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Fancrdo

Pd
ASSD
asteri!
207 Como analisar narrativas
Cândido Vilares Gancho
208 Inconfidência Mineira

Cir
Cândida Vilares Gancho
Vera Vilhena de Toledo
209 O sistema colonial
José Roberto Amaral Lapa

Lenharo
210 À unificação da Itália
John Gooch
24 A posse da terra
Cândida Vilares Gancho
Helena Queiroz F. Lopes
Vera Vilhena de Toledo Doutor em História
212 As origens da Primeira Guerra
Professor do Departamento de História da
Mundial Universidade Estadual de Campinas
Ruth Henig

0701075

mm
213 As origens da Segunda Guerra -
Mundial
Ruth Henig
214 O Antigo Regime
William Doyle
215 Formação de palavras em

NAZISMO
português
Valter Kehdi
216 Maquiavelismo
Sérgio Bath
217 A Poética de Aristóteles
Lígia Militz da Costa
218 Conquista e colonização
da América espanhola
Jorge Luiz Ferreira
219 Vozes verbais

“Otriunto da vontade”
Amini Boainain Hauy
220 A década de 50 — Populismo e
metas desenvolvimentistas no Brasil
Marly Rodrigues
21 A década de 60 — Rebeldia,
contestação e repressão política
Maria Helena Simões Paes
A década de 70 — Apogeu e crise da 6º edição
ditadura militar brasileira
Nadine Habert 4º impressão 7

fofas
Ci

CS
DO
223 A década de 80 — Brasil: quando a
multidão voltou às praças
Marly Rodrigues
224 Grande sertão: veredas — Roteiro
de leitura editora ática
Kathrin Holzermayr Rosenfield
37

atributos necessários para que essa vontade criasse, simul-


taneamente, as formas do Estado e as formas artísticas.
Hitler sentia-se lisongeado ao ser considerado tanto
chefe artístico, quanto chefe político. Na literatura na-
À política como espetáculo zista, são constantes as referências ao
do 3.º Reich” ou ao “artista político”. É de Goebbels a des-
“mestre construtor

crição de Hitler como “aquele grande mestre-de-obras. ..


cujo Estado é uma estrutura de autênticas proporções clás-
sicas”.
Povo, arte e Estado, nas palavras de Stege, um crítico
nazista de música, constituíam um trinômio inseparável,
com resultados inéditos: “Por que o Estado que incorpora
a vontade de um povo, suas emoções e seus interesses, não
é acaso um organismo cuja harmoniosa conjunção alcança
A política estetizada a categoria de obra de arte?” ” Existe uma ligação interna
e necessária entre os trabalhos artísticos do Fiihrer (qua-
É Walter Benjamin, no epílogo de seu célebre ensaio e sua grande obra política, dizia então
dros de pintura)
A obra de arte no tempo de suas técnicas de reprodu-
a imprensa nazista. O artístico também constituía a base
ção”, chama a atenção para a importância das massas na
do desenvolvimento do Hitler político e do homem de |
história presente e para a dificuldade que o fascismo en-
Estado.
contrava em atender a seus anseios básicos. Nas palavras
Entre os artistas, intelectuais e políticos alemães, o
de Benjamin, basta lembrar que o fascismo nem cogitava
século XIX já havia dado inúmeras provas de um rela-
em alterar o regime de propriedade. Ao pretender orga- Wagner, por exem-
cionamento conflituoso com a política.
nizar as massas, o fascismo não admitia que elas fizessem plo, deixara à vista seu ódio pela política. Através do
valer seus direitos, mas que apenas “se expressassem”. O teatro operístico, ele propôs que ela se transformasse num
resultado disso tudo, diz Benjamin, é que o fascismo “tende grande espetáculo e o Estado, numa obra de arte; caberia
naturalmente a uma estetização da vida política”. ao artista tomar o lugar do homem de Estado. O ressen-
Desde Mein Kampf, Hitler costumava dizer ser a arte timento antipolítico mantinha-se constante entre os român-
produto da grandeza política nacional. Arte e política ticos, fascinados pela idéia da redenção nacional através
eram por ele concebidas da arte. Mesmo Thomas Mann, depois inimigo implacá-
como uma única e mesma coisa
ea elas fazia constantes referências, como termos quase vel do nazismo, mostrar-se-á embebido dessa visão român-
intercambiáveis. No Congresso do pártido, em 1936, tica de uma “política apolítica”, ao editar, em 1918, Con-
afir-
siderações de um apolítico. Nessa obra, Mann comparti-
mou serem a arte e o Estado produtores de uma força
criadora — “a vontade autoritária”, ou “o poder político
7 Dossier Música y Política. Barcelona, Cuadernos Anagrama.
de criar formas”. Povo e nação unificados constituíam os
p. 53.
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lha da aspiração alemã de se colocar acima da realidade


