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Oliver 

Marchart( 2008), Cultural Studies, Konstanz, UVK Verlagsgesellschaft. (p.11‐16) 

Estudos Culturais: uma perspectiva política 

Nota introdutória 

“Entendo a música, entendo os filmes, até entendo que a 
banda desenhada nos possa transmitir alguma coisa. Mas 
aqui  há  professores  maduros  que  não  fazem  mais  nada 
senão ler os textos dos pacotes de Cornflakes.” 

Don DeLillo, White Noise 

O  romance  White  Noise  de  Don  DeLillo  passa‐se  numa  universidade  americana  com  um 
Departamento de Pop Culture. Sob a direcção de um especialista em garrafas de limonada do 
período  anterior  à  Guerra,  neste  departamento,  numa  licenciatura  com  a  designação 
Ambientes  Americanos,  decifra‐se  a  “língua  natural  da  cultura”  e  esta  é  sistematizada  numa 
“estrutura de pensamento aristotélica composta por invólucros de pastilha elástica e reclames 
de margarina”. Com o seu romance, Don DeLillo parodia uma tendência de populismo cultural 
dos  Estudos  Culturais  (EC)  dos  anos  80,  que  foi  por  vezes  designada  pejorativamente  de 
“Madonna‐Studies” ou “Mickey Mouse‐Studies”. De facto, tanto dentro como fora dos EC se 
encontra por vezes a ideia de que se pode adquirir um estudo académico da cultura popular 
por  um  preço  promocional,  em  termos  teóricos  e  metodológicos.  Esta  ideia  parece  ter  sido 
confirmada por uma evolução fora da academia: mesmo os guardiões do outrora elevadíssimo 
sacrário  da  alta  cultura,  do  suplemento  cultural  burguês,  também  já  abriram  as  portas  à 
cultura popular. Cada vez mais se encontra, comprimida em duas páginas desse suplemento, 
por  exemplo  a  história  divertida  da  sapatilha  de  ginástica  ou  da  guitarra  eléctrica.  Contudo, 
nem esta forma de tratar a cultura popular tem a ver com o interesse e a prática dos EC, nem 
todo  e  qualquer  tipo  de  abordagem  académica  da  cultura  popular  se  pode  atribuir  aos  EC: 
“Demasiadas pessoas, provenientes das disciplinas tradicionais, parecem partir do princípio de 
que exercem EC, quando começam a escrever sobre música rock ou televisão, etc.”, queixa‐se 
o teórico dos EC americano Larry Grossberg. Porém, na maioria dos casos, isto não passa de 
um erro. 

Mas  o  que  serão,  então,  os  Estudos  Culturais?  Apesar  de  as  fronteiras  daquilo  que  pode  ser 
reconhecido  como  EC  não  estarem  determinadas  de  um  modo  claro,  pode  afirmar‐se,  por 
outro  lado,  com  segurança  suficiente,  aquilo  que  os  EC  não  são.  Ou,  por  outras  palavras:  EC 
são muita coisa, mas não são tudo. A necessidade de uma definição mais rigorosa começa logo 
pelo conceito de cultura utilizado. É evidente que “cultura” para os EC não corresponde àquele 
conceito abrangente que reúne o Verdadeiro, o Belo e o Bom. Mas também não é o conceito‐
chapéu que agrupa aquilo que é divertido, barulhento e colorido. Pelo contrário: para os EC, a 
cultura torna‐se problemática. O cultural perde a sua inocência. Chega‐se a uma ruptura com a 
ideia corrente de que o cultural – seja na sua dimensão de alta cultura, seja de cultura popular 
– é algo de inofensivo. 


 
O inverso é verdadeiro. Se vale a pena estudarmos a cultura, se é urgente fazê‐lo, é porque a 
cultura  é  tudo  menos  inofensiva.  No  campo  da  cultura  produzem‐se  e  reproduzem‐se 
identidades sociais e políticas. Identidades que – por exemplo, no caso da identidade nacional 
ou  étnica  –  nos  casos  mais  sérios  se  tornam  pólvora  para  guerras  e  guerras  civis.  Terry 
Eagleton  descreveu  este  problema,  talvez  de  um  modo  um  pouco  dramático:  “Na  Bósnia  ou 
em  Belfast  a  cultura  não  é  aquilo  que  metemos  no  leitor  de  cassettes;  é  aquilo  por  que  se 
mata.” Porém, mesmo quando o conflito adormecido no cultural não vem à luz de um modo 
tão  evidente  como  na  guerra  civil,  a  cultura  permanece  o  meio  do  conflito  –  pelo  menos, 
latente.  É  que  cada  identidade  social  construída  na  cultura  só  pode  garantir  a  respectiva 
segurança  quando  se  distingue  das  restantes  identidades.  Isto  produz,  obrigatoriamente, 
exclusões,  tais  como  relações  de  dominação  e  subalternidade,  as  quais,  por  seu  turno, 
encontram  resistências.  Cultura,  diz  Eagleton,  “no  sentido  de  religião,  nacionalismo, 
sexualidade, etnicidade e outros conceitos semelhantes é um campo de conflito violento”. 

