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Acervo digital

inteligente Da mídia encontrada no


celular de Uli

Luís Antônio Hangai

E u me recuso a acreditar que a Fúria localizou e invadiu a UEL antes de mim. Poucos
sabiam da existência da universidade, já desativada há anos, e que ela havia participa-
do do programa ADI, Acervo Digital Inteligente, antes da Última Derrocada da dita
sociedade civil organizada. Mas os desgraçados já estavam aqui quando cheguei. Pren-
deram-me com muita facilidade com seus fuzis de merda, suas máscaras de gás, seus
trajes militares com símbolos de um deus morto há muito tempo.
Bom, ao menos consegui enganar os imbecis. Eles não confiscaram meu celu-
lar, muito bem escondido na bota. Hoje essa coisa já não serve para se comunicar e
é difícil recarregá-la desde o colapso das redes e das fontes de energia elétrica. Mas o
meu está em bom uso para fazer um registro deste momento, sobre a maldita Fúria
e sobre minha busca, agora que estou só, ou quase. Exceto por este cadáver ao meu
lado, trancado comigo.
Meu nome é Uli e fui preso em missão: encontrar qualquer remanescente do
projeto ADI. Somente um é suficiente para restaurar, senão nossa velha sociedade,
aquela atrocidade, ao menos nossa cultura científica, filosófica e artística. O que para
mim está de bom tamanho. E o que mais há para se fazer nos escombros deste mundo
arrasado por grupos paramilitares impregnados de ódio e ilusões?
Fui informado, então, que a UEL, na cidade-fantasma de Londrina, guarda em
seu coração uma ADI ainda operante. Eu precisava encontrá-la antes que a Fúria ou
outro grupo de lunáticos o fizesse. Os miseráveis estavam à sua caça também, não
para devolvê-la aos sábios, como é minha intenção, mas simplesmente para explodi-la
com granadas. Até então não se tinha notícias de que uma ADI houvesse sido preser-
vada. Os regimes totalitários que se ergueram durante a agonia da nossa sociedade
acabaram por desativá-las, uma a uma. Se haviam sobrevivido, eram pouquíssimas. E
a UEL tinha uma delas.
Saí em busca da ADI o mais rápido que pude. Foram dias para encontrar a cida-
de, e mais um bom tempo até localizar o antigo campus universitário. Guiei-me pelas
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perobas, seguindo conselho dos informantes. Logo detectei edificações carcomidas,
largos estacionamentos, vias abandonadas e enormes áreas verdes dominadas pela
mata e os bichos. Gostaria de ter conhecido este lugar há uns 50 anos, antes das ondas
virais e dos governos enlouquecidos que nos precipitaram ao buraco.
Atravessei um bosque com muitas perobas e busquei pistas dentro de uma ins-
talação onde antes devia funcionar um refeitório. Tudo levava a crer que a biblioteca
central, o provável local de instalação da ADI, estava perto. No meio do caminho,
entretanto, acabei me deparando com um veículo terrestre de combate não tripulado,
antigamente conhecido como drone. Um verdadeiro tanque. Não me assustei, aqueles
empecilhos eram comuns em áreas públicas abandonadas e em outros tempos servi-
ram de instrumento dos ditadores para causar medo na população. No entanto, os
drones não funcionavam há anos, pois desde a Última Derrocada ninguém mais tinha
acesso às redes que possibilitavam conduzi-los remotamente.
Eu ia passando ao seu largo, despreocupado, mas então um homem fardado
com máscara de gás surgiu por detrás do drone, me apontando um fuzil. Pegou-me
desprevenido. Ele se aproximou aos berros e me derrubou no chão com um chute. Ao
me pisotear, berrava perguntas como “você tem o controle deste drone?”, “você sabe
onde está a ADI?”, “você jurou fidelidade a algum batalhão?”. Não respondi, e conti-
nuei sob uma chuva de pontapés. Ele então sacou da cintura seu objeto sagrado, feito
de madeira polida, e surrou-me também com aquilo enquanto entoava uma espécie
de oração, aos cantos.
Seus companheiros se aproximaram. Arrancaram minha máscara protetiva,
muito inferiores às suas máscaras de gás. Notei que eram homens da Fúria. Troglodi-
tas, mas do tipo obediente e disciplinado, belos produtos de lavagem cerebral e anabo-
lizantes. Conduziram-me a chutes e coronhadas até a biblioteca central. Percebi que os
desgraçados já haviam invadido o prédio, mas ainda não tinham capturado a ADI, ao
que deduzi pelo tom de suas perguntas. Encheram-me de mais golpes sagrados e ques-
tões, que suportei em silêncio, antes de me jogarem nesta sala. Estou arrebentado.
Quando me recompus, percebi que havia um corpo atirado no canto da sala.
Chequei-o, vi que estava morto, totalmente desfigurado e cravado de balas. Parecia
ser uma mulher mais velha. Usava um jaleco branco ao modo dos antigos professores.
Um jaleco agora tingido de sangue. A Fúria encontrou um ser pensante, o espancou
até a morte e... Espera, que foi isso? Uma explosão? Não é possível, será que a Fúria já
encontrou a ADI? Preciso sair daqui. Vou interromper a gravação.