das dúvidas lançadas sobre a origem judaica de Cristo, e
política convencional, ao fazer a apologia da cultura alemã
sua possível posição política, contrária aos interesses do
contra o “terrorismo da política racionalista e ocidental”.
judaísmo.
Nessa direção, a oferta estetizante que o nazismo
trouxe à cena política era familiar a uma visão enraizada
na cultura nacional. A qualificação de* providencial”, atri- A celebração das massas
buída à pessoa de Hitler, vem de encontro à imagem da
política 'i incapaz em si mesma de capturar e dirigir os des- Qualquer ocasião podia ser utilizada como recurso de
tinos do país, necessitando do domínio de um homem forte mobilização popular nas ruas e de envolvimento político
que a conduza pela arte e pelo poder. A revolução nacio- das massas. Quando Wessel, chefe das SA em Berlim, um
nal-socialista, aos olhos de Hitler, só pudera acontecer típico proxeneta, foi assassinado por um militante comu-
entre os alemães — “esse povo de cantores, de poetas, nista, numa disputa por uma prostituta, Goebbels trabalhou
de pensadores” —., na medida em que foram pilhados pela o evento de modo a converter Wessel no grande mártir do
dor e pela miséria, permitindo que “a arte gerasse o de- movimento nazista. Toda sua agonia foi acompanhada de-
sejo de um novo levante, de um império novo e também talhadamente pela imprensa nazista durante semanas, de
de uma vida nova”. A partir dessa visão é que se torna janeiro a fevereiro de 1930. Um hino foi composto em sua
mais compreensível o esforço de Hitler e dos nazistas em homenagem — Horst Wessel Lied —, o segundo a ser
familiarizar os assuntos políticos, teatralizá-los, musicá-los, cantado posteriormente nos encontros nazistas. Os primei-
filmá-los, atraindo-os para o domínio do delírio e da em- ros versos do hino dizem: “Os camaradas vítimas da Frente
briaguez idólatra. Vermelha e da Reação / marcham em espírito em nossas
Fosse por meras razões de propaganda, fosse pelos fileiras”.
encontros programados da comunidade nazista, o calen- Durante o cortejo fúnebre, informam Guyot e Restel-
dário de cerimônias era bastante diversificado e organi- lini, milhares de pessoas, vestindo a tarja de luto, posta-
zado de modo a cobrir todo o ano de festividades. A 3 ram-se nas ruas e calçadas. No transcorrer do elogio fú-
de janeiro, comemorava-se a tomada do poder; a 24 de nebre, tumultuado pelos comunistas, Goebbels enalteceu a
fevereiro, a fundação do partido nazista; em março, o culto figura de Wessel como a de um “cavaleiro dos tempos
dos heróis; em abril, o aniversário de Hitler; em maio, O modernos, defensor da viúva e do órfão”, um jovem estu-
dia do trabalho e a festa das mães; em junho, o solstício dante que abandonara os confortos da vida burguesa para
do verão; em setembro, a grande festa nazista: oito dias lutar contra a injustiça social, “um socialista de Cristo”,
de encontros e celebrações no Congresso do partido, em vítima dos comunistas. Repetido seu nome no final do
Nuremberg; em outubro, a festa da colheita, em Bucker- elogio fúnebre, a multidão gritava em coro: “Presente!”.
berg; em novembro, o Putsch de Munique; em dezembro, A chave da organização dos grandes espetáculos era
o Natal, que, apesar da oposição de Himmler e Rosem- converter a própria multidão em peça essencial dessa mesma
berg, manteve o caráter cristão; a dificuldade em come- organização. Nas paradas e desfiles pelas ruas ou nas ma-
morar o nascimento de um judeu foi contornada através nifestações de massa, estáticas, em praças públicas, a mul-
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tidão se emocionava de maneira contagiante, participando de um ritual religioso — um ofício —, que se


o sentido
ativamente da produção de uma energia que carregava con-
manteve imutável em sua forma. Florestas de bandeiras,
sigo após os espetáculos, redistribuindo-a no dia-a-dia, para
jogos de archotes, a multidão disposta disciplinadamente,
escapar à monotonia de sua existência e prolongar a dra-
a música envolvente, os canhões de luz. Os espetáculos
matização da vida cotidiana.
eram preferencialmente noturnos, 'e neles é que Speer dis-
Hitler atribuía grande importância psicológica a tais punha os projetores de defesa antiaérea, de modo a obter
eventos, pois reforçavam o ânimo do militante nazista, que efeitos expressionistas, fosse aumentando a dimensão física
perdia o medo de estar só diante da força da imagem de dos monumentos, fosse para dar aos símbolos uma força
uma comunidade maior, que lhe transmitia gratificantes mais que natural. Segundo sua própria descrição, dispu-
sensações de encorajamento e reconforto. O uso de uni- nha 130 projetores ao redor da esplanada, a doze metros
forme, comum entre os militantes nazistas, servia à dissi- um do outro, a iluminar verticalmente o céu com seus raios
mulação das diferenças sociais e projetava a imagem de de luz que alcançavam de seis a oito quilômetros de altura.
uma comunidade coesa e solidária. O impacto da política Tinha-se a impressão de que gigantescas muralhas de al-
na rua em forma de espetáculo visava diminuir os que se tura infinita se encontravam sustentadas por poderosos pi-
encontravam fora do espetáculo, segregá-los, fazê-los senti- lares luminosos.
rem-se fora da comunidade maravilhosa a que deveriam
Dentre os grandes templos construídos pelo nazismo
pertencer.
para a política em forma de espetáculo, o maior de todos,
Os emblemas da águia e da cruz gamada, dispostos concebido para abrigar cem mil pessoas, é Zeppelinfeld,
nas braçadeiras, nas bandeiras e nos estandartes, funciona- em Nuremberg, construído por Speer, em 1935. Uma
vam como marcas de identificação. O símbolo mágico da imensa tribuna com colunatas cingia o horizonte. Um con-
suástica, de conhecida ancestralidade, uma espécie de cruz torno de degraus guarnecidos de pedestais portadores de
em movimento, sugeria a energia, a luz, o caminho da mastros cercava a esplanada por três lados. Uma avenida
perfeição, como a trajetória do Sol em sua rota. Reich diretriz fazia o papel de vetor de força. A rigorosa sime-
viu-a dotada de conteúdo afetivo, e capaz de suscitar pro- tria do conjunto ressaltava o podium, ponto central das
fundas emoções. A cruz gamada portava um símbolo se- cerimônias. Onipresente, a bandeira nazista executa no
xual que havia tomado, historicamente, diferentes signifi- décor um papel particularmente poderoso. Estendidas
cações; suas linhas demonstram duas figuras enlaçadas, si-
entre as colunas da tribuna do Zeppelinfeld, as bandeiras
mulando um ato sexual — daí seu “poder de excitação
dão vida à pedra. Sobre cada pedestal, maços de ban-
sobre as camadas profundas e inconscientes do psiquis- deiras flutuam ao vento.
mo...”.
As músicas cantadas pela multidão e a presença cons-
Cada acontecimento era preparado minuciosamente
tante das fanfarras ampliavam consideravelmente o entu-
pelo próprio Hitler. Cada entrada em cena, a marcha dos
siasmo de todos. Ao cantar Deutschland iiber alles e Horst
grupos, os lugares dos convidados de honra, a decoração
Wessel Lied, os hinos oficiais do nazismo, a multidão era
geral, flores, bandeiras, tudo era previsto. Aos poucos, a
tomada pelo sentimento de formar um todo único, um
forma foi sendo definida, e os acontecimentos ganharam Ponto marcante do evento
bloco coeso e inquebrantável.
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era o instante em que Hitler tomava a palavra. O caráter vivos


