações humanas mostra que
cerca de 60% do tempo gasto é fofocando sobre relações e experiências
sociais. Suspeita-se que a linguagem evoluiu para permitir aos indivíduos
aprenderem as características comportamentais de outros membros do
grupo mais rápido do que seria possível apenas pela observação direta”.122
Naturalmente, nos interessamos muito pela vida dos outros, mesmo
quando eles não são tão conhecidos assim, vide o sucesso dos reality shows.
Queremos ter parâmetros para nos comparar. Queremos sentir que
pertencemos a algum lugar, a algum grupo. Queremos aumentar a nossa
influência, nosso círculo de amigos e o nosso status perante ele. São desejos
instintivos, que, segundo os estudiosos da evolução como Dunbar, vêm
desde antes da linguagem, e ao longo da nossa organização em sociedade
aprendemos a controlá-los. Mas como as redes sociais, que amplificam tudo
isso, são novas, ainda estamos aprendendo quais os limites saudáveis da
exibição e fofoca. E acabamos nos embrenhando tanto, transferindo tanto o
nosso tempo, o nosso espaço e as nossas relações para o “bar do Face”, que
encontramos todo tipo de problema, como a minha amiga Márcia. Como
reconhecer as armadilhas e aproveitar melhor o que as redes sociais têm a
nos oferecer?
Pessoas diferentes fazem coisas bastante diferentes usando a rede, então,
o exemplo de uma lavagem de roupa suja online pode parecer muito
estranha para você, mas era um tipo de episódio que acontecia com alguma
frequência na minha timeline, a janela para o mundo das redes sociais.123
Por mais que você acredite que seus amigos são pessoas normais – como
você –, o contato prolongado e com uma quantidade grande de pessoas por
meio de redes sociais pode fazê-lo presenciar ou protagonizar situações
assim. É uma questão meramente probabilística. Logo, o conselho mais
óbvio e direto é: procure não passar tanto tempo no Facebook, Twitter ou
Instagram para não se envolver em situações desagradáveis.
Quanto tempo é muito tempo? Em 2013, o brasileiro, que é mais sociável
que os outros povos, passava em média 535 minutos por mês no Facebook,
contra 361 do resto do mundo.124 É difícil contabilizar todos os usos das
redes por causa das diferentes plataformas utilizadas para acessá-las, mas
sabemos que 88% dos proprietários de smartphone usam o aparelho para
isso no Brasil – mais do que fazer ligações, checar e-mail ou tirar fotos.125
Como discutimos na questão do “vício”, não há um algoritmo para criar
uma regra de horas permitidas ou “saudáveis”. Você sabe que usou demais
quando fecha a página do Facebook, ou o aplicativo do Twitter no celular e
está mais ansioso ou irritado – ou quando deixou coisas realmente
importantes como o emprego que te satisfaz e sustenta em segundo plano.
Fofocar e compartilhar conhecimento e impressões sobre o mundo são parte
da natureza humana, e precisamos disso. Mas é bom saber a hora de usar as
redes para o fútil (o narcisismo e a fofoca) e para o bem, para a informação
e para a serendipidade, as (normalmente boas) descobertas feitas ao acaso,
que eu discuto melhor no próximo capítulo.

Narciso acha feio o que não é Facebook Se você passa


relativamente pouco tempo nas redes sociais,
provavelmente não precisa de muitos conselhos e avisos.
Quanto menos você se mete nela, menor é a chance de ter
problemas. O caso da minha amiga que descrevi páginas
atrás é causa e consequência do tempo excessivo
cultivando amizades que não são necessariamente
verdadeiras, da atenção demasiada que se dá a comentários
que não deveriam importar e das horas gastas respondendo
a coisas que nos irritam e que antes não chegariam até nós.
Ações geram reações. Se você pretende, por tudo o que eu
falei até aqui, usar pouco as redes sociais ou somente o
essencial, pode pular um pedaço grande deste capítulo.

Não que você deva ser desleixado nas redes sociais. Ter uma boa persona
online pode ser útil em diversos campos. Há o mais óbvio, que é conquistar
admiradores e possivelmente amores a partir de boas fotos, frases
inteligentes e compartilhamento de bons exemplos. Cuidar da aparência
online também pode ser importante do ponto de vista profissional, já que
cada vez mais empresas analisam currículos online (há uma enorme rede
para isso, o LinkedIn) e os próprios perfis pessoais – eu mesmo já usei
simplesmente links compartilhados no Twitter como critério de desempate
para eliminar candidatos. Esse cuidado não pode ser artificial. Se portar
bem online deveria ser regra simplesmente porque gentileza gera gentileza
– ser um cara legal em um comentário online pode render todo tipo de
pequenos benefícios no futuro.
Para ter uma vida saudável nas redes sociais, é importante tratá-la
efetivamente como uma extensão da vida social que temos no mundo físico,
tendo em mente a diferença fundamental: o seu newsfeed do Facebook não
é exatamente uma reunião com os amigos e conhecidos, mas o encontro em
uma sala tumultuada, cheia de megafones, onde os seus melhores amigos
andam ao lado de pessoas que não te conhecem bem, primos chatos e um
colega de trabalho que você não sabe por que convidou. É necessário evitar
as armadilhas desse ambiente, especialmente no que diz respeito à
privacidade.
A primeira e a mais clara armadilha, ao menos para os psicólogos que
estudam o nosso comportamento online, é o narcisismo. Fala-se muito da
“epidemia de obesidade infantil” que assola países como os EUA, mas a
taxa de incidência de narcisismo patológico verificada entre jovens de 15 a
24 cresceu mais rápido nos últimos 20 anos que a obesidade. Há bastante
debate sobre se o Facebook e as redes sociais são causas disso, como sugere
Larry Rosen no seu conceito de iDisorder, ou apenas um lugar onde essa
tendência se mostra mais claramente. Para quem acha que as redes sociais
não podem ser culpadas, o narcisismo dos jovens seria mais resultado de
pais superproterores e da cultura de “melhorar a autoestima”.126
O fato é que todo mundo gosta de cuidar da aparência em algum nível, é
claro, e mesmo quem não tem tendências ao narcisismo, vai encontrar
incentivos para cultivar meticulosamente a imagem na rede. Lembre-se que
o loop de recompensas que envolve, por exemplo, compartilhar uma foto no
Instagram e a dose de dopamina de cada curtida podem ser viciantes
(lembre-se de desligar as notificações para não cair nessa armadilha) para
muitos. Logo, não sabemos exatamente por que estamos alimentando o
nosso perfil – e o ego. Boa parte do acesso compulsivo parte de uma
necessidade de confirmar a nossa importância. “Será que alguém retuitou o
que eu disse? Curtiu a minha foto? Compartilhou a minha opinião?” Parece
que estamos nos relacionando com os outros, mas é apenas um esforço
autorreferente, como resumiu brilhantemente Jonathan Franzen em um
ensaio intitulado “A Dor não nos matará”: “Nossa vida parece muito mais
interessante quando filtrada pela interface sexy do Facebook. Estrelamos
nossos próprios filmes, nos fotografamos incessantemente a nós mesmos,
clicamos o mouse e uma máquina confirma a sensação de que estamos no
comando. E já que nossa tecnologia é apenas uma extensão de nós mesmos,
não precisamos desprezar suas manipulações, como faríamos no caso de
pessoas de verdade. É um movimento circular sem fim. Curtimos o espelho
e o espelho nos curte. Ser amigo de uma pessoa significa apenas incluí-la
em nossa lista particular de espelhos elogiosos.”127
Antes de compartilhar algo, avalie o quanto aquilo é um sentimento
honesto e legítimo (mesmo que bobo), uma contribuição para a conversa
online, ou apenas uma ilusão de interação do tipo “espelho, espelho meu”.

Oversharing “O que está acontecendo, Pedro?”, é a


pergunta que o Facebook faz, de tempo em tempo, na
caixinha do topo da página, em uma tradução meio
dramática.128 Sempre acho que a rede está preocupada
comigo. A ideia de qualquer rede social é que você a use
incessantemente, para dizer onde está, o que ocupa sua
cabeça, o que viu de legal em outros lugares da rede, o que
curtiu. A quem interessa tudo isso? Se você tem
tendências narcisísticas mais pronunciadas, uma
mensagem não correspondida ou curtida entristece, e a
espera pela confirmação de recebimento dos seus espelhos
é agonizante. Mas se você se considera alguém não tão
obcecado pela autoimagem, por que não se expor online?
Já falo da questão da privacidade, o grande problema das
redes nessa segunda década, mas há uma problema mais
trivial do chamado oversharing: a diminuição do valor das
interações reais.

Quando era mais obcecado por fotos, subia várias para as redes sociais,
escrevia sobre os lugares no blog e tuitava curiosidades e minha atual
localização em tempo real. Viajei bastante pelo mundo nos últimos anos e
contava minuciosamente algumas histórias em relatos online. Até que um
dia fui jantar com um dos meus grandes amigos que mora em outra cidade.
Ia falar sobre o Japão, lugar que tinha me fascinado, e comecei com uma
curiosidade sobre como as aeromoças se comportavam na Air Japan. Vi que
ele não estava tão interessado – e tenho alguma confiança na minha
capacidade de contar histórias. O problema é que ele já sabia de boa parte
dos meus “causos” legais, a ponto de interromper, avisando que aquilo não
era inédito. Fiquei meio desanimado. Ele comentou, rindo: “Cara, eu te sigo
no Instagram, no Facebook, eu leio seu blog. Já sei de tudo isso aí.”
Eu dei uma risada meio sem graça, mudamos de assunto e falamos da
comida. Mas na minha cabeça não fazia sentido aquela situação. Era como
se, em um show de comédia, alguém reclamasse que já tinha visto aquilo no
DVD. Por “saber o final da piada”, o público chateado estaria se privando
dos pequenos detalhes da história contada ao vivo, de todas as nuances – e
poderia até achar o comediante em questão menos engraçado.129 Foi um
pouco como eu me senti ali com o meu amigo.
Mas o pior talvez nem sejam as nuances: quando nos expomos demais
online, a ponto de deixar de aprofundar algumas histórias, perdemos a
chance de manter conversas paralelas enriquecedoras. Se continuássemos
falando do Japão, teríamos ganchos para falar de comida, câmeras, metrô
ou qualquer história. As experiências mais significativas da vida são as
mais ricas e geram as conversas paralelas mais interessantes.
Hoje, eu mudei de estratégia. Gosto quando as redes sociais cumprem o
papel de isca para outras interações. Em vez de um álbum com 60 fotos da
sua viagem de fim de semana, experimente um breve registro de Instagram
com caras felizes e uma paisagem ao fundo: ela pode iniciar uma conversa,
que pode se encerrar nas próprias redes sociais ou se alongar em uma visita
presencial. Quando as pessoas me visitam, deixo o protetor de tela da minha
TV passando as fotos da minha última viagem (normalmente “inéditas”
para quem não foi à minha casa). Se o assunto em questão “acabar,” temos
um gancho visual ali. Isso, aliás, é uma vantagem inerente às interações
presenciais. Quando conversamos online, costumamos nos ater a um tópico.
Ao vivo, começamos fazendo comentários sobre um par de sapatos e
acabamos planejando viagens para a Europa.
Se melhorar as suas conversas offline não é motivo suficiente para você
desconsiderar o oversharing, pense em outro: ninguém gosta de ver
detalhes da sua vida demasiadamente. Vários levantamentos com usuários
do Facebook em todo o mundo apontam o oversharing como um dos
comportamentos mais irritantes dos amigos.130 E os que te seguem não vão
simplesmente te excluir da rede, mas podem também não te chamar mais
para o boteco. “A nossa pesquisa descobriu que aqueles que frequentemente
postam fotos no Facebook, correm o risco de diminuir suas relações na vida
real”, afirmou David Houghton, que liderou o estudo conjunto de quatro
universidades britânicas que descobriram a correlação entre o excesso de
fotos de amigos e o afastamento entre eles a médio prazo.131
Não há muito jeito. Se você reclama demais da chuva ou posta três fotos
do seu jantar, as pessoas vão “escondê-lo” da listagem de atualizações no
Facebook. As coisas efetivamente importantes que você teria a falar se
perdem com o ruído.
Um dos grandes medidores de nível de amizade é o quanto de segredos,
histórias e planos conhecemos das pessoas. Quando começamos a
compartilhar demais, diminuímos o poder e o senso de exclusividade,
especialmente em relação a quem é mais próximo. “Você tem a expectativa
de que o seu parceiro só vai dizer a você algumas das informações
importantes, mas, então, você vê que ele fala para todo mundo. Então, você
se sente menos especial e única”, explica Juwon Lee, pesquisadora da
Universidade de Kansas que realizou três pesquisas que mostraram o
descontentamento dos parceiros com o oversharing. Compartilhar demais
acaba não só desvalorizando você, mas todo o sentimento de amizade.132
O limite, é claro, é o bom senso. Os problemas da minha amiga lá do
início do capítulo vieram, em grande parte, do oversharing: da mudança
repentina de “status de relacionamento” (é algo que eu não deixo público,
mesmo estando com a mesma pessoa há anos – só acho válido mudar
quando há um casamento ou divórcio de fato) às respostas honestas e ácidas
demais à pergunta do Facebook “o que está acontecendo?”: não há motivo
para levar isso a público, porque envolvemos não apenas os amigos
próximos, mas a prima distante e o estagiário que acaba de ser adicionado.
Porque nós não queremos mostrar todas as nossas faces, para todo mundo,
sempre.

A boa esquizofrenia Nós temos algumas versões de nós


mesmos. Isso é normal e não configura esquizofrenia em
um nível moderado. Eu me apresento, gesticulo, me visto
e falo de maneiras razoavelmente diferentes no trabalho,
com minha namorada, ou no Natal com meus parentes. E
se a vida online é uma extensão da offline, isso não é
muito diferente nas redes sociais. Temos apenas um
controle maior para definir qual é o personagem que
queremos criar e podemos ser pessoas diferentes em
lugares diferentes da rede.

No Twitter e no Tumblr, por exemplo, eu sou o jornalista que compartilha


links e citações que eu acho interessantes e que ajudam a promover a ideia
deste livro. Como sou uma figura razoavelmente pública (talvez por
vaidade, gosto de pensar assim) e tenho alguns poucos milhares de
seguidores, tenho um cuidado ridículo com o que escrevo: checo a
ortografia de um nome alemão antes de postar algo e digito um punhado de
versões da mensagem de 140 caracteres até chegar à “perfeita”. Por causa
disso, tuíto em média menos de duas vezes por dia (contra os 30 a 50 tuítes
da maior parte dos meus colegas jornalistas online). No Facebook, sou mais
observador e curtidor de coisas alheias legais. Uso o Instagram para treinar
meu olhar de fotógrafo e sou tão crítico em relação a ele que saem dali duas
fotos por mês, em temporadas movimentadas. Já em alguns jogos online, eu
sou uma pessoa muito mais competitiva do que eu poderia admitir, ou
demonstrar, apesar de manter uma bizarra mania de corrigir a gramática de
adolescentes que jogam comigo.
Eu não me mostro em todos os lugares da internet. E não tenho todos os
amigos em todos os lugares. Juntar todo mundo, sempre, pode ser
problemático, assim como é colocar em um jantar de família amigos do
futebol e colegas de trabalho de outro departamento. É interessante separar
os ambientes, não só para evitar a intimidade desnecessária do oversharing,
mas também, e por que não?, para expandir os nossos horizontes.
Por muito tempo na história, o grupo ao qual pertencíamos era definido
por limites físicos: era sua tribo (ou vizinhos da quadra/rua), seus pares da
mesma idade (colegas da escola), sua família. Não tínhamos a possibilidade
de mudar de grupo, e a raridade desse evento era mote de histórias nas quais
nobres se apaixonavam por plebeus, ou náufragos descobriam uma nova
civilização. Em boa parte da história humana, trabalhamos pelo coletivo,
em todos os sentidos, e a noção de individualidade, de cultivar uma
personalidade própria, ficou em segundo plano, sempre constrita pelos
grupos físicos. Isso começou a mudar muito recentemente e, desde os
românticos do século 19, desafiar o destino pré-traçado e os laços fáceis
virou símbolo de rebeldia e um comportamento desejável pela juventude.
Hoje, ir atrás do sonho não é mais coisa de hippies ou motoqueiros sem
rumo. Mais do que nunca, somos instados a buscar, onde quer que seja, o
que nos realiza. A sociedade e os livros de autoajuda nos ensinam a tentar
vários relacionamentos, cidades, empregos, grupos de amigos, hobbies. Até
achar o que nos completa.
Nesse sentido, a internet é a realização de uma utopia. O cientista J.C.R.
Licklider previu a Internet em um artigo assinado com Robert W. Taylor em
1968 e intitulado “O computador como um dispositivo de comunicação”:
ele imaginou que a comunicação no futuro seria feita em uma rede de
“comunidades interativas online” mais ou menos ligadas umas as outras.
Mas ele também previu que “a vida será mais feliz para o indivíduo online,
porque aquele com quem alguém interage de maneira mais sistemática será
selecionado mais pelos interesses e objetivos em comum do que por
acidentes de proximidade”. A possibilidade de nos associarmos online com
aqueles que achamos mais interessantes resultaria em ligações mais fortes e
sinceras que as relações do “mundo real” determinadas por variáveis
arbitrárias, como a proximidade física e a classe social.133
Os “manuais” destinados aos pais hoje em dia reforçam a importância de
dar essa liberdade de experimentação, e eu me beneficiei dessa nova
mentalidade. Meus pais nunca me “vigiaram”, e quando meus amigos
“naturais” não eram suficientemente interessantes (não consegui fazer
amigos no meu ensino médio e a minha vizinhança era mais velha),
encontrei abrigo no computador. Me refugiei na música, nos videogames e
no início da internet, com as salas de chat pré-históricas e o mIRC.134
Não vou dizer que o o uso que fiz das tecnologias naquela época foi
“ideal”, mas, digamos, sobrevivi sem maiores traumas até chegar à
faculdade de jornalismo, onde encontrei minha turma definitiva. Hoje, 15
anos depois, vejo que há bem mais possibilidades de se encontrar online, e
consigo entender melhor por que tantos jovens, especialmente, gastam tanto
tempo nas redes sociais. Não é simplesmente uma transferência do mundo
de fofocas e status para dentro da internet, mas também a experimentação
de gostos, turmas e personalidade. Uma criança que não gosta de jogar bola,
uma menina que não se interessa pela mesma boyband que as colegas de
classe, um rapaz vivendo em uma cidade pequena que tem preconceito
contra a sua opção sexual, poderiam sofrer bastante se ficassem
circunscritos à sua realidade espacial, às interações pré-escolhidas. A vida
online pode ser um espaço de autodescoberta e socialização com pessoas de
interesses afins que não estão próximas em carne e osso. E, ao contrário do
que apregoam os mais pessimistas, isso é inequivocavelmente bom.
Eu sugeri a mais de um psicólogo estudar o Fórum UOL Jogos, que era
originalmente dedicado apenas à discussão de videogames, quando
apareceu no fim dos anos 1990, e hoje é um dos dez maiores sites do gênero
no mundo. O modelo é o mesmo consagrado desde antes da internet:
alguém cria um “tópico” e os usuários comentam. Se antes a plataforma era
usada apenas para criticar jogos ou compartilhar dicas, hoje o Fórum UOL é
bem mais que isso. Uma das suas áreas mais acessadas é o “Vale-tudo”,
onde dezenas de milhares de usuários, especialmente adolescentes e jovens
adultos, compartilham experiências em semianonimato, quase sempre por
trás de um pseudônimo e uma imagem retirada de um jogo. Lá eles falam
como foi a primeira vez, reclamam de bullying, buscam apoio quando estão
deprimidos, procuram como resolver uma situação complicada com os pais,
comemoram vitórias na escola e todo tipo de coisa que você faria com uma
turma comum de colégio. Frequentemente, as pessoas do fórum se
encontram offline ou em IRL (acrônimo de in real life ou “na vida real”) e
há vários casos de relacionamentos que começaram a partir dessas
interações. No Fórum UOL há até um certo preconceito contra os rapazes
mais bem apessoados, que saem pra balada e conquistam todas as mulheres
– estes são genericamente chamados de liferulers e são barrados em muitas
conversas.
Como o Fórum UOL há tantas outras comunidades que giram em torno
de interesses comuns, de videogames a maquiagem, e acabam criando um
certo grupo de apoio e amizades reais. É fácil olhar de fora apenas para o
lado negativo dos jovens, da juventude que passa tempo demais na rede,
mas às vezes é uma turma mais próxima intelectualmente – para eles, a
verdadeira prisão está muitas vezes em passar tempo com uma família que
não os entende ou com colegas com outros interesses. A vantagem desses
ambientes online é que você sabe de certa forma o que esperar e é possível
medir o quanto você é um membro interessante e efetivo daquele grupo.
“World of Warcraft pode ser melhor que muitas férias. Estas podem dar
errado, o lugar pode ser ruim, etc. A experiência do jogo online não é nova,
mas familiar e segura, de certo modo. E sempre vai satisfazer”, advoga
Nick Harkaway, escritor britânico autor de Blind Giant: Being Human in a
digital World.
Harkaway está entre os otimistas e vê as amizades “online” como
superiores, de certa forma, já que você se relaciona apenas com o cérebro
ou o coração do outro. Ele só descobriu que uma pessoa com quem jogava
frequentemente no World of Warcraft era surda muito tempo depois, quando
a conheceu pessoalmente. “É claro, no contexto textual do jogo, a coisa
simplesmente não era relevante. Ali, as deficiências não são jogadas na
cara”, diz em seu livro. E, de fato, as tecnologias digitais são extremamente
inclusivas nesse sentido.
Para experimentar com a construção da nossa personalidade é preciso
estar aberto e frequentar lugares diferentes na rede. E isso requer certo
esforço, já que hoje caminhamos para o fim do anonimato da internet e a
padronização das identidades – agora você não precisa criar um usuário,
login e senha em vários sites que entra, apenas conectar à conta do
Facebook. Esse cenário se diferencia bastante da internet nos seus
primórdios (fóruns, listas de discussões e chats com estranhos), como bem
notou o jornalista americano Adrian Chen, que advoga para que as pessoas
“não se comportem como estranhos”: “Os espaços que encorajam os
estranhos a formar amizades duradouras estão morrendo. Fóruns e e-mail
estão sendo substituídos pelo Facebook, que é construído na premissa de
que as pessoas vão preferir povoar cuidadosamente as suas vidas online
com apenas um punhado de amigos ‘reais’ e fechar a porta para trolls,
stalkers e golpistas. Agora que a desconfiança pelos estranhos online está
impregnada no código da nossa rede social mais popular, está ficando cada
vez mais improvável que as pessoas interajam online com alguém que não
seja conhecido”.
“Difícil” é longe de impossível. Quando me mudei de Brasília para São
Paulo, em 2006, conhecia, fisicamente, apenas uma pessoa. Tinha um
emprego garantido, um flat alugado e só. Pouco antes de sair da minha
cidade natal, disparei uma mensagem para uma lista de e-mails chamada
BG-BR, que reúne há anos os jogadores dos tais jogos de tabuleiro
modernos – pense em War e Banco Imobiliário, mas com temas mais
interessantes e mecânicas complexas, como em jogos de estratégia de
computador. Já era membro ativo da lista havia mais de um ano e meus
esforços de socialização e dicas sobre jogos foram recompensados: vários
se candidataram a me receber. No primeiro fim de semana estava lá,
jogando com pessoas de idades e histórias totalmente diferentes. Fiquei
muito amigo de vários e até hoje sempre estou a um e-mail de conseguir
organizar uma noite de jogatina na minha casa ou com os amigos.
Há muitos equivalentes online do que costumamos fazer para expandir os
horizontes da nossa vida. Se “aqui fora” nos inscrevemos numa turma de
ioga, num grupo de corrida ou saímos para dançar com amigos, na rede
podemos experimentar com vários microgostos, como o meu amor pelas
pecinhas de tabuleiro. Mesmo que estes espaços públicos da rede estejam
morrendo,135 experimente de vez em quando se aproximar de um estranho
que pareça interessante – e não precisa ser em termos de flerte. É mais fácil
que seja um amigo de amigo que você achou nos comentários de algo no
Facebook ou um seguidor no Twitter. Desbrave e exponha-se com
moderação. Os bons frutos não se encerrarão no computador.
Alguém pode argumentar que o melhor lugar para achar estranhos
compatíveis são os sites de namoro: a razão de ser destes lugares é
justamente passar das relações iniciadas online para as “consumadas”
offline. Se antes eles eram associados a gente solitária e sem traquejo social,
hoje, à medida que deixamos a noção de cyberespaço como terra
estrangeira, os sites de relacionamento são vistos como parte do jogo de
conquista. “A internet tem um enorme potencial para ajudar adultos a
formarem relações românticas ricas e saudáveis, e essas relações são um
dos melhores indicativos de saúde psicológica e emocional”, afirma Harry
Reis, professor de psicologia da Universidade de Rochester, um dos autores
do estudo “Online Dating: A Critical Analysis From the Perspective of
Psychological Science”.136 Apesar de reconhecer a internet como uma “boa
opção” para iniciar relacionamentos amorosos, os pesquisadores criticam a
eficácia dos algoritmos usados por sites como Parperfeito ou Match. Esses
sites usam questionários extensos em conjunto com fórmulas matemáticas
proprietárias para indicar parceiros potenciais ao gosto do cliente. Mas eles
não parecem ter taxa de sucesso significativamente maior que outros sites
com menos tecnologias, que funcionam como casas noturnas para públicos
específicos. Aqui no Brasil há o Coroa Metade, Solteiros com Filhos e
Namoro Evangélico.
Honestamente nunca usei esses sites para além da pesquisa, mas uma
coisa que sempre me incomodou é que a foto da pessoa é sempre a
informação mais proeminente. O que é diferente da internet 1.0, das minhas
salas de chat onde primeiro você se encantava com o bom humor e
inteligência de uma pessoa antes de pedir fotos (das quais sempre
desconfiávamos). Por sorte, há opção para todos os gostos. “Nossos clientes
pedem fotos toda hora, especialmente os caras, e ficam bravos quando
dizemos que não. Mas você não pode dizer nada muito importante a partir
de uma foto. Os dois elementos mais importantes de uma relação são a
química e a compatibilidade, e uma foto não vai ajudar você com nenhuma
delas. Você precisa cheirar e sentir a pessoa, viver, ou você não vai ter uma
ideia clara do que realmente importa. Além disso, as pessoas manipulam as
fotos. Pessoalmente, elas são completamente diferentes”, diz Irene LaCota,
presidente do It’s just lunch (“é só um almoço”), site de relacionamento que
esconde as fotos dos potenciais parceiros e tem como fim marcar um
almoço. “O almoço é o tempo certo. Jantar demora demais. Se ninguém
tomar um drinque depois do almoço, provavelmente tudo bem. Mas não no
jantar, há muita expectativa. É muito envolvimento para uma primeira vez”,
defende.137
É possível ter amizades importantes que começam e se encerram online.
Mas elas normalmente estão circunscritas a um campo – o amigo
companheiro de jogo, o seguidor que se interessa pelas suas dicas culturais
no Twitter. Experimente andar por diversos lugares na internet e puxe
algumas pessoas “para fora” de quando em vez. Até porque é preciso
guardar alguma coisa para compartilhar cara a cara.

O preço da privacidade Os grandes críticos da internet


hoje reclamam da “falta de privacidade” como um dos
maiores, se não o maior, problema decorrente do uso
indiscriminado da rede. Mas o que é exatamente
“privacidade”? A Wikipédia a define como a “habilidade
de uma pessoa em controlar a exposição e a
disponibilidade de informações acerca de si”. Se
pensarmos bem, nunca tivemos esse controle. Ou tivemos
algum, por pouco tempo. O que mudou,
fundamentalmente, foi o alcance.

