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ATOS DE PESQUISA EM EDUCAÇÃO - PPGE/ME FURB

ISSN 1809-0354 v. 6, n. 3, p. 751- 778, set./dez. 2011

A EXPERIÊNCIA GERACIONAL NA FALA DE ADOLESCENTES DE ESCOLAS


PÚBLICAS: DISCIPLINA E RESISTÊNCIA AO PODER ESCOLAR

THE GENERATIONAL EXPERIENCE IN THE SPEECH OF PUBLIC SCHOOL


ADOLESCENTS: DISCIPLINE AND RESISTANCE TO THE SCHOOL POWER

Marcela Goulart Fontes


Universidade Federal de São João del-Rei
marcela_gfontes@hotmail.com

Ruth Bernardes de Sant`Ana


Universidade Federal de São João del-Rei
ruthbs@ufsj.edu.br

agência financiadora: FAPEMIG

RESUMO É muito presente na literatura sociológica atual a afirmação de que as


novas gerações resistem à apropriação de uma parte expressiva do mundo
constituído pelas gerações que as antecederam, questionando a legitimidade de
aspectos significativos das referências socioculturais que receberam como herança.
Isso se expressa em termos de oposição geracional a um conjunto de padrões de
comportamentos instituídos historicamente por diferentes agências socializadoras,
inclusive a família e a escola. A questão da indisciplina aparece como a expressão
mais contundente da oposição juvenil ao poder adulto no ambiente escolar, razão
pela qual focalizamos os conflitos professor-aluno por meio dos atos e falas dos
adolescentes, no intuito de identificar como eles entendem os seus comportamentos
de oposição e a que ou a quem estes estariam relacionados. Tomando por base os
pressupostos teórico-metodológicos da resistência cultural de autores como Giroux,
Apple e McLaren e da abordagem interacionista da escola, este artigo aborda a
questão da disciplina e da oposição a ela por parte de alunos adolescentes de duas
escolas públicas de São João del-Rei, Minas Gerais. Para tanto, realizamos uma
pesquisa de campo que consistiu em: observações de duas salas de aula e do
ambiente extraclasse, entrevistas individuais e oficinas semanais com adolescentes
na faixa etária de 14 anos. Dentre outras coisas, a pesquisa indicou-nos que os
adolescentes oscilam entre a resistência e a acomodação, entre a negação e a
afirmação do autoritarismo e, desse modo, eles conseguem suportar os aspectos
ruins do cotidiano escolar. Sendo assim, percebemos que frequentemente recorrem
a formas de resistência como tentativa de ruptura com a rotina da sala de aula,
como experiência de libertação, de criação de situações que demandem que sejam
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ouvidos e compreendidos em seus desejos e direitos, enquanto sujeitos


participantes do processo educacional e da sociedade.
Palavras-chave: Resistência; Geração; Alunos; Disciplina; Processos Psicossociais;
Escola Pública.

ABSTRACT It is very present in the current sociological literature the statement that
the new generations resist the appropriation of a significant part of the world
constituted by the generations that preceded them, questioning the legitimacy of the
significant aspects of the socio-cultural references that have received an inheritance.
This is expressed in erms of generational opposition to a set of behavior
patterns established historically by different socializing agencies, including family
and school. The issue of indiscipline appears as the clearest expression of
opposition to the juvenile adult power in the school environment, which is why we
focus on teacher-student conflicts through acts and words of teenagers in order
to identify how they understand their oppositional behavior and what or
whom they are related to. Based on the theoretical and methodological
assumptions of cultural resistance by authors such as Giroux, Apple and McLaren
and the school interactionist approach , this paper focuses on
the issue of discipline and opposition to it by two teenage students from public
schools in Joao del Rei, Minas Gerais. We made a field survey consisting
of: observations of two classrooms and extracurricular environment, weekly
workshops and individual interviews with adolescents with the average age of 14
years old. Among other things, the research indicated that teenagers oscillate
between resistance and accommodation, between denial and the affirmation of
authoritarianism, and in this way, they can bear the bad aspects of everyday school
life. Thus, we find that adolescents frequently resort to forms of resistance as an
attempt to break from the routine of the classroom, as an experience of liberation and
the creation of situations that require them to be heard and understood in
their wishes and rights, while participant subjects in the educational process as well
as society.
Keywords: Resistance; Generation; Students; Discipline, Psychosocial Processes;
Public schools.

INTRODUÇÃO

Tomando por base os pressupostos teórico-metodológicos da resistência


cultural de autores como Giroux, Apple e McLaren e da abordagem interacionista da
escola, este artigo tem como objetivo apresentar algumas reflexões acerca de uma
investigação realizada sobre a questão da disciplina e da oposição a ela por parte de
alunos adolescentes de duas escolas públicas de São João del-Rei, Minas Gerais,
procurando compreender a lógica subjacente à resistência à disciplina, presente no
ambiente escolar. Para tanto, realizamos uma pesquisa de campo que consistiu em:
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observações de duas salas de aula e do ambiente extraclasse, entrevistas


individuais e oficinas semanais com adolescentes na faixa etária de 14 anos.
A partir de Carrano e Martins (2007), podemos afirmar que, na
contemporaneidade, as novas gerações se apresentam inseridas “em uma realidade
própria, com códigos e linguagens específicas que, na maioria das vezes, não
guardam relação de identificação com a geração que a antecede” (p.37). Nessa
mesma linha de raciocínio, o trabalho aqui apresentado 1 tem como preocupação
central o deciframento de alguns “códigos e linguagens” de resistência, forjados por
adolescentes em relação ao poder escolar. Como dizem os autores, esses códigos
são “de difícil interpretação e, na maioria das vezes, traduzem ou escondem
especificidades que podem indicar variadas formas de assumir alguma postura
frente à cultura dominante, no caso, a dos adultos” (p.37).
É muito presente na literatura sociológica atual a afirmação de que na
contemporaneidade os mais jovens lidam de uma maneira específica com essa
relação de distanciamento e aproximação geracional, pois esses resistem à
apropriação de uma parte expressiva do mundo constituído pelas gerações que os
antecederam, questionando a legitimidade de aspectos significativos das referências
socioculturais que receberam como herança. Isso se expressa em termos de
oposição a um conjunto de padrões de comportamentos instituídos historicamente
por diferentes agências socializadoras, inclusive a família e a escola.
A questão da indisciplina aparece como a expressão mais contundente da
oposição juvenil ao poder adulto no ambiente escolar, razão pela qual focalizamos
os conflitos professor-aluno por meio dos atos e falas dos adolescentes, no intuito de
identificar como eles entendem os seus comportamentos de oposição e a que ou a
quem este estaria relacionado
A escola moderna nasceu no interior de um programa de socialização das
novas gerações, configurado a partir de uma relação social baseada na disciplina.
Seu projeto socializador ganhou corpo a partir do advento da idade moderna,