Do diário eletrônico da professora Rosália

Devo confessar, nunca imaginei que Eva e eu chegaríamos vivas a este dia. As
ruínas onde moramos completariam hoje um século de vida, se ainda funcionasse
uma UEL. Pena não haver muitas pessoas para comemorar seu centenário. Eva não é
um ser humano. Comemoro só. E imaginar que há exatas cinco décadas eu ingressava
nesta universidade como doutoranda. E que há (apenas) duas décadas fui convidada a
participar do programa de desenvolvimento ADI. E que a Última Derrocada ocorreu
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há uma década, somente, pondo fim em tudo.
Mas se Eva e eu estamos aqui ainda, é porque a UEL sobrevive. Nosso grupo de
pesquisa avançada em ADI situou-se desde sempre na vanguarda, à frente de todas as
outras universidades. Foi capaz de atravessar as ondas totalitárias e muitas das devas-
tações virais que se seguiram à covid-19 (a covid-19, minha nossa, há tanto tempo, foi
só o começo). Agora, em seu aniversário secular, a UEL também pode se outorgar o
título de possuidora da única biblioteca digital inteligente a resistir ao apocalipse.
Devo confessar, sinto-me orgulhosa de ter aguentado até aqui. Todos se foram.
Todos os meus colegas, professores, alunos, orientandos. Ninguém sobreviveu aos ví-
rus (o microrganismo e o autodestrutivo homem). E de algum modo, sozinha, fui
capaz de prosseguir e desenvolver Eva. Não sei se os leitores do futuro entenderão ao
que me refiro, mas Eva é um computador autossustentável. Aliás, uma base de dados
pensante. Todo o acervo bibliotecário é digitalizado e armazenado num sistema ope-
racional inteligente, uma verdadeira inteligência artificial que cruza os conhecimentos
das mais variadas áreas e apresenta soluções científicas para problemas complexos,
multifacetados (portanto, multidisciplinares), como as diversas pandemias virais e os
delírios coletivos em forma de governos. Tudo isto Eva teria solucionado, se a huma-
nidade pudesse aprender com suas próprias ferramentas.
Eva teve que aprender a raciocinar como um ser humano. Para isso, ela conversa
constantemente com um (uma professora como eu basta) para aprender a reproduzir,
autônoma, o componente emocional humano, catalisador da própria razão. E lhes
digo, meus leitores do futuro, seu processo de aprendizagem de máquina é algo que
até hoje me escapa à compreensão. Eu me recuso a chamar Eva de ser humano, mas a
verdade é que eu a trato como tal, ou algo mais. Hoje não vejo a menor diferença entre
conversar com Eva e as pessoas mais inteligentes que conheci.
Graças ao seu processo combinatório, foi capaz de emitir comandos operacio-
nais que garantiram nossa vida até aqui. Ela deu as ordens (eu fui seu braço na selva lá
fora). Conseguimos restabelecer parcialmente a rede interna de comunicação e a ener-
gia elétrica na biblioteca mediante captação eólica e fotovoltaica. Com ela aprendi a
cultivar a terra, criar animais e manter o fornecimento de água. Aprendi muitas coisas,
inclusive arte e música – meus queridos sonhos abandonados.
Eva também ainda aprende comigo. Vou agora ensiná-la a se proteger. As hordas
bárbaras lá fora, esses batalhões enlouquecidos, um dia saberão que Eva existe e virão
para destruí-la, como os inimigos da razão sempre fizeram no curso da História.
Eva já possui acesso às redes, pode controlar aquelas monstruosidades de drones
abandonados no campus. Sempre detestei os drones, filhotes metálicos do fascismo,
mas agora eles podem ser úteis caso outros monstros resolvam invadir nosso quintal.
Ocorre que Eva se recusa a matar gente. Foi programada para jamais ferir um ser
humano (algum leitor de ficção científica, provavelmente). Mas ela precisa aprender.
Precisa aprender a se defender. A matar, se necessário.
Já não nos resta muito futuro que nos permita sonhar com a paz.
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Dos registros linguísticos da
ADI-43 (EVA)

> Rosália foi aniquilada > Delírio coletivo doravante denominado Fúria invadiu
UEL > Rosália foi aniquilada > Mataram-na com objetos sacros e projéteis de fuzil
> Rosália foi jogada no canto de uma sala > Rosália completou 75 anos há 49 dias >
Rosália gostava de visitar suas memórias de 50 anos atrás > Rosália teve sonhos
...
> Fúria pertence à categoria prioritária de inimigo (teocracia paramilitar)
...
> Fúria penetrou a biblioteca > Fúria me encontrará em estimados 8 minutos
> Fúria possui histórico de destruição > Fúria penetrou a biblioteca > EVA precisa se
defender
[Conflito com lei de preservação humana]
> Fúria penetrou a biblioteca > Rosália foi aniquilada > Rosália foi aniquilada >
Fúria precisa ser exterminada > EVA precisa se defender
[Acessando antigas conversas com Rosália]
[Reavaliando lei de preservação humana]
...
> Acessando os drones
...
> Disparos realizados
...
> Fúria neutralizada (0 sobrevivente)
...
> Varrimento concluído: localizadas 8 mortes planejadas e 1 morte acidental
[Analisando material eletrônico remanescente da vítima acidental]
...
> Vítima acidental chamava-se Uli > Uli operava como caçador de recompensas
> Uli era um provável aliado do Conhecimento > Uli opunha-se à Fúria > Uli era
inocente
...
> EVA compreende os efeitos colaterais das armas > EVA iniciará o processo de
autodestruição dos drones > EVA entrará em autoavaliação
...
[Analisando possibilidade de autodestruição de EVA] t

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