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Historia Da Musica Portuguesa Joao de Freitas Branco PDF
Historia Da Musica Portuguesa Joao de Freitas Branco PDF
É muito frequente conceber o conteúdo de uma obra de arte como tudo aquilo que o
autor por ela transmite. Para tanto, o autor precisa, no entanto, de meter essa
matéria em formas, ou moldes. Nesta óptica, o conteúdo da abertura *_Egmont*
consistiria numa síntese do entrecho do drama de Goethe. Para o transmitir ao
auditório, em termos artísticos, Beethoven tê-lo-ia amoldado a um esquema formal
que, nas suas grandes linhas, era o da abertura clássica francesa.
*_Conteúdo* e *forma* apresentam-se assim completamente destacáveis um do outro. O
simplismo vai ao ponto de definir arte "abstracta" como aquela que não tem qualquer
conteúdo! Esta enormidade resulta da confusão do conteúdo estético com o *assunto*
que a obra de arte pode eventualmente focar. Só que duas obras de arte envolventes
do mesmo assunto podem ter conteúdos diversos. Pense-se nas incontáveis versões
pictóricas dos mesmos temas religiosos ou das mesmas paisagens, versões que até
podem ser dum mesmo artista (por exemplo, Cézanne).
Não é este o momento de aprofundar a questão. Mas convém acrescentar que nenhuma
estética digna deste nome admite hoje a dissociabilidade do binómio forma-conteúdo.
Prol lemática muito complexa, com implicações de diferentes ordens -- desde a
psicofísica, onde o cérebro humano ocupa o lugar central e o mais difícil de
investigar, até a sociologia --, ela tem-se mostrado tão resistente aos esforços de
desemaranhamento de algum modo simplificante, que os mais argutos estetas
desistiram de procurar definições rigorosas de forma e de conteúdo. O que no
entanto os não impede de continuarem a empregar ambos os vocábulos, com as devidas
precauções.
Voltemos ao critério valorativo da *expressão*. Compreende-se que nele assumem a
máxima importância o conteúdo e o assunto da obra. O valor será tanto mais elevado
quanto mais e melhor ela transmitir algo. Note-se que esta afirmação tem implícitas
questões, por um lado, de forma, e por outro, de conveniência sociocultural daquilo
que é transmitido.
O critério da expressão tem muitas vezes vigorado preponderantemente ao longo da
história. Por exemplo, a valorização da transmissão de determinados assuntos e de
conteúdos psíquicos por meio da música, com o objectivo de tornar os ouvintes
"melhores" ou mais adequadamente integrados, segundo certos padrões morais e
políticos, é evidente em muitas orientações eclesiásticas de diferentes credos, ou
maçónicas, ou revolucionárias também de diversos carizes. Ou, ainda, nas de
governantes empenhados em pôr a música ao serviço dos processos de consolidação e
desenvolvimento dos respectivos regimes. Escusado seria dizer que o critério da
expressão encontrou ambiente favorável onde quer que se cultivou a exteriorização
de :, afectos através da música, fosse no serão de trovadores do fim da Idade Média
fosse nos encontros de humanistas do Renascimento ou nos salões burgueses da era
romântica.
O critério da *enformação* é o que mais se centra na obra. Põe em foco a
esquematização formal desta, a sua construção, as suas solidez e coerência por
assim dizer arquitectónicas. Tende muitas vezes para um idealismo metafísico e para
uma como que historicidade metida entre parêntesis, cingida a sucessões diacrónicas
de formas.
Deste ângulo, a obra apresenta-se-nos como entidade de certo modo independente, à
qual é possível atribuir um valor absoluto e portanto eterno. Convém no entanto
observar que a atribuição de valores "eternos" a obras musicais também se verifica
sob o critério da expressão, nomeadamente quando este se filia numa estética
idealista.
No aspecto histórico, a evolução das formas musicais também é tida por autónoma.
Como se as sucessivas formas do motete, ou do madrigal, ou da sonata, ou da
sinfonia tivessem ido surgindo por força duma lei interna dum sistema abstracto e
fechado, e não por acções individuais e colectivas (sociais), vindas do mundo
concreto e envolvendo um sem-número de factores de vária ordem.
Nos seus aspectos mais idealistas apriorísticos, o pendor do critério da enformação
para os valores "eternos" parece justificado pelo bem conhecido fenómeno da
perduração da validade estética das obras de arte. Não será que continuamos hoje a
atribuir altos valores estéticos à música de um Machault, de um Josquin, de um
Monteverdi? Fora dos domínios da arte dos sons encontram-se exemplos ainda mais
frisantes, como os de arquitectura e escultura da Antiguidade, a epopeia e o teatro
gregos e latinos, etc. Só que não parece crível ser a atitude perante uma obra de
arte sempre a mesma, ao longo do tempo, independentemente dos condicionalismos
históricos e socioculturais de quem a toma. E não só ao longo do tempo. A valoração
das artes também sincronicamente se apresenta diversificada.
Um bom exemplo é o da alta apreciação estética, por ouvintes sem qualquer crença
religiosa, e até aguerridamente anticlericais, de obras como a *_Missa em si menor*
ou as *_Paixões* de Bach, as *_Missas* de Mozart, de Beethoven ou de Schubert, o
*_Te Deum* de Bruckner ou os *_Vingt Regards sur l'_Enfant-_Jésus* de Messiaen,
entre tantas outras. Ainda mais de salientar é o facto de música marcadamente
originária duma determinada classe social poder ser tida em grande conta por
auditório representativo de outra ou outras, o que parece consequência de
motivações também não coincidentes. A argumentação deste tipo respondem os
defensores dos dogmas autonomistas sustentando que nem por isso deixam as obras de
ter os seus valores estéticos absolutos, apenas acontecendo que só alguns fruidores
são capazes de se aperceberem deles com plena consciência.
Compreende-se que, segundo este critério, o conhecimento da biografia do
compositor, das circunstâncias que rodearam a criação e a ulterior carreira da obra
etc. seja irrelevante para a valoração desta, para não dizer que se torna
indesejável. De tal ponto de vista, o saber-se da cegueira de um Cabezón e da sua
condição de servidor do rei da Espanha, ou dos prodígios de um Mozart menino e mais
tarde *maçon*, ou da surdez e do liberalismo de :, um Beethoven, ou da ligação de
um Eisler a Bertolt Brecht nada adianta para a valoração das obras desses
compositores. Como também não o conhecimento dos primeiros destinatários das
composições, dos intérpretes que as condicionaram e de outras circunstancias
influentes na sua génese.
Em geral, este critério reflecte a aceitação da dualidade essência-aparência, cujo
primeiro termo (o da autêntica "realidade") é aquele a que verdadeiramente
pertencem as formas das obras de arte, com os seus valores eternos. O que aqui mais
importa é, no entanto, observar que o critério da *enformação* também se tem
apresentado com diferentes feições, ao longo da história. Pode dizer-se que
pertenceram à sua esfera as concepções matemáticas da música sapiente medieval, de
que ainda são prolongamento os construtivismos polifónicos do século XV. Mas foi
sobretudo a partir de meados do séc. XIX que, na esteira da filosofia idealista
alemã, ele marcou muito o pensamento musical europeu até hoje. Em muitos casos, a
sua adopção prende-se a um certo elitismo esotérico, negador de que as massas
populacionais possam ter acesso àqueles "verdadeiros" valores, tidos por absolutos.
Finalmente, o critério do *uso* é o que mais pode chocar o espiritualismo de muitos
músicos e amadores de música ainda muito influenciados por concepções românticas.
No entanto, afigura-se difícil, se não impossível, negar-lhe uma importância enorme
na maior parte dos períodos da história da música europeia em que surgiram as
composições hoje tidas por obras-primas.
Através desse prisma utilitário, avantajam-se valores que dependem não só da função
prática que motivou a criação da obra, mas também, e principalmente, da medida,
para não dizer do êxito, com que a mesma função foi realmente exercida. É bem
sabido que, por motivos de subsistência e de prestígio, praticamente todos os
músicos profissionais do passado, que viviam do seu trabalho, tiveram que nortearse
pela mira do êxito junto dos seus destinatários. O que, ao contrário do que
muitas vezes se diz, pode ter funcionado como estímulo, mais do que como convite a
uma espécie de prostituição. Aqui, há evidentemente que distinguir diferentes graus
de poder criador e de observância duma ética artística.
Mesmo depois de se libertar da condição de assalariado, como uma das inúmeras
consequências da subida da burguesia ao poder, o compositor que não dispusesse de
fortuna pessoal teve, em última análise, de reger-se pelo mesmo estatuto
utilitário, com a diferença de o sufrágio pretentido ser o de outros auditórios.
(Aliás, essa liberalização profissional vinha a processar-se desde, pelo menos, que
o espectáculo público de ópera e a *tournée* solística se tornaram rentáveis.) O
facto de certos compositores, como um Schumann um Liszt, um Wagner, não terem,
neste aspecto, escrito nada de equivalente ao que se lê na correspondência de
Mozart não significa que lhes pudesse ser indiferente o aplauso dos seus públicos,
mas tão-só que disso os impediam os cânones idealistas das suas mentalidades de
artistas-intelectuais. Já vimos que, no mesmo período romântico, e até mais tarde,
mas em contexto sociocultural muito diferente, outra foi a sinceridade de grandes
compositores italianos.
Dos três critérios de valoração, este último parece ser o único susceptível de
bastante objectividade no ajuizar de composições musicais, como obras de :, arte.
Quanto maior o êxito, medido em números de audições, de chamadas ao palco, de
espectadores, de gravações fonográficas ou de transmissões, tanto mais alto o valor
da obra. Mas é uma objectividade muito relativa, como facilmente se vê.
O êxito somado até hoje pode ser desfeiteado por fracassos de sucessivos amanhãs.
Mas não é só, mais uma vez, uma acção do tempo. Há também uma dependência do
espaço, incluindo desde logo o sociocultural. Para grande irritação de Beethoven,
muitos dos seus admiradores -- talvez a maior parte -- gabavam-lhe o *_Septimino
op.20* como a sua melhor obra. Quanto aos últimos quartetos de cordas, ainda hoje
ficariam mal classificados se o critério fosse o da quantidade de execuções, de
ouvintes e de salvas de palmas.
O critério do uso tem mais que se lhe diga, e agora em seu abono. Por um lado, ele
pode ser correctamente aplicado sobre diferentes planos, de algum modo
independentes entre si. Planos que se diferem por parâmetros culturais dos utentes.
Mais uma vez desempenha um papel decisivo a questão de saber *a quem* a música se
dirige. Em boa verdade, o critério utilitário é o que tem prevalecido em cada um
destes planos. Por outras palavras, e recorrendo de novo ao mesmo exemplo: para uma
camada cultural esclarecidamente afecta à música de câmara é, ao fim e ao cabo, do
critério utilitário que resulta o prestígio superlativo dos últimos quartetos de
Beethoven, no plano desses mesmos ouvintes. O que não implica que entre estes,
individualmente, não haja quem se guie por outro estatuto valorativo. Levando a
exemplificação mais longe, parece legítimo afirmar que é também o critério do uso
que prevalece quando, num plano cultural muito diferente, se verifica que o
intermédio da *_Cavalleria Rusticana* assume cotação incomparavelmente superior à
daquelas páginas de Beethoven.
Nalguma coisa que se disse no parágrafo anterior a palavra *prestígio* assume
particular importância. Ela tem que ver com a distinção entre *saber do* valor
estético e *consciência desse valor*. Muitas pessoas sabem do valor de música de
Bartók, ou de arquitectura de Gropius, ou de escultura de Moore, ou de
cinematografia de Wells, inteiramente à margem de relações directas, imediatas, com
obras desses autores, mercê das quais pudessem formar um juízo confirmativo ou não,
do seu prestígio. Ocorre lembrar o caso da visitante de um museu que chamou as
amigas, para que viessem ver aquele Picasso. Quando uma delas observou não ser
Picasso o nome que lá estava escrito, mas sim Pissarro, o bando logo se afastou,
divertido com o engano. As moças já *sabiam* do valor do mestre espanhol. O que
contribui para desperdiçarem um ensejo para ganhar consciência do daquela
provavelmente preciosa tela do francês.
O critério do uso impõe-se necessariamente a qualquer responsável por uma política
de cultura. Isto, não só, e não tanto pelo que concerne a estimulação exercida no
sentido dirigente-artista-auditório, como também, e principalmente, entrando em
linha de conta com o já referido fenómeno de *feedback*, actuante no sentido
oposto. Neste processo, o factor demagogia não deixa de poder produzir efeitos
culturalmente nefastos. :,
Estranhar-se-á talvez que, em tão estreita conexão com a estética, não tenha ainda
sido aflorado, nesta introdução, o conceito de beleza. Note-se, porém, que nos
temos ocupado de *critérios* de valoração e não de *categorias* estéticas, como as
que opõem o belo ao feio, o sublime ao inferior, o trágico ao cómico.
A análise das categorias levar-nos-ia longe de mais. No entanto, convém fazer notar
a variação do vocabulário dominante respectivo, ao longo da história da música. Não
foi por acaso que, depois dos louvores medievais e renascentistas do *suave*, do
*doce* e do *harmonioso*, tenham vindo os encómios barrocos e galantes ao *bizarro*
e ao *sensível*. Nem que depois dos cultos romântico e realista do *expressivo*, do
*sentimental* e do *fantástico*, no primeiro caso, e do *verdadeiro* no segundo, um
Iannis Xenakis afirme que o que hoje se pede a uma obra é que ela seja
*interessante*. Em relação à actualidade, note-se também a insistência no
substantivo *rigor*, tanto na área da música como nas das outras artes.
Entre os muitos conceitos categoriais estéticos, o de *belo* parece o mais estável,
se bem que muito mais explicitado nuns períodos do que noutros. Mas não nos
deixemos iludir demasiado pela permanência do vocábulo. O *belo* de um determinado
conjunto social, com o seu próprio momento histórico, não coincide com o de outros.
Bastam os nomes de um Bosch e de um Goya, de um Monteverdi e de um Gluck para se
verificar que a tendência para considerar o *feio* já não como oposto do *belo* mas
como uma sua possível assunção não é propriamente da véspera do nosso tempo.
Por outro lado, aquilo que era feio pode vir a ser considerado belo, assim como
algo de sublime pode tornar-se reles e a mais trágica das tragédias resultar, não
muito tempo volvido, imensamente cómica. Isto, dentro do mesmo conjunto social e,
até, no consenso dos mesmos indivíduos.
Outra prova reside na atribuição à beleza estética de conteúdos filosóficos
divergentes, desde os mais idealistas aos radicalmente materialistas, com bastantes
matizes nos dois extremos e um sem-número de diferenciações intermédias. Um exemplo
menos genérico está no facto de a propensão para assimilar o *belo* ao *bom*, numa
abertura do estético ao moral, se ter manifestado em medidas diversas, também ao
correr da história. Este aspecto tem evidente relacionação com o critério do uso.
Posto isto, compreende-se que uma história da música (dita clássica) portuguesa, ou
de qualquer outro país, só possa seguir a rota das *obras* respectivas sob
determinadas condições. Em primeiro lugar, a condição de entender por *obra* algo
de processual e não uma "coisa" fixa, definitiva, afectada dum valor estético
igualmente objectivo e constante, para todo o sempre. Entidades processuais,
portanto, em cuja valoração influem o conhecimento que tenha o destinatário
(imediato ou mediato) não só da mensagem e do seu código mas também do emissor, do
mensageiro e dos seus contextos socioculturais, incluindo aquele a que o mesmo
destinatário pertence.
Pressupõe isto a solicitação de que o leitor, se o não fez já, procure ganhar
contacto auditivo directo com as obras de que aqui se trata, não se contentando com
ficar a *saber de* certos valores da música portuguesa, antes diligenciando por
deles ajuizar em consciência. Ao mesmo tempo, torna-se :, evidente a obrigação de
fornecer dados relativos a biografias de um mínimo de individualidades
representativas ou influentes, bem como a acontecimentos marcantes ou de certo modo
significativos, instituições que desempenharam papéis na evolução da cultura
musical portuguesa, parâmetros socioeconómicos, políticos e culturais de sucessivos
englobantes nacionais da música e dos músicos, influxos vindos de fora do país e
suas mais ou menos conseguidas assimilações. E também um mínimo de informação sobre
as próprias obras, entendidas aqui no sentido estrito de mensagens codificadas,
ainda que na maior parte dos casos em ligação com vivências auditivas de
realizações suas. Isto, sem pôr inteiramente de parte aquelas já aludidas entidades
musicais que têm sido genericamente designadas por não-obras e que, em qualquer
país do mundo, sobre o poderem ser de enorme interesse cultural, excedem
esmagadoramente, em quantidade, o património nacional de *obras*, por muito
abundante que ele seja.
Não se torna possível realizar este projecto com absoluta objectividade. Já a
escolha das incidências introduz inevitavelmente um índice de refracção
subjectivante com o qual o leitor deverá entrar em linha de conta. Acresce que o
autor recusa eximir-se de marcar a sua posição, na certeza, porém, de que esta é
discutível em muitos casos, se não em todos. Quando se trate de valoração estética,
tornar-se-á porventura interessante para o leitor identificar o critério adoptado.
As mais das vezes, não será nenhum dos atrás referidos, mas antes uma não idealista
conjunção deles.
Mais do que este apuramento, importa que o livro mostre em alguma medida os
critérios da valoração estética vigentes em diversos momentos da história da
cultura musical portuguesa. Neste aspecto, pede-se particular atenção para os
consideravelmente longos passos do livro que dão relatos e comentários (por vezes
poéticos) de práticas e fruições, feitos por coetâneos que as presenciaram, ou
nelas participaram; bem como excertos de tratados ou compêndios teóricos pelos
quais se orientaram aprendizes de música portuguesa, em diferentes períodos. A
escolha dessas fontes recaiu de preferência sobre momentos históricos especialmente
significativos, como sejam os das transições da Idade Média para a Moderna e do
Absolutismo para o Liberalismo. O largo discurso à transcrição visa a que o leitor
fique habilitado a tirar conclusões suas. Ainda em relação aos critérios
valorativos, convém atentar no vocabulário usado, sobretudo na adjectivação
qualificativa de autores, obras ou intérpretes musicais.
No que respeita ao peso das circunstancias condicionantes da cultura musical
portuguesa, será sistemática, ainda que nem sempre declaradamente considerada a
divisão por classes sociais, bem como a acção dinamizadora da história exercida
pela luta delas, em função de diferentes correlações de forças. Não se espere, no
entanto, uma sequência de "explicações" tão simplistas como a que pretendeu reduzir
o canto gregoriano a um narcótico sorrateiramente metido pelas orelhas das classes
oprimidas a dentro; ou como a que arrumou toda e qualquer peça de música
dodecafónica na secção elitária do arsenal de armas burguesas antiproletariado; ou,
ainda, como as que quase chegaram a afirmar que, onde quer que os comandos da
estrutura económica e o poder político mudem das mãos duma classe social para as
doutra, uma semana depois surge um novo estilo :, musical, caracterizadamente
representativo da classe vitoriosa (que se assume como nova classe dominante).
A relação entre classe social e música respectiva é fundamentalíssima e dela faz
parte, sem dúvida, o prestar-se a arte dos sons a ser usada como arma. Só que não é
uma relação simples, linear e operante sempre num único sentido. Torna-se fácil dar
exemplos, a traço largo. Comparando uma abertura de Lully com um poema sinfónico de
Strauss, transparece logo de uma banda uma aristocracia pomposamente absolutista e
da outra uma burguesia endinheirada e não menos senhora de si, porém de outra
maneira. Tudo se complica, no entanto, numa análise mais fina, que se não contente
com opor casos tão macroscopicamente contrastados.
Há diferenciações dentro duma mesma classe, que se manifestam em termos de recepção
solicitante, consumidora e reguladora, bem como de emissão e de transmissão da
mensagem musical. Diferenciações por grupos (etnias, ligames culturais, religiosos,
regionais, profissionais, associativos e outros) e por camadas definidas,
nomeadamente, pelo grau de instrução e nível de mentalidade.
Resultam assim, dentro de cada classe, emaranhados que podem tornar-se muito
complexos e abundantes em contradições. De maneira geral pode dizer-se que a
complexidade e a incongruência se mostram tanto maiores quanto mais numerosos e
actuantes forem os meios de comunicação no interior da classe social.
Não só no interior. Porque a comunicação através (ou a respeito) das artes também
se processa entre diferentes classes, mesmo que estejam em conflito. Expressões
artísticas duma classe podem ser fruidas e assimiladas por outra ou outras. Pode
até acontecer que sejam concebidas e modificadas em consciente aproveitamento deste
fenómeno. Mais uma vez encontramos elucidativos exemplos na esfera religiosa. É
evidente que a arquitectura, a escultura, a pintura e a música eclesiásticas não se
destinaram no passado, como não se destinam hoje, a uma só classe.
A fruição e a assimilação diferem, em função das classes, grupos e camadas sociais.
A assimilação deve aqui entender-se num sentido orgânico. É um apropriar-se de
algo, tornando-o semelhante ao organismo receptor. Na relação do objecto artístico
com o sujeito fruidor -- que pode tornar-se emissor e mensageiro --, não só o
sujeito se alimenta como também o objecto se modifica, adquirindo muitas vezes
novos potenciais, e perdendo outros.
Casos concretos da história da música são, entre muitos outros, os da assimilação
por grupos da classe trabalhadora rural de práticas musicais religiosas, dando como
resultado tipos de canto que pode dizer-se autenticamente popular, ou a assimilação
por compositores ao serviço da classe média e da nobreza, de canções e danças do
povo (processo de uma influência decisiva na ascenção social da música sapiente
profana a partir do Renascimento, bem como na evolução da música religiosa cristã)
ou, ainda, a apropriação de elementos do *jazz* por compositores das primeiras
décadas do século XX cujas primeiras clientelas pertenciam à burguesia europeia,
sem falar das incontáveis e não menos burguesas estilizações de folclore
empreendidas por expoentes musicais de vários nacionalismos também :, vinculados a
classes médias (Glinka, Dargomijsky, "os cinco", Smetana, Dvorák, Pedrell, Albéniz,
Granados).
Seria interessante analisar em profundidade a música portuguesa de diversas zonas
de acção e de diferentes períodos, desde a fundação da nacionalidade até as
imediações dos nossos dias, em função das respectivas classes, grupos e camadas
sociais. Não se torna porém legítimo prometer tanto, nem nada que se lhe compare.
Faltam, quase completamente, estudos de apoio, feitos por sociólogos da música. A
lacuna torna-se especialmente lamentável em relação a determinados aspectos da
constituição populacional portuguesa. Por exemplo, a faceta musical dos grupos de
muçulmanos, ou de escravos africanos e asiáticos (cujas habilidades musicais podem
ter sido mais assimiladas pelos donos portugueses do que hoje se supõe), ou ainda,
e sobretudo, dos judeus e cristãos-novos, tantos dos quais se distinguiram nos
domínios do saber.
A carência de informação biográfica também levanta dificuldades. É certo que as
teses monologal e coisificante ainda encontram defensores de coturno, para os quais
o artista se dirige a si mesmo e a mais ninguém, e a obra constitui um objecto não
afectado por nada que lhe seja exterior. Nesta óptica, a evolução da música
processa-se autonomamente, dentro dum sistema diacrónico isolado cujos únicos
motores são uma espécie de lógica interna do mesmo sistema e, em coerência com ela,
as inovações marcantes de sucessivos génios criadores. Porém, mesmo de um tal ponto
de vista, é impossível dispensar todo e qualquer conhecimento do que foi o artista,
como homem ou mulher de carne e osso, como membro duma determinada sociedade em que
muito ou pouco se integrou, contra a qual pode ter tido de lutar mas de cujos
caracteres, em qualquer caso, se tornou expoente, em sentido afirmativo, tão-só
conformadamente acomodatício ou declaradamente contestatário.
Não pode ignorar-se hoje a importância da psicologia das profundidades para a
investigação científica das manifestações artísticas, nomeadamente no seu aspecto
criativo. Mas não só o biógrafo, o historiador e o crítico de arte de formação
psicanalítica necessitam de dados pessoais fidedignos. Estes tornam-se também
indispensáveis em investigações diferentemente orientadas, desde as que partem de
vivências por assim dizer impressionistas das obras às que incidem, antes e acima
de tudo, sobre estruturas e superestruturas económicas e socioculturais, passando
pelas que sobrevalorizam o exame puramente técnico-musical e sem excluir as que
derivam para o mais esterilizado dos esteticismos.
Na vivência musical, como nas das outras artes, é preciso considerar o fenómeno da
empatia. Grande parte daquilo que o ouvinte recebe da obra foi "antes projectado
nesta por ele mesmo, ouvinte. Espécie de radar pelo qual o sujeito fruidor, muitas
vezes sem se dar conta do processo, localiza o objecto artístico num espaço de
representações psicoculturais, a empatia influi enormemente nos valores estéticos e
históricos atribuídos à música. Só que, no caso do radar propriamente dito, a
localização é objectiva, enquanto que no da empatia ela se define em termos duma
subjectividade variável de indivíduo para indivíduo e até de audição para
audição. :,
Ninguém deixará de reconhecer que os conhecimentos biográficos relativos a
compositores podem afectar poderosamente a fruição das suas obras. A medida em que
tal acontece é sem dúvida muito diferente, inclusive em relação a composições da
mesma autoria. E os dados biográficos influentes até podem ser irrelevantes,
duvidosos ou mesmo falsos.
O caso de Beethoven é particularmente elucidativo. O conhecerem-se bastante bem e
terem sido muito divulgadas as suas tendências ideológicas e os seus tormentos
físicos e sentimentais -- tendências e tormentos que foram ao encontro de
solicitações dos períodos subsequentes da história da música europeia -- contribuiu
imensamente para que a sua genialidade tenha sido objecto do mais amplo e vivo
interesse. E contribuiu não só junto de massas de ouvintes superficiais, em cuja
fruição o fenómeno empático se dá sempre de maneira algo primária, como também
entre os intelectuais e artistas cultural e tecnicamente habilitados à emissão de
juízos de valor.
No plano das ciências musicais, não se trata, evidentemente, de qualquer
encarecimento duma relação directa entre causa biográfica e efeito artístico. A
Constança do *_Rapto do Serralho* não pode ser reduzida à Constança namorada e
depois mulher de Mozart. Muito menos pode o beethoveniano "Muss es sein?" do
*_Quarteto op. 135* tocar mais fundo o ouvinte esclarecido, por este empaticamente
o entender em termos de pagamento da renda da casa. É bem sabido que entre a
realidade circunstancial ou o estado de espírito do artista, no momento da criação
da obra, e os caracteres desta é possível haver flagrante divergência. O que, em
vez de restringir o interesse do conhecimento da personalidade e da vida do autor,
muito pelo contrário o aumenta, se mostrar mais complexa e profunda a mensagem,
tornando-a ainda mais enriquecedora de quem a recebe. Se o homem e a sua
circunstancia ajudam à posse da obra pelo ouvinte, não é menos verdade que, assim
apropriada, a mesma obra pode tornar-se depois muito mais profundamente reveladora
da personalidade individual e social que a produziu. Obra e biografia pertencem-se
mutuamente.
Por tudo isto, a música portuguesa seria muito menos ignorada, a sua história
poderia ser escrita com um apoio e vivencialidade muito maiores, se houvesse outra
informação acerca das suas figuras representativas. Por motivos que, eles mesmos,
pertencem à história da nossa cultura, a escassez de dados e de estudos a tal
respeito é, na maior parte dos casos, confrangedora. Há compositores, teóricos e
intérpretes musicais portugueses de quem quase nada sabemos como entes humanos
pensantes, sensíveis e actuantes no seio duma sociedade. A sensação é de não
estarmos lidando com homens, mas sim com fichas. Fichas em branco, as mais das
vezes.
Mesmo em certos casos de que temos notícias menos exíguas, faltam-nos provas de
tomadas de posição caracterizantes duma individualidade, duma linha de pensamento,
duma norma de conduta; ou da ausência de tal. Veja-se o exemplo de Vicente
Lusitano. Será suficiente conhecermos o teor da confrontação com Nicola Vicentino
-- com patriótico júbilo pela vitória judicial do nosso conterrâneo -- e
suspeitarmos da sua heterodoxia religiosa?
Vicentino ficou na história como um dos mais combativos, ainda que nem sempre dos
mais correctos propugnadores do modernismo do seu tempo, já :, pela libertação de
peias escolásticas obsoletas, já pela valorização poético-musical dos vernáculos.
Podemos inferir da polémica que Vicente Lusitano discordava do antagonista em tudo
e era, portanto, um homem e um músico cem por cento conservador, mais virado para o
passado que para o futuro? A ser verdadeiro o seu pendor luterano, em que medida se
reflectiu ele nas suas opções musicais? Teriam pesado mais certos problemas de
ordem pessoal do que autênticas convicções? Como adiante veremos, não estamos
habilitados a responder cabalmente a tais interrogações, apesar de Vicente Lusitano
ser um dos raros músicos portugueses estudados com persistente e consequente
idoneidade musicológica.
Outro exemplo frisante é o de Damião de Góis, a respeito do qual sabemos no entanto
mais, como homem e como pensador, do que de Vicente Lusitano. Que significa a
prestigiante colaboração no *_Dodecachordon*? Estaria Góis inteiramente de acordo
com o compromisso de Glareanus entre novas e velhas concepções? E que música seria
aquela que o humanista português gostava de fazer soar dentro das quatro paredes da
sua casa, sem saber que ela despertava uma perigosa estranheza em ouvidos
indiscretos? Qual a sua sincera opinião sobre a atitude do Concílio de Trento para
com a arte dos sons?