1
Os autores deste artigo são vinculados ao LAPIP (Laboratório de Pesquisa e Intervenção
Psicossocial) da Universidade Federal de São João del-Rei. Este artigo é oriundo de uma pesquisa
desenvolvida por Marcela Goulart Fontes, bolsista PIBIC/CNPq, e orientado pela professora Ruth
Bernardes de Sant`Ana, nos anos 2009 e 2010. A versão aqui apresentada sofreu alterações teóricas
e de análise, e faz parte da pesquisa intitulada “A Experiência geracional na fala de alunos de escola
pública”. Esta se insere em uma pesquisa longitudinal em desenvolvimento desde 2001, que se volta
para o acompanhamento das trajetórias escolares de um grupo de estudantes, desde a pré-escola.
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quando a organização dos estabelecimentos escolares institucionaliza uma ordem


temporal e espacial específica para a relação intergeracional.
Apesar das mudanças vividas pela escola na contemporaneidade, ainda
prevalece como uma de suas marcas históricas as práticas educativas
disciplinadoras, ligadas às relações de poder que lhes dão sustentação. Ao mesmo
tempo, nela coexistem as culturas de resistência juvenis, que em sua maior parte
expressam o gosto pela mudança. De tal modo, a experiência das novas gerações
com a escola não é simplesmente uma repetição dos modelos relacionais herdados
do passado, embora estes possam referenciar suas ações cotidianas nesse espaço
institucional.
Cada geração que adentra as portas da escola enfrenta questões específicas
que se ligam, em maior ou menor grau, às alternativas identificadas pelos seus
membros para o presente e o futuro, em meio ao contexto societário de pertença ou
de referência que alimenta as relações geracionais. Isso significa que cada membro
da nova geração tem de lidar com as relações de poder estabelecidas no cotidiano
escolar, em movimentos de aproximação e de distanciamento em relação às
exigências escolares.
Sendo assim, os comportamentos de oposição juvenil podem estar ligados às
formas específicas que cada grupo encontra para resistir, para responder aos
padrões relacionais hegemônicos na escola e como forma de expressar sua
identidade, de chamar a atenção para as necessidades mais significativas definidas
pelos seus integrantes.
Nós promovemos a substituição da noção de indisciplina pela de ato de
resistência, pois, além da falta de clareza e consenso a respeito do significado dos
termos indisciplina e disciplina, a maior parte das análises parece expressar as
marcas de um discurso fortemente impregnado pelos dogmas e mitos do senso-
comum a conceber a indisciplina simplesmente como um desvio da disciplina. Por
promover tal discussão, a teoria da resistência cultural, desenvolvida por autores
como Giroux (1986), Apple (1989) e McLaren (1997), referencia a discussão.
Esses autores nos instigam a refletir os comportamentos “indisciplinados” dos
alunos, em suas relações com o controle escolar, em termos de oposição e
resistência cultural de classe, gênero, raça e geração. Isso torna complexa a
compreensão do fenômeno no campo acadêmico, ao expor outra perspectiva de
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tratamento dessa questão social. Partindo do pressuposto de que nem todo


comportamento de oposição pode ser caracterizado como resistência cultural,
inicialmente procuramos entender que comportamentos de oposição representam
formas de resistência cultural aos mecanismos de controle atuantes no âmbito
escolar.
Em defesa da emancipação dos segmentos sociais subordinados, colocados
em situação de “minoridade social”, Giroux (1986) discute o conceito de resistência
nos limites da escola como um elemento fundamental a uma análise crítica e radical
da prática pedagógica:

O conceito de resistência representa mais do que um novo slogan heurístico


na linguagem da pedagogia radical – ela representa um modo de discurso
que rejeita as explicações tradicionais do fracasso escolar e do
comportamento de oposição. (...) A resistência, neste caso, redefine as
causas e o significado dos comportamentos de oposição, argumentando
que tem pouco a ver com a lógica da desviância, da patologia individual, o
desamparo apreendido (e, é claro, explicações genéticas), e que tem muito
a ver com a lógica da indignação moral e política, embora não
exaustivamente. (GIROUX, 1986, p.146)

Esse autor enfatiza, também, que o processo de dominação não é coeso,


unitário e intrinsecamente coerente, inclusive ocorrendo momentos de
desarticulação dos aparatos de controle, situações que revelam as contradições
reais e objetivas de onde decorrem as formas de resistência. Esses processos
contraditórios não são específicos do sistema escolar, mas são incongruências
inerentes ao sistema social global e se manifestam na escola sob a forma de
desagregação e descontinuidade da prática pedagógica.
As resistências têm feito parte do processo histórico e social dos seres
humanos, uma vez que há registros daquelas ocorridas contra as práticas de
dominação. Nesses caminhos, a resistência sempre esteve presente, em maior ou
menor grau, representada em muitos movimentos de busca por um mundo melhor.
No contexto escolar, são poucas as considerações sobre o assunto, o que leva à
dificuldade dos teóricos educacionais, ao fazerem uma análise mais detalhada e
profunda, de saber como surgem os mecanismos de resistência e de quais formas
eles são expressos em sala de aula. Talvez o mais importante seja descobrir e
entender o que, na verdade, esses mecanismos querem revelar, e neste sentido,
qual a problemática que deve ser examinada e reestruturada.
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Sendo assim, a proposta de estudar a escola à luz da perspectiva da


resistência é uma tentativa de enfatizá-la como um espaço social onde também
existe contestação ao sistema dominante. Ou seja, é preciso ressaltar que os
mecanismos de reprodução social e cultural - como aqueles atuantes no ambiente
escolar - nunca são completos e se defrontam sempre com elementos de
resistência, que podem trazer consigo um pensamento crítico e uma ação reflexiva
suscetível de contribuir quer seja para a emancipação política, quer seja para
provocar um mal-estar que indaga se o tipo de educação oferecida às novas
gerações satisfaz seus anseios nesse momento de suas vidas. Esse enfoque
mostra-nos uma alternativa de reflexão da prática escolar sob uma perspectiva
crítica que entende a realidade como uma totalidade concreta, envolvendo a
resistência e a acomodação, a negação e a afirmação dos estudantes como sujeitos.
E, acima de tudo, supõe um movimento ativo, por parte dos adolescentes, que inclui
a possibilidade de mudança e de transformação, o que significa afirmar que

devemos contestar uma suposição em particular: a da passividade. Esta


suposição tende a ignorar o fato de que os estudantes estão criativamente
agindo sob formas que freqüentemente contradizem aquelas normas e
disposições que permeiam a escola. (APPLE, 1989, p.112).

Partindo da abordagem interacionista da escola, definida por teóricos como


Coulon (1995) e Woods (1987), observamos um conjunto de relações sociais que
envolvem os adolescentes entre si e com os educadores, e abrimo-nos à escuta do
que eles têm a dizer acerca de suas experiências dentro e fora desse ambiente.
Com base nesses autores, podemos pensar que as interações sociais vividas pelo
sujeito em sua formação permitem movimentos de autonomia do indivíduo diante do
controle imposto pela ordem social e em sua capacidade na tomada de decisões, no
campo pessoal e político.
Diante disso, concebemos o espaço escolar como um meio profícuo para o
estudo das relações sociais dos adolescentes de diversos segmentos da sociedade
e, consequentemente, um local que propicia a observação de diferentes dinâmicas
interacionais enquanto estão acontecendo. Isso nos leva a compreender, através
dos atos e das falas do aluno, como ele entende o comportamento de oposição e,
caso esse comportamento seja uma resistência, a que ou a quem ela estaria
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relacionada. Portanto, o estudo da resistência escolar tem permitido compreender


como os adolescentes dos setores populares lidam com um modelo de escola
tradicional, incluindo os significados que atribuem à ação de alunos e professores no
controle do processo pedagógico.
Ressaltamos que os sujeitos sobre os quais recai esta pesquisa são oriundos
dos setores populares, cujas rendas familiares variam de um a quatro salários
mínimos. Grande parte dos adolescentes que estudam nas escolas localizadas no
centro da cidade mora fora dessa região, e para chegar até a escola, esses alunos
utilizam condução ou vão a pé, geralmente em grupos de amigos. Nenhum exerce
atividade remunerada, pois a moratória social em relação ao mundo do trabalho,
preconizada pelo Estatuto da Criança e do Adolescente (BRASIL, 1990), é
respeitada por suas famílias e pela comunidade. Sendo assim, o exercício do ofício
do aluno constitui a obrigação social desses sujeitos diante da escola, da família e
da sociedade. Para aqueles que recebem a bolsa escola2, esse ofício garante uma
renda, mas não o reconhecimento como um trabalho remunerado, já que essa renda
é caracterizada como um auxílio de assistência social.
Durante esta pesquisa, realizamos observações em salas de aula de duas
escolas estaduais, na cidade de São João del-Rei, MG. Além disso, nesses
estabelecimentos, coordenamos oficinas de grupo (onde havia em cada uma, no
mínimo, oito adolescentes, com idades entre 13 e 14 anos) em que ocorreram
dinâmicas interativas, jogos e discussões sobre assuntos que fazem parte do
cotidiano dos adolescentes. Por último, fizemos entrevistas individuais com 19
(dezenove) estudantes.