O culto dos mortos e dos
emotivo de sua fala encadeia momentos alternados de ten-
são, mas tende a assumir um clima” de histeria, preponde-
rantemente Era sobretudo nas cerimônias fúnebres noturnas que
arquitetado pela violência verbal, alimentado
pelo uso constante de palavras como “esmagar”, “força” a política estetizada do nazismo alcançava resultados des-
“ódio”, “cruel”. lumbrantes. Fest descreve com detalhes cerimônias de ce-
lebração dos mortos, efetivação da sublimação estética da
O modo como a multidão se comportava durante esse morte. Archotes, fogueira, círculos de chamas, desfiles,
tipo de espetáculo, e a maneira ritualística com que ele
segiiências sombrias de músicas de Wagner, compunham o
era organizado, acentuavam o caráter de culto religioso
cenário da exaltação dos feitos grandiosos do teatro do
desses acontecimentos, a ponto de levar um observador
regime, canalizador dos imperativos da política.
francês a denominar o congresso anual de Nuremberg
Em 9 de novembro de 1935, Hitler instituiu a come-
como 0 “concílio anual da religião hitlerista”. Ali eram
moração oficial em homenagem às vítimas do Putsch de
definidos os dogmas, e eram lançadas as encíclicas. O mi-
Munique, em 1923. Dois templos de bronze, construídos
litante nazista é visto como um crente, um apóstolo e um
em praça pública, serviriam para abrigar os restos mortais
fanático. No ano de 1937 — diz a mesma fonte —, cir-
dos “mártires do movimento”, em sarcófagos de bronze.
culava uma estampa representando o Fiihrer de pé diante
Os ataúdes já haviam sido expostos ao público, à noite,
de uma mesa, tendo a seu lado, sentados, seus extasiados
cobertos de faixas marrons e ladeados de tochas ardentes.
companheiros. E como legenda, as palavras: “No princípio
Hitler percorreu toda a cidade, em direção ao local onde
era o Verbo” (cf. Richard,
se encontravam os restos dos “heróis”. Todo o percurso
1978, p. 157).
s
Se o massacre das lideranças das SA lembra o ritual havia sido isolado pelas tropas das SA e SS, cujos archote
de um batismo de sangue, os autos-de-fé, ou as cerimônias iluminavam o trajeto. Ao chegar, deteve-se diante dos ataú-
públicas de queima de livros, lembram também uma mis- des para um “diálogo mudo”. Depois dele, sessenta mil
tura de caça às bruxas com o ritual do exorcismo católico militares desfilaram em silêncio, acompanhando seu gesto.
em que a queima de diferentes obras incluídas num novo
Na manhã do dia 9 teve início a procissão comemo-
Index Librorum simbolizava a purificação do espírito na- rativa, que repetiu o trajeto do dia do Putsch, e manteve
cional. Numa atmosfera de fanatismo é histeria, Goebbels a mesma posição das autoridades, vestidas como naquela
e os estudantes pediam em altos brados que as chamas oportunidade. Esse era um recurso teatral bastante utili-
devorassem, entre outros escritores, Marx e Trotsky, em zado pelos nazistas: “exorcizavam” acontecimentos de
favor da “comunidade do povo”, pela “filosofia idealista”
forma a corrigi-los “historicamente”, impregnando de sig-
e contra “a luta de classes e o materialismo”; que devo-
nificado “puro” e “original” aquilo que se dera fora dos
rassem Freud, em
desejos nazistas. Em todo o percurso, os alto-falantes to-
favor da “nobreza da alma humana”
e contra o “exagero destrutivo da via instintiva”; Tu-
caram sem parar o Horst Wessel Lied; pilares cobertos de
cholsky e Ossietzky, em favor do “respeito e da veneração
panos vermelhos portavam o nome dos “mártires” em le-
do imortal espírito popular alemão”, e contra a “insolência
tras de ouro. Representantes das forças armadas avança-
e a pretensão” (Idem, p. 212).
ram então até a Feldherrnhalle, local em que o cortejo fora
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detido pelo tiroteio que pusera fim ao Putsch, em 1923. Na esplanada Luitpolhain, toda a organização espa-
Todo esse esforço visava expurgar simbolicamente o pas- cial convergia para o monumento aos mortos da Primeira
sado. Dezesseis tiros espocaram então sobre a cidade. Em Guerra. Na celebração das honras fúnebres, Hitler des-
silêncio, Hitler depositou a coroa de flores sobre a placa filava entre milhares de homens das SA e SS, em meio a
comemorativa. Enquanto a multidão tirava os chapéus em bandeiras inclinadas. No ponto alto do espetáculo, o
respeito aos mortos, a comitiva, aos acordes do hino nacio- grande sacerdote mantinha-se imóvel, silencioso, de luto,
nal, marchou definitivamente para a Kônigsplatz. Cada em meditação, acompanhado do silêncio impressionante da
“herói” recebeu então sua última chamada, acompanhada multidão. Diante dos heróis mortos, Hitler homenageava
da resposta simbólica “Presente”, dita pela multidão. De- aqueles que haviam se disposto, pelo seu gesto, a ficar ao
pois disso, deu-se início a sua “guarda eterna”. lado da grandeza do Fiihrer, sacrificando-se por ele e por
Principalmente nos dias do Congresso anual de Nu- sua missão redentora.
remberg é que a idéia de morte se fazia constante nos A reatualização da memória heróica dos mártires, O
discursos e proclamações, e a veneração dos mortos discurso hitlerista encadeia a ansiedade dos vivos, para
ocupava lugar central nas cerimônias. Já antes da chegada
formar a comunidade mística do Reich. Nesse transe não
de Hitler à cidade, a Companhia da Guarda do Corpo,
há mais lugar para a razão: “Fostes vós os primeiros que
com seus uniformes negros de gala, ocupava a cidade, im- não foi a inteligência que tudo
acreditaram em mim...
pregnando-a do mesmo espírito presente no culto da Ban- do abismo em que se en-
analisa, que tirou a Alemanha
deira de Sangue, rememoração de um dos momentos mais de Nuremberg,-
contrava, mas a vossa fé...” (Discurso
enfáticos da legenda nazista. Segundo essa legenda, o
porta-bandeira Andreas Banrield caíra mortalmente atin- 1935).
gido quando do Putsch de Munique, e seu sangue escor- Hitler se apresenta como o grande guia condutor da
rera sobre o estandarte que carregava. Conservado como fé, o grande arquiteto da comunhão nacional:
relíquia, o estandarte passou então a ser utilizado para Nós nos encontramos todos aqui e o milagre desse encon-
batizar as bandeiras das novas unidades das SA e SS. Se- tro enche nossa alma. Cada um de vocês pode me ver e
gundo a descrição de um observador, Hitler tomava em eu não posso ver a cada um de vocês, mas eu os sinto é
uma de suas mãos a bandeira-relíquia, e na outra as novas vocês me sentem. É a fé em nosso povo que, de peque-
bandeiras a consagrar. Com sua intermediação circulava nos, nos tornou grandes, de pobres, nos fez ricos, de ho-
um fluido desconhecido e a bênção dos “mártires” se es- mens angustiados, desencorajados e hesitantes que éramos,
tendia daquele momento em diante aos novos símbolos da fez de nós homens corajosos e valentes, aos homens er-
pátria alemã. Para esse observador, aquilo não era pura rantes que éramos, nos deu a visão e nos reuniu a todos.
simbologia. O ritual se referia a uma “transfusão mística”, (Discurso de 1936.)
semelhante à da bênção da água e à transformação euca-
rística do catolicismo. “Quem não vê na consagração das O significado mais amplo da teatrologia política
bandeiras o análogo da consagração do pão, uma espécie aponta a demonstração do Fiihrer como forjador da von-
de sacramento alemão, corre o risco de não compreender tade coletiva, apropriador de vontades, a quem se obedece
nada do hitlerismo” (Guyot/Restellini, 1983, p. 45). cegamente, diz Speer, “sem mais ter vontade própria”.
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“Este homem guiará o povo alemão sem preo