Há várias teorias que dizem que a privacidade como a conhecemos, nos


acostumamos e celebramos foi um acidente histórico, que durou um
relativamente breve período e beneficiou apenas os moradores das cidades
grandes. Em comunidades menores, todo mundo sabe da sua vida. Não se
pula a cerca, literalmente, sem alarmar vizinhos. Mesmo sem fotos
comprometedoras no Facebook, uma balada barulhenta promovida em uma
cidadezinha é conhecida por todos os amigos dos amigos.
Em uma cidade grande, onde mantemos relações superficiais com os
vizinhos e somos anônimos para a maior parte dos outros moradores, é
possível separar os filtros de privacidade pelos grupos de interesse, da
família aos colegas de trabalho, passando pelos amigos íntimos. Uma
parcela relativamente pequena dos nossos conhecidos já visitou a nossa
casa, por exemplo, e, em um mundo pré-internet e oversharing, as pessoas
nem sabiam qual era a raça do nosso cachorro. Quando dizemos que a
privacidade é importante porque faz com que tenhamos controle sobre o
que as outras pessoas devem saber sobre nós, não usamos isso
necessariamente para esconder algo de ruim que fizemos, mas porque as
informações que produzimos sobre nós mesmos têm valores diferentes em
contextos diferentes. Então, é desejável termos privacidade no sentido de
que não queremos que o que acontece na nossa vida amorosa, por exemplo,
afete as chances de sermos contratados.
Mark Zuckerberg acha que as noções de privacidade das pessoas estão
mudando rapidamente138 e que em dez anos todos compartilharão muito
mais detalhes sobre suas vidas – preferencialmente por meio da sua rede.
Ele obviamente comemora essa tendência, mas também não é o único.
Outras pessoas de fora defendem que essa perda da privacidade não é
necessariamente ruim. O articulista Eduardo Pinheiro sugeriu que a falta de
privacidade resgata de certa forma a noção religiosa de que sempre há
alguém julgando, então, precisamos tomar cuidado com o que fazemos
mesmo quando aparentemente não há ninguém vendo. “Parece que a vida
em público, o tempo todo, nos treina exatamente para viver e refletir em
público – e isso é bom exatamente para a vida em público, onde quer que
ocorra. Para falar (ou ao menos escrever) e ouvir em público melhor, e para,
de forma muito importante, refletir sobre nossas ações, isso parece ser,
falando darwinisticamente, uma ótima ‘pressão adaptativa’. Nos nossos
primeiros erros, o feedback é tão imediato, e às vezes tão intenso, que
necessariamente desenvolvemos mecanismos que depuram nossos
processos de relação e o que escolhemos divulgar em público.”139
Por essa lógica, é interessante, “darwinisticamente” falando, que pessoas
sejam presas quando pedem para entregar maconha no trabalho140 ou sejam
processadas quando fazem comentários racistas no Twitter.141 São bastante
comuns os casos em que alguém é demitido por uma besteira que falou nas
redes sociais. Ou, em situações menos extremas, brigas generalizadas com
pessoas que nem são tão próximas, como da minha amiga do início do
capítulo. O Facebook já é citado em um terço dos casos de divórcio nos
EUA,142 mas na verdade tudo isso acontece porque as pessoas deixam
muitos indícios de seus comportamentos comprometedores – de flertes a
“curtidas” em fotos de ex-casos e pensamentos inapropriados que outrora
eram guardados para consumo interno. Esses problemas decorrem do fato
de que a maior parte das pessoas que interage nas redes sociais, por
ignorância ou descuido, não controla com mão firme com quem cada
informação é compartilhada. Nem todo mundo se acostumou com a
memória perfeita e ao mesmo tempo seletiva da rede, como falaremos
depois.
Sabemos que não podemos fugir completamente dos olhos das agências
de espionagem internacionais. Mas como se esconder em um mundo tão
conectado? A resposta simples: compartilhando menos. A mais complexa:
escolhendo criteriosamente com quem você compartilha as informações. Da
mesma forma que você não grita com um megafone no meio do escritório o
seu desprezo pelo chefe, você pode fazer um comentário sobre as condições
de trabalho por e-mail a um amigo em vez de direcioná-los a 400
seguidores no Twitter.
Antes de entrarmos nos detalhes de como e por que controlar melhor sua
privacidade, vamos entender por que as empresas de internet querem que
você não faça isso.
Eric Schmidt, então presidente do Google, disse no Washington Ideas
Forum em outubro de 2010 que, “com a permissão do usuário”, ele sabia
“um monte sobre os seus amigos, sobre você, sobre o que você gosta” e que
no futuro “saberemos o que você está pensando”.143 Schmidt contou isso
como um grande trunfo da tecnologia e outros engenheiros da empresa
costumam dizer que o objetivo último do Google é responder às perguntas
antes que você pense em fazê-las. Como o Google consegue essa mágica? É
simples: você clicou “aceitar” em algum “termos de uso” que descrevia
todo tipo de informação à qual a empresa em questão teria acesso. Se você é
um usuário comum de internet, o Google sabe todos os sites que você
visitou, as buscas que fez, os vídeos que assistiu no Youtube, para quem
mandou e-mails, as mensagens deles, o conteúdo das conversas por chat,
onde você tirou as fotos que subiu para o Google+, quem estava com você
nas fotos e onde você anda. A coisa não é muito diferente – em alguns
casos até pior – do que com o Facebook. Ele sabe de detalhes que poderiam
causar problemas a qualquer pessoa como, por exemplo, quanto tempo você
gastou vendo fotos da amiga da sua colega de trabalho.
Obviamente nós não pensamos nos riscos inerentes ao publicar cada uma
dessas informações. Nós confiamos quase que cegamente que elas não
cairão em mãos erradas por dois motivos: o primeiro é que não há registro,
até agora, de que essas informações foram usadas para o mal por essas
empresas. Ninguém perdeu um emprego porque as correspondências do
Yahoo! viraram públicas. Quando falamos que “o Google” sabe disso, não
falamos que as pessoas que trabalham lá dentro ficam xeretando nossos e-
mails e buscas, considerando o que fazer com aquelas informações –
praticamente não há possibilidade de elas vazarem, e nem há contato delas
com humanos, tudo é automatizado por algoritmos. Na prática, parece que
estamos guardando tudo em um cofre (o que é um pouco problemático, mas
isso é outra questão). O fato de o cofre estar fora do Brasil coloca em
discussão a questão da soberania nacional, que finalmente começou a ser
discutida.
O segundo motivo de assinarmos todos esses termos de uso que dão
bastante acesso aos nossos dados é a conveniência. Deixamos o Google
saber onde estamos porque quando procurarmos “farmácia” no smartphone,
ele vai apontar para a mais próxima. Ele sabe que, quando busco por
“Rafinha” no Google, eu quero saber do jogador do Bayern de Munique
porque acabei de ver um vídeo de um gol dele no Youtube, e por isso ele
não vai oferecer o perfil de Rafinha Bastos no topo da busca, poupando
alguns microssegundos. Quanto mais privacidade concedemos aos
algoritmos do Google, do Facebook, da Microsoft e da Apple, menos tempo
a tecnologia gastará interpretando o que a gente quer dela – ela nos conhece
intimamente. O Google Now, talvez o mais brilhante exemplo de
“presciência” que temos no momento em que escrevo, transforma um e-
mail de confirmação de check-in de uma companhia aérea em um legítimo
cartão de embarque, que aparece na tela do smartphone na hora certa e pode
ser usado para embarcar em alguns aeroportos.
A verdade inconveniente é que toda essa privacidade que cedemos a essas
grandes empresas traz uma infinidade de coisas “legais”, de graça. Cerca de
96% de todo o faturamento do Google144 vem da publicidade e, para crescer
esse valor, ele tem que vender mais publicidade específica – e ela usa
produtos gratuitos para ajudar no processo. Em 2004, seis anos depois de
lançar seu buscador (curiosamente no dia 1º de abril), o Google
revolucionou o e-mail pela internet ao lançar o Gmail. O Hotmail e o
Yahoo, os dominantes, tinham 4 MB e 6 MB disponíveis para seus usuários,
o que forçava faxinas e backups frequentes de e-mail – lembro quando
apaguei dezenas de e-mails que troquei com uma ex-namorada não para
começar uma nova vida, mas para poder receber novas mensagens. Os
concorrentes, pagos, chegavam a 50 ou 100 MB, no máximo. O e-mail do
Google estreou com 1 GB, buscas e outras facilidades. De graça. A ideia
era que você nunca mais precisasse apagar mensagens, já que a capacidade
de armazenamento subiria a cada segundo.
Havia, é claro, um desejo legítimo dos engenheiros da empresa em
oferecer um produto revolucionário, que avançasse a tecnologia. Mas ele
tinha de se pagar, e havia um plano de negócios: o Google, com o
consentimento do usuário, escaneia o conteúdo da mensagem e mostra
pequenos anúncios contextualizados. Repare que depois de algumas trocas
de mensagens sobre uma viagem futura, provavelmente aparecerão links
para promoções de companhias aéreas, às vezes para o seu destino. Isso faz
com que os anúncios sejam mais valiosos para os anunciantes, já que a
chamada taxa de conversão (anúncios publicados versus compras ou cliques
a partir dele) é bem mais alta do que, digamos, um anúncio em uma grande
revista.145
A cada nova funcionalidade gratuita que ganhamos nas redes sociais,
levamos de brinde anúncios mais sofisticados. No Facebook, por exemplo,
se um amigo seu algum dia “curtiu” uma marca de calçados, você poderá
ver na sua timeline uma foto dele junto do anúncio de um novo produto.
Tudo automatizado, como se o seu amigo estivesse endossando aquilo –
algo muito mais efetivo do que uma celebridade qualquer. Cada clique que
damos na internet, link que abrimos em outra página, imagem que curtimos,
é uma migalha digital para os publicitários. O nível de engenhosidade é
cada vez mais incrível: quando você entra em um site como o de um grande
jornal, em menos de um segundo seus dados são enviados para pelo menos
dez empresas de publicidade diferentes,146 que oferecerão anúncios cada vez
mais eficazes (para eles), às vezes em outro site, em outro dia.
Há muito dinheiro envolvido nisso. Jeff Hammerbacker, um dos
primeiros funcionários do Facebook, que saiu da empresa em 2008 por
discordar da lógica de direcionar tudo a anúncios, disse à Businessweek:
“As melhores mentes da minha geração estão pensando em como fazer as
pessoas clicarem em anúncios”.147 Uma enorme parte das startups do Vale
do Silício funcionam oferecendo produtos gratuitos, bancados por
publicidade, e gênios precoces da matemática e computação são contratados
a todo momento para dar sentido (econômico) aos nossos dados.
Não estou seguro de que este contrato que temos hoje, de prover
informações pessoais em troca de produtos gratuitos, seja um negócio justo.
Eu achei particularmente terrível o dia em que vi o meu amigo
“endossando” no meu Facebook um livro que falava de um assunto que ele
detestava só porque algum dia ele tinha curtido a editora em questão – que,
por sua vez, pagou (a Mark Zuckerberg, não ao meu amigo) para usar esses
garotos-propaganda involuntários. Sei que sou minoria, mas depois de
entender como os algoritmos funcionam, estudar a psicologia da
publicidade e ler muito sobre o assunto, ficaria feliz em mudar o contrato
social e pagar um dinheiro justo para ter não só um controle maior sobre o
que as empresas sabem de mim, mas especialmente para não ter publicidade
tão direcionada. Qualquer coisa que provoque uma compra por impulso não
é, em última análise, benéfica para o consumidor já que, como no caso dos
joguinhos viciantes, explora as fraquezas do nosso subconsciente. Gostaria
muito de poder navegar por uma rede com bem menos publicidade, da
mesma forma que fico feliz em morar em uma cidade, São Paulo, que
decidiu não ter outdoors e grandes placas de anúncios. Isso é possível
online? Se quisermos redes mais neutras, que não coletem a informação do
usuário, teremos que nos acostumar à ideia de pagar por elas, a votar com a
carteira.148 Se não quisermos ver um anúncio de um carro antes do vídeo do
aniversário do amigo, ou a tia endossando um produto que sequer
experimentou, precisamos mudar de atitude.
Eu comecei a fazer isso recentemente. Por exemplo: em vez de usar o
Youtube para vídeos e o Facebook para fotos, eu pago cerca de 50 reais por
ano para o Vimeo e cerca de 2 dólares por mês para o Flickr. Além da
qualidade do serviço ser ligeiramente melhor (e o espaço ilimitado), não há
publicidade e eu tenho um controle maior sobre quem pode ver. Ainda há
muito que se discutir sobre a “commoditização” das amizades na era das
redes sociais e a lógica de achar que tudo tem de ser gratuito – volto a isso
adiante –, mas o debate já começou. Em um artigo para a revista Atlantic,
Jathan Sadowski discutiu os contras de um novo aplicativo do Facebook
(ainda em fase de projeto enquanto escrevo) que precisaria de informações
mais detalhadas sobre a localização do usuário:149
“Você pode pensar que é uma boa ideia consensualmente liberar
informação em troca de cupons e promoções personalizadas, ou para avisar
os amigos onde está. Mas o consumo tradicional – de olhar vitrines e
comprar coisas – e o tempo solitário, quieto, são ambos peças importantes
de como nos definimos a nós mesmos. Se a maneira como fazemos isso
começa a ficar sujeita a um monitoramento sempre presente, isso pode,
ainda que inconscientemente, mudar nossos comportamentos e a percepção
sobre nós mesmos. Nós temos que decidir se realmente queremos viver em
uma sociedade que trata cada ação como um dado a ser analisado e
negociado como moeda.”
A escritor inglesa Zadie Smith, por ocasião do lançamento do filme A
Rede Social, definiu o problema de maneira elegante: “Quando uma pessoa
se transforma numa série de dados num website como o Facebook, tudo
nela fica menor: a personalidade individual, as amizades, a linguagem, a
sensibilidade. De certo modo, não deixa de ser uma forma de
transcendência: perdemos nosso corpo, nossos sentimentos contraditórios,
nossos desejos, nossos medos”.150
Será que sabemos o que estamos realmente dando em troca para termos
comodidades gratuitas? Será que realmente vale a pena? Não acho que
temos uma resposta definitiva para essa questão e espero aqui apenas dar
mais gás ao debate. Mas, independentemente da sua posição sobre ceder
mais informações para as empresas em troca de comodidades ou começar a
pagar por elas, é importante saber como controlar o que o mundo sabe –
abertamente – sobre você.

Controlando o fluxo Online, o bom e velho e-mail


continua sendo a maneira mais segura de compartilhar
com um número finito de pessoas as informações mais
delicadas ou mensagens mais pessoais. Não que as outras
redes não garantam privacidade semelhante ao e-mail:
Twitter, Instagram, Google Plus, Facebook e WhatsApp
têm a possibilidade de esconder dos olhos do público em
geral o que queremos que chegue a um círculo restrito.
Pela facilidade da interface, pode ser melhor permitir o
acesso a um álbum de fotos no Facebook a um grupo de
“melhores amigos” do que mandar tudo por e-mail, por
exemplo. O problema é que definir os grupos, controlar o
que aparece para quem, é algo não muito trivial para o
usuário médio. Não faz muito sentido querer ensinar como
melhorar esse controle em um livro, já que a interface
muda significativamente a cada poucos meses. Mas vale
tirar um dia para se educar sobre os controles de
privacidade das redes que você usa diariamente. Com
algum treino, é possível usar bastante as redes sociais e
mesmo assim parecer razoavelmente invisível. Alguns
perfis dos meus amigos mais ativos no Facebook, por
exemplo, parecem estáticos para uma pessoa de fora, mas
eles passam o dia todo interagindo em grupos privados,
em mensagens com outras pessoas ou compartilhando
álbuns de acesso restrito.

A bem da verdade, o Facebook, como empresa, não curte os usuários que


não compartilham muitas informações, já que são alvos menos atraentes
para os anúncios. Por isso, em janeiro de 2012, a rede de Zuckerberg lançou
o Open Graph, uma maneira de ligar o resto da internet ao Facebook e
tornar o compartilhamento ainda mais automático. Pelas configurações-
padrão, se você leu um artigo em um site de notícias conectado, por
exemplo, o título dele aparece para os seus amigos, e se você ouviu uma
música com o aplicativo conectado ao seu perfil, idem.151 A nota dada a um
filme em um site, uma nova conquista em um joguinho ou a compra
realizada em uma Amazon da vida também são, por padrão, transmitidas
pelo mundo – e uma informação a mais para personalizar anúncios. Para
que seus amigos vejam todas essas informações automatizadas, você
precisa autorizar o Facebook a “publicar em seu nome”. Não há nenhum
benefício em fazer isso, mas esta é a opção-padrão, aquela que a rede quer.
Justiça seja feita: apesar de ser a entidade que mais lucra com as nossas
informações pessoais, o Google também criou no seu navegador Chrome
um modo de “navegação anônima” (depois copiado pela concorrência e
chamado de “modo pornô” por alguns), em que os sites visitados não
aparecem no histórico. E com o Google Plus, a rede social concorrente do
Facebook lançada em 2011, o Google simplificou o processo de publicação
direcionada, permitindo a fácil criação de “círculos” de amigos e fazendo
com que as fotos que subimos para o serviço, por definição, permaneçam
ocultas até definirmos quem pode ver. Mas, como disse, todas essas regras
mudam o tempo todo e vale sempre se manter informado sobre como
controlar o que é público.
Mesmo que o que você coloca na rede pareça inofensivo, é lícito ser um
pouco paranoico sobre o que manter visível. “Eu não acredito que a
sociedade entende o que acontece quando tudo é disponível, procurável e
gravável por todo mundo o tempo todo”, afirmou Eric Schmidt 152 (sim,
tenho certa implicância com ele). Na mesma entrevista, ele disse que “quem
devia, não temia” e que acharia normal se os jovens adultos mudassem de
nome para escapar do que está publicado na rede. A afirmação de Schmidt
mostra que o tão alardeado problema da privacidade na rede é por um lado
o fruto de algo controlável pelos usuários – o fluxo e a publicidade das
informações discutidos aqui – e por outro um efeito colateral de algo que
achamos bom: a memória perfeita do Google.

Precisamos aprender a esquecer “Eu não lembro mais


do telefone de ninguém de cabeça”, costumam repetir as
pessoas alarmadas com a terceirização da memória para o
celular. Mas, na verdade, isso não é exatamente um
problema: o número de telefone sempre foi um código
esquisito e arbitrário para nos conectarmos às pessoas.
Esquecer as datas de aniversário também pode ser comum,
e é bom que tenhamos lembretes nas redes sociais para
podermos dar parabéns às pessoas queridas e sabermos o
que é para levar a uma festa. Na busca do e-mail de
trabalho, podemos saber exatamente quando pedimos um
relatório, pelas informações de geolocalização de uma foto
sabemos onde exatamente aquela foto na praia foi tirada e
quando. A memória perfeita do que guardamos nos
computadores é, na maior parte do tempo, benéfica, por
liberar o nosso cérebro da tarefa de lembrar dados
irrelevantes e se concentrar em criar sentido para um
monte de informações – este cenário é razoavelmente
recente mas, como já falei por aqui, nenhuma pesquisa
indica que estamos ficando exatamente mais burros por
causa do Google. Menos profundos “ao vivo”, talvez.

Por outro lado, quando a nossa memória é de alguma forma pública,


quando não temos o controle sobre quem pode ter acesso às nossas
informações e o que dizem sobre nós, a coisa muda – só nós sabemos o
contexto dos pedaços de informação que deixamos para o mundo.153 Viktor
Mayer-Schönberger, professor da Universidade de Cambridge, escreveu um
tratado sobre o problema da memória perfeita da web em seu livro Delete:
the virtue of forgetting in the digital age (Delete: a virtude de esquecer na
era digital, sem tradução para o português154). Mayer aponta que nunca
sabemos exatamente como a informação oferecida a um terceiro será usada.
Uma frase que é atribuída ao cardeal Richelieu, no século 17, define melhor
o problema: “Se alguém me der seis linhas escritas pelas mãos do homem
mais honesto, eu acharia algo que o faria ser enforcado”.
Então, o direito à privacidade pode ser definido, de maneira mais ampla,
como a “proteção do uso não razoável do poder por parte de corporações e
governo”. Mayer lembra que nos anos 1930 o governo holandês fez um
censo detalhado, coletando nome, data de nascimento, endereço e religião
de cada cidadão. Era uma maneira de facilitar o planejamento e as políticas
governamentais. Os holandeses não esperavam a invasão dos nazistas, que
logo tomaram posse do cadastro e perseguiram judeus e ciganos. A
população que foi deportada ou assassinada foi maior na Holanda (73%)
que na Bélgica (40%) ou na França (25%). É um exemplo extremo, mas
mostra que nunca temos certeza do que vai acontecer quando informações
estratégicas caem em mãos erradas.
Quando o escândalo de espionagem da Agência de Segurança Americana
(NSA) estourou em 2013, muitos adotaram uma postura um pouco cínica,
na linha do “se não há algo a esconder, não há por que ter medo” de Eric
Schmidt. Eles apontavam que ninguém foi preso injustamente – até onde
sabemos – pelo fato de o governo dos EUA ter tido acesso às mensagens
online (o quanto e de quem, nunca teremos certeza). Mas essa noção de que
a privacidade consiste apenas em “esconder o mal”, de novo, é superficial, e
a simples ideia de que há alguém monitorando já causa problemas para
pessoas “do bem”.
O governo americano insistia que quase ninguém via os dados, que eram
usados apenas para monitorar atividades “terroristas”, mas logo revelou-se
que há uma pressão muito grande de outras agências para ter acesso a esses
dados.155 O professor de Direito da Universidade George Washington,
Daniel J. Solove, autor de Nothing to Hide: The False Tradeoff Between
Privacy and Security (Nada a esconder: a falsa escolha entre privacidade e
segurança, sem tradução para português)156, elaborou, então, um cenário:
“Suponha que os agentes do governo descobrem que uma pessoa comprou
vários livros sobre como fabricar metanfetamina. A informação faria com
que essa pessoa fosse suspeita de estar construindo um laboratório de
fabricação da droga. O que falta nos arquivos é a histórica completa: a
pessoa está escrevendo um romance sobre um personagem que faz a droga.
Quando ela comprou os livros, ela não pensou em quão suspeitas as
compras pareceriam para os agentes do governo, e seus registros não
indicavam a razão para as compras. Mesmo que ela não esteja fazendo nada
errado, ela poderá querer manter seus registros fora de alcance dos agentes
que poderiam fazer falsas inferências a partir deles”. Se está claro que as
tecnologias conectadas potencializam comportamentos obsessivos, qual
será o impacto para os ligeiramente paranoicos da percepção de que
“alguém está vendo”?
E nem é preciso um esquema de alta tecnologia de uma agência secreta
para despertar essa paranoia. Um banco de dados aparentemente inofensivo
traiu Andrew Feldmar, um renomado psicoterapeuta que mora em
Vancouver, no Canadá. Quando ele quis visitar os EUA, em 2006, o agente
da fronteira pegou o seu passaporte e fez uma rápida consulta no Google.
Um dos primeiros resultados era um artigo de um periódico científico em
que Feldmar conta as suas experiências (científicas) com LSD, 40 anos
antes. Ele não quis saber: coletou as digitais e abriu um arquivo no FBI.
Pelas regras de imigração americanas, pessoas com histórico de
“narcóticos” podem ter sua entrada negada. Outra canadense, Natalie
Blanchard, também foi vítima de informações incompletas usadas contra
ela. Natalie foi diagnosticada com depressão severa e recebia da seguradora
um cheque mensal para se tratar, fora do trabalho. O médico recomendou
que ela se exercitasse e procurasse sair mais, e a mulher, então com 29 anos,
postou algumas fotos alegres no seu Facebook. Depois disso, parou de
receber o dinheiro – a seguradora, que monitorava seus clientes de diversas
maneiras, alegou que precisava reavaliar o seu caso.157
Já temos centenas de exemplos assim. Um jovem de 18 anos que
participou de uma confusão na porta de um estádio de futebol, pode ter seu
nome registrado em uma reportagem de jornal online. Nos próximos anos,
uma busca pelo seu nome – algo cada vez mais comum entre os
empregadores – trará este incidente como primeiro resultado.
Especialmente em relação aos jovens, a visão de uma memória perfeita
global é assustadora, já que fazemos um monte de bobagens (ou idealismos,
sob o enfoque do copo metade cheio) antes de encarar a vida adulta. A
maior parte das pessoas não está ciente de que suas ações e opiniões estão
sendo de alguma forma gravadas, mas se formos calcular todos os
movimentos pensando nas consequências em 10 anos, o que esta
consciência irá gerar? Em um futuro distópico, será que vamos protestar nas
ruas sabendo que isso pode influenciar nossa carreira depois? Vamos fazer
abertamente campanha online para um político no qual acreditamos com
medo de que, um dia, alguém com outra tendência nos contrate?
Outro problema da argumentação de “quem não deve, não teme” é que a
memória perfeita da internet não distingue opinião verdadeira, fato ou
boato. Michael Fertik e David Thompson, diretores de uma empresa
americana especializada em gerenciar imagens na internet e chamada
Reputation Defender (defensora da reputação), escreveram no livro Wild
West 2.0 (O Velho Oeste 2.0, sem tradução para português) que o que os
outros dizem sobre você é quase tão importante quanto o que você fez e
deixou registrado na rede. “É claro que a fofoca anônima e as mentiras são
tão velhas quanto a civilização. Mas, graças à internet, calúnias que antes
seriam limitadas a uma conversa de banheiro ou a um bilhetinho passado de
mão em mão, agora podem ser vistas por empregadores, amigos, família,
paqueras, clientes e qualquer um com acesso à web”, dizem.158 Fertik e
Thompson afirmam que, à medida que as fronteiras entre o online e o
offline desaparecem, ter um perfil sujo (mesmo que injustamente) na
internet é como andar com uma Letra Escarlate.
Presos no passado Precisamos reaprender a esquecer,
como fazemos todos os dias, o tempo todo. O olho
humano capta o equivalente a uma imagem de alta
resolução, como a produzida por uma câmera de 15 MP,
algumas dezenas de vezes por segundo. Multiplique isso
pelos 50 mil segundos de vigília por dia e acrescente todos
os sentidos, e teríamos que ter umas centenas de HDs para
armazenar tudo o que se passa em uma manhã. Mas não
enlouquecemos com esse tanto de informação: estamos o
tempo todo esquecendo o que não é importante, e isso é
essencial para uma vida sadia. As raras pessoas
diagnosticadas com “memória perfeita” (a chamada
síndrome hipertiméstica), não vivem exatamente melhor
que os outros, pelo contrário. O caso mais famoso, o da
americana Jill Price, mostra que saber de todos os detalhes
de todos os seus dias pode ser desesperador: “Imagine se
você conseguisse se lembrar de todos os erros que já
cometeu!”159

Esquecer é bom não apenas para o cérebro ou para a nossa reputação.


Mayer argumenta que para o bom funcionamento da sociedade, é
importante que existam mecanismos de esquecimento coletivo. Decretar
falência permite que você crie um outro negócio. O divórcio, uma nova
vida amorosa. Pessoas que cometeram um crime e cumpriram a pena,
começaram outra vida, sem preconceitos, apenas mudando de cidade. Raros
eram os casos em que a informação não prescrevia de alguma forma. Isso
só acontecia em regimes autoritários. A KGB da União Soviética carimbava
as fichas dos presos políticos com um “a ser preservado para sempre”.
Hoje, qualquer ação digna de nota pode ser “preservada para sempre” na
memória do Google.
E ela não precisa ser necessariamente “criminosa”. Em 2013, o ex-
jogador Ronaldo “Fenômeno” sentiu bem isso quando um vídeo editado a
partir de uma coletiva de imprensa que deu em 2011 registrou que o Brasil
“não precisava de hospitais, mas de estádios”. Naquele momento, no auge
dos protestos contra a gastança de dinheiro na Copa, a coisa pegou muito
mal. Ele usou as próprias redes sociais para se defender: “Um pessoal
postou um vídeo editado com declarações minhas sobre a Copa de dois
anos atrás. Posso de fato não ter me expressado tão bem e a edição que eu
vi na internet é bastante tendenciosa. Era outro contexto. Não é justo usar
como se fosse dito essa semana”.160
Certa vez, quando ainda era editor do site de tecnologia, o dono de uma
relativamente grande empresa que vendia produtos eletrônicos na internet
me telefonou, pedindo para mudar o título de uma reportagem que
havíamos publicado dois anos antes. À época, muitos clientes reclamavam
de atrasos na entrega de mercadorias e a Receita Federal realizava uma
investigação. Tudo foi solucionado, a empresa voltou a operar
normalmente, mas o maldito título espantava potenciais compradores, que
buscavam pelo nome da empresa no Google e viam aquele resultado em
destaque. Acabei mudando a matéria por uma questão filosófica, mas outros
jornais do mundo, como a Folha de S. Paulo e o inglês The Guardian
recentemente publicaram artigos explicando por que não reescreveriam o
passado ao serem confrontados com dilemas semelhantes.
“Por causa da tecnologia digital, a habilidade da sociedade de esquecer
foi suspensa, substituída pela memória perfeita”, diz Viktor Mayer. A
consequência disso é que “o futuro tem um assustador efeito no que
fazemos no presente”. Em How the Mind Forgets and Remembers (Como a
mente esquece e se lembra, sem tradução para o português), o psicólogo de
Harvard Daniel Schacter diz que “as influências presentes têm um papel
muito mais importante em determinar o que é lembrado do que os próprios
fatos do passado”.
A nossa memória é imperfeita. Tendemos a lembrar mais de coisas felizes
quando estamos felizes, de coisas que confirmam o que acreditamos mais
do que as que negam. Não posso reforçar o suficiente o quanto o
esquecimento tem um papel importante nas decisões humanas. Ele nos
permite generalizar e abstrair experiências, e consolidar mudanças de
pensamento depois de um longo tempo. O fato de termos retratos perfeitos
do passado sempre disponíveis – não apenas em imagens, mas em
discussões que tivemos ou opiniões que escrevemos – pode prejudicar esse
processo de reescrever a memória.
Em 2012, para dizer que eu estava me contradizendo em um artigo que
escrevi, um dos comentaristas do site apontou para um texto de 2007, no
qual eu tinha uma opinião radicalmente oposta. Eu tive que me “explicar”,
contextualizar tudo e travar um debate com os céticos porque os
conspiracionistas dos comentários (uma espécie comum da internet)
achavam que um fator externo, possivelmente o dinheiro de um anunciante,
teria feito eu mudar de ideia. Uma bobagem: amadurecer a argumentação e
mudar de posição sobre algum assunto deveria ser algo positivo, celebrado
pela sociedade. Steve Jobs costumava dizer isso – e vários produtos
lançados pela Apple mostram como o que ele achava que era o “correto”
mudou com o tempo. Jeff Bezos, CEO da Amazon, disse que “as pessoas
que estavam certas boa parte do tempo eram as pessoas que mudavam de
opinião várias vezes”.161 Ele não acha que a consistência do pensamento é
algo particularmente positivo. Mas se externalizamos a nossa opinião o
tempo todo para a memória perfeita da web, fica mais difícil de o
pensamento evoluir, já que o que nos contradiz está sendo jogado o tempo
todo na nossa cara, e é mais fácil defender o que falamos do que ter a
humildade de admitir que provavelmente estávamos errados. Essa loucura
de tentar enquadrar todo mundo no passado é bastante visível nas
campanhas políticas, onde recortes e vídeos de 10, 20 anos atrás circulam
para assustar o presente. Ninguém parece ter o direito de evoluir.
Certo dia, ao procurar um inocente livro na casa da minha mãe, encontrei
o boletim de ocorrência de um grave acidente de carro no qual estive
envolvido em 1999. Fiquei dois dias mal. No dia a dia, relembro do fato
pouquíssimas vezes, já que me afastei dos gatilhos que desenterram esse e
outros traumas relativamente superados. Mas com a internet, se não
tivermos cuidado, podemos encontrá-los o tempo todo. Em outra ocasião,
procurava o nome de um bar ao qual tinha ido com a minha melhor amiga.
Quando fiz a busca no meu e-mail, dei de cara com uma gigantesca
discussão que tivemos, registrada no chat (o Gmail também armazena todos
os chats do GTalk), na época que eu ainda tinha longas discussões com as
pessoas na internet. Foi como reviver com todos os detalhes algo que eu já
tinha apagado da minha cabeça. Obviamente, deletei essa mensagem
depois. Blogs pessoais que mantive em momentos difíceis também foram
sumariamente apagados, e eu espero que a minha amiga Márcia tenha feito
tudo isso a respeito do fim do seu relacionamento.
Não é necessário também uma queima de arquivo completa.
Antigamente, era comum guardar fotos e caixas de sapato com cartinhas no
fundo de um armário ou no sótão da casa. Viktor Mayer sugere que façamos
algo do tipo: guarde fotos antigas, e-mails trocados com a ex-namorada ou
outros pedaços de memória digital em um HD externo e deixe longe, para
ficar levemente mais difícil de você esbarrar em algo assim. Pode ser uma
alternativa para alguns, mas de novo a solução para o problema é
simplesmente compartilhar e documentar menos, deixar para ter as
conversas importantes ao vivo, que o nosso cérebro fará um bom trabalho
em separar o que vale a pena ser lembrado e construir nosso caráter – não
precisamos sempre de todos os detalhes.
Toda essa discussão sobre as “tecnologias de esquecimento” deve ficar
mais recorrente à medida que a memória perfeita da internet fizer mais
vítimas, ou quando outros escândalos, como o do NSA, nos EUA, ou do
vazamento de dados do TRE no Serasa, no Brasil, se tornarem mais
frequentes. Na Europa, onde a preocupação com a privacidade é muito
maior do que no Brasil ou nos EUA, discute-se uma lei para aplicar uma
“data de validade” nos dados que colocamos na rede: depois de cinco anos
que criarmos um álbum no Facebook, por exemplo, receberíamos uma
mensagem perguntando se ele deveria ser apagado. A ideia é fazer as
pessoas refletirem sobre o que estão guardando.
Em seu livro Code, Lawrence Lessig detalha um sistema onde o próprio
usuário poderia editar os metadados de um arquivo para dizer quem,
quando e por quanto tempo ele pode usar as suas informações pessoais.
Tecnicamente, nós temos essa possibilidade: quando alugamos um filme em
uma “locadora virtual”, o arquivo tem validade de um dia, não pode ser
copiado, e depois some. O mesmo acontece há décadas offline: alguns
advogados especializados em privacidade pregam que os dados têm de ser
apagados uma vez que serviram ao que se propunham. Da mesma forma,
uma vez que a fatura do cartão ou telefone foi cobrada e paga, por exemplo,
não há motivo para manter os registros. A esperança de que a mentalidade
das pessoas comece a mudar surge com aplicativos como o Snapchat,
espécie de programa de chat em fotos para celulares que propositadamente
apaga todos os registros depois de dez segundos de visualização. Evan
Spiegel, fundador do serviço, diz que “as pessoas estão vivendo com o peso
maciço de ter de gerenciar uma versão deles mesmos. Isso está tirando toda
a diversão de se comunicar”.162
O mundo online nunca foi totalmente separado do offline, então
precisamos selecionar quem vai receber as nossas mensagens e tomar
cuidado com o que falamos publicamente – nunca saberemos o contexto em
que a nossa memória será reavivada. Criar tecnologias de esquecimento e
mudar os nossos próprios hábitos não resolvem todo o problema.
Precisamos convencer as outras pessoas a, digamos, cuidarem da própria
vida.

Little Brothers Já é difícil aprender todos os mecanismos


para preservar a privacidade online e controlar o excesso
de compartilhamento nas redes sociais. Mas a tarefa fica
ainda mais difícil porque nem tudo está sob nosso
controle. Os amigos, estranhos ou desafetos podem fazer
emergir coisas que não gostaríamos. Mesmo sem querer.