Não são apenas músicos de tempos recuados. Tão-pouco sabemos o suficiente acerca do
tipo e profundidade da cultura de músicos portugueses de primordial importância,
menos afastados do nosso tempo; bem como de motivações positivas ou negativas a que
terão respondido de maneira evidenciadora das suas constantes morais, intelectuais
e afectivas. Isto, mesmo em relação a alguns que, como um Carlos Seixas, uma Luísa
Todi, um Marcos Portugal ou um João Domingos Bomtempo, têm sido objecto de estudos
musicológicos sérios.
Por outro lado, há que ter em atenção os prejuízos inerentes a certos sectores da
investigação e divulgação. No âmbito da música religiosa -- e até de alguma
profana, guardada em arquivos eclesiásticos --, os mais dos investigadores foram,
ou são, eles mesmos clérigos ou fiéis praticantes do catolicismo. Em todos os
casos, o acesso às fontes muitas vezes únicas, imprescindíveis e insubstituíveis
para a prossecução dos seus trabalhos depende da Igreja. A circunstancia pode ter
relação com valorações monocordicamente laudatórias de música e músicos da esfera
eclesiástica, bem como da orientação a que estes se submeteram.
Neste aspecto, o mais grave tem sido a omissão de dados exigentes dum outro sentido
crítico e duma visão menos parcial, junta a uma declarada hostilidade em relação a
figuras da história da cultura portuguesa com as quais a Igreja tenha tido algum
contencioso. Investigadores que, em deter
4minadas matérias, prestaram contribuições importantíssimas, jamais escreveram uma
palavra reconhecedora da incontestavelmente grande responsabilidade da Igreja pelos
atrasos das teorias e das práticas musicais verificadas em Portugal durante
centenas de anos.
Um desses estudiosos ocupou-se da música europeia dos séculos XVI e XVII, em
contexto onde a portuguesa dos mesmos períodos era tema central, sem uma única
referência, por mínima que fosse, à música protestante. Outro, além de se
desinteressar de um João Domingos Bontempo, só por sabê-lo :, "malhado", levou o
fanatismo ao ponto de escrever, em letra de forma, que com o enforcamento de
António José da Silva não se perdeu grande coisa, porque "o Judeu" não devia ser
boa peça! Estes e outros *abusos de zelo* não parecem próprios de bons servidores
da Igreja. Em coerência com a sua própria ética, a mesma Igreja também nos domínios
da música deve exigir a verdade, só a verdade e toda a verdade.
Ainda no mesmo aspecto, há mais cautelas a ter, mas de sinal contrário. O
anticlericalismo e, de maneira geral, o sectarismo esquerdo têm induzido em
tentações não menos pecaminosas, como a de calar sistematicamente o papel
fundamental da Igreja em muito do que de melhor, ao longo de séculos, se realizou
em Portugal, em termos de música. Parece no entanto justo registar que têm vindo
destes sectores algumas correcções críticas necessárias (mas insuficientes) da
parcialidade musicológica antagónica.
Convém tornar ao vocábulo *verdade*. Porque, em arte, ele ganha uma conotação que o
liberta do seu significado no plano da investigação, guiada que esta deve ser por
métodos lógico-científicos.
Em todas as diferentes artes, e portanto na música, há falsidades "verdadeiras". E
não só falsidades que, no momento histórico em causa, foram erradamente tidas por
mesmo verdadeiras, se não que também outras já então provadas como tais. O
desconcerto entre verdade científica e verdade artística é notório em diversos
períodos da história da música. O importante reside no facto de verdades artísticas
cientificamente falsas não resultarem menos verdadeiras, dentro do seu mundo
estético-cultural.
Os exemplos são incontáveis. O mais divulgado de todos consiste no erro daqueles
humanistas italianos que supuseram estar fazendo renascer a música da Antiguidade
clássica, quando estavam a criar a ópera. Erro fecundo, falsidade científica
tornada artisticamente verdadeira pelos seus potenciais estéticos e a adequação
destes ao momento histórico-cultural.
Outro exemplo está na convicção setecentista, influenciada sobretudo pela física
matemática newtoniana, de que toda a arte musical devia basear-se no estudo
científico de fenómenos acústicos. Estudo que se desejou conduzisse à formulação
duma lei universal da música, independentemente dos processos psicofísicos da
percepção auditiva e da sua complexa integração mental, ainda muito menos
satisfatoriamente conhecidos então do que o são hoje.
A maior parte das vezes, porém, as "verdades" artísticas mais próximas do nosso
tempo, mormente as oitocentistas, não foram apresentadas e aplicadas com pretenso
apoio da ciência. "Verdades" musicais foram *inventadas* por um Weber, um Wagner,
um Liszt, um Debussy, com assimilação de ideias vindas mormente da filosofia, da
literatura e da pintura. *_Inventar a verdade*, como Verdi gostava de dizer em
contexto mais limitado, eis a expressão que porventura define mais sugestivamente
essa maneira de criar lógicas estéticas válidas. E válidas, por também elas
corresponderem ao momento histórico-cultural.
Não admira, pois, que as mais frutuosas doutrinas musicais se tenham baseado em
postulados contraditórios, muitas vezes enunciados simultaneamente. Por aquele
corresponder ao momento histórico não implica a :, ausência de oposições
dialécticas. Por postulados devem entender-se aqui proposições como estas:
õo *_Toda a música consiste numa harmonia de números*.
õo *_Toda a música é expressão e transmissão de sentimentos*.
õo *_A música é pura emanação dum espírito individual*.
õo *_A música é um fenómeno eminentemente social, de raiz popular*.
õo *_A música deve transfigurar a realidade em Beleza*.
õo *_A música deve ser uma imagem realista da vida*.
õo *_A função da música consiste em dar acesso ao transcendente*.
õo *_A função da música consiste apenas no prazer auditivo*.
õo *_Na música, a forma deve preponderar sobre o conteúdo*.
õo *_Na música, o conteúdo deve preponderar sobre a forma*.
Seria fácil, mas não vale a pena dar mais exemplos. Antes, porém, de voltarmos à
área da história da música portuguesa, talvez revista interesse observar que,
apesar de tudo, há uma certa analogia entre a demanda da verdade científica e a da
verdade artística. Porque também aquela nunca é definitiva, se não temporária. E em
ambos os planos as verdades passam a falsidades sempre que a experiência as
contradiz. Nenhum artista músico persiste lucidamente em postulados cuja aplicação
prática seja repudiada pelos destinatários da sua mensagem e pela sua própria
experiência de ouvinte. Só que, nas ciências, a correcção por via experimental
adquire validade universal, ainda que de novo temporária; enquanto que nas artes,
também transitoriamente, ela só vale em determinados grupos socioculturais de maior
ou menor extensão, mas nunca no conjunto de todos os fruidores de música existentes
no planeta.
Os músicos portugueses do passado hão-de ter precisado também dessas lógicas
específicas, geradoras de mecanismos criativos. É portanto legítimo que o leitor
procure nas páginas deste livro sucessivas sínteses de tais corpos de proposições,
na expectativa, sobretudo, de que alguns destes tenham sido produção nacional.
Veremos que, à luz do conhecimento actual, semelhantes casos foram muito raros e
não tiveram grande projecção. As mais das vezes, as normas da concepção e
realização composicionais parecem ter sido importadas do estrangeiro. E aconteceu
serem expostas com maior desenvoltura por quem era tão pouco músico, propriamente
dito, como um Rodrigo Ferreira da Costa. Neste aspecto, e como também se verá, é no
entanto preciso distinguir entre os períodos em que a música portuguesa teve um
carácter marcadamente hispânico, não obstante os seus traços nacionais, e aqueles
que se lhes seguiram, em que a tradicional osmose cultural adentro da Península foi
submergida por influxos vindos de além-_Pirenéus.
Por outro lado, encontraremos no sector, já não da composição mas sim da
interpretação musical, casos notáveis que podem ter tido larga projecção em centros
culturais europeus ou de feição europeia.
O que o leitor não pode de maneira alguma esperar é qualquer proposta de indução
generalizante de tais casos particulares, da qual se conclua que os portugueses
são, ou não, especialmente dotados para a criação de :, doutrinas e ideologias
musicais, com novas "verdades" de significados e consequências marcantes para a
história. Como também veremos, os músicos portugueses têm sofrido condicionamentos
que quase sempre lhes limitaram demasiado esse tipo de iniciativa. Quanto aos
rasgos de génio, esses até nos países que conheceram condições mais favoráveis não
são em número suficiente para tais generalizações.
Em suma, o que se tenta nos subsequentes capítulos deste livro é uma relacionação
historiográfica de reflexos musicais da realidade sociocultural portuguesa.
Reflexos que não são, nem exclusiva nem principalmente, obras cujos autores tenham
querido fazer delas imagens musicais, directas e explícitas, de sucessos pontuais
dessa realidade, como o aniversário de algum rei, uma vitória militar decisiva para
a independência nacional, a comemoração do nascimento ou da morte de um grande
português. A menos programática das sonatas pode reflectir algo de importante da
mesma realidade, se tiver sido concebida em função desta, com o objectivo de
responder a determinadas solicitações da vida cultural.
E não apenas obras, composições, partituras, porque também conceitos e
preconceitos, usos e costumes, atitudes individuais ou colectivas que tivessem que
ver, em Portugal, com as mais ou menos cultivadas artes de *criar, executar* e
*ouvir* música. Além do mais, são informações desta ordem que legitimam muitas das
extrapolações necessárias à conexão historiográfica.
Relacionação de certo pessoal, de onde muito limitada e discutível também ela há-de
reflectir, ao menos, uma fase da cultura musical portuguesa. A fase actual, que
ainda não é história.
_história da
_música _portuguesa
por
_joão de _freitas _branco
_publicação em 16 volumes
_s. _c. da _misericórdia
do _porto
_c_p_a_c -- _edições
_braille
_r. do _instituto de
_s. _manuel
4050 __porto
1998
_segundo _volume
_joão de _freitas _branco
_história da
_música _portuguesa
_organização,
_fixação de _texto,
_prefácio e _notas
de _joão _maria
de _freitas _branco
2.a _edição,
_revista e _aumentada
_publicações
_europa-_américa
_capa: estúdios _p. _e. _a.
_herdeiros de _joão
_c de _freitas _branco,
1995
_editor: _francisco _lyon de
_castro
:__publicações europa-américa, __lda.
_apartado 8
2726 __mem __martins __codex
__portugal
_edição n.o: 116512/6266
_execução técnica:
_gráfica _europam, _lda.,
_mira-_sintra -- _mem _martins
_depósito legal n.o: 85462/95
__isbn 972-1-04012-6
Seria interessante analisar em profundidade a música portuguesa de diversas zonas
de acção e de diferentes períodos, desde a fundação da nacionalidade até as
imediações dos nossos dias, em função das respectivas classes, grupos e camadas
sociais. Não se torna porém legítimo prometer tanto, nem nada que se lhe compare.
Faltam, quase completamente, estudos de apoio, feitos por sociólogos da música. A
lacuna torna-se especialmente lamentável em relação a determinados aspectos da
constituição populacional portuguesa. Por exemplo, a faceta musical dos grupos de
muçulmanos, ou de escravos africanos e asiáticos (cujas habilidades musicais podem
ter sido mais assimiladas pelos donos portugueses do que hoje se supõe), ou ainda,
e sobretudo, dos judeus e cristãos-novos, tantos dos quais se distinguiram nos
domínios do saber.
A carência de informação biográfica também levanta dificuldades. É certo que as
teses monologal e coisificante ainda encontram defensores de coturno, para os quais
o artista se dirige a si mesmo e a mais ninguém, e a obra constitui um objecto não
afectado por nada que lhe seja exterior. Nesta óptica, a evolução da música
processa-se autonomamente, dentro dum sistema diacrónico isolado cujos únicos
motores são uma espécie de lógica interna do mesmo sistema e, em coerência com ela,
as inovações marcantes de sucessivos génios criadores. Porém, mesmo de um tal ponto
de vista, é impossível dispensar todo e qualquer conhecimento do que foi o artista,
como homem ou mulher de carne e osso, como membro duma determinada sociedade em que
muito ou pouco se integrou, contra a qual pode ter tido de lutar mas de cujos
caracteres, em qualquer caso, se tornou expoente, em sentido afirmativo, tão-só
conformadamente acomodatício ou declaradamente contestatário.
Não pode ignorar-se hoje a importância da psicologia das profundidades para a
investigação científica das manifestações artísticas, nomeadamente no seu aspecto
criativo. Mas não só o biógrafo, o historiador e o crítico de arte de formação
psicanalítica necessitam de dados pessoais fidedignos. Estes tornam-se também
indispensáveis em investigações diferentemente orientadas, desde as que partem de
vivências por assim dizer impressionistas das obras às que incidem, antes e acima
de tudo, sobre estruturas e superestruturas económicas e socioculturais, passando
pelas que sobrevalorizam o exame puramente técnico-musical e sem excluir as que
derivam para o mais esterilizado dos esteticismos.
Na vivência musical, como nas das outras artes, é preciso considerar o fenómeno da
empatia. Grande parte daquilo que o ouvinte recebe da obra foi "antes projectado
nesta por ele mesmo, ouvinte. Espécie de radar pelo qual o sujeito fruidor, muitas
vezes sem se dar conta do processo, localiza o objecto artístico num espaço de
representações psicoculturais, a empatia influi enormemente nos valores estéticos e
históricos atribuídos à música. Só que, no caso do radar propriamente dito, a
localização é objectiva, enquanto que no da empatia ela se define em termos duma
subjectividade variável de indivíduo para indivíduo e até de audição para
audição. :,
Ninguém deixará de reconhecer que os conhecimentos biográficos relativos a
compositores podem afectar poderosamente a fruição das suas obras. A medida em que
tal acontece é sem dúvida muito diferente, inclusive em relação a composições da
mesma autoria. E os dados biográficos influentes até podem ser irrelevantes,
duvidosos ou mesmo falsos.
O caso de Beethoven é particularmente elucidativo. O conhecerem-se bastante bem e
terem sido muito divulgadas as suas tendências ideológicas e os seus tormentos
físicos e sentimentais -- tendências e tormentos que foram ao encontro de
solicitações dos períodos subsequentes da história da música europeia -- contribuiu
imensamente para que a sua genialidade tenha sido objecto do mais amplo e vivo
interesse. E contribuiu não só junto de massas de ouvintes superficiais, em cuja
fruição o fenómeno empático se dá sempre de maneira algo primária, como também
entre os intelectuais e artistas cultural e tecnicamente habilitados à emissão de
juízos de valor.
No plano das ciências musicais, não se trata, evidentemente, de qualquer
encarecimento duma relação directa entre causa biográfica e efeito artístico. A
Constança do *_Rapto do Serralho* não pode ser reduzida à Constança namorada e
depois mulher de Mozart. Muito menos pode o beethoveniano "Muss es sein?" do
*_Quarteto op. 135* tocar mais fundo o ouvinte esclarecido, por este empaticamente
o entender em termos de pagamento da renda da casa. É bem sabido que entre a
realidade circunstancial ou o estado de espírito do artista, no momento da criação
da obra, e os caracteres desta é possível haver flagrante divergência. O que, em
vez de restringir o interesse do conhecimento da personalidade e da vida do autor,
muito pelo contrário o aumenta, se mostrar mais complexa e profunda a mensagem,
tornando-a ainda mais enriquecedora de quem a recebe. Se o homem e a sua
circunstancia ajudam à posse da obra pelo ouvinte, não é menos verdade que, assim
apropriada, a mesma obra pode tornar-se depois muito mais profundamente reveladora
da personalidade individual e social que a produziu. Obra e biografia pertencem-se
mutuamente.
Por tudo isto, a música portuguesa seria muito menos ignorada, a sua história
poderia ser escrita com um apoio e vivencialidade muito maiores, se houvesse outra
informação acerca das suas figuras representativas. Por motivos que, eles mesmos,
pertencem à história da nossa cultura, a escassez de dados e de estudos a tal
respeito é, na maior parte dos casos, confrangedora. Há compositores, teóricos e
intérpretes musicais portugueses de quem quase nada sabemos como entes humanos
pensantes, sensíveis e actuantes no seio duma sociedade. A sensação é de não
estarmos lidando com homens, mas sim com fichas. Fichas em branco, as mais das
vezes.
Mesmo em certos casos de que temos notícias menos exíguas, faltam-nos provas de
tomadas de posição caracterizantes duma individualidade, duma linha de pensamento,
duma norma de conduta; ou da ausência de tal. Veja-se o exemplo de Vicente
Lusitano. Será suficiente conhecermos o teor da confrontação com Nicola Vicentino
-- com patriótico júbilo pela vitória judicial do nosso conterrâneo -- e
suspeitarmos da sua heterodoxia religiosa?
Vicentino ficou na história como um dos mais combativos, ainda que nem sempre dos
mais correctos propugnadores do modernismo do seu tempo, já :, pela libertação de
peias escolásticas obsoletas, já pela valorização poético-musical dos vernáculos.
Podemos inferir da polémica que Vicente Lusitano discordava do antagonista em tudo
e era, portanto, um homem e um músico cem por cento conservador, mais virado para o
passado que para o futuro? A ser verdadeiro o seu pendor luterano, em que medida se
reflectiu ele nas suas opções musicais? Teriam pesado mais certos problemas de
ordem pessoal do que autênticas convicções? Como adiante veremos, não estamos
habilitados a responder cabalmente a tais interrogações, apesar de Vicente Lusitano
ser um dos raros músicos portugueses estudados com persistente e consequente
idoneidade musicológica.
Outro exemplo frisante é o de Damião de Góis, a respeito do qual sabemos no entanto
mais, como homem e como pensador, do que de Vicente Lusitano. Que significa a
prestigiante colaboração no *_Dodecachordon*? Estaria Góis inteiramente de acordo
com o compromisso de Glareanus entre novas e velhas concepções? E que música seria
aquela que o humanista português gostava de fazer soar dentro das quatro paredes da
sua casa, sem saber que ela despertava uma perigosa estranheza em ouvidos
indiscretos? Qual a sua sincera opinião sobre a atitude do Concílio de Trento para
com a arte dos sons?
Não são apenas músicos de tempos recuados. Tão-pouco sabemos o suficiente acerca do
tipo e profundidade da cultura de músicos portugueses de primordial importância,
menos afastados do nosso tempo; bem como de motivações positivas ou negativas a que
terão respondido de maneira evidenciadora das suas constantes morais, intelectuais
e afectivas. Isto, mesmo em relação a alguns que, como um Carlos Seixas, uma Luísa
Todi, um Marcos Portugal ou um João Domingos Bomtempo, têm sido objecto de estudos
musicológicos sérios.
Por outro lado, há que ter em atenção os prejuízos inerentes a certos sectores da
investigação e divulgação. No âmbito da música religiosa -- e até de alguma
profana, guardada em arquivos eclesiásticos --, os mais dos investigadores foram,
ou são, eles mesmos clérigos ou fiéis praticantes do catolicismo. Em todos os
casos, o acesso às fontes muitas vezes únicas, imprescindíveis e insubstituíveis
para a prossecução dos seus trabalhos depende da Igreja. A circunstancia pode ter
relação com valorações monocordicamente laudatórias de música e músicos da esfera
eclesiástica, bem como da orientação a que estes se submeteram.
Neste aspecto, o mais grave tem sido a omissão de dados exigentes dum outro sentido
crítico e duma visão menos parcial, junta a uma declarada hostilidade em relação a
figuras da história da cultura portuguesa com as quais a Igreja tenha tido algum
contencioso. Investigadores que, em deter
4minadas matérias, prestaram contribuições importantíssimas, jamais escreveram uma
palavra reconhecedora da incontestavelmente grande responsabilidade da Igreja pelos
atrasos das teorias e das práticas musicais verificadas em Portugal durante
centenas de anos.
Um desses estudiosos ocupou-se da música europeia dos séculos XVI e XVII, em
contexto onde a portuguesa dos mesmos períodos era tema central, sem uma única
referência, por mínima que fosse, à música protestante. Outro, além de se
desinteressar de um João Domingos Bomtempo, só por sabê-lo :, "malhado", levou o
fanatismo ao ponto de escrever, em letra de forma, que com o enforcamento de
António José da Silva não se perdeu grande coisa, porque "o Judeu" não devia ser
boa peça! Estes e outros *abusos de zelo* não parecem próprios de bons servidores
da Igreja. Em coerência com a sua própria ética, a mesma Igreja também nos domínios
da música deve exigir a verdade, só a verdade e toda a verdade.
Ainda no mesmo aspecto, há mais cautelas a ter, mas de sinal contrário. O
anticlericalismo e, de maneira geral, o sectarismo esquerdo têm induzido em
tentações não menos pecaminosas, como a de calar sistematicamente o papel
fundamental da Igreja em muito do que de melhor, ao longo de séculos, se realizou
em Portugal, em termos de música. Parece no entanto justo registar que têm vindo
destes sectores algumas correcções críticas necessárias (mas insuficientes) da
parcialidade musicológica antagónica.
Convém tornar ao vocábulo *verdade*. Porque, em arte, ele ganha uma conotação que o
liberta do seu significado no plano da investigação, guiada que esta deve ser por
métodos lógico-científicos.
Em todas as diferentes artes, e portanto na música, há falsidades "verdadeiras". E
não só falsidades que, no momento histórico em causa, foram erradamente tidas por
mesmo verdadeiras, se não que também outras já então provadas como tais. O
desconcerto entre verdade científica e verdade artística é notório em diversos
períodos da história da música. O importante reside no facto de verdades artísticas
cientificamente falsas não resultarem menos verdadeiras, dentro do seu mundo
estético-cultural.
Os exemplos são incontáveis. O mais divulgado de todos consiste no erro daqueles
humanistas italianos que supuseram estar fazendo renascer a música da Antiguidade
clássica, quando estavam a criar a ópera. Erro fecundo, falsidade científica
tornada artisticamente verdadeira pelos seus potenciais estéticos e a adequação
destes ao momento histórico-cultural.
Outro exemplo está na convicção setecentista, influenciada sobretudo pela física
matemática newtoniana, de que toda a arte musical devia basear-se no estudo
científico de fenómenos acústicos. Estudo que se desejou conduzisse à formulação
duma lei universal da música, independentemente dos processos psicofísicos da
percepção auditiva e da sua complexa integração mental, ainda muito menos
satisfatoriamente conhecidos então do que o são hoje.
A maior parte das vezes, porém, as "verdades" artísticas mais próximas do nosso
tempo, mormente as oitocentistas, não foram apresentadas e aplicadas com pretenso
apoio da ciência. "Verdades" musicais foram *inventadas* por um Weber, um Wagner,
um Liszt, um Debussy, com assimilação de ideias vindas mormente da filosofia, da
literatura e da pintura. *_Inventar a verdade*, como Verdi gostava de dizer em
contexto mais limitado, eis a expressão que porventura define mais sugestivamente
essa maneira de criar lógicas estéticas válidas. E válidas, por também elas
corresponderem ao momento histórico-cultural.
Não admira, pois, que as mais frutuosas doutrinas musicais se tenham baseado em
postulados contraditórios, muitas vezes enunciados simultaneamente. Por aquele
corresponder ao momento histórico não implica a :, ausência de oposições
dialécticas. Por postulados devem entender-se aqui proposições como estas:
õo *_Toda a música consiste numa harmonia de números*.
õo *_Toda a música é expressão e transmissão de sentimentos*.
õo *_A música é pura emanação dum espírito individual*.
õo *_A música é um fenómeno eminentemente social, de raiz popular*.
õo *_A música deve transfigurar a realidade em Beleza*.
õo *_A música deve ser uma imagem realista da vida*.
õo *_A função da música consiste em dar acesso ao transcendente*.
õo *_A função da música consiste apenas no prazer auditivo*.
õo *_Na música, a forma deve preponderar sobre o conteúdo*.
õo *_Na música, o conteúdo deve preponderar sobre a forma*.
Seria fácil, mas não vale a pena dar mais exemplos. Antes, porém, de voltarmos à
área da história da música portuguesa, talvez revista interesse observar que,
apesar de tudo, há uma certa analogia entre a demanda da verdade científica e a da
verdade artística. Porque também aquela nunca é definitiva, se não temporária. E em
ambos os planos as verdades passam a falsidades sempre que a experiência as
contradiz. Nenhum artista músico persiste lucidamente em postulados cuja aplicação
prática seja repudiada pelos destinatários da sua mensagem e pela sua própria
experiência de ouvinte. Só que, nas ciências, a correcção por via experimental
adquire validade universal, ainda que de novo temporária; enquanto que nas artes,
também transitoriamente, ela só vale em determinados grupos socioculturais de maior
ou menor extensão, mas nunca no conjunto de todos os fruidores de música existentes
no planeta.
Os músicos portugueses do passado hão-de ter precisado também dessas lógicas
específicas, geradoras de mecanismos criativos. É portanto legítimo que o leitor
procure nas páginas deste livro sucessivas sínteses de tais corpos de proposições,
na expectativa, sobretudo, de que alguns destes tenham sido produção nacional.
Veremos que, à luz do conhecimento actual, semelhantes casos foram muito raros e
não tiveram grande projecção. As mais das vezes, as normas da concepção e
realização composicionais parecem ter sido importadas do estrangeiro. E aconteceu
serem expostas com maior desenvoltura por quem era tão pouco músico, propriamente
dito, como um Rodrigo Ferreira da Costa. Neste aspecto, e como também se verá, é no
entanto preciso distinguir entre os períodos em que a música portuguesa teve um
carácter marcadamente hispânico, não obstante os seus traços nacionais, e aqueles
que se lhes seguiram, em que a tradicional osmose cultural adentro da Península foi
submergida por influxos vindos de além-_Pirenéus.
Por outro lado, encontraremos no sector, já não da composição mas sim da
interpretação musical, casos notáveis que podem ter tido larga projecção em centros
culturais europeus ou de feição europeia.
O que o leitor não pode de maneira alguma esperar é qualquer proposta de indução
generalizante de tais casos particulares, da qual se conclua que os portugueses
são, ou não, especialmente dotados para a criação de :, doutrinas e ideologias
musicais, com novas "verdades" de significados e consequências marcantes para a
história. Como também veremos, os músicos portugueses têm sofrido condicionamentos
que quase sempre lhes limitaram demasiado esse tipo de iniciativa. Quanto aos
rasgos de génio, esses até nos países que conheceram condições mais favoráveis não
são em número suficiente para tais generalizações.
Em suma, o que se tenta nos subsequentes capítulos deste livro é uma relacionação
historiográfica de reflexos musicais da realidade sociocultural portuguesa.
Reflexos que não são, nem exclusiva nem principalmente, obras cujos autores tenham
querido fazer delas imagens musicais, directas e explícitas, de sucessos pontuais
dessa realidade, como o aniversário de algum rei, uma vitória militar decisiva para
a independência nacional, a comemoração do nascimento ou da morte de um grande
português. A menos programática das sonatas pode reflectir algo de importante da
mesma realidade, se tiver sido concebida em função desta, com o objectivo de
responder a determinadas solicitações da vida cultural.
E não apenas obras, composições, partituras, porque também conceitos e
preconceitos, usos e costumes, atitudes individuais ou colectivas que tivessem que
ver, em Portugal, com as mais ou menos cultivadas artes de *criar, executar* e
*ouvir* música. Além do mais, são informações desta ordem que legitimam muitas das
extrapolações necessárias à conexão historiográfica.
Relacionação de certo pessoal, de onde muito limitada e discutível também ela há-de
reflectir, ao menos, uma fase da cultura musical portuguesa. A fase actual, que
ainda não é história.
CAPíTULO I
ANTES DA FUNdAÇÃO DA MONARQUIA
Costumes e ritos musicais primitivos
Muito antes de fundada a monarquia portuguesa já a população do seu território, e
de outros peninsulares que vieram ou não a integrar-se nela, se entregava a
práticas musicais profanas e religiosas. "Entre as libações" afirma Estrabão (c. 63
a. C.-20 d. C.), "dançam ao som da tíbia e, em rodas, ao da trombeta. De vez em
quando saltam e, flectindo os joelhos, deixam-se cair com os corpos direitos." E,
referindo-se à Bastetânia (litoral da cordilheira bética), acrescenta que "isto
mesmo fazem as mulheres, dando-se as mãos". É também Estrabão quem nos fala das
leis em verso dos Turdetanos (na actual Andaluzia), que seriam entoadas com sentido
musical (13, 14).
Outras notícias chegaram até nós através de autores latinos. Um fragmento de
Salústio (86-34 a. C.) fala do costume hispânico de entoar cantos sobre feitos
guerreiros dos antepassados. Segundo Tito Lívio (59 a. C.-17 d. C.), durante o
funeral de Tibério Semprónio Graco, no ano de 133 a. C., houve danças de armas
hispânicas. Sílio Itálico (c. 26-c. 101) narra que, no fim da batalha de Canas (216
a. C.), o cônsul romano arremeteu contra um inimigo que estava a cantar à maneira
bárbara dos hispanos. E Marcial (c. 43-c. 104) não deixou dúvidas quanto ao muito
que os entretenimentos musicais romanos ficaram a dever às gaditanas, dançarinas e
tangedoras de instrumentos parecidos com as actuais castanholas, naturais da região
de Cádis. Existiriam na Roma de então escolas onde se ensinavam os movimentos
lascivos dessas danças (15).