TEORIZANDO A RESISTÊNCIA DOS ADOLESCENTES NAS INTERAÇÕES


SOCIAIS ESCOLARES

Iniciamos este excerto buscando discutir o que as pesquisas relacionadas à


escola vêm teorizando sobre a resistência escolar. Desse modo, podemos
compreender melhor como os processos de resistência se localizam em meio à teia
2
O Programa Nacional Bolsa Escola é uma medida de transferência de renda criada pelo Governo
Federal em 2001 com a proposta de conceder benefício monetário mensal a milhares de famílias
brasileiras em troca da manutenção de suas crianças nas escolas. A população a ser atendida foi
definida segundo dois parâmetros e um requisito: faixa etária, renda e frequência à escola.
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de relações sociais no interior da escola, de maneira a dar o suporte teórico


necessário ao entendimento das situações observadas na pesquisa empírica.
Reiteramos a concepção discutida por Aquino (1999) de que o conceito de
disciplina3, como toda criação cultural, não é estático, uniforme, nem tampouco
universal. Ele se relaciona com o conjunto de valores e expectativas que variam ao
longo da história, entre as diferentes culturas e numa dada sociedade, nas suas
diversas classes sociais, em diferentes instituições e até mesmo dentro de uma
mesma camada social ou organização social. Portanto, os padrões de disciplina que
pautam a educação de jovens e crianças, assim como os critérios usados para
identificar um comportamento indisciplinado ou de oposição não somente se
transformam ao longo do tempo como também se diferenciam no interior de uma
dinâmica social.
No meio educacional, costuma-se compreender os comportamentos de
oposição e resistência, expressos pelos estudantes, como atitudes inadequadas –
um sinal de rebeldia, intransigência, desacato – atribuídas a alguma patologia, à
deficiência de personalidade ou distúrbios emocionais (REGO, 1996). Uma espécie
de incapacidade do aluno (ou do grupo) de se ajustar às normas e padrões de
comportamento esperados, ou seja, um desvio da norma reconhecida como correta:
a disciplina. Normalmente esses alunos são rotulados como “os causadores de
problemas” e muitas vezes, são encaminhados para os serviços de
acompanhamento psicológico.
É interessante observar que, do ponto de vista do aluno, os motivos alegados
para a manifestação dos comportamentos de oposição e resistência costumam ser
um tanto diferentes. Com bastante frequência dirigem suas críticas ao sistema
escolar. Reclamam não somente do autoritarismo, ainda tão presente nas relações
escolares, mas também da qualidade das aulas; da maneira que os horários e os
espaços são organizados; do pouco tempo de recreio; da quantidade de assuntos
incompreensíveis, pouco significativos e desinteressantes; da aspereza de
determinado professor; das aulas monótonas; da obrigação de permanecerem

3
Nesse ponto, o conceito de disciplina deve ser entendido no sentido lato, concebido como ordem,
respeito, obediência às leis e às autoridades por parte daquele que obedece. Antes do nascimento da
sociedade moderna, a humanidade já havia constituído práticas disciplinadoras, porém, há uma
mudança na forma e na abrangência da disciplina, a partir do século XVIII, que leva Foucault a falar
em nascimento de uma sociedade disciplinar no classicismo (FOUCAULT, 1993).
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sentados por muito tempo; da escassez de materiais e propostas desafiadoras; da


ausência de regras claras; da falta de clareza dos educadores, entre outros.
Conforme a teoria da resistência cultural de Giroux (1986), a resistência é
entendida como um conjunto de práticas exercidas por grupos subordinados que se
expressam sob a forma de oposição, numa tentativa de confrontar a dominação, de
não perder sua identidade e seus costumes. São os comportamentos contraditórios
e ambíguos e são as situações conflituosas presentes na realidade social que
permitem que tal resistência apareça como forma de afirmação e defesa identitária.
A resistência implica em negação, insubmissão, reelaboração, reinvenção, rejeição,
podendo ser decorrente de comportamentos conscientes ou inconscientes.
A partir de autores como Berger & Luckmann (2002) e Sousa & Durand
(2002), podemos pensar as práticas de resistência em termos geracionais. Uma
geração pode resistir a fazer sua uma parte expressiva do mundo constituído pelas
gerações que a antecederam, questionando a legitimidade daquilo que recebeu
como herança. A resistência a determinados valores e práticas provenientes do
passado pode assumir a forma de repúdio, de insubmissão a determinadas normas
e valores, e de constituição de novas práticas socioculturais.
Durante todo o século XX, a preocupação dominante do poder adulto
consistiu em controle do comportamento das novas gerações com vistas à sua
disciplinarização e adaptação à ordem social, o que é visível na missão da escola
enquanto instituição socializadora. Porém, na contemporaneidade ganham
visibilidade movimentos de recusa, por uma parte expressiva da população juvenil,
da educação escolar dominante, cujo objetivo maior tem sido a preparação para
uma vida competitiva e individualista, conformada por uma ética orientada pelas
exigências do mercado de trabalho. Sousa & Durand (2002) salientam que

ao longo do século XX, os jovens, muitas vezes, foram considerados surdo-


mudos sociais, e impôs-se uma educação com vínculos disciplinadores e
morais do arbitrário cultural dominante, apoiado em critérios objetivistas. A
instituição educativa assim age com o jovem ignorando a natureza dos seus
signos e códigos descompromissados com a ordem social, o seu sentido
afirmativo de identidade, as potencialidades dos seus questionamentos, a
condição provisória da vida e a vulnerabilidade material que sofre em
função da mudança das relações produtivas da sociedade em crise. (p.168)

A resistência geracional juvenil se liga ao questionamento desse “arbitrário


cultural dominante” naturalizado por parte dos porta-vozes da ordem social. Desse
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modo, a recusa de reconhecimento da legitimidade das culturas das novas gerações


no interior da escola e na sociedade mais ampla tem sido fonte de atrito geracional.
Isso é inegável desde o pós-guerra, pois assistimos a diferentes movimentos juvenis
que se confrontam com as gerações mais velhas e rompem com o lugar de “surdo-
mudos sociais” atribuído àqueles que compõem as “gerações imaturas”.
Na mesma linha de raciocínio, McLaren (1991) procura mostrar que os
estudantes resistem a um corpo de normas e de junções formais. Eles fazem
resistência à distinção entre a cultura vivida informalmente nas ruas e àquela formal
e dominante da sala de aula:

Com o termo resistência quero me referir ao comportamento de oposição do


aluno que tem tanto um sentido simbólico e histórico como vital e que
contesta a legitimidade, poder e significação da cultura escolar de um modo
geral e do ensino de um modo especial, seja no currículo aberto ou oculto.
(MCLAREN, 1991, p.202)