A Universidade do Texas em Austin tem uma espécie de grupo de apoio


para jovens que não revelaram sua homossexualidade para o mundo. O
grupo também é um coral chamado “Queer Chorus” (algo como “coral
bicha”) e como tantos outros grupos, possui uma página no Facebook.
Enquanto escrevo o livro, o administrador de um desses grupos pode
adicionar pessoas na rede social sem que elas o autorizem previamente. E,
como tanta coisa que acontece no Facebook, se um colega de primeiro grau
adicionar você ao grupo de “ex-alunos do Perpétuo Socorro”, os seus
seguidores receberão essa informação, quer você queira ou não. Lembre-se,
o Facebook quer saber e mostrar, por padrão, toda microcoisa que acontece
com você. No caso do grupo de colegas do colégio, isso é ok. Mas para os
membros do Queer Chorus, nem tanto: em um caso bastante discutido nos
EUA, a estudante Bobbi Duncan ainda não havia falado a respeito da sua
opção sexual para a família, ultraconservadora, quando o seu pai viu que ela
havia entrado no coral. Imediatamente ele ligou, deixou dezenas de
mensagens furiosas, pedindo explicações. A mesma coisa, no mesmo coral,
aconteceu com Taylor McCormick163 – ambos eram extremamente
cautelosos com as suas atualizações na rede, mas foram “saídos do armário”
por uma atualização automática do Facebook, que aconteceu por
desinformação do administrador do grupo. À época, o Facebook disse
apenas que as pessoas precisavam se informar melhor sobre as
configurações.
No Brasil, um adolescente judeu virou motivo de piada quando a
produtora do seu vídeo de Bar Mitzvah publicou o clipe no Youtube, em
2012. O vídeo pode ser considerado brega e até engraçado, da mesma forma
que qualquer vídeo de festa de 15 anos é brega quando o vemos depois de
velhos, mas ele era destinado apenas ao garoto, à família e aos amigos. O
problema é que ele estava aberto em uma rede aberta – a produtora não teve
o cuidado de marcar o clipe como privado. Um site de humor descobriu, fez
piada com as montagens toscas, a música e, pronto, o menino teve bem
mais do que 15 minutos de fama. Ou, melhor, de tiração de sarro. Que
começou quase inofensiva, mas como acontece em qualquer espaço de
comentários do Youtube e dos sites que republicaram, as pessoas que nunca
haviam visto o garoto de 13 anos pareciam disputar para ver quem fazia a
piada mais ofensiva, com referências à religião. “Saudades, Auschwitz”,
“Judeu é tudo rico e tem mau gosto”, “Vai sofrer bullying o resto da vida
kkkkkkkkk”, “Cadê Hitler quando a gente precisa dele” e outras pérolas
ficaram linkadas ao vídeo que havia sido feito para celebrar um momento
importante da vida do garoto.
No dia seguinte, a produtora tirou o vídeo do Youtube, mas já havia
várias cópias, que continuaram sendo mandadas para o site. Semanas
depois, a família ganhou um processo na Justiça contra o Google (dono do
Youtube), alegando que o site seria responsável por permitir que novas
versões aparecessem à revelia do menino, que, obviamente, estava sofrendo
constrangimento constante. Não existe exatamente censura prévia, mas o
Google tem tecnologia para identificar cópias de um determinado vídeo – se
eu tentar fazer o upload de um clipe que tenha uma música protegida por
direitos autorais, o Youtube consegue tirar do ar imediatamente, ou ele
mantém o vídeo sem o áudio. Mas essa tecnologia e “bom comportamento”
do Google só entraram em cena depois que o gigante levou processos
milionários das grandes gravadoras e estúdios. É preocupante que a
empresa não use com a mesma velocidade essa tecnologia para proteger
pessoas comuns, e por isso a família do menino processou o Google.
Mais preocupante ainda é ver como a maior parte do público que faz
comentários na internet ficou do lado do site que hospeda todos os vídeos
engraçados que assistimos diariamente. O argumento de defesa é o mesmo e
costuma se apoiar na analogia de que “você não pode processar a
Tramontina por alguém ter morrido esfaqueado”. Mas a coisa não é tão
simples assim. Primeiro, porque a Tramontina não lucra mais por causa dos
assassinatos, e o Youtube lucra com vídeos difamatórios e constrangedores,
já que ele fornece anúncios linkados aos clipes e ganha dinheiro em cima
dos visitantes. A outra questão é que, ainda que não possa (nem deva) fazer
uma censura prévia, o Youtube tem ferramentas para barrar esse tipo de
conteúdo depois de um pedido do usuário ou de uma decisão judicial. É
claro que a responsabilidade original da trapalhada é da produtora que
deixou o vídeo público, mas é importante que apoiemos o direito de
esquecimento da pessoa atingida.
A internet ainda é vista como um faroeste e por algum motivo o direito da
“massa” sempre se sobrepõe ao individual. As pessoas querem ter o direito
de compartilhar arquivos de filmes mesmo que os estúdios não queiram, de
assistir vídeos mesmo que o personagem principal queira vê-los fora do ar,
de ver fotos íntimas encontradas em telefones de atrizes hackeadas, de fazer
comentários em sites à revelia de quem publicou o conteúdo. Qualquer
movimento em contrário é visto como “censura”.
Recentemente, aconteceu uma das maiores batalhas sobre o direito de
esquecer versus o direito de linchamento da massa nas redes sociais. O
procurador-geral do Reino Unido, Dominic Grieve, se reuniu no fim de
fevereiro de 2013 com representantes do Twitter, do Facebook e do Google
para tentar achar uma solução tecnológica que impedisse as pessoas de
compartilharem fotos identificando Jon Venables ou Robert Thompson.
Eles mataram um menino de 2 anos quando tinham apenas 10 – foram os
mais jovens condenados por homicídio na história daquele país. Depois de
10 anos presos e outra década na condicional, afastados do público, eles
mudaram de nome – as suas informações são protegidas. Mas vários
britânicos continuam compartilhando fotos de sua “real identidade” não
confirmadas, que podem não só minar a capacidade de eles recomeçarem a
vida como afetar inocentes que possam ser identificados com assassinos.
Novamente, há “cyberlibertários” que dizem que isso é pura censura, como
se saber quem eles são trouxesse algo de positivo para a sociedade.
Esse tipo de comportamento, de direito ilimitado do grupo, que vira turba,
associado a um déficit de empatia dos nossos tempos, precisa ser repensado,
e cada um de nós pode ajudar com algumas pequenas ações. A rede é
social, mas alguns mandamentos ajudam (ou pelo menos me ajudaram) a
manter a internet mais pacífica: não adicione alguém a algum grupo sem
consultá-lo, não marque as fotos de outras pessoas sem o consentimento
delas, não escreva relatos envolvendo outras pessoas em ambientes
públicos. Tudo pode parecer inofensivo mas, vale repetir, o contexto define
o valor da privacidade. E é importante que a própria pessoa possa ter
controle sobre sua imagem, na medida do possível.
Ainda estamos aprendendo a lidar com todos esses dilemas e as redes
sociais são bastante novas. Posso ter soado um bocado negativo aqui na
discussão da privacidade, mas não me entendam mal: com os devidos
cuidados, as redes sociais são ótimas. Sei que dizer como cada um deve
usar o Facebook ou o Twitter é como dar dicas de como se comportar na
cidade: há muitas opções, muitos caminhos e cada pessoa encontra a
felicidade de uma maneira diferente. Mas acho que podemos concordar que
estamos fazendo um uso “correto” quando abrimos o Facebook para nos
manter informados sobre as pessoas que importam, para ter contato com
coisas legais – de vídeos de gatinhos a artigos que façam a gente mudar a
nossa percepção sobre o assunto – ou para compartilhar o que estamos
fazendo, de maneira enriquecedora. Leves massagens no ego fazem bem,
mas se levarmos toda a nossa vida para dentro, de amores a barracos de fim
de relacionamento, fica mais difícil “sair” e começar de novo. É um pouco
romântico dizer isso a essa altura, mas é preciso deixar claro: as redes
sociais são realmente boas quando elas iniciam, retomam ou reforçam as
nossas vidas sociais fora das telas. Ver a foto do filho recém-nascido de um
amigo que não vemos há muito tempo é legal, mas usar as redes para
marcar uma visita a esse novo pai é certamente melhor.
120 Eu poderia ter usado o truque de Jack Cheng, que no romance These Days, lançado em 2013, não
dava nomes ao Facebook ou ao Twitter e dizia que seu personagem principal “ligava o telefone e
checava a stream” (corrente, no sentido de água, em inglês). Por mais que cada rede tenha suas
particularidades, a ideia de que sempre ligaremos e teremos uma correnteza cronológica de novidades
dos amigos para ver o que acontece parece ser uma constante.

121 http://mashable.com/2013/08/13/40-percent-americans-use-facebook-every-day/

122 Robin Dunbar, Grooming, Gossip, and the Evolution of Language (Harvard University Press,
1991)

123 Para quem não é tão versado nas redes sociais: “Timeline”, ou linha do tempo, é a listagem de
“atualizações de status”, em ordem cronológica, de seus “amigos” do Twitter. No Facebook o nome
técnico disso é “Newsfeed”, ou “Feed de Notícias” – a timeline é a linha do tempo pessoal no seu
perfil. Mas como o Twitter veio antes, é comum usar “Timeline” para as duas coisas.

124 http://online.wsj.com/article/SB10001424127887324900204578284511579301742.html

125 88% do uso do smartphone se dirige às redes sociais. Fonte: pesquisa Ipsos/Marplan/Motorola
2012

126 http://news.discovery.com/tech/dont-blame-facebook-narcissism-epidemic–110804.htm

127 Jonathan Franzen, parte da coletânea Como ficar sozinho - Companhia das Letras, 2012.

128 O chamado-padrão é “No que você está pensando?”

129 A bem da verdade, vários comediantes reclamam desse poder do Youtube de estragar o fim da
piada. http://www.youtube.com/watch?v=jP–9K9lXRnw

130 http://www.huffingtonpost.com/2012/09/05/oversharing_n_1857182.html

131 http://phys.org/news/2013–08-facebook-photos-relationships.html

132 “Polimentos intermináveis para alcançar o brilho social”. Em Vida Simples, setembro de 2012.

133 Adrian Chen, Don’t be a stranger - New Inquiry. http://thenewinquiry.com/essays/dont-be-a-


stranger/

134 De certa forma, as salas do Internet relay chat podem ser consideradas as primeiras redes sociais
fortes no Brasil. Havia canais famosos, turminhas, hierarquia (os “administradores” ou OP) e os
IRContros, em que as pessoas se encontravam em carne e osso. Por não exigir conexão muito boa
nem computadores poderosos, o mIRC durou bastante tempo, e só foi ser substituído por programas
de chat no início dos anos 2000.

135 Neste sentido, o Orkut tinha uma grande vantagem sobre o Facebook, já que ele permitia grupos
mais democráticos, abertos a todo mundo.

136 http://www.psychologicalscience.org/index.php/publications/journals/pspi/online-dating.html

137 Entrevista encontrada no livro Wait – the art and science of delay.
138 http://www.wired.com/business/2010/04/report-facebook-ceo-mark-zuckerberg-doesnt-believe-
in-privacy/

139 http://papodehomem.com.br/deus-esta-vivo-nas-fibras-oticas-wtf–23/

140 http://mashable.com/2013/08/15/man-fired-weed-twitter/

141 http://tecnologia.uol.com.br/noticias/redacao/2012/05/16/justica-condena-universitaria-por-
preconceito-contra-nordestinos-no-twitter.htm

142 http://blogs.smartmoney.com/advice/2012/05/21/does-facebook-wreck-marriages/

143 www.youtube.com/watch?v=CeQsPSaitL0

144 http://venturebeat.com/2012/01/29/google-advertising/

145 O Google é conhecido por ter revolucionado a maneira como buscamos a internet, mas o
impacto dele na publicidade é economicamente mais relevante até. Quando uma concessionária de
carros compra um espaço de 30 segundos no intervalo de um jornal local da TV, por exemplo, ela
está gastando, digamos, R$ 10 mil e a maior parte das pessoas assistindo não vai se interessar. Se ela
anunciar no Google, a concessionária consegue canalizar a atenção da pessoa exatamente no
momento que o potencial comprador está pesquisando por um modelo específico de carro – e ela só
vai gastar dinheiro de publicidade quando alguém clicar no anúncio, que tem uma produção muito
mais barata que um filme para a TV, por exemplo.

146 http://www.theatlantic.com/technology/archive/2012/02/im-being-followed-how-google–151-
and–104-other-companies–151-are-tracking-me-on-the-web/253758/

147 http://www.businessweek.com/magazine/content/11_17/b4225060960537.htm

148 Há alguns programinhas para navegadores (plug-ins) que não mostram a publicidade de diversos
sites. Isso pode resolver o problema individualmente, mas não muda a lógica da rede e ainda tira o
sustento mais honesto de sites de notícias, por exemplo.

149 http://www.theatlantic.com/technology/archive/2013/02/why-does-privacy-matter-one-scholars-
answer/273521/

150 Zadie Smith, Quero ficar na Geração 1.0. Revista Piauí, fevereiro/2011.
http://revistapiaui.estadao.com.br/edicao–53/megabytes/quero-ficar-na-geracao–10

151 É interessante como a ficção que as pessoas criam sobre elas mesmas nas redes sociais
(normalmente mais cultas que efetivamente são) pode ser traída pelos mecanismos que registram
nossa atividade no computador. O last.fm, por exemplo, que marca quantas vezes ouvimos cada
música, permite que você apague do seu histórico canções desabonadoras. Vendo a lista de músicas
mais apagadas - que pode ser acessada em http://playground.last.fm/unwanted -, parece que ninguém
quer ser conhecido como “o cara que ouve Lady Gaga o dia todo”.
152 http://www.telegraph.co.uk/technology/google/7951269/Young-will-have-to-change-names-to-
escape-cyber-past-warns-Googles-Eric-Schmidt.html

153 Tive um (saudável, diga-se) debate com Eduardo Pinheiro quando ele publicou o artigo sobre o
aspecto positivo da falta de privacidade, na teoria de resgate da moral comum. Meu argumento contra
a tese era justamente que o julgamento de algum deus era mais “justo” porque ele saberia de todos os
detalhes. O julgamento da sociedade não, porque ela prefere recortes de realidade.

154 http://press.princeton.edu/titles/8981.html

155 http://www.nytimes.com/2013/08/04/us/other-agencies-clamor-for-data-nsa-compiles.html?
hp&_r=1&

156 http://chronicle.com/article/Why-Privacy-Matters-Even-if/127461/

157 http://abcnews.go.com/Technology/AheadoftheCurve/woman-loses-insurance-benefits-
facebook-pics/story?id=9154741

158 Michael Fertik e David Thompson, Wild West 2.0: How to Protect and Restore Your Reputation
on the Untamed Social Frontier (2010) - AMACOM

159 http://super.abril.com.br/cotidiano/mulher-nao-consegue-esquecer–447640.shtml

160 http://www.lancenet.com.br/selecao/Ronaldo-defende-afirmacao-Copa-
hospital_0_940705941.html#ixzz2bX4NBM8f

161 http://37signals.com/svn/posts/3289-some-advice-from-jeff-bezos

162 http://www.forbes.com/sites/jjcolao/2012/11/27/snapchat-the-biggest-no-revenue-mobile-app-
since-instagram/

163 http://online.wsj.com/article/SB10000872396390444165804578008740578200224.html
4. Excesso de informações “Se
amplificarmos tudo, não ouvimos nada.” –
Jon Stewart164

Em 1550, o escritor italiano Anton Francesco Doni reclamava que, por


causa da invenção da imprensa, havia tantos livros que era impossível
sequer ler os títulos. Edgar Allan Poe comentou em 1845: “A enorme
multiplicação de livros em todos os ramos do conhecimento é um dos
grandes perigos dessa era, já que apresenta um dos mais sérios obstáculos
para a aquisição de informação correta”. Em 1967, Caetano olhava as
bancas de revista e, em Alegria, Alegria, perguntava: “Quem lê tanta
notícia”?
Desde que aprendemos a escrever, se produz muito mais informação do
que é humanamente possível consumir. Mas lendo o noticiário sobre
tecnologia, parece que um problema quase tão grande quanto o nosso vício
pelas telas é a “síndrome do excesso de informação”, a nossa tradução para
o information overload, que estampou capas e mais capas das revistas
semanais, especialmente de negócios. Ao descrever o “problema”, as
pessoas usam comumente a palavra “bombardear”, como se um avião
estivesse jogando cargas explosivas de notícias, atualizações dos nossos
amigos e e-mails. Como se não conseguíssemos desviar.
É bem verdade que hoje temos mais oportunidades para sermos expostos
a informações. Apesar da crise da mídia impressa, as bancas ainda estão
cheias de títulos, há mais livros sendo publicados por ano, os grandes
portais têm cada vez mais sites afiliados, as TVs a cabo ganham mais
canais, há jornais gratuitos onde quer que você vá e, até no metrô e no
ônibus, as TVs passam o resumo das notícias e das novelas. Isso tudo sem
contar a internet e as redes sociais.
Ainda assim, como várias moléstias deste início de século, a síndrome de
excesso de informação não existe. Não era um problema no século 16 e
continua não sendo hoje, a não ser que queiramos. Porque o consumo de
informações ainda é – ou deveria ser – um processo “ativo”. As pessoas
mais velhas costumam reclamar que ligam a TV e são “bombardeadas” com
“sem-vergonhices”, mas é preciso ligar a TV em um canal e horários
específicos para isso. Nós temos o controle. A espécie de “vício” por estar
atualizado o tempo todo é, na verdade, um sintoma de outros transtornos
obsessivos, como tratamos nos capítulos anteriores. Não quero livrar a cara
da internet: lembre-se que ela não é uma tecnologia neutra. De certa forma,
ela ajuda a gerar a ânsia de querer estar por dentro de todas as notícias do
mundo e, ao dar um megafone para qualquer pessoa, permite um excesso de
ruído.
“Excesso de informação” não deveria ser considerado algo ruim, se você
for otimista: nunca tivemos acesso tão fácil a informações com capacidade
de melhorar nossas vidas. Fazendo um paralelo com a nutrição: também
nunca tivemos acesso a tanta comida nutritiva, de qualidade, e
relativamente barata. Mas estamos mais gordos, e revistas de dieta vendem
mais a cada ano. O que vou tratar neste capítulo é: por que o vício em
informação do tipo fast-food, gordurosa, é mais preocupante que o simples
bombardeio? E, por mais que os “sabáticos da tecnologia” ou as
desconexões de e-mail sejam interessantes, assim como qualquer
nutricionista pode dizer, uma dieta de 15 dias não vai criar muito mais que
um bem-estar temporário. O importante é mudar os hábitos de consumo.

Quem precisa de tanta notícia?

Nossa sociedade endeusou o excesso de informação. Para mostrar


seriedade, os políticos afirmam que leem três jornais assim que acordam;
um operador da Bolsa sempre tem pelo menos dois monitores na sua frente,
para acompanhar tudo em tempo real; os canais de notícias garantem que
nos deixarão “bem informados sobre tudo” e buscamos isso, ainda que, no
fim do dia, não fique claro que diferença fez saber os resultados do
campeonato francês ou os detalhes de uma nova enchente no Sudeste
asiático. Poucos acham que “informação em excesso faz mal”, por mais que
a maneira que escolhemos para consumi-la – cada vez mais, sentados diante
de uma tela –, possa arruinar nosso senso de tempo e aumentar o
sedentarismo.
Nós nos vangloriamos de bibliotecas particulares repletas, mesmo que
não tenhamos lido metade do que está na estante. Pela internet, guardamos
páginas nos favoritos para ler depois e nunca voltamos a elas; sintonizamos
o rádio de manhã e ouvimos a situação do trânsito em uma rua que nunca
vamos pegar. Parece que precisamos nos mostrar bem informados, então
gastamos tempo “lendo” algo. Eu mesmo, para explicar quanto tinha
investido em pesquisas para este trabalho, precisei dar um número: “li mais
de 30 livros”, o que é bastante verdade. Mas se fosse “li 10 livros, conversei
com bastante gente e passei dias pensando sobre o assunto”, talvez o meu
resultado fosse igual ou melhor, mas para as pessoas não haveria o mesmo
impacto. Preciso de números grandes.
Quando era pequeno, os adultos me consideravam “inteligente” porque eu
tinha alguma facilidade para guardar dados aleatórios. Sabia a capital de
Madagascar e Belize basicamente porque havia um atlas que ficou alguns
anos no banheiro. Por muito tempo, ser inteligente era sinônimo de
armazenar uma quantidade grande de informações, ideia imortalizada na
expressão “fulano é uma enciclopédia ambulante”. Hoje, quando a
Wikipédia e o Google estão no bolso de boa parte das pessoas, arruinando o
status de gênio em conversas de bar, precisamos de uma nova definição
para o termo “inteligência”. Nassim Taleb propõe: “Eles acham que
inteligência é notar coisas que são relevantes (detectar padrões); em um
mundo complexo, a inteligência consiste em ignorar coisas irrelevantes
(evitar padrões falsos)”.165

Ser inteligente, hoje, é saber ser seletivamente


ignorante Quando a internet começou a ganhar força,
dizia-se que estávamos entrando na “era da informação” e
que quem tinha informação, tinha poder. Mas os gurus do
marketing já riscaram esse conceito dos últimos livros
sobre o assunto. Estamos agora, aparentemente, na era da
“economia da atenção”: como praticamente todo tipo de
informação é abundante e gratuita, a moeda passou a ser
literalmente a atenção do usuário. Quanto mais tempo ele
passar em uma página ou serviço, mais ele nota e clica em
anúncios, mais valiosa é essa página ou aplicativo da rede.
Isso também é verdade offline, é claro: apresentadores de
programas ao vivo acompanham o Ibope e alongam ou
encurtam uma atração dependendo dos números. Mas a
medição na internet é muito mais precisa.

Já falei um pouco dos problemas de termos tudo gratuito na internet no


capítulo anterior, mas sempre vale reforçar: quando você acessa uma página
gratuita, você não é o cliente. Quem lê um grande site de notícias e não
paga, não é cliente, mas quase sempre a mercadoria a ser vendida para os
anunciantes. Essa distinção é importante porque o papel dos que oferecem
os produtos de mídia – das redes sociais aos portais – é prender a sua
atenção. E há vários golpes baixos, que vão atrás dos seus instintos. Por
exemplo: objetivamente, estamos no período mais pacífico da história. Há
menos fome, miséria, menos guerras, menos mortes violentas, uma chance
menor de qualquer pessoa ser assaltada na rua. Ainda assim, a sensação de
insegurança é a mesma, se não pior, do que décadas atrás, porque os casos
de violência chamam a nossa atenção. O articulista Hélio Schwartsman
explica que isso acontece por causa da maneira como o nosso cérebro de
homo sapiens evoluiu, cercado de perigos. 166
“Hoje em dia, já não dependemos tanto de reações rápidas para continuar
vivos, mas os mecanismos cerebrais que nos fazem monitorar possíveis
ameaças e imaginar o pior seguem firmes e atuantes. Destacam-se aqui as
amígdalas, estruturas localizadas nos lobos temporais associadas à memória
e ao aprendizado emocionais, notadamente o medo. Sem muitos perigos
silvestres para vigiar, as amígdalas se voltam para o que estiver a seu
alcance. E, num contexto em que centenas, talvez milhares de notícias
disputam diuturnamente nossa atenção, são justamente aquelas que
despertam nossos instintos de defesa – isto é, as negativas – que acabam
vencendo.”
A socióloga Danah Boyd colocou isso em termos mais claros na Web 2.0
Expo de 2009, fazendo novamente analogia com a questão alimentar:
“Nosso corpo é programado para consumir gordura e açúcar porque eles são
raros na natureza… Da mesma forma, nós estamos biologicamente
programados para prestar atenção em coisas que nos estimulam: um
conteúdo que seja nojento, sexual ou uma fofoca que seja humilhante,
embaraçosa ou ofensiva. Se não tomarmos cuidados, vamos desenvolver o
equivalente psicológico da obesidade. Nós vamos descobrir que estamos
consumindo o tipo de conteúdo que é o menos benéfico para a sociedade
como um todo”.167
Informação gordurosa e mídia sempre andaram juntas. Há a violência que
povoa os Cidade Alerta da vida na TV e garante o lucro de jornais com
poucas páginas e muito sangue. Como a notícia na internet, amplamente
gratuita, requer cliques para atrair anunciantes, a lógica apelativa ganha
mais reforço, e nem falo apenas das fotos de subcelebridades com vestidos
reveladores ou do casal flagrado fazendo sexo na capa. A qualquer
momento em que você entrar em um portal, haverá declarações políticas
fora de contexto (para ficarmos mais bravos); lançamentos de carros ou
celulares que são apenas marginalmente melhores que o modelo do ano
anterior, mas despertam o nosso desejo de status, e pesquisas científicas
duvidosas, que geram manchetes interessantes.
Nada disso é útil, mas a oferta desse tipo de produto é cada vez mais
comum. A simpática editora de um grande portal que encontrei certa vez
reclamava em um almoço que esse fenômeno era “reflexo da classe C”, que
se interessava mais por assuntos popularescos. É uma visão distorcida. Na
prática, o fenômeno tem mais a ver, de novo, com a “ferramenta” internet:
se antes, um editor de um jornal impresso teria que preparar um cardápio
elaborado, para agradar todo tipo de público, e colocar no destaque o que
ele achava mais importante, hoje algoritmos e todo tipo de estatística dizem
em tempo real o que as pessoas realmente estão lendo. E vira um ciclo
vicioso de não notícias que têm de ocupar um site que precisa ser atualizado
em intervalos cada vez mais regulares. As fotos de uma cobra gigante
encontradas na Malásia foram muito acessadas? Por que não jogar um vídeo
deste panda gripado?
É tentador colocar a audiência aqui como vítima desse noticiário
apelativo, e de fato não podemos livrar a cara da mídia. Nassim Taleb, em
seu livro Antifragile (Antifrágil, de 2013, ainda sem tradução para o
português), explica que a mídia incorre constantemente na iatrogenia –
termo normalmente usado na medicina para descrever quando o médico,
tentando tratar e ajudar o paciente, acaba piorando a saúde dele. “Eles [os
jornais] precisam encher as suas páginas todos os dias com uma série de
notícias – particularmente as notícias apresentadas por outros jornais. Mas
para fazer a coisa certa, eles deveriam aprender a ficar em silêncio na
ausência de notícias significativas. Os jornais deveriam ter duas linhas em
alguns dias, 200 páginas em outros – mantendo a proporção adequada de
sinal e ruído. Mas é claro que eles querem fazer dinheiro e precisam vender
pra gente junk food. E junk food é iatrogênica”.
Parece fácil pra mim agora, em um livro e não nos sites em que trabalhei,
dizer isso. Mas Taleb tem a mais absoluta razão. Nós – falo aqui em nome
de quase toda mídia – produzimos ou reciclamos informação demais, sem
muita razão aparente. Apenas porque “sempre foi assim”. Talvez em alguns
anos mais sites descubram que publicar “menos” informações é um
caminho melhor – para os leitores e produtores de conteúdo, que têm mais
tempo de se debruçar sobre os assuntos.
Mas parece que esse dia está longe de chegar, e se a mídia em geral ataca
nossos sentidos primários e tenta nos entupir de informação, somos
cúmplices dando audiência. Porque, e isso é importantíssimo repetir, temos
o controle: consumir informações ainda é um processo ativo. Na TV isso
sempre foi mais óbvio: se achamos um absurdo a exploração das pessoas
em A Fazenda, simplesmente mudamos de canal, não damos audiência e se
todos votarem com o controle remoto, a programação muda. Na internet é a
mesma coisa: podemos escolher não entrar no portal, não entrar em
discussões vazias, não dar ibope à polêmica fabricada, não clicar em
galerias de fotos quase iguais.
Da mesma forma, podemos eliminar a redundância. Se você tem o hábito
de abrir várias vezes por dia (algo não muito recomendável) um mesmo
site, não faz sentido segui-lo no Twitter, ou “curtir” sua página do
Facebook. Vão ser as mesmas notícias. Aliás, raramente faz algum sentido
seguir a página de marcas ou veículos de imprensa nas redes sociais. É
muita informação repetida.
É importante ter opiniões variadas, mas a maior parte da grande mídia na
internet, e mesmo os blogs maiores, se concentra em fazer o hard news, ou
a informação mais crua. Faz pouco sentido ler as mesmas notícias, os
mesmos relatos de uma partida de futebol ou o resumo do discurso de um
senador, em sites diferentes. Eu gosto de escolher apenas um jornal para
acompanhar o grosso da notícia e uso o Twitter, colunas de opinião e alguns
blogs menores para ver as análises dos assuntos. Ativistas pela
democratização da mídia podem dizer que estou reforçando o monopólio,
mas mantenho todas as outras vias abertas, usando indicações de amigos
como ferramenta de descoberta.
O importante é não exagerar no mesmo grupo alimentar. Como Taleb
explica, o que estão servindo para a gente todo dia é junk food: apetitosa,
nos pega pelos instintos, mas em última instância faz mal. “As notícias se
referem em geral a coisas sobre as quais não temos nenhuma influência. A
repetição diária de informações sobre assuntos diante dos quais não
podemos agir nos torna mais passivos. Ela nos deprime até termos uma
visão de mundo que é pessimista, insensível, sarcástica e fatalista”,
sentencia o suíço Rolf Dobelli,168 autor do ótimo A arte de pensar
claramente.
Outro que fez uma analogia entre o excesso de informação e o consumo
de comidas pouco saudáveis foi o americano Clay A. Johnson, em seu livro
Information Diet (A dieta da informação, sem tradução para o português).
Como bom “infonutricionista” que é, Johnson traz até um gráfico que dá as
proporções recomendáveis no seu prato. Para ele, uns 25% do seu consumo
diário deveria ser de informação “crua”; vai bem uma pitada de análises e
opiniões que “confirmam o que você acredita”; cerca de 25% devem ser
gastos com coisas “locais e sociais” (sim, precisamos saber mais a respeito
do nosso bairro, e menos da família real britânica); 20% de entretenimento;
uma dose razoável de artigos e opiniões divergentes e/ou diferentes (vale
matéria na Veja/Carta Capital ou uma banda desconhecida indicada por um
amigo); e, de sobremesa, artigos, vídeos e programas que ajudem a
desenvolver habilidades – seja escrever, programar, melhorar as fotos ou
cozinhar novas receitas. É uma dieta possível?
Danah Boyd vai ainda mais longe na comparação com a alimentação e
segue um viés que poucos abordam hoje. Depois de resolver o problema da
fome, os países desenvolvidos lidam atualmente com o consumo
irresponsável da iatrogênica junk food. Por causa do preço, acesso e rapidez
de preparo das comidas ultracalóricas, é mais provável encontrar obesos
entre a população mais pobre dos EUA ou Inglaterra. O mesmo problema se
repete em relação ao acesso à mídia. Para Danah, hoje pesquisadora da
Microsoft, as políticas para acabar com o “abismo digital” – a diferença
entre os mais pobres e os mais ricos no tocante ao acesso à internet – “não
apenas não resolveram problemas, como espelharam e aprofundaram os já
existentes, que estávamos ignorando. O uso primário da internet para
entretenimento não foi previsto”, avalia.169 O presidente Barack Obama
mostrou preocupação semelhante em um discurso a graduandos da
Hampton University em Virginia: “Com iPods e iPads, e XBoxes e
PlayStations, a informação vira distração, um passatempo, uma forma de
entretenimento, ao invés de ser uma ferramenta de empoderamento, um
meio para a emancipação”.170
Distribuir notebooks ou baratear a banda larga não resolve magicamente
os problemas de acesso à informação, se não há estrutura familiar e
educação para guiar o seu uso. Vicky Rideout, autora de um profundo
estudo sobre a utilização de tecnologia entre crianças e adolescentes, diz
que o uso para informação e educação é ínfimo se comparado ao de
entretenimento, especialmente entre os mais pobres: filhos de pais que não
tiveram ensino superior usam mídias 90 minutos a mais por dia que os pares
com mais dinheiro.171 “Ao invés de diminuir a diferença de realizações
pessoais, [os dispositivos tecnológicos] estão aumentando a diferença de
perda de tempo”. Pais mais ricos podem ter mais tempo para ficar com os
filhos ou matriculá-los em atividades físicas extraclasse, da mesma forma
que ir a uma feira de orgânicos e preparar uma refeição balanceada requer
tempo, educação e dinheiro. A analogia é quase perfeita.