Se déssemos crédito a lendas que se contavam ainda nos tempos dos nossos primeiros
reis, teríamos de admitir a importação pelo próprio Baco, 1340 anos antes do
nascimento de Cristo, de "música e folias" que se teriam apossado da Hispânia. Em
todo o caso, é uma indicação do barbarismo dionisíaco desses nossos antepassados,
quando entregues a divertimentos que lhes deviam ser dos mais gratos. Havia também
manifestações de outra ordem, como aquela, de que nos chegou notícia, do canto
lúgubre dos soldados de Viriato em torno da fogueira ateada sobre os restos mortais
do capitão lusitano.
O cristianismo trouxe consigo elementos musicais de evidente importância, uma vez
que serviam ao rito religioso. É possível que o primeiro, ou um dos primeiros papas
que contribuíram decididamente para o desenvolvimento :, do canto litúrgico romano,
Dâmaso I (366-384), tenha nascido na região de Guimarães. Não sabemos se o
interessou especialmente o problema do culto religioso na Península. Parece,
todavia, provável que, no início da expansão cristã, o canto litúrgico fosse aqui
idêntico (na medida em que era possível) ao que se praticava em Roma. As novidades
ocorridas sob Leão Magno (440-467), Gelásio I (492-496), Gregório I (590-604)
devem, porém, ter exercido pouca ou nenhuma influência imediata no Oeste da
Península. Vemos, a partir do século V, o papado atento ao que se passa nestas
terras longínquas, desejando proteger o bispado hispânico contra infiltrações
gregas que já no século anterior provavelmente se haviam concretizado. Práticas
arianas também ameaçavam propagar-se pela gente nativa, sob o domínio visigodo
(16).
Em 538 o pontificado dota a igreja da Galiza de uma cópia do missal romano, vinte e
três anos depois adoptado pelo concílio de Braga que sancionou a conversão dos
Suevos. Nesse concílio de 561, como no que cem anos depois (666) se realizou em
Mérida, capital da Lusitânia, foi nítido o propósito de unificar o rito. No que
respeita a música, a Igreja desde cedo teve que impor, ou, pelo menos, tentar
impor, normas que evitassem audições nos templos julgadas impróprias. Já no
concílio de Laodiceia (343-381) um cânone estabelecera que, "além dos cantores
nomeados para subirem ao ambo e cantarem lendo no livro, nenhuns outros cantarão na
igreja". Noutro cânone, o concílio proibia os *psalmi idiotici*, hinos de origem
não bíblica ou ainda não aceites. A ideia era banir da igreja cantos e danças
populares pagãos, por vezes acompanhados de bater de palmas (17).
Em Braga, foi proibido na igreja todo o canto em verso, com excepção dos salmos e
versos bíblicos. Neste caso parece ter estado em causa os sectários priscilianos.
Como a heresia estivesse dominada por alturas do 4.9 concílio de Toledo (633), este
deu mais larga margem à música nas igrejas, o que o 8.o concílio (652) veio a
confirmar. Nas ocasiões mais solenes, durante o sepultar dos mortos deveriam
ouvirse salmos. A dignidade eclesiástica era recusada a quem desconhecesse o livro
dos
salmos e o uso dos cantos e hinos da Igreja.
Problemas da igreja relacionados com a música
Estes factos interessam-nos hoje pouco em si mesmos. No entanto, encerram
significados esclarecedores, que ajudam a compreender melhor o que seriam as
manifestações musicais dentro e fora das igrejas. Demonstram que também na
Península Ibérica os poderes eclesiásticos se apercebiam do risco de profanação dos
templos por via musical. Confirmam, portanto, não só a heresia sectária mas também
a existência de costumes musicais no povo, decerto muito marcados ainda de
barbarismo. Por outro lado, acusam um programa de formação espiritual em que a
música se reconhecia como agente eficaz, cujo emprego deveria condicionar-se com
cautela. :,
Importante é também compreender a necessidade que a Igreja tinha de unificar, na
medida do possível, os ritos em todo o vasto território a que se estendia a sua
influência. Ainda hoje essa unificação é demandada por todas as organizações de
largo âmbito, religiosas ou não. Só conseguindo-a se evita uma diferenciação que é
primeiro passo para as independências locais e para o desmembramento (18).
Construía-se então uma ordem social na Europa, entre os pólos do poder temporal e
do espiritual, o primeiro exercido por reis e outros senhores da nobreza, o outro
pela Igreja. Ambas as partes tinham razões para se aliarem: os chefes temporais
necessitavam de quem lhes outorgasse a autoridade sobre os seus súbditos, por uma
faculdade que todos reconhecessem como tendo sido conferida por poder divino. Além
disso, em tempos tão pouco seguros, em que os riscos de morte eram constantes (sem
esquecermos o de doença e epidemia, que hoje mal podemos fazer ideia do que foi
para os nossos antepassados), a crença numa força sobrenatural como a que pregavam
os cristãos adequava-se inclusivamente aos próprios reis, para mais que eram, no
geral, pessoas de intelecto não cultivado, terreno sempre propício à superstição.
Quanto à Igreja, a sua tarefa já se tornava grande e difícil no domínio espiritual.
Seria talvez impossível se houvesse também ela própria que garantir o mínimo de
segurança física necessário em todo o território que abarcava. Era-lhe extremamente
útil a organização político-militar dos senhores temporais, desde que se não
voltasse contra ela, o que algumas vezes sucedeu, como é sabido. O poder temporal e
o espiritual nem sempre se distinguiram nitidamente um do outro, ambições e
interesses transpuseram-lhes amiúde as fronteiras, em ambos os sentidos.
Antecedentes da música litúrgica romana
A música que se praticou nas igrejas peninsulares, pondo de parte as incursões do
folclore, deve ter-se assemelhado bastante à que se ouvia em Roma. Esta proposição
não esclarece todavia o suficiente, porque são ainda diminutos os conhecimentos
musicológicos sobre os primitivos cantos da igreja romana. O que pode considerar-se
certo é que as principais influências foram gregas e hebraicas. E, dado que estamos
tratando de reconstituir, ainda que muito resumidamente, a fertilização e
sementeira que vieram a dar a cultura musical portuguesa, vale a pena demorarmo-nos
um pouco a colher alguma informação sobre o que essas duas influências
representaram para a música eclesiástica romana (19).
Da cultura grega provieram os tons e os meio-tons, que ainda hoje são elementos
melódicos de praticamente toda a música europeia, a sua organização em tetracórdios
e destes em modos (dórico, frígio, lídio...), restos nítidos preservados no canto
gregoriano, apesar de, neste, as palavras modo, dórico, frígio, etc. não terem
significados idênticos aos que lhe atribuíam os antigos. Contribuição
importantíssima, portanto, que está na base de toda a nossa gramática musical.
Note-se ainda que os dois modos vulgarizados :, nos séculos XVII a XIX, ainda hoje
os mais usados pelos compositores ocidentais -- o modo *maior* e o *menor* --,
descendem da organização de tons e meios-tons transmitida pela cultura grega à
latina. De influência grega deve também ter sido o canto monódico, em que todas as
vozes cantam a mesma linha melódica, ou linhas paralelas à distância de oitava,
formando a mais perfeita das consonâncias. Ao canto em oitavas chamaram os Gregos
*antifonal*, o que não deve confundir-se com as antífonas da igreja romana, como
adiante veremos. A comprovar a (no entanto discutida) influência helénica, está o
facto de o grego ter sido a língua oficial da Igreja nos primeiros três séculos da
sua história (20).
Da sinagoga parece ter a música romana herdado o uso das cadências, a prática do
canto congregacional em antífonas e responsórios (ou seja, opondo a congregação a
um grupo de cantores, ou a um só, respectivamente), um sentido livre do ritmo, não
condicionado pela métrica das palavras como no canto grego, e o melodismo floreado
(melismático), dilatando uma só vogal ao longo de extensos vocalizos. Esta arte
ornamental é a das aleluias, de nítida e comprovada ascendência hebraica. Conquanto
os mais antigos documentos de música israelita sejam tardios, a moderna musicologia
autoriza que apontemos como seus exemplos pouco alterados os trechos que
actualmente se ouvem ainda em algumas colónias judaicas, como sejam as georgianas e
iranianas. Outra importante tradição romana, a distinção nítida entre música
religiosa e secular, proveio também de antecedentes hebraicos.
A liturgia hispânica
Antes de os Visigodos se instalarem e organizarem na Península (séculos V e VI) já
a liturgia local diferia da de Roma. Por isso a denominação de *liturgia hispânica*
parece preferível à de *visigótica* ou, com mais forte razão, à de *liturgia
moçárabe*, por que se tornou conhecida. O facto de ser, com a romana, a ambrosiana
(ou milanesa) e a gálica, uma das quatro principais liturgias do Ocidente sugere a
existência na Península de caracterizados e pertinazes elementos musicais próprios.
Com efeito, aceita-se hoje a tese de serem as diferentes liturgias como que
dialectos de um mesmo idioma (de origem greco-judaica, como vimos), diferenciados
por acção dos folclores locais.
Existem em Madrid manuscritos do século IX ou X contendo lamentações pela morte de
reis visigodos do século VII. Os textos são latinos e a música tem sido atribuída a
St.o Eugénio, sem razões evidentes para o admitirmos.
O longo período da liturgia hispânica não foi isento de contactos directos com o
ramo oriental da Igreja. S. Leandro (m. 599), arcebispo de Sevilha que teve fama de
autor de "muitas peças de som doce", foi enviado, quando arcediago, a
Constantinopla como embaixador, e ali consta que, na companhia de S. Gregório,
assistiu a muitas das esplendorosas manifestações musicais anteriormente
instituída; por Justiniano. St.o Isidoro (m. 636) era :, irmão de S. Leandro e
sucedeu-lhe como arcebispo. À parte musical dos seus vastos trabalhos de
enciclopedismo sistematizante atribui-se importância paralela, dentro da liturgia
hispânica, à da contribuição de S. Gregório para a romana.
Não admira portanto que a liturgia hispânica apresente semelhanças com o rito
bizantino. Mas também foi possível apontá-las em relação ao gálico e, mais
nitidamente, ao milanês, que era menos complicado do que o romano.
Todas estas conclusões da musicologia se fundamentam em documentos pouco
satisfatórios. A mais antiga colecção ambrosiana que se conhece é do século XII
(contendo, como particularidade interessante, rimas musicais) e a maior parte da
primitiva liturgia hispânica não pôde ainda decifrar-se. Um dos livros contém
várias páginas em que um escriba do século XII passou a notação aquitana dezasseis
melodias originalmente exaradas em neumas hispânicos. Todas essas peças pertencem
ao ofício dos mortos e, com mais cinco, formam o único conjunto de autênticas
monódias hispânicas de que temos conhecimento. Todas elas podem considerar-se
modais no sentido gregoriano (21).
Existem fragmentos de liturgia hispânica, do século XI, na Biblioteca Geral da
Universidade de Coimbra e no Paço Arquiepiscopal de Lamego. Robert Stevenson cita o
investigador espanhol Perez de Urbel, que considera ser originária de Beja e datada
de 806 a fonte manuscrita original do antifonário de León (22).
As súplicas (preces) que se cantavam nas igrejas peninsulares deviam ser simples, a
ajuizar pela reduzida documentação de que dispomos. Outra razão para o admitirmos
era o participar nelas a própria congregação, que as cantava (em latim?) como uma
espécie de refrão ou estribilho, em dias de penitência. Supôs-se que essas práticas
reflectiam alguma influência vinda da França, mas o antifonário de León atribui
duas preces a Juliano de Toledo (século VII), o que deixa admitir a hipótese de uma
acção exercida no sentido oposto.
A invasão muçulmana
No século VIII, deu-se a invasão árabe. Parte da população fugiu para as montanhas
do Norte, outra submeteu-se ao domínio sarraceno. Aos que, beneficiando da
tolerância dos invasores, continuaram professando a religião cristã cabe a
denominação de *moçárabes*.
A probabilidade de influência musical, relativamente à vinda e à longa permanência
dos árabes, não deve, em teoria, ser entendida só no sentido dos invasores para os
invadidos, se não que também no sentido oposto. Sem ligação directa com a música
popular, muito mais antiga, a música erudita árabe resultou em grande parte de
contribuições de escravos das mais diferentes proveniências. Essa música, dita
*clássica*, deve ter-se formado :, principalmente nos grandes centros urbanos do
Islão, um dos quais foi Córdova.
Reportando-se a um cronista anterior, o andaluz Ibn Hazm escreveu o seguinte, no
século X: "Abu Mundhir Hisham Ibn Al-_Kalbi relata que o canto é de três espécies:
*al-_Nasb, al-_Sinad* e *al-_Hazaj. O *_Nasb* é o canto dos Rukban e das escravas.
O *_Sinad* é formado por períodos longos e numerosas melodias (melismas). Quanto ao
*_Hazaj*, todo ele é ligeireza, é ele que estimula as almas e chega mesmo a excitar
o homem doce...". Resta saber em que medida os escravos naturais do futuro Portugal
deram contributos musicais comparáveis aos dos persas, helenos, sírios ou
alexandrinos.
Especialistas na matéria admitem que havia dois tipos de música árabe, um
aparentemente reservado a profissionais, o outro com a função de cadenciar
ritmicamente as danças que animavam as feiras religiosas ou populares. Terá sido
este último o que mais influenciou os nativos da Península Ibérica.
A música árabe representou sem dúvida um papel importante no processo histórico,
muito complexo, que partiu das músicas da Antiguidade oriental e greco-latina e
produziu as modernas músicas ocidentais. Foi sobretudo a prestação de informações
de enorme utilidade para a formulação e estruturação de teorias e práticas musicais
europeias, na Idade Média. Isto, principalmente através da Península Ibérica, se
bem que textos fundamentais tenham sido elaborados noutros pontos do mundo
islâmico. Os de Al-_Farabi (c. 870-c. 950), turco por nascimento que se fixou em
Alepo, na Síria -- nomeadamente os que constituem o *_Kitab al-musiqi al-kabir
(Grande livro sobre a música)*, parte do qual se perdeu --, são considerados a obra
mais notável sobre a matéria depois da época áurea da Grécia antiga. Al-_Farabi e
outros teóricos islâmicos foram traduzidos em latim e em hebraico.
O auge da música "clássica" muçulmana e o seu prolongamento na Península Ibérica
conquistada cobrem um período que começou cerca de quatrocentos anos antes da
fundação do reino de Portugal e se estendeu até o fim do século XV. Sem esquecer a
já apontada influência ao nível popular, a introdução na Península de vários
instrumentos -- entre os quais o alaúde (*'ud*) e a rabeca (*'rabab*) -- e a
permanência até à Idade Moderna de marcas da proveniência moura no vocabulário
português relativo à música e à dança, não deve porém supor-se que a cultura
musical árabe tenha determinado o devir da arte dos sons nos primeiros quatro
séculos do reino.
Os moçárabes praticaram a liturgia hispânica, a que se haviam habituado, mantendose
o latim como seu idioma ritual. Mas é de supor que os elementos pagãos
conhecessem então maior liberdade dentro das igrejas, uma vez que pouco tempo antes
da invasão as autoridades eclesiásticas se preocupavam com a sua persistência. O
3.o concílio de Toledo (589), por exemplo, tinha condenado as danças nos templos
(23).
O rito hispânico foi sendo abandonado nos territórios não submetidos aos Árabes. Em
1071, o papado impõe o gregoriano em Aragão e em 1079 em Castela. Interessante é a
resistência do povo, demonstrando uma vitalidade não passiva ou anódina. Contavamse
milagres operados pela liturgia hispânica: Henrique de Borgonha, pai de D.
Afonso Henriques, teria mesmo :, presenciado um, em Toledo. Afonso VI de Castela,
quando tratou da adopção oficial do rito gregoriano, em obediência à orientação
unificadora de Roma, teve que autorizar a liturgia hispânica em seis das igrejas de
Toledo, e restos dela ficaram na Península até os nossos dias (24).
De considerar é a música não litúrgica que se cantava nas igrejas. Note-se que toda
a música que se aceitasse nos templos, sem pertencer à liturgia, representava de
algum modo uma contribuição para o que modernamente entendemos por composição
musical. Um dos cantos não litúrgicos da baixa Idade Média chegou até nós. É o
canto da Sibila, cuja versão mais antiga hoje conhecida provem do século X. O texto
original era grego, mas foi certamente em latim que a profecia de Sibila se cantou
em igrejas peninsulares, com representação mímica, parece que já entre moçárabes.
Atribui-se hoje marcada influência aos cantos latinos não litúrgicos na arte
trovadoresca (25).
Mimos e histriões
Fora do âmbito eclesiástico, e integrando-se nas manifestações folclóricas, havia
os mimos e histriões, que divertiam o povo em espectáculos parece que pouco
edificantes. A origem desses personagens jocosos encontra-se no teatro romano, de
onde devem ter irradiado para todo o Império. Agradavam aos reis os seus ditos e
habilidades. Certo mimo que o rei suevo Mirón, da Galiza (século VI), houve para
seu aprazimento sofreu um castigo do Céu -- disso nos assegura um escritor
eclesiástico -- por se ter permitido escarnecer de S. Martinho (26)!
Como vamos ver, tais diversões vieram a prolongar-se nas dos jograis, no período
que foi berço da cultura literário-musical portuguesa.
CAPITULO II
OS PRIMEIROS TEMPOS DA MONARQUIA
Música de igreja
Este é propriamente o ponto de início da nossa história da música portuguesa. Os
parágrafos precedentes eram todavia indispensáveis para sabermos que, quando Afonso
Henriques fundou a Nacionalidade, existia já uma longa cultura musical, mistura mal
distrinçável de elementos gregos, hebraicos, romanos, bizantinos, milaneses,
gálicos, árabes e peninsulares pagãos, de diferentes e remotas origens.
As preocupações político-militares foram demasiado prementes, no primeiro rei de
Portugal, para que pudesse gastar muito tempo no culto da música. No entanto, teve
o cuidado de proporcionar a instituições religiosas os meios para as suas práticas
musicais, dentro da tradição. Alguns conventos existiam desde muito antes, como o
de Lorvão, que, provavelmente, foi um dos conformados com a dominação árabe, que
lhes autorizava a existência legal.
As tarefas militares devem ter impedido que a influência francesa embora muito
marcada (e compreensível, dada a ascendência de Afonso Henriques), se exercesse em
toda a sua amplitude. No período da nossa primeira dinastia a França ocupou
indiscutível primeiro lugar na música europeia. Sem embargo, não há notícia
concludente quanto à implantação entre nós da sua arte polifónica. Um documento de
959 levanta suposições tentadoras quanto ao conhecimento da polifonia, pouco tempo
depois dos seus primeiros e hesitantes passos.
É o testamento feito ao Mosteiro de Guimarães pela sua fundadora, Mumadona (27).
Entre outras menções de livros "de comum utilidade", figura um *organum*. Se se
tratava realmente de um livro de polifonia primitiva (o que é duvidoso), esse
mosteiro vimaranense estava espantosamente avançado para a época. Nada, na ulterior
literatura musical portuguesa, o confirma, nem mesmo a notação, que, até o fim do
século XV, se obstina em utilizar uma só linha (28).
Devemos voltar dentro em pouco à influência francesa, deixando de parte a
polifonia. Antes, porém, observemos que os mosteiros ao sul do Tejo tardaram em
relação aos mais antigos do norte, por motivos óbvios. Essas regiões foram as mais
indicadas para as ordens militares, que, evidentemente, não tinham entre os seus
primeiros objectivos o culto de uma arte :, musical *up to date*. Por outro lado, a
austeridade da regra cisterciense não fomentou, na importante parcela da nação
portuguesa que directamente afectava, o desenvolvimento da música. Acrescente-se
que os estudos na universidade fundada por D. Dinis não igualavam a extensão e
profundidade dos das mais destacadas no tempo, e compreender-se-á quanto é provável
que a música erudito-religiosa em Portugal fosse insignificante, comparada com as
da Escola de Notre-_Dame e da Escola de S. Vítor, ou com a arte polifónica
trecentista de um Guillaume de Machault.
Os trovadores
Do maior interesse se mostram, pelo contrário, as manifestações musicais profanas,
aristocráticas e populares. É o florescimento trovadoresco e jogralesco, um dos
pontos em que (como mais tarde no teatro de Gil Vicente) as histórias da literatura
e da música portuguesas se encontram e interpenetram. A influência francesa
(nomeadamente provençal) é insofismável nesse belo período da nossa cultura, mas
seria errado vê-lo como simples importação de além-_Pirenéus (29).
Parece certo que o verbo "trovar" descende de tropare, ou seja, "realizar tropos":
composições literário-musicais que se intercalavam nos textos litúrgicos. Supõe-se
que a prática do tropo fora iniciada, na música eclesiástica ocidental (sabemos de
precedentes bizantinos), no Convento de St. Gall, no século IX. Era uma porta que
se abria do formalismo litúrgico para a liberdade da criação artística, e o *tropo*
veio a assumir enorme importância na história da composição musical; e até, na do
teatro, através do "drama sacro" medievo. É intuitivo que o vulgo identificasse com
a palavra *tropare* toda e qualquer acção de composição musical artística. Trovador
seria todo aquele que a praticasse.
Como é sabido, os trovadores pertenciam, em regra, à classe nobre. Alguns eram
reis, entre eles os portugueses D. Sancho I e D. Dinis. A sua arte é eminentemente
lírica, consiste em cantos geralmente acompanhados a instrumentos, sobre versos na
língua galaico-portuguesa. A atitude que reflecte, de algum modo surpreendente pela
sua delicadeza em tempos tão agitados e marcados ainda de primitivismo, torna-se
mais compreensível se atendermos a que já nessa altura os poderes temporais e
espirituais da Europa sentiam que lhes era necessário fomentar a cultura,
reprimindo embora todas as perigosas heresias. O movimento favoreceu as
manifestações trovadorescas, desabafos de sentimentos essencialmente humanos,
amorosos e saudosistas. Um movimento que, intensificado por vários factores
económico-sociais, inclusivamente pelos Descobrimentos, desaguou no magnífico
estuário a que chamamos o Renascimento (30).
Os cancioneiros galaico-portugueses da Ajuda, de Colocci-_Brancuti e da Vaticana
privam-nos de informação musical além da que fornecem as iluminuras. :,
Segundo Carolina Michªaelis de Vasconcelos (31), é provável que um cancioneiro de
amor, um livro dos cantares de amigo e um cancioneiro de burlas constituíssem, cada
um de *per si*, um *in-folio* com notação musical. Na falta deles, podemos hoje
fazer uma ideia do que eram os cantos dos nossos trovadores através das *_Cantigas
de Santa Maria*, de Afonso-o-_Sábio, de Castela (1226-1284), avô de D. Dinis. São
423 "*cantares de loor de Santa Maria*", como o próprio Afonso X lhes chamou no seu
testamento de 1284 mandando que todos os respectivos livros passassem ao poder da
igreja, onde os seus restos fossem sepultados, e que os fizessem "*cantar en las
fiestas de Sancta Maria*". Guardam-se em livros preciosos, com admiráveis
iluminuras, que talvez sejam posteriores ao reinado de Afonso X. O musicólogo Mons.
Anglès conseguiu decifrar os caracteres musicais das 423 cantigas, prestando
relevante serviço à investigação historiográfica (32).
Pode parecer estranho que trechos de inspiração religiosa, legados a uma igreja,
nos esclareçam quanto à música profana cultivada pelos trovadores portugueses.
Note-se, em primeiro lugar, que os textos das cantigas são em língua
galaicoportuguesa, talvez por ser a que em Castela se considerava o idioma poético
por
excelência. Pertencem incontestavelmente à mesma cultura em que nasceu a poesia
portuguesa e que Afonso conhecera de contacto directo, enquanto vivera na Galiza.
Por outro lado, as cantigas formam uma espécie de compilação enciclopédica,
reunindo todos os géneros de que o monarca teve conhecimento, praticados por
artistas franceses, castelhanos, lioneses, galaico-portugueses, árabes, judeus e
outros. Foram recolhidas por uma equipa de colaboradores, poetas e músicos de nomes
hoje desconhecidos, castelhanos ou de diversas origens, decerto os mais competentes
que o rei encontrou disponíveis. Um ou outro cantar terá sido recolhido, ou mesmo
composto, pelo próprio Afonso X.
Na sua maior parte, as cantigas narram os milagres da Virgem, ou tecem-lhe
louvores. O que, diga-se de passagem, não é incompatível com o ideal trovadoresco,
antes se nos apresenta como interessante e muito castelhana sublimação da dama,
objecto das trovas, na pessoa sobre todas venerada da mãe de Cristo. Mas aparecem
também outros temas, menos adequados à Igreja. E se os textos literários nos
permitem relacioná-los com a arte trovadoresca, o mesmo sucede com a música, que é
o mais de tratar no presente livro.
São linhas vocais monódicas, dobradas por instrumentos, cujos desenhos derivam umas
vezes de maneira nítida do canto gregoriano, outras menos claramente, mas a ele
ligadas pelo seu modalismo, outras ainda revelando origem popular, muito tendentes
para o modo maior moderno e de marcado sabor castelhano. Todos estes caracteres
pertencem à arte trovadoresca, que a moderna musicologia se inclina a admitir como
resultado, não exclusivamente dos tropos da Igreja, nem de costumes franceses, nem
da influência árabe, mas sim de uma combinação de todos estes movimentos,
integrando outros elementos, nomeadamente os folclóricos.
O mais difícil na decifração dos caracteres musicais que se contêm nos livros das
cantigas (excepto um, em que não existem) foi a exacta reconstituição do ritmo.
Neste capítulo subsistem ainda sérias dúvidas. Teóricos medievais codificaram os
diferentes padrões rítmicos que se praticavam, geralmente chamados modos rítmicos e
que se não devem confundir com os :, modos melódicos. Todos eles são ternários e
supõe-se derivarem da métrica da prosódia clássica. Os mais importantes, na música
dos trovadores, parecem ser o trocaico (em símbolos musicais uma mínima acentuada,
seguida de semínima), o iâmbico (semínima acentuada e mínima) e o dactílico (mínima
com ponto, acentuada, semínima acentuada e mínima). Este último, espécie de
sobreposição de ternário e binário conciliável com o moderno compasso 6/4, é o que
Monsenhor Anglès considerou o mais consentâneo com a música e os textos literários
das cantigas.
Outra característica da arte trovadoresca é a variedade formal, associada ao
emprego de estribilhos, talvez por influência do zajal árabe e, sem dúvida,
relacionado com os virelais e baladas de trovadores e troveiros franceses.
*_Ozajal*, ou *zejel*, de que Ibn Kuzman (ou Abén Guzmán, c. 1080-1160) foi um dos
cultores, era já caracterizado pela alternância de um refrão e diferentes estrofes.
Não tinha, porém, certos paralelismos entre estas e aquele, próprios dos *virelais*
e de trechos afins das duas penínsulas que, aliás, também neste aspecto
apresentavam uma considerável variedade formal. Transcreve-se a seguir uma das
*_Cantigas de Santa Maria ("Rosa das Rosas")*, na versão de Monsenhor Anglès. O
modo rítmico é o dactílico, a forma pertence ao tipo da balada e pode assim
esquematizar-se:
Claramente trovadoresca é a 4.a estrofe desta cantiga:
*_Esta Dona que tenno por Sennor
et de que quero seer trobador,
se en per ren poss'auer seu amor,
dou ao demo ou outros amores*.
Rosa das rosas et fror das frores,
Dona das donas, Sennor das Sennores. :,
As mais antigas monódias profanas peninsulares que estão decifradas dizem de algum
modo ainda mais respeito à história da música portuguesa do que as *_Cantigas de
Santa Maria*. São as *_Siete canciones de amor* atribuídas a Martin Codax, trovador
(ou jogral?) da Galiza (33). Conhece-se a música de seis das canções, através de um
documento a cujo valor musicológico se puseram reservas. As monódias contêm três
elementos, um dos quais servindo de estribilho. Talvez as suas semelhanças
aparentes com as preces moçárabes signifiquem uma influência, mais importante do
que em geral se admite, da anterior música hispânica sobre a trovadoresca (34).
Os jograis
Os jograis eram gente de extracção baixa e costumes pouco recomendáveis, que sabiam
tanger instrumentos, fazer sortes de malabarismos e outras habilidades, dançar,
contar histórias, divertir, em suma, as populações das terras por onde andavam. A
sua hierarquia social era inferior à dos nobres trovadores, que os contratavam para
os acompanharem em suas trovas tocando algum instrumento dos que vemos nas
iluminuras dos cancioneiros: alaúde, guitarra mourisca ou latina, rabé (palavra
árabe que denominava um instrumento de arco e que deu o nosso vocábulo *rabeca*),
órgão portátil (com o fole comandado pela mão esquerda do executante, enquanto a
direita premia os comandos, um de cada vez, sem que mais fossem necessários, visto
tratar-se de música monódica), sinfonia (de onde *sanfona*), flauta, trompa,
castanholas, tamborete e outros, de corda, sopro ou percussão. Os jograis não
podiam divulgar as composições dos trovadores seus patrões sem autorização expressa
destes. Como se vê, a ideia dos direitos de autor não é nova (35).
