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Marchart( 2008), Cultural Studies, Konstanz, UVK Verlagsgesellschaft. (p.11‐16)
Estudos Culturais: uma perspectiva política
Nota introdutória
“Entendo a música, entendo os filmes, até entendo que a
banda desenhada nos possa transmitir alguma coisa. Mas
aqui há professores maduros que não fazem mais nada
senão ler os textos dos pacotes de Cornflakes.”
Don DeLillo, White Noise
O romance White Noise de Don DeLillo passa‐se numa universidade americana com um
Departamento de Pop Culture. Sob a direcção de um especialista em garrafas de limonada do
período anterior à Guerra, neste departamento, numa licenciatura com a designação
Ambientes Americanos, decifra‐se a “língua natural da cultura” e esta é sistematizada numa
“estrutura de pensamento aristotélica composta por invólucros de pastilha elástica e reclames
de margarina”. Com o seu romance, Don DeLillo parodia uma tendência de populismo cultural
dos Estudos Culturais (EC) dos anos 80, que foi por vezes designada pejorativamente de
“Madonna‐Studies” ou “Mickey Mouse‐Studies”. De facto, tanto dentro como fora dos EC se
encontra por vezes a ideia de que se pode adquirir um estudo académico da cultura popular
por um preço promocional, em termos teóricos e metodológicos. Esta ideia parece ter sido
confirmada por uma evolução fora da academia: mesmo os guardiões do outrora elevadíssimo
sacrário da alta cultura, do suplemento cultural burguês, também já abriram as portas à
cultura popular. Cada vez mais se encontra, comprimida em duas páginas desse suplemento,
por exemplo a história divertida da sapatilha de ginástica ou da guitarra eléctrica. Contudo,
nem esta forma de tratar a cultura popular tem a ver com o interesse e a prática dos EC, nem
todo e qualquer tipo de abordagem académica da cultura popular se pode atribuir aos EC:
“Demasiadas pessoas, provenientes das disciplinas tradicionais, parecem partir do princípio de
que exercem EC, quando começam a escrever sobre música rock ou televisão, etc.”, queixa‐se
o teórico dos EC americano Larry Grossberg. Porém, na maioria dos casos, isto não passa de
um erro.
Mas o que serão, então, os Estudos Culturais? Apesar de as fronteiras daquilo que pode ser
reconhecido como EC não estarem determinadas de um modo claro, pode afirmar‐se, por
outro lado, com segurança suficiente, aquilo que os EC não são. Ou, por outras palavras: EC
são muita coisa, mas não são tudo. A necessidade de uma definição mais rigorosa começa logo
pelo conceito de cultura utilizado. É evidente que “cultura” para os EC não corresponde àquele
conceito abrangente que reúne o Verdadeiro, o Belo e o Bom. Mas também não é o conceito‐
chapéu que agrupa aquilo que é divertido, barulhento e colorido. Pelo contrário: para os EC, a
cultura torna‐se problemática. O cultural perde a sua inocência. Chega‐se a uma ruptura com a
ideia corrente de que o cultural – seja na sua dimensão de alta cultura, seja de cultura popular
– é algo de inofensivo.
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O inverso é verdadeiro. Se vale a pena estudarmos a cultura, se é urgente fazê‐lo, é porque a
cultura é tudo menos inofensiva. No campo da cultura produzem‐se e reproduzem‐se
identidades sociais e políticas. Identidades que – por exemplo, no caso da identidade nacional
ou étnica – nos casos mais sérios se tornam pólvora para guerras e guerras civis. Terry
Eagleton descreveu este problema, talvez de um modo um pouco dramático: “Na Bósnia ou
em Belfast a cultura não é aquilo que metemos no leitor de cassettes; é aquilo por que se
mata.” Porém, mesmo quando o conflito adormecido no cultural não vem à luz de um modo
tão evidente como na guerra civil, a cultura permanece o meio do conflito – pelo menos,
latente. É que cada identidade social construída na cultura só pode garantir a respectiva
segurança quando se distingue das restantes identidades. Isto produz, obrigatoriamente,
exclusões, tais como relações de dominação e subalternidade, as quais, por seu turno,
encontram resistências. Cultura, diz Eagleton, “no sentido de religião, nacionalismo,
sexualidade, etnicidade e outros conceitos semelhantes é um campo de conflito violento”.