Infobesidade e cauda longa Escrevi no início que uso


algumas ferramentas para me forçar a ter uma dieta
melhor, uma espécie de programa de pontos do Vigilantes
do Peso: o Freedom, que corta o meu acesso por um
determinado tempo e o RescueTime, que avalia onde estou
passando tempo na rede. Mesmo que você não adote esses
programas, tente um tratamento de choque. Abra o
navegador e veja a lista de todas as páginas que você
acessou na última semana. Há uma boa chance de você
suspirar e pensar “como eu gastei tantos minutos com
isso?”

Eu não quero aqui que todo mundo só leia coisas sérias e verbetes
informativos da Wikipédia, mas, como Johnson advoga, precisamos saber
melhor de onde vem a informação que consumimos e nos esforçar para
consumir o que é mais saudável. Quando você estiver analisando seu
histórico de informação consumida – não apenas sites, mas interações nas
redes sociais, e-mails, vídeos e programas de TV –, reflita um pouco sobre
o propósito de todo este tempo gasto. “Matar o tédio” é bom até certo ponto
– lembre-se que precisamos ter o cérebro operando devagar de vez em
quando. “Socializar” também é bom, mas também precisamos de
privacidade e tempo longe dos refletores para desenvolvermos a nossa
própria personalidade. E “se manter informado” também é um propósito
que parece bom por si só, mas ele merece ser melhor analisado. Há um
excesso de opções.
Antes que você ache que eu estou pedindo um sacrifício grande demais,
como aqueles nutricionistas que nos passam dietas impossíveis de seguir,
gostaria de liberar o chocolate digital. Em doses regulares, mas não muito
grandes. Continue vendo vídeos de bebês que riem descontroladamente,
cabras que gritam como humanos, shows de comédia, esquetes de humor no
Youtube, piadas repetidas enviadas por e-mail, montagens compartilhadas
no Facebook. Rir não é perda de tempo. O humor melhora a frequência
cardíaca e até acelera a queima de calorias. Uma boa risada aumenta o fluxo
de sangue para o cérebro e pode até ajudar a dormir melhor. E a piada
relaxa, facilita a compreensão até de coisas mais sérias, porque ela desarma
nosso sistema límbico.172
Por isso, aliás, que o gênero de comentário político misturado com humor
é cada vez mais comum, como o CQC e Danilo Gentili no Brasil e Jon
Stewart e Colbert nos EUA. É claro que se você “só” fizer isso, não vai
melhorar muito o seu crescimento pessoal e relação com o mundo, além do
que rir descontroladamente de um vídeo no Youtube durante o trabalho
pode pegar mal. Mas o humor efetivamente ganhou vida nova na internet –
16% dos vídeos no Youtube são de comédia173 – e vale gastar minutos
divertidos, mesmo que seja para mostrar aquele vídeo da Porta dos Fundos
para alguém pela décima quinta vez.
Expliquei no capítulo anterior como a internet muda a natureza das nossas
interações com as redes sociais – no meu caso, antes, cerca de 85% da
informação que extraía dos círculos sociais vinha de conversas ao vivo com
amigos, colegas e familiares, 9% de telefonemas (eu ficava pendurado) e
1% de cartas (dados aproximados). São dados chutados, ok, mas falo das
informações pessoais: hoje, eu aprendo pela internet quase tudo o que há de
relevante por meio dos amigos mais conectados, com todos os poréns que
isso traz. E a quantidade de informação, se eu não controlar o fluxo, é
absurda: eu tenho mais acesso via Facebook a notícias específicas dos meus
colegas do pequeno colégio em Brasília onde estudei do que eu tinha sobre,
digamos, o campeonato carioca, quando eu comecei a me interessar por
futebol na década de 1980. Vimos que a fofoca tem um valor social que
vem desde os tempos em que andávamos em bandos, então, na verdade, eu
não estou questionando esse tipo de informação. Mas e a informação-
notícia comum, essa que encontrávamos nos jornais e hoje está nas notícias
de portais, redes sociais e blogs especializados? Para que serve? O que é
“estar bem informado”?
É uma pergunta que não costumamos nos fazer. E, como jornalista,
achava esse excesso de consumo de informação “normal”. De fato, algumas
profissões precisam de atualização constante, mas na maior parte do tempo
o que consumimos não tem uma aplicação prática além do senso de
sociabilidade, de não querermos ficar de fora das conversas. Eduardo
Fernandes, um brilhante escritor e designer de interfaces com quem eu já
trabalhei, define: “Você não acessa um site porque está curioso sobre o
conteúdo. Você apenas quer, consciente ou inconscientemente, se tornar
‘mais esperto’. Compartilhar links. Ganhar mais seguidores. Manter-se
atualizado. Acompanhar modas. Quer dizer, você não se relaciona
necessariamente com o conteúdo, mas com o seu próprio desejo de
consumir mais. Livros, sites, gadgets, filmes, etc., passam a ser veículos
para apaziguar esse velho sentimento de que a grama dos outros é mais
verde”.174
Mas com a internet, acumular informações para “se manter por dentro” é
uma tarefa cada vez mais impraticável e sem sentido. Antes, quando havia
um limite físico para dar as notícias (as páginas do jornal ou o horário de
programação da TV), os jornalistas escolhiam algumas poucas coisas para
dar destaque e nada era tratado diariamente com muito detalhe ou
profundidade – isso era tema para as revistas semanais ou mensais. O
número de assuntos para comentar durante o café, no trabalho, no dia
seguinte, era limitado. Mas hoje, como não há um limite físico para a
produção de informação, há todo tipo de subgênero de informação
disponível.
Quando comecei a me interessar pelo basquete da NBA, no início dos
anos 1990 (por meio do videogame, vejam só), tinha que torcer para ver
alguma notinha de meio parágrafo no Correio Braziliense com os placares
da rodada e me contentar com a partida que a Band transmitiria, durante a
madrugada, algum dia da semana. Hoje, a abundância de informações não
tem fronteiras. No blog de esportes que acompanho, o SBnation, é normal
ler em um único dia seis notícias só sobre LeBron James, o meu jogador
favorito da liga americana de basquete. Se abrir o aplicativo da NBA no
iPad, posso ver cada uma das suas cestas em uma partida de um ano atrás
ou ver em que pedaço da quadra ele se sai melhor quando é marcado por
alas de menos de 2’05’’. Eu tenho acesso, e tenho meia dúzia de amigos
loucos que efetivamente leem esse tipo de coisa, mas para que exatamente?
Eu não vou conseguir ser auxiliar técnico, não escrevo sobre o assunto nem
aposto em partidas.
Não quero que esse tipo de informação suma – no mínimo, por uma
questão corporativista, já que há jornalistas cada vez mais
superespecializados hoje em dia –, apenas acho importante saber controlar
quão fundo vamos em algo que não vai nos fazer crescer em última
instância. Porque, pela maneira como a internet é projetada, com seus links
e vídeos espalhados por todos os lados e a possibilidade de agradar a todos
os microgostos, há a real possibilidade de você ver seu tempo sendo sugado
por bobagens, por mais interessantes que elas possam parecer à primeira
vista. Se você começa lendo a página de um ator qualquer em um site de
cinema, pode acabar, alguns cliques e vídeos depois, no verbete sobre a
guerra civil galáctica de Guerra nas Estrelas na Wikia. Há 19 mil palavras
para ler, cobrindo todos os detalhes da vitória do imperador Palpatine.175
Você pode argumentar que isso não é muito diferente de ler um livro, mas
eu te digo que isso está mais para gastar tempo em um joguinho dos mais
bobos e viciantes. Assim como no caso das redes sociais, a medida de um
bom uso é o seu sentimento após uma maratona de cliques. “Nossa, como
eu perdi tempo nisso? Já estou atrasado!”, é uma sensação comum. Ou
poderia ser, se refletíssemos mais.
Não quero ser tão duro com você, fã de temas muito específicos como
Guerra nas Estrelas – eu leio religiosamente dois blogs sobre jogos de
tabuleiro para iPad, se isso te tranquiliza. Saber muito sobre algum assunto,
qualquer assunto, é o que nos diferencia no fim das contas, faz parte do que
somos. No sentido de desenvolver nossa personalidade, a internet tem
bastante potencial, permitindo-nos orbitar por vários gostos e comunidades,
como discutimos. E também permite novas oportunidades intelectuais e
comerciais – há gente enriquecendo só de vender para todo o mundo
gorrinhos de tricô inspirados no universo de Guerra nas Estrelas, que são
mencionados em blogs especializados no assunto.
Este ecossistema e as possibilidades que ele apresenta é o que Chris
Anderson, ex-editor da revista Wired, batizou (pegando o conceito de
estatística emprestado) de “cauda longa”, em um dos livros de negócios
mais influentes da última década, lançado em 2004. Para Anderson, que usa
muito os exemplos da Amazon e do Netflix, é possível ter lucro (ou
atenção) vendendo produtos incomuns para muitas pessoas, ao contrário da
lógica anterior de best-sellers (pouca variedade de produtos para muita
gente). Aplicando o conceito à informação, Anderson defende que não
precisamos ficar fechados nos assuntos da mídia de massa. Isso é uma
realidade de agora – que tem uma aplicação econômica um tanto
discutível.176 Mas se você tem idade para ter vivido no fim dos anos 1980 e
início dos 1990, deve se lembrar que havia poucos assuntos facilmente
disponíveis para o grande público. Era uma época em que a estreia de um
novo clipe do Michael Jackson era um evento, a novela Roque Santeiro
passava dos 90 pontos de Ibope e o único esporte televisionado era o
futebol brasileiro. Hoje não precisamos ficar presos no chamado
mainstream.
O próprio conceito de mídia mainstream vem mudando: “Quando alguém
compra uma TV, o número de consumidores cresce em um, mas o número
de produtores permanece constante. Por outro lado, quando alguém compra
um computador ou um celular, tanto o número de consumidores quanto o de
produtores aumentam em um”, explica Clay Shirky em Lá vem todo
mundo.177
Mas será que isso é necessariamente tão bom assim? Foi o que eu
perguntei ao próprio Chris Anderson quando o entrevistei, no final de
2007.178 Eu disse que em outros tempos, quando era garoto, conseguia
conversar com a minha mãe, minha avó e o colega de classe sobre vários
assuntos. Hoje, o que é “grande hit” pra mim, como o músico Frank Ocean
ou o filme Indomável Sonhadora, pode ser totalmente obscuro para amigos
próximos de mesmo background e acesso a produtos culturais. Não era
legal quando havia algo que unia todo mundo? “É o que acontece quando as
pessoas têm mais escolhas. Perdemos as ligações culturais superficiais,
como a televisão. Mas, em compensação, ganhamos conexões mais
profundas.” Anderson argumenta, e é difícil discordar, que de fato os
comentários sobre esses produtos de mídia de massa eram bastante
genéricos. “Hoje, se eu disser pra você que gosto de Lego, criamos uma
conexão instantânea”, brincou Chris e, sim, criamos uma conexão. Como eu
fiz com os meus amigos do jogo de tabuleiro, por exemplo.
Ainda assim, é importante pelo menos ter alguma ideia dos grandes
assuntos, não para “ficar informado” de uma maneira abstrata, mas porque é
perigoso ficar em bolhas de microgostos. Por mais que essas conexões
sejam fortes, os “laços fracos” com vizinhos, colegas de trabalho e
familiares distantes são importantes também. A saída que eu encontrei para
não perder o contato sobre os assuntos populares e que não me interessam
diretamente é usar outras pessoas como retrospectivas ambulantes. Eu não
acompanho mais tão de perto o meu Vasco, mas havia um colega na minha
empresa com quem conversava pouco, mas quando esbarrava com ele no
café puxava um “e o jogo de domingo? Eu vi que ganhou, mas foi bem?”
Eu sei que ele assistia tudo e por meio dele ganhava uma narrativa bem
mais colorida do que a que leria nos jornais. Todo mundo ganha: eu fico
mais informado sobre o meu time para conversar melhor com o meu pai
depois e estreito os laços com uma pessoa fisicamente próxima. Uso a
mesma estratégia para outros assuntos. Pergunto para o taxista do ponto
perto do meu apartamento sobre as consequências das últimas chuvas,
consulto o meu amigo que edita um blog de quadrinhos (e não
necessariamente o blog em si) quais as últimas recomendações, e deixo para
me inteirar sobre a política de Brasília diretamente com os meus amigos
jornalistas quando os encontro nos bares. Tenho um resumo personalizado,
boas conversas e laços mais fortes.
Ser exposto a assuntos diferentes, visões diferentes, é fundamental, faz
parte não só do crescimento pessoal, mas da democracia. O curioso é que é
muito mais fácil estar exposto a essas surpresas quando estou offline. Para
mim, os grandes problemas da internet como veículo de informação não
estão na infobesidade, essa doença inventada que eu discuti até aqui. Mas,
sim, na sua tendência para formar bolhas e dificultar o real diálogo e
facilitar a desinformação.

Googlando o futuro “Busquem e encontrarão” é um


famoso versículo do livro de Mateus, na Bíblia, e pode ser
usado perfeitamente para descrever a nossa relação com a
informação na internet, para o bem e para o mal. Quase
qualquer dúvida que você tiver sobre o mundo, poderá ser
respondida pelo Google ou outras ferramentas de busca. O
problema é que boa parte das pessoas não sabe como
perguntar e, mais preocupante, em que resposta confiar.

Como defendi antes, a “netiqueta”, a administração do tempo e o


gerenciamento da privacidade nas redes sociais são aspectos importantes da
alfabetização digital. Mas outro, que não vem recebendo a devida atenção, é
a necessidade de desenvolver um ceticismo sadio, o que os americanos
chamam de bullshit detector, ou detector de bobagens.
E isso é fundamental. Eu cansei (no sentido de ficar cansado e não fazer
mais) de responder e-mails ou observar atualizações no Facebook de
parentes que me encaminhavam grandes oportunidades, conspirações ou
histórias maravilhosas demais para serem verdadeiras. Eu fazia uma rápida
busca e mostrava por que exatamente aquilo não podia ser sério. Para
poupar tempo de pessoas como eu, há até alguns sites para desmascarar
essas bobagens como o “e-farsas.com”, que monitora as correntes de e-
mail/Facebook do momento (normalmente recicladas) e explica de maneira
pormenorizada porque elas são falsas (ou apenas parcialmente verdadeiras,
falta contexto). Em 2013, havia explicações sobre as seguintes correntes:
“vinagre pode enganar o bafômetro”, “Nostradamus previu a renúncia do
Papa e o meteoro na Rússia” e “batom com chumbo causa câncer”. Todas
falsas, obviamente.
É preciso desenvolver uma série de ferramentas básicas para verificar a
veracidade das informações, já que o Google não faz a triagem por
respostas “mais confiáveis” ou “menos confiáveis”. Há um esforço recente
para destacar artigos fundamentais e confiáveis sobre determinados
assuntos,179 mas a lógica básica do PageRank, algoritmo que governa as
buscas, é emular a medição de influência de um artigo acadêmico, que
ganha “pontos” quanto mais citações tiver. Quanto mais sites fazem
referência a determinado site ou resposta, mais alto ele vai aparecer na
busca. E muitas vezes sites como o Yahoo! Respostas, que não atrai muitos
profissionais (ou mesmo adultos) para as suas grandes indagações, ficam lá
em cima, por causa da popularidade. Por isso, vale fazer as chamadas
“buscas cruzadas” ou triangulações para verificar a veracidade da
informação. Fazer buscas pelo autor da página, ou uma busca com uma
frase que nega o resultado da anterior podem ser um caminho. Sites mal
diagramados, com fontes coloridas ou erros de português, também são um
bom indicativo de que é alguém amador produzindo informações não
confiáveis.
O Google sabe que, justamente por estar tentando indexar toda a internet,
ficou cheio de lixo – separá-lo é um imenso e fundamental desafio. Alguns
analistas estimam que o total de buscas feitas diretamente no Google vem
caindo desde que ele chegou ao pico, em 2008.180 Muitas pessoas estão indo
diretamente nos sites mais confiáveis para fazer as suas buscas, como a
Wikipédia, o TripAdvisor (para informações de lugares turísticos), o
Facebook ou o Twitter; no site de Dráuzio Varela para fazer buscas
médicas, no Buscapé para levantar preços, no Reclame Aqui para verificar a
reputação de uma empresa, etc. E se você busca apenas dados – a
“informação crua” –, esta é uma estratégia muitas vezes melhor do que
jogar no grande buscador.
Os dados errados encontrados na internet são inofensivos, na maior parte
do tempo, salvo algum embaraço de tias em correntes de e-mail. Mas em
alguns casos, a informação falsa pode ser bastante danosa, seja por um e-
mail que na verdade é um golpe (nenhuma instituição bancária brasileira
manda e-mails com links!) ou quando o assunto da corrente ou busca
envolve nossa saúde. A internet pode ser muito positiva para ajudar a se
informar sobre doenças, a mudar a relação com o médico para, por
exemplo, buscar uma segunda opinião. Mas ela dificilmente é um bom
“ponto de partida” para um diagnóstico. “Sites confiáveis, ligados a
faculdades, ajudam a esclarecer. Já os alternativos podem fornecer
informações errôneas, e quem não conhece os termos técnicos pode
confundir uma doença com outra e transformá-la em preocupação
excessiva”, afirmou o supervisor do programa de ansiedade do Instituto de
Psiquiatria da USP Luiz Vicente de Mello à Folha de S. Paulo.181 A
reportagem aponta casos de pessoas que, depois de ficarem impressionadas
e obcecadas por algum diagnóstico errado na internet, começaram a sentir
sintomas. “Há relação entre o sistema de alergia e o de emoção. Quem é
muito tenso, desenvolve sintomas físicos, somáticos.”
O fenômeno da “cybercondria”, como foi batizada no início dos anos
2000 o estado de hipocondria, ou falso diagnóstico, motivado por buscas na
internet, foi profundamente estudado pela Microsoft em 2008. Em uma
pesquisa que observou os hábitos de 250 mil pessoas na internet, percebeu-
se que era tão comum achar resultados de buscas ligando uma simples dor
de cabeça a um tumor no cérebro quanto à falta de cafeína, para quem é
acostumado. A chance de o caso mais grave ocorrer é infinitesimamente
menor.182
Na minhas buscas por dor de cabeça no Google, em inglês ou português,
um dos primeiros resultados foi o caso de John Tonich, o menino que
descobriu um tumor no cérebro a partir de uma cefaleia. Eric Horvitz, o
pesquisador responsável pela pesquisa na Microsoft, disse que um terço das
buscas sobre doença (2% do volume total) passavam para diagnósticos mais
sérios e provavelmente errados. Ele próprio um médico, disse que a
cybercondria o lembrava da “síndrome do segundo ano”, em que estudantes
de medicina começam a ver em seus próprios organismos sinais de doenças
que estão aprendendo a diagnosticar.
O “detector de bobagens” na internet é menos ativo quanto maior é a
idade da pessoa. Na verdade, pessoas mais velhas são mais suscetíveis a
golpes de maneira geral, algo demonstrado recentemente pela neurociência.
Ao se deparar com figuras não confiáveis, o cérebro de jovens adultos
apresenta uma grande atividade na porção anterior da ínsula, que controla
os instintos. Jovens sabem que há algo errado quando batem o olho em
alguma informação suspeita, e ficam alertas. Idosos, não.183 Por isso,
instituições bancárias ou o Serasa têm um cuidado especial em monitorar
golpes contra pessoas mais velhas.184
Mas não podemos jogar a culpa apenas naquele parente idoso que
encaminha correntes. Na verdade, todo mundo que navega na internet já
caiu em algum tipo de armadilha, o que pode levar a um outro problema:
quando passamos de crentes em tudo a excessivamente céticos em relação a
quem não merece tanto ceticismo. Diversas pesquisas mostram que o
brasileiro está cada vez mais desconfiado de todo tipo de informação que
recebe. A porcentagem de pessoas que acredita na imprensa, por exemplo,
caiu de 71 pontos em 2009 para 60 pontos em dezembro de 2012.185
Segundo a mesma medição do Ibope, acreditamos cada vez menos em
políticos, na justiça e na igreja. Nos EUA, a situação é semelhante: uma
pesquisa realizada em 2006 apontou que apenas 32% dos americanos
afirmavam que acreditavam “na maioria das pessoas”. “Em um mundo que
sente falta de reais controladores de acesso e figuras de autoridade, e onde a
manipulação digital é tão fácil, deturpagens, teorias da conspiração, mitos e
mentiras deslavadas acabam ganhando a nossa atenção”, afirma o jornalista
Farhad Manjoo em seu livro True Enough, que investiga o sucesso das
meias verdades e completas mentiras na mídia atual, especialmente online.
Manjoo mostra que a internet permite não apenas o surgimento de
opiniões diferentes, mas de “fatos” novos. Não é difícil verificar isso: digite
“o pouso na lua foi uma farsa?” (ou variações disso) no Google e o primeiro
resultado será um site aparentemente sério, intitulado “A fraude do século”,
onde uma pessoa comum, não especialista, gasta mais de 12 mil palavras
para “provar” uma sandice há muito repetida: que a chegada do homem à
lua em 1969 teria sido uma montagem. O autor, um mineiro que trabalha
com informática, diz ter vasculhado 2.500 fotos e apresenta, com uma
linguagem empolada mas sem embasamento científico algum, dezenas de
“provas” da farsa, das sombras às pegadas dos astronautas. No Youtube,
alguns dos primeiros resultados para “pouso na lua” são versões ainda mais
sofisticadas dessa teoria da conspiração.
Há centenas de exemplos de desinformação assim. Manjoo destaca as
teorias sobre o 11 de setembro, que descrevem o ataque terrorista como uma
armação do governo americano que teria envolvido a demolição das torres
gêmeas, um míssil e a encenação da queda dos outros aviões – alegações
minuciosamente desconstruídas por cientistas, engenheiros e comissões de
investigação independentes. Isso não impediu que o “documentário” Loose
Change, que também “prova” essas teorias, atingisse mais de 4 milhões de
visualizações no Youtube apenas nos primeiros meses. Como isso pode
acontecer? Manjoo diz que um dos problemas é justamente a abundância de
informações. Por exemplo: há dezenas de filmagens que mostram o
segundo avião batendo na segunda torre do World Trade Center. Em uma
delas, por causa do reflexo da luz do sol, parece haver um objeto na parte de
baixo da fuselagem. É “claramente um míssil”, segundo Phil Jayhan, que
também fez um documentário apontando a “fraude” de 11 de setembro com
o auxílio de outras fotos meticulosamente selecionadas, que provariam
também, por exemplo, os efeitos especiais empregados para dar a impressão
de um incêndio maior.
É claro que, se olharmos a mesma imagem por outros ângulos, é possível
refutar a tese do míssil – e nada que contradiz a teoria está nesses
documentários, obviamente –, mas o mais interessante aqui é que Jayhan e
outros conspiracionistas têm informações e imagens dúbias o suficiente
para provar basicamente qualquer absurdo. Compare essa situação com o
assassinato de John F. Kennedy em 1963, outro evento que também ganhou
algumas interpretações controversas. A diferença, para os teóricos da
conspiração, é que daquele evento só havia uma filmagem, de um único
ângulo. Se ela não foi suficiente para refutar as teorias que desafiavam a
versão oficial, tampouco foi adequada para provar qualquer outra. À época,
nenhuma dessas teorias conspiratórias chegou ao grande público, já que os
controladores do fluxo de informação (TVs e grandes jornais) não davam
crédito. Para Manjoo, o erro de Phil Jayhan e o “míssil do avião” mostram
um problema: “Imagens em demasia também podem ser usadas para provar
quase tudo. A promessa de nosso mundo, o mundo de Youtube e do Flickr,
era que centenas de fotos e vídeos seriam analisadas em conjunto para
convergir para uma única verdade. O que estamos descobrindo é que essa
convergência não é limpa. Em milhares ou milhões de imagens feitas em
qualquer evento, uma fração será inevitavelmente tão vaga que permitirá
interpretações da realidade amplamente discordantes”.186
Digite “Dilma terrorista”, “farsa nas loterias”, “título comprado do
Corinthians” ou coisas mais amenas, como o “pacto do diabo com Xuxa”, e
será possível ver textos longos, fotos, vídeos e até artigos da Wikipédia que
comprovam as teorias. O paradoxo das versões conspiracionistas é que, ao
acreditarmos nelas, estamos aceitando a hipótese de que a maior parte da
mídia (e as outras pessoas) está nos enganando. É importante ter um
detector de bobagens, sim, mas ao mesmo tempo temos que desconfiar de
quem desconfia demais, especialmente quando as fontes são sérias. “Nada
na sociedade funciona sem confiança. Comunidades, comércio, democracia
– tudo, na verdade, requer que as pessoas confiem umas nas outras”, explica
o especialista em segurança americano Bruce Schneier.187
Na mesma linha, Ken Light, um premiado fotojornalista, diz que o real
problema em viver na era do Photoshop (o popular programa usado para
modificar imagens) não é a proliferação de fotos mentirosas. “Ao contrário,
é que as fotos verdadeiras serão ignoradas por serem manipuladas. Quando
toda foto é suspeita, todas são dispensáveis, e o poder de crítica único das
imagens perderá seu valor.”188
Na internet, há tanta informação, e de tantas fontes, que você pode ser
cínico e não acreditar em nada, ou escolher cuidadosamente a quem dar a
sua confiança. E isso pode ser tanto causa quanto consequência de um
gigantesco problema.

A bolha assassina A queda da audiência do Jornal


Nacional, da Globo, de quase 80% das TVs ligadas nos
anos 1970 e início dos anos 1980 para 27% de audiência
hoje, pode ser atribuído a uma infinidade de fatores que
são abordados neste livro. E é difícil imaginar que em dez
anos o Ibope do JN possa estar acima dos 15 pontos. Isso,
é bom dizer, é uma boa notícia: um quarto da audiência
para um único programa jornalístico já é bastante.
Precisamos não só de visões mais diversificadas, mas de
outros assuntos que não cabem em um programa de 40
minutos. E hoje as temos em outras emissoras, na TV
fechada, e em outras mídias, especialmente a internet.