Entre os jograis também se definia uma escala hierárquica, que algumas autoridades
medievais peninsulares se esforçaram por fixar, em defesa dos bons costumes. Um
texto nesse sentido, do século XIII, chama jograis só aos que tangiam instrumentos,
remedadores aos especialistas em imitações, *segrieres* (grau intermédio entre
trovador e jogral que parece ter sido exclusiva pertença galaico-portuguesa) aos
que se apresentavam nas cortes e *cazurros* aos mais falhos de boas-maneiras, que
recitavam sem sentido e ganhavam a vida, com pouca honradez, por praças e ruas das
povoações. Nenhum destes podia confundir-se com o trovador, que sabia trovar verso
e música, fazer danças, coplas e baladas. O verdadeiro trovador, aquele com direito
a ser chamado "*don doctor de trobar*", deveria compor versos perfeitos e de bom
ensinamento, mostrar os caminhos da honra, da cortesia e do dever, declarando os
casos duvidosos.
Os jograis dependiam até certo ponto dos trovadores, que lhes pagavam para os
acompanharem e louvarem suas composições. Mas também tinham outras fontes de
receita, inclusivamente em festas de igreja em que participavam. Aquela
diferenciação entre jograis propriamente ditos, remedadores, segréis, etc., está
longe de ser completa. Poderíamos distinguir :, entre jograis cristãos, mouros e
judeus, ou entre leigos e religiosos, e lembrar que também mulheres entraram nessas
diversões como *jogralezas* ou *soldaderas*. Mais útil é talvez sublinhar que os
diferentes tipos de jograis se mesclavam e que as distinções entre eles só eram
compartimentos estanques na letra dos que queriam submetê-los a regras.
Esse empenho, pressupondo uma certa aversão e, ao mesmo tempo, um não querer (ou
não poder) acabar com a joglaria, traduz a sua importantíssima e múltipla função na
sociedade medieval. O próprio S. Tomás de Aquino reconheceu a utilidade dos
histriões, uma vez que as diversões também são necessárias ao homem. Para não
pecar, o histrião deveria no entanto ser discreto, usando moderadamente dos seus
jogos e poupando-se a ditos inconvenientes. Os Jograis, além de divertirem reis e
senhores, eram portadores de notícias. Traziam-nas e levavam-nas, faziam óptima
publicidade, se bem lha pagassem, divulgando os grandes feitos dos monarcas (por
isso os chamados *jograis de gesta* foram tidos em muita conta), as belezas dos
países, os esplendores dos reinos. Também podiam ser terrivelmente mordazes,
principalmente os imitadores e cazurros, que há pouco vimos classificados abaixo
dos outros. Mas a esses também couberam lugares nas cortes, como bobos.
Os jograis constituíram assim uma espécie de imprensa medieval, desempenhando
funções que mais tarde viriam a ser de jornais e revistas, com suas secções
políticas, sociais, religiosas, noticiosas, publicitárias e humorísticas. Para que
o paralelo seja perfeito, até censura houve (36): uma ordenação real francesa, de
1395, proibiu aos autores de canções "*et a tous autres ménestriers de bouche et
recordeurs de ditz*" que, nos seus ditos, rimas e canções, falassem do papa, do rei
ou dos senhores de França, relativamente a questões da Igreja.
Na corte dos reis medievais portugueses, abundaram trovadores e jograis. Houve-os
já na de Afonso Henriques, que decerto aprendera na de seus pais a apreciá-los e
tirar deles proveito. Há uma tradição segundo a qual o nosso primeiro rei teria
recebido na sua corte o afamado trovador francês Marcabru. Em 1193, D. Sancho I dá
um casal aos dois jograis irmãos Bonamis e Acompaniado, que reconhecem num termo
escrito: "nos, mimi supra nominati, debemus domino nostro regi pro roborationi unum
arremedillum." ("nós, mimos acima mencionados, devemos ao senhor nosso rei um
arremedilho para efeito da ratificacão"). Note-se a denominação de mimi (plural de
*mimus*), a mesma dos actores ambulantes, que, como vimos, andaram pela Península
desde muito tempo antes da época trovadoresca.
Nos reinados seguintes, mantêm-se os costumes trovadorescos e jogralescos. Tinha a
monarquia portuguesa cerca de um século quando nela se decretaram as primeiras
ordenações de que temos conhecimento, limitando o número de jograis que o rei podia
sustentar entre a sua criadagem, cujos cantares e execuções em instrumentos se
contavam entre os folguedos de que os monarcas necessitavam para alívio "de pesares
e de cuidados". No ano de 1258 o regimento da casa real de D. Afonso III estabelece
que o monarca mantenha na sua corte três jograis apenas e fixa em cem maravedis o
máximo que poderia dar a jogral ou segrel que viesse, a cavalo, de outras terras.
Não devia haver nenhuma soldadera permanente no palácio, e as que :, estivessem de
passagem não poderiam demorar mais de três dias. Outra disposição, esta de 1261,
fazia que, quando uma soldadera fosse convidada a comer em casa do rei, não levasse
consigo sua manceba ou criada, nem algum homem que a acompanhasse.
Regulamentações curiosas emanaram do concílio de Valhadolide de 1228, que proibiu
aos clérigos a companhia de jograis. Embora no nosso reino a orientação das
autoridades eclesiásticas não pudesse ser outra, por certo não conseguiu impor-se
completamente, porque um bispo de Silves, cento e poucos anos depois, aponta mimos,
jograis, bufões, etc. entre os membros corrompidos da Igreja. Não podemos duvidar
de que também em Portugal houvesse clérigos dados à vida jogralesca. Mas esses
"escolares vagabundos" ou goliardos não deixaram na Península nenhum traço
semelhante aos *_Carmina Burana*.
Poderíamos, à míngua de dados musicais, espraiar-nos em aspectos e episódios
ligados à arte de trovadores, segréis, jograis, menestréis, bufões, soldaderas,
goliardos e todos quantos -- aspectos e episódios muito interessantes e pitorescos,
mas incomportáveis no presente trabalho (37). Quanto à música, resta-nos arriscar
alguns comentários forçosamente apoiados na muito mais documentada investigação
literária.
Presumíveis particularidades galaico-portuguesas
É de admitir que a arte musical de trovadores e jograis galaico-portugueses fosse
mais simples do que a dos seus colegas vizinhos dos Pirenéus. As formas dos seus
cantares seriam menos elaboradas do que as dos afamados cultores estrangeiros, que
deviam ser solicitados por todas as cortes e haviam de preferir queda -se pela de
Castela e outras a aventurar-se em mais longas viagens, eriçadas de perigos e não
compensadas pelos pagamentos. Já aqui entra o factor geográfico, influente na
história da música portuguesa.
Podemos, portanto, presumir uma invenção musical muito chegada ao canto gregoriano,
com os seus modos melódicos, cingida aos modos rítmicos ternários mais singelos e,
por outro lado, próxima dos cantos e bailes populares. Se assim era, devemos
lamentar principalmente a falta de documentos que nos dessem destes últimos
exemplos, lançando alguma luz sobre o primitivo folclore musical português. A
simplicidade formal não implica todavia desvalor artístico, e nada nos obriga a
atribuí-lo aos nossos cantores e tangedores medievos, alguns dos quais, como certo
Lourenço amigo de polémicas, se encarregaram de enaltecer os seus próprios méritos.
Primeiras manifestações de orgulho e vaidade que não ficarão únicas nos oito
séculos e pico de música portuguesa.
Eis uma tenção de maldizer em que o jogral Lourenço, ao serviço do trovador galego
João Garcia de Guilhade, responde ao ridicularizante menosprezo do patrão, levando
este a ameaçá-lo de lhe partir o citolão na cabeça:
-- Lourenço jograr, ás mui gram sabor [gosto]
de citolares, ar queres cantar
dês i ar filhas-te log'a trobar,
e té est'ora já por trobador.
E por tod'esto üa rem [coisa] ti direi:
Deus me cofonda se oj'eu i sei
destes mesteres qual fazes melhor.
-- Joam Garcia, soo sabedor
de meus mesteres sempre deantar
e vós andades por mi os desloar,
pero nom sodes tam desloador
que com verdade possades dizer
que meus mesteres nom sei bem fazer.
Mais [mas] vós nom sodes i conhocedor.
-- Lourenço, vejo-t'agora queixar
pola verdade que quero dizer:
metes-me já por de mal conhecer,
mais [mas] eu nom quero tigo polejar.
E teus mesteres conhecer-tos-ei,
e dos mesteres verdade direi:
ess'é que foi com os lobos arar.
-- Joam Garcia, no vosso trobar
acharedes muito que correger,
e leixade-mi, que sei bem fazer
estes mesteres que fui começar.
Ca'[pois que, porque] no vosso trobar, sei-m'eu com'é:
i á de correger, por boa fé,
mais que nos meus, em que m'ides travar.
-- Vês, Lourenç'ora m'assanharei,
pois mal i entenças, e todo farei
o citolom na cabeça quebrar.
Joam Garcia, se Deus mi perdom,
mui gram verdade dig'eu na tençom
e vós fazed'o que vos semelhar. (38)
No último verso, o jogral Lourenço insinua que o ruído da instrumental agressão
havia de ser parecido com os sons de que João Garcia de Guilhade fazia a sua arte
de trovar. É claro que o verbo *citolar* significava tanger *cítola*, instrumento
da família das guitarras, de corpo em forma de pêra e cordas metálicas, dedilhadas
ou tocadas com plectro. Dentro da terminologia trovadoresca, *citolom* (citolão)
tem sido interpretado como forma pejorativa de cítola. É no entanto possível que o
aumentativo correspondesse às dimensões do instrumento e ao maior número de cordas.
:,
A importância do estado ou classe social não se reflectia só na distinção entre os
trovadores e os jograis. Numa cantiga de maldizer, D. João Soares Coelho mostra bem
como o saber trovar não bastava ao mesmo João Garcia Guilhade para poder dirigir-se
em verso e música a damas de alta condição:
Joam Garcia tal se foi loar [gabar]
e enfenger que dava sas doas [presentes, dádivas]
e que trobava por donas mui boas [de grande categoria social],
e oí end'o meirinho queixar,
e dizer que fará, se Deus quiser,
que nom trobe quem trobar nom dever
por ricas donas, nem por infunçoas.
Por outro lado, mulheres insuficientemente graúdas não podiam ser objecto da
inspiração dos trovadores de coturno. Contra o que as visadas não deixavam de
protestar:
E oí noutro dia eu queixar
üas coteipas [mulheres de baixa condição] e outras cochoas [porcas]
e o meirinho lhis disse: -- Varoas,
e nom vos queixedes, ca [porque], se eu tornar,
eu vos farei que nenhum trobador
nom trobe em talho [a preceito, em boa forma], se nom de qual for,
nem ar trobe por mais altas pessoas;
Trovador e dama tinham, portanto, que ser do mesmo nível social. Deve ter sido
principalmente a este que D. João Soares Coelho se referiu ao destacar os "melhores
trobadores". O critério da fidalguia medieval, em matéria de hierarquia artística,
não se extinguiu entretanto por completo, com o andar do tempo. Ocorre lembrar
aquele aristocrata que definiu Beethoven como "músico de talento, mas
*ordinarote*".
Ca manda 'l-rei, por que á em despeito
que trobem os melhores trobadores
polas mais altas donas e melhores,
e tem assi por razom com proveito;
e o coteife que for trobador
trobe, mais [mas] cham'a coteifa senhor,
e andaram [andarão] os preitos com dereito.
Havia código jurídico aplicável, como se vê. E tão pouco escaparia à pena o vilão
que, em trovas, tratasse a mulher por senhora:
E o vilão que troubar souber,
que trob'e e chame senhor sa molher,
e averá cada um seu dereito. :,
Está claro que não era só, nem principalmente, nos domínios da poesia e da música
que o rei exigia comportamentos individuais conformes às respectivas classes. No
princípio do século XIV, cerca de cem anos depois da escritura destes versos, os
nobres que, para não morrerem de fome, se dispuseram a trabalhar como se fossem
vilãos, viram-se condenados a não ter "honra de filhos de algo" enquanto não
fizessem "vida de filhos de algo". Quanto aos vilãos que se atrevessem a fazer vida
de fidalgos, para esses, desde longa data havia penas estabelecidas e de efeito
mais corporal.
Muito interessante seria sabermos se práticas poéticas supostas características da
nossa cultura trovadoresca e jogralesca corresponderiam a particularidades
musicais. Haveria alguma coisa de específico na música para cantares de amigo, de
escárnio e mal-dizer, ou para a maneira sugestiva por que histriões portugueses e
galegos chamavam as pessoas do auditório a partilharem de seus sentimentos
("senhores", "varões", "eu vos direi", "amigos, direi-vos mais...")? Teriam essas
fórmulas literárias correlações na música (39)?
Em Portugal a arte trovadoresca floresceu ainda depois de, em França e algumas
regiões espanholas ter entrado em decadência. Basta citar D. Dinis, que viveu os
últimos vinte e cinco anos da sua vida já no século XIV. O desfasamento da nossa
música em relação às mais actualizadas estrangeiras é outra consequência da posição
geográfica que, aliada a diferentes factores, virá a produzir-se reiteradamente até
os nossos dias, com exemplos frisantes na polifonia do século XVII, na introdução
da ópera e, mais tarde, do estilo clássico vienense, no nacionalismo serôdio de
fins de Oitocentos, e no hodierno alheamento do dodecafonismo serial, da música
concreta e da electrónica. Nem sempre foi, ou é, um mal de lamentar, mas
desfavoreceu por certo muitos possíveis movimentos de interesse e debilitou a
vitalidade dos que vingaram (40).
Se bem que a arte trovadoresca e jogralesca tenha decaído, nunca de todo se
dissolveu a sua tradição ao longo da segunda dinastia. Situam-se na sua linha
muitas das mais representativas manifestações poético-musicais renascentistas.
CAPÍTULO III
ENTRE IDADE MéDIA E RENASCIMENTO
Manifestações precoces do espírito renascentista.
A música polifónica.
Nenhuma distinção entre períodos contíguos da história pode fazer-se a corte de
faca. Não é possível dizer onde acaba a Idade Média, onde começa o Renascimento na
história da música portuguesa. E, para compreendermos que se trata de estados
culturais diferentes, na sucessão do *continuum* evolutivo, é mister sair um pouco
do domínio musical e dos limites geográficos da nossa terra.
O alto medievalismo -- os séculos XI a XIV e princípios do seguinte -- não foi uma
idade de trevas. Os anos 200, em especial, constituíram uma época brilhante da
cultura europeia, com muito da ânsia de conhecimento que virá a ser vincada
característica renascentista. Esse florescimento intelectual, que aliás tinha
precedentes já no primeiro milénio da nossa era, resultou em grande parte da
necessidade de prover a administração pública de pessoal competente, liberto, até
certo ponto, da supremacia mental eclesiástica. Por isso assume tanto destaque o
estudo do Direito, meio de defesa de uma sociedade em crescimento, onde uma nova
classe de burgueses vai tomando vulto.
Um dos outros estímulos da curiosidade deram-no as cruzadas, com os consequentes
contactos com regiões, povos, culturas, fenómenos, usos e costumes que não os
habituais e conhecidos -- um processo que, em mais larga escala e com maiores ecos,
havia de reproduzir-se por acção dos descobrimentos marítimos, contribuindo para a
alta maré renascentista, de maneira a mais evidente no que toca a Portugal.
Nas radiações desse esplendor ainda medieval se enquadraram as primeiras
universidades -- radiação que, no domínio da música, teve seu principal foco na
França. Uma boa administração presidiu, em geral, aos destinos do reino até D.
Afonso IV. Mas as limitações que lhe eram inerentes impediram o progresso de
actividades não vitais. Se a música polifónica não conheceu, na nossa primeira
dinastia, lustre nem de longe semelhante ao de Notre-_Dame, em Paris, não há por
isso que censurar muito os reis portugueses, cujo dever era poupar para suprimento
das primeiras necessidades dos seus súbditos. A área produtiva do território era
pequena, :, desfavorável a situação geográfica, difíceis os transportes, constantes
e graves os problemas político-militares, exíguos os recursos económicos.
Na verdade, não conhecemos hoje traço de floração polifónica nesse período. E, se
bem que possa admitir-se a prática da polifonia incipiente em Portugal, muito antes
dos primeiros documentos insofismavelmente comprovativos (parece que o *organum*
era conhecido em mosteiros espanhóis desde o século IX), são dignas de especial
atenção as notícias de que D. Dinis fundou em 1299 a Capela Real, D. Afonso IV
elevou em 1339 para 10 o número de cantores que deviam cantar-lhe diariamente a
Missa na mesma Capela e D. Fernando teve ao seu serviço o polifonista francês
Jehean Simon de Haspre (também conhecido por Hasprois), para quem pediu em 1378 ao
papa Clemente VII o benefício de S. Martinho de Sintra e ainda a notícia de Azurara
de uma cerimónia em Ceuta, em 1415, na qual os infantes reais foram armados
cavaleiros e, em certo momento "*começaram todolos clérigos em alta voz Te Deum
laudamus* muy bem contraponteado, *em fim de qual fizeram todalas trombetas huma
soada [...]*".
Motivo do atraso musical pode também ter sido a preponderância da austera Ordem de
Cister, contrastante com o gosto ornamental da de Cluny. Atribui-se-lhe a ausência
de tropos, sequências, *organa*, dentro das práticas musicais religiosas. No
entanto, houve em Espanha o intenso foco cisterciense de Las Huelgas, trazendo à
Península a arte polifónica francesa, inclusivamente já a da *_Ars Nova*, de
mistura com influências locais, trovadorescas e populares. Em 1217 o capítulo-geral
da Ordem detister informa que nas abadias de Dore e Tinter se cantava a três e
quatro vozes, segundo uso profano (41).
A Universidade
Em 1290 D. Dinis oficializou o Estudo Geral de Lisboa, no seguimento de diligências
junto do papa, começadas uns dois anos antes, movidas pelo interesse de algumas
comunidades eclesiásticas. Foi o princípio da Universidade, em cuja vocação cabia a
música (42).
Onde quer que na Europa haviam surgido *estudos gerais*, o anterior ensino da
música fora ministrado principalmente em grandes mosteiros. Isto desde muito antes
da fundação do reino de Portugal. No século XII, um movimento de retorno ao ideal
ascético das ordens de Cluny e de Cister diminuía essa acção pedagógica, reduzindoa
a fins práticos. Mesmo depois de as normas de austeridade terem voltado a
abrandar, a tendência foi para concentrar os estudos teóricos (*especulativos*),
nas escolas catedrais. Portanto, além de manterem a tradição gregoriana de *schola
cantorum*, estas asseguraram a formação teórico-musical de clérigos e de leigos
nobres, habilitados a, ou interessados em, estudos mais profundos (43).
Em Portugal as escolas-catedrais desenvolveram-se tarde e não atingiram brilho
comparável ao das mais notáveis congéneres estrangeiras. No princípio do século
XIII, as poucas escolas monásticas, as mais importantes :, das quais eram as de
Santa Cruz de Coimbra e de Alcobaça, sofriam de atraso e falta de estatura
cultural. Perto do fim do mesmo século, aquelas duas comunidades e outras (S.
Vicente de Lisboa, Santa Maria de Guimarães) solicitaram autorização de Roma para
empregarem parte dos seus rendimentos num *studium generale*. Um dos motivos
invocados foi o elevado custo da formação de pessoal eclesiástico longe do reino,
acrescido dos inconvenientes de outra ordem.
Portanto, também em Portugal o novo Estudo foi criado como instituição onde, pelo
menos em princípio se ministrava, com maior abertura a leigos, um ensino musical
anteriormente circunscrito à Igreja-_Ensino que não devia ser exclusivamente
prático (formação de cantores), visto que as maiores autoridades do saber medieval
tinham estabelecido que o conhecimento teórico da música era necessário à
compreensão das Escrituras.
A divisão da música em *especulativa* e *prática* reveste fundamental importância
no plano pedagógico das universidades, no século XIII e seguintes. A música
especulativa ligava-se à matemática e à astronomia. Era a mais exigente de
conhecimentos e inteligência. Constituía uma das *artes liberais* unidas no
*quadrívio*. Aquilo que nela se ensinava provinha de escritos tão longínquos quanto
indiscutíveis, designadamente os de Boécio e de Guido d'_Arezzo.
É certo que as sete artes liberais (as do *trívio* e as do *quadrívio*) se situavam
ao menos elevado nível académico das universidades medievais. Mas, por isso mesmo,
a sua importância foi enorme. Todos os estudantes tinham, em regra, que passar por
elas. É claro que muitos ficavam pelo caminho. Porém, àqueles que pretendiam
formaturas superiores -- em Leis, em Medicina, em Teologia -- exigia-se o
bacharelato em Artes. E, em princípio, todos aqueles que passavam do *trívio* ao
*quadrívio* tinham que aprender música especulativa.
Quanto à música prática, também ela entrou muito na vida universitária de então.
Música prática era afinal em poucas palavras, aquela que funcionava mesmo como
música. Era a que se cantava, e se tocava e se dançava. Era a que se *ouvia*, na
acepção plenamente sensorial do termo.
Podia haver música prática nas aulas. Havia-a sobretudo fora delas, em
circunstancias especiais. Nas ocasiões solenes e festivas, a começar pela abertura
do ano lectivo, eram missas cantadas. E também fanfarras de trombeteiros e outros
tanjedores. Podia tratar-se do convite, feito através das ruas, para uma cerimónia
de investidura académica. Ou do trajecto dum novo doutor, terminado o acto em que
recebeu o título.
Dentro do carácter corporativo que as universidades em grande parte tinham, também
acontecia determinado grupo de estudantes contratar músicos para lhe prestarem
serviços. Por exemplo, os membros da "*nation*" alemã da Universidade de Paris
pagaram a um organista para tocar em missas e vésperas. Menos devota era a tradição
de Salamanca, segundo a qual até o mais pobre dos estudantes tinha obrigação de
arranjar cantantes e um guitarrista para homenagear com uma serenata a verdade dos
seus sonhos.
Pela proximidade de Portugal, Salamanca merece-nos maior atenção. Fundada em 1215,
a universidade parece ter sido a primeira no mundo a :, instalar a música numa
cátedra própria. Segundo rezam os estatutos promulgados por Afonso X em 1254, havia
um "*maestro en órgano*", com o vencimento de 50 maravedis (44).
Este era o menor de todos, cabendo o maior aos professores de Direito. A palavra
*órgano* significava provavelmente ciência da música polifónica. Em 1411 a
universidade foi reformada e ampliada. Entre as 25 "*cátedras de propriedad*"
figurava uma de música. Segundo um estatudo de doze anos depois, os lentes dessas
cátedras tinham que ser doutores ou mestres, exceptuados os de Astrologia, Música,
Retórica e Línguas, que podiam ser apenas bacharéis.
É modesta a organização docente da universidade portuguesa medieval. O regimento de
1309 fala-nos de cinco professores para outras tantas cadeiras; em 1400 o número de
lentes sobe a catorze. Antes, em Paris, já eram mais de cem os que ensinavam as
Artes, sem falar das outras disciplinas universitárias. Quanto à Música, o seu
ensino na universidade fundada por D. Dinis é possível que tenha sido tardio, muito
atrasado em relação a outras, inclusivamente a de Salamanca. Sabe-se que em 1323,
trinta e cinco anos depois da fundação, D. Dinis concedeu 65 libras ao professor de
Música da Universidade. Note-se que um professor de direito podia receber quase dez
vezes mais. Não havia diploma para os alunos formados na cadeira, o que deixa supor
a diminuta utilidade prática do curso no meio português de então (45).
A universidade, que mudou mais do que uma vez de Lisboa para Coimbra e vice-versa,
funcionou em precárias condições de instalação, mormente na cidade de origem. E,
apesar de ter constituído um meio de promoção sociocultural, não acabou com as idas
de estudiosos para fora do reino. Por um lado, um título académico obtido no
estrangeiro deve ter sido considerado mais prestigioso. Por outro lado, havia
certamente casos em que se tornava indispensável a aprendizagem noutro país.
No campo da música, o Estudo Geral pode no entanto ter revestido maior serventia do
que deixam supor os documentos hoje conhecidos. Era costume, no âmbito das
universidades medievais, pessoas suficientemente aptas nalgum ramo da teoria e da
prática, nomeadamente clérigos, darem lições dessas matérias fora do ensino
oficial. As lições eram pagas pelos alunos directamente aos professores, em regime
particular. Estes podiam inclusivamente ser estudantes necessitados, que ensinavam
colegas menos iniciados na arte dos sons ou pessoas da nobreza e da burguesia
interessadas em aprender a cantar ou a tanger algum instrumento. O mais natural é
que tais lições incidissem muito pouco sobre música especulativa. Além do mais, nem
todas as necessidades da Europa exigiam o estudo exaustivo da música, como
disciplina do *quadrívio*. E não se vê razão para um grande rigor a este respeito
no Portugal do século XIV.
Os últimos reinados da dinastia não foram de molde a fomentar o incremento da arte
musical sapiente, isto é: polifónica. Antes pelo contrário. No caso de D. Pedro I,
a própria índole do monarca se lhe opunha. Os seus músicos preferidos eram uns tais
João Mateus e Lourenço Palos, que tiravam sons estridentes de trombetas de prata.
Um visitante inglês, Sir Matthew Gournay, foi banqueteado por D. Pedro e teve a
desagradável :, experiência de ouvir os seus barulhentos menestréis. Para o
acalmar, o rei convocou dois outros músicos, mais suaves, tangedores de guitarra,
segundo consta (46).
Novas aragens da dinastia de Avis
É muito verosímil que a ligação de D. João I com a casa inglesa de Lancaster e,
depois, o casamento de sua filha, D. Isabel, com o duque de Borgonha tenham dado
novos e fecundos impulsos à música em Portugal. Talvez a influência inglesa
reflicta já o pormenor, menos insignificante do que parece, de as senhoras terem
tido pela primeira vez lugar num banquete por ocasião dos festejos pelo casamento
de D. João com D. Filipa. Por essa altura houve grandioso cortejo, indo à frente as
pipias (47) e as obrigatórias trombetas, muitos outros instrumentos fazendo por
certo uma curiosa algazarra -- "tantos, que se não podiam ouvir" --, e, depois, as
fidalgas e burguesas casadas, cantando em conjunto, como era costume das bodas.
Depois do banquete nupcial, levantaram-se as mesas e começaram os convidados a
dançar ao ritmo de singelas canções que, sentadas num baixo estrado ao redor da
sala, as senhoras casadas cantavam. O fim de festa foi o passeio das tochas, dança
habitual nas bodas. Cavaleiros e escudeiros, com suas damas e todos levando nas
mãos tochas acesas, procuravam apagar as dos outros pares e evitavam que lhes
apagassem as suas, entre brincadeiras e risos, ao som de música.
Durante os lautos banquetes a música era obrigatória, estando os executantes
enquadrados pelas mesas, que, segundo o uso medieval, corriam paralelas às paredes
e não longe delas. Os *mets* eram os diferentes pratos da ementa. Aos divertimentos
que decorriam nos intervalos chamavam, por isso, entre *mets*, de onde a palavra
*entremez* corresponde ao *intermezzo* italiano. As iguarias eram trazidas em
grande pompa, com trombetas, atabales e o corpo dos menestréis à frente. Depois,
eram os posteiros com as suas maças de prata, seguidos dos passavantes, arautos,
etc.
Os entremezes podiam representar episódios de inspiração religiosa ou profana, com
pantomima dos jograis no meio da sala. O programa também podia incluir sortes de
cavalaria, pelos mais destemidos guerreiros, com corcéis e cavaleiros de carne e
osso junto dos comensais. Quando do consórcio de D. Isabel com o duque de Borgonha,
houve ceia de grande estilo no Paço da Alcáçova, em Lisboa, ordenada por D. João I.
E sabemos que "nesta ceia deu o senhor infante primogénito grandes dádivas e
larguezas aos frautistas e menestréis, as quais foram trazidas a cavalo, e
altamente publicadas por toda a sala; e tocaram mui concertadamente as trombetas e
outros instrumentos".
Os músicos, que constituíam uma profissão homologada e que, chamando-lhes
*tangedores*, D. Duarte mencionará no seu *_Leal conselheiro* entre os "que usam de
algumas artes aprovadas e mesteres" -- físicos (médicos), "cellorgiães"
(cirurgiões), marchantes, armeiros, ouriços... --, e "aos quais :, convém bem e
lealdade e com devida deligência usar de sua boa maneira de viver", os músicos,
íamos dizendo, não eram apenas chamados ao serviço do rei. Desde muito antes,
outros senhores da nobreza os tiveram permanentemente, como, por exemplo, o conde
de Barcelos, filho bastardo de D. Dinis. D. Nuno _álvares Pereira também teve
músicos para seu serviço privado: "trazia mui honrada capela e guarnida de
ornamentos e vestimentas e bons clérigos e cantores os quais sempre eram prestes."
(Fernão Lopes).
A música em função da estrutura social
Sabendo-se a importância que a burguesia assumiu na resolução da crise da sucessão
de D. Fernando, pode parecer estranho o quase total silêncio a que foi votada nos
parágrafos acima. Portugal teve, desde cedo, uma classe de comerciantes, mercadores
em grande parte ligados ao negócio marítimo. A sua influência aumentou sem dúvida
ao longo da dinastia afonsina, mas seria errado admitir que lhe correspondeu, já no
princípio da de Avis, uma cultura musical específica. O seu nível intelectual e a
sua sensibilidade artística não a diferenciavam ainda do povo propriamente dito.