Na perspectiva de McLaren (1991), é fácil compreender porque os estudantes


apresentam resistências enquanto no “estado de estudante” (p.203), através de ritos
de transgressão, pois, neste “estado”, eles são conduzidos à apatia, ausência de
paixão e vazio emocional e espiritual. Além disso, fixar o adolescente no papel de
estudante leva a uma degradação de sua identidade. As normas para se relacionar
com a vida no “estado de estudante” foram estabelecidas pela exigência da
manutenção do status quo – uma situação sentida pelos estudantes como
esmagadoramente opressiva. Neste sentido, “a quebra das normas é uma resposta
lógica às condições opressivas do estudante. E ocorrem na maioria das vezes
quando o puro autoritarismo do professor se torna demasiado para suportar” (p.202).
É discorrendo sobre esse autoritarismo que Willis (1991) enfatiza que a
dimensão mais básica, óbvia e explícita da cultura contra-escolar é uma oposição à
autoridade docente nos planos pessoal e coletivo. Essa oposição envolve uma
aparente inversão dos valores usuais mantidos pela autoridade, manifestando-se de
incontáveis pequenas maneiras que são peculiares à instituição escolar e que são
reconhecidas instantaneamente pelos professores, constituindo uma parte quase
ritual da trama diária da vida escolar.
Por sua vez, Moura (2009) investiga a ligação da resistência do estudante à
imposição e lógica do tempo escolar. Na sua perspectiva, dentro de uma lógica
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burocrática e centenária, o tempo escolar não é questionado, as escolas não


procuram outra forma de organização, predominam respostas estereotipadas,
burocráticas, homogêneas, não adaptadas à realidade, aos problemas, às
características, à cultura e às necessidades dos alunos e de suas famílias. Desta
forma, “a resistência escolar evidencia-se na oposição dos regulamentos escolares,
sendo perspectivada como uma manifestação de conflitos culturais que opõem, de
um modo mais ou menos evidente, a escola e o universo social e familiar” (p.9). O
autor também entende como forma de resistência ao tempo escolar a situação dos
alunos categorizados como “lentos”, alunos que se limitam a dar uma resposta
mínima às exigências da instituição escolar, uma vez que

resistem a obedecer com a lentidão, chegam tarde, demoram a tirar os


livros da mala, tirar os cadernos, não recusam a fazer o trabalho proposto,
mas demoram muito a começar, fazendo depois de muitos apelos ou
ameaças do professor, depois não se implicam ou não os terminam.
(MOURA, 2009, p.9)

Apple (1989), em concordância com os autores já citados, observa que os


estudantes que resistem, ou seja, que “tentam manter sua identidade e levar o dia”
(p.114), não gastam a maior parte do tempo da escola em “trabalho” (naquilo para o
qual os professores pensam que serve a escola), e sim na geração de uma cultura
vivida específica - falar sobre esportes, discutir ou planejar atividades externas com
amigos, discorrer sobre coisas “não acadêmicas” que eles fazem na escola.
Em suma, o que parece ponto comum nas discussões trazidas pelos autores
aqui citados diz respeito à recusa do aluno ao lugar (de subordinado) atribuído pela
escola e também à rejeição da identidade que sustenta esse lugar. E, por outro lado,
diz respeito à negação da cultura adolescente manifestada pela escola, a fim de
impor a disciplina e manter a dominação.

MÉTODO

O referencial metodológico que usamos na investigação do cotidiano escolar


é a abordagem interacionista da escola (COULON, 1995; WOODS, 1987). A adoção
dessa abordagem leva-nos à observação da interação social, entre educadores e
alunos e deles entre si, como um recurso imprescindível para desvelar os aspectos
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significativos no fazer educativo do cotidiano escolar. Isso colabora para um


tratamento psicossocial das instituições, ao permitir a investigação da rotina
cotidiana, das expectativas dos indivíduos e das formas que estas assumem na
condução das atividades ali instituídas. As diferentes definições das situações pelos
atores, em cada contexto relacional, permitem pensar as ambiguidades e
contradições entre o que dizem e o que fazem, entre o que ambicionam e o que
realizam efetivamente.
Orientados por essa perspectiva metodológica, realizamos, primeiramente, o
contato com os adolescentes que foram convidados a participar da pesquisa, cuja
faixa etária média era de 14 anos, em 2010. Com a participação desses jovens,
pudemos desenvolver a investigação a partir de três procedimentos metodológicos:
entrevistas semidiretivas individuais, observações de sala de aula e oficinas
semanais com os adolescentes.
Ao longo de 2009, foram desenvolvidas tais oficinas, das quais participaram
alguns adolescentes matriculados em duas escolas da rede estadual de ensino do
município de São João del-Rei, MG, a saber, Escola Estadual João dos Santos e
Escola Estadual Cônego Osvaldo Lustosa. Esses grupos foram reunidos no espaço
escolar, uma vez por semana, e fora do horário da aula. Promovemos, ao todo, 16
sessões (oito em cada escola) que foram filmadas para registrar os encontros
grupais, mediados por dinâmicas ou jogos, nos quais pudemos falar do “ser
adolescente” e do “ser aluno”. Os encontros foram filmados ora pelos pesquisadores
ora pelos próprios adolescentes, e durante essas sessões, buscamos estimular o
diálogo aberto entre os participantes.
De agosto de 2009 a junho de 2010, realizamos 220 horas de observações de
sala de aula (sendo observadas duas turmas de sétima série ou oitavo ano do
Ensino Fundamental, no ano de 2009 e duas turmas de oitava série ou nono ano do
Ensino Fundamental, em 2010) e do ambiente extraclasse nas mesmas escolas
públicas. Essas observações foram focadas, entre outras coisas, nos
comportamentos de oposição do aluno em relação aos educadores, manifestados
através da linguagem verbal e não verbal. Posteriormente, foram feitas as análises
dos relatórios de observação e das filmagens das oficinas realizadas com os grupos
de adolescentes. Os pesquisadores que estavam em sala de aula tinham sempre
em mãos o diário de campo para as anotações dos fatos mais importantes e que
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chamavam mais a atenção, além de possibilitar o registro das impressões do


cotidiano escolar após o encerramento das atividades.
Dezenove entrevistas semidiretivas e individuais também foram realizadas
com os adolescentes, entre novembro e dezembro de 2009 (onde foram feitas nove
entrevistas) e, em uma segunda fase da pesquisa, entre maio e junho de 2010 (onde
realizamos 10 entrevistas). Nessas entrevistas priorizamos a relação do aluno com a
escola e com os professores, além de nos permitir buscar aprofundamento no que
se refere aos interesses que conduzem os comportamentos de oposição que
ocorrem nas salas de aula e no espaço escolar. As entrevistas foram gravadas e
norteadas por um roteiro construído com a participação do grupo de estudo e de
alguns adolescentes, durante um encontro de recreação. O roteiro constituiu-se de
casos hipotéticos, inspirados em situações concretas de sala de aula e perguntas
enfocando os casos e temáticas relacionadas às relações sociais na escola.
As observações de sala de aula trouxeram um conjunto de comportamentos
vistos como de oposição. Já as entrevistas individuais almejavam refletir o
significado desses comportamentos para os adolescentes.
Com essa metodologia, a equipe de pesquisa contou com a participação mais
direta de cerca de 40 alunos, seja por via das oficinas grupais, das entrevistas ou
das observações em sala de aula. Todo trabalho realizado foi acompanhado por
uma equipe de pesquisa sobre adolescência que se reunia semanalmente com
duração de uma hora e meia. Nessas reuniões ocorriam discussões teórico-
metodológicas, fazíamos balanço das dinâmicas realizadas nas oficinas, além de
debatermos as experiências de bolsistas e estagiários nas observações na sala de
aula4.

RESISTÊNCIA E OPOSIÇÃO NA SALA DE AULA NA FALA DE ADOLESCENTES

Numa primeira aproximação, através de observações, levantamos os modos


preponderantes de oposição que compunham o cenário da sala de aula.
Entendemos que estes podem ser analisados como oposição passiva, visível no
silêncio de alunos indiferentes e desligados do que acontece em tal cenário, e como
4
As observações também foram realizadas por mais quatro estagiários, que fazem parte do grupo de
pesquisa. Nossos agradecimentos aos estagiários que colaboraram no desenvolvimento desta
pesquisa, trabalho esse imprescindível em todas as fases de realização da investigação.
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oposição ativa, manifesta em comportamentos que desestabilizam explicitamente o