Mas o simples aumento da concorrência também não explica de maneira


satisfatória a queda atual e a projeção de menos relevância da Globo. Até
porque a qualidade do jornalismo melhorou, o leque de cobertura idem e até
a objetividade: hoje não é possível, como em outros tempos, ignorar
grandes movimentos populares como as Diretas Já, manipular
descaradamente o noticiário como foi no último debate da eleição
presidencial de 1989 ou outras tantas ofensas menores motivadas por uma
“agenda secreta” da família Marinho. Não cabe aqui continuar a análise, há
farta bibliografia sobre os problemas históricos do jornalismo da Globo.
Mas é interessante notar que analistas menos apaixonados concordam que a
emissora melhorou significativamente de lá pra cá, não porque subitamente
o conglomerado de mídia ficou bonzinho, mas porque chegou um momento
em que a sociedade exigia um mínimo de objetividade, e bordões como “o
povo não é bobo, abaixo a Rede Globo” nunca saem de moda.
Um rápido parênteses: o conceito de “imparcialidade”, de cobrir de
maneira isenta, não opinativa, mostrando os dois lados da questão, não
nasceu com o jornalismo. “Um monte de gente que trabalha em jornais trata
[a imparcialidade] como a única religião verdadeira, quando, na verdade, é
um artefato de circunstâncias históricas e econômicas”, explica Joshua
Benton, do Nieman Journalism Lab, de Harvard.189 Ele explica que até o
século 19, era bem comum que todos os jornais fossem panfletários. Mas a
necessidade de crescer, de aumentar o apelo a mais públicos e não ofender
anunciantes e políticos, fez com que o tom fosse mais ameno, e a voz dos
jornalistas se perdesse. Trazendo para a nossa realidade e usando o mesmo
exemplo, é possível dizer que longe da ditadura, a Globo não poderia se dar
ao luxo, por exemplo, de ser abertamente (ou agressivamente tendenciosa)
contra Lula e Dilma, sob o risco de alijar uma parte significativa do público
e perder as grandes anunciantes estatais.
Mas o modelo de imparcialidade, de afastamento, está sendo posto em
xeque com a internet. Se tomarmos como base o que vem acontecendo em
outros países do mundo, a Globo corre o risco de perder a sua audiência,
cada vez mais, se continuar apostando no modelo moderadamente imparcial
– ou ao menos não abertamente partidário. Nos EUA, a emissora que mais
cresceu em audiência foi a Fox News, que tem uma cobertura
histericamente antidemocratas. A CNBC mudou há alguns anos a sua linha
editorial e contra-atacou, usando os republicanos como alvo. E há exemplos
em todo o mundo: a Al Jazeera se destacou no mundo árabe por ser
agressivamente pró-reformas. No Brasil, os blogs de política que mais
crescem, como o de Reinaldo Azevedo ou Paulo Henrique Amorim, estão
cada vez mais radicais em suas visões. Mesmo as revistas que já foram mais
ou menos neutras estão buscando pender para um ou outro lado: a Veja,
para os conservadores, e a Carta Capital, para os de esquerda.
Tendo um cardápio quase infinito de opções, tendemos a buscar não
apenas o que confirma nossas visões, mas o que nega e faz troça das ideias
do outro. A direita inventou os “Petralhas” para ridicularizar tudo que vem
do partido, e a esquerda, o “PiG” (partido da imprensa golpista). Ambos
fazem pregações junto aos seus convertidos. Uma enquete feita no portal
UOL no começo de julho de 2010, quando a campanha presidencial estava
esquentando, perguntou a 2.880 pessoas: “Você acha que a campanha na
internet pode mudar o seu voto?” Ao todo, 76% deles responderam que não.
Daniela Pinheiro, da revista Piauí, concluiu que “o resultado corrobora a
ideia de que a rede serve principalmente para reforçar convicções já
consolidadas”. Não seria outra a razão pela qual 40% das pessoas, em
levantamento do Vox Populi, consideram a credibilidade da internet “muito
alta”, só perdendo para o rádio. Quem repete o que acreditamos, tende a
contar com a nossa confiança.190
Raramente, a sociedade brasileira discutiu tanto essas questões
jornalísticas quanto o fez durante as manifestações de junho de 2013. Um
início de cobertura desastrosa, focada em “vândalos” e apoiando a repressão
muitas vezes indiscriminadamente violenta da polícia, aguçou a avaliação
não apenas crítica, mas cínica, de boa parte da população sobre os grandes
veículos de imprensa. Dali pra frente, os jornalistas acertaram o rumo em
larga medida, fazendo uma cobertura relativamente correta (considerando o
caos da situação), mas se alimentou uma narrativa de que a “mídia não
mostrava a realidade”, o que é uma das histórias favoritas contadas pelo
brasileiro.191
Nesse vácuo surgiu a “Narrativas Independentes, Jornalismo e Ação”, ou
simplesmente Ninja. O coletivo transmitia ao vivo, pela internet e por meio
de smartphones com conexão 3G/4G todas as manifestações, por horas, de
um ponto de vista diferente da mídia tradicional – na rua. Adotando o
discurso do ativista, ficando do lado dos manifestantes (inclusive
provocando policiais em algumas transmissões que acompanhei), ganharam
o público da rede e opiniões entusiasmadíssimas. “Assim como o CD e o
mp3 redefiniram o papel do disco de vinil, a Mídia Ninja redefinirá o papel
do jornal e do telejornal”, empolgou-se o deputado Jean Wyllys, que já foi
professor de comunicação.192
Atribuiu-se às “novas tecnologias” essa “revolução”, que foi coberta de
maneira totalmente acrítica em um primeiro momento. Os ninjas não
mudaram o jornalismo, ao menos enquanto escrevo o livro. Porque não é o
fato de alguém usar um smartphone e as redes sociais que faz o jornalismo
ficar mais moderno, ou “melhor”. “Quando se discute uma guerra entre a
nova e a velha mídia, o argumento está deslocado. Esta é uma discussão de
todo irrelevante. Tenta trazer, para o centro da conversa, a tecnologia na
qual cada um se baseia. Para o jornalismo, o que importa não é o meio
utilizado para veicular informação, não é a idade de quem o pratica, ou
mesmo a origem profissional. O que importa é apenas o jornalismo”,
opinou Pedro Dória.193
Quem acompanhou a cobertura dos protestos, menores, em julho e agosto
apenas pela Mídia Ninja, poderia ter certeza que a polícia do Rio usava
balas de verdade e que os jovens que jogavam coquetel molotov na polícia
eram “P2”, policiais à paisana. A informação era repassada por qualquer
fonte e não se buscou confirmar ou ouvir o outro lado. Pouco ou nada se
falou sobre as agressões dos manifestantes a outros jornalistas. Fernando
Gabeira, que dificilmente pode ser acusado de “reacionário”, notou a
incongruência. “Quando alguém da Mídia Ninja é preso, a grande imprensa
relata em detalhes e busca explicações da polícia. Quando carros das
emissoras de TV são queimados por manifestantes, é de esperar que a Mídia
Ninja também combata este tipo de violência e todas as outras formas de
agressão. Se o nome do jogo é informação, a liberdade de imprensa é um
bem comum”, argumentou Gabeira.194
A briga Ninjas x Globo é um exemplo da tese de Manjoo, segundo a qual
a batalha atual não se dá mais no campo das opiniões, mas nos “fatos”. O
que é realmente verdade? Não é necessário teorias conspiratórias como a de
11 de setembro, do pouso do homem na Lua ou dos policiais infiltrados nas
manifestações, para comprovar isso. Na semana em que era anunciado que
o Brasil teve um crescimento pífio em 2012, por exemplo, o maior blog
“progressista” dava uma manchete sobre o aumento da indústria; com o
mesmo vídeo, a Globo conseguiu dizer que Serra havia sido atingido por
um projétil nas eleições e a oposição fez piada com a bolinha de papel; a
morte de Chávez foi lembrada pelas esquerdas como a saída de cena do
líder que mais diminuiu a desigualdade na América Latina, enquanto blogs
liberais compararam os índices com o de outros países produtores de
petróleo e concluíram que Chávez fez pouco diante do que podia ter feito.
Manjoo sentencia: “A discussão não é o que deveríamos fazer, mas o que
está acontecendo. O partidarismo está distorcendo a nossa própria
percepção do que é real e do que não é”. Com a profusão de dados, imagens
e vozes, qualquer realidade pode ser inventada. E, para ser justo com a
mídia, ela só está reproduzindo a maneira que agimos individualmente, as
nossas opiniões e interpretações da realidade. As pessoas de fato veem
realidades diferentes, e isso é demonstrado em experimentos de psicologia
há décadas.
Em um estudo bastante citado de 1954, Albert Hastorf, um psicólogo de
Dartmouth, e Hadley Cantril, sociólogo de Princeton, colocaram os alunos
para analisar o filme de uma controvertida partida de futebol americano
entre os times das duas universidades. Depois, pediram para que os alunos
anotassem os lances nos quais eles viam faltas, da maneira mais objetiva
possível. Obviamente – ao menos para quem é apaixonado por qualquer
esporte –, a contagem de faltas foi totalmente diferente, e cada torcedor viu
muito mais faltas não marcadas contra o seu time que o outro. A conclusão
dos estudiosos: “É impreciso e de certa forma falso dizer que diferentes
pessoas têm ‘opiniões’ diferentes sobre a mesma ‘coisa’, “já que a ‘coisa’
simplesmente não é a mesma para diferentes pessoas, seja a ‘coisa’ um jogo
de futebol, um candidato a presidência, o comunismo ou um espinafre”. Ou,
resumidamente, os olhos veem a mesma coisa, mas o cérebro processa
coisas diferentes.
Isso é chamado de “percepção seletiva”, um problema que todos nós
temos em diferente grau e e em relação a assuntos diversos, por mais que
um fato pareça neutro, como as estatísticas. “Torture os números e eles lhe
dirão qualquer coisa”, afirma o crítico americano Gregg Easterbook.
Estamos o tempo todo tentando domar essa tendência negativa, que se
agrava quando a) temos a possibilidade de acompanhar um veículo de mídia
que privilegia somente um dos lados e b) encontramos eco nessa percepção
entre os pares. Assistir a um jogo do Grêmio contra um time carioca,
ouvindo a Rádio Gaúcha em um bar com outros gremistas é uma
experiência totalmente diferente, que influencia o nosso julgamento. E a
internet recria esse ambiente para todos os assuntos, porque, além da
“percepção seletiva” à qual já somos inclinados, ela torna mais fácil a
“exposição seletiva”. Se acompanhasse as manifestações de junho de 2013
apenas via Mídia Ninja, lendo um “segmento” dos meus amigos do
Facebook, eu teria uma visão incrivelmente incompleta e fantasiosa da
realidade.
Voltamos, então, à dieta proposta por Clay Johnson: temos que consumir
um pouco de informação crua – direto da fonte ou de veículos
razoavelmente imparciais (os que ainda restam) e, em quantidades mais ou
menos iguais, análises que confirmam e que vão contra as nossas
convicções. Mas quão difícil é fazer isso no restaurante de fast-food que é a
internet? E, mais importante, quanto a população e as empresas de mídia
estão interessadas nisso?
Eli Parisier, autor do livro O Filtro Invisível – O que a internet está
escondendo de você, teme que estejamos caminhando para uma internet
hiperpersonalizada que, como previu Eric Schmidt, sabe o que você quer
antes mesmo de você querer. Ele cita outros tecnólogos que veem esse
caminho como positivo: Nicholas Negroponte, professor do MIT e um dos
mais famosos futurólogos do mundo, disse em 1994 que “as TVs de hoje
permitem que controlemos o brilho, o volume e o canal. Amanhã, ela vai
permitir que controlemos o sexo, a violência e a orientação política”.
Negroponte via isso com um sorriso. E, antes de a internet ser tomada por
notícias e redes sociais, ele previa que os jornais teriam edições
absolutamente individualizadas, dependendo das nossas preferências. Seria
o Daily Me.
Quando o bilionário americano Jeff Bezos comprou o prestigiado (e
falido) jornal Washington Post, começou-se a cogitar o que ele poderia
fazer para revitalizar o jornalismo. Uma das ideias seria implementar a
tecnologia da empresa que conhece muito bem as preferências do cliente.
Boa parte do lucro da Amazon vem de sugestões de compra baseadas no
nosso histórico, como consumidores. Bezos pode – ou pelo menos sabe
como – criar o Daily Me, apenas com notícias que nos interessam. O
articulista português João Pereira Coutinho disse o quanto isso parecia
sedutor, mas perigoso no longo prazo: “Eis a maior ameaça para o futuro do
jornalismo: chegar a um ponto em que as notícias que interessam são
apenas as notícias que me interessam. E em que todas as outras deixam de
aparecer nesse radar. Haverá quem pense que isso é um progresso
intelectual: nós, fechados no nosso pequeno mundo, lendo apenas o que
corresponde às nossas preferências e ignorando o que existe fora da nossa
ilha de gostos e idiossincrasias”. 195
Não precisamos que Bezos realize essa profecia. Isso já acontece para
muitas pessoas. Como as redes sociais ocupam cada vez mais o tempo que
passamos na rede, elas acabam virando grandes portais de notícias e, é
claro, cada vez mais personalizados. Por um lado, isso é bom: para o nosso
senso de comunidade, a notícia de um filho de uma prima distante é
efetivamente mais importante que a eleição em um país asiático, e os
jornais nunca conseguiriam chegar a esse nível de personalização
importante. Por outro, começamos a ler, ver e ouvir somente o que nos
interessa, o que concordamos e o que não nos agride.
Se o Facebook fosse mostrar todas as atualizações de todos os seus
amigos em tempo real, ninguém aguentaria o excesso de informação e
acabaria largando a rede. Mas os servidores de Zuckerberg contam com
uma série de algoritmos que ditam o que vai aparecer na sua timeline, ou o
que ganha destaque na primeira página. Os amigos com quem você interage
mais ou a amiga que exibe as fotos mais bonitas sempre aparecerão,
enquanto aquela oração que sua tia mandou para a novena, provavelmente
não. O Facebook observa cada ação, cada curtida que você dá, quanto
tempo passa no perfil de cada amigo, quantos comentários faz, para decidir
quem vai ser o análogo do jornalista que traz as informações no seu Daily
Me. Se você não gosta das opiniões extremadas do colega de trabalho,
provavelmente nunca vai curtir, comentar ou compartilhar. O Facebook vai
entender que isso o incomoda (ou não te satisfaz) e aos poucos vai esconder
aquela pessoa que, bem, “não te faz feliz”. Você pode mudar manualmente
quem vai ou não aparecer com qual frequência e se sobrepor à máquina,
mas a maior parte das pessoas deixa as configurações no automático.
O Twitter é mais claro em relação ao seu funcionamento (e por isso, entre
outros motivos, é minha rede favorita, apesar de estar relativamente
estagnada no número de usuários): nós selecionamos manualmente quem
seguir e recebemos todas as mensagens de 140 caracteres daquela pessoa.
Se ela falar demais ou desagradar, deixamos de seguir ou, em casos
extremos, bloqueamos o contato de forma que nenhuma atualização dela,
mesmo que via terceiros (que podem “retuitar”, compartilhando a
mensagem), apareça no nosso jornal personalizado.196 Com isso, fica
totalmente na nossa mão povoar o nosso feed de notícias de maneira plural.
É claro que o Twitter manda e-mails de tempos em tempos sugerindo
pessoas a seguir, baseado em quem você já segue. Mas mesmo não (ou
pouco) forçado, o comportamento se mantém: o que eu observo entre a
maior parte dos meus amigos é que as pessoas seguem seus ídolos, seus
canais de notícias favoritos e amigos que pensam parecido. Pessoas com
opiniões externas só chegam quando algum amigo da “bolha” compartilha,
para em seguida mostrar por que discorda.
O Google também tem uma série de filtros para deixar a nossa vida mais
“fácil” e mostrar resultados (e anúncios) mais “relevantes”. De acordo com
o seu histórico de buscas, vídeos e e-mail, a sua “googlada” pode gerar
resultados diferentes – ou pelo menos um ordenamento diferente – do que a
mesma busca que eu faço, com as mesmas palavras. Especialmente
assuntos polarizadores podem gerar resultados bem diferentes. Uma pessoa
com um histórico de buscas mais de esquerda, ao buscar por “José Dirceu”,
vai ver no Google o blog do ex-deputado como primeiro resultado. A
mesma busca, para outra pessoa em outro computador, pode mostrar
primeiro notícias de suas condenações, o verbete na Wikipédia e, bem
depois, o seu blog.
Qual o interesse da criação desses filtros, que podem nos deixar afastados
de visões discordantes e assuntos estrangeiros? A história da ciência, da
criatividade, da arte, é a história da colaboração entre pessoas de origens,
bagagens e visões diferentes. A internet torna esse encontro tecnicamente
mais fácil, eliminando as distâncias, mas se ficarmos na zona de conforto,
alternando entre Google, Facebook e a meia dúzia de sites que acessamos
sempre, dificilmente vamos esgotar todo o potencial da rede.
Mas o Facebook quer que não sejamos incomodados, que passemos mais
tempo usando a ferramenta. O Google quer que avaliemos a sua busca
como sendo a mais eficaz, clicando logo nos primeiros links. Isso quer dizer
que, na prática, ambos querem que não deixemos de usar esses produtos e
que tenhamos um comportamento previsível, que sejamos um público-alvo
superdefinido, para oferecer anúncios cada vez mais personalizados. Um
“Pedro Burgos, que gosta de praia, se irrita com comunistas, lê bastante a
Folha e ouve rap”, é bem mais interessante, para essas redes que me tratam
como um produto, do que um “Pedro Burgos que gosta de praia mas que
passou as férias em um deserto, se irrita com comunistas, mas tem grandes
amigos de esquerda, lê bastante a Folha, mas passa metade do tempo
xingando os articulistas e ouve um tipo específico de rap.” Não acho que
estamos ficando mais superficiais com a internet, mas certamente interessa
às ferramentas mais importantes de hoje (Facebook e Google,
especialmente) que sejamos mais previsíveis.
Da mesma forma que defendi experimentar com a personalidade na
internet e falar com estranhos, é interessante botar a cabeça para fora da
bolha de vez em quando. Sempre que falava do argumento de Eli Parisier,
que deu palestras ao redor do mundo explicando o tal “filtro invisível”, a
resposta de quem não concordava ia sempre na mesma linha de que nós
sempre fizemos isso longe do computador. E, de certa forma, há um sentido
nessa linha: nós escolhemos nossos grandes amigos de acordo com o que
pensamos; dormimos em palestras chatas; e em reuniões de família onde há
pessoas falando algum absurdo, pedimos licença e saímos.
O problema aqui é justamente a oportunidade desperdiçada. Confrontados
com uma infinidade de possibilidades, acabamos escolhendo o familiar –
quando não fazemos isso consciente, a tecnologia o faz por nós. E não é só
o Facebook ou os resultados do Google que se adaptam à nossa preferência.
Se usarmos uma rádio virtual como o Rdio ou o Spotify, a chance é que
todas as músicas que tocarem na rádio personalizada agrade aos nossos
ouvidos. A lista de recomendações do Netflix também é totalmente baseada
no que assistimos – se eu usasse apenas os gostos do passado para escolher
o que consumir no futuro, poderia estar ouvindo apenas Iron Maiden até
hoje e jovens adultos ficariam presos às histórias medievais fantásticas,
segundo as recomendações da livraria.
Como lembrou João Pereira Coutinho, o perigo do “excesso de
informação” é terceirizarmos a decisão do que vamos escolher para
algoritmos. E os filtros nos quais nos enclausuramos reforçam uma visão
muito estreita do mundo, criando “câmaras de eco”. Eu quero acreditar que
não sou uma pessoa com visões políticas muito extremas para qualquer lado
– faço o máximo para consumir opiniões à esquerda e à direita e tentar
reavaliar minhas posições sempre. Mas tenho muitos amigos envolvidos em
uma rede de pessoas que confirmam suas visões, que linkam os mesmos
sites ou pessoas, que passam longe ou “bloqueiam” os dissonantes. E em
um ambiente “limpo”, sem contaminação de opiniões externas, ideias mais
radicais acabam se alimentando.
Em Going to Extremes: How Like Minds Unite and Divide (Indo para
Extremos: Como mentes parecidas agregam e dividem), Cass R. Sunstein
explica que o confirmation bias (o nosso viés de preferir informações que
confirmem nossa visão) em um ambiente de filtro-bolha pode ser
extremamente perigoso. Um sentimento xenófobo ou racista que a pessoa
guarda para si com medo da reação da sociedade, por exemplo, pode aflorar
e se intensificar ao encontrar pessoas que pensam parecido, graças às
“possibilidades” da internet. Você começa lendo um blog diferente, com
opiniões radicais que apetecem, começa a ler comentários de pessoas que
reforçam aquelas visões (os dissonantes normalmente são apagados), depois
entra em uma lista de discussão ou grupo no Facebook que propala mais
daquelas visões – ou “realidades” –, e logo você pode estar com um olhar
absolutamente enviesado. Em política, isso comumente envolve a
identificação clara (por meio de uma seleção criteriosa do recorte) do
“inimigo”. Sunstein dá um exemplo de um subproduto desse estreitamento:
o terrorismo em países islâmicos onde jovens ricos e bem-educados
decidem virar homens-bomba.
Reforçar nossas convicções e ter a sensação de que estamos sempre certos
parece sedutor. Mas não é saudável para o nosso cérebro ou para a
sociedade no longo prazo. A minha dica é passear pela internet com o
método científico em mente: se você tem uma hipótese, ou se lê uma
explicação tentadoramente simples para a realidade, é interessante ir
primeiro atrás dos dados ou teorias que a invalidam. Se você (por meio de
um esforço de humildade) confirmar a sua tese, estará mais preparado para
a contra-argumentação. Se os fatos o provarem errado, terá aprendido. De
qualquer forma, é sempre bom ser exposto ao contraditório.
Falando assim, parece fácil e bonito. Mas é claro que existe um problema.
Ou dois: quando nos embrenhamos na internet, precisamos lidar com trolls,
espantalhos e o desconforto de quem parece pensar “errado”.

De trolls e outros demônios Há várias teorias para


explicar a origem do termo troll – uma espécie de monstro
verde gigante na mitologia nórdica, mas também o tipo de
pessoa que gosta de inflamar os outros escrevendo na
internet. A teoria mais aceita é que na verdade o troll é a
pessoa que faz o trolling, em inglês o ato de puxar a vara
de pesca com algo que fisgou. Podemos defini-lo como
uma pessoa que propositalmente causa desconforto no
interlocutor (ou autor da mensagem) em alguma discussão
online. Você pode achá-lo especialmente na área de
comentários de blogs, portais e vídeos no Youtube.

Classificar alguém de troll é totalmente subjetivo, e raramente o


monstrinho se entende como tal. Certa vez, comentei uma notícia (que
depois descobriu-se falsa) no perfil de um amigo de esquerda do Facebook,
apenas apontando que ela era mentira, e fui descrito por outra pessoa como
“um troll reaça” – uma reação de quem vive na bolha. Acho que não sou
mais esse tipo de pessoa, mas há gente que gosta de tumultuar qualquer
debate, inclusive – ou principalmente – em mesa de bar.
Mas o troll legítimo é um produto da internet; sua existência só é possível
graças às ferramentas que usamos diariamente. Eles são moldados pela
bolha, alimentam-se das pessoas com visão parecida, criando anticorpos
contra quem pensa diferente; se valem, muitas vezes, dos lugares onde o
comentário anônimo é tolerado e aproveitam a inconsequência dos seus
atos. Ele fala ou escreve sua opinião, porque sabe que poderá roubar por
alguns segundos os refletores e a atenção do ofendido.
O comportamento mais óbvio, quando não gostamos de algo que lemos
ou assistimos online, deveria ser ignorar, fechar a janela – ou não visitar o
site de novo, talvez não recomendar publicamente ou bloquear uma pessoa.
Não para o troll. “Online, onde tudo parece ser focado no usuário,
personalizado de todas as formas possíveis, algumas pessoas estão
acostumadas a serem os lordes da internet. Se eles se deparam com algo de
que não gostam, preferem queimar tudo do que deixar pra lá. É a internet
deles, afinal. A falta de tolerância e empatia é um problema da internet
moderna”, escreve Christopher Gonciarz em U Mad? The Internet’s Guide
to Idiots.197
Um ensinamento de mais de dez anos (eternidade para a internet)
permanece razoavelmente verdadeiro para lidar com esses seres: “A única
maneira de lidar com trolls é limitar a reação deles, lembrando outras
pessoas que não devem lhes responder”.198 Em português, a advertência de
Timothy Campbell ficou conhecida como a máxima “não alimente os
trolls”. Ignorar deve ser não responder ou não jogar mais lenha na fogueira
– lembre-se que o que eles querem é atenção. Mas Gonciarz sustenta
também que é bobagem simplesmente descartar as críticas, por mais mal-
educadas que sejam. Adriano Silva, meu chefe no Gizmodo, me ensinou a
responder reclamações agressivas (aquelas com xingamentos) de maneira
elegante e polida. Isso cria, idealmente, dois desfechos: ou o troll se sente
mal por ser tão deseducado, ou ele perpetua os ataques, mas as outras
pessoas que observam a briga tendem a não apoiá-lo. É um approach óbvio,
olhando em retrospectiva, mas tenho que admitir que demorei alguns
“anos” para conseguir colocar isso em prática.
O tempo que fiquei à frente do site, que chegou a ter mais de mil
comentários diários (lia a maior parte), me ajudou muito a entender melhor
como lidar com pessoas na internet e ver os limites do discurso online.
Quando Steve Jobs morreu, Richard Stallman, um dos pais da computação
moderna, criador do movimento do software livre de hábitos “excêntricos”,
disse que estava feliz que o fundador da Apple não estava mais entre nós.199
Em um post curto em seu blog, ele esclarecia que não estava “feliz” pela
morte de alguém, que ninguém merecia morrer, mas que se sentia aliviado
que a influência nociva de Jobs não existia mais.
Eu particularmente não gosto da postura radical de Stallman em vários
assuntos e acho que ele foi, no mínimo, deselegante no evento. Mas quando
resolvi escrever um texto a esse respeito no Gizmodo, no calor do
acontecimento e diante da necessidade de cumprir a meta de notícias
diárias, cometi todo tipo de erro que se pode imaginar. No título,
simplifiquei e distorci a posição dele (“este homem está feliz que Jobs
morreu”, dizia a manchete), caprichei em ironias, ataques gratuitos e fora de
contexto. Acabei mexendo em dois vespeiros: a parte vocal dos leitores do
site que odeia a Apple (logo, eles concordavam com Stallman) e os
defensores do software livre, que ouviram falar desse artigo na internet e
partiram direto para os comentários.
Era véspera de um feriado. Passei a madrugada brigando com os leitores,
colando links que sustentavam a minha tese, modificando levemente o texto
para fazer mais sentido. Mas não havia como consertar – a discussão passou
do debate sobre o texto de Stallman para a minha pessoa, ou o que as
pessoas que nunca conversaram comigo imaginavam que eu era. De manhã
cedo, na fila do check-in para Buenos Aires, exausto, saquei o celular,
apaguei o artigo e toda a discussão. Foi a primeira e – espero – única vez
que fiz isso. Mas aprendi um bocado com o episódio.
Eu não tinha razão no argumento inicial, da maneira como o coloquei,
mas se estivesse falando exatamente o que escrevi em uma mesa de bar, não
haveria grandes problemas, mesmo que não fosse entre amigos. Se alguém
ficasse incomodado, poderia fazer uma correção ali, no ato, e a conversa
seguiria. Há sempre um “não, veja bem” para calibrar o discurso. O volume
da minha voz e o riso no canto da boca denotariam facilmente a ironia. Se
alguém discordasse, eu pararia de falar e ouviria a pessoa, ela teria certeza
de que um outro ser vivo estaria prestando atenção e poderia dosar as
palavras, sem ser agressiva.
Nada disso acontece em debates online, especialmente com pessoas
desconhecidas. Algum tempo depois desse incidente do qual não me
orgulho, limitei muito o escopo das minhas discussões, especialmente em
redes sociais. Decidi, por exemplo, não fazê-las em espaços “públicos”,
como nos comentários do Facebook, quando se tratar de algo polêmico ou
que desafia fundamentalmente a posição de quem escreveu o “tópico”
originalmente. A minha experiência é que quando não temos certeza sobre
quem vai receber a mensagem – ou seja, quando postamos em um blog ou
falamos para amigos de amigos no Facebook –, corremos um risco muito
maior de não sermos compreendidos. Além disso, quando questionamos o
raciocínio de uma pessoa na frente de seus amigos, ela pode se tornar
violenta para defender o seu status e pode entender as nossas palavras como
um ataque ad hominem.
O termo em latim, que descreve quando a crítica deixa de ser à ideia para
se dirigir à pessoa, é apenas um dos vícios de debate facilmente
identificáveis online. Há o que em inglês se chama de straw man argument,
ou argumento do espantalho, quando alguém isola, simplifica e idealiza o
que o oponente diz para atacar uma posição facilmente criticável. É quando
você mostra o vídeo de um policial sendo agressivo demais com
manifestantes e alguém diz que você está defendendo o vandalismo. Há a
“falácia da associação”, que é a mais recorrente em debates políticos.
Durante a última década, quem criticava o partido do governo, rapidamente
poderia ganhar o carimbo de “reacionário”, “direitista” ou, dependendo do
humor do seu adversário, de “golpista”.
Certa vez voltei de um filme incensado pela crítica e escrevi no Twitter
que não gostei dele, dando o link para uma resenha que fazia eco da minha
opinião. Um amigo ficou meio indignado e escreveu várias mensagens
seguidas discordando, fazendo diversas inferências e me colocando em uma
“caixinha”. Eu disse apenas que ficaria feliz em debater a questão em torno
de um bom vinho, em casa. Encerrei com um “este não é o foro adequado”
e comecei a repetir esta desculpa. Funciona desde o início: meu amigo foi
de fato em casa tomar vinho e conversar sobre a vida, e simplesmente
esquecemos a “polêmica”.
Há coisas que eu simplesmente não debato online, ou limito a cinco
“tréplicas”. Tento ao máximo deixar clara a minha intenção, evito sarcasmo,
ironia e outras pistas, aponto as fontes, tento não ofender ninguém,
distribuo uns “eu acho” e “parece” para ter sempre uma saída – opiniões
definitivas e radicais são sempre menos defensáveis. Alguém pode chamar
isso de covardia ou ficar demasiadamente em cima do muro, mas acredite:
estive em discussões o suficiente para entender quão pouco benefício se tira
delas.
Apesar de achar que as redes sociais podem ser um espaço interessante
para ter contato com o contraditório, creio que elas são um espaço que se
provou pouco produtivo para grandes debates. Todos os problemas que
listei aqui decorrem em última instância da percepção que a internet é um
mundo à parte. Usamos mais ironia que o normal e ofendemos grupos de
pessoas porque não vemos a reação emocional dos atingidos, até porque
nem sabemos quem eles são – um comportamento que leva, em última
instância, ao cyberbullying. Para podermos discutir assuntos complexos
sem gastar horas digitando no teclado, também temos que tornar as pessoas
mais rasas, as ideias com menos nuances. Ou nos aprofundamos e nos
tornamos mais razoáveis ou viramos os algoritmos superficializantes que
nos entregam publicidade.

Não seja o ruído Na minha infância e adolescência, tive a


oportunidade de viajar muito pelo Brasil. Meus pais se
separaram muito cedo, e ao menos do ponto de vista de
“milhagem”, eu me dei bem, já que ambos adoravam
viajar. Meu pai gostava de colocar todo mundo no carro e
ir, digamos, até Curitiba e depois desbravar Santa Catarina
até Florianópolis em um Monza ou Santana. E, no resto
das férias, minha mãe nos levava até Recife (às vezes de
ônibus!) e subíamos por João Pessoa até Natal. Cada braço
da família vem de lugares bem distintos, então tinha casa
para ficar em Belém, Recife, Guarapari e Rio de Janeiro
para temporadas mais longas. Quando meus pais não
estavam disponíveis, minha tia de criação nos levava para
algum outro canto, nem que fosse uma velha roça perto de
Patos de Minas (MG). A prática era bastante comum entre
os brasilienses, já que a capital do Brasil foi até
imortalizada em canção por não ter nada para fazer – o que
era ainda mais verdadeiro nos anos 1980 e 1990,
especialmente nas férias escolares.