cupar-se com
as influências terrestres”, afirma Hess, “Sua
vontade é efe-
tivamente a vontade de Deus”, dirá Darré.
É o “novo Re-
dentor”, assegura Rôhm. Em tom de oração, Goebbels
assim se dirige ao Fiihrer:
Em nossa profunda desesperação temos
O triunio da beleza
encontrado em Vós
O que mostra o caminho da verdadeira
fé... Tendes sido
para nós a realização de um misterioso
desejo. Tendes
curado nossa angústia com palavras
de liberação. Tendes
forjado nossa confiança no milagre que
virá.8

O culto da personalidade de Hitler assume


traços de
pura idolatria. Robert Ley aprecia-o como
o único homem
que jamais havia se enganado. O poeta Hans Frank o vê
solitário como Deus Pai. A teatralização A arte da propaganda
agressiva dos
grandes encontros apanhava-o como o
ponto central do
cenário feito de luz, de multidão e de ordem. São inúmeras as considerações que o escritor Adolf
Cercado
da maior solidão em meio à massa, a litur Hitler teceu em Mein Kampf sobre o tema da propaganda
gia teatral realça
sua condição de Fiihrer, posto acima de de massas. Há pelo menos dois pontos que merecem ser
todos, inatingível.
Não por acaso, comentam Guyot e Reste ressaltados, por sua importância: o primeiro diz Sea
llini, Hitler tinha
por costume chegar aos locais das festi à própria visão de Hitler sobre o que veicular, pavando em
vidades de avião.
Sobrevoava lentamente sobre a esplanad conta o que ele pensava sobre as condições médias ore
a para aparecer
aos olhos de seus fiéis “como um Deus descendo sobre a ceptor a ser atingido. O segundo ponto diz respeito à
Terra”. e apro
nica mesmo, que chegou a níveis impressionantes
veitamento, tanto na etapa de preparação para o poder,
quanto após sua conquista. |
Hitler considerava que a propaganda sempre deveria
ser popular, dirigida às massas, desenvolvida de modo a
levar em conta um nível de compreensão dos mais baixos
“As grandes massas”, dizia ele, “têm uma capacidade e
recepção muito limitada, uma inteligência modesta, um
memória fraca”. Por isso mesmo, a propaganda deveria
restringir-se a pouquíssimos pontos, repetidos incessante-
8 GUÉRIN, Daniel. Fascismo » gran capita
l.
mente. Se eram muitos os inimigos a serem atacados, para
Madrid, Editorial Fun-
damentos, 1977. p. 103. não dispersar o ódio das massas seria preciso mostrar que
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eles pertenciam à mesma categoria, não ficando