desenvolvimento das atividades propostas pelo professor, tais como: jogar objetos
nos colegas; andar na sala de aula; trocar bilhetes durante a aula; gritar ao
conversar com colegas ou com professores; usar fones de ouvido; cantar durante a
aula; colocar músicas para tocar no celular; desenhar (no caderno e/ou na carteira);
dormir nas aulas; o retardamento na realização das tarefas, e ainda a não realização
das mesmas. A forma de oposição ativa em que o confronto é mais visível é aquela
que Montandon (1997) designa como resistência rebelde, pois há uma recusa aberta
em obedecer ao educador e o aluno responde de maneira “agressiva”.
Após esses procedimentos, buscamos analisar se os comportamentos de
oposição dos alunos, observados em sala de aula e no ambiente escolar, sugerem
resistência aos mecanismos de controle atuantes nesses espaços sociais – ou seja,
estão enraizados em uma reação à autoridade e à dominação – ou representam
uma expressão ideológica que se origina fora da escola e que não indicam uma
crítica direta à escolarização. Em outras palavras, os estudantes podem demonstrar
comportamentos de oposição que violam as regras da escola, mas que não
representam resistência escolar, pois são alimentados por imperativos ideológicos
que se referem às questões e preocupações que têm pouco a ver com esse espaço
social, no sentido mais direto. A fonte de tais comportamentos geralmente origina-se
fora da escola, particularmente na família, no grupo de amigos, ou mesmo na cultura
industrializada. As escolas, sob tais circunstâncias, tornam-se espaços sociais onde
o comportamento de oposição simplesmente é manifesto. Neste caso, esses atos
ocorrem menos como uma crítica à escolarização e dominação escolar do que como
uma expressão de uma concepção ideológica, valorativa e transferencial, consciente
ou inconsciente.
Portanto, percebemos a necessidade de ampliar a análise desses atos de
oposição observados no ambiente escolar, pois nem todos eles têm a função
reveladora da resistência, concebida como aquela que contém uma crítica à
dominação e fornece oportunidade de luta no interesse da emancipação do aluno do
lugar de subordinado no qual se encontra. Além disso, esses comportamentos não
falam por si só, ou seja,

chamá-los de resistência é fazer do conceito um termo que não tem


precisão analítica. (...) tem-se que associar o comportamento analisado com
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uma interpretação fornecida pelos sujeitos que o demonstram, ou buscar


profundamente nas condições históricas e relacionais específicas a partir
das quais o comportamento se origina. Apenas assim as condições
possivelmente revelariam o interesse entranhado em tal comportamento.
(GIROUX, 1986, p.148)

Contudo, mesmo que ainda não tenhamos aprofundado as condições


históricas e relacionais específicas a partir das quais os comportamentos de
oposição são gerados, levamos em consideração a perspectiva do aluno no que se
refere ao interesse entranhado na emissão desses comportamentos.
A pesquisa nos mostrou que as perspectivas dos alunos sobre um dado
comportamento de oposição variam entre eles. Por exemplo, com relação ao ato de
oposição de dormir em sala de aula, pudemos identificar que vários adolescentes
afirmam que o aluno dorme porque não tem interesse na aula, ou porque não
entende nada que o professor diz, ou ainda, que faz isso para irritar ou afrontar o
professor. Já outra adolescente afirma que o aluno dorme “porque ele tá cansado,
ou talvez esteja passando mal ou com sono” (EI 5: Lorena6, 14, novembro de 2009),
ou seja, na opinião dela, não há nenhuma relação desse ato de oposição com a
escola ou mesmo com a aula. No que concerne ao comportamento de imitar animais
na sala de aula, os entrevistados relacionaram esse ato a alguns objetivos que se
opõem à escola, tais como: atrapalhar a aula; fazer gracinha; irritar, provocar ou
insultar o professor; além do fato de não estarem interessados na aula. Para outra
entrevistada, porém, essas atitudes trazem consigo, acima de tudo, um significado
lúdico, podendo ocorrer, como nos informa uma adolescente entrevistada, para
“chamar atenção pra todo mundo rir (...)”. Como vários alunos imitam os sons de
animais ela diz: “a minha sala é um zoológico (...)” (EI: Larissa, 14, novembro de
2009).
Embora o objetivo deste trabalho não seja aprofundar nas formas específicas
do riso e do humor em sala de aula, temos que levá-los em conta como formas de
resistência uma vez que

o riso facilita a interação, a comunicação, a aprendizagem e propicia


estabelecer ligações com o grupo social no qual se está inserido. Ele vai
além da gargalhada, da diversão. É também forma de manifestar repúdio
contra as opressões, normas, situações, instituições, poder. Ele permite que
se digam verdades muitas vezes mais profundas do que de “forma séria”. É

5
Entrevista Individual.
6
Todos os nomes dos sujeitos apresentados neste trabalho são fictícios.
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estreita a ligação entre riso e crítica. É como se essa quebra da seriedade


fosse um proclame à liberdade e servisse como “válvula de escape” para
aliviar tensões sociais. (STHIEL, 2007, p.2)

Através das observações do contexto da sala de aula, fica visível a maneira


com que os adolescentes resistem ao controle disciplinar. A turma e a pessoa que
foi repreendida geralmente revidam as repreensões disciplinares com risos, o que
parece indicar uma forma de se opor às atitudes de autoridade do professor. Isso
demonstra que os adolescentes não desanimam ou se retraem pela censura, alguns
resistem ao continuar querendo aprender, e outros afrontam ao continuar emitindo
comportamentos de oposição. Vejamos três exemplos ocorridos em duas turmas
observadas, ressaltando que, ao longo da investigação, é constante o relato de
observações de situações como estas:

(Observação dia 23/10/2009)


[Pesq.: Começa mais um dia de aula. Alunos entram na sala de aula.]
Prof.: Um dia vou filmar vocês entrando dentro da sala de aula. Vocês acham
que estão entrando na sala de suas casas gritando desse jeito? Vocês tão
parecendo sabe o que?
José: [responde prontamente] Loucos professora! Loucos!
[Pesq.: A turma toda ri.]

(Observação dia 10/06/2010)


[Pesq.: A professora segue a aula com a correção de alguns exercícios.]
Prof.: Você nem abriu o caderno, né, Joana?
Joana: Lógico que abri, tá aqui oh! [abrindo o caderno]
[Pesq.: A sala toda ri.]
Prof.: Deixa eu ver se você está corrigindo.
Joana: Não to não.

(Observação dia 18/09/2009)


[Pesq.: A turma se encontra inquieta o tempo todo, desde o começo da aula.
A professora não consegue fazer a explicação da matéria.]
Prof.: [grita] Quantas vezes eu preciso pedir silêncio?
Gabriela: Umas 15 professora.
[Pesq.: A turma acaba se agitando mais ainda, e os alunos riem muito da
situação.]

No primeiro excerto, parece haver, por parte do aluno, maior rejeição ao


conteúdo da fala da professora, já que esta insinua que eles são mal-educados no
ambiente familiar e acabam por fazer o mesmo na escola. Isso é algo que ocorre
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frequentemente nas escolas e contribui para diminuir o valor da família do


adolescente, o que não deixa de ser um ato público de tentativa de humilhação, de
ofensa.
A segunda citação indica que a aluna procura, sobretudo, a sua afirmação
identitária como pessoa capaz de decidir o que fazer e, quando fazer, aquilo que
está sendo imposto a ela. Procura mostrar que pode decidir se faz ou não a
correção da tarefa na escola, ou se corrige depois, a partir do caderno de um colega,
e assim por diante.
A terceira observação (18/09/2009) sugere que os adolescentes agem
impondo uma forma de sociabilidade – a conversa – recusada pela escola. Quando
encontram uma chance, falam de coisas que de fato interessam a eles na
experiência imediata, mostrando resistência àquilo que é ministrado pelo docente. O
que é comunicado pelo grupo de pares mostra mais significância do que o que diz o
professor.
Essas três situações trazem o riso em meio a um movimento de oposição a
uma colocação feita pelo professor, pois, ao rirem coletivamente, os alunos fazem
coro, no sentido de apoiar a definição de situação dada pelo aluno que se opôs. Tais
atitudes são vistas como resistência, na medida em que esses jovens não parecem
incorporar o papel de aluno a eles atribuído, visando à emancipação do lugar de
objetos no qual foram colocados. Eles trazem o tempo todo o adolescente que o
poder adulto quer enquadrar a fim de submetê-lo ao papel do aluno. Ocorre a
recusa ao anonimato requerido pelo exercício do ofício do aluno nesse tipo de
escola. Além disso, como analisa McLaren (1991), as vítimas da “risada de
resistência” (p.224) são colocadas em uma situação de não-ganhadores. Se o
professor reage contra isso, ou se tenta negar a situação, dá motivo para que os
estudantes persistam em tal comportamento. Se o professor reconhece, confirma ou
reforça o poder coletivo que está por trás. Através das observações, é possível
perceber que a maioria dos professores tem dificuldade de se proteger da risada de
resistência, prolongando o comportamento do adolescente através de suas
tentativas de impor ordem e silêncio na sala de aula.
Willis (1991) relaciona a risada à oposição entre o formal e o informal no
contexto escolar. Em sua visão, a escola representa o domínio formal, que possui
uma estrutura clara, com normas escolares e práticas pedagógicas bem definidas e
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uma hierarquia de autoridade onde o poder é legitimado pelo Estado. A "cultura