Eu atribuo às viagens uma parte enorme da minha cultura e percebo hoje


que o meu desejo de voltar às coisas offline tem a ver com as minhas
memórias de outros lugares: quero sentir de novo a textura da areia de uma
duna do Rio Grande do Norte entre os dedos, a água restauradora de uma
cachoeira na Chapada dos Veadeiros, quero beber café direto de uma dessas
fazendas no Sul de Minas. Quando digo que corremos o risco de deixar as
relações mais superficiais, falo não apenas das relações entre pessoas, como
as limitadas ao Facebook, mas também das pessoas em relações aos lugares.
Chamo o fenômeno de “CVClização” da experiência estrangeira: tenho
amigos que parecem ir aos lugares para colecionarem check-ins (as “provas
de presença” do Foursquare ou do Facebook) e fotos em frente aos
monumentos. É a realização do desejo de ter passado pelas atrações-troféu
apenas para colocar no currículo e enriquecer a persona e seus arquivos
online, mas não necessariamente para “viver” a experiência. Quando estive
no Glaciar Perito Moreno, na Patagônia, um dos lugares mais majestosos
que, digamos, testemunhei – desses que realmente fazem você repensar a
insignificância do ser humano e coisas do gênero –, fiquei realmente
incomodado com algumas pessoas que não paravam de tirar fotos. Foram a
um dos lugares mais incríveis da Terra e só tiraram o olho de trás da câmera
para fazer poses para outras câmeras. Não “respiraram” o gelo. Se for para
sair das telas do smartphone para viver a “realidade” assim, talvez seja
melhor economizar o dinheiro.
O que tudo isso tem a ver com excesso de informação? Duas coisas: a
primeira é que o “problema” do excesso de informação não é apenas uma
responsabilidade dos grandes portais de notícias e redes sociais, como pode
ter parecido aqui. Mas também é nosso, pois, numa era em que todos nós
somos produtores de conteúdo, é nossa responsabilidade melhorar a
produção de informação “sustentável”. Você certamente já passou pela
entediante missão de olhar as fotos não-editadas de amigos que acabaram
de chegar de viagem. Como não há mais limitação tecnológica tanto para
tirar foto (todo celular é uma câmera) como para armazenar os registros,
diferentemente dos “três rolos de 36 poses das últimas férias”, poucos se
preocupam em “economizar” o dedo no disparador, e despejam bilhões de
bytes de informação redundante na rede. Precisamos disso? O “espaço na
nuvem” de sites como o Flickr são gratuitos, mas o que estamos perdendo?
É bom sempre pesar quanto tempo gastamos registrando a experiência – e
na seleção do registro depois – e quanto dedicamos vivendo tudo isso. Tirar
foto pode ser divertido, sim, mas não é porque temos a ferramenta à mão o
tempo todo que temos de usá-la.
Lembro das viagens da minha infância também para comparar como era o
planejamento das férias e como é hoje. Não havia naqueles anos incríveis
este monte de revistas, sites e blogs especializados em turismo. Então, o
nosso planejamento da viagem começava com alguma conversa no
churrasco de domingo ou outra discussão entre adultos. Alguém relatava
um lugar incrível, seguido de “vocês precisam conhecer”. Às vezes havia
algum álbum de fotos para acompanhar, mas normalmente era apenas a
lábia do relato de viagem associado à vontade da minha família de
desbravar novas terras.
Se o lugar estava acertado, meu pai comprava o Guia Quatro Rodas do
ano, que eu devorava. Além das grandes capitais, cada cidade tinha
pouquíssimas opções de hospedagem boa e barata, então ligávamos para os
dois ou três hotéis (normalmente albergues) do guia, na ordem, e
reservávamos. Ou nem isso. Se chegávamos antes do combinado no lugar,
buscávamos na rodoviária mesmo alguma dica e pronto. Nem sempre tudo
dava certo, obviamente – com esta logística, encontramos espeluncas,
fizemos programas de índio e comemos em lugares caros e ruins, ao
contrário do que as estrelas do guia indicavam. Mas o importante para a
discussão aqui é que o planejamento da viagem era uma experiência
simples, em sua essência.
Hoje, graças à internet, a gênese das férias pode ser radicalmente
diferente. A começar pela escolha do destino. Há uma quantidade
incrivelmente maior de revistas e sites de viagem, e os brasileiros estão
viajando muito mais. Então, o próprio início da viagem, quando ela ainda é
uma ideia, nasce muitas vezes de maneira distinta. Como repetimos que
estamos “sem tempo”, “trabalhando demais” e “precisando de praia” ou
algo nessa linha, abrimos uma dessas revistas e nos inspiramos em lugares
que sempre são paradisíacos em fotos.
Se você está lendo sobre o destino em uma revista digital ou em um site,
o processo de aquisição de uma viagem pode ser bem simples. Na internet,
junto do relato do “roteiro ideal de compras em Nova York”, provavelmente
há um link de uma agência de turismo com o pacote completo por um preço
razoável. Para completar, vários sites como o Submarino Viagens,
Hoteis.com ou Decolar.com dão descontos para quem compra os bilhetes
junto da hospedagem. Mas desconfiamos: pode não ser tão barato e nem ser
o melhor roteiro.
E a internet está aí para isso: há mais opções, informações, é mais fácil
achar ofertas e com garantia de que você está fazendo o certo – desde
recomendações de outros usuários, até seguros de viagem. Então, dá para
ter certeza que estamos escolhendo a passagem mais barata e ficando no
hotel mais interessante por aquele preço: se você é uma pessoa
razoavelmente resoluta, consegue matar a escolha da viagem em uma
tacada na frente do computador. O quão rápido você resolve, na verdade, é
diretamente proporcional ao limite do seu cartão de crédito.
Para planejar a conexão com as coisas importantes, as paisagens que vão
ser lembranças inesquecíveis, a rede é uma bênção. Só que, da mesma
forma que as muitas opções de comunicação nos distraem no trabalho, o
excesso de opções e informações pode transformar processos de escolha
simples em jogos nos quais o objetivo é maximizar o uso dos nossos
recursos.200
Como nossas férias são cada vez mais raras, queremos acertar em tudo. E
se você estiver disposto, é possível planejar a viagem perfeita, com melhor
custo-benefício de todos os tempos, da companhia aérea ao hotel, passando
pelo restaurante da quarta cidade no 13º dia, depois de visitar aquela lojinha
escondida atrás do museu. A questão é: nós queremos isso mesmo? Todas
as ferramentas deixam tudo mais fácil, mas a partir de qual momento o
excesso de opções vira confusão?
As pesquisas no campo da psicologia dos últimos anos podem indicar que
tanto tempo de pesquisa antes de comprar algo não é necessariamente bom.
“Quanto mais opções você considerar, maior será o seu remorso de
comprador. Quanto mais opções você encontrar, menos realização você terá
sobre a sua solução”, resume Barry Schwartz, autor de The Paradox of
Choice: Why More is less (O paradoxo da escolha: por que mais é menos).
201
Renata Salecl, autora do livro The Tyranny of Choice (A Tirania da
Escolha), diz que o nosso mundo dos livros de autoajuda e conselheiros de
TV ajuda a criar a ilusão de que existem escolhas perfeitas, soluções ideais.
Olhando as prateleiras dos mais vendidos, parece que ter um casamento
perfeito, achar o trabalho que te deixa feliz ou fazer um jantar sedutor tem a
ver apenas com uma sucessão de escolhas bem feitas. “Se mais opções
aumentarem demais a expectativa, ela pode fazer até uma decisão boa
parecer ruim. O potencial para se arrepender das opções não escolhidas – o
carro mais rápido, o hotel com uma vista melhor – parece ser maior em face
das múltiplas opções”, explica uma reportagem da Economist. A revista,
defensora ávida do livre mercado e da maior quantidade de opções possível
também se dobrou ao problema da tirania da escolha.202
Como escapar das bolhas dos algoritmos e ao mesmo tempo navegar pelo
excesso de opções sem nos sentirmos estafados com tantas escolhas?
Alguns dos estudiosos de internet mais otimistas creem na sabedoria das
multidões.13 Como todo mundo tem hoje acesso a ferramentas de avaliação
de conteúdo (leia-se, a capacidade de conferir estrelinhas e escrever
resenhas em sites e aplicativos), meu pai poderia deixar de lado o bom e
velho Guia Quatro Rodas na hora de planejar a viagem e confiar nas
avaliações gratuitas de pessoas como eu e você, em sites como o
TripAdvisor ou o Foursquare.
Os advogados do crowdsourcing – terceirizar para a multidão – dizem
que o excesso de opções já está sendo regulado pelas preferências da
maioria, como o PageRank do Google faz. É um raciocínio curioso, já que
até anteontem dizia-se que “toda unanimidade é burra”, especialmente
quando falamos de produtos artísticos. É bem verdade que algo avaliado
como muito ruim por um grande número de usuários em sites como o
Reclame Aqui dificilmente vai ser “bom”, mas as resenhas e curtidas online
não seguem exatamente um padrão e tampouco definem o que é melhor
para você. Checando agora, vejo pelo menos 30 listas de “melhores
hambúrgueres de São Paulo” no Foursquare. Eu, que me julgo relativo
entendedor da iguaria, percebo grandes omissões que não escapariam de um
Josimar Melo, o crítico gastronômico da Folha de S. Paulo. Fora que há
ainda as brechas para trapaça: consultando o TripAdvisor para ver resenhas
de hotéis em outros países como a Índia, é comum funcionários de um hotel
X reclamarem de baratas encontradas no quarto do hotel Y, na busca por
clientes estrangeiros. E há ainda os serviços que vendem resenhas positivas
em sites como a Amazon.203
Apesar das falhas da crowd, algumas pessoas influentes, como Paulo
Coelho204, avaliam que a crítica de amadores e as estrelinhas de sites de
resenhas (ou “reviews”, como alguns preferem aqui) horizontalizaram a
relação do consumidor com o criador e são um sinal de democratização da
cultura e do consumo. Nessa linha de raciocínio, não há mais uma elite que
nos diz o que é bom ou ruim, seja ela formada por jornalistas dos guias de
viagem, críticos gastronômicos ou editores de revistas de cultura. Eu sou
muito favorável a gastar menos tempo pesquisando a melhor opção e
confiar mais nas indicações de amigos – sempre fizemos isso na era pré-
internet. Mas as mais de 600 pessoas que não são meus amigos e atribuíram
estrelas ao tradicional restaurante paulistano Famiglia Mancini no
TripAdvisor, não me ajudam com suas opiniões de uma linha. Apenas criam
mais ruído.
“Bons restaurantes podem ser bons por uma enorme variedade de razões
– da consistência à aderência a alguns padrões culinários –, que podem não
ser óbvias para resenhadores não profissionais. Se o objetivo é fazer com
que os consumidores vão a lugares encher seus estômagos com comida
agradável, entre mandar fotos para o Instagram e postar novidades no
Twitter, então o Yelp [site de resenhas e recomendação de lugares] é
perfeito. Mas se alguém vê a cozinha como uma arte e tem seus próprios
padrões de excelência e sua própria tradição intelectual e artística, que
garantem à culinária a missão de educar e também provocar, então o Yelp
não atende às expectativas”, defende Evgeny Morozov.205
A recente celebração do amadorismo, de acreditar que vídeos no Youtube,
“reportagens” de testemunhas que se transformaram em jornalistas ao fazer
relatos no Facebook e fotos do Instagram são melhores, ou mais legítimas,
que as produzidas profissionalmente, é problemática. É importante que a
rede tenha quebrado o monopólio da comunicação e é realmente muito bom
que todo mundo tenha novas formas de se expressar, para plateias cada vez
maiores. Mas – e esta é a principal mensagem do capítulo – com grandes
poderes vêm grandes responsabilidades.
Se há um problema de overdose de informação, muito se deve ao fato de
que há um número muito maior de produtores. O “bombardeio” diário não
vem só do sensacionalismo dos portais da internet, mas também das
opiniões histéricas, piadas repetidas e fotos desfocadas compartilhadas
pelos seus amigos nas redes sociais ou por e-mails. Eu e você temos uma
responsabilidade de melhorar o ambiente da informação, de deixar a casa
mais limpa.
Nas páginas da Amazon, é possível encontrar algumas pessoas que
realmente se esforçam para escrever boas resenhas, algo muito pouco
comum por aqui. Ao lado de cada avaliação com uma estrelinha, há um
botão com a pergunta “esta resenha ajudou você?”. Eu clico com prazer.
Precisamos criar mais avaliações que ajudem as pessoas a decidir,
compartilhar mais conhecimento que efetivamente faça a discussão avançar,
registrar menos e viver mais. Para melhorar a relação entre sinal e ruído na
nossa vida online, precisamos não só parar de compartilhar aqueles links
gordurosos, mas deixar de produzir lixo digital.
164 http://gawker.com/5677453/jon-stewarts-closing-rally-speech-if-we-amplify-everything-we-
hear-nothing

165 Nicholas Nassim Taleb, The Bed of Proscrutes (2011) - Penguim

166 http://www1.folha.uol.com.br/colunas/helioschwartsman/1193225-as-mas-noticias.shtml

167 http://www.youtube.com/watch?v=DW3_JhQksv4

168 http://www.theguardian.com/media/2013/apr/12/news-is-bad-rolf-dobelli

169 Entrevista a Matt Richtel, em “Wasting time is the new divide in the digital era”. New York
Times, 29/mai/2012. http://www.nytimes.com/2012/05/30/us/new-digital-divide-seen-in-wasting-
time-online.html?pagewanted=all

170 Karl Frisch, “24/7 media…exposes us to all kinds of arguments, some of which don’t always
rank that high on the truth meter”, Media Matters, 9/mai/2010. Acessado em:
http://mediamatters.org/blog/2010/05/09/obama–247-mediaexposes-us-to-all-kinds-of-argum/164426

171 http://news.cnet.com/8301–19518_3–10438088–238.html

172 http://dsc.discovery.com/tv-shows/curiosity/topics/10-reasons-why-laughing-good-for-you.htm

173 http://youpix.com.br/top10/saiba-quais-sao-os–25-canais-mais-relevantes-do-youtube-brasileiro/

174 http://caosordenado.com/o-zahir-digital/

175 http://starwars.wikia.com/wiki/Galactic_Civil_War
176 Pela tese da “Cauda longa”, os custos de armazenamento e distribuição digitais permitem que se
venda um pouquinho de muitas coisas. Mas isso só tem sido verdade para gigantes como os
exemplos dos quais ele gosta: Amazon, iTunes e Google. Da mesma forma que bandas de um tipo
muito específico de metal tem público internacional graças à internet mas não enriquecem, os sites na
ponta da cauda longa têm fãs, mas não dão um grande lucro. De certa forma, são justamente os
gigantes monopolistas que lucram mais com a democratização do conhecimento.

177 Lá Vem Todo Mundo - o Poder de Organizar Sem Organizações (2012) - Zahar.

178 Revista superinteressante, 246 - dezembro de 2007.

179 http://techcrunch.com/2013/08/06/google-search-starts-highlighting-in-depth-articles-in-new-
knowledge-graph-box/

180 http://www.searchenginejournal.com/will-google-be-around-in–2-years/37418/

181 http://www1.folha.uol.com.br/fsp/saude/sd1909201001.htm

182 http://www.nytimes.com/2008/11/25/technology/internet/25symptoms.html

183 http://www.huffingtonpost.com/2012/12/05/senior-scams_n_2244894.html

184 http://www.serasaexperian.com.br/guiaidoso/97.htm

185 http://www.ibope.com.br/pt-br/noticias/Paginas/Confianca-do-brasileiro-no-STF-e-maior-do-
que-na-Justica.aspx

186 Farhad Manjoo, True Enough: Learning to Live in a Post-Fact Society (2008) - Wiley.

187 Bruce Schneier, Liars and Outliers: Enabling the truth that society needs to thrive (2013) -
Wiley.

188 Em True Enough.

189 http://www.economist.com/node/18904112

190 http://revistapiaui.estadao.com.br/edicao–47/anais-do-marketing-politico/pancadaria-na-rede

191 http://www.forbes.com/sites/andersonantunes/2013/08/01/why-brazilians-oddly-blame-the-
globo-media-empire-for-the-countrys-misfortunes/2/

192 https://www.facebook.com/jean.wyllys/posts/560735023974509

193 http://oglobo.globo.com/tecnologia/mentiras-sociais–9498265#ixzz2cFjHeM9F

194 http://www.estadao.com.br/noticias/impresso,midia-ninja-e-o–futuro-desfocado-,1064592,0.htm

195 http://www1.folha.uol.com.br/colunas/joaopereiracoutinho/2013/08/1325250-jornalismo-
amazonico.shtml
196 Eu uso um programinha para acompanhar o Twitter, chamado TweetBot. Em vez de deixar de
seguir ou bloquear uma pessoa, é possível “silenciá-la” (colocando-a no “mudo”) por um
determinado tempo. Preciso fazer isso em tempos de final de campeonato, quando analistas políticos
razoáveis viram torcedores fanáticos e verborrágicos.

197 Christopher Gonciarz, U Mad? The Internet’s Guide to Idiots, KG Tofu Media, 2012.

198 Timothy Campbell, “Internet Trolls”, AOL, 2001. Acessado em:


http://web.archive.org/web/20011026130853/http://members.aol.com/intwg/trolls.htm

199 Richard Stallman, “Steve Jobs”, Political Notes, outubro de 2011. Acessado em:
http://stallman.org/archives/2011-jul-oct.html#06_October_2011_%28Steve_Jobs%29

200 No meu mundo de jogos de tabuleiro, é comum reclamar do design de um jogo dizendo que ele
“induz a Analysis Paralysis”, ou “AP”. Quando o jogo tem muitas opções, os jogadores mais
analíticos podem perder muitos minutos na sua vez de jogar, prejudicando a experiência dos outros à
mesa.

201 Barry Schwartz, “Sobre o paradoxo da Escolha”, TED; Acessado em:


http://www.ted.com/talks/barry_schwartz_on_the_paradox_of_choice.html

202 “The Tiranny of Choice. http”, The Economist, 16 dez 2010; acessado em
http://www.economist.com/node/17723028

203 David Streitfeld, “The best reviews money can buy”, The New York Times, 25 ago 2012;
Acessado em http://www.nytimes.com/2012/08/26/business/book-reviewers-for-hire-meet-a-demand-
for-online-raves.html?src=xps

204 Rodrigo Levino, “Paulo Coelho, que lança seu 22º romance, diz que ”Ulysses“ fez mal à
literatura”, Folha de S. Paulo, 4/ago/2012; Acessado em:
http://www1.folha.uol.com.br/ilustrada/1131545-paulo-coelho-que-lanca-seu–22-romance-diz-que-
ulysses-fez-mal-a-literatura.shtml

205 Evgeny Morozov, To save everything Click Here: The Folly of Technological Solutionism, 2013,
PublicAffairs
5. O preço do gratuito
“Ao fazer com que o fato de pagar pelo conteúdo fosse algo essencialmente
opcional, a pirataria jogou o preço dos bens digitais lá embaixo. O resultado é
uma corrida para o fundo do poço e a resposta inevitável das empresas de mídia
tem sido fazer cortes – primeiro no pessoal, depois na ambição e finalmente na
qualidade.” – Robert Levine206

Antes da popularização da internet, consumíamos uma grande parte da


produção artística e intelectual pagando pelo chamado “suporte físico” – as
ideias materializadas em algo que pudéssemos tocar. Pagávamos por música
comprando opcional vinil e depois o CD; consumíamos jornalismo indo à
banca ou assinando um jornal ou revista; financiávamos os escritores indo
às livrarias e comprando aquele monte de páginas encadernadas;
gastávamos o orçamento do fim de semana em ingressos para o cinema e
aluguéis em locadoras, e a existência dos jogos eletrônicos dependia de nós
comprarmos fichas no fliperama ou pagarmos primeiro por cartuchos e
depois por DVDs.
Tudo isso nunca foi exatamente “barato” no Brasil. E, no fundo, sempre
soubemos que quando pagávamos R$ 20 em um CD, em 1998, não
estávamos comprando apenas um disquinho de plástico com um livreto.
Aquele bem industrializado não representava mais do que 10% do preço,
mesmo com os impostos incluídos. Mas como todo o custo envolvido era
tangível – íamos a uma loja e víamos os funcionários, sabíamos que tinha o
transporte, marketing, impressão, estúdio, etc. –, pagávamos sem reclamar
muito, ou sem considerar um modelo alternativo. Eu, pelo menos, pagava –
gastei muito das minhas economias comprando CDs.
Eu uso os verbos no passado porque para muita gente, especialmente as
gerações mais novas, tudo isso é de fato passado. Estamos comprando
menos objetos que contêm arte ou produção intelectual. Nos EUA, onde há
dados mais confiáveis, é possível ver mais claramente a tendência da
indústria musical: no ano de 2000, os americanos gastaram em média US$
71 per capita em música (gravada). Em 2009, esse valor chegou a US$ 26207
– já temos a opção de comprar downloads há mais de 10 anos e a opção
conveniente não suplantou as perdas. Hoje, os suportes físicos não têm mais
um grande valor, a não ser para quem tem fetiche de colecionar. Para quem
conhece os caminhos nada complexos, é possível viver consumindo
bastante cultura e pagando quase nada por ela. Nesse cenário, para que
gastar para ter essencialmente o mesmo conteúdo que uma versão
“gratuita”?
Há, é claro, maneiras legais de não pagar por cultura. E elas sempre
existiram: há décadas, temos a TV aberta e o rádio, ou bibliotecas públicas.
Mas as alternativas gratuitas sempre foram produtos notadamente
inferiores. Hoje, nem tanto: posso ouvir música ou assistir a shows em alta
definição no YouTube; consultar a Wikipédia que é melhor (em inglês, ao
menos) que a Barsa e a Britannica; ler PDFs de livros fora de catálogo ou
me informar por sites de notícias, a maioria deles com acesso quase
totalmente gratuito.
De maneira legal ou não, nas últimas duas décadas nos acostumamos à
ideia de que o que está na internet é grátis. Mesmo quando custou caro para
ser produzido ou quando o “dono” daqueles bytes de informação não quer
que ela seja gratuita. Há sérias dúvidas sobre a sustentabilidade desse
mundo de informações grátis. A opção legal depende, essencialmente, de
que as grandes empresas continuem gastando muito dinheiro em
publicidade na internet – e também não há muitas certezas sobre isso. E há,
é claro, o elefante na sala: a “pirataria”.
Precisamos conversar mais sobre isso, e quero gastar algumas linhas para
discutir a pirataria. É bom dizer que este é um termo problemático, mas que
definiremos por ora como a cópia (envolvendo venda ou não) não
autorizada de conteúdo protegido por direitos autorais. Ela é uma realidade
cotidiana no Brasil. Estamos na lista negra dos EUA, entre as nações que
não sabem lidar direito com a propriedade intelectual.208 Somos o quinto
país com o maior número de downloads ilegais de música,209 e quase 60%
do mercado de filmes em DVD é dominado por cópias piratas.210 A
pirataria, é claro, não se restringe a downloads, e estamos mal em outras
áreas. Roupas, bolsas, cigarros e até remédios falsificados são facilmente
encontrados em qualquer cidade do Brasil.
Por que isso acontece? Há uma série de fatores. A tecnologia obviamente
desempenha um papel importante, por facilitar enormemente o processo, e
ela ajudou a modificar o nosso comportamento – decisivamente para pior,
se pensarmos para além do consumo egoísta. Mas a tecnologia, novamente,
não é a única culpada. O alcance de pirataria no Brasil se deve a uma série
de fatores culturais também, que passa pela conivência das autoridades, a
resignação (ou mesmo encorajamento) de muitos artistas, a relativa falta de
dinheiro da população, o atraso na oferta de opções digitais pagas e, bem, a
nossa velha mania de querer levar vantagem sempre que a oportunidade
surge.
A questão mais complicada, e que me fez escrever um capítulo específico
sobre o assunto, é que consumir conteúdo pirata é um comportamento que
ainda não parece ser visto como um grande problema no nosso país,
especialmente entre os mais jovens. Não é que ele seja apenas “tolerado”, é
algo mais pervasivo. É normal ver camelôs vendendo DVDs em todos os
lugares; jornalistas que cobrem música distribuem nas redes sociais links de
discos vazados; profissionais consagrados copiam reportagens inteiras e
colocam em seus sites sem pedir autorização; uma pessoa pode ser
rapidamente “descolada” no seu círculo de amizades se souber antes como
baixar e colocar legendas na série de TV do momento; e até tivemos um
presidente assistindo DVD pirata211 em uma viagem.
E por que seria diferente? Até uma parte da justiça parece ter desistido de
enfrentar a questão. Em 2012, o Ministério Público do Rio Grande do Sul
denunciou um camelô que tinha uma banquinha de DVDs piratas. O juiz da
cidade de Alvorada acabou absolvendo o réu porque considerou que a
“conduta perpetrada pelo agente é flagrantemente aceita pela sociedade e,
por tal motivo, impassível de coerção pela gravosa imposição de
reprimenda criminal”.212 Em outras palavras: se todo mundo faz, não
deveríamos liberar tudo logo?
Não. A pirataria, ou melhor, a ideia de que temos “direito” ao acesso
grátis a qualquer coisa porque o custo de distribuição subitamente é
próximo de zero, é péssima para a sociedade no longo prazo. Isso parece
óbvio se começarmos a investigar todos os custos de produção e como o
mercado de trabalho se desenhará no futuro, ou quando desconstruímos a
narrativa pró-pirataria que alguns intelectuais e a imprensa vêm nos
vendendo nos últimos anos. Isso posto, hesitei em tocar no assunto porque
questionar esses comportamentos arraigados parece coisa de gente que
parou no tempo e não entendeu a “revolução”. Entre quem escreve sobre
internet e tecnologia no Brasil, sempre fui da ala dos caras “estranhos” por
ter uma posição fortemente antipirataria (ou anti-“tudo grátis”). Há uma
pressão para adotar a posição “descolada”, de concordar com gente como
Gilberto Gil, que classifica pirataria como “desobediência civil”.213 E ele foi
nosso ministro da Cultura.
Quando eu digo que é importante que nós nos conectemos ao que
importa, falo muito do trabalho artístico e intelectual. Nunca tanta gente
teve tanto acesso à arte e cultura. Poder ver quase qualquer filme ou ouvir
qualquer música a qualquer hora, com um esforço e custo mínimos, é algo
tão incrivelmente sublime que deverímos parar e agradecer por isso mais
vezes. É fácil e nada custoso enriquecer a mente e o espírito com o melhor
da criação humana.
E nós estamos jogando essa oportunidade no lixo, achando que tudo deve
ser de graça ou no máximo ridiculamente barato.

Um problema invisível Este livro é em grande parte o


resultado da minha jornada em busca da vida digital
saudável e da superação de hábitos ruins. Tento ao
máximo dizer para fazer o que falo, que muitas vezes é
diferente do que eu “fazia”. Em relação ao download
“ilegal”, especificamente, posso dizer que “pequei” muito
e por muitos anos. Música e filmes sempre foram parte
importante da minha vida. E, consequentemente, do meu
orçamento. Mas o acesso às tecnologias conectadas mudou
essa relação.

Outrora um adolescente que gastava mais da metade da mesada com


música – esperava até 45 dias para que um CD encomendado chegasse na
importadora –, passei em muito pouco tempo a gastar praticamente zero. E
foi assim por mais de uma década. Ainda era final dos anos 1990 quando
descobri os sites que tinham músicas em formato mp3 (compactas que
podiam ser transmitidas mesmo em conexões ruins). Fui um dos primeiros
da turma a comprar um gravador de CDs (“é importante para fazer backups
dos nossos discos!”, foi a desculpa que usei para convencer minha mãe) e
desenvolvi o hábito de baixar conteúdo compulsivamente. De repente, via
um clipe na MTV e, no dia seguinte, tinha a discografia completa da banda,
que raramente ouvia inteira depois, mas isso é outra questão.
Nos anos 2000, descobri os torrents e exatamente onde, como e quando
conseguir baixar seriados que nem passavam no Brasil. Comprei um
gravador de DVD e, além de abandonar o hábito de ir à locadora (era um
dos maiores clientes da Cult Vídeo em Brasília, disse o dono, certa vez),
passei também a ir muito pouco ao cinema. “Sobrevivi” os primeiros anos
em São Paulo sem ter sequer TV a cabo. Era só ligar o XBox (videogame
igualmente desbloqueado para jogos baixados) na TV e assistir à última
coisa que achava na internet. Talvez nunca tenha consumido “em tão grande
número” produtos culturais como nesse período. Não lembro de uma
enorme parte deles, já que passava consideravelmente menos tempo com
cada disco ou jogo, por exemplo. Mas qual foi o preço disso tudo? Zero, pra
mim.
E para os artistas e produtores de cultura em geral? É difícil saber, se
você acompanha o que sai na imprensa brasileira. A nossa mídia, que tenta
parecer jovem e conectada, e não uma mãe reguladora, dá espaço de
maneira desproporcional para aqueles que defendem o relaxamento total
dos direitos autorais e a cultura de que tudo deve ser grátis com a internet.
Celebra os cases que se encaixam nessa hipótese e dá muito pouco espaço
para quem a desaprova.
É verdade que é difícil quantificar as “perdas” da pirataria em termos de
empregos extintos ou o achatamento da renda média de artistas, por
exemplo. Também é verdade que essa não é uma conta impossível de se
fazer – só que ninguém na imprensa brasileira parece se interessar por essa
pauta. Nossa mídia e boa parte das autoridades que lidam com o tema
esquivam-se da questão moral que deveria ser razoavelmente clara e
consiste em pensar como seria se todo mundo adotasse o comportamento
“pirata”. Baixar um arquivo ilegal não é a mesma coisa que roubar uma
bicicleta, como tentam transmitir aquelas amedrontadoras propagandas da
indústria do entretenimento. O dono continua com o mesmo número de
bens à disposição para venda. Mas isso não quer dizer que não há prejuízo.
Se ninguém pagar para um músico quando ele lançar um álbum, por que
ele vai gastar tanto tempo preparando-o e para que se dar ao trabalho de
colocá-lo à venda? Se ninguém pagar para assistir a um filme, quem diabos
vai se sentir incentivado a produzir novos títulos? E as séries de TV?
Estamos em uma era de ouro, com obras como Lost, Breaking Bad, Game
of Thrones e Homeland, porque há um número recorde de gente pagando
TV a cabo e deixando uma verba considerável na mão dos produtores para
que eles inovem. E se ninguém pagar, e só baixar as séries; haverá
publicidade que dê conta das despesas? A verdade é que o comportamento
“pirata” supõe que existam parasitas e pessoas de boa fé, ou, no léxico de
quem leva vantagem no Brasil, malandros e manés.
Mesmo assim, essa questão é raramente abordada na nossa imprensa. Em
vez disso, o que nos apresentam repetidas vezes é o que eu chamaria de
“teoria da inevitabilidade da pirataria”. Em linhas gerais, ela diz o seguinte:
a atual tecnologia, da internet de alta velocidade, o compartilhamento direto
entre pessoas (a tecnologia p2p) e a dificuldade de rastreamento permitem a
pirataria, e não há como voltar atrás. As empresas têm que se adequar aos
novos tempos e oferecer ao consumidor um produto pelo menor preço
possível, de maneira conveniente, sem atrasos e janelas de lançamento, sem
proteção anticópia. Se alguns artistas e produtores se derem mal no
processo, isso faz parte da natureza “disruptiva” da tecnologia, e eles
precisam achar outras fontes de receita. Músicos não devem esperar ganhar
dinheiro com discos, mas, sim, com shows ou vendendo suas produções
para trilhas sonoras de programas de TV ou publicidade. E em um futuro
muito próximo, autores de livros devem se contentar com o ciclo de
palestras. No fundo, toda essa mudança é boa, segundo essa teoria, porque
as pessoas terão mais acesso à cultura e os intermediários (estúdios, editoras
e a TV Globo) perderão o poder de explorar artistas, que teriam um contato
mais próximo com o público.
Essa é a narrativa predileta dos nossos intelectuais e dos deterministas da
tecnologia, apesar de ela estar cheia de furos. Você encontra a tese de que a
pirataria triunfou e não há mais volta em qualquer veículo respeitável. A
Superinteressante,214 minha revista favorita, foi seguidas vezes ao tema,
sempre defendendo a pirataria na linha de que, afinal, é a regra mesmo. O
artigo intitulado “A pirataria venceu”, de 2009, concluía: “Essa é a
tendência. O entretenimento está deixando de ser um produto pago para se
transformar em serviço gratuito – cujo propósito é apenas estimular a venda
e o uso de outros produtos e serviços”.
Nos jornais, a coisa não é muito diferente. A Folha de S. Paulo, por
exemplo, dá chamadas cretinas como “Pirataria ajudou Breaking Bad, diz
criador da série”215 e coloca na terceira linha que a pirataria ajudou apenas
“na consciência da marca”. Lendo a nota, vê-se que Vince Gilliam, criador
da espetacular série, reconhece que teria ganho mais dinheiro se os
downloads “tivessem sido feitos de maneira legítima”. E, no fim, diz que “a
pirataria continuará sendo um problema porque ‘todo mundo precisa comer.
E todos nós precisamos ser pagos’”. Como diabos essa “pirataria ajudou
Breaking Bad”? De que forma essa é a mensagem principal? Esse é o viés
da nossa mídia, sempre em busca de histórias que sustentem a tese da
cultura grátis – mesmo que para isso se tenha que tirar uma frase do seu
contexto.
Em outro grande jornal de São Paulo, o Estadão, tivemos por pelo menos
três anos uma defesa incansável da lógica da gratuidade de tudo na internet,
no caderno “Link” e no blog “P2P e cultura digital livre”. Um dos últimos
artigos do site, por exemplo, falava sobre projetos de lei que propõem
instituir um imposto sobre a banda larga ou a venda de HDs e celulares.
Portugal e Canadá estudam reverter essa nova fonte de receita para os
artistas que, vejam só, não estão ganhando mais tanto dinheiro. A jornalista
diz o seguinte sobre a solução: “Modelos de pagamento obrigatório podem
ser uma solução porque não alterariam a rotina do usuário. O problema é
que o pagamento obrigatório enquadra todos os usuários de internet como,
piratas. Mas quem não é?”216 Na lógica da jornalista – uma entre várias a
pensar assim –, parece que ninguém vai pagar por conta própria por
conteúdo tendo a opção gratuita à disposição, então é melhor inventar uma
nova taxação.
Essa “lógica” de que todo mundo pirateia mesmo, então está tudo bem,
acaba sendo “defendida” com o argumento de que não há tanto prejuízo
assim para o produtor. A revista Info, por exemplo, colocou o seguinte título
na capa de uma edição de 2012: “Existe internet sem pirataria?”. A
reportagem, ouvindo as mesmas fontes pró-compartilhamento e antileis
rígidas de direito autoral de sempre, diz em determinado momento que “o
primeiro passo é abandonar a ideia de que a livre troca de conteúdo está
acabando com o lucro dos produtores e dos artistas. Isso não é verdade”.217
Isso não é verdade, de novo, apenas se nos concentrarmos nas histórias
que se encaixam na narrativa e descartarmos todos os indícios que dizem o
contrário. E eles são muitos. O faturamento das principais empresas
brasileiras do setor de música (do atacado ao varejo), por exemplo, caiu de
R$ 1,1 bilhões, em 1997, para aproximadamente R$ 360 milhões em 2009,
segundo dados da Associação Brasileira dos Produtores de Discos
(ABPD).218
E isso é realidade em quase todos os países. A provavelmente mais
profunda revisão acadêmica sobre o assunto, publicada pela Universidade
de Carnegie Mellon em 2012, conclui: “Com uma exceção, todos os
trabalhos acadêmicos que conhecemos de grandes periódicos avaliados por
pares encontram provas de que as vendas de conteúdo recentemente
lançado tiveram impacto negativo estatisticamente significativo como
resultado da troca de arquivos ilegal. Esses papers usam uma variedade de
métodos, períodos de tempo e contexto”. Este estudo não mereceu nenhum
destaque (ou sequer menção, pelo que pesquisei) na imprensa brasileira.
Mas qualquer produção acadêmica que sugira o contrário, ganha espaço.
Como, por exemplo, um artigo elaborado pela London School of
Economics em outubro de 2013, que, apesar de grotescas falhas de
metodologia e contabilidade de dados219, ganhou as manchetes em sites
brasileiros porque estava em consonância com os apologistas de downloads
não autorizados. Na Carta Capital, por exemplo, o jornalista conclui a
notícia dizendo: “Os estudos parecem apontar em apenas uma direção: a
incompetência da indústria de entretenimento para encontrar um novo
modelo de negócios capaz de suplantar a queda de consumo de formatos
físicos como CDs e DVDs”.220 Como se fosse “obrigação” da indústria
achar outros modelos, e não nossa, a responsabilidade de pagar para que o
que consumimos continue sendo produzido.
São conhecidas e sempre lembradas as histórias da indústria do
Tecnobrega, em Belém, onde, reza a lenda, os grupos lançam seus trabalhos
diretamente por meio dos camelôs e não “se incomodam” com a pirataria, já
que ganham dinheiro nas festas de “aparelhagem”. Uma reportagem da
Folha de 2007 traz a explicação de Ronaldo Lemos, ex-professor da FGV e
fonte sempre ouvida para esse assunto, e ele diz o seguinte: “No modelo
tradicional, a ideia era a de que quanto mais protegesse a criação
intelectual, melhor seria do ponto de vista econômico. Mas há dez anos
surgiu uma alternativa. Os artistas, seja uma banda, um escritor,
disseminam os seus trabalhos livremente e ganham dinheiro partilhando o
conteúdo”.221
Lemos escreveu um livro sobre o assunto – onde reconhece, diga-se, que
os compositores são prejudicados com o novo modelo – e o exemplo do
Pará é referência até hoje para quem defende que o modelo de distribuir
música gratuitamente é o futuro para os artistas. O case foi parar, por
exemplo, no livro Free - Grátis, o futuro dos preços, de Chris Anderson –
espécie de bíblia para quem defende a lógica do conteúdo gratuito. O
americano, ex-editor da influente revista Wired, cita o exemplo da banda
Calypso, que “não se importa de não ganhar dinheiro com a venda de discos
piratas”,222 e ilustra a tese dizendo que eles ganham tanto dinheiro com
shows que têm o seu próprio avião. Essa historinha é repetida até hoje pela
imprensa pró-gratuidade.
Mas em uma entrevista de 2010 (quatro anos depois do livro de Chris),
Joelma, a estrela da banda paraense, reclamava da pirataria: “Acho que terá
que inventar um novo método para vender CD, se é que vai existir CD
daqui mais um tempo. A tecnologia está tão avançada que não sei como a
gente vai vender música agora”.223 E Chimbinha, o principal compositor,
reconheceu em uma entrevista à revista Trip que as vendas que poderiam
ser consideradas “ilegais” o ajudaram no início, mas aquele era um outro
momento. “No nosso começo não existia essa pirataria de internet que tem
hoje, de baixar música de graça. Na época, a pirataria era só de CD. Isso
ajudou bastante a gente. Mas hoje a gente lança o disco, amanhã tão
baixando. Atrapalha as vendas. As pessoas não sabem o quanto a gente
investe, mesmo sendo independente.” E sobre a estratégia revolucionária da
cena paraense, Chimbinha relata que foi pura necessidade. “A maioria dos
artistas daqui faz isso. Hoje não existe gravadora no Norte e no Nordeste, só
no Rio e em São Paulo. Então, tivemos que fazer isso aqui para viver de
música, porque as gravadoras foram embora daqui. E, se continuar desse
jeito, elas vão embora do Brasil.”224
Fico nos exemplos da música por serem mais numerosos e porque ela foi
a primeira grande indústria do entretenimento a ser afetada pelo
compartilhamento de arquivos digitais, na virada do milênio. Os
experimentos com distribuição gratuita são sempre alardeados na imprensa
quando acontecem, mas raramente são revisitados para que se verifique a
viabilidade no longo prazo. O catarinense radicado em Maceió, Wado, um
dos meus artistas favoritos da geração mais jovem da música brasileira, foi
celebrado por lançar o seu sexto disco apenas na web, para download.225
Meses depois, deu uma “polêmica” entrevista, na qual afirmava estar
cogitando fazer concurso público. “Vivo mal e estou procurando emprego.
Já tenho uma obra, agora é hora de tentar ser feliz, e felicidade exige contas
pagas.”226 Um prêmio de melhor canção do ano da MTV em 2012 e shows
lotados não foram suficientes para mudar muito a sua condição financeira.
O nova-iorquino Kyp Malone, líder do TV on the Radio, das queridinhas
da crítica internacional e atração principal de diversos festivais pelo mundo,
fica impressionado e acha até engraçado quando as pessoas não acreditam
que até hoje, depois de mais de dez anos na estrada e discos incluídos no
top 20 dos EUA, ele viva de aluguel. “Eu me sinto razoavelmente sortudo.
Eu tive a sorte de prover a mim mesmo e à minha família, mas eu não vou
conseguir comprar uma droga de uma casa com dinheiro da música. Eu não
sei de que forma o paradigma terá que mudar para isso virar algo real, mas
hoje parece um sonho.”227
O fato de Kyp e tantos outros astros da música atual não enriquecerem
não quer dizer que a arte deles não nos enriqueça intelectualmente. A
música não deixou de ser importante para as pessoas. Pelo contrário: por
estarmos sempre com o smartphone, uma conexão de internet e fones de
ouvido no bolso, é possível dizer que a música está “mais” presente no
cotidiano das pessoas, e embala lembranças importantes. Deveríamos estar
dando mais valor a isso abrindo nossa carteira e as pessoas responsáveis por
deixar a nossa vida mais colorida e interessante deveriam estar ganhando
bastante dinheiro. Eu pago hoje em uma lata de refrigerante o triplo que
pagava no ano 2000, mas posso comprar livros, DVDs e CDs pagando
basicamente o mesmo tanto.
Por que os bens culturais perderam tanto o valor percebido e por que tanta
gente se sente no “direito” de ter o fruto de anos de dedicação ou momentos
sublimes de inspiração de graça?
É preciso investigar melhor essas questões. E quem sabe usar um outro
termo para descrever a prática de copiar a produção intelectual do outro
sem nada dar em troca ajude a lançar alguma luz sobre o problema? Por um
lado, o termo “pirataria” joga no mesmo saco os corsários somalianos que
sequestram tripulantes de navio e os adolescentes sem dinheiro que baixam
um jogo sem pagar – ele é muito amplo. Mas ele também pode ser
levemente positivo. Há certo romantismo em torno da figura do pirata: ele é
um bon vivant e contra as corporações e os governos e, por isso, um
símbolo da rebeldia – vide a popularidade do personagem Jack Sparrow, da
série Piratas do Caribe. Da mesma forma, o eufemismo “compartilhamento
de conteúdo” também não descreve o aspecto egoísta da ação:
normalmente, as pessoas não estão trocando arquivos entre si, mas
baixando da internet que usa um mecanismo tecnológico de troca entre
pares (peer-to-peer).
O autor americano Chris Ruen propõe o termo freeloader, um neologismo
que faz total sentido em inglês. Ele junta free, “gratuito”, loader, de
downloader, aquele que baixa. E freeloading, o verbo, refere-se ao carona,
no sentido do problema econômico do carona, aquele que usufrui de um
benefício ou da generosidade de outros sem dar nada em troca. “A
generosidade, no caso, dos criadores, editores e investidores que tiveram
um risco financeiro para produzir um conteúdo para o seu benefício”.228 Se
ninguém – ou pouca gente – se propõe a pagar, quem está assumindo o risco
financeiro?