assim in- viria apenas expressar a unidade e o poder alcançados pela
dividualizado o adversário.
nação; ela poderia também criá-los. As grandes constru-
O essencial da propaganda era atingir o coração
das ções despertariam a consciência nacional, reforçariam a
grandes massas, compreender seu mundo maniqueíst
a, re- unidade política e incrementariam o orgulho de se sentir
presentar seus sentimentos. A massa seria como as
mulhe- alemão.
res, cuja sensibilidade não captaria os argumentos
de na- No pensamento hitleriano, a arquitetura teria também
tureza abstrata, mas seria tocada por uma “vaga
e senti- a função de projetar as idéias de seus realizadores no pen-
mental nostalgia por algo forte que as complete”.
samento de outras nações. Berlim, a capital do grandioso
o Tudo interessa no jogo da propaganda: mentir
as, ca- império que cobriria a Europa, da Itália à Noruega, de-
lúnias; para mentir, que seja grande a mentira, pois
assim veria ser dotada de uma arquitetura megalomaníaca, que
sendo, “nem passará pela cabeça das pessoas ser
possível espelhasse o esplendor e o poderio da força alemã.
arquitetar uma tão profunda falsificação da verdade”.
A O desejo de eternidade impeliu a arquitetura nazista
partir dessas considerações, os nazistas darão à propa
ganda a construir para a eternidade. : “Nós criamos os monu-
um tratamento de longo alcance, do qual nem a produ
ção mentos sagrados, os símbolos de mármore de uma nova
artística escapará, como veremos a seguir. civilização.” Fascinado pelas ruínas greco-romanas, infor-
mam Guyot e Restellini, Hitler começa a pensar sua arqui-
tetura em termos de “futuras ruínas”.
O culto do classicismo Este é um dos pontos de atração entre Hitler e Speer,
o arquiteto oficial do Reich, autor da teoria do “valor das
A arquitetura e o cinema foram dois campos de
rea- ruínas de um edifício”. A arquitetura moderna, por sua
lizações particularmente cultivados pelos nazistas.
A fina- técnica, e pelos materiais empregados, não inspiraria os
lidade da propaganda política cercou a prática cinem
ato- sentimentos de orgulho e de heroísmo que deveriam ser
gráfica por todos os lados; no tocante à arquit
etura, tal repassados às gerações futuras. Lembrando-se das cons-
objetivo não aparece de imediato, mas, na verdade,
tam- truções greco-romanas, Speer preconizava a utilização de
bém a envolve com igual intensidade.
materiais capazes de resistir ao desgaste causado pelo
Dados biográficos de Hitler revelam seus frustrados
tempo. Somente a pedra e o tijolo poderiam levar a cons-
desejos de dedicação à pintura e à arquitetura, e ele
mesmo truções que não deveriam ser pensadas em função do ano
expôs razões teóricas para suas realizações: via
a arqui- 1940, nem mesmo do ano 2000, mas que deveriam se
tetura como catalisadora das artes em geral, suas
formas erigir, semelhantes às catedrais do passado, até os milê-
determinariam as da pintura e da escultura.
|
nios futuros, conforme declarou Hitler. Mesmo que o
Entretanto, as razões políticas não se encontram escon-
nazismo fosse reduzido ao silêncio, suas construções ha-
didas, pelo contrário, elas direcionam os mirabolant
es pro- veriam de falar por si e continuar a espantar os homens
Jetos arquitetônicos, muitos deles já rascunhados antes
por muitos milênios.
mesmo da tomada do poder. A arquitetura, para Hitler
, A nova Berlim imaginada por Hitler e projetada por
deveria expressar a grandeza de um regime, de uma
época, Speer teria como eixo central a Grande Avenida, supe-
de um povo, de uma raça; no entanto, a arquitetur
a não rior à dos Champs Elysées de Paris, com 120 metros
50 BAS-01 51
de largura e cinco quilômetros de comprimento, ladeada
de edifícios públicos, grandes firmas, hotéis, ópera, lojas gem da Grécia, associada à arte dórica, era também res-
e restaurantes de luxo. Nas duas extremidades, dois gran- gatada, como assinala Palmier. A arte grega, para os artis-
des edifícios desenhados pessoalmente por Hitler: um re- tas nazistas, era “inseparável de uma certa glorificação da
servado a grandes reuniões de massas, com uma enorme crueldade — da escravatura, do militarismo e da afirmação
cúpula, que pudesse conter a Basílica de São Pedro e da supremacia da raça ariana sobre os bárbaros”.
abrigar de 150 a 180 mil pessoas; o outro seria um arco Para os artistas nazistas, na arte grega, as funções
de triunfo, com 120 metros de altura, mais alto que o Arco vitais do ser humano aparecem em toda sua integridade:
do Triunfo de Paris. Na medida em que as primeiras a mulher é mãe e o homem é viril, guerreiro. Ademais,
vitórias militares foram conquistadas na Segunda Guerra, a arte grega mantivera-se imune à ação corruptora do
projetos inverossímeis vieram à luz: um monumento do comércio judeu e não sofrera contato com as artes infe-
partido, com 225 metros de altura, a ser erigido em Berlim, riores: a africana e a dos movimentos de vanguarda tais
e uma nova estação ferroviária, com mais de um quilô- como o expressionismo, o cubismo e o dadaísmo.
metro de diâmetro, a ser construída em Munique. Há construções do período nazista em outros estilos
Antes de Speer, Paul Troost já oficializara com Hitler de arquitetura, além do neoclássico, numa demonstração
o “neoclássico monumental” como o estilo identificado com aparente de pluralidade e clima de liberdade. Na realidade,
o regime. A Casa de Arte Alemã, construída em Munique, outros estilos nunca recuperaram o ponto mais avançado
abriria espaço para exposições de pinturas e esculturas. das propostas dos anos 20, contentando-se com referências
Nela, diz Lane, já se nota a combinação do neoclássico arquitetônicas ao passado ancestral da Alemanha. Os mui-
com traços modernistas. A pedra aparece como material tos centros comunitários e oficinas do partido, assim como
de superfície, assim como se adota a clássica colunata as escolas de treinamento militar para a nova elite diri-
dórica na fachada do museu. Mas também aparecem as gente, não tinham familiaridade com o neoclássico; ao con-
superfícies lisas, livres de ornamentos, à exceção de pe- trário, apelavam para o sentimento nacionalista através da
quenos adornos, além da orientação horizontal aplicada arquitetura militar da fortaleza medieval, com a intenção
a todo o edifício. de fazer reviver uma era de cruzadas e de colonização
Speer reforçou a tendência neoclássica nos planos de militar.
construção dos gigantescos auditórios e praças de armas Von Schirach, chefe da Juventude Hitlerista, e Ley,
para os congressos do partido, em Nuremberg. O desenho da Frente do Trabalho, defendiam a adoção de um estilo
de Speer, diz Lane, apesar de inequivocamente neoclás- mais moderno e funcional. Entretanto, os muitos alber-
sico, encontrava-se também influenciado pelas composições gues de juventude e as construções da Frente do Trabalho
de formas abstratas dos anos 20. O neoclássico predo- receberam a marca do “estilo folclórico”, concebido na
mina nas grandes construções, como na nova chancelaria, crença do lema “sangue e terra”, que pregava a regene-
em Berlim, e encontra-se disseminado entre artistas e in- ração do homem urbano pelo reencontro com suas raízes
telectuais nazistas, que se julgavam os continuadores da rurais. A propaganda arquitetônica nazista insistia na di-
tradição clássica da arte grega. Não se tratava apenas da
mensão ideológica desses empreendimentos, visíveis tam-
pureza física ou da beleza cultural; uma determinada ima-
bém nos hotéis à beira das famosas autopistas. psdes
CS à /
ad
52 53