contra-escolar" (p.37), como assim denominou Willis, é o domínio informal formado
pelos estudantes, no qual as exigências da escola são questionadas ou, até mesmo,
negadas pelos alunos, por meio de discursos e comportamentos de resistência, de
não-conformidade com a ideia oficial que é transmitida através dos programas
escolares. Para Willis, a oposição aos paradigmas da escola caracteriza-se em uma
luta constante dos estudantes para ganhar espaço físico e simbólico da instituição,
no sentido de obterem maiores possibilidades de inserção nesse espaço social.
Tanto a vitória quanto o prêmio – a obtenção da “autogestão” de algo importante
para o grupo de opositores à ordem – favorecem de forma profunda, significados e
práticas culturais informais, como por exemplo, o riso compartilhado, já que

a risada é um implemento multifacetado de extraordinária importância na


cultura contra-escolar. A habilidade para produzi-la é uma das
características definidoras de ser um dos resistentes. Mas também é usada
em muitos outros contextos: para vencer o tédio e o medo, para enfrentar
situações difíceis e problemas - como uma saída para quase tudo. Sob
muitos aspectos a risada é o instrumento privilegiado do informal, como a
ordem de mando o é do formal. (WILLIS, 1991, p.45)

De acordo com a perspectiva dos alunos, também constatamos algumas


condutas de oposição que, à primeira vista, estão relacionadas à cultura de gênero
do adolescente. Alguns adolescentes do sexo masculino emitem comportamentos
como os de brincar de luta uns com os outros, falar alto (ou mesmo gritar) com seus
colegas e com os educadores, e andar pela sala durante a aula, procedimentos
estes que se baseiam na cultura de gênero revelada nessa forma de chamar a
atenção das garotas. Com relação às adolescentes, constatamos que certos
comportamentos de oposição engendrados por elas, embora diferentes daqueles
dos adolescentes do sexo masculino, também expressam uma cultura de gênero
que não se relaciona com a resistência escolar. Algumas adolescentes usam de
vários artifícios para afirmar que já não são mais crianças, visto possuírem traços de
feminilidade adulta: passam esmalte, bem como levam e usam maquiagem na sala
durante as aulas; ficam a maior parte do tempo falando sobre os garotos e
namorados.
Um olhar apressado sobre isso nos leva a entender que esses atos, por mais
que atrapalhem a aula, não são atos explícitos de resistência, ou seja, não
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engendram uma crítica à escolarização, pois estão, sobretudo, relacionados à


questão da afirmação identitária dessas adolescentes. Porém, se consideramos a
perspectiva de McLaren (1997), ao argumentar que a resistência nas escolas
também é um esforço dos estudantes em trazer a sua cultura para as salas de aula,
podemos tratar tais comportamentos como resistência a uma escola que se recusa a
lidar com a demanda de afirmação identitária desses adolescentes. E, além disso,
podemos concluir que eles rejeitam a cultura dominante do aprendizado de sala de
aula por ser impregnada de um capital cultural 7 pouco acessível aos grupos
subordinados.
O trabalho nos mostrou a dificuldade de construção de uma abordagem para
o tratamento da resistência escolar, já que é difícil distinguir quais são os
comportamentos voltados à resistência específica aos educadores e à escola e
quais são aqueles que extrapolam esse domínio relacional, cuja importância reside
mais na relação com os pares. O aprofundamento da análise da tensão entre a
cultura de resistência do adolescente e a cultura escolar poderá ser objeto de
análises futuras.
Observamos que aqueles comportamentos de oposição que representam
resistência implicam em uma rejeição à submissão que consiste em mantê-los num
lugar de anonimato, de passividade, de objeto das práticas pedagógicas, ou seja,
objetos dóceis e disciplinados. Sendo assim, podemos identificar, na escola, uma
forma de poder escolar como aquela que Paulo Freire (1987) denomina de
educação bancária. Nas palavras do autor,

a concepção bancária de educação centra-se na transmissão de


informações, por isso ordena e atribui uma seqüência de conteúdos que são
administrados de modo controlado a partir do planejamento realizado
previamente e seguido à risca, e cujo não cumprimento é entendido como
problema a ser solucionado urgentemente. Nela, o educador aparece como
seu indiscutível agente, como o seu real sujeito, cuja tarefa indeclinável é
„encher‟ os educandos dos conteúdos de sua narração. (p.57)

7
Este conceito, popularizado pelo sociologista francês Pierre Bourdieu, refere-se aos diferentes
conjuntos de competências lingüísticas e culturais que os indivíduos herdam por conta dos limites de
classe de suas famílias. Em termos mais específicos “os adolescentes herdam de suas famílias
conjuntos de significados, qualidade de estilo, modos de pensamento e tipos de disposição que
recebem certo valor social e status, como resultado do que as classes ou a classe dominante rotulam
como capital cultural mais valorizado. As escolas desempenham um papel importante na legitimação
e reprodução da cultura dominante, pois encarnam interesses de classe e ideologias que valorizam
um tipo de familiaridade e habilidades que apenas alguns alunos receberam através de sua
experiência de classe” (GIROUX, 1986, p.122).
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Ressaltamos que a resistência do aluno na maior parte das vezes está


estritamente vinculada à sua relação com o educador - uma vez que é o elemento
diretamente ligado à dominação escolar na sala de aula. O estudante demonstra
desinteresse naquilo que foi proposto pelo professor e diz que realiza os atos de
oposição para irritá-lo, ou seja, para fazer face ao tipo de educação que recebe.
Essas considerações são frequentes nas falas dos alunos:

(Entrevista com Carla, 14 anos, 18/11/09)


Pesq.: Um aluno que tem costume de dormir durante as aulas, por que você
acha que ele faz isso? Qual o interesse dele quando faz isso?
Carla: Às vezes ele está tão desinteressado e ta indo pra escola só porque os
pais estão obrigando, aí ele dorme. Mas às vezes a pessoa está tão
desinteressada na sala de aula, na escola, essas coisas, ai ela dorme. Tem
aluno que dorme pra fazer raiva no professor. O interesse dele acho que é
perder a aula, se distanciar um pouco, fazer raiva no professor.

(Entrevista com Vagner, 14 anos, 20/05/2010)


Pesq.: Durante uma aula alguns alunos gritam imitando passarinhos na sala
de aula.
Vinícius: (risos)
Pesq.: Por que você riu?
Vinícius: Porque na minha sala já aconteceu isso. Eu acho engraçado. Na
minha sala é a que mais acontece.
Pesq.: E por que você acha que isso acontece?
Vinícius: Pra irritar o professor. Aquele professor chato, que não sabe explicar
a matéria, igual a Camila, de todas as professoras que eu tive ela foi a pior.
Então é pra irritar ela, pra irritar o professor mesmo.
Pesq.: Esse irritar seria o que?
Vinícius: Deixar ela brava, ver procurando os alunos [que estão fazendo o
barulho de passarinho]. Aí a gente faz pra irritar.
Pesq.: O que mais que vocês fazem pra irritar?
Vinícius: Bater em cadeira, mesa. Barulho.