Os novos intermediários Não há milagres. Se uma


parcela importante não paga pela produção cultural que
consome – mesmo tendo dinheiro para isso –, “alguém”
está pagando para que os artistas continuem produzindo. A
revista Galileu fez em 2013 uma grande reportagem de
capa falando dos “operários da música livre”, citando
artistas que estavam “reinventando este negócio e dando
música de graça”.229 A cantora Tulipa Ruiz, personagem
da matéria, afirma que esse comportamento é de certa
forma uma necessidade dos novos tempos. “Minha prima
de 13 anos nunca comprou um CD e acho que nunca vai
comprar música no iTunes. Só ouve em streaming, no
YouTube, em baixíssima resolução, e não paga.” E como a
conta fecha? A produção não foi gratuita e os discos
raramente são pagos com dinheiro acumulado de turnês
anteriores, o orçamento das gravadoras para bancar novos
talentos é reduzido. Mas quem já teve de comprar um
instrumento, contratar músicos ou pagar aluguel de um
estúdio, sabe que “música grátis” é um conceito absurdo.

Wado só gravou o seu último disco por meio de um edital da Oi Música,


selo criado pela empresa de telefonia. “Preciso dos editais para viabilizar
meus discos. Posso fazer por minha conta, mas aí eu forçaria uma barra
fudida, sem pagar meus músicos, fazendo coisas que eu não quero nunca
fazer”, desabafou o músico em 2013.230 O caso de Wado é cada vez mais
comum. No Brasil, muitos artistas que já não creem na hipótese de que irão
vender discos o suficiente para gerar renda (antes de 2004, o disco de ouro
era dado apenas a quem vendia mais de 100 mil cópias – desde 2010, a
honraria é concedida a quem ultrapassa as 40 mil), recorrem ao patrocínio
de grandes empresas. Quase todos os ouvidos pela reportagem da Galileu,
de “música livre”, tinham alguém com bolsos fundos pagando a conta. Se a
estratégia de fazer shows fosse tão boa e rentável, eles precisariam disso?
Em 2013, Marcelo Janeci gravou seu disco com patrocínio da Natura,
empresa que também bancou a produção dos últimos trabalhos de Tulipa
Ruiz e Arnaldo Antunes e a turnê de Milton Nascimento – sim, antes de
ganhar dinheiro com shows, é preciso investir na contratação de músicos e
no transporte. A Oi patrocinou, além de Wado, o disco de Herbert Vianna e
Pedro Morais, e mais de uma dezena de outros talentos. E não são só as
empresas: há também editais temáticos dos governos estaduais. Só o
governo de São Paulo distribuiu, em 2013, R$ 165 milhões por meio do
Programa de Ação Cultural,231 financiando desde filmes de curta-metragem
até espetáculos de dança. Um primo meu de Brasília, exímio violonista que
toca em uma banda de forró, diz que os shows em casas noturnas não
garantem seu sustento, mas, sim, os “projetos para o FAC” (o Fundo de
Apoio à Cultura do governo do Distrito Federal). Aprender os caminhos do
FAC é uma habilidade tão natural para os meus conterrâneos músicos
quanto afinar um instrumento.
O meu ponto, ao levantar esses dados, é que todo o papo de “ser
independente” precisa ser colocado em perspectiva. De fato, especialmente
no caso da música, para um sucesso estourar, há menos necessidade de
grandes gravadoras, assim como os jabás para tocar em rádio não são mais
condição fundamental. Há tantos espaços para se divulgar um trabalho que
se conectar com o público se tornou muito mais fácil. Por outro lado, a
classe artística brasileira é cada vez “mais” dependente, financeiramente, de
outros que não sejam a sua audiência.
Se a indústria cultural não começou a entrar em colapso, é porque os
governos vêm criando diversos mecanismos de socorro, ou “estímulo”. Isso
não é restrito à música, é claro. O livro de Ronaldo Lemos, por exemplo, foi
financiado com dinheiro da Petrobras, assim como boa parte daqueles
livros-de-mesa-de-centro, com fotografias belíssimas e que documentam
aspectos importantes da nossa vida, mas que raramente acham compradores
em número suficiente.
Se dependesse simplesmente do mercado, da vontade dos brasileiros
pagarem ingressos de cinema ou aluguel de vídeos, teríamos uma indústria
cinematográfica significativamente menor, mas as leis de incentivo à
cultura permitem novas películas e festivais. Grupos de dança e teatro são
uma carreira viável – ainda que notadamente difícil – em grande parte
porque há SESCs e Centros Culturais de instituições bancárias dispostos a
pagar cachês decentes e vender ingressos a preços subsidiados. E há agora o
vale-cultura: o governo não só subsidia a produção cultural como, na outra
ponta, dá um cheque para a pessoa pagar.
Eu não sou contra nada disso, fundamentalmente. Há aspectos a serem
melhorados em todas essas leis, é evidente, mas a lógica de que é preciso
fomentar a indústria cultural de um país me parece um sucesso provado,
não apenas no Brasil. O que discuto aqui é que mesmo que as novas
tecnologias digitais barateiem a produção cultural, estamos muito longe de
viver uma “cultura grátis”. Vivemos, sim, em uma época na qual, cada vez
mais, a cultura é bancada por outros agentes, e não o consumidor
diretamente. Pode-se argumentar que as renúncias fiscais que financiam
muitos desses projetos é só o nosso dinheiro sendo realocado, mas mesmo
assim é um cenário longe do ideal: na prática, estamos nós perdendo o
poder de decidir quem deve ser financiado para seguir a carreira artística.
Além do mais, este contrato social de empresas e governos financiando a
cultura é frágil. Em uma recessão, o primeiro departamento a sofrer o baque
é o marketing, que cuida de patrocínios culturais. Como ficarão os discos
dos “operários da música livre”? E se as leis mudarem ou os governos
perderem a capacidade de bancar esses projetos? A crise que assola a
Europa fez com que o auxílio estatal à cultura diminuísse em 70%, na
Espanha, em quatro anos, e que o governo português simplesmente fechasse
o ministério da Cultura232 em 2011. As orquestras filarmônicas de várias
cidades dos EUA, que dependem de dinheiro estatal e doações, foram
fechando em ritmo acelerado após a crise de 2008.233
No universo digital, onde editais e ajuda do governo muitas vezes não
estão no horizonte, os gurus da internet insistem que as possibilidades da
tecnologia facilitam a vida dos artistas, sugerindo que eles faturarão mais
com a erradicação dos intermediários ou por meio de publicidade.
A primeira receita parece fazer sentido, no papel: em vez de ganhar 10 ou
15% de royalties na venda de um livro por intermédio de uma editora, por
exemplo, o escritor pode publicar diretamente o seu e-book na Amazon e
ficar com 70% do preço de capa. Para cada história de sucesso de alguém
que ganhou fortunas publicando de maneira independente, como E.L.
James, a autora de 50 Tons de Cinza (que depois ganhou significativamente
mais ao assinar contratos com editoras), há dezenas de milhares de histórias
de gente que não ganhou o suficiente para cobrir as horas de esforço. Mais
da metade dos autores independentes não chega a ganhar US$ 500 em um
ano234 de vendas.
Eu vejo o meu próprio caso com este livro: eu recebi um adiantamento,
um bom prazo, artistas para trabalhar a capa. O trabalho foi revisado, o
texto preparado, uma estratégia de divulgação planejada com meses de
antecedência. Este livro seria um produto significativamente pior e chegaria
a potencialmente menos gente se não fosse o fato de eu ter a LeYa me
apoiando.
Mas é raro para pessoas “de fora” da indústria entenderem o valor do
intermediário. Há bastante gente letrada, especialmente com background
tecnológico, que defende que nem seria necessário cobrar por livros. O
jornalista Ken Auletta, que escreveu Googled, uma das principais obras
sobre o gigante de buscas, afirma que a empresa de Mountain View tem
uma atitude ingênua e desinformada sobre o processo de publicação. Em
uma conversa que teve com Sergey Brin, um dos fundadores do Google,
Auletta disse que o executivo recomendou ao autor distribuir o seu livro de
graça online, com pagamento opcional, já que as pessoas “não compravam
mais livros”. Então, Auletta começa a descrever o processo dele. Já que não
há publicidade no livro, como ele deveria subsidiar as despesas? Foram
treze viagens para apuração, carros alugados, hotéis e jantares com
entrevistados. Quem daria o adiantamento para tornar isso possível? Sem
uma editora, quem checaria os dados e revisaria o livro? Quem contrataria
assessores de imprensa e um pessoal de marketing para fazer o livro chegar
a mais gente? “Brin, normalmente tagarela e expansivo, ficou quieto.
Pronto para mudar de assunto”, descreveu Auletta.235
Se acabar com o intermediário fosse uma saída tão boa, não haveria tanto
artista assinando com grandes gravadoras na primeira oportunidade, ou
bandas como Nince inch Nails e Radiohead, que no meio dos anos 2000
saíram de suas gravadoras, mas voltaram a assinar contratos milionários
anos depois.236 Também não haveria tantos humoristas independentes no
Youtube aceitando trabalhar como roteiristas de programas da TV aberta. É
bom ter controle total sobre a criação intelectual, e as novas ferramentas de
distribuição aumentaram o poder do artista e criaram um ambiente para
contratos mais justos. Mas daí a acreditar que o trabalho de lapidadores e
divulgadores de talento não é mais necessário vai uma grande distância, e
este argumento ainda é alardeado por grande parte dos defensores da
gratuidade da internet.
A alternativa propalada como salvadora, a de viver com o apoio da
publicidade, é ingênua e, novamente, se apoia em exemplos improváveis. O
hit “Gangnam Style” rendeu pelo menos US$ 8 milhões ao sul-coreano Psy
a partir da publicidade que aparecia em seu vídeo no YouTube, visualizado
mais de um bilhão de vezes.237 Mas a verdade é que o valor pago pela
publicidade online está caindo a cada ano, e a concorrência só
aumentando.238 No YouTube, por exemplo, um anúncio do tipo “pre-roll”, o
“nobre”, que passa obrigatoriamente antes do vídeo, pagava cerca de R$ 20
para cada mil visualizações em junho de 2012. Menos de um ano depois, a
mesma quantidade de views pagava R$ 14,50 ao criador. Como há cada vez
mais gente competindo e a verba dos anunciantes é finita, a tendência é a
publicidade pagar cada vez “menos”, e não mais.
Para piorar, as tecnologias antipublicidade, como o “adblock”, extensão
de navegadores que simplesmente somem com a propaganda nos sites que
navegamos, é cada vez mais popular. Uma pesquisa recente da PageFair
mostrou que 22,7% dos visitantes de sites americanos usavam algum tipo
de tecnologia antipublicidade.239 Quem irá pagar por uma mensagem que
não será vista?
Para chamar a atenção, os anunciantes ainda estão avaliando as
ferramentas online e não sabemos qual a eficiência dos anúncios. Por isso, é
muito difícil prever o quanto essa estratégia poderá sustentar o conteúdo
gratuito. Um usuário-padrão de internet vê 1.700 banners de publicidade
por mês.240 Você se lembra de algum? Existe um fenômeno razoavelmente
bem documentado chamado banner-blindness, que é a tendência de
simplesmente não notar mais os espaços de publicidade nos sites que
visitamos frequentemente.
Apesar das dificuldades, o investimento em publicidade na internet está
aumentando a cada ano. O que é natural, já que as pessoas estão migrando
das outras mídias onde as marcas tradicionalmente apresentam seus
anúncios. O problema é que o Google e o Facebook recebem uma parcela
desproporcional dessa verba. Uma estatística alarmante para os meus
colegas jornalistas surgiu em novembro de 2013: o faturamento do Google
em publicidade já é maior que o dinheiro ganho em anúncios de “todos” os
jornais dos EUA somados. E isso faz sentido, do ponto de vista da marca. É
impossível prever as circunstâncias que alguém verá um anúncio em uma
página de jornal e o público-alvo é só um grande chute. Por outro lado, ao
anunciar no Google, a empresa está pagando pelo direito de pular na frente
do leitor no momento que ele está buscando algo para comprar. Para cada
vez mais anunciantes, este parece ser a decisão mais racional.
Essa concentração de dinheiro em publicidade e ferramentas de
publicação (como Facebook e YouTube) desmantelam o discurso da vitória
dos “independentes”, tão propalada pelos utópicos da internet. O que
acontece hoje é o oposto da democracia coletiva. Há uma centralização da
habilidade de ter lucro com conteúdo, onde hubs como a Amazon, Google e
Apple levam uma porcentagem de milhões em vendas. A internet favorece
os gigantes – assim como a era pré-digital: só mudaram os atores. Os
intermediários antes eram as gravadoras, as editoras e jornais, que podiam
estabelecer contratos exploratórios mas de alguma forma “agregavam
valor” ao produto cultural. Hoje, as empresas de tecnologia dão uma
porcentagem maior, sim, mas a que preço? O Facebook é de longe o maior
“jornal” do mundo, com milhões de repórteres provendo informações
relevantes para os leitores. Mas nenhum deles recebe um centavo. É
possível competir?
Já está claro para uma enorme parte dos jornalistas que a publicidade não
banca sozinha a informação de qualidade. As melhores, mais bem apuradas
e mais impactantes reportagens, críticas ou artigos não são necessariamente
(ou são raramente) as mais lidas – e certamente não são as mais baratas de
serem produzidas. Mas, especialmente na internet, elas custam praticamente
o mesmo para o anunciante, que está interessado principalmente nas
estatísticas de visualizações de página – ele quer aparecer para o maior
número de espectadores possível. Então, para satisfazer a demanda por
cliques e mais “impressões” de anúncios, os donos de portais de notícias da
internet colocam mais informação gordurosa, sensacionalista, como
discutimos no capítulo anterior. E isso, por fim, desvaloriza o produto.
Enquanto houver alternativas gratuitas de alta qualidade, será difícil
convencer o leitor a pagar pela informação.
Mas pagar pelo produto criativo, intelectual – seja ele um livro, uma
notícia, uma música ou uma foto – é nada menos que necessário para
garantir o nosso futuro. A alternativa é reformar muito profundamente o
sistema capitalista e ninguém parece muito disposto a isso.

A criatividade da nova economia Quando falo que pagar


por produção intelectual é algo fundamental para o nosso
futuro, não estou falando apenas da questão moral. Falo
sobre os empregos que queremos ter. Primeiro porque, se
olharmos o exemplo de outros países, vemos que a
tecnologia está acabando com os empregos em um ritmo
muito maior do que está criando novos. A questão foi
antecipada em 1995 por Jeremy Rifkin, no livro O Fim dos
Empregos, no qual ele sustenta que “estamos entrando em
uma fase onde cada vez menos trabalhadores serão
necessários para produzir os bens e serviços da população
global”, e que o desemprego causado por computadores
seria “a mais importante questão social do século 20”.

Já ouvimos essa história antes em outras revoluções industriais, mas desta


vez há mais dados para sustentar a tese. As novas gigantes do mundo da
internet precisam de bem menos pessoas – e bem mais máquinas – para
gerar valor. O Facebook tinha 5.300 funcionários e obteve um lucro de US$
1 bilhão em 2011. É mais do que teve o Pão de Açúcar – para ficar em um
exemplo que foi bem na Bolsa –, que emprega 160 mil pessoas. Em pouco
tempo, novas tecnologias podem devastar indústrias. Os apps de táxi, que
facilitam enormemente a nossa vida, em poucos meses tiraram o emprego
de vários operadores de radiotáxi em São Paulo. Há 1,4 milhão de
operadores de telemarketing no Brasil – função que praticamente não
existia há 20 anos –, mas estes empregos podem sumir subitamente se as
empresas adotarem novos sistemas automatizados, como nos EUA.241 Isso
será bom para o consumidor, assim como será mais prático, quando não
precisarmos de cobradores ou de motoboys. Mas qual o custo social deste
ganho de eficiência proporcionado pela tecnologia, em termos de
empregos? Um cobrador de ônibus recém-desempregado por um sistema
automatizado não conseguirá fazer um cursinho de programação e
rapidamente entrar no Google. Precisamos de mais gente boa de tecnologia
da informação, mas não criaremos tantas vagas assim.
Há um claro descompasso entre a riqueza gerada pelas empresas, muitas
vezes por conta da tecnologia, e quanto isso é estendido para os
funcionários. Os três maiores bancos do país anunciaram lucro recorde em
2013, ao mesmo tempo em que mantiveram o ritmo de demissões.242 O Itaú,
por exemplo, mandou mais de dois mil empregados embora nos primeiros
meses de 2013 e investiu mais de R$ 2 bilhões em um novo centro de
tecnologia da informação. O que não causa surpresa, já que cada vez mais a
relação do cliente com o banco pode ser resolvida a partir do computador
ou de terminais de autoatendimento.
Jaron Lanier, autor de Who Owns the Future? (Quem é dono do futuro,
sem tradução para português), traz uma comparação ainda mais
contundente para provar que não é preciso tanta gente para gerar tanta
riqueza: nos anos 1990, a Kodak empregava 140 mil pessoas em toda a
cadeia de produção de filmes, papeis fotográficos e produtos relacionados.
E chegou a valer US$ 28 bilhões. Sem conseguir competir
tecnologicamente ou se reinventar, a empresa decretou falência em janeiro
de 2012, depois de demitir dezenas de milhares de funcionários. Mais ou
menos na mesma época, o Instagram, com treze funcionários, era vendido
para o Facebook por US$ 1 bilhão.
Lanier usa esse exemplo para mostrar que há uma crise de “emprego”,
mas não de funções. Jornalistas são demitidos todo dia, mas você escreve
notícias de graça no Facebook, preenchendo o vácuo de novas informações
relevantes. Os vendedores das cadeias varejistas podem estar perdendo seu
emprego nos EUA, mas as pessoas continuam acessando o site da Amazon
e indicando produtos com resenhas e dando estrelinhas no iTunes. Os
bibliotecários parecem não ter mais lugar na nova sociedade, mas ao
clicarmos em cada link da internet estamos informando à próxima pessoa
que pesquisa no Google qual o endereço mais confiável. O Chicago Sun-
Times, um dos jornais mais tradicionais dos Estados Unidos pode ter
demitido toda a equipe de fotógrafos, mas acompanho bastante gente
mandando fotos maravilhosas daquela cidade no meu Instagram. Em outras
palavras: mais gente está trabalhando de graça.
Há uma crença cada vez maior de que é preciso trabalhar com o que nós
gostamos, com o que nos estimula intelectualmente. E isso leva, é claro, a
um desgosto com os trabalhos entediantes de escritório. Em 2004, 12% dos
brasileiros queriam trocar de emprego. Hoje, esse número aumentou para
56%.243 É claro que qualquer pessoa pode ser feliz em trabalhos repetitivos
ou braçais, e da mesma forma não é preciso ganhar mais dinheiro para ser
feliz. Mas é preciso ganhar “algum”, o suficiente para que o sustento não
seja mais uma preocupação.
Muitas pessoas olham para a chamada “economia criativa” em busca
dessas oportunidades de trabalho. São empregos, às vezes, em
microempresas individuais, nas áreas de design, software, artes, moda,
artesanato, editoração, cinema. O futuro de todas essas carreiras está
profundamente associado às possibilidades que as tecnologias digitais
oferecem – e a quanto o público está disposto a pagar por elas. Quanto pode
cobrar um webdesigner à medida que há mais ferramentas para criar um
próprio site na internet – e quando cada vez mais as páginas de pequenos
negócios são as fanpages no Facebook? E quanto ao profissional que
produz vídeos, qual o prospecto, quando o orçamento de um videoclipe que
era de R$ 100 mil cai para R$ 5 mil? E no futuro, como será a vida do
artesão quando tivermos impressoras 3D em casa e pudermos baixar o
arquivo e criar uma réplica daquele vaso que achamos bonito?
Lembre-se: a economia criativa só tem espaço quando há emprego e
renda suficiente para gastos não essenciais. É lícito pensar que um músico
só terá dinheiro para comprar um sapato customizado ou pagar um bom
fotógrafo se ele estiver sendo pago. E que à medida que a publicidade deixa
de pagar todas as contas, um videomaker só poderá ganhar dinheiro se
houver, por exemplo, alguma empresa de notícias com caixa para contratá-
lo. Tudo isso terá um custo. Como disse Charlie Warzel, do Buzzfeed:
“Obrigado por usar a internet! Nós lamentamos informar que o seu período
de testes gratuito expirou”.244

Novos princípios No fim de 2013, discutia-se


acaloradamente o marco civil da internet, uma espécie de
lei fundamental que definiria os direitos dos brasileiros
quando usam a rede. O texto não havia sido finalizado
enquanto terminava o livro, mas um dos pontos em
contenda era sobre a remoção de conteúdo que violava
direitos autorais. Nos outros países, caminha-se para uma
legislação mais estrita, onde sites que se beneficiam da
pirataria digital devem tirar o conteúdo assim que
receberem notificação extrajudicial (mecanismo conhecido
como notice and take down) e provedores de acesso à rede
podem cortar a internet de quem é pego seguidas vezes
pirateando conteúdo. Regras assim passaram em países
como Alemanha, França e Espanha. Na Inglaterra, a alta
corte ordenou que os principais provedores de internet
bloqueassem o acesso ao Pirate Bay, o principal site de
arquivos de música e vídeo piratas. Os legisladores de
países em crise entenderam que era melhor proteger
alguns empregos da economia criativa e garantir uma
receita maior sobre produtos intelectuais, mesmo que para
isso fosse necessário mexer um pouco com a privacidade e
a “liberdade” percebida do usuário.

Não se chegou nem de perto a cogitar algo assim no Brasil. A maior parte
da mídia, pró-liberdade irrestrita da internet, abraçou o discurso dos
ativistas da internet livre, que consideravam a ameaça à chamada
“neutralidade da rede” ou a possibilidade de retirada de conteúdo sem
decisão judicial prévia uma traição ao princípio aberto da internet. Pintando
cenários apocalípticos, diziam que se os “inimigos do povo” (as operadoras
de telecomunicações e a TV Globo, no caso245) ganhassem a disputa no
Congresso, a internet não seria como era antes. “A liberdade de expressão
está ameaçada”, avisavam, convocando manifestações em favor da lei como
estava.
Acontece que a liberdade de expressão, apesar de importante, não é algo
absoluto – ela tem limitações e pode ser regrada, como, por exemplo, nos
casos de crimes contra a honra. Não há por que criar uma hierarquia e exigir
que todos os direitos sejam submissos à liberdade de se fazer o que se quer
na internet. A Declaração Universal dos Direitos Humanos diz, por
exemplo, que “todos têm direito à proteção dos interesses morais e
materiais ligados a qualquer produção científica, literária ou artística da sua
autoria”. A ideia de que o controle de cópia é um mecanismo criado pelas
elites e grandes corporações para limitar o acesso da população – um
discurso corriqueiro dos ativistas – esquece que quem produz arte e cultura
são “pessoas”. E assim como elas têm direito de falar o que quiserem na
rede (sofrendo as consequências em casos de ofensas), também têm o
direito de explorar comercialmente o seu trabalho, e o resto da sociedade
deve respeitar este direito.
“A lógica do copyright não demanda pagamento a artistas nem para seus
parceiros legais; apenas respeito aos desejos implícitos do artista. O
copyright protege igualmente a escolha individual de um artista de ofertar o
seu trabalho de graça ou optar por cobrar uma taxa por isso. O ponto é que
essa é uma escolha dele, não do consumidor ou de um distribuidor não
licenciado, não importa quão fácil a internet faça com que isso possa ser
ignorado ou racionalizado. A questão é: estamos preparados para respeitar
essa escolha?”, escreve Chris Ruen em Freeloading. Ele teve a ideia de
publicar o livro depois de perceber que muitos dos seus artistas favoritos,
mesmo os que ele considerava famosos, não ganhavam muito dinheiro com
música e não viviam uma vida muito melhor que a dele, um barista do
Brooklyn, nos EUA.
“Ativistas de internet apresentam o nosso futuro online como sendo uma
escolha entre o controle ou a criatividade, mas na verdade é uma opção
entre o comércio e o caos. Um sistema completamente fechado de fato
derrotaria o propósito da internet; limitaria tanto o comércio quanto a
criatividade. Mas isso também aconteceria em um ambiente totalmente
aberto, onde vender mídia digital – ou qualquer coisa que puder ser
reduzida a um código binário – se tornasse praticamente impossível no
longo prazo. Nós teríamos uma infraestrutura de comunicação do século 21
dando suporte a uma economia do século 17, onde artistas precisam de
mecenas e apenas bens físicos têm valor. Isso não parece com o progresso”,
alerta o jornalista Robert Levine em Free Ride, possivelmente o melhor
livro sobre a fragilidade dos direitos autorais com as novas tecnologias.246
“Você não consegue ter uma economia funcional sem um mercado, e não
pode ter um mercado sem alguma forma de direitos de propriedade, e esses
direitos não significam nada se não puderem ser garantidos por lei e polícia.
Nós realmente queremos arriscar destruir um mercado centenário de
produtos culturais apenas para que a internet continue a funcionar como em
1995?”
Não há dúvidas que as leis devem mudar para se adaptar à nova realidade.
Mas acima de tudo elas têm de respeitar o desejo do autor, que tem o direito
de ter vantagens econômicas sobre o seu trabalho, e isso não é um
problema. É claro que eu escrevo este livro movido por uma vontade de
levar uma mensagem ao mundo. Mas a minha disposição em escrever outro
ou seguir explorando ensaios na internet dependerá largamente da
disposição do público em financiar este trabalho de maneira direta, com
dinheiro. Se eu acredito que a minha pesquisa e meus textos geram algum
impacto na percepção que as pessoas têm do mundo, nada mais natural que
esperar que elas me compensem por isso, e todos vamos ganhar no
processo: eu melhorarei minha técnica, meus leitores ganharão mais
“comida para o cérebro”. E uma economia de geradores de valor à
personalidade ganha corpo.
Posso ter até aqui pintado um cenário sombrio, mas, apesar de tudo, eu
sou otimista. Não acredito que as pessoas consumam material pirata por
“maldade”. E nem sempre ela foi uma questão econômica. Em 2012,
primeiro ano do iTunes no Brasil, as vendas em formato digital cresceram
83%, o que diminuiu o ritmo da retração da indústria fonográfica. É
possível achar qualquer música para comprar de graça, mas já foram
vendidas mais de 30 bilhões de faixas pelo serviço da Apple. Hoje, serviços
como Rdio e Deezer dão acesso ilimitado a um catálogo de dezenas de
milhões de músicas a R$ 15 mensais. O Netflix já é responsável por um
terço de toda a banda larga usada nos EUA. O que é incrível, considerando
que no meio da década passada os aplicativos de compartilhamento de
arquivos, largamente ilegais, chegaram a responder por metade do tráfego
de dados. Há cinco anos só se encontravam jogos de videogame piratas nas
feirinhas populares, mas hoje não só há a predominância do produto oficial,
como plataformas para o consumo digital se popularizam rapidamente: o
Steam, no qual se compram jogos a preço de banana, tem 54 milhões de
usuários ativos. Tudo isso mostra que um componente importante da
pirataria sempre foi o fato de que era mais fácil consumir alguns produtos
culturais em sua variedade ilegal/gratuita. Hoje isso é verdade apenas em
raríssimos casos. Não há mais motivos para racionalizar a pirataria. E há
dezenas de ótimos motivos para pagar pela produção intelectual de outras
pessoas.
Quando pagamos por algum conteúdo na internet, valorizamos o trabalho,
sinalizamos que queremos mais daquilo e sustentamos profissionais que
contribuem para que sejamos pessoas mais interessantes ou entretidas.
Considere tudo isso antes de baixar algo de graça ou reclamar que agora o
jornal X cobra pelo acesso às notícias. Valorize a função daquela pessoa, e
contribua para que ela não dependa do mecenato de outros. Permita-se
pequenos luxos, como a versão em alta definição comprada no serviço sob
demanda da TV a cabo ou no iTunes, em vez do disquinho comprado no
camelô, filmado no cinema. Compre bons fones de ouvido e experimente
ouvir de fato uma música, prestando atenção a seus detalhes. Valorize a
arte, conectando-se de maneira mais profunda ao que importa.
O artista britânico Roy Ascott disse: “Pare de pensar em trabalhos
artísticos como objetos e comece a pensar neles como gatilhos para
experiências”. O compositor Brian Eno partiu dessa frase e concluiu: “O
que faz um trabalho artístico ser ‘bom’ para você não é algo que já está
dentro dele, mas o que acontece dentro de você – de forma que o valor do
trabalho mora no grau em que ele pode ter o tipo de experiência que você
chama de arte”.247
206 Robert Levine, Free Ride: How Digital Parasites are Destroying the Culture Business, and how
the culture business can fight back, 2011, EUA, Doubleday.