Por esta razão, o mantra tantas vezes entoado nos EC das identidades de “raça”, “classe” e
“género” tem um significado político. É que estas identidades, quando são vividas nas práticas
e nos discursos quotidianos, contribuem para a estabilização hegemónica da estrutura social
como um todo. As acções “micropolíticas” da vida quotidiana possuem uma dimensão
“macropolítica” da qual nós, envolvidos nas nossas práticas do dia‐a‐dia, não temos, em
grande parte, consciência. De certa maneira, os EC têm alguma semelhança com a tarefa de
esclarecimento da psicanálise, que torna “estranho” aquilo que era familiar. Para Freud, o
quotidiano – tal como o sonho – perdeu o seu silêncio inofensivo. (…)
Se houver uma tarefa semelhante para os EC, então esta consiste no facto de trazer à luz a
motivação fundamentalmente política de acções e fenómenos culturais aparentemente
apolíticos. Estas acções são “políticas”, não porque provenham do subsistema social da
política, mas porque resultam das relações de poder que atravessam, como uma rede, o
conjunto do espaço social. As identidades sociais são mantidas ou desafiadas na cultura
enquanto exercício do poder. As nossas identidades de homem, mulher, alemão, hetero ou
homossexual, jovem, etc., constantemente trabalhadas e em reformulação no terreno da
cultura, só podem ser estabilizadas enquanto tal através do estabelecimento de relações de
poder. O poder não é, por isso, externo à nossa identidade – ou às nossas identidades, já que
cada um/a de nós possui um conjunto de inúmeras identidades que parcialmente se
contradizem. Nós próprios reproduzimos as nossas identidades nas nossas acções quotidianas,
na medida em que, performativamente, nos encenamos como, por exemplo “homem a sério”
ou “mulher verdadeira” – mesmo que, muitas vezes, a coisa não nos corra lá muito bem. O
poder reproduz‐se e reproduz‐nos através das nossas acções quotidianas.
Isto não acontece só por si. Tal como nos lapsos freudianos, só tomamos consciência da
instabilidade da nossa própria identidade – resultado do facto de assentar numa relação de
poder, já que nenhum tipo de poder se exerce sem ser desafiado – quando aparecem fracturas
nessa mesma identidade. Isto pode ir de irritações ligeiras a crises identitárias graves. A perda
do nosso emprego pode suscitar uma crise na nossa identidade profissional, a qual provocará
outras crises identitárias – a crise da nossa identidade como “homem a sério” que traz
dinheiro para casa. O aparecimento de crises deste tipo seria impossível se a nossa identidade
social não fosse, desde o início, construída e contingente. Isto é, cada uma das nossas
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identidades poderia ser construída de uma outra maneira qualquer, se outras relações de
poder tivessem sido perpetuadas através de outras práticas quotidianas. Mesmo a identidade
dominante do “homem branco, ocidental, heterossexual” é contingente, e constantemente
ameaçada por crises identitárias e resistências (da parte dos movimentos feministas, de
combates anti‐racistas, através da experiência do desemprego ou da descoberta do próprio
desejo homosexual). (…)
O objectivo dos EC é contribuir para essas crises identitárias, analisando a contingência e o
fundamento no poder de cada uma das identidades culturalmente reproduzidas,
desvendando‐os. Porque só através do reconhecimento do facto de que as múltiplas relações
de dominação e subordinação – entre homens e mulheres, nós e “os outros”, a norma
heterossexual e as diversas formas do desejo (que este norma tornou “desviantes”) – também
podem ser ordenadas de outra maneira, que são construídas e contingentes, e não naturais e
necessárias, nos tornará possível, interrogar, desafiar e alterar estas relações de poder. (…)
O poder e o conflito determinam o mundo da cultura. Não é o lugar mais idílico do mundo.
Também não é de excluir, para regressar ao romance de DeLillo, que os textos dos pacotes de
Cornflakes nos possam dizer algo sobre as relações de força dinâmicas do mundo, mas isto
dependerá, finalmente, da nossa perspectiva de abordagem e do nosso instrumentário teórico
e metodológico. Neste livro, assume‐se como pressuposto que os EC não se definem tanto
através do seu objecto (como, por exemplo, cultura do quotidiano, cultura dos media ou
cultura de massas), como através da sua perspectiva política. Perspectivada através do prisma
dos EC, a cultura apresenta‐se como um campo de relações de poder, no qual identidades
sociais como a classe, a raça, o sexo ou a orientação sexual se articulam conflituosamente e
podem ser associadas a padrões hegemónicos mais amplos.
Tradução de Catarina Martins
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