(Entrevista com Fernando, 15 anos, 13/05/2010)


Pesq.: Você disse que indisciplina na sala de aula é, por exemplo, ficar
imitando bichos, fazendo barulhos, bagunçar. Você acha que o aluno tem
alguma intenção ao fazer isso?
Fernando: Na conversa eu acho que não, mas nesses barulhinhos eu acho
que tem muita intenção, ninguém faz isso a toa.
Pesq.: E isso estaria relacionado com o que?
Vinícius: Agora eu não faço isso mais porque eu estou sentando na frente da
sala, mas antes eu fazia pra irritar o professor.

(Entrevista com Larissa, 14 anos, 25/11/09)


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Pesq.: Qual é a intenção do aluno quando ele não faz a tarefa proposta pelo
professor? Qual seria seu interesse?
Larissa: Tem aluno que faz isso porque ele quer chamar atenção, ele quer
mostrar para o povo que o professor não manda nele de jeito nenhum. Ele ta
com a fama de que o professor não consegue controlar ele. E às vezes ele
faz isso por só pra irritar, só pra causar “muvuca” na sala.

(Entrevista com Renata, 14 anos, 25/11/09)


Pesq.: Em uma situação em que um aluno não realiza nenhuma tarefa que a
professora pede para fazer em sala de aula e fica conversando com os
colegas, por que você acha que ele faz isso?
Renata: Pra fazer raiva no professor. Ódio, sei lá.
Pesq.: Qual você acha que é o interesse dele em fazer isso?
Renata: Pode ser irritar o professor. Ele vai na aula pra conversar.
[...]
Pesq.: Durante uma aula que eu observei alguns alunos gritavam imitando
passarinhos na sala de aula. A professora pedia silêncio para poder dar a
aula, mas eles não pararam de gritar. Acontece isso na sua sala?
Renata: Acontece. Eles imitam tudo quanto é tipo de animal. Imitam vaca,
tudo! Isso pra irritar o professor também. Acontece muito na aula da Célia, aí
ela fica muito estressada, começa a brigar, aloprar. Aí às vezes ela aponta e
acusa a pessoa que nem é a pessoa que está fazendo.
Pesq.: Mas é somente na aula dela, ou é mais na aula dela?
Renata: Não. É mais na aula dela, mas acontece com outros professores
também. Mas é mais na aula dela. Pra você ter noção o pessoal até grita na
aula dela.
Pesq.: E qual que é a intenção deles quando fazem isso?
Renata: Aloprar, pra provocar, irritar a professora.
Pesq.: E qual que é a atitude dos professores?
Renata: Um estresse. Estressa muito. Tem vez que eles até sentam e
esperam os alunos pararem. Mas eles só param quando eles vêem que já
chegou no limite, ou quando acaba a aula.

É interessante observar que os alunos fazem a ligação da presença de


disciplina na sala de aula com certo “controle” que alguns professores possuem
sobre os estudantes. Esse “controle” é significado pelo aluno como autoritarismo,
como um “botar medo”, como controle disciplinar, sendo, ao mesmo tempo, a única
forma do educador obter respeito perante a sala de aula:

(Entrevista com João, 13 anos, 28/05/2010)


Pesq.: [Leitura de caso] Durante uma aula um professor começa a explicação
de uma matéria nova e pede muita atenção e silêncio de todos. Ainda assim
um grupo de alunos conversa muito entre si e o professor tem dificuldade de
dar a aula. Essa situação já aconteceu na sua sala?
João: Ah! Direto! [sorri]
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Pesq.: Então, vamos pegar o exemplo das professoras de matemática, que


neste ano vocês tiveram duas. Uma é a Sônia, que aposentou. A outra é a
professora novata, certo? Na aula da Sônia você acha que esse tipo de
situação acontecia?
João: Não. [sorri]
Pesq.: E na aula da professora nova...
Vitor: Acontece.
Pesq.: E por que você acha que acontece na aula de uma e não na de outra
sendo que a matéria é a mesma?
João: Por ela ser uma professora nova.
Pesq.: E o que tem a ver ela ser professora nova?
João: Ah! Porque acho que ela não tem muita moral na sala não.
Pesq.: E o que é ter moral na sala?
João: Ah! Chegar com respeito. Tipo assim: quando a Sônia chegava na
porta, todo mundo abaixava a cabeça e deixava ela dar aula. Com essa [a
novata] todo mundo nem liga com o que ela tá falando.
Pesq.: E por que você acha que as pessoas faziam isso quando a Sônia
chegava?
João: Uai, porque ela era rígida nessas coisas. Conversa, ela não aceitava
isso. Já a outra já aceita, ela não tem moral, não xinga. Tipo assim: se você
conversasse ela te mandava no Bruno [inspetor] e não queria saber de nada
não. Ela tinha moral.
Pesq.: E você acha que isso é pelo fato da professora ser novata?
João: Acho que é porque ela não chegou com muita moral. Se ela tivesse
chegado com brabeza aí todo mundo ia falar assim: ó, aquela professora lá,
não pode brincar com ela não. Ela chegou dando trela pra conversar, já era.

(Entrevista com Bianca, 14 anos, 27/05/2010)


Bruna: Na minha sala não tem como aprender
Pesq.: Como é isso?
Bianca: O povo fica te chamando pra conversar toda hora, e o professor fica
tentando explicar, tem uns que nem explicam coitados, ficam lá tentando.
Pesq.: Porque você acha que isso acontece?
Bianca: Depende do professor. Tem professor que tem moral. Agora tem
professor que bota medo, igual a Rosa de história. A única que consegue
explicar é ela e a Tatiana, porque elas têm moral com a sala. Porque quando
o aluno vê que o professor não tem essa moral aí acabou.
Pesq.: O que é essa moral?
Bianca: Dá uns “berrinhos”, saca? Na minha sala é desse jeito, ou manda pra
Mara (diretora) e acabou conversa ou é professor gritando e mandando todo
mundo calar a boca, aí todo mundo cala. Ou deixando a gente na sala depois
do horário [que a aula acaba], porque ninguém gosta de ficar na sala de aula
também não.

Uma maneira predominante de resposta dos adolescentes que se opõe ao


modo de dominação, entendido sobre o enfoque da resistência, é aquela que se
expressa nas atividades realizadas de forma escondida, quando o professor está
dando uma explicação da matéria ou orientando a execução de uma tarefa. Em uma
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aula observada, por exemplo, o tempo reservado para a execução de exercício foi
utilizado, por um aluno, para desenhar na contracapa do caderno. Por sua vez, outro
aluno usou o tempo para conversar com os colegas. As atividades só cessaram
quando surgiu algo supostamente mais interessante: o intervalo do recreio.
Percebemos que grande parte do tempo dos adolescentes que emitem
comportamentos de resistência e oposição é gasto em encontrar formas de matar o
tempo, de tornar as aulas mais interessantes, e até de obter algum grau de controle
sobre as atividades padronizadas no cotidiano da sala de aula. Neste sentido,
compreendemos que alguns estudantes emitem comportamentos de resistência
para atenuar a rotina enfadonha da sala de aula e fazer sobressair a cultura
informal, diminuindo a força de autoridade que as representações veiculadas pela
escola têm em relação aos estudantes. Eles fazem resistência à distinção entre a
cultura vivida informalmente nas ruas e aquela formal e dominante da sala de aula,
na tentativa de realizar uma ruptura do sistema social da sala de aula, e de tornar
este espaço mais agradável, como é possível observar na fala de alguns
adolescentes entrevistados:

(Entrevista com Vagner, 14 anos, 20/05/2010)


Pesq.: [Leitura de caso] Durante uma aula um professor começa a explicação
de uma matéria nova e pede muita atenção e silêncio de todos. Ainda assim
um grupo de alunos conversa muito entre si e o professor tem dificuldade de
dar a aula. Esta situação já aconteceu na sua sala de aula?
Vinícius: Já [risos]. Eu já participei de muitos grupos desses também.
Pesq.: E qual seria a intenção de conversar e deixar de fazer o exercício?
Vinícius: Essa é a diversão do aluno.