Por  esta  razão,  o  mantra  tantas  vezes  entoado  nos  EC  das  identidades  de  “raça”,  “classe”  e 
“género” tem um significado político. É que estas identidades, quando são vividas nas práticas 
e  nos  discursos  quotidianos,  contribuem  para  a  estabilização  hegemónica  da  estrutura  social 
como  um  todo.  As  acções  “micropolíticas”  da  vida  quotidiana  possuem  uma  dimensão 
“macropolítica”  da  qual  nós,  envolvidos  nas  nossas  práticas  do  dia‐a‐dia,  não  temos,  em 
grande  parte,  consciência.  De  certa  maneira,  os  EC  têm  alguma  semelhança  com  a  tarefa de 
esclarecimento  da  psicanálise,  que  torna  “estranho”  aquilo  que  era  familiar.  Para  Freud,  o 
quotidiano – tal como o sonho – perdeu o seu silêncio inofensivo. (…) 

Se  houver  uma  tarefa  semelhante  para  os  EC,  então  esta  consiste  no  facto  de  trazer  à  luz  a 
motivação  fundamentalmente  política  de  acções  e  fenómenos  culturais  aparentemente 
apolíticos.  Estas  acções  são  “políticas”,  não  porque  provenham  do  subsistema  social  da 
política,  mas  porque  resultam  das  relações  de  poder  que  atravessam,  como  uma  rede,  o 
conjunto  do  espaço  social.  As  identidades  sociais  são  mantidas  ou  desafiadas  na  cultura 
enquanto  exercício  do  poder.  As  nossas  identidades  de  homem,  mulher,  alemão,  hetero  ou 
homossexual,  jovem,  etc.,  constantemente  trabalhadas  e  em  reformulação  no  terreno  da 
cultura,  só  podem  ser  estabilizadas  enquanto  tal  através  do  estabelecimento  de  relações  de 
poder. O poder não é, por isso, externo à nossa identidade – ou às nossas identidades, já que 
cada  um/a  de  nós  possui  um  conjunto  de  inúmeras  identidades  que  parcialmente  se 
contradizem. Nós próprios reproduzimos as nossas identidades nas nossas acções quotidianas, 
na medida em que, performativamente, nos encenamos como, por exemplo “homem a sério” 
ou  “mulher  verdadeira”  –  mesmo  que,  muitas  vezes,  a  coisa  não  nos  corra  lá  muito  bem.  O 
poder reproduz‐se e reproduz‐nos através das nossas acções quotidianas. 

Isto  não  acontece  só  por  si.  Tal  como  nos  lapsos  freudianos,  só  tomamos  consciência  da 
instabilidade  da  nossa  própria  identidade  –  resultado  do  facto  de  assentar  numa  relação  de 
poder, já que nenhum tipo de poder se exerce sem ser desafiado – quando aparecem fracturas 
nessa mesma identidade. Isto pode ir de irritações ligeiras a crises identitárias graves. A perda 
do nosso emprego pode suscitar uma crise na nossa identidade profissional, a qual provocará 
outras  crises  identitárias  –  a  crise  da  nossa  identidade  como  “homem  a  sério”  que  traz 
dinheiro para casa. O aparecimento de crises deste tipo seria impossível se a nossa identidade 
social  não  fosse,  desde  o  início,  construída  e  contingente.  Isto  é,  cada  uma  das  nossas 


 
identidades  poderia  ser  construída  de  uma  outra  maneira  qualquer,  se  outras  relações  de 
poder tivessem sido perpetuadas através de outras práticas quotidianas. Mesmo a identidade 
dominante  do  “homem  branco,  ocidental,  heterossexual”  é  contingente,  e  constantemente 
ameaçada  por  crises  identitárias  e  resistências  (da  parte  dos  movimentos  feministas,  de 
combates  anti‐racistas,  através  da  experiência  do  desemprego  ou  da  descoberta  do  próprio 
desejo homosexual). (…) 

O  objectivo  dos  EC  é  contribuir  para  essas  crises  identitárias,  analisando  a  contingência  e  o 
fundamento  no  poder  de  cada  uma  das  identidades  culturalmente  reproduzidas, 
desvendando‐os. Porque só através do reconhecimento do facto de que as múltiplas relações 
de  dominação  e  subordinação  –  entre  homens  e  mulheres,  nós  e  “os  outros”,  a  norma 
heterossexual e as diversas formas do desejo (que este norma tornou “desviantes”) – também 
podem ser ordenadas de outra maneira, que são construídas e contingentes, e não naturais e 
necessárias, nos tornará possível, interrogar, desafiar e alterar estas relações de poder. (…) 

O  poder  e  o  conflito  determinam  o  mundo  da  cultura.  Não  é  o  lugar  mais  idílico  do  mundo. 
Também não é de excluir, para regressar ao romance de DeLillo, que os textos dos pacotes de 
Cornflakes  nos  possam  dizer  algo  sobre  as  relações  de  força  dinâmicas  do  mundo,  mas  isto 
dependerá, finalmente, da nossa perspectiva de abordagem e do nosso instrumentário teórico 
e  metodológico.  Neste  livro,  assume‐se  como  pressuposto  que  os  EC  não  se  definem  tanto 
através  do  seu  objecto  (como,  por  exemplo,  cultura  do  quotidiano,  cultura  dos  media  ou 
cultura de massas), como através da sua perspectiva política. Perspectivada através do prisma 
dos  EC,  a  cultura  apresenta‐se  como  um  campo  de  relações  de  poder,  no  qual  identidades 
sociais  como  a  classe,  a  raça,  o  sexo ou  a  orientação  sexual  se  articulam  conflituosamente  e 
podem ser associadas a padrões hegemónicos mais amplos. 

Tradução de Catarina Martins 


 

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