Você está na página 1de 1

O carisma do panda

a
propósito
Franklin Rumjanek
Instituto de Bioquímica Médica, Universidade Federal do Rio de Janeiro
franklin@bioqmed.ufrj.br

A ambigüidade característica dos humanos talvez


se faça sentir com mais força no contexto das
questões ambientais. Por um lado, lamentamos pu-
flores por muitos animais, em especial as abelhas,
deveríamos estar muito mais preocupados com a
preservação desses insetos.
blicamente os danos que causamos à natureza. Por Se os pandas desaparecessem amanhã, provavel-
outro, continuamos a destruí-la. O problema dos ani- mente o mundo continuaria a ser mais ou menos o
mais sob risco de extinção, decorrente de ações hu- mesmo, mas se isso ocorresse com as abelhas a si­
manas, é um exemplo típico. Recentemente, a im- tuação seria bem diferente. Além da falta do mel nos
prensa publicou uma lista – bem incompleta, é ver- supermercados, grande proporção da vegetação
dade – das espécies ameaçadas, e um exame rápido atual deixaria de existir. O panda, com sua espe­
revela um traço comum entre elas. São, em sua maio- cialização alimentar (come basicamente folhas e
ria, animais que poderíamos classificar como ‘boni- brotos de bambu) e sua baixa taxa de reprodução,
tinhos’. Estão na lista o lobo-guará, a jaguatirica, o está ‘pedindo’ para se extinguir. Podemos prever
peixe-boi-da-amazônia, as ararinhas-azuis, os golfi- que os investimentos do WWF serão perdidos.
nhos, as tartaruguinhas do Projeto Tamar e outros De todo modo, quem compreende a evolução por
que exercem em nós um apelo especial. seleção natural sabe que a extinção é parte do pro-
As espécies que reconhecemos como dignas de cesso – por exemplo, se os dinossauros não tives­
atenção prioritária não são necessariamente aquelas sem desaparecido, os mamíferos não teriam ocupa­
cuja extinção produziria um desequilíbrio importan- do a Terra e, em conseqüência, os humanos não
te na natureza, mas sim as que evocam em nós uma estariam aqui hoje perturbando o meio ambiente.
empatia particular. Por isso, são conhecidas como Os movimentos de pre-
‘espécies carismáticas’, e nem mesmo os biólogos servação da flora e da fau-
conseguem explicar por que merecem esse tratamen- na, embora bem intencio- O panda, com sua
to diferenciado – a não ser invocando nosso lado nados, obedecem a critérios
emocional. Se as gaivotas que se alimentam das que, obviamente, não são
especialização alimentar
pequenas crias das tartarugas marinhas pudessem lógicos e, seguramente, não e sua baixa taxa
participar do debate, seguramente se posicionariam, parecem resultar do conhe-
de modo enfático, contra o Projeto Tamar. cimento ecológico dispo­ de reprodução, está
Embora as abelhas possam ser incluídas na lista nível, em seus múltiplos
dos carismáticos, a ameaça que paira sobre elas (a aspectos. De que adianta
‘pedindo’ para se extinguir
forte redução das colméias foi constatada nos Estados salvar uma espécie da ex-
Unidos e na Europa) não parece nos afetar da mesma tinção, lançando mão de reservas, por exemplo, pa-
maneira que o risco de extinção do urso-panda, que ­­ra em seguida devolvê-la a áreas que continuam de­
até se tornou o símbolo do Fundo Mundial para a gradadas? A espécie sobreviverá apenas no am-
Natureza (WWF, na sigla em inglês). Há um grande biente protegido da reserva, capaz de sustentar so-
movimento em torno dos pandas, reunindo muitas mente um número de indivíduos bem inferior ao que
organizações que, com determinação, tentam impedir normalmente existiria na biosfera.
a inexorável extinção desse animal ‘fofinho’. Em A atitude que ninguém quer adotar é a que deve-
contraste, a possível extinção das abelhas não como- ria anteceder a preservação das espécies: a preserva-
ve ninguém. No entanto, elas têm papel importan- ção do meio ambiente. Mas isso, como testemunha-
tíssimo na polinização das angiospermas, ou seja, as mos todos os dias, dificilmente acontecerá. Com um
plantas com flores. Se considerarmos que essas misto de húbris e remorso, os humanos não desisti-
plantas correspondem a quase 90% de todas as que rão do nível atual de consumo de energia e conti­
existem no planeta e que sua reprodução depende, nuarão a selecionar quais espécies vão ou não em-
em grande parte, do transporte do pólen entre as barcar em sua arca furada.    

j a n e i r o/ f e v e r e i r o d e 2 0 0 9 • C i ê n c i a H o j e • 1 7

Você também pode gostar