(Entrevista com Marcos, 16 anos, 14/05/2010)


Pesq.: Durante uma aula que eu observei alguns alunos gritavam imitando
passarinhos na sala de aula e a turma toda ria da situação.
Marcos: Na minha sala é celular.
Pesq.: Celular?
Marcos: É eles colocam barulhinho de passarinho, colocam música. E ainda
ficam jogando baralho na sala de aula.
Pesq.: E a turma, como reage?
Marcos: A turma ri
Pesq.: E o baralho, como que é?
Marcos: É a mesma coisa, junta um grupo de mais ou menos cinco ou seis
pessoas, eles jogam na sala de aula e nem ligam.

Porém, percebemos muitas contradições nos atos e falas dos adolescentes,


pois a disciplina, apesar de muitas vezes não existir nas salas de aula, é colocada
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por eles como condição para a aprendizagem. Uma adolescente entrevistada


confirma essa afirmativa dizendo que “tem que ter disciplina na sala de aula porque
senão vira uma bagunça, ninguém ouve o que o outro está falando e ninguém
aprende.” (OG8, Juliana, 14 anos, outubro 2009). A escola e o processo de
aprendizado, na perspectiva dos adolescentes, são as chances de um “futuro
melhor”. Entretanto, o que assistimos em sala de aula é uma resistência ao
aprendizado, porque este é um processo fortemente marcado pela dominação e pelo
autoritarismo, que reduz os alunos a meros espectadores e objetos da
escolarização. Além disso, nessa mesma perspectiva, a ordem imposta em sala de
aula não deixa espaço para a socialização intrageracional, e momentos até de
colocações ou trocas de ideias são banidos desse cenário.
Desta forma, podemos entender a resistência como uma maneira que os
estudantes encontraram de denunciar um modelo de prática educacional
dominadora, autoritária e disciplinadora que lhes impõe a posição de objetos
passivos da educação.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Foi possível compreender que a oposição dos alunos ao aprendizado, a falta


de desejo de ampliação do conhecimento e o fracasso escolar, indicam o
desinteresse e a resistência geracional, gerados por descompassos existentes no
meio educacional. Ao aluno não é dada a oportunidade de expor sua visão de
mundo, sua cultura, e sim a obrigatoriedade com a reprodução do conhecimento,
com a sua acumulação, sem momentos de reflexões e sem muitos
questionamentos. Eis aí a concepção “bancária” da educação, como propõe Paulo
Freire (1987), reflexo de uma sociedade opressora em que “a única margem de ação
que se oferece aos alunos é a de receber depósitos, guardá-los e arquivá-los” (p.
58). O espaço de sala de aula é concebido como um espaço de pouco
conhecimento sobre a realidade, de pouca análise crítica e reflexão.
Além disso, constatamos que os adolescentes veem a sala de aula como um
lugar cansativo tanto para eles como para os professores. Os alunos se queixam de
que o professor deveria dar aulas mais divertidas, mudando um pouco o modo de

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realizá-las, para que não se tornem enfadonhas. Criticam o repetitivo


comportamento admoestador dos educadores, declarando que o professor, com
muita frequência, passa todo o tempo da aula repreendendo-os. O que sucede é que
o educador ao se manter em posições fixas e invariáveis é sempre o que sabe,
enquanto os educandos são sempre os que não sabem. A rigidez dessas posições
nega a educação e o conhecimento como processos de busca. O que ocorre na
maioria das vezes é a realização de tarefas fatigantes e mecanizadas,
representando o descompasso do sistema escolar que acaba por ampliar as
oportunidades para a manifestação das formas de resistência acima elencadas.
O que se observa é que os adolescentes oscilam entre a resistência e a
acomodação, entre a negação e a afirmação do autoritarismo e, desse modo, eles
conseguem suportar os aspectos ruins do cotidiano escolar.
De diferentes maneiras, o jovem que frequenta a escola pública vivencia a
sua adolescência numa relação de encontro e desencontro, num conflito entre a
necessidade de estar na escola e conviver com ela - pois reconhece que, apesar de
todos os percalços, ela lhe possibilita oportunidade de aprender, da mesma forma
que às vezes lhe dá prazer, bem como lhe proporciona possibilidades de empregos
e “ascensão” social - e a necessidade do espaço de sociabilidade juvenil nos grupos
de pares, em um ambiente relacional quase sempre prazeroso, que também lhe
ensina e lhe possibilita viver a experiência da solidariedade e da amizade (SOUZA &
DURAND, 2002).
Portanto, a experiência escolar juvenil é contraditória, pois, ao mesmo tempo
em que quer gozar do convívio com os pares, o adolescente sabe do valor social da
escolarização na nossa sociedade. Desse modo, há choques e desencontros entre a
ânsia pela sociabilidade que a escola oferece, ao colocar um grande número de
estudantes no seu interior, e as exigências do “ofício do aluno”, que impõem a
negação dessa possibilidade, na maneira como está conformado socialmente.
Os sujeitos investigados viveram a mudança de estatuto social propiciada
pela passagem da “escola primária” para a etapa seguinte do ensino fundamental, o
que apareceu em suas falas como uma grande passagem, ao mesmo tempo em que
mudaram de idade da vida, da posição social de criança para a de adolescente. Isso
implica em ganhos de autonomia, inclusive reconhecidos legalmente (O ECA –
Estatuto da Criança e do Adolescente – é um exemplo disso), algo que os
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adolescentes devem manejar no cotidiano escolar. A maioria faz desse momento um


conjunto de experimentos de expressão de autonomia e liberdade, mesmo que
limitado pelo contexto interacional dado. Isso pode ser um elemento motivador para
a permanência na escola, já que a maioria deles diz não gostar de estudar.
A investigação desenvolvida nos mostrou que esses adolescentes engendram
movimentos de expressividades juvenis que lhes possibilitam ser ativos no contexto
das relações sociais e culturais que vivenciam. Esses movimentos apresentam uma
racionalidade própria, porém esta, por vezes, escapa àquela que orienta as ações
dos adultos.
Sendo assim, os adolescentes, mesmo inconscientemente, recorrem, com
frequência, às formas de resistência, como tentativa de ruptura com a rotina da sala
de aula, como experiência de libertação, de criação de situações que demandem
que sejam ouvidos e compreendidos em seus desejos e direitos, enquanto sujeitos
participantes do processo educacional e da sociedade.
São poucas as pesquisas que discutem sobre a resistência escolar. Trata-se,
portanto, de um campo cujo potencial de exploração é bastante significativo,
mostrando-se pertinente principalmente em questões que dizem respeito à prática
escolar e à educação, construindo-se assim, um campo fértil de pesquisas e que
está longe de se esgotar.

Marcela Goulart Fontes


Atualmente é graduanda em Psicologia na Universidade Federal de São João Del-
Rei. Interessa-se, sobretudo, por assuntos que perpassam a interface Psicologia e
Educação e Educação e Saúde, principalmente nos seguintes temas: Políticas
Públicas de Educação, Cultura Escolar e Resistência Escolar.

Ruth Bernardes de Sant'Ana


Possui graduação em Ciências Sociais pela Universidade de São Paulo (1989),
graduação em Psicologia pela Universidade Paulista (1984), mestrado em
Sociologia pela Universidade de São Paulo (1993) e doutorado em Psicologia Social
pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (2002). Em 2007 realizou o pós-
doutorado no Instituto de estudos da Criança (IEC) da Universidade do Minho, em
Portugal. Atualmente é membro da Comissão Editorial da Revista PESQUISAS E
PRÁTICAS PSICOSSOCIAIS (PPP), do LAPIP (Laboratório de Pesquisa e
Intervenção Psicossocial da UFSJ) e do mestrado em Educação da UFSJ. Tem
experiência nas áreas de Psicologia e Educação, com ênfase em Psicologia Social,
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atuando principalmente nos seguintes temas: infância e adolescência, processo de


escolarização no ensino fundamental e interação família e escola .

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