dos correios. Visava-se, comenta Lane, criar uma impres- já 4 Juventude Hitlerista nas montanhas e A viagem triun-
são de vida rural exatamente onde ela não existia. fal de Hitler através da Alemanha foram autorizados pelo
Sob a direção de Feder, tal tendência ruralista chegou regime. Outros filmes, de tipo documentário, tinham fina-
mesmo a ser impressa no programa de construção das casas lidades eleitorais: Hitler voa sobre a Alemanha, Nosso
populares, que visava a reintegração dos habitantes das Fiihrer e Alemanha desperta. Este último abordava a his-
cidades ao campo. Mas o programa praticamente ficou no tória do movimento nazista.
papel, não indo além da construção de filas de casas é
Calcula-se que foram produzidos 1 350 longas-metra-
edifícios na periferia dos grandes centros urbanos. Feder
gens nos doze anos de domínio nazista. São comédias ro-
demonstrava especial aversão pela vida nas metrópoles,
mânticas, comédias musicais, operetas, filmes de costumes,
responsáveis pela “morte da nação”. Por causa delas, as mas também filmes de guerra e de exaltação dos valores
famílias perdiam o desejo de ter filhos; a volta ao campo
do regime, tais como o racismo e a xenofobia. Os temas
significava o fortelecimento da raça.
mais apreciados no cinema, segundo uma pesquisa entre
Em qualguér dos estilos adotados, a arquitetura nazis-
jovens de doze a dezessete anos, estavam relacionados a
ta nunca perdia de vista sua dimensão simbólica. Assim
heroísmo, espírito alemão e patriotismo. Quarenta mil es-
como qualquer outra manifestação cultural, ela era expres-
colas, de um total de 62 mil, na Alemanha nazista, dis-
são de poder, instrumento de propaganda e. de incitamento
punham de salas de projeção.º
ideológico.
Dizer que os filmes comerciais fossem apolíticos não
passa perto da verdade. A sua maneira, eles exprimiam |
A propaganda os valores do regime. Freqiientemente, nas sutilezas de
em movimento
um diálogo, ou na expressão geral de um determinado modo
A produção do cinema nazista encontra-se estreita- de vida, a ideologia nazista irrompia com força. Em certos
mente vinculada ao crescimento do próprio partido. Du- momentos, como o do recuo alemão na frente de batalha,
rante a campanha eleitoral de 1930, os nazistas receberam o regime chegou até mesmo a incentivar esse gênero de
o apoio da imprensa do Partido Nacional e Hitler ganhou filmes, como recurso de escapismo. Helmut Kaiitner foi o
espaço expressivo nos jornais da tela da UFA. realizador mais expressivo desse gênero de filmes; Zarah
A escalada eleitoral dos nazistas teve muito a ver Leander, sueca de origem, foi lançada como sucessora de
com a utilização do cinema, “um dos meios mais modernos Marlene Dietrich, que havia abandonado o país, e se con-
e científicos de influenciar as massas”, de acordo com a verteu na grande vedete dos musicais nazistas, celebri-
afirmação de Goebbels, através de seu “efeito penetrante e zando-se em filmes como 4 habanera, A raposa azul, O
durável”, confirmou Hippler, diretor da Seção Cinemato- canto do deserto e O caminho da liberdade. Marika Rôkk
gráfica no Ministério da Propaganda, do próprio Goebbels. também atraiu grande público para as operetas O estudante
Antes mesmo da tomada do poder, aparecem os pri-
pobre e 4 valsa do imperador.
meiros curtas-metragens. Desses, foram proibidos pela Re-
pública de Weimar O Congresso Nacional do NSDAP, Os
9 NAZÁRIO, Luís. De Caligari a Lili Marlene. São Paulo, Graal,
soldados marrons de Hitler chegam, A batalha de Berlim; 1983. p. 49.
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Ê
Noventa e seis filmes, do total dos longas-metragens, luta contra a invasão napoleônica vai passear entre as
saíram diretamente do Ministério da Propaganda, criado nuvens, seguida de uma massa de militantes que enchem
em
1933, e chefiado por Goebbels. A Primeira safra de filmes o céu, liderados pela sua bandeira de liberdade, informam
marcadamente ideológicos, de 1933, preocupa-se em exal- Furkhammar e Isaksson.
tar a importância da militância partidária. O SA Brand, No tratamento da guerra, o cinema nazista exercitou
por exemplo, homenageia os primeiros milicianos, através duplamente seu esforço de propaganda, tanto no sentido
da história de um menino pobre, membro da Juventude positivo (exaltação do heroísmo nazista) quanto no nega-
Hitlerista, e protegido de um SA. Vítima das batalhas de tivo (a brutalidade do inimigo). A própria concepção de
Tua entre comunistas e as SA, o jovem herói balbucia antes propaganda de Hitler se confundia com militarismo. Para
de morrer: “Agora vou para o meu Fiihrer...”. Hans ele, a propaganda devia funcionar como a artilharia antes
Westmar repete a dose: antes de morrer, vítima dos co- da infantaria numa guerra de trincheiras. A propaganda
munistas e judeus, a última palavra do herói é “Deutsch- teria de quebrar a principal linha de defesa do inimigo antes
land. ..”. que o exército avançasse. 4 volta, filme de 1941, expõe a
O jovem hitlerista Quex, de Hans Steinhoff, fez muito situação de opressão em que vivia a minoria alemã na
sucesso, e conta a história de um jovem convertido Polônia. As escolas alemãs não podiam funcionar, nem
ao
nazismo, assassinado pelos comunistas quando panfletava podiam os alemães ouvir os discursos de Hitler pelo rádio;
os bairros pobres de Berlim. O roteiro é bastante sugestivo: eram também obrigados a cantar o hino nacional da Polô-
Quex é levado a um piquenique comunista, mas se assusta nia. Como se não bastasse, uma jovem alemã é violada e.
com a libertinagem do ambiente. O som de uma marcha apedrejada até a morte porque levava no peito um cordão
militar, ao longe, o fascina. Em casa, ao repetir a música com a suástica nazista... Está dada, a posteriori, a justi-
para a mãe, é surpreendido pelo pai, comunista, alcoólatra ficativa para a invasão alemã na Polônia: a minoria alemã
e mau-caráter, que o obriga a cantar a Internacional, sob apodrece nas prisões polonesas, então os stukas e os pan-
pancadas. Em dificuldade, Quex recebe a solidariedade dos zers invadem a Polônia para libertar os alemães oprimi-
companheiros nazistas que o protegem. Quex salva-se uma dos...
vez da morte, mas perde a mãe, asfixiada por gás. Ingleses e russos receberam um tratamento especial em
O
pai acaba se “realibitando”, aderindo ao nazismo: o velho vários dos filmes políticos: eles eram escolhidos como os
cede lugar diante do novo... Enquanto agoniza, Quex inimigos capitais do povo e através deles é que se deveria
tem a visão de milhares de jovens hitleristas uniformizados; concluir tudo o que os alemães não eram. Em Germanin,
e a suástica, erigida em monumento de emoção, eleva para de 1943, alemães heróicos e generosos lutam contra os in-
o sobrenatural a razão de ser da existência: “E a bandeira gleses na África. Os ingleses são apresentados como ridí-
nos leva à eternidade/ Sim, a bandeira significa mais que culos, covardes e velhacos. São imperialistas opressores €
a morte”, canta o hino da Juventude Hitlerista. A solução escravizam povos indefesos, como os irlandeses (nos filmes
pelo êxtase político já fora contemplada num filme de As raposas de Glenarvon, de 1940, e Minha vida pela Irlan-
1932, O rebelde, muito apreciado por Goebbels (assim da, de 1941) e os boers (Presidente Kriiger, de 1941). Neste
como Os Nibelungos e Metrópolis, de Fritz Lang, da dé- último filme, também de Steinhoff, mulheres e crianças
cada de 20). Em O rebelde, a alma do herói morto na aparecem aprisionadas em campos de concentração, mor-