207 http://www.businessinsider.com/these-charts-explain-the-real-death-of-the-music-industry–
2011–2

208 http://computerworld.uol.com.br/negocios/2013/05/03/eua-pedem-que-brasil-adote-medidas-
duras-contra-pirataria/

209 “Brasil é 5º país em download ilegal de músicas; conheça os mais pirateados”, BBC Brasil, 18
set 2012. Disponível em:
http://www.bbc.co.uk/portuguese/noticias/2012/09/120918_pirataria_musica_cc.shtml

210 http://www.filmeb.com.br/portal/html/materia10.php

211 Lula viu pirata de “2 Filhos de Francisco” um mês antes de o filme chegar ao cinema. A prática
foi abandonada porque “pegava mal”. http://www1.folha.uol.com.br/fsp/brasil/fc1512200513.htm

212 http://tj-rs.jusbrasil.com.br/noticias/3041527/venda-de-dvd-pirata-nao-e-considerado-crime-de-
violacao-autoral

213 http://terramagazine.terra.com.br/interna/0,,OI3605440-EI6581,00-
Gil+O+mundo+me+tirou+a+regua+e+o+compasso.html

214 Apenas da Superinteressante, entre as matérias claramente inclinadas em favor da “pirataria”,


estão a de Bruno Garattoni, “O Deputado Pirata” (dezembro de 2006), de Tarso Araújo, “Pirataria
para salvar o capitalismo” (novembro de 2008), de Bruno Garattoni, “A pirataria venceu” (junho de
2009); de Enrique Tordesilhas, “A pirataria venceu. E a gente prova em 10 pontos” (setembro de
2009); de Aurélio Amaral, Bruno Garattoni e Raphael Galassi, “Como ganhar uma discussão sobre
downloads piratas” (julho de 2012).
215 http://www1.folha.uol.com.br/ilustrada/2013/10/1358555-pirataria-ajudou-breaking-bad-diz-
criador-da-serie.shtml

216 “Se todo mundo é pirata, pagar pode ser obrigação”. Site de O Estado de S. Paulo, 30 de janeiro
de 2012. Acessado em http://blogs.estadao.com.br/tatiana-dias/se-todo-mundo-e-pirata-pagar-pode-
ser-obrigacao/

217 http://info.abril.com.br/noticias/internet/existe-internet-sem-pirataria–18042012–32.shl

218 Antônio Paulo, “Câmara e Senado unidos contra pirataria”, A Crítica, 9 jun 2011. Acessado em:
http://acritica.uol.com.br/noticias/Camara-Senado-unidos-pirataria_0_496150399.html

219 Julia Jenks, “Debunking some major flaws in the LSE media brief on the impact of piracy”,
MPAA, 7 out 2013. Disponível em: http://blog.mpaa.org/BlogOS/post/2013/10/07/Debunking-some-
major-flaws-in-the-LSE-media-brief-on-the-impact-of-piracy.aspx

220 http://www.cartacapital.com.br/revista/770/apesar-dos-downloads–7293.html

221 http://www1.folha.uol.com.br/fsp/ilustrad/fq2703200707.htm

222 Chris Anderson, Free - Grátis, o futuro dos preços, Editora Campus, 2009.

223 http://www.arenapolisnews.com.br/noticia/297123/Joelma-da-banda-Calypso-revela-em-
Diamantino-que-n%E3o-est%E1-com-AIDS-

224 http://revistatrip.uol.com.br/print.php?cont_id=27349

225 http://oglobo.globo.com/cultura/wado-desapega-do-cd-fisico-lanca-sexto-disco-somente-na-
web–3196186

226 http://www.folhape.com.br/robertajungmann/?p=3191

227 Entrevista a Chris Ruen, em “Freeloading”.

228 Chris Ruen, “Freeloading - How our insatiable hunger for free content starves creativity”, OR
Books, 2012.

229 http://revistagalileu.globo.com/Revista/Common/0,,EMI331605–17773,00.html.

230 http://screamyell.com.br/site/2013/08/08/wado-e-o-vazio-tropical/

231 http://brasileconomico.ig.com.br/noticias/governo-paulista-destina-r–165-milhoes-a-projetos-
culturais_128918.html

232 http://www.estadao.com.br/noticias/impresso,crise-leva-instituicoes-culturais-europeias-a-
fazerem-cortes,943461,0.htm

233 http://www1.folha.uol.com.br/fsp/ilustrada/21300-crise-atinge-as-orquestras-americanas.shtml
234 http://www.theguardian.com/books/2012/may/24/self-published-author-earnings.

235 Ken Auleta, Googled: The end of the world as we know it, The Penguim Press, EUA, 2009.

236 http://www.theverge.com/2013/3/4/4054634/musics-pay-what-you-want-pioneers-sour-on-
giving-away-songs

237 http://exame.abril.com.br/marketing/noticias/gangnam-style-gerou-us-8-milhoes-ao-youtube-em-
publicidade

238 http://www.businessweek.com/articles/2013–04–22/its-getting-harder-to-make-money-on-
youtube

239 http://bits.blogs.nytimes.com/2013/08/29/troubles-ahead-for-internet-advertising/?_r=0

240 http://digiday.com/publishers/15-alarming-stats-about-banner-ads/

241
http://olhardigital.uol.com.br/noticia/computador_watson_podera_substituir_vendedores_e_atendent
es_de_telemarketing/19300

242 https://conteudoclippingmp.planejamento.gov.br/cadastros/noticias/2013/8/1/lucro-recorde-e-
demissoes

243 http://epoca.globo.com/vida/vida-util/carreira/noticia/2013/10/como-achar-o-btrabalho-da-sua-
vidab.html

244 http://www.buzzfeed.com/charliewarzel/thank-you-for-using-the-internet-we-regret-to-inform-
you-tha

245 http://convergenciadigital.uol.com.br/cgi/cgilua.exe/sys/start.htm?
infoid=35269&sid=4#.UoSBLWSxNvk

246 Robert Levine, Free Ride: How Digital Parasites are Destroying the Culture Business, and how
the culture business can fight back, 2011, EUA, Doubleday.

247 http://www.brainpickings.org/index.php/2013/05/15/happy-birthday-brian-eno-the-father-of-
ambient-music-on-art/
6. Precisamos discutir
isso mais vezes
“A realidade é chata, mas é o único lugar onde se pode comer um bom bife.” –
Woody Allen Um livro que se concentre em falar das relações das pessoas com a
tecnologia é algo perigosamente perecível. Quando comecei a esboçar essas ideias,
em 2011, fazia sentido falar de Orkut ou Blackberry; as TVs 3D eram uma grande
promessa e apetrechos como o Google Glass eram pura ficção científica. Então,
tive que reavaliar e reescrever os meus exemplos o tempo todo, e entre entregar os
originais e o livro aparecer nas livrarias, eu sabia que ele corria o risco de ficar
velho novamente, de certa forma. Cheguei a imaginar que o esforço seria pouco
útil.

Mas independentemente do nome das redes ou aparelhos que usamos, a


discussão sobre a maneira como usamos as tecnologias conectadas é
fundamental para a nossa vida moderna. Porque, justamente, não há mais
uma separação clara entre esses mundos. Discutir como viver na rede é
como discutir a melhor maneira de viver na cidade – que é algo, aliás, que
precisamos debater melhor: só agora falamos seriamente em mobilidade
urbana, ainda não entendemos completamente as causas da violência e
desejamos saber como participar melhor da vida do nosso bairro. Há bem
mais gente vivendo sozinha, há condomínios fechados, menos organizações
como times de esportes amadores, cineclubes e sindicatos. Onde estão as
pessoas? O tempo gasto com as telas é causa ou consequência dessa nossa
organização em sociedade?
Então, o que quero aqui, a partir da nossa relação com a tecnologia, é
começar a reflexão sobre coisas importantes, dentro ou fora das telas.
Discutir a multitarefa é falar da dificuldade de separar a vida pessoal e o
trabalho; questionar as redes sociais e a privacidade é pensar sobre o
narcisismo, o excesso de publicidade e os limites de discutir grandes ideias
online; conhecer os circuitos neurais ativados pelo vício em joguinhos ajuda
a entender outros comportamentos obsessivos; falar da pirataria é pensar
sobre qual tipo de mercado de trabalho vamos valorizar no futuro. No
fundo, a discussão sobre uma vida digital saudável é uma conversa sobre a
vida, ponto. A ideia é parar e entender o que estamos ganhando e o que
estamos perdendo enquanto gastamos a bateria dos smartphones.
Como quase qualquer pessoa que trabalha por longas horas na frente do
computador, desenvolvi problemas na coluna cervical nos últimos anos, e
meu ortopedista receitou reeducação postural global. Há alguma dose de
tortura ali, mas o mais importante que aprendi nessas sessões foi a
habilidade de prestar atenção, de tempos em tempos e ao longo do dia, em
como estava sentado. Você só melhora a sua postura se conseguir “sair” do
corpo e ter essa visão de fora. O que precisamos praticar é o que em inglês
chamamos de mindfullness, o pensar sobre o que estamos fazendo no piloto
automático e refletir. Se estamos respirando direito ao checar e-mail, se
ficamos irritados demais com discussões irrelevantes, se precisamos
registrar tudo em fotos.
Sempre, em todas as épocas, temos a impressão de que o mundo está indo
rápido demais. Mas o que me preocupa hoje é a “cultura da interrupção”.
Nos anos 1990 apenas médicos e policiais tinham pagers: as pessoas só se
davam o direito de serem interrompidas em qualquer lugar se alguém,
literalmente, estivesse morrendo. Hoje, uma curtida na última foto acende a
tela com notificações, software nos carros leem mensagens no Facebook e,
para completar, o Google quer colocar esses alertas de últimas mensagens
diretamente na nossa cara, via Google Glass.
Em 2012, quando os óculos com telinha conectada foram apresentados ao
mundo, escrevi um longo artigo pedindo que o Google desistisse da ideia.248
Há uma utilidade para esse aparato para engenheiros, médicos, militares e
outros profissionais que consigam usá-lo em situações profissionais, muito
específicas e temporárias. Mas o Google o projetou para ser o computador
de mais rápido acesso: basta dar uma olhadinha para cima e ditar alguns
comandos. O problema de algo assim não é simplesmente uma questão de
privacidade (ele tem uma microcâmera), mas é a mudança do
comportamento humano. Ninguém se comporta de maneira natural quando
sabe que o interlocutor pode estar filmando tudo, para início de conversa. É
difícil acreditar que parar uma conversa, olhar para cima e falar alguma
coisa a um computador “não” vai nos desconectar ainda mais do presente,
das pessoas ao redor.
Quando pedi para as pessoas pensarem se esse é realmente o futuro que
queremos, fui acusado de ludita, de “ir contra o progresso”. E vejo com
preocupação quem abraça as novas tecnologias sem crítica alguma: os que
acreditam que o fim da privacidade não tem volta, que no futuro poderemos
“visitar o mundo sem sair de casa”, apenas com óculos e simulações cada
vez mais ricas (e isso é necessariamente bom), que a produção artística e
intelectual será sempre abundante e gratuita, bancada pela publicidade.
“Este é o caminho, adapte-se ou morra”, repetem com um certo
triunfalismo. Podemos – precisamos, na verdade – parar para pensar nessas
questões que são dadas como resolvidas e começar a avaliar as alternativas,
antes que seja tarde demais. Do privilégio ao transporte individual e ao uso
das armas de fogo por civis, há vários exemplos de tecnologias que parecem
boas, que privilegiamos por muito tempo e só começamos a questionar com
firmeza décadas depois. Se anteciparmos o debate, teremos um futuro mais
“sadio”.
A esperança de que uma resistência não ao progresso, mas ao progresso
sem discussão, começa a ganhar força é que livros como este aqui e artigos
que jogam luz sobre essas questões estão ficando mais populares. Em 2013,
escrevi em meu pequeno site um texto sugerindo que poderíamos
considerar Candy Crush um problema de saúde pública:249 ele saiu mais ou
menos ao mesmo tempo que o UOL deu um completo guia de dicas de
como se dar melhor no game viciante da vez. O meu artigo não só teve dez
vezes mais curtidas que o do portal, mas recebi, por meses depois,
mensagens de pessoas agradecendo a “luz”, porque conseguiram ficar
quatro dias sem tocar no negócio que lhes sugava o tempo livre.
Essa resistência não se dá apenas no campo das ideias. A popularidade
crescente da ioga, da meditação ou das técnicas de mindfullness do budismo
mostram que as pessoas querem um tempo de solitude com mais qualidade.
Há também os movimentos slow. Pegue o slow food, que surgiu na Itália
defendendo uma apreciação dos ingredientes, o processo, o prazer e a
experiência comunal das refeições. Ele fez sentido para muita gente e se
materializou em restaurantes e programas de culinária diferentes. Há o slow
parenting, que tenta amenizar a “busca pela eficiência” na criação dos
filhos. Carl Honoré, seu porta-voz, diz que o slow “não significa fazer tudo
no ritmo de uma lesma. Significa fazer tudo na velocidade certa. Implica
qualidade sobre quantidade; conexões humanas reais e significativas; estar
presente naquele momento.250”
A vagarosidade, de se aprofundar e apreciar a vista, não se confina ao
mundo offline. Jack Cheng foi o primeiro a identificar uma certa slow web,
sites e aplicativos que mandam novidades uma vez por dia ou por semana.
“Os sites da fast web são como namoradas possessivas que querem estar
com você, recebendo a sua atenção e validação 24 horas por dia, enquanto
os serviços que se identificam com a filosofia slow web são como amigos
com quem você sai de vez em quando, tem um papo agradável, aprende
algo sobre você mesmo e depois volta para casa dizendo ‘precisamos fazer
isso mais vezes’.251”
São movimentos que questionam aspectos dados como inexoráveis da
vida moderna, da globalização, do excesso de notícias, e pesam o quanto
eles contribuem de fato para a nossa felicidade e o quanto criam mais
ansiedade.
As próprias pessoas do Vale do Silício, que basicamente inventaram as
maneiras de passarmos o tempo diante das telas, começam a criar um senso
maior de autocrítica. “Nós já terminamos essa fase de lua de mel e estamos
mais na fase ‘uau, o que a gente fez?’”, explica Soren Gordhamer, que
organiza uma conferência chamada Wisdom 2.0, que reúne alguns dos
principais executivos do Twitter, do Google, da Apple, do Facebook e da
Cisco, entre outros.252 O Google criou um programa para funcionários da
empresa chamado “Search inside yourself” (busque em você mesmo), que
ensina técnicas de meditação, foco e prega mais momentos de
desconexão.253
Em outro exemplo de autorresponsabilização, as operadoras de telefonia
americanas, capitaneadas pela AT&T, lançaram uma campanha chamada It
can wait (Dá pra esperar). Elas querem conscientizar as pessoas que há uma
hora certa para mandar uma mensagem de texto e definitivamente não é
quando estamos ao volante: cerca de cem mil acidentes automobilísticos
acontecem por ano, nos EUA, por causa de distrações desse tipo.254 Um
documentário emocionante para a campanha, assinado por Werner Herzog,
mostra histórias trágicas motivadas por quem escolheu a pior hora para usar
a tecnologia.
O que estamos perdendo?

Em 2012, membros do Legião Urbana se reuniram para fazer um show de


auto-homenagem. Colocaram o ator e cantor de karaokê Wagner Moura nos
vocais. Vendo o show do Legião Urbana na TV e acompanhando as reações
pelo Twitter, como fiz, parecia haver uma percepção unânime que o tributo
era um lixo, que o ator de Tropa de Elite desafinava demais e desistia de
cantar pedaços das músicas. Mas todas as pessoas com quem conversei e
muitos dos comentários que colhi entre os 7.500 presentes no local, que
estavam assistindo de fato ao vivo, acharam aquele show o máximo.255
Poucas semanas depois, assisti à final da Copa Libertadores, na qual o
Corinthians foi finalmente campeão na casa de um amigo que torce para o
time. Ao fim da partida, saímos da casa e um carro passou buzinando, com
um homem empolgado sacudindo a bandeira. O meu amigo gritou “Timão”,
o carro parou e os dois, estranhos, se abraçaram. Aquilo, mesmo para quem
não é corintiano, como eu, foi emocionante, assim como foi emocionante
ver o semblante das pessoas na avenida Paulista. Mas eu cheguei em casa e
acessei o Facebook e havia um enorme número de pessoas reclamando dos
fogos, das buzinas e de que os “gambás” só falavam daquilo. “Bloqueei
muita gente hoje!”, anunciavam, com orgulho.
Vejo várias situações como essa, diariamente, que podem ser só mais uma
demonstração de que as redes sociais são um grande veículo para os
cínicos, onde destilamos o veneno e o mau humor. Mas eu vejo um
problema maior. Ao vivo, temos mais tolerância com as imperfeições,
temos mais conexões não verbais, entendemos melhor o que os outros têm a
dizer, relevamos erros e seguimos a conversa. Um show de rock ao vivo
invariavelmente terá uma “qualidade” técnica inferior ao que temos em
casa. Mas nós não pagamos fortunas simplesmente para ouvir o artista
fazendo playback, mas para ter a experiência comunal de ter gente gritando
as músicas que você sabe de cor, pulando junto, se emocionando. Isso tudo
não é reproduzível online.
A preferência pela simulação da realidade – ou a visão cínica e distante
sobre a realidade – pode ser tanto causa quanto consequência do fenômeno
que alguns estudiosos chamam de “déficit de empatia”, um problema real e
mensurável.256 Testes recentes mostram um aumento de problemas de
compreensão verbal e um declínio na capacidade de se colocar no lugar do
outro.257 É claro que pode se tratar de uma correlação, em que a tecnologia
não tem necessariamente “culpa”. Mas à medida que preferimos,
conscientemente ou não, conversar sobre um show no Facebook e vê-lo no
Youtube a experienciar a coisa ao vivo (porque não “temos tempo”), a viver
a própria realidade imperfeita, estamos perdendo as características que nos
tornam humanos.
Em 2012, quando fui à Consumer Electronic Show, a maior feira de
tecnologia do mundo, em Las Vegas, encontrei um dos meus ídolos do
jornalismo, Brian Lam. Ele foi editor do Gizmodo americano por cinco
anos e é das pessoas que mais entende do assunto no mundo. Quando topei
com ele, Brian parecia uma pessoa diferente daquela com quem troquei
alguns e-mails. “Olhe esses jornalistas de tecnologia. Todos estão fora de
forma”, observava para mim, com um ar de mestre zen de Kung Fu.
Meses antes, ele cansou daquele ciclo maluco de dar 50 notícias
desimportantes por dia, de falar de gadgets que não melhoravam a nossa
vida, de todas as notificações, e-mails e relações superficiais. Pegou uma
Kombi, passou um bom tempo surfando e, na volta, na hora de retomar a
carreira, resolveu fazer o que entendia: estudar a tecnologia e recomendar o
que gostava mais, como amigo. Quando o encontrei, Brian tinha acabado de
colocar um site com essa proposta no ar. O Wirecutter tem normalmente
menos de uma atualização por dia, e só coisas aprofundadas. Ele ficou feliz
em saber das ideias do meu livro, disse que precisávamos falar mais sobre
isso e me convidou para visitá-lo na Califórnia, “pegar umas ondas”.
Naquele momento, na meca do consumo de novas tecnologias, passei a me
preocupar mais em não comprar tecnologia pela tecnologia, em não
aumentar o ruído com mais informações desnecessárias. Acabei não
conseguindo escrever muitas reportagens sobre coisas que eram
marginalmente consideradas melhores, e deixei o meu cargo de editor
pouco tempo depois.
Brian Lam me mostrou que é possível achar o equilíbrio, que precisamos
olhar os nossos aparatos tecnológicos como “meio” de conexão com as
pessoas. E que é possível fazer isso em qualquer lugar, até mesmo em um
livro sobre vida digital ou em um site sobre “gadgets”. Quando ele escreveu
um guia de compras para o verão no Wirecutter, em 2013, com dicas de
churrasqueiras elétricas e ar-condicionado, deixou um aviso no início do
texto: “Por favor, lembre-se. Não é porque esta lista está cheia de produtos
de alta qualidade que você precisa de todos ou sequer da maioria deles.
Você é capaz de ter um verão de diversão e aventura maravilhoso,
memorável, incrível, sem muitos desses adereços. Apenas pegue seus
amigos e diga ‘sim’ a mais coisas do que ‘não’ e não tenha medo de se
assustar um pouco no processo. As coisas vão dar certo no fim”.258
248 Pedro Burgos, “Por que o Google Glass não é o futuro que precisamos”, Oene, 29/mai/2012;
acessado em: http://www.oene.com.br/por-que-o-google-glass-nao-e-o-futuro-que-precisamos/

249 Pedro Burgos, “Podemos considerar Candy Crush um problema de saúde pública?”, Oene,
27/abr/2013; acessado em: http://www.oene.com.br/podemos-considerar-candy-crush-um-problema-
de-saude-publica/

250 Lisa Belkin, “What is Slow-Parenting?”, The New York Times, 8/ago/2009; acessado em
http://parenting.blogs.nytimes.com/2009/04/08/what-is-slow-parenting/?_r=0

251 http://papodehomem.com.br/movimento-slow-web-a-diferenca-entre-uma-namorada-possessiva-
e-um-bom-amigo/

252 Matt Richtel, “Silicon Valley Says Step Away From the Device”, New York Times, 23/jul/2012;
acessado em: http://www.nytimes.com/2012/07/24/technology/silicon-valley-worries-about-
addiction-to-devices.html?src=xps

253 Caitlin Kelly, “O.K., Google, Take a Deep Breath”, The New York Times, 28/abr/2012; acessado
em: http://www.nytimes.com/2012/04/29/technology/google-course-asks-employees-to-take-a-deep-
breath.html?pagewanted=all

254 http://www.theverge.com/2013/8/9/4604962/werner-herzog-from-one-second-to-the-next-
texting-and-driving-documentary

255 André Barcinski, “Tributo à Legião: pede pra sair!”, Folha de S. Paulo, 1/jun/2012; acessado em:
http://andrebarcinski.blogfolha.uol.com.br/2012/06/01/pede-pra-sair/

256 Um estudo da Universidade de Michigan comparou 72 estudos diferentes sobre estudantes


universitários entre 1979 e 2009. E descobriu que eles tiram, em média, notas 40% menores nos
testes de empatia, com perguntas simples, nas quais tinham de concordar com frases como: “Eu me
preocupo com pessoas com menos sorte do que eu” ou “eu tento me colocar no lugar dos amigos para
entender o que se passa com eles”. Em: http://www.scientificamerican.com/article.cfm?id=what-me-
care

257 http://m.folha.uol.com.br/ciencia/1155058-internet-pode-diminuir-a-inteligencia-e-a-empatia-
diz-pesquisadora.html

258 Brian Lam, “The ABCs of Summertime Gear”; Wirecutter; acessado em


http://thewirecutter.com/reviews/the-abcs-of-fun-summer-gear/
Agradecimentos

Nietzsche disse que “um bom escritor possui não apenas o seu próprio
espírito, mas o espírito de seus amigos”. Não sei ainda se sou um bom
escritor, mas certamente me alimentei do espírito de todos à minha volta
para conseguir chegar a essas páginas. E queria agradecer a muita gente por
isso. A começar pela minha família: Nina, que ouviu (e leu) quase todas as
ideias antes de qualquer pessoa; meu pai e minha mãe, que além de
conversar sobre o assunto foram fundamentais em dar o empurrão final para
o livro sair; Paty, Dudu e Bia, meus irmãos, por toda a confiança e palavras
de incentivo, sempre.
Este livro não seria possível sem meus colegas de trabalho e queridos
amigos Leo Martins, Manu Barem e Renato Bueno, com quem discuti
muitas teses e absolutamente todo tipo de assunto em almoços
inesquecíveis (aquela foi uma grande temporada!). Três casais queridos me
ouviram falar um monte do assunto por dois longos anos, e agradeço toda a
paciência e o carinho: Kátia e Alexandre, Giselle e Mamoru, Camilla e
Daniel. Vamos ter que usar a tecnologia agora para encurtar as distâncias.
Eu realmente gostaria de agradecer a todos os meus amigos porque, bem,
este livro é resultado direto do que observo e absorvo deles. Mas para não
cometer nenhuma grande injustiça (elas sempre acontecem), quero me
lembrar das pessoas com quem eu em algum momento sentei e discuti mais
longamente este assunto e algumas de suas ramificações: Albert
Steinberger, Bernardo Silveira, Cadija Tissiani, Carol Ramalhete, Edney
Souza, Érica Briones, Fabio Bracht, Fabio Sabba, Gisela Blanco, Gustavo
Igreja, Igor Marx, Jorge Paulo Jr., José Roberto Gomes, Leopoldo Godoy,
Leandro Beguoci, Letícia Bortolon, Livia Holanda, Lucas Cerro, Lu
Yonekawa, Malu Braga, Mauricio Torselli, Renata Reps, Rodrigo Bortolon,
Rodrigo Ghedin, Tiago Luchini, Thomas Leifert, Vitor Hildebrand.
Precisamos fazer isso mais vezes, e prometo agora falar de outros assuntos!
Muito obrigado a todos os editores que tive na minha carreira de
jornalista, em especial às pessoas da Superinteressante. Gente boa como
Sergio Gwercman e Denis Russo ajudaram a moldar o tipo de texto que
escrevo hoje e me fizeram criar o costume de desafiar as hipóteses que já
tinha na cabeça. Não poderia deixar de agradecer especialmente a
Alexandre Versignassi, que além de editar as minhas melhores reportagens
disse à editora que eu poderia escrever um livro interessante. Espero que
você esteja certo, Versi.
Este livro não seria um livro sem a Tainã. Obrigado pela paciência com
seguidas deadlines mortas e por acreditar que seria mais interessante um
texto filosófico que um simples guia prático. Queria agradecer também à
Marleine, pela revisão meticulosa, à Pamela, por preparar o livro de fato e a
todo o pessoal da LeYa que se esforça em fazer esta mensagem chegar ao
maior número possível de pessoas.
Não vou parar de falar ou escrever sobre o assunto, é claro. E se consigo
hoje debater melhor essas ideias em público devo agradecer à Bia Granja e
Alexandre Inagaki, por me inserirem no mundo dos grandes eventos e me
dar a oportunidade de interagir com muitos “internautas” em carne-e-osso.
Hoje também sei discutir melhor on-line porque enquanto fui editor de um
blog de tecnologia aprendi a pensar publicamente, testar minhas teorias e
conversar com os leitores. Todas as pessoas que ofereceram opiniões sobre
os meus textos publicados na internet me ajudaram a ser um escritor
melhor, e devo agradecimentos a milhares de comentaristas (mesmo aos
menos educados). Juan Lourenço, Vagner Abreu e João Paes, grandes
representantes dessa categoria, merecem um obrigado em especial.
Nunca li tanto na minha vida como nos últimos dois anos – o iPad e o
Kindle foram ferramentas essenciais para conseguir atravessar tantas
páginas, fazer marcações e ter acesso a ideias tão rapidamente. Muitas das
teses aqui foram desenvolvidas antes por gente excepcional como Alexis
Madrigal, Brian Lam, Clive Thompson, David Foster Wallace, Douglas
Rushkoff, Evgeny Morozov, Farhad Manjoo, Jonathan Franzen, Matt
Buchanan, Howard Rheingold, Jack Cheng, Jaron Lanier, John Gruber,
Nassim Nicholas Taleb, Nicholas Carr, Pierre Lévy, Robert Levine, Sherry
Turkle, William Powers. Obrigado pela inspiração.
E, por último e não menos importante, queria agradecer a Steve Jobs,
Jonathan Ive, Jeff Bezos, Larry Page, Sergey Brin e Jimmy Wales. Sem a
visão do uso da tecnologia aplicada a humanos dessas pessoas seria mais
trabalhoso e menos prazeroso conseguir produzir tudo isso. A tecnologia é
só um meio, e este é um dos fins.
Índice
CAPA
Ficha Técnica
Dedicatória
Apresentação
Introdução
Código.doc
Reinventando a roda
Você quis dizer... ?
1. Meu nome é Pedro e faz 3 minutos que não olho para o celular
O primeiro trago
Não é vício, mas é viciante
iDoentes
O que a tecnologia faz para você?
Recuperando o controle
Próxima fase
Só mais uma vida…
O problema do fumante passivo
2. Virtualmente real
O espaço
Netiqueta
Estar no lugar
Estar em todos os lugares
Videoconferência
O espaço sagrado
3. Caindo na rede
Somos seres sociais
Narciso acha feio o que não é Facebook
Oversharing
A boa esquizofrenia
O preço da privacidade
Controlando o fluxo
Precisamos aprender a esquecer
Presos no passado
Little Brothers
4. Excesso de informações
Quem precisa de tanta notícia?
Ser inteligente, hoje, é saber ser seletivamente ignorante
Infobesidade e cauda longa
Googlando o futuro
A bolha assassina
De trolls e outros demônios
Não seja o ruído
5. O preço do gratuito
Um problema invisível
Os novos intermediários
A criatividade da nova economia
Novos princípios
6. Precisamos discutir isso mais vezes
O que estamos perdendo?
Agradecimentos

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