Por outro lado, entre burgueses e nobres existia uma diferença social. Quando D.
João I teve de fazer concessões aos que, possuidores de bens e estando interessados
na derrota de Castela, o ajudaram a subir ao trono, o que se deu não foi, nem
poderia ser, a emancipação social de toda uma classe, mas sim um processo de
alargamento do quadro da nobreza, cujo período de adaptação deve ter tido aspectos
cómicos, se não indignantes, aos olhos dos nobres de antiga linhagem. Diz-nos
Fernão Lopes: "Parece se levantou outro mundo novo, e nova geração de gentes,
porque filhos de homens de baixa condição [...] por seu bom serviço e trabalho
neste tempo foram feitos cavaleiros [...] de guiza que por dignidades humanas e
ofícios do reino montaram tanto ao diante [...] que hoje em dia [...] são tidos en
gran conta." (48)
Como íamos dizendo, não obstante o vulto que tinham já as transacções comerciais
com outros países (havia habitualmente de 400 a 500 navios no porto de Lisboa,
sendo, em grande parte, naus mercantes) e o concomitante progresso da classe média,
esta não tinha, e não viria a ter tão cedo, uma expressão musical própria. Sem
embargo, os municípios, instituições administrativas que interpretam os interesses
dos burgueses (não apenas os comerciantes), tiveram também os seus músicos
contratados para as comemorações e folganças. Simplesmente, os sons das trombetas e
atabales, das charamelas e cornetas não eram diferentes dos que se destinavam à
nobreza.
A propósito, convém salientar que até o Renascimento se mantiveram em Portugal
pitorescos costumes de contactos sociais característicos da Idade Média. D. João
II, quase já no século XVI, ainda comia na presença de quem quisesse entrar na
porta franca da sala. Segundo o testemunho de um visitante alemão, quando não havia
convidados à mesa, o nosso "Príncipe Perfeito" não se servia de facas se não dos
dentes, e partia "com as mãos o pão, como faria el-rei de Polónia, ainda que
tivesse faca junto de si". Estes :, e outros sinais que nos chegam, de atrasos em
relação a outras cortes, são coerentes com a preponderância permanente, na música
portuguesa da transição para o Renascimento, das estrepitosas soadas de trombetas,
tambores, sacabuxas, etc.
*_Nobreza* (incluindo a corte régia)
*_Música profana*
Arte trovadoresca e arte jogralesca (resíduos do passado).
Fanfarras de pompa e circunstância (trombetas, sacabuxas, charamelas, atabales,
tamborins e outros instrumentos).
Música de câmara, vocal-instrumental, provavelmente de carácter polifónico e com o
emprego, além de instrumentos de corda, de manicórdios ou talvez cravos
rudimentares. Danças de nobres, ou de plebeus contratados. Mímica.
*_Música religiosa*
Cantos litúrgicos, ou outros tradicionais. Raramente outra música, talvez
polifónica.
Em ocasiões solenes. fanfarras.
Eventualmente, representações alusivas a episódios como o da Natividade ou da
Paixão.
*Outras classes sociais*
*_música profana*
Arte jogralesca, fanfarras, bailes populares em feiras e outras festividades,
amiúde promovidas pelos municípios.
*_música religiosa*
As mesmas práticas, mas com menor aparato longe dos centros populacionais
importantes ou das residências senhoriais.
Antes de abandonarmos por um momento essa *música alta*, que nos sugere curiosos
quadros da vida medieval, tem interesse notar que ela teve ainda continuação no
século XVI e que as *entradas* ou fanfarras altissonantes que serviam de início a
alguma cerimónia de relevo talvez tenham sido as verdadeiras precursoras da
*tocata* barroca. Alguns musicólogos inclinam-se hoje a aceitar este ponto de
vista, que valoriza a comparticipação ibérica para o fulgor da música instrumental
italiana. Um dos dados concretos em que esses investigadores se baseiam é a famosa
"*_Tocata*" do *_Orfeu*, de Monteverdi, na qual vêem uma descendente das *entradas*
hispânicas (49).
_à *música alta* contrapunha-se outra, de limitada amplitude sonora. Também esta
não era exclusiva da classe nobre, ainda que nela se cultivasse mais, dentro da
tradição trovadoresca, mas, possivelmente, já de carácter polifónico. D. João I de
Aragão, em 1387, faz citação muito de notar de um "instrumento chamado exaquier",
que desejava possuir, talvez primeira relação peninsular com um instrumento de
cordas e teclas do tipo do cravo e da espineta. Esse cravo rudimentar era
considerado propício a fazer soar nele as estampidas que certo menestrel de órgãos
tinha anotadas para comprazimento do rei.
O infante D. Fernando aprendeu a tanger harpa. Seu irmão D. Henrique, na carta para
o rei seu pai a relatar o casamento de D. Duarte em Coimbra, diz que, no decorrer
das festas, a noiva, infanta D. Leonor de Aragão, cantara acompanhando-se ao
manicórdio: "e louvo muito o cantar da Sr.a Infante, et o tanger de manicorde." Era
este outro instrumento de cordas e teclas, mas precursor do clavicórdio. O próprio
rei dito "de boa memória", no *_Livro de montaria*, afirmou que, quando estava
cansado, sentia prazer em "ouvir os mui doces tangeres que fazem os instrumentos"
ou em "tomar una formosa dona ou donzela pela mão e dançar com ela" (50).
Também na dança se distinguia a *baixa* da *alta*, segundo a música que estabelecia
o ritmo, elevando-se os pés do chão mais na segunda do que na primeira.
Convém esclarecer que a *música alta* era corrente em todas as cortes europeias da
época e que também em Portugal ela coexistiu com a música de *instrumentos baixos*,
como as flautas, os cromornes ou as cornemusas. A evolução para uma expressão
musical mais subtil, mais elegante, mais civilizada fez-se em termos dum
progressivo refinamento da escrita, que em teoria não implicava uma redução do
volume sonoro dos meios instrumentais. Só que, na prática, a falta de
aperfeiçoamentos técnicos, que vieram muito mais tarde, tornava em geral impossível
dar aos novos requintes da composição uma amplitude acústica relativamente grande.
O órgão, classificável como *instrumento alto*, constituía um caso de excepção, o
que provavelmente concorreu para o prestígio ímpar de que usufruiu, abonado pela
Igreja.
No período a que nos estamos referindo, a paisagem musical portuguesa desenha-se
sobre o esquema indicado na página anterior.
De notar é que não havia manifestações puramente musicais. A música era elemento
ainda não emancipado. Era ornamento indispensável de toda e qualquer festa, mas
misturada com outras artes e divertimentos. Também não existia uma diferenciação
nítida entre géneros musicais em função dos instrumentos. Assim como o minério
impuro precede o metal isolado, fruto do engenho e do progresso, assim também a
mistura de artes e sortes antecede a pura poesia, ou a dança, ou o teatro, ou a
música, produtos de culturas evoluídas. Pode dizer-se um longo processo de
diminuição de entropia todo o que, na música europeia, se realizou desde a Idade
Média até a organizada diferenciação barroca, atravessando a formosa inflorescência
renascentista. :,
"Ars Nova" em Portugal?
Em princípios do século XIV, surgiu no panorama musical europeu uma arte viçosa e
diferente da anterior. A *_Ars Nova* -- assim lhe chamou um dos seus teóricos,
Philipe de Vitry, bispo de Meaux -- não foi produto de pura invenção, nascida
dentro das quatro paredes de um gabinete. A teoria que então se codificou teve
funções de ordenadora de práticas já em uso, o que não significa, evidentemente,
que a isso se tivesse limitado; houve também a formulação *a priori* e até o
cerebralismo excessivo, não sem parecença com o hodierno dodecafonismo serial. Como
geralmente sucede, o teórico Vitry não foi, ele próprio, o maior artista na
aplicação das suas directrizes modernas (51).
Em resumo, a *_Ars Nova* consistiu no emprego de ritmos binários -- a que chamaram
*imperfeitos*, contrapondo-os aos ternários, *perfeitos*, que, como vimos, antes se
usaram sistematicamente, firmados em vários arrazoados curiosos, entre os quais o
da correspondência com a Santíssima Trindade; na cristalização de certas formas
profanas, já diferenciadas das trovadorescas, embora aparentadas ainda com elas (o
*virelai*, a *balada*, etc.); na aplicação à música profana de progressos
polifónicos realizados no âmbito eclesiástico, envolvendo vozes e instrumentos; e
na introdução de maior número de acidentes (sustenidos e bemóis), mormente nas
cadências, ou finais de frase musical.
No domínio da música religiosa, a *_Ars Nova* especula uma técnica de sobreposição
de melodias, litúrgicas ou não, em latim ou em vernáculo. Mas a sua essência era
profana, corria portanto paralela a uma das linhas de força da cultura coetânea e
continha marcas prematuras mas nítidas do Renascimento. Não lhe faltaram sequer o
interesse pela Antiguidade e, por outra banda, uma certa permeabilidade ao elemento
popular (52).
O maior vulto da *_Ars Nova* foi, incontestavelmente, Guillaume de Machault, cónego
de Reims, que tinha viajado muito e que, já encanecido, se prendeu de amores por
uma jovem, Pérone. Com o seu contemporâneo Petrarca, foi poeta do amor. Enalteceu
os encantos femininos, e essa galantaria é o fundo de todas as suas baladas,
*virelais*, rondós, canções reais. No entanto, erigiu também o que certamente se
impõe como o maior e o mais admirável monumento de toda a música anterior ao
Renascimento: a célebre *_Missa* que se supôs ter sido escrita para a coroação de
Carlos V de França e que ainda hoje ouvimos com todas as vantagens que são apanágio
das grandes obras de arte.
Convém acentuar -- por ser lição prenhe de actualidade -- que Machault *não* foi um
sectário raivoso da teoria então moderna, se não que aproveitou dela o que houve
por bem, desprezando o resto, mantendo do anterior o prestável à sua intuição de
artista, deixando espaço, em suma, para a mobilidade da invenção criadora. Fenómeno
semelhante se passará mais tarde com Monteverdi, relativamente à doutrina de
Vincenzo Galilei.
Reflexos da *_Ars Nova*, mais talvez do seu espírito do que dos pormenores
técnicos, chegaram sem dúvida a Portugal, mas, provavelmente, tardios. Balda
nacional, regra pouco exceptuada ao longo de toda a história da :, música
portuguesa. D. João I, no *_Livro de montaria* e referindo-se aos latidos das suas
matilhas de caça, diz que o compositor "Guilherme de Machado nom fez tam formosa
concordança de melodias". Esse Guilherme de Machado não era outro se não Guillaume
de Machault. O primeiro marquês de Santilhana refere-se também, na famosa carta que
escreveu a D. Pedro, infante de Portugal e depois rei de Aragão, a Guillaume de
Machault, que "escrivio asymesmo un grand libro de baladas, canciones, rondeles,
lays, virolays et asono muchos dello" (53).
Portanto, no segundo quartel do século XV, houve conhecimento em Portugal de que
Machault fora um grande compositor. E talvez bastante antes, porque tinha decorrido
pouco tempo sobre a sua morte (1377) quando a crónica castelhana de Pero Niño
revela a expansão que tinham na península as formas poético-musicais da *_Ars
Nova*, falando de graciosas cantigas, saborosos dizeres, notáveis motetes, baladas,
rondós, *lais, virelais*, etc. E provável também que, em meados de Quatrocentos, os
portugueses musicalmente cultos tivessem conhecimento mais moderno do que então era
o da *_Ars Nova* (54). Com efeito, Gilles Binchois e Guillaume Dufay não só foram
admirados pela aristocracia espanhola como estiveram em contacto com a esplendorosa
corte de Borgonha. Em 1469, esteve em Espanha outro compositor de primeiríssima
plana, Johannes Ockeghem.
Filipe III, o Bom, duque de Borgonha e conde de Flandres, era casado, em terceiras
núpcias, com a infanta D. Isabel, filha de D. João I de Portugal, a quem já nos
referimos. As relações de família e o facto de a corte de Borgonha ser então a mais
brilhante da Europa no aspecto musical (e não só nesse) deixam admitir uma
influência benéfica e estimulante na vida musical portuguesa da época. O poema de
Martin Franc intitulado *_Le champion des dames* é dedicado a Filipe, o Bom, e,
entre os seus cerca de 24 000 versos, há todo um canto consagrado ao fulgor
artístico da corte borgonhesa. Filipe tinha mandado vir da Península Ibérica dois
tangedores de viola cegos, chamados Jehan Fernandes e Jehan de Cordoval, artistas
que o poeta elogia nestes termos superlativos:
J'ai veu Binchois avoir vergogne
Et soy taire emprez leur rebelle,
Et Dufay despite et frongne
Qu'il n'a melodie si belle (55)
Não está provado que João Fernandes e João Cordoval (ou Cordovil?) fossem
portugueses. Mas como Filipe de Borgonha, ao chamá-los à sua corte, deve ter
querido ser agradável à duquesa, sua mulher, pode o episódio significar que Isabel
cultivara já em Portugal o gosto pela música profana moderna para o seu tempo. A
menos que os encomiados tangedores cegos se distinguissem principalmente de mestres
Binchois e Dufay no praticarem uma arte antiquada, o que também é possível. De
qualquer maneira, devemos dar desconto ao louvor do poeta, desejoso de agradar ao
poderoso duque.
Apesar da falta de documentação, os indícios do conhecimento e do gosto :, da *_Ars
Nova* e da música subsequente levam-nos a aceitá-los como certos em Portugal, no
século xv, antes do florescimento já caracterizadamente renascentista do reinado de
D. João II.
Música de igreja
A música de que nos acabámos de ocupar é preponderantemente para voz, ou vozes, com
a participação de instrumentos: violas, guitarras, alaúdes, manicórdios e outros.
Não se conhece de Guillaume de Machault nenhuma obra puramente instrumental. Quanto
à música só para vozes, onde mais se cultivou foi, sem dúvida, na igreja. A este
respeito dispomos de valiosa informação no *_Leal conselheiro*, de D. Duarte, que
contém dois capítulos de indicações úteis para a organização e funcionamento das
capelas senhoriais.
Do primeiro desses dois capítulos depreende-se que a disciplina e o escrúpulo não
estavam arreigados nos músicos de capela. Com efeito, D. Duarte recomenda normas de
pontualidade e respeito, e também que "aquilo que cantarem seja coisa que todos os
que a houverem de cantar bem saibam". Não deverá ser consentido o "rir nem
escarnecer enquanto durar o ofício a nenhum que seja, e muito menos aos capelães e
a moços da capela, os quais devem estar mais honestamente que puderem", visto que
"fazem serviço espiritual a Deus".
Lembra ainda o monarca o ser "muito necessário criarem-se moços na capela, e que
sejam de idade de sete a oito anos, de boa disposição em vozes, e entender, e
subtileza, e de bom assossego", porque são esses os que vêm a ser bons clérigos e
bons cantores. Aos que se tiverem distinguido a aprender a cantar, e que o saibam
já bem, há vantagem em ensinar-lhes cantigas, "e isto para às vezes cantarem ante o
senhor", isto é: na presença do nobre a cujo serviço estão. Porque isto fá-los-á
perder o embaraço no cantar, e esforçar a voz, e ganhar melhor jeito e uma arte
mais graciosa.
Este interessante conselho mostra não só que, como era de esperar, as cantigas
profanas requeriam maior elegância no cantar do que a música religiosa mas também
que se considerava bom, na execução desta, que as vozes dos cantores se tornassem
maleavelmente expressivas. Gosto claramente orientado pelos ideais renascentistas,
que dentro de pouco tempo se haviam de realizar plenamente. D. Duarte chega ao
pormenor técnico da maneira de bem produzir e emitir a voz, prescrevendo que devem
os cantores guardar-se de "cantar de língua" ou "de desvairamento de boca, mas
somente cantem de papo, cada um melhor que puder".
_o cantar "de papo" era o emprego dum tipo de colocação da voz que, ao contrário da
futura empostação operista, hoje conhecida e admirada de todos os amantes da arte
lírica, neo tira partido das ressonâncias de cabeça. Embora implique um menor
volume de voz, facilita a ornamentação extremamente ligeira que no século XVI deu
pelo nome de *garganta*. :,
Preocupa-se o leal conselheiro com as desafinações que poderão afligir os ouvidos
nobres do seu reino: "que se não consinta nenhum desacordativo à estante, porque
uma corda destemperada [desafinada] é bastante para destemperar um instrumento."
Compara assim o conjunto de vozes a um instrumento de corda ou, talvez, de corda e
tecla, como o manicórdio que a sua mulher tão primorosamente tangia, no testemunho
do infante D. Henrique.
Têm muito interesse as alusões mais explícitas ao canto polifónico. Os cantores não
deverão entoar notas mais agudas do que as que podem com à-vontade: "não tomem os
cantos mais altos dos que os folgadamente puderem levar." E isto não só nas
passagens que todos houverem de cantar como nas que forem confiadas só a alguns em
especial. Ao insistir nesta recomendação, D. Duarte informa-nos de que era comum,
nas capelas senhoriais do seu reino, o canto polifónico a três vozes: "que se
conheçam as vozes dos capelães, qual é para cantar alto, e qual para contra, e qual
para tenor." E o que tiver voz de alto deve cantar sempre de alto, e o de contra
sempre de contra, e o tenor sempre de tenor, "para cada um ser mais certo no que
cantar". Não se contentando com isto, acrescenta: "que se conheça quais entre si
nas vozes são melhor acordados" (os que melhor se combinam). Porque sabia de
algumas vozes que, "ainda que sejam boas, entre si não se acordam bem, e outras que
ambas juntas fazem grande avantagem".
Os que cantavam de alto eram os de voz mais aguda. Da expressão *contra*
(contraalto) descende a designação de *contralto*, que ainda hoje se usa. Eram
vozes
intermédias na tessitura. Quanto ao *tenor*, que, nos conjuntos a que D. Duarte se
referia, cantava as notas mais graves, o seu significado não coincide com o de voz
masculina aguda que a palavra hoje tem. A sua acepção ligava-se a uma das que tem o
verbo latino *tenere*: "aguentar", "manter". Com efeito, o tenor era quem cantava a
linha fundamental do conjunto polifónico, que podia ser uma melodia litúrgica.
As vozes superiores aguentavam-se sobre essa base, ornamentando o conjunto sonoro
com discantes mais ou menos floreados. Na música polifónica da última fase
medieval, de transição para o Renascimento, o tenor, muitas vezes, tinha a
incumbência de repetir continuamente a mesma melodia, enquanto as restantes vozes
repetiam outras, segundo regras tanto mais complicadas quanto mais díspares fossem
as dimensões dessas linhas melódicas. Semelhantes práticas tiveram certamente
influência em formas com baixos obstinados, como as chaconas, *passacaglias* ou
folias, que, mais tarde, já no barroco, foram muito utilizadas, se bem que se lhes
atribua também outra ascendência, ibérica e até caracterizadamente portuguesa, como
a seu tempo veremos. O papel do tenor era tão importante que D. Duarte o menciona,
com o capelão-mor, o mestre de capela e o mestre de moços, entre as quatro
entidades que "são muito necessárias para a capela".
Vejamos agora o que D. Duarte queria dizer quando escreveu: "Devem ser avisados que
em qualquer coisa que houverem que cantar, ora seja canto feito ou descanto,
declarem a letra daquilo que cantarem, salvo se ela for desonesta para se dizer." E
mais: "Em qualquer coisa que cantarem, devem declarar a letra vogal segundo é
escrita, e isto porque alguns têm de costume pronunciar mais uma letra que outra
naquilo que cantam." O que maior :, estranheza pode causar no leitor é o admitir D.
Duarte, na igreja, a hipótese de um canto de letra desonesta, ou indecente, como
hoje diríamos. O facto é que, na composição musical para igreja, o *motete* se
tornara o género mais em voga, caracterizando-o a sobreposição de letras
diferentes, inclusivamente em línguas diversas. As letras podiam ser profanas e
mesmo escabrosas. Se a peça era a três vozes, estas chamavam-se (entre outras
denominações, como a usada por D. Duarte) *tenor, motetus* e *triplum*. A
designação da segunda voz deriva do francês *mot* e sublinha a diversidade das
palavras do texto. Como esta era a principal característica da forma, passou a ser
conhecida por *motetus*, de onde motete.
Ao falar de "canto feito", D. Duarte deve referir-se à melodia fundamental, sendo
as outras as do "descanto". Estas, ou eram trechos conhecidos, profanos ou não, ou
produtos de uma técnica de improvisação ou semi-improvisação sobre o "canto feito".
O princípio de bem articular as palavras era importante de focar, porquanto os
cantores se permitiam, nesse capítulo, as maiores liberdades. Aliás, na polifonia
de igreja da alta Idade Média e do Renascimento, a inteligibilidade das palavras
cantadas parece ter sido tão pouco um cuidado dos músicos quão pouco o é
modernamente dos compositores de concertantes de ópera. Do cantar ao mesmo tempo em
diferentes línguas também temos alguma experiência, de quando ouvimos um *_Boris
Godunov*, por exemplo, cantado por uns em russo e outros em italiano, na mesma
récita (56).
É, em todo o caso, curioso que D. Duarte se empenhasse em que nas capelas
senhoriais do seu reino se entendessem as palavras do canto polifónico. E teve
também o cuidado de frisar que a expressão da música devia variar segundo as
cerimónias da Igreja: "Ou triste, ou ledo, e segundo os tempos em que estiverem."
O emprego de instrumentos musicais na igreja
Tudo o que se acaba de transcrever diz respeito a vozes, nada a instrumentos de
música. D. Duarte preconiza "que os cantores aprendam o salteiro [saltério], que
quando lhes à mão vier algum benefício, que o saibam". Porque "não pode ser bom
clérigo se não souber o salteiro". Trata-se do instrumento de cordas chamado
*saltério* ou do livro de salmos? A segunda hipótese parece a mais provável, já
porque a passagem segue imediatamente à que manda saber "cantar as missas que hãode
dizer, e lê-las, e registar o livro", já porque o eloquente monarca se diria
obstinado em se não referir a instrumentos, talvez para não suscitar alguma
discordância da autoridade eclesiástica.
A investigação musicológica tem ultimamente aduzido provas sobre provas do emprego
de instrumentos na polifonia religiosa pré-barroca, e desde, pode dizer-se, os seus
primeiros tempos. Assim, considera-se hoje que instrumentos se associaram às vozes
no *organum* e em formas subsequentes, nomeadamente o motete. Existem mesmo
figurações escritas :, impossíveis de bem realizar por uma voz cantante. A parte de
tenor de um motete podia ser confiada a um instrumento, e não só ela. Desde o
grande Pérotin da Escola de Notre-_Dame, as duas partes mais agudas de uma
polifonia a quatro vozes (o *triplum* e o *quadruplum*) podiam ser instrumentais.
Isto, a estarem certas as recentes conclusões de alguns musicólogos (57).
A confirmar o emprego de instrumentos está toda uma quantidade de obras pictóricas,
inclusivamente em Portugal e, com maior abundância, em Espanha. É certo que muitas
vezes, e porventura as mais delas, os executantes que vemos nas pinturas são
irreais, anjos frequentemente. Mas, se os instrumentos musicais fossem banidos da
igreja por indignos, muito mais o seriam de os tangerem personagens celestes. Com
razão se tem observado também que as determinações eclesiásticas opostas ao emprego
de instrumentos provam, não o costume de os repudiar de facto, mas precisamente o
contrário. Aliás, vários autores se votaram a demonstrar o carácter legítimo da
utilização de instrumentos na igreja. Entre outros dados concordantes com a tese
instrumental, relativos à Península, é de destacar o decreto de Filipe II, em 1572
(portanto antes de ser rei de Portugal), proibindo aos menestréis o acesso à capela
real, provavelmente para satisfazer à Contra-_Reforma.
Uma passagem da vigésima sexta constituição dum sínodo realizado no Porto, em 1477,
põe muito a claro certas inconveniências que andavam e continuariam a andar muito
na companhia de instrumentos musicais: "Que os que fazem vigílias nas igrejas não
façam jogos, nem cantem, nem bailem. Porque sabemos por certa informação que nas
vigílias que algumas pessoas fazem de noite nas igrejas se fazem muitos pecados de
luxúria e muitas desonestidades nos jogos, cantos e bailes que com grande
desonestidade fazem e mandam fazer os que tais vigílias ordenam, não é de duvidar
que por isso incorrem em grande pecado e na ira de Deus, o qual maldiz a tais
festas. Porém mandamos e estreitamente defendemos sob pena de excomunhão que assim
homens como mulheres, eclesiásticos e seculares que por cumprir sua devoção
quiserem ter vigília em alguma igreja ou mosteiro, capela ou ermida, não sejam
ousados fazer nem consentir nem dar lugar que se aí façam jogos, momos, cantigas
nem bailes nem se vistam os homens em vestiduras de mulheres nem mulheres em
vestiduras de homens, nem tanjam sinos nem campanas nem órgãos nem alaúdes,
guitarras, violas, pandeiros, nem outro nenhum instrumento, nem façam outras
desonestidades pelas quais muitas vezes provocam e fazem vir a ira de Deus sobre a
terra."
Várias explicações do silêncio de D. Duarte quanto a instrumentos são presumíveis,
além da que se já aventou. Talvez os senhores a quem o *_Leal conselheiro* se
destinava não tivessem meios de adquirir o instrumento considerado mais conveniente
à igreja -- o órgão, de que havia conhecimento na península, mas que só no século
XV começou a conhecer maior expansão --, talvez os preceitos expressos por D.
Duarte se limitassem à polifonia então vulgar, a que em Espanha davam o velho nome
de *fabordón* (*fabordão*, em português), deixando de parte a *solemniter*, de
maior variedade :, contrapontística e quiçá mais mesclada de instrumentos, que
acaso se não praticava ainda em Portugal.
De qualquer maneira, não é de admitir a total ausência de instrumentos na música
religiosa deste período. E é bem possível que os infelizmente perdidos "salmos
certos por os finados", que D. Duarte atribui a seu real senhor e pai, se
destinassem ao canto com acompanhamento instrumental, ao gosto da *_Ars Nova*.
_história da
_música _portuguesa
por
_joão de _freitas _branco
_publicação em 16 volumes
_s. _c. da _misericórdia
do _porto
_c_p_a_c -- _edições
_braille
_r. do _instituto de
_s. _manuel
4050 __porto
1998
_terceiro _volume
_joão de _freitas _branco
_história da
_música _portuguesa
_organização,
_fixação de _texto,
_prefácio e _notas
de _joão _maria
de _freitas _branco
2.a _edição,
_revista e _aumentada
_publicações
_europa-_américa
_capa: estúdios _p. _e. _a.
_herdeiros de _joão
_c de _freitas _branco, 1995
_editor: _francisco _lyon de
_castro
:__publicações europa-américa, __lda.
_apartado 8
2726 __mem __martins __codex
__portugal
_edição n.o: 116512/6266
_execução técnica:
_gráfica _europam, _lda.,
_mira-_sintra -- _mem
_martins
_depósito legal n.o: 85462/
/95
__isbn 972-1-04012-6
__capítulo __iii
(cont.)
A música em função da estrutura social
Sabendo-se a importância que a burguesia assumiu na resolução da crise da sucessão
de D. Fernando, pode parecer estranho o quase total silêncio a que foi votada nos
parágrafos acima. Portugal teve, desde cedo, uma classe de comerciantes, mercadores
em grande parte ligados ao negócio marítimo. A sua influência aumentou sem dúvida
ao longo da dinastia afonsina, mas seria errado admitir que lhe correspondeu, já no
princípio da de Avis, uma cultura musical específica. O seu nível intelectual e a
sua sensibilidade artística não a diferenciavam ainda do povo propriamente dito.
Por outro lado, entre burgueses e nobres existia uma diferença social. Quando D.
João I teve de fazer concessões aos que, possuidores de bens e estando interessados
na derrota de Castela, o ajudaram a subir ao trono, o que se deu não foi, nem
poderia ser, a emancipação social de toda uma classe, mas sim um processo de
alargamento do quadro da nobreza, cujo período de adaptação deve ter tido aspectos
cómicos, se não indignantes, aos olhos dos nobres de antiga linhagem. Diz-nos
Fernão Lopes: "Parece se levantou outro mundo novo, e nova geração de gentes,
porque filhos de homens de baixa condição [...] por seu bom serviço e trabalho
neste tempo foram feitos cavaleiros [...] de guiza que por dignidades humanas e
ofícios do reino montaram tanto ao diante [...] que hoje em dia [...] são tidos en
gran conta." (48)
Como íamos dizendo, não obstante o vulto que tinham já as transacções comerciais
com outros países (havia habitualmente de 400 a 500 navios no porto de Lisboa,
sendo, em grande parte, naus mercantes) e o concomitante progresso da classe média,
esta não tinha, e não viria a ter tão cedo, uma expressão musical própria. Sem
embargo, os municípios, instituições administrativas que interpretam os interesses
dos burgueses (não apenas os comerciantes), tiveram também os seus músicos
contratados para as comemorações e folganças. Simplesmente, os sons das trombetas e
atabales, das charamelas e cornetas não eram diferentes dos que se destinavam à
nobreza.