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rendo de fome e inanição. Titanic, de 1942, associa o resolve que neste tipo de problema a decisão não podia
jogo da especulação londrina com o naufrágio do famos ser deixada aos indivíduos e que a responsabilidade deveria
o
transatlântico. A Inglaterra, “a pérfida Álbion”, aparec ficar com as autoridades do Estado. No momento da rea-
e
estigmatizada como uma corrupta sociedade de classes. Em lização do filme, a eutanásia estava sendo empregada legal-
Os Rothschilds, de 1940, ela é pintada como um país de mente na liquidação dos chamados doentes incuráveis.
comerciantes, que só perde em desonestidade para os
judeus.
Os russos recebem adjetivações menos lisongeiras. São O triunfo da mentira
brutos e alcoólatras, violam mulheres, assassinam civis, são
renegados judeus que atraiçoam o próprio país, como Nos violentos filmes de propaganda antijudaicos é
no
filme Escravos brancos. GPU (1942) conta a história que o esforço inconsciente da projeção ficará ainda mais
de
uma moça cuja família foi eliminada pela KGB. Os comu- exposto. A todo custo se persegue a idéia de que o judeu
nistas são então descritos como mongóis de crânio raspado, é desumano e intolerável na convivência com outros povos.
gângsteres, sádicos, ávidos de crimes. Já O paraíso soviético O ódio aberto contra os judeus parece ter envolvido os
(1942) exibe as câmaras de tortura da KGB e descreve os alemães numa crise de consciência. Como dizem Furk-
“carrascos judeus” com faces degeneradas e aparência as- hammar e Isaksson, aqueles que achavam insuficientes as
sassina; “essa é a verdadeira face do bolchevismo”, comenta explicações públicas para tal ódio deviam se sentir pertur-
uma voz em off. bados e buscavam, para a racionalização desse fato, argu-.
Os franceses recebem rápida apreciação em Vitória a mentos emocionais que o justificassem. Filmes como Os
oeste (1940), quando o comentarista alude à desorganiza- Rothschilds, O judeu Suss (1940) e O eterno judeu (1940)
ção e inferioridade deles como soldados. Não houve tempo foram produzidos no momento exato em que estava sendo
de os norte-americanos serem contemplados com filmes planejada a “solução final” para os judeus europeus.
semelhantes. Um curta-metragem de 1942, 4 conversa de Os Rothschilds mostra como os judeus, durante as
Roosevelt, realiza uma mistura não muito clara de anti- guerras napoleônicas, acumulam sua fortuna à custa das
-semitismo e anticapitalismo. discórdias entre as nações. O judeu é abordado como um
O ponto mais interessante desses filmes superdoutri- animal perigoso — mãos aduncas, rosto encarniçado, olhar
nários reside no fato de projetarem, sobre os inimigos ex- sádico e cúpido, vive sempre à custa dos outros. O
ternos, práticas obscuras que estavam sendo alimentadas judeu Suss, de Veit Varlan, conta a estória de um ministro
na própria Alemanha: campos de concentração, persegui- de finanças do século XVIII, judeu, sedutor de mulheres
ção, tortura, genocídio de civis. Em 4 campanha da Poló- e explorador do povo, de quem cobrava altos impostos.
nia (1940), a justificativa da invasão alemã aparece toda Acabou enforcado em praça pública. O filme obteve grande
construída sobre as “intoleráveis provocações polone- sucesso até mesmo na França não ocupada. Fora conce-
sas...”. Esse esforço em exorcizar o presente fica de bido para espalhar a imagem “intrinsecamente criminosa
novo evidente em Eu acuso (1941). Nesse filme, um mé- do judeu; o filme pretendia avaliar o mal que há séculos
dico é julgado por ter facilitado a morte de sua esposa, os judeus infligiam ao povo alemão; daí a necessidade de
que agonizava sem esperança de cura. A corte judicial sua eliminação. O filme foi exibido na Europa oriental
epi
eco
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ocupada, e Himmler exigiu que os soldados Kerr e Reinhardt, este considerado “o judeu ditador dos
das SS e os
policiais vissem o filme. palcos”, e a Einstein, “o judeu da relatividade”. O judeu
Mas é em O eterno judeu, de Hippler, cineasta solda se interessa por tudo o que é doentio; corrompeu a arte
do
das SS, que a propaganda superdoutrinária atinge níveis e a justiça; são suspeitos de qualquer coisa, por exemplo,
de
absurdo. Nesse filme fica claro que a estratégia o infanticídio — referência ao assassino de O vampiro de
da propa-
ganda se desorientou, fugindo a observações Diisseldorf, como sendo judeu.
de Hitler,
que alertava para o cessamento de sua eficácia “desde o A seqiiência mais terrível do filme mostra como é feita
instante em que sua presença torna-se visível”. Assistindo
a matança de animais, para sua comercialização: primeira-
a esse filme hoje em dia, é possível perguntar se
ele mente aparecem vacas e carneiros amarrados e seus pesco-
convenceria alguém pela violência de suas imagens e
falas. ços são abertos com uma lâmina; a seguir, mostra-se como
Ou então, por destilar daquela forma suas idéias, pode-
se os judeus aperfeiçoaram essas técnicas: os animais apare-
indagar se os alemães não acreditavam que o preconceit
o cem então desamarrados, estrebuchando no chão, com a
antijudaico estivesse de tal modo disseminado, que se tor-
garganta aberta, tentando fechar a boca. |
nava campo fértil e fácil de exploração propagandística.
O
Hitler logo iria proibir a vivissecção de cadáveres.
eterno judeu é tido como um dos mais maldosos
filmes já rodados. Foi apresentado como um “docu Enquanto isso, os campos de concentração transformavam-
men- -se em enormes matadouros humanos, e criaturas humanas
tário educacional sobre os problemas do judaísmo
inter- substituíam os animais nas “experiências científicas”.
nacional”. O filme se propõe a mostrar como os judeus
realmente são “por detrás de suas máscaras”. Com Leni Riefenstahl, e seus famosos O triunfo da
Quando fala
da sujeira dos judeus, aparecem moscas na tela. Seria vontade e Olympia, o cinema nazista não só propôs uma
mera
coincidência o uso do pesticida Zykon K nos campo nova modalidade de filme de propaganda, mas também
s de
concentração, perguntam Furkhammar e Isaksson? alcançou um nível invejável de realização estética. O
Os ju-
deus raramente trabalham, e só o fazem sob press triunfo da vontade documentou o Congresso Nacional do
ão —
a câmara focaliza então trabalhadores judeus descansand NSPAP e ficou pronto em 1936. Havia 135 pessoas na
o
apoiados em suas pás. Os judeus constituem uma equipe técnica, que utilizou trinta câmaras de filmagem.
raça
de parasitas e se espalham pela face da terra; como o judeu, Toda a magia e a comunhão mística entre o Fiihrer e
o rato marrom também se espalhou pela Europa — as massas e a solidariedade entre soldados e trabalhadores
apa-
rece na tela um mapa e um fervilhante exército de ratos. são passadas neste filme notável. Dupla grandeza de espe-
Comentário em off: “São repelentes, covardes e se movi- táculo, do evento em si e do próprio filme, que refaz e
mentam aos bandos”. A juventude perdera todos os
va- amplia a dimensão daquele. Nas palavras de Gregor e
lores nobres, tudo por causa de um judeu: aparece Karl Patalas:
Marx, acompanhado de Lassale e Rosa Luxemburgo.
Os A câmara apanha, em angulações estáticas e simétricas, as
judeus corrompem a arte e a religião e não conseguem
insígnias das tropas formadas em gigantescos blocos. Em
apreender o conceito ariano de beleza — aparecem alusõe
s tomadas de baixo, ascendendo pelos mastros das bandei-
ao cubismo, ao expressionismo e ao jazz. Os judeus são ras, sublinha as dimensões colossais do congresso. Tra
destruidores do gosto — aparecem referências a Tucholsky, vellings ao longo das formações militares acentuam a rigo-
60 61

rosa ordem. Só, Hitler percorre o longo espaço vazio


entre sagrado, ao cruzar os braços sobre o peito. Ele consegue
as formações do exército. Elevado acima deles à altura
de condicionar os reflexos da multidão: se pede aplausos, ela
uma casa, domina o ambiente desde o palanque. Não é os dá; se pede que ela cesse os aplausos, ela cede; se
mais possível distinguir se a câmara apanhou uma parada
militar real ou se tudo foi apenas encenado para ela. O ela interrompe suas palavras com aplausos, um brilho se
verdadeiro congresso do partido realizou-se
estampa em seus olhos e Hitler sorri para si mesmo, cheio
somente no
cinema: o filme criou o congresso. de satisfação. Tudo estava previsto, comentaram Furkam-
mar e Isaksson. , o
(Apud Nazário, op. cit., p. 51 .) Nas palavras de Leiser, citadas por Luís Nazário, a
cineasta mostrou Hitler de uma vez por todas, e como ele
Olympia, consagrado aos jogos olímpicos de 1936,
queria ser visto: “Nenhum ator era julgado digno de per-
é muito mais que um simples documentário — é um hino
sonalizá-lo. Nenhum outro filme sobre ele era mais neces-
de exaltação à Alemanha nazista, através da glorificação
sário. Nenhum outro projeto foi elaborado”.
da força física, da saúde e da pureza racial, miticamente
fotografadas. Foram necessários 800 mil metros de filme
rodados para mostrar, através do sacrifício individual de
cada atleta, como essa força e essa energia forjavam
a
nação, aceitas pelo sacerdote intermediário, o Fiihrer.
Os filmes de propaganda nazista sempre tomavam o
Fiihrer como referência aberta, ou não. Mesmo quando
não é citado, somente através de sua pessoa é que a expo-
sição se explicita. Filmes históricos sobre Bismarck e Fre-
derico, o Grande, tinham o Fiihrer na mira. Em O grande
rei (1942), Varlan presta homenagem a Hitler através das
atividades guerreiras de Frederico II. Nas palavras do
próprio Varlan, ele havia pensado numa espécie de
ale-
goria sobre a grandeza e a solidão de Hitler.
Riefenstahl foi muito mais longe. Nas primeiras se-
qiiências de O triunfo da vontade, Hitler chega de avião
como um esperado Messias. O bimotor plaina sobre as
nuvens que se abrem à medida que ele desce sobre
a cidade. A propósito dessa cena, a cineasta escreveria:
“O sol desapareceu atrás das nuvens. Mas quando o
Fiihrer chega, os raios de sol cortam o céu, o céu hitle-
riano”. Pelas imagens mágicas e aliciantes de Riefenstahi,
o Fiihrer se porta como um demagogo/pedagogo que, feliz,
conduz as massas para onde desejar. Atua como um homem

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