A propósito, convém salientar que até o Renascimento se mantiveram em Portugal
pitorescos costumes de contactos sociais característicos da Idade Média. D. João
II, quase já no século XVI, ainda comia na presença de quem quisesse entrar na
porta franca da sala. Segundo o testemunho de um visitante alemão, quando não havia
convidados à mesa, o nosso "Príncipe Perfeito" não se servia de facas se não dos
dentes, e partia "com as mãos o pão, como faria el-rei de Polónia, ainda que
tivesse faca junto de si". Estes :, e outros sinais que nos chegam, de atrasos em
relação a outras cortes, são coerentes com a preponderância permanente, na música
portuguesa da transição para o Renascimento, das estrepitosas soadas de trombetas,
tambores, sacabuxas, etc.
*_Nobreza* (incluindo a corte régia)
*_Música profana*
Arte trovadoresca e arte jogralesca (resíduos do passado).
Fanfarras de pompa e circunstância (trombetas, sacabuxas, charamelas, atabales,
tamborins e outros instrumentos).
Música de câmara, vocal-instrumental, provavelmente de carácter polifónico e com o
emprego, além de instrumentos de corda, de manicórdios ou talvez cravos
rudimentares. Danças de nobres, ou de plebeus contratados. Mímica.
*_Música religiosa*
Cantos litúrgicos, ou outros tradicionais. Raramente outra música, talvez
polifónica.
Em ocasiões solenes. fanfarras.
Eventualmente, representações alusivas a episódios como o da Natividade ou da
Paixão.
*Outras classes sociais*
*_música profana*
Arte jogralesca, fanfarras, bailes populares em feiras e outras festividades,
amiúde promovidas pelos municípios.
*_música religiosa*
As mesmas práticas, mas com menor aparato longe dos centros populacionais
importantes ou das residências senhoriais.
Antes de abandonarmos por um momento essa *música alta*, que nos sugere curiosos
quadros da vida medieval, tem interesse notar que ela teve ainda continuação no
século XVI e que as *entradas* ou fanfarras altissonantes que serviam de início a
alguma cerimónia de relevo talvez tenham sido as verdadeiras precursoras da
*tocata* barroca. Alguns musicólogos inclinam-se hoje a aceitar este ponto de
vista, que valoriza a comparticipação ibérica para o fulgor da música instrumental
italiana. Um dos dados concretos em que esses investigadores se baseiam é a famosa
"*_Tocata*" do *_Orfeu*, de Monteverdi, na qual vêem uma descendente das *entradas*
hispânicas (49). :,
_à *música alta* contrapunha-se outra, de limitada amplitude sonora. Também esta
não era exclusiva da classe nobre, ainda que nela se cultivasse mais, dentro da
tradição trovadoresca, mas, possivelmente, já de carácter polifónico. D. João I de
Aragão, em 1387, faz citação muito de notar de um "instrumento chamado exaquier",
que desejava possuir, talvez primeira relação peninsular com um instrumento de
cordas e teclas do tipo do cravo e da espineta. Esse cravo rudimentar era
considerado propício a fazer soar nele as estampidas que certo menestrel de órgãos
tinha anotadas para comprazimento do rei.
O infante D. Fernando aprendeu a tanger harpa. Seu irmão D. Henrique, na carta para
o rei seu pai a relatar o casamento de D. Duarte em Coimbra, diz que, no decorrer
das festas, a noiva, infanta D. Leonor de Aragão, cantara acompanhando-se ao
manicórdio: "e louvo muito o cantar da Sr.a Infante, et o tanger de manicorde." Era
este outro instrumento de cordas e teclas, mas precursor do clavicórdio. O próprio
rei dito "de boa memória", no *_Livro de montaria*, afirmou que, quando estava
cansado, sentia prazer em "ouvir os mui doces tangeres que fazem os instrumentos"
ou em "tomar una formosa dona ou donzela pela mão e dançar com ela" (50).
Também na dança se distinguia a *baixa* da *alta*, segundo a música que estabelecia
o ritmo, elevando-se os pés do chão mais na segunda do que na primeira.
Convém esclarecer que a *música alta* era corrente em todas as cortes europeias da
época e que também em Portugal ela coexistiu com a música de *instrumentos baixos*,
como as flautas, os cromornes ou as cornemusas. A evolução para uma expressão
musical mais subtil, mais elegante, mais civilizada fez-se em termos dum
progressivo refinamento da escrita, que em teoria não implicava uma redução do
volume sonoro dos meios instrumentais. Só que, na prática, a falta de
aperfeiçoamentos técnicos, que vieram muito mais tarde, tornava em geral impossível
dar aos novos requintes da composição uma amplitude acústica relativamente grande.
O órgão, classificável como *instrumento alto*, constituía um caso de excepção, o
que provavelmente concorreu para o prestígio ímpar de que usufruiu, abonado pela
Igreja.
No período a que nos estamos referindo, a paisagem musical portuguesa desenha-se
sobre o esquema indicado na página anterior.
De notar é que não havia manifestações puramente musicais. A música era elemento
ainda não emancipado. Era ornamento indispensável de toda e qualquer festa, mas
misturada com outras artes e divertimentos. Também não existia uma diferenciação
nítida entre géneros musicais em função dos instrumentos. Assim como o minério
impuro precede o metal isolado, fruto do engenho e do progresso, assim também a
mistura de artes e sortes antecede a pura poesia, ou a dança, ou o teatro, ou a
música, produtos de culturas evoluídas. Pode dizer-se um longo processo de
diminuição de entropia todo o que, na música europeia, se realizou desde a Idade
Média até a organizada diferenciação barroca, atravessando a formosa inflorescência
renascentista. :,
"Ars Nova" em Portugal?
Em princípios do século XIV, surgiu no panorama musical europeu uma arte viçosa e
diferente da anterior. A *_Ars Nova* -- assim lhe chamou um dos seus teóricos,
Philipe de Vitry, bispo de Meaux -- não foi produto de pura invenção, nascida
dentro das quatro paredes de um gabinete. A teoria que então se codificou teve
funções de ordenadora de práticas já em uso, o que não significa, evidentemente,
que a isso se tivesse limitado; houve também a formulação *a priori* e até o
cerebralismo excessivo, não sem parecença com o hodierno dodecafonismo serial. Como
geralmente sucede, o teórico Vitry não foi, ele próprio, o maior artista na
aplicação das suas directrizes modernas (51).
Em resumo, a *_Ars Nova* consistiu no emprego de ritmos binários -- a que chamaram
*imperfeitos*, contrapondo-os aos ternários, *perfeitos*, que, como vimos, antes se
usaram sistematicamente, firmados em vários arrazoados curiosos, entre os quais o
da correspondência com a Santíssima Trindade; na cristalização de certas formas
profanas, já diferenciadas das trovadorescas, embora aparentadas ainda com elas (o
*virelai*, a *balada*, etc.); na aplicação à música profana de progressos
polifónicos realizados no âmbito eclesiástico, envolvendo vozes e instrumentos; e
na introdução de maior número de acidentes (sustenidos e bemóis), mormente nas
cadências, ou finais de frase musical.
No domínio da música religiosa, a *_Ars Nova* especula uma técnica de sobreposição
de melodias, litúrgicas ou não, em latim ou em vernáculo. Mas a sua essência era
profana, corria portanto paralela a uma das linhas de força da cultura coetânea e
continha marcas prematuras mas nítidas do Renascimento. Não lhe faltaram sequer o
interesse pela Antiguidade e, por outra banda, uma certa permeabilidade ao elemento
popular (52).
O maior vulto da *_Ars Nova* foi, incontestavelmente, Guillaume de Machault, cónego
de Reims, que tinha viajado muito e que, já encanecido, se prendeu de amores por
uma jovem, Pérone. Com o seu contemporâneo Petrarca, foi poeta do amor. Enalteceu
os encantos femininos, e essa galantaria é o fundo de todas as suas baladas,
*virelais*, rondós, canções reais. No entanto, erigiu também o que certamente se
impõe como o maior e o mais admirável monumento de toda a música anterior ao
Renascimento: a célebre *_Missa* que se supôs ter sido escrita para a coroação de
Carlos V de França e que ainda hoje ouvimos com todas as vantagens que são apanágio
das grandes obras de arte.
Convém acentuar -- por ser lição prenhe de actualidade -- que Machault *não* foi um
sectário raivoso da teoria então moderna, se não que aproveitou dela o que houve
por bem, desprezando o resto, mantendo do anterior o prestável à sua intuição de
artista, deixando espaço, em suma, para a mobilidade da invenção criadora. Fenómeno
semelhante se passará mais tarde com Monteverdi, relativamente à doutrina de
Vincenzo Galilei.
Reflexos da *_Ars Nova*, mais talvez do seu espírito do que dos pormenores
técnicos, chegaram sem dúvida a Portugal, mas, provavelmente, tardios. Balda
nacional, regra pouco exceptuada ao longo de toda a história da :, música
portuguesa. D. João I, no *_Livro de montaria* e referindo-se aos latidos das suas
matilhas de caça, diz que o compositor "Guilherme de Machado nom fez tam formosa
concordança de melodias". Esse Guilherme de Machado não era outro se não Guillaume
de Machault. O primeiro marquês de Santilhana refere-se também, na famosa carta que
escreveu a D. Pedro, infante de Portugal e depois rei de Aragão, a Guillaume de
Machault, que "escrivio asymesmo un grand libro de baladas, canciones, rondeles,
lays, virolays et asono muchos dello" (53).
Portanto, no segundo quartel do século XV, houve conhecimento em Portugal de que
Machault fora um grande compositor. E talvez bastante antes, porque tinha decorrido
pouco tempo sobre a sua morte (1377) quando a crónica castelhana de Pero Niño
revela a expansão que tinham na península as formas poético-musicais da *_Ars
Nova*, falando de graciosas cantigas, saborosos dizeres, notáveis motetes, baladas,
rondós, *lais, virelais*, etc. E provável também que, em meados de Quatrocentos, os
portugueses musicalmente cultos tivessem conhecimento mais moderno do que então era
o da *_Ars Nova* (54). Com efeito, Gilles Binchois e Guillaume Dufay não só foram
admirados pela aristocracia espanhola como estiveram em contacto com a esplendorosa
corte de Borgonha. Em 1469, esteve em Espanha outro compositor de primeiríssima
plana, Johannes Ockeghem.
Filipe III, o Bom, duque de Borgonha e conde de Flandres, era casado, em terceiras
núpcias, com a infanta D. Isabel, filha de D. João I de Portugal, a quem já nos
referimos. As relações de família e o facto de a corte de Borgonha ser então a mais
brilhante da Europa no aspecto musical (e não só nesse) deixam admitir uma
influência benéfica e estimulante na vida musical portuguesa da época. O poema de
Martin Franc intitulado *_Le champion des dames* é dedicado a Filipe, o Bom, e,
entre os seus cerca de 24 000 versos, há todo um canto consagrado ao fulgor
artístico da corte borgonhesa. Filipe tinha mandado vir da Península Ibérica dois
tangedores de viola cegos, chamados Jehan Fernandes e Jehan de Cordoval, artistas
que o poeta elogia nestes termos superlativos:
J'ai veu Binchois avoir vergogne
Et soy taire emprez leur rebelle,
Et Dufay despite et frongne
Qu'il n'a melodie si belle (55)
Não está provado que João Fernandes e João Cordoval (ou Cordovil?) fossem
portugueses. Mas como Filipe de Borgonha, ao chamá-los à sua corte, deve ter
querido ser agradável à duquesa, sua mulher, pode o episódio significar que Isabel
cultivara já em Portugal o gosto pela música profana moderna para o seu tempo. A
menos que os encomiados tangedores cegos se distinguissem principalmente de mestres
Binchois e Dufay no praticarem uma arte antiquada, o que também é possível. De
qualquer maneira, devemos dar desconto ao louvor do poeta, desejoso de agradar ao
poderoso duque.
Apesar da falta de documentação, os indícios do conhecimento e do gosto :, da *_Ars
Nova* e da música subsequente levam-nos a aceitá-los como certos em Portugal, no
século xv, antes do florescimento já caracterizadamente renascentista do reinado de
D. João II.
Música de igreja
A música de que nos acabámos de ocupar é preponderantemente para voz, ou vozes, com
a participação de instrumentos: violas, guitarras, alaúdes, manicórdios e outros.
Não se conhece de Guillaume de Machault nenhuma obra puramente instrumental. Quanto
à música só para vozes, onde mais se cultivou foi, sem dúvida, na igreja. A este
respeito dispomos de valiosa informação no *_Leal conselheiro*, de D. Duarte, que
contém dois capítulos de indicações úteis para a organização e funcionamento das
capelas senhoriais.
Do primeiro desses dois capítulos depreende-se que a disciplina e o escrúpulo não
estavam arreigados nos músicos de capela. Com efeito, D. Duarte recomenda normas de
pontualidade e respeito, e também que "aquilo que cantarem seja coisa que todos os
que a houverem de cantar bem saibam". Não deverá ser consentido o "rir nem
escarnecer enquanto durar o ofício a nenhum que seja, e muito menos aos capelães e
a moços da capela, os quais devem estar mais honestamente que puderem", visto que
"fazem serviço espiritual a Deus".
Lembra ainda o monarca o ser "muito necessário criarem-se moços na capela, e que
sejam de idade de sete a oito anos, de boa disposição em vozes, e entender, e
subtileza, e de bom assossego", porque são esses os que vêm a ser bons clérigos e
bons cantores. Aos que se tiverem distinguido a aprender a cantar, e que o saibam
já bem, há vantagem em ensinar-lhes cantigas, "e isto para às vezes cantarem ante o
senhor", isto é: na presença do nobre a cujo serviço estão. Porque isto fá-los-á
perder o embaraço no cantar, e esforçar a voz, e ganhar melhor jeito e uma arte
mais graciosa.
Este interessante conselho mostra não só que, como era de esperar, as cantigas
profanas requeriam maior elegância no cantar do que a música religiosa mas também
que se considerava bom, na execução desta, que as vozes dos cantores se tornassem
maleavelmente expressivas. Gosto claramente orientado pelos ideais renascentistas,
que dentro de pouco tempo se haviam de realizar plenamente. D. Duarte chega ao
pormenor técnico da maneira de bem produzir e emitir a voz, prescrevendo que devem
os cantores guardar-se de "cantar de língua" ou "de desvairamento de boca, mas
somente cantem de papo, cada um melhor que puder".
_o cantar "de papo" era o emprego dum tipo de colocação da voz que, ao contrário da
futura empostação operista, hoje conhecida e admirada de todos os amantes da arte
lírica, neo tira partido das ressonâncias de cabeça. Embora implique um menor
volume de voz, facilita a ornamentação extremamente ligeira que no século XVI deu
pelo nome de *garganta*. :,
Preocupa-se o leal conselheiro com as desafinações que poderão afligir os ouvidos
nobres do seu reino: "que se não consinta nenhum desacordativo à estante, porque
uma corda destemperada [desafinada] é bastante para destemperar um instrumento."
Compara assim o conjunto de vozes a um instrumento de corda ou, talvez, de corda e
tecla, como o manicórdio que a sua mulher tão primorosamente tangia, no testemunho
do infante D. Henrique.
Têm muito interesse as alusões mais explícitas ao canto polifónico. Os cantores não
deverão entoar notas mais agudas do que as que podem com à-vontade: "não tomem os
cantos mais altos dos que os folgadamente puderem levar." E isto não só nas
passagens que todos houverem de cantar como nas que forem confiadas só a alguns em
especial. Ao insistir nesta recomendação, D. Duarte informa-nos de que era comum,
nas capelas senhoriais do seu reino, o canto polifónico a três vozes: "que se
conheçam as vozes dos capelães, qual é para cantar alto, e qual para contra, e qual
para tenor." E o que tiver voz de alto deve cantar sempre de alto, e o de contra
sempre de contra, e o tenor sempre de tenor, "para cada um ser mais certo no que
cantar". Não se contentando com isto, acrescenta: "que se conheça quais entre si
nas vozes são melhor acordados" (os que melhor se combinam). Porque sabia de
algumas vozes que, "ainda que sejam boas, entre si não se acordam bem, e outras que
ambas juntas fazem grande avantagem".
Os que cantavam de alto eram os de voz mais aguda. Da expressão *contra*
(contraalto) descende a designação de *contralto*, que ainda hoje se usa. Eram
vozes
intermédias na tessitura. Quanto ao *tenor*, que, nos conjuntos a que D. Duarte se
referia, cantava as notas mais graves, o seu significado não coincide com o de voz
masculina aguda que a palavra hoje tem. A sua acepção ligava-se a uma das que tem o
verbo latino *tenere*: "aguentar", "manter". Com efeito, o tenor era quem cantava a
linha fundamental do conjunto polifónico, que podia ser uma melodia litúrgica.
As vozes superiores aguentavam-se sobre essa base, ornamentando o conjunto sonoro
com discantes mais ou menos floreados. Na música polifónica da última fase
medieval, de transição para o Renascimento, o tenor, muitas vezes, tinha a
incumbência de repetir continuamente a mesma melodia, enquanto as restantes vozes
repetiam outras, segundo regras tanto mais complicadas quanto mais díspares fossem
as dimensões dessas linhas melódicas. Semelhantes práticas tiveram certamente
influência em formas com baixos obstinados, como as chaconas, *passacaglias* ou
folias, que, mais tarde, já no barroco, foram muito utilizadas, se bem que se lhes
atribua também outra ascendência, ibérica e até caracterizadamente portuguesa, como
a seu tempo veremos. O papel do tenor era tão importante que D. Duarte o menciona,
com o capelão-mor, o mestre de capela e o mestre de moços, entre as quatro
entidades que "são muito necessárias para a capela".
Vejamos agora o que D. Duarte queria dizer quando escreveu: "Devem ser avisados que
em qualquer coisa que houverem que cantar, ora seja canto feito ou descanto,
declarem a letra daquilo que cantarem, salvo se ela for desonesta para se dizer." E
mais: "Em qualquer coisa que cantarem, devem declarar a letra vogal segundo é
escrita, e isto porque alguns têm de costume pronunciar mais uma letra que outra
naquilo que cantam." O que maior :, estranheza pode causar no leitor é o admitir D.
Duarte, na igreja, a hipótese de um canto de letra desonesta, ou indecente, como
hoje diríamos. O facto é que, na composição musical para igreja, o *motete* se
tornara o género mais em voga, caracterizando-o a sobreposição de letras
diferentes, inclusivamente em línguas diversas. As letras podiam ser profanas e
mesmo escabrosas. Se a peça era a três vozes, estas chamavam-se (entre outras
denominações, como a usada por D. Duarte) *tenor, motetus* e *triplum*. A
designação da segunda voz deriva do francês *mot* e sublinha a diversidade das
palavras do texto. Como esta era a principal característica da forma, passou a ser
conhecida por *motetus*, de onde motete.
Ao falar de "canto feito", D. Duarte deve referir-se à melodia fundamental, sendo
as outras as do "descanto". Estas, ou eram trechos conhecidos, profanos ou não, ou
produtos de uma técnica de improvisação ou semi-improvisação sobre o "canto feito".
O princípio de bem articular as palavras era importante de focar, porquanto os
cantores se permitiam, nesse capítulo, as maiores liberdades. Aliás, na polifonia
de igreja da alta Idade Média e do Renascimento, a inteligibilidade das palavras
cantadas parece ter sido tão pouco um cuidado dos músicos quão pouco o é
modernamente dos compositores de concertantes de ópera. Do cantar ao mesmo tempo em
diferentes línguas também temos alguma experiência, de quando ouvimos um *_Boris
Godunov*, por exemplo, cantado por uns em russo e outros em italiano, na mesma
récita (56).
É, em todo o caso, curioso que D. Duarte se empenhasse em que nas capelas
senhoriais do seu reino se entendessem as palavras do canto polifónico. E teve
também o cuidado de frisar que a expressão da música devia variar segundo as
cerimónias da Igreja: "Ou triste, ou ledo, e segundo os tempos em que estiverem."
O emprego de instrumentos musicais na igreja
Tudo o que se acaba de transcrever diz respeito a vozes, nada a instrumentos de
música. D. Duarte preconiza "que os cantores aprendam o salteiro [saltério], que
quando lhes à mão vier algum benefício, que o saibam". Porque "não pode ser bom
clérigo se não souber o salteiro". Trata-se do instrumento de cordas chamado
*saltério* ou do livro de salmos? A segunda hipótese parece a mais provável, já
porque a passagem segue imediatamente à que manda saber "cantar as missas que hãode
dizer, e lê-las, e registar o livro", já porque o eloquente monarca se diria
obstinado em se não referir a instrumentos, talvez para não suscitar alguma
discordância da autoridade eclesiástica.
A investigação musicológica tem ultimamente aduzido provas sobre provas do emprego
de instrumentos na polifonia religiosa pré-barroca, e desde, pode dizer-se, os seus
primeiros tempos. Assim, considera-se hoje que instrumentos se associaram às vozes
no *organum* e em formas subsequentes, nomeadamente o motete. Existem mesmo
figurações escritas :, impossíveis de bem realizar por uma voz cantante. A parte de
tenor de um motete podia ser confiada a um instrumento, e não só ela. Desde o
grande Pérotin da Escola de Notre-_Dame, as duas partes mais agudas de uma
polifonia a quatro vozes (o *triplum* e o *quadruplum*) podiam ser instrumentais.
Isto, a estarem certas as recentes conclusões de alguns musicólogos (57).
A confirmar o emprego de instrumentos está toda uma quantidade de obras pictóricas,
inclusivamente em Portugal e, com maior abundância, em Espanha. É certo que muitas
vezes, e porventura as mais delas, os executantes que vemos nas pinturas são
irreais, anjos frequentemente. Mas, se os instrumentos musicais fossem banidos da
igreja por indignos, muito mais o seriam de os tangerem personagens celestes. Com
razão se tem observado também que as determinações eclesiásticas opostas ao emprego
de instrumentos provam, não o costume de os repudiar de facto, mas precisamente o
contrário. Aliás, vários autores se votaram a demonstrar o carácter legítimo da
utilização de instrumentos na igreja. Entre outros dados concordantes com a tese
instrumental, relativos à Península, é de destacar o decreto de Filipe II, em 1572
(portanto antes de ser rei de Portugal), proibindo aos menestréis o acesso à capela
real, provavelmente para satisfazer à Contra-_Reforma.
Uma passagem da vigésima sexta constituição dum sínodo realizado no Porto, em 1477,
põe muito a claro certas inconveniências que andavam e continuariam a andar muito
na companhia de instrumentos musicais: "Que os que fazem vigílias nas igrejas não
façam jogos, nem cantem, nem bailem. Porque sabemos por certa informação que nas
vigílias que algumas pessoas fazem de noite nas igrejas se fazem muitos pecados de
luxúria e muitas desonestidades nos jogos, cantos e bailes que com grande
desonestidade fazem e mandam fazer os que tais vigílias ordenam, não é de duvidar
que por isso incorrem em grande pecado e na ira de Deus, o qual maldiz a tais
festas. Porém mandamos e estreitamente defendemos sob pena de excomunhão que assim
homens como mulheres, eclesiásticos e seculares que por cumprir sua devoção
quiserem ter vigília em alguma igreja ou mosteiro, capela ou ermida, não sejam
ousados fazer nem consentir nem dar lugar que se aí façam jogos, momos, cantigas
nem bailes nem se vistam os homens em vestiduras de mulheres nem mulheres em
vestiduras de homens, nem tanjam sinos nem campanas nem órgãos nem alaúdes,
guitarras, violas, pandeiros, nem outro nenhum instrumento, nem façam outras
desonestidades pelas quais muitas vezes provocam e fazem vir a ira de Deus sobre a
terra."
Várias explicações do silêncio de D. Duarte quanto a instrumentos são presumíveis,
além da que se já aventou. Talvez os senhores a quem o *_Leal conselheiro* se
destinava não tivessem meios de adquirir o instrumento considerado mais conveniente
à igreja -- o órgão, de que havia conhecimento na península, mas que só no século
XV começou a conhecer maior expansão --, talvez os preceitos expressos por D.
Duarte se limitassem à polifonia então vulgar, a que em Espanha davam o velho nome
de *fabordón* (*fabordão*, em português), deixando de parte a *solemniter*, de
maior variedade :, contrapontística e quiçá mais mesclada de instrumentos, que
acaso se não praticava ainda em Portugal.
De qualquer maneira, não é de admitir a total ausência de instrumentos na música
religiosa deste período. E é bem possível que os infelizmente perdidos "salmos
certos por os finados", que D. Duarte atribui a seu real senhor e pai, se
destinassem ao canto com acompanhamento instrumental, ao gosto da *_Ars Nova*.
CAPITULO IV
O RENASCIMENTO PROPRIAMENTE DITO
Antecedentes
O reinado de D. Afonso V traz consigo progressos musicais importantes. O próprio
rei era dado à arte dos sons. Vários factos o atestam, desde a afirmação de Rui de
Pina de que "folgou muito de ouvir música, e de seu natural, sem algum artifício
[isto é: sem conhecimentos teóricos] teve para ela bom sentimento", e o cargo que
deu a mandatários seus, de o informarem da organização da capela de Henrique VI de
Inglaterra, à importante mercê que outorgou a um seu tangedor de alaúde,
concedendo-lhe, completamente isentas, as azenhas de Alpiarça, "com toda sua terra,
entradas e saídas e chãos", e mais coisas e rendas (58).
Conhecem-se, do seu tempo, os nomes de vários mestres de capela, entre os quais
Tristão da Silva, de quem voltaremos a falar; de maior número de tangedores de
órgão, alaúde, cítola e outros instrumentos (um desses músicos aparece como "mestre
de órgãos"); para cima de duas dezenas de cantores, quatro charameleiros, um deles
com o título em uso de "rei", que "mandaria em todos eles e os ordenaria tanto nas
salas reais como nos campos de batalha, ou contra qualquer parte onde se achassem".
E havia ainda o rei dos menestréis, um tal Adriam, a quem D. Afonso passou carta de
privilégio para poder andar em besta muar (59).
Como se vê, continuava (e havia de continuar) a música alta com preponderância de
trombetas. Decerto as houve quando se cantou o ofício "com solfa de canto-chão" do
licenciado Álvaro, em acção de graças pela conquista de Arzila, em 1471. 0 referido
licenciado Álvaro é o mesmo que compôs os *_Vesperae, matutinum et laudes cum
antiphonis, et figuris misicis*. Mais precisamente, trata-se de Álvaro Afonso, o
mestre da capela real que D. Afonso V enviou em 1454 a Inglaterra, incumbindo-o de
trazer para Portugal uma cópia do rito seguido na capela real inglesa. Cumprindo a
ordem, Álvaro Afonso foi portador dum manuscrito elaborado por William Say, decano
desta capela, com uma descrição integral da liturgia que nela se observava. Este
códice encontra-se actualmente na Biblioteca Pública de Évora (60).
Na verdade, a música alta permanece obrigatória nas grandes comemorações, mormente
se forem de vantajosos feitos. E parece coisa de ponderar pelos historiadores de
pintura o não estar ela figurada nos famosos e :, discutidos painéis atribuídos a
Nuno Gonçalves. Sinais insofismáveis de uma continuidade em relação aos reinados
anteriores encontramo-los na interessante crónica do cavaleiro Jacques de Lalain
(de Borgonha), que esteve em Portugal em 1446 e foi recebido em grande pompa na
corte de D. Afonso V, que então se encontrava em Évora.
Houve caçada real e festa, na qual "grandes presentes foram oferecidos ao hóspede e
muitas sortes, como de tochas, círios e brandões de cera. Trombetas, menestréis e
muitos sonoros instrumentos tocavam à moda da terra, e por tal arte, que melhor se
não podia fazer, se estivera ali o duque de Borgonha. Longo fora contar-vos os
manjares e entremezes que então se viram". Mais tarde, começaram as danças. "Rompeu
o sarau el-rei, sendo seu par a rainha. Ninguém mais dançou então. Ao depois chamou
o soberano o cavaleiro e convidou-o a que dançasse com sua real esposa. Muito grato
se confessou a tal honra messire de Lalain. Seguiram em continente grandes danças
por todo o palácio ao som de melodiosos instrumentos que os menestréis tangiam."
(61)
Os contactos com a Inglaterra e a Borgonha eram, por aquela época, os mais
desejáveis do ponto de vista musical e decerto contribuíram para o maior brilho que
estava para vir, mais marcado ainda de espírito renascentista. O mencionado Tristão
da Silva, que foi elogiado pelo grande teórico espanhol Bartolomeu Ramos de Pareja,
parece ter escrito para D. Afonso V canções polifónicas ao gosto franco flamengo, o
mais moderno na época. Perdeu-se lamentavelmente o seu livro *_Los amables da la
musica*. Tudo indica, no reinado de o Africano, uma elevação do grau de cultura
musical acompanhando o refinamento e europeização, digamos assim, dos costumes da
aristocracia portuguesa (62).
O início do Renascimento
Também o sucessor de D. Afonso V se mostrou sensível aos encantos da música. Afirma
Garcia de Resende que foi "singular dançador em todalas danças" e conta, não com
excessiva modéstia: "Porque eu começava de tanger bem, me mandou ensinar e me ouvia
muitas vezes na sesta e à noite na cama, e me gabava tanto e tantas vezes que eu
não cuidava em outra coisa senso em servir e aprender." Resende não só tangia como
compunha. O *_Cancioneiro geral* contém dois vilancetes seus ("Coração, Coração
Triste" e "Minha Vida"), a que também "fez o som". E uma Dona Esperança que lhe
inspirou outro ("Que Me Quieres, Esperança") recebeu-o "entoado tam bem por ele".
Prossigamos acompanhando um pouco as festanças de corte, introduzindo-nos na louçã
sociedade renascentista. Nos grandes folguedos que D. João II ordenou para
assinalar o casamento de seu filho, o infante D. Afonso, houve surpreendentes
entremezes nos Paços de Évora, mascaradas (ditas *momos*) em que participavam os
mais lustrosos senhores do Reino, um cortejo com um gigante, uma grande nau ao
natural, o cisne :, deslizando sobre a água, outras tantas imitações de uma
esplendorosa festa que fora dada em Lille pelo duque de Borgonha, em 1453. Podemos
também imaginar, ainda que mal, os números de dança, para entretenimento dos
convidados, pela moirama que D. João mandara procurar expressamente para o certame.
Restos, por certo, de costumes medievais que haviam perdurado e que tão cedo se I
ao apagaram por completo (63).
A designação de momo teve amplitude semântica variável. Num sentido estrito, parece
ter querido dizer mascarada, enquanto no mais lato abrangia tudo o que, estático ou
em movimento, se via e ouvia numa sequência espectacular com decoração, trajes,
endereços, representação, música e dança. Quando havia uma parte integrante
episódica com preponderância da declamação, esta chamava-se *entremez*.
Enquanto a música de capela se quedava provavelmente próxima da cultivada nos
reinados anteriores -- sendo de notar que, além do órgão, nos chega notícia do
emprego na igreja de chamarelas e sacabuxas, no tempo do *_Príncipe Perfeito* --,
as artes mundanas conhecem um florescimento como nunca o tinham tido em Portugal.
Preciosos auxiliares para que as reconstituamos são os cancioneiros. Mas, antes de
nos determos neles, é mister procurarmos alguma razão fundamental dos esplendores
que rodearam os ceptros de D. João II e seus sucessores.
Influência dos Descobrimentos
Iam já em adiantamento as grandes expedições marítimas e, com elas realizava-se o
incremento rápido e em largas proporções do tráfego comercial. Desnecessário
alongar considerações sobre as consequências de toda a ordem que os Descobrimentos
tiveram, operando uma metamorfose da vida portuguesa. Mas importa acentuar que
manifestações artísticas tais como as que se verificaram então em Portugal só são
possíveis em ambiente próspero, quando nos seus beneficiários se instala a
convicção rósea de uma estabilidade e desafogo administrativos duráveis.
Não é ainda neste momento que as classes não aristocráticas aparecem a exprimir-se
destacadamente por uma arte musical sua, sendo os motivos essencialmente os mesmos
que antes enunciámos. Na classe média acumularam-se todavia grandes fortunas; deuse
em Portugal um prolongado inchaço de novo-riquismo. Diz-nos Tiago Sobieski, pai
de João Sobieski, rei da Polónia, que visitou Lisboa em 1611:"Entre os comerciantes
encontram-se fortunas fabulosas. No interior de suas casas surpreendem as riquezas
em tapizes e em pratas. Um comerciante português por nome Bento preparou-me um
aposento tão precioso, tão alcatifado", etc.
As riquezas provenientes dos novos mercados, assim como as que na Flandres, na
Inglaterra, nas cidades do Norte da Itália, provieram das intensas transacções
comerciais, não se concentraram exclusivamente fora da aristocracia, longe disso.
Uma organização fiscal cuidava de extrair desses proventos largas parcelas e, em
Portugal, a intervenção da coroa e da :, nobreza nos negócios mercantis foi
particularmente desenvolta. Já D. Fernando, muito antes, portanto, da epopeia
marítima, tivera barcos comerciais por sua conta. No primeiro quartel do século
XVI, D. Manuel mantinha normalmente umas trezentas naus para os negócios da Ásia,
África e América.
Houve também a preocupação de introduzir fidalgos nos meandros mercantis, passando
por cima de preconceitos sociais, de tal sorte eram sedutoras as perspectivas de
ganho material. Pedro Eanes, feitor na Flandres em 1441-1442, passou uma carta de
quitação em que se mencionam como donos de navios o conde de Vila Real, D. Álvaro
de Castro e o duque de Bragança. O infante D. Fernando, irmão de D. Afonso V,
possuía um barco que sabemos ter chegado a Lisboa em 1452, vindo da Flandres. Mais
tarde, D. João II ordenou que não se nomeassem oficiais mecânicos como corretores e
fretadores, dando como razão o exigirem esses cargos um nível de cultura elevado,
não podendo ser exercidos por analfabetos, como realmente o foram. Esta
determinação é interessante porque mostra à evidência como as novas condições
económico-financeiras tendiam a fazer subir a craveira mental através das
habilitações indispensáveis ao exercício administrativo (64).
Um dos erros que têm sido apontados na orientação dos magnos negócios desses
tempos, e que conduziram a resultados calamitosos, foi o de se ter querido
canalizar as novas e copiosas fontes de receita para a organização tradicional de
feição aristocrática, organização que podemos chamar *feudal*, no mais largo
sentido do termo (na acepção mais restrita, não houve praticamente feudalismo entre
nós, como é sabido). Com o vértice encastelado no pequeno reino criado a custo nas
centúrias anteriores, cresceu vertiginosamente uma pirâmide invertida, cujas faces
se desenvolviam sem termo, como que a pretenderem abarcar todas as opulências do
universo. O desmoronamento era fatal, mesmo sem a ajuda de desastres como o de
Alcácer Quibir ou a perda da independência.
Não podemos ir demasiado além dos limites desta abreviada compilação de índole
musical. Basta-nos compreender que o nosso Renascimento, nas artes como nas
ciências e outras humanidades, não resultou fundamentalmente do despertar
espontâneo da curiosidade e do engenho de nossos antepassados, nem somente da
influência estrangeira, senão da reviravolta da economia nacional. Se os contactos
com culturas de além-fronteiras, e nomeadamente com os Países Baixos (onde a música
continuava sendo a mais brilhante da época), se esses contactos influíram
grandemente nas actividades musicais, foram eles também, em parte, consequência dos
acontecimentos extramusicais a que nos estamos referindo.
Os cancioneiros
Procuremos agora, nas páginas dos cancioneiros, evocações do que foram os deleites
musicais dos fidalgos renascentistas. São quatro os cancioneiros mais importantes
para o estudo da música peninsular profana do :, tempo. _o *_cancioneiro de
palácio*, também chamado de *_Barbieri*, contém 463 peças, que são, na maioria,
vilancicos com a principal melodia na parte mais aguda. A colecção abre com um
vilancico então famoso, *_Nunca fué pena mayor*, do músico flamengo Johannes Wreede
(ou Urrede), de Bruges, que esteve ao serviço do duque de Alba. Supõe-se que o
cancioneiro reuna as peças em voga na corte do duque e é possível que ele próprio
seja o autor da letra dessa obra que serve de abertura à colectânea. Gil Vicente
refere-se a este vilancico nas tragicomédias *_As cortes de Júpiter* e *_A frágua
de Amor* (65).
Os textos literários do *_Cancioneiro de palácio* são, na maior parte, em
castelhano, mas há-os também em italiano, latim, português; francês e basco. Dos
autores musicais (que podiam ser simultaneamente literários), o mais em destaque é
Juan del Encina, nascido em Salamanca em 1468 ou 1469, filho de um sapateiro, homem
de grande talento que veio a ser mestre de cerimónias no palácio do duque de Alba.
Segundo o próprio Encina, a maioria das suas obras musicais e poéticas é anterior
aos seus 25 anos de idade.
O tema que prepondera nos versos do *_Cancioneiro de palácio* é o do amor. Quanto à
música, as vozes começam, no geral, simultaneamente e movem-se sempre como que em
sequência de acordes, isto é, sem floreados contrapontísticos, à maneira polifónica
do princípio do Renascimento. Esta característica pode traduzir a importância que
se atribuía à inteligibilidade das palavras. Aqui e acolá as vozes imitam-se,
desencontradas, inclusive logo no início da peça. A arte imitativa florescerá nos
grandes contrapontistas portugueses, de quem adiante falaremos.
O título de *vilancico* vinha de outros tempos, e admite-se que a sua origem esteja
na denominação de *cantiga de vilão*, usada na lírica primitiva galega. Associamse-
lhe diferentes tipos musicais, monofónicos e, mais tarde, polifónicos, sem ou
com mímica. Na Idade Média chamou-se assim o equivalente peninsular do *virelai*
francês e da *ballata* italiana, talvez todos descendentes do *zajal* árabe. Com
efeito, esses trechos para cantar com acompanhamento instrumental tinham
normalmente a forma *_A_B ccab _A_B*. As secções indicadas com maiúsculas
constituíam o *estribilho*, as outras a *copla*. Dentro desta, 0 grupo *cc* (uma
pequena secção, *c*, repetida) era a *mudança*, visto que estabelecia o contraste
com o estribilho. As secções *a* e *b* com que terminava a copla eram reduções do
estribilho, e por isso se indicam com as mesmas letras, mas minúsculas.
Compreendese, portanto, que ao grupo *ab* se chamasse a *volta*. Todavia, estas
denominações
não eram taxativas (66).
As modificações daquele esquema medieval são pouco profundas, o que talvez
demonstre o relativo conservantismo da música peninsular, ou o carácter popular que
convinha ao vilancico. Por esse tempo, os músicos italianos tinham praticamente
abandonado a *ballata*, a favor da *frottola*, talvez sob certa influência
hispânica, através da corte aragonesa de Nápoles. Com relação à forma anterior, o
vilancico renascentista parece tender a maior concisão formal, talvez ditada por um
gosto de elegância artística. 0 novo padrão seria, com possíveis variantes: *_A_B
cca _B*. Note-se que o esquema se ia repetindo, com versos diferentes nas coplas e
08 mesmos no estribilho ou refrão. A simplificação formal diminuía a insistência,
considerada talvez :, monótona, na música do estribilho. Característico do
*vilancico* parece ser o desencontro entre as rimas de texto poético e as
repetições da música. Por outras palavras: os reaparecimentos das rimas dos versos
não coincidem sempre com os retornos das respectivas melodias. Mais tarde, no
decurso do século XVII, a denominação de *vilancico* aplica-se predominantemente a
uma forma religiosa relativa ao Natal (*_Vilancicos de Natividade*), tal como
sucedeu em Inglaterra com a cerimónia dita "de carols" (67).
O *_Cancioneiro da biblioteca colombina*, de Sevilha, não contém textos em
português, o que não quer dizer que todas as suas peças tivessem sido ignoradas
entre nós, porquanto ainda por essa altura o castelhano se falava e escrevia muito
em Portugal. O repertório é semelhante ao do *_Cancioneiro de Barbieri*, a
polifonia realiza-se as mais das vezes a três partes.
O *_Cancioneiro de Upsália* (assim chamado em atenção à cidade onde foi descoberto
por um investigador moderno) inclui 54 vilancicos, dos quais os 12 primeiros a duas
partes, 14 a três, 22 a quatro e os últimos a cinco. Alguns deles são posteriores
aos do *_Cancioneiro de palácio* e a colecção foi impressa em Veneza em 1556 (68).
Todas as diferenças relativamente aos outros cancioneiros são no sentido de maior
elaboração e variedade. A escrita imitativa é muito mais usada, abrangendo
frequentemente todas as vozes. O único compositor explicitamente mencionado é
Gombert, músico de relevo que esteve em Espanha ao serviço de Carlos V. Mas sabe-se
que Encina também está representado nessa importante compilação de cantares, cujos
textos poéticos são, na maioria, castelhanos, quatro em catalão e dois em
galaicoportuguês, evocando a velha tradição trovadoresca.
Merece-nos especial atenção o *_Cancioneiro musical e poético da biblioteca públia
hortênsia*, descoberto pelo erudito musicólogo português Manuel Joaquim, em Elvas.
Sem quaisquer indicações de autoria, a comparação com o *_Cancioneiro de Barbieri*
revela, contudo, que 4 das 65 peças são de Encina, não sendo este o único ponto de
contacto entre os dois códices. Os catorze primeiros compassos de uma das
composições de Encina derivam de uma das *_Cantigas* de Afonso, *o Sábio*, a que
nos referimos, cantiga essa que tem curiosas parecenças com cantares populares que
ainda actualmente se ouvem em Trás-os-_Montes (Vila Real e Vinhais) (69).
No *_Cancioneiro da Biblioteca Públia Hortênsia*, os trechos são sempre curtos, a
polifonia é simples e a três partes em todos os que se conservam completos, que são
em número de 62. Infelizmente, faltam as primeiras 39 folhas do manuscrito e uma
outra. A segunda parte do livro tem só poesias, sem música.
Os textos poéticos estão escritos uns em português, outros em castelhano, mas
provavelmente de autoria portuguesa, outros ainda nitidamente espanhóis. Talvez
pudessem ser cantados só por uma voz, correspondente à parte mais aguda da
polifonia, sendo as outras duas tangidas em instrumentos. Com efeito, à excepção de
uma das peças, todas têm a letra sob essa linha mais alta do conjunto musical.
Manuel Joaquim, na notável análise que fez do cancioneiro para a edição que
dirigiu, admite que um ou dois versos fossem "cantados, à guisa de refrão ou
estribilho, por um coro constituído por pessoas que assistiam aos serões
poéticomusicais e a quem a poesia e música do *_Cancioneiro* eram familiares", ou
que
fosse costume tocar em :, instrumentos um "pequeno ritornelo de estrofe para
estrofe, o qual teria por fim dar descanso aos cantores e variedade à execução, no
caso de os cantores disporem de mais texto poético".
A utilização de instrumentos
De qualquer maneira, é caso assente que os instrumentos entraram na música do
período que estamos tratando, até porque algumas passagens dos cancioneiros não
podem conceber-se cantadas. Admite-se que uma boa parte desses tangeres fosse
deixada ao sabor das circunstancias e mesmo da improvisação ou semi improvisação
dos tocadores, o que explicará, por um lado, a escassez de informação que possuímos
em notação musical e, por outro, o brilho que veio a conhecer na Península a arte
da variação em instrumentos de corda dedilhada, ou de tecla, que eram utilizados
nos conjuntos com vozes -- com preponderância do alaúde e, cada vez mais, da
*vihuela*, a que hoje chamam *viola clássica* (e também *guitarra clássica* ou
*hispânica*). Os instrumentos não deviam ser especificados, utilizando-se aqueles
de que no momento os músicos dispusessem. Já no século XVII, Monteverdi deixou
larga liberdade para a realização instrumental da sua música de ópera. A propósito,
observe-se que o gosto peninsular da melodia cantada, com acompanhamento
instrumental, precede a monódia expressiva italiana propugnada na *camerata
fiorentina (70).
Infelizmente, o *_Cancioneiro geral*, de Garcia de Resende, não junta a música às
poesias, mas sabemos que elas eram cantadas e que as vozes podiam ser até quatro
pelo menos, imitando-se entre si com maior ou menor rigor, que parece chegava a ser
o extremo: o cânone. É o que se supõe ter sido o caso das "trovas que fez D. João
de Meneses por letra duma compostura que fez de canto de órgão, que se canta todas
três vozes por uma só". "Canto de órgão" não implica a intervenção do instrumento
assim chamado; era como em Portugal se denominava a música mensurada ou medida, com
as durações relativas de cada nota bem definidas, em oposição às durações vagas,
não medidas, do cantochão. Também interessantes, do ponto de vista musical, são os
versos "a umas pancadas que deu um tipre [cantor de voz aguda] a um tenor e abade
em paga doutras que lhe já dera", onde, entre outras alusões irónicas à profissão
de músico, figuram estas:
Mas o tipre não cantava,
nem aguardava compasso,
o tenor mais que de passo
suas vozes altas dava.
_o rifão: a que del rei,
a copra: por deus senhor,
a torna: moiro de dor,
o vilancete não sei. :,
Não convém que nos separemos já do *_Cancioneiro geral* que, impresso em 1516,
abunda em informações interessantes sobre a vida cultural palaciana durante a
segunda metade do século XV e o princípio do XVI. A intenção de Garcia de Resende
transparece do seu prólogo, dirigido a D. Manuel I, onde nomeadamente se lê que
"muitas cousas de folgar e gentilezas são perdidas sem haver delas notícia". E
Resende especifica: "No qual conto entra a arte de trovar, que em todo tempo foi
mui estimada, e com ela nosso senhor louvado, como nos hinos e cânticos, que na
santa igreja se cantam, se verá. E assi muitos imperadores, reis e pessoas de
memória pelos rimances e trovas sabemos suas histórias; e nas cortes dos grandes
príncipes é mui necessária na gentileza, amores, justas e momos; e também para os
que maus trajes e invenções fazem, por trovas são castigados, e lhe dão suas
emendas, como no livro ao diante se verá."
A finalizar, Resende tem o cuidado de separar tais divertimentos dos feitos dignos
de transgressão à posteridade: "E porque, senhor, as outras cousas são em si tão
grandes, que por sua grandeza e meu fraco entender não devo de tocar nelas, nesta,
que é assomemos por em alguma parte satisfazer ao desejo que sempre tive de fazer
alguma cousa em que vossa alteza fosse servido e tomasse desenfadamento, determinei
ajuntar algumas obras, que pude haver dalguns passados e presentes e ordenar este
livro: não para por elas mostrar quais foram e são, mas para os que mais sabem se
espertarem a folgar de escrever, e trazer à memória os outros grandes feitos, nos
quais não sou digno de meter a mão."
Dos passos transcritos já se depreende que a arte poético-musical em questão
conservava traços da trovadoresca propriamente dita, sua antepassada. Vejamos agora
um pouco o que o *_Cancioneiro geral* nos diz acerca dos assuntos bons para os
ócios daquela fidalguia mais ou menos parasitária e da medida em que esta praticava
a música.
Os assuntos dos poemas
Os trechos do *_Cancioneiro* podem dividir-se em dois grupos, um de temas sérios, o
outro, muito mais numeroso, de carácter alegre, muitas vezes escarninho. O segundo
grupo compreende uma subdivisão de manifestações colectivas, com participação de
vários versejadores reunidos em divertida sociedade.
Na primeira categoria encontram-se assuntos como a morte de Inês de Castro e as de
D. João II e do seu filho herdeiro, o infante D. Afonso, ou a tomada de Azamor, ou,
ainda, as penas amorosas, cantadas em tom elegíaco. Há também traduções de poemas
clássicos.
Os trechos ligeiros incidem sobre uma grande quantidade de casos propícios à
málíngua palaciana, em enorme parte respeitantes a singularidades de traje. Sirva
de
exemplo este motejo de D. João de Meneses, "em nome das damas", ao conde de
Vila_Nova e a Henrique Correa, que, em Agosto, "fizeram carapuças de solia", ou
seja,
de um tecido de lã: :,
Não sei mal que não mereça, quem vos fez tal zombaria, que nos meteu na cabeça
carapuça de solia.
Se vos enganou Agosto,
semos-lh' em obrigação,
por fazerdes invenção,
de que temos tanto gosto,
e de vós não.
E mais diz dona Maria,
qu'é razão que lh'avorreça
a quem metem em cabeça
carapuça de solia.
A temática tinha bastantes graus de liberdade. Um dos episódios que mais fizeram
rir aqueles senhores e damas foi o de "um fidalgo que no serão de el-rei se meteu
em uma chaminé e fez seus feitos num braseiro." Entre muitos outros comentários em
rima:
Se não fora em chaminé, que foi logo pelo vão,
pastilhas, lenh'oloé,
nem os cheiros de Guiné
não bastaram [bastariam] no serão.
Porqu'era tão desmedido
o grão olor que sa'a,
que por fora recendia.
A liberdade, em matéria de coisas fúteis, ia muito mais longe podendo tornar-se
extremamente brejeira. A um fidalgo que, quando casou, "a primeira noite foi dormir
à pousada de João Saldanha":
Dom João, depois que ceou potajes, pastes de pote,
um rabo de porco achou
que, por muito qu'esfregou,
não pôde fazer virote.
E diz que, por [para] não passar
uma vergonha tamanha,
que se lançara [lançaria] no mar,
se não achara Saldanha.
Se bem que o "servir" a damas seja por ventura o mais recorrente dos temas do
*_Cancioneiro*, a reputação feminina estava longe de segura, contra toda aquela
maledicência. A julgar pelo diploma que Rui Moniz passou, na cantiga em que
"aconselha umas senhoras", é de admitir que a vulnerabilidade das donzelas não
tardasse muito :,
Mas a que o gosta, não lhe pesa nada
de ser cavalgada
d'ilharga ou de costa.
Passara dos doze,
o mais não é cedo,
s'amor vos escoze
perde-lhe o medo.
E, mais adiante:
Já se não costuma pedir virgindade,
e [ainda] que se presuma,
não háhy [a'] verdade.
Com mão ou com dedo
podeis-vos furar,
sem arrecear,
nem disso haver medo.
De D. João de Meneses, a uma dama que "rafiava" -- isto é, acariciava -- "e beijava
Dona Guiomar de Castro:
Senhora, eu vos não acho "razão para rafiar
e beijar tão sem empacho
dona Guiomar,
salvante se vós sois macho.
Ainda de Fernão da Silveira:
Dois gostos podeis levar, senhora, desta meneira,
pois acabeis de tudo usar,
ser macho para Guiomar,
e fêmea para Nogueira.
E por isso não vos tacho [censuro],
antes vos quero louvar,
nos trajos, em que vos acho,
podereis vós emprenhar
outra mulher como macho.
Nem as religiosas escaparam. De Rui Moniz, a três freiras dum mosteiro:
Senhoras, vós todas três, porque sois de mui bom tento,
por mercê responderes,
e isto declarareis
em nome desse convento. :,
Dizemos cá entre nós,
e todos tem por tenção
se não é frade:
que quem jaz c'uma de vós,
que lhe cai arma da mão,
se é verdade.
Nos últimos versos, o autor usa maliciosamente duma imagem musical:
E porque nós não sabemos tão bem arte do cantar
como vós, nem n'aprendemos,
em grão mercê vos teremos,
ensinardes-nos solfar,
e mandai tudo num rol,
senhoras, por vossa fé,
e dizei-nos em be mol,
se folgais por mi fásol,
se por ut [dó] ré!
Estas transcrições já bastam a demonstrar que a mentalidade e os hábitos das
pessoas em causa não eram bem as que dão a entender alguns investigadores e
divulgadores tendentes a pintar de azul é oiro tudo o que respeita à aristocracia
de outros tempos; e que não correspondiam tão-pouco à impressão de perfeita
delicadeza que hoje temos quando ouvimos música palaciana do Renascimento. E não se
tome a franqueza destes poucos exemplos, entre os muitos possíveis, como regra
geral de comportamento, aplicada a todas as situações. O mesmo *_Cancioneiro Geral*
nos elucida a tal respeito, chamando-nos mais de que uma vez à lembrança os
"cortigiani, vil razza dannata" da ópera *_Rigoletto*.
De Luís da Silveira a D. Nuno Manuel, "estando com el-rei em Sintra e ele em
Lisboa".
Esperança de proveito faz fingir mil amizades,
mui cheias de seu respeito,
mui vazias de verdades.
_o ódio não aparece,
o amor anda de fora:
este'é o mundo d'agora;
goay[ai] de quem o não conhece!
Os rostos andam afeitos
a mil dessimulações,
tudo são modos e jeitos:
só deus sabe os corações.
Não háhy [por a'] língua que diga
a tenção de seu senhor,
da vontade mais i[ni/úniga
amostre-ela mais amor. :,
Na ajuda que prestou a estas trovas, próprio Garcia de Resende acusou que
Todos tiram à barreira d'haver fazenda e dinheiro;
ser honrado e cavaleiro
não há ninguém que o queira.
A maneira mais tentadora de enriquecer era o negócio das especiarias. Estas também
forneceram vocabulário aos versejadores. De Afonso Valente, numas trovas que fez a
Garcia de Resende:
Pareceis mais de setenta cousas posto em gibão,
e cais no borizão
dum grão fardo de pimenta.
E, juntamente com animais cuja menção devia ser excitante, aparecem, numas glosas
de Diogo Velho, feitas em 1516, mais mercadorias que não só a pimenta, reflectindo
os efeitos das navegações:
Ouro, aljifar, pedraria, gomas e especearia
toda outra drogaria
se recolhe em Portugal.
Onças, leões, alifantes,
monstros e aves falantes,
porcelanas, diamantes,
e já tudo mui geral.
Não era só fazenda e dinheiro. Era também a ânsia de honrarias e por parte daqueles
que as tinham já em termos de nobreza, a ofensa por tudo o que lhes afectasse os
privilégios. É assim que vemos Álvaro de Brito queixar-se ao rei de "três
desembargadores que eram juízes d'entre ele e um vilão".
Senhor, João, Pero, Luís, três de vossa relação,
0 que deus não quer, nem quis,
querem mostrar por razão,
querem salvar um vilão,
querem condenar a mim,
querem fazer por Latim
do não sim, e do sim não.
Resta saber que razões teria o vilão. Segundo Gregório Afonso, decerto lhe não
assistia nenhuma, se porventura estava em causa o seu prestígio social:
Arrenego dos vilãos
postos em alguma honra. :,
O mesmo Gregório Afonso faz figas a mouros e protestantes:
Renego também de Fez
com toda sua Mourisma.
Arrenego desta cisma
e revolta do igreja.
Os remoques maometanos são muitos, ao longo do *_Cancioneiro*, e não lhes falta a
companhia dos que escarnecem de pretos escravos, judeus e cristãos-novos.
Por tua grei e na tua lei,
morrerás;
a Cristo não quitarás,
nem no serás,
se t'o não mandar el-rei.
Roubarás,
porás os homens no fio:
com dia te trancarás
de medo d'algum desvio,
e como [quando] achares navio,
partirás.
Finalmente, deve observar-se que os assuntos das poesias de folgar podem revestir
interesses de outra ordem, considerados da nossa perspectiva novecentista. É o caso
da longa demanda do *_Cuidar e Suspirar*, exemplo, em forma de pleito judicial, das
já referidas manifestações de conjunto, em que activamente participavam muitas das
pessoas presentes. É com essa série de perguntas, respostas, acusações, defesas e
sentenças que o *_Cancioneiro* começa.
A origem esteve em que Nuno Pereira se mostrou muito "cuidoso", enquanto Jorge da
Silveira dava muitos suspiros, sendo ambos servidores da senhora dona Lianor da
Silva:
Vós, senhor Nuno Pereira, por quem és assim cuidando
Por quem vós 's suspirando,
senhor Jorge da Silveira?
Na sua aparente frivolidade, a questão toca num ponto importante da expressão
artística em geral, e da musical em particular, relativamente a qualquer época.
Qual a expressão que vale mais? A que, retraída, se inibe de desabafos
espectaculares, ou a que se permite os mais ostensivos meios de exteriorização.
Quantos compositores, quantos intérpretes podem ser postos de uma e outra banda,
como partidários do suspirar e do cuidar. Hãndel e Bach, Verdi e Brahms, Puccini e
Debussy, Sarasate e Joachim, Suggia e Casals, Paderewski e Viana da Mota, Titta
Ruffo e Fischer-_Dieskau.
Uns períodos da história da música têm inclinado mais ao suspirar, outros,
nomeadamente o nosso, ao cuidar. Posto que de ambos os lados se :, encontram
artistas superlativos, tendemos hoje a considerar a abundância de "suspiros" não só
contraproducente como denunciadora da falta de cultura e de bom gosto. Se faz algum
sentido aplicar este critério à corte manuelina, é bom sinal que por lá tenha
havido quem entendesse que
... da pena, que é cuidar, descanso é suspiros dar,
e sa [sua] dor é mais pequena.
O papel da música nos entretenimentos palacianos
Muitos dos versos do *_Cancioneiro geral* foram com certeza cantados, as mais das
vezes, provavelmente, com acompanhamento instrumental. É, porém, igualmente seguro
que nem sempre a música se lhe associou. Por exemplo, no *_Cuidar e suspirar*, a
seguir a *cantiga*, aparece mais do que uma vez a rúbrica " fala com a dama". Numas
trovas em português, Rui Moniz "mete no cabo de todas uma cantiga", em castelhano o
que não é caso único no *_Cancioneiro*. Também é possível que os versos de Fernão
da Silveira às damas, fingindo-se morto, fossem em parte falados, em parte
cantados:
...
e canta mui entoada esta letra, que no cós
traz cosida:
da morte sam [sou] lastimada,
porque sempre contra vós
fui na vida.
Umas trovas de Diogo Marcão, no cabo de cada uma das quais há "uma cantiga, feita
por outrém", em português, em castelhano ou numa mistura de ambas as línguas,
aparece a expressão *voz erguida*, a marcar provavelmente a passagem da recitação
para o canto:
...suspirando
com grão pena mui cre[s]cida,
mui grave de resistir,
comecei em vez erguida:
Ó que forte despedida,
Ó que pena m'és partir,
Ó quam malo es de sofrir,
ver enagenar mi vida
em poder de quem me olvida!
Que a *voz erguida* era própria do canto confirma-o o Fernão da Silveira, nos
referidos versos em que se fez morto: :,
Quando responso cantar ouvirdes, em voz erguida,
...
Um momo que o conde de Vimioso fez "levava por entremês um ando e um diabo, e o
anjo *deu* esta cantiga a sua dama". Menos do que transcrever a cantiga, importa
dizer que o verbo *dar* se conjugava habitualmente com música por complemento
directo. Não muito mais tarde, Camões confiou-lhe a mesma função. Também essa
cantiga, deve, pois, ter sido efectivamente cantada.
Outra prova está no "vilancete que fez Pero de Sousa, quando el-rei nosso senhor
veio de Santiago, que fez o singular mouro em Santos, o qual vilancete iam cantando
diante do entremês e carro em que ia Santiago". O próprio Garcia de Resende se
refere assim aos serões de cantigas, numas trovas da corte que lhe pediram:
Figueiró é no serão de cantigas, de tenção
mais servida que ninguém
de três que cantam mui bem:
nisto sabereis quem são.
É de supor que fossem cantadas, com acompanhamento do pandeiro as glosas de Álvaro
Fernandez de Almeida ao vilancete que diz:
tango vos, yo, my pandero,
tango vos, y penso en al.
Acresce que algumas citações poéticas nos indicam, através doutras fontes, a música
com que devem ter sido cantadas. É o caso da recorrente "pena maior", sem dúvida
alusiva 'at um vilancico com letra do primeiro duque de Alba e música de Johannes
Urreda que teve grande voga. A entoação fazia-se em conjunto. Indicam-no um exemplo
já apontado e a rubrica duma "cantiga portuguesa" do *_Cuidar e suspirar*, "que
cantam todos quatro em favor do cuidado".
Além de tudo isto, entram no *_Cancioneiro* autores sobre os quais não há dúvidas
de que praticavam a música, entre eles Gil Vicente, o cantor Bastião Costa, que
como tal vem mencionado, e, com bastantes referências explícitas, o mesmo Garcia de
Resende que, no que respeita à arte dos sons, parece ter sido bom tangedor de
instrumentos de corda dedilhada, cantor e compositor.
Um dos títulos: "De Garcia de Resende a um propósito em que fez este vilancete, a
que também fez o som"; que é como quem diz, cuja música também foi composta por
ele. Outro: "Vilancete de Garcia de Resende, a que também fez o som." Ainda outro
"Garcia de Resende ao secretário, que lhe disse, porque tangeu e cantou muito bem,
que' lhe daria dois pares de perdizes para o papo, e para as mãos dois pares de
luvas, e que mandasse a sua casa por tudo; e mandou com esta copla."
A Resende, que era muito gordo, se dirigiu D. Francisco de Biveiro nestes termos
brincalhões: :,
_o redondo de Resende
bem m'entende,
tange e canta muito bem
e debuxará alguém
se com isto não se ofende.
Na mesma veia lhe trovou Afonso Valente:
...
Dizem que tangeis laúd [alaúde],e tocais bem os bê moles [bemoles]
e pousais em retrapoles
abaixo de gamaúd [gumma-ut]
Se tangeis por bê coatrado [bequadro],
inflamado como chama,
pareceis odre, apojado
como mama.
...
"Abaixo de gamaúd" é também expressão irónica. Insinua que Resende descia abaixo da
mais grave das notas musicais.
Merecem ainda atenção as quarenta e oito trovas que Resende fez por ordem do rei,
para tornar mais divertido um jogo de cartas. Em cada uma destas ia escrita uma
trova.
Os jogadores eram vinte e quatro homens e outras tantas damas. Doze trovas teciam
elogios a eles, doze a elas, e as restantes deslouvores, também divididas em partes
iguais. Baralhadas as cartas, tirava-se à sorte uma em nome de fulana ou fulano. A
trova era lida de alto e a quem acertasse o louvor iria o jogo bem, enquanto no
caso contrário se ririam dele, ou dela.
Um dos encómios a varões diz assim
Eu prezo-me d'escrever
e dar conselho nums motos,
sei bem cantar e tanger,
alguns são em mim devotos.
E sam [sou] prezado das damas,
estimado dos senhores,
e com todos meus favores
não lhe[s] tiro suas famas.
Auto-retrato? O "sei bem cantar e tanger" convida a supô-lo.
Posto isto, há que concluir que a música se juntou muito à poesia nesses
passatempos de fidalgos e privilegiados. Mas não como acólita sempre obrigatória.
D. Francisco de Biveiro lá teve as suas razões, na resposta a uma troça de Vasco
Froes: :,
Se se houvera de ensoar
ou entoar
qualquer graça ou zombaria
por vós mesmo eu ousaria
entre as outras a gabar.
Mas porque as cousas do paço
um pedaço
às vezes hão-de ir sem som,
por isto seria bom
tirar-vos dest'embaraço
Umas formas poéticas, a começar pelas cantigas, tinham maior afinidade com a música
do que outras. Além do que havia por certo quem fosse capaz de versejar, mas não de
sofrivelmente cantar ou tanger algum instrumento.
Por outro lado, é preciso considerar um aspecto muito importante, sobre o qual o
*_Cancioneiro geral* se não mostra informativo: o dos músicos profissionais ao
serviço. Porque escusado seria dizer que os nobres se davam às artes em puro
amadorismo. De contrário ficariam pelas ruas da amargura.
A respeito de cantantes e instrumentistas pagos por D. Manuel para lhe prestarem
serviço encontramos algo de elucidativo na crónica de Damião de Góis, segundo o
qual o Venturoso foi "mui músico de vontade, tanto que as mais das vezes que estava
em despacho, e sempre pela sesta, e depois que se lançava na cama, era com ter
música." Góis acrescenta que não só para a música deste tipo, a que chama de
câmara, mas também para a sua capela -- ou seja, para o conjunto de executantes
principalmente destinados a música religiosa -- D. Manuel tinha cantores e
tangedores de eleição, que lhe vinham de todas as partes da Europa, aos quais
oferecia grandes vantagens. Como nomeadamente lhes "dava ordenados com que se
mantinham honradamente, e além disto lhes fazia outras mercês", conseguiu ter "uma
das melhores capelas de quantos Reis e príncipes então viviam".
Note-se que Damião de Góis era ele próprio músico, pelo que este seu depoimento
adquire um valor particular. Mais uma razão para que nos interesse o seguimento do
relato.
Ficamos também sabendo que todos os domingos e dias santos D. Manuel jantava e
ceava ao som de música, "de charamelas, sacabuxas, cornetas, harpas, tambores e
rabecas e nas festas principais com atabales e trombetas". Enquanto o soberano
comia, esses instrumentistas profissionais (ou *mecânicos*, como dantes se dizia)
tangiam cada um por seu giro. Além deles, D. Manuel tinha "músicos mouriscos, que
cantavam e tangiam com alaúdes e pandeiros". Estes, assim como os tocadores de
charamelas, harpas, rabecas e tamboris, forneciam os ritmos para as danças dos
"moços fidalgos, durante o jantar e ceia".
Mais nos assegura Damião de Góis que o serviço da mesa "era esplêndido, como a Rei
pertence". Continuadamente todos os domingos e dias santos, e nalguns dias úteis
(que então se diziam dias "de fazer"), enquanto foi casado, D. Manuel "dava serão
às damas e galantes, em que todos dançavam e bailavam, e ele algumas vezes". Eram
as folganças em que se recitaram e cantaram muitos dos versos reunidos no
*_Cancioneiro geral*. :,
Com pompa de atabales e trombetas "cavalgava el-rei muitas vezes pela cidade, e
quando caminhava". Não faltavam os bobos: "Trazia continuadamente na sua corte
chocarreiros castelhanos, com os motes e ditos." Não porque achasse muita graça ao
que diziam, mas porque gostava das "dissimuladas repreensões que com jeitos e
palavras trocadas davam aos moradores de sua casa, fazendo-lhes conhecer as manhas,
vícios e modos que tinham". E parece que as reprimendas surtiam efeito, já que o
autor da crónica assevera que muitos dos visados se emendavam, "tomando o que estes
truães diziam com graças, por espelho do que haviam de fazer".
Muito antes do tempo de Hãndel, o soberano português era dado a música aquática.
Quando estava em Lisboa, nos Domingos e dias santos em que não ia à carreira -- ou
seja, às correrias a cavalo --, em alguns da semana, "ia folgar em um batel feição
de galeota, toldado e embandeirado de seda, levando sempre consigo música". Do cais
dos paços de Santos-o-_Velho iam merendas para bordo, com "muitas frutas verdes,
conservas e cousas de açúcar, vinho e água", de que também comiam os fidalgos com
honras de batel, assim como "toda a mais companhia de músicos moços fidalgos, da
câmara, e remeiros". Nas vésperas de Natal havia festa solene, a mais desejada de
quantas se faziam na corte ao longo do ano e com a qual se gastava muito. O rei
"consoava publicamente em sala com todo estado de porteiros de maça, reis de armas,
trombetas, atabales, charamelas, e enquanto consoava davam de consoar a todos os
senhores, fidalgos, cavaleiros e escudeiros que estavam na sala". Depois eram
contempladas com os manjares as damas da rainha e os "oficiais", e ainda, na casa
das arrecadações, os "capelães, cantores, físicos [médicos], ministreis,
reposteiros [guardas dos móveis], moços da estribeira e do monte [da caça] e os
moços da câmara, que eram os que traziam os pratos à consoada de el-_Rei".
O dispêndio seria considerável, mas não de molde a criar preocupação a um monarca
"próspero todo o tempo que reinou". Góis afirma ter visto com os seus próprios
olhos, "muitas vezes na casa da contratação da _índia, mercadores com sacos cheios
de dinheiro de moeda de ouro e prata para fazerem pagamento do que deviam por conta
das especiarias que comprava, com o qual dinheiro lhes diziam os oficiais que
tornassem em outro dia, porque não havia tempo para o então contarem, que tanta era
a soma que se recebia todos os dias".
Na Páscoa também se davam acontecimentos com implicações musicais. Na "mui solene
procissão da Ressurreição" entravam o rei e a rainha "com todas suas damas e
cortesãos, precedendo ponteiros de maça, reis de armas e todo género de música, e
instrumentos que em sua corte havia".
Não era só nos serões e outras festas ou solenidades que D. Manuel folgava em ouvir
música, ainda que fosse apenas de fundo, como hoje se diz, em linguagem
cinematográfica, radiofónica e televisiva. Nos dias em que dava audiência "havia
sempre na câmara em que estava música de cravo e cantores." E "nunca ia à caça sem
levar músicos, e instrumentos de câmara, com que lhe tangiam, e cantavam, fosse no
campo, ou nas casas onde comia, e repousava".
Esta evocação através do prisma de Damião de Góis (e do do cardeal-infante D.
Henrique por cujo mandado a crónica foi escrita) não visa tanto :, a sublinhar a
afeição de D. Manuel I pela arte dos sons como a mostrar que, num período da
riqueza material sem precedentes na história do reino, a corte portuguesa conheceu
brilhos musicais semelhantes aos de outras da Europa que também dispusessem de
meios superabundantes. Essas manifestações, sem dúvida *culturais*, não o eram,
porém, num sentido que hoje tem a maior actualidade mas que então seria
inconcebível, em função das ideias estabelecidas, das convenções intangíveis e dos
condicionamentos económicos, sociais e políticos da época. Não podia passar pela
cabeça de ninguém uma acção cultural que levasse os versos e as músicas do paço ou
das casas senhorias à generalidade da população portuguesa, nem sequer à sua
parcela de classe média que mais estava subindo, por força dos lucros mercantis.
Nem tal seria exequível com uma imprensa ainda tão jovem e um ensino tão escasso,
sem perspectivas de atacar consideravelmente o analfabetismo quase universal.
Por outro lado, tais manifestações não eram, infelizmente, tidas por importantes a
ponto de se justificar o seu perdurável registo, para a posteridade. Importantes,
sim, os feitos militares, a questão de sucessão nos tronos, as descobertas,
assuntos que dominam os textos dos cronistas. Como vimos, Garcia de Resende teve o
cuidado de advertir que, ao compliar o *_Cancioneiro geral*, para publicação
impressa, não pretendeu mostrar pelas obras "quem foram e são", mas sim estimular
outros a exercerem sobre coisas mais relevantes.
Passar música profana a escrito, para ficar, era mais raro do que salvar versos do
esquecimento. E compreende-se, porque eram ainda muito menos os que sabiam grafar
notas na pauta do que os que tinham aprendido a alinhar palavras. Neste aspecto,
parece que os músicos portugueses daqueles tempos não tiveram os incentivos ou tão
só possibilidades que assistiram a colegas seus de outras cortes europeias.
Bastante mais tarde, em meados do século XVII, D. João IV, na sua *_defensa de la
musica moderna* (71), ainda observar não ser costume passar a escrito aquilo que
qualquer músico canta "à vilhuela, orgão ou outro instrumento", exprimindo o que se
lhe oferece, "de estudado ou de repente".
Do período a que se refere o *_Cancioneiro geral*, nem de qualquer outro anterior,
não se conhece nenhum trecho musical de autoria portuguesa identificada. Não é
possível enunciar validamente o quer que seja que de algum modo caracterize a
música portuguesa de então. Apenas poderia aventar-se afirmações muito
provavelmente verdadeiras, mas igualmente vagas, no sentido da conservação
evolutiva de elementos tradicionais galaico-portuguesas, da utilização dos
instrumentos musicais mencionados na literatura em prosa e verso e da assimilação
de influências exteriores, nomeadamente da Espanha (favorecidas pelos enlaces
matrimoniais de reis e infantes), da França e da Flandres sem esquecer: as músicas
e danças populares mouriscas.
No *_Cancioneiro geral* há indícios a tal respeito. Por exemplo, esta oitava de
deslouvor do próprio Resende, para o referido jogo de cartas: :,
Porque vindes ao serão,
porque vos meteis na dança
pois que para cortesão
andais mui longe de França.
Sois mui frio e sem sal
e sabeis-vos mal vestir;
então quereis presumir
de galante e dançador.
De D. Francisco Biveiro ao deão:
Confessou-me o adaião,
e isto é chão,
que quem sua trova fez,
não em França, mas em Fez
aprendeu esta invenção.
Por seu turno, João Fogaça abre assim uma resposta:
Senhor não tenho lembrança
de cousa que já fizesse
mais do que se faz em França,
porque se o eu soubesse
di-lo-ia sem tardança.
Há inclusivamente, citações francesas. De João Gomez da Ilha a Rui Moniz:
Quanto mais dum que me tem
le cor de moy travessado,
causou-se dum apartado
e mui longo querer bem.
E na resposta:
Por serdes quem pena sente,
qual demostra vos'escrito,
de confortar-me não quito
mom cor em seu mal presente.
Os seguintes versos de Álvaro de Brito, interessantes sobretudo por denunciarem o
mau caminho que levava o comércio externo, talvez mereçam atenção também neste
contexto, no pressuposto de a palavra "antremeses" [entremeses] não ter sido usada
em sentido figurado:
Assim como [logo que] vão da nau,
todos os outros estantes
nos depenam:
levam ouro, trazem pau;
nossos tratos mercadantes
desordenam. :,
Por Flamengos,
Florentin[o/ús
mal nos vindo,
com seus novos
dão-nos trinta
vão-se rindo.
Genoveses,
e Castelhanos,
entremeses
mil abanos;
O vocabulário de mais ou menos directa conexão sempre se encontra no *_Cancioneiro*
não dá indicações importantes em matéria de influência estrangeira. Não parece no
entanto ocioso registar aqui mais alguns termos, além dos que já ocorreram em
transcrições. São eles: *acertar* (nomeadamente uma cantiga), *acordar* (por ex.,
*vozes mui acordadas*), alcancareiro (a qualificar um pandeiro), *alta,
atabaqueiro* (tocador de atabaque, espécie de tambor), *atambor, baixa, berimbau,
bordão, cantochão, cantor, charamelão, cítara, concertado, contraponto, delgado*
(som delgado) *desacordar, descanto, desensoado, diapasão, discorde, estante,
forte, griloso* (canto griloso) *harmonia, harpa, jogral, menor, melodia, mesurar,
ministrel, oitava, proporção, quádrupla, (cadupra), quarta, romance (cantar
romance) sacabuxa, semitom, (ssomitoom), síncopa, supra, tamboril, terceira,
tromba, trombeta e vozeiro* ("o tenor mui mais vozeiro/do que soía cantou").
A alusão que acima se fez, à aceitação de música de mouros, em geral escravos, diz
principalmente respeito à dança. Há referências várias à muito apreciada
*mourisca*, designação que, aliás, não implicava adopção directa de costumes de
mouros fixados em Portugal. Por exemplo:
Pero [se bem que] tenha jurado
de me nunca namorar,
por vossa filha balhar [bailar]
meu juramento é quebrado.
E se não foss'a revolta
que disto se seguiria,
log'hoje deprenderia
a fazer mourisca volta.
...
Doce bailo de Mourisca"
mil sentidos faz perder,
e lá mete uma tal trisca
que é mui má de guarecer
Numas trovas de Henrique da Mota a Vasco Abul ("porque andando uma moça bailando em
Alenquer deu-lhe zombando uma cadeia de ouro, e depois a moça não lha quis tornar,
e andaram sobre isso em demanda, e veio Vasco Abul falar sobre isso à rainha"): :,
...
Bailava balho vilão,
ou mourisca,
mas, chamo-lh'eu carraquisca,
mais viva que tordião.
...
O tordião (grafado *tardyam* e *tordiam* no *_Cancioneiro*) era também uma dança
(72). Em Espanha houve um Christoval Sanchez a quem passaram a chamar Christoval
Tordión por ser ele quem organizava as sessões dessa dança, de proveniência
francesa.
Que o tordião, a mourisca e o baile vilão eram particularmente caracterizantes de
dotes individuais, confirma-o Resende nas trovas para o jogo de cartas:
...
Para vós não é serão,
dança, nem baile mourisco;
em feia pondes o risco
mais altas que quantas são.
Em falar sois enxabida
e em rir desengraçada,
sois mui pouco entremetida,
em responder mui pejada.
Sois também desensoada,
para dançar tordião,
quiçá se foreis vezada [habituada],
bailareis bailo vilão.
Vem ainda a propósito referir a dança *baixa* e a *alta*, distinção que, à luz da
investigação recente, não tinha a ver com o grau de elevação dos passos.
De D. João de Menezes "às damas, porque errou uma baixa e elas mandaram-lhe a conta
dela à pousada por escrito":
[...]
Nos singelos e dobrados
represas e contenenças
e mesuras
há passos dissimulados,
que fazem mil diferenças
de vidas e de venturas.
Numa oitava de Nuno Pereira, à menção da *baixa* junta-se não só a da *alta* como
também a de outra dança da época: a *mangana*.
Se m'a mim não mente Aixa,
se me Comba não engana,
sei bailar melhor mangana
que dançar alta nem baixa. :,
O qualificativo de *baixa* pode ter significado que a dança provinha da Baixa
Alemanha, ou seja, da Flandres. Dentro desta ordem de ideias, seria de supor que a
dança *alta* veio da Alta Alemanha. Por outro lado, o mestre da dança italiano
Domenico de Ferrara registou, em meados do século XV, uma *alta espanhola* que
comparou a um "*pas de brabant*". Isto reforça a ideia de que a *alta* fosse uma
dança de origem não ibérica, provavelmente relacionada com o tordião (73).
Há outras referências a estas danças. Merece atenção o seguinte emprego da palavra
*mangana* por Garcia de Resende:
Galante godomecí [guadamecim, couro pintado/ú
e doutra parte badana,
pareceis madril [madrilena?] mangana
qu'ensina a bailar aqui.
Finalmente, há que referir a *dança de espadas* e a *dança de copas*, esta última
trazida possivelmente à balha em duplo sentido figurado, envolvendo cartas de jogar
e matanças de sede, no pressuposto de que o rotundo Resende não se negava a copos
de vinho:
Pareceis mui grande ro[l]
de grifos mui esfaimados,
albarda mulher de prol,
muito cheia de bordados.
Guia de dança d'espadas,
grão mal asfada d'estopas;
guia de dança de copas,
todas cheias a rasadas.
Escusado seria acrescentar que o ensino da dança -- ou, melhor, de certas danças --
era duma importância fundamental para os fidalgos e fidalgas que se prezassem. Não
admira que em meados do século XVI, funcionassem em Lisboa catorze escolas públicas
de dança, sem contar os mestres que iam ensinar os nobres e, provavelmente, alguns
burgueses ricos em suas casas.
_história da
_música _portuguesa
por
_joão de _freitas _branco
_publicação em 16 volumes
_s. _c. da _misericórdia
do _porto
_c_p_a_c -- _edições
_braille
_r. do _instituto de
_s. _manuel
4050 __porto
1998
_quarto _volume
_joão de _freitas _branco
_história da
_música _portuguesa
_organização,
_fixação de _texto,
_prefácio e _notas
de _joão _maria
de _freitas _branco
2.a _edição,
_revista e _aumentada
_publicações
_europa-_américa
_capa: estúdios _p. _e. _a.
_herdeiros de _joão
_c de _freitas _branco, 1995
_editor: _francisco _lyon de
_castro
:__publicações europa-américa, __lda.
_apartado 8
2726 __mem __martins __codex
__portugal
_edição n.o: 116512/6266
_execução técnica:
_gráfica _europam, _lda.,
_mira-_sintra -- _mem
_martins
_depósito legal n.o: 85462/
/95
__isbn 972-1-04012-6
__capítulo __iv
(cont.)
A expressividade, um ideal da arte renascentista
Convém tornar à distinção entre música medida, em que as durações relativas dos
sons eram indicadas com certa precisão, e a música incomparavelmente mais livre,
neste aspecto, em que o cantochão consistia. A grande diferença entre uma e outra
foi o que, por exemplo, fez Mateus de Aranda separar o seu tratado de canto
mensurável, ou canto de órgão (1535), do de "*canto llano*", impresso dois anos
antes (74).
A medição relativa das durações das notas era, e é, indispensável à música de
conjunto, nomeadamente a polifónica, religiosa ou profana. Sem :, ela, o
desencontro das diferentes vozes e instrumentos torna-se fatal. Não se julgue'
porém, que alguma vez se praticou, ao longo da história da execução musical
anterior à electrónica, o mais extremo rigor cronométrico.
Os trechos renascentistas mundanos não eram contudo executados com medição
matemática dos tempos ou, como hoje dizemos, com rigidez metronómica. Um louvor ao
grande músico espanhol Francisco Guerrero, motivado pelas suas *_Canciones y
villanescas espirituales*, enaltece em 1589, antes dos sensacionais cometimentos da
*camerata fiorentina*, o fazer "concordar con la música el ritmo y el espírito de
la Poesia, con lijereza, tardanza, rigor, blandura, estruendo, silencio, dulzura,
aspereza, alteración, sosiégo, aplicando al vivo con las figuras del canto la mesma
significación de la letra". Note-se que os assuntos versados nos cancioneiros são
bastantes diversos, desde os amorosos aos elegíacos, históricos, satíricos e mesmo
pornográficos. Podiam aflorar o domínio religioso e alguns dizem respeito a datas
especiais da Igreja, nomeadamente o Natal e a Páscoa. A dança associava-se por
vezes à música. Os trechos eram geralmente curtos, a menos que os repetissem muito
com diferentes coplas. No entanto, o *_Cancioneiro de Upsália* contém uma peça que
ocupa oito páginas na edição de Rafel Mitjana, o musicólogo que o descobriu. A
sociedade que se espelha nessas páginas poético-musicais devia ser ao mesmo tempo
superficial e culta, elegante e ridícula, fidalga e afectada, mesureira e
cruelmente mordaz, encantadora e detestável. Podemos agora fazer uma ideia mais
aproximada do que seriam os gabados *serões* da corte de D. João II e as
festividades palacianas do mais faustoso reinado seguinte. Fidalgos e damas,
vestidos com trajes que conhecemos da pintura da época, divertiam-se no culto das
artes. Havia recitações, improvisações poéticas, despiques e zombarias; cantavam-se
sobre os versos melodias a uma ou mais vozes concertadas com alaúdes, violas,
guitarras e outros instrumentos; dançavam-se umas que outras dessas músicas,
evocavam-se feitos históricos ou episódios religiosos, organizavam-se mascaradas.
Os que mais elegantes; expressivos e sarcásticos se mostravam nessas artes atraíam
principais tenções e louvores, mas todos porfiavam em bem as praticar. Porque, como
disse Garcia de Resende, era tão indispensável a um fidalgo saber as melhores
trovas como o padre-nosso. Não admira que o número de autores poéticos do seu tempo
se medisse por centenas. E alguns deles, como homens da Renascença que eram,
cultivavam outras artes. O próprio Resende, além de poeta, músico e cronista, foi
desenhador e arquitecto.
Inspiração popular
É possível que elementos de música popular se tivessem então introduzido na arte
palaciana peninsular, estudo que se torna possível, com alguma consistência, graças
ao tratado que Francisco Salinas fez imprimir em Salamanca em 1577, que contém uma
espécie de antologia de cantares do povo, preciosa, mas, em todo o caso, muito mais
pertinente à Espanha do que :, a Portugal (75). Elementos populares foram
assimilados pelos géneros italianos de algum modo correspondentes ao *vilancico*: a
*frottola* e a *villanella*. Mas, se houve de facto essa penetração também em
Portugal, ela não se deu por certo em virtude de um maior contacto directo dos
cortesãos com a plebe, no reinado de D. Manuel. Ter-se-á dado provavelmente antes.
Estará o leitor acaso pensando no popularismo rústico do teatro de Gil Vicente, e é
aonde vamos chegar de seguida. As relações da corte com o povo modificaram-se
sensivelmente com D. Manuel. Como vimos, as moradas reais ainda eram muito
acessíveis a toda a gente no tempo de D. João II, mantendo-se costumes de feição
medieval que hoje nos parecem tão simpáticos quão pitorescamente arcaicos. A
mudança operou-se no sentido absolutista, procurava-se o aumento do poder e do
prestígio da coroa, objectivos que, aliás, nortearam já a política interna de D.
João. Depois, o Venturoso fechou as portas do paço a muitos que dantes as podiam
transpor, nomeadamente quando havia refeição ou festa.
A música nos autos vicentinos
Assim foi que aos autos de Gil Vicente assistiam só, além da família régia, as
damas da rainha, os oficiais-mores da casa real e os quantos viviam mais ou menos à
custa dela e formavam propriamente a corte. Nem a todas estas personalidades
desejaria o monarca ser agradável, dentro da sua política de centralização, mas
era-lhe socialmente impossível, sem outro pretexto, banir de seus palácios pessoas
da alta aristocracia portuguesa. Outras classes foram sistematicamente afastadas
das manifestações do paço, no que a arte palaciana ganhou porventura em requinte
(76).
É verdade que do teatro de Gil Vicente emana simpatia pela gente humilde e que
faíscam nele as críticas aos senhores ricos e poderosos. Mas os textos não podem
ser tomados à letra, há toda uma orientação do rei a dirigi-los contra os que o
importunavam; os personagens plebeus são um instrumento habilmente usado pelo génio
de mestre Gil, mais do que criações à imagem de uma profunda e generosa benquerença
régia.
No que diz respeito à música, versos de Gil Vicente, no prólogo do *_Triunfo do
Inverno*, levaram a supor uma decadência dos costumes musicais do povo na passagem
do primeiro para o segundo quartel do século XVI.
Em Portugal vi eu já
Em cada casa pandeiro
E gaita em cada palheiro;
E de vinte anos a cá
Não há hi gaita nem gaiteiro. :,
E adiante:
Só em Barcarena havia
Tambor em cada moinho
E no mais triste ratinho
S'enxergava uma alegria
Que agora não tem caminho.
Se olhardes as cantigas
todas têm som lamentado
carregado de fadigas
longe do tempo passado.
Fosse qual fosse a ideia dessas rimas, é inadmissível a quase anulação no povo da
atracção pela música. Aí temos também os casos do sapateiro-profeta de Trancoso, o
muito falado Bandarra, e do poeta Chiado, a demonstrarem, por seu turno, que as
trovas acompanhadas à guitarra podiam ter muito boa aceitação, e até uma certa
projecção, fora da aristocracia e interpretando quiçá o sentir e os interesses de
outras classes. Aliás, o próprio teatro vicentino pinta variados costumes musicais
fora da corte e da aristocracia.
O certo é que Gil Vicente transplantou para o seu teatro música de índole popular,
conveniente aos personagens e ao ambiente em que cenicamente vivem. Mas não deixou
por isso de aproveitar também os géneros musicais de corte, não só em seguimento do
exemplo de Juan del Encina, mas certamente para agrado do rei seu senhor.
Conhecemos cerca de uma vintena de trechos cantados no teatro de Gil Vicente porque
estão incluídos no *_Cancioneiro de Barbieri*. Um deles é o mencionado vilancico
*_Nunca fué pena mayor*, de Wreede, com letra talvez do duque de Alba (77).
Antes de subir ao trono, ainda como duque de Beja, D. Manuel possuía já a sua
capela de músicos. Várias noticias coincidem no dizerem do seu interesse pela arte
dos sons, como seja o cuidado com a manutenção dos órgãos da capela do Paço de
Sintra, ou a ordem, dada a um feitor, de contratar quatro bons charamelas na
Flandres; ou, mais explícitas e concludentes, as referências do autorizado Damião
de Góis à excelência de seus cantores e tangedores, que teriam vindo de todos os
pontos da Europa concentrar-se na sua corte e constituir uma das melhores capelas
do tempo. Também pela *_Crónica* de Damião de Góis sabemos que o Venturoso
apreciava ouvir música, não só enquanto comia, mas também durante os
entretenimentos desportivos, nas audiências e ao deitar-se. Dos aposentos via, com
prazer, as danças dos fidalgos da sua corte (78).
Muito renascentistas eram esses afectos do monarca, e também a onda de
intelectualismo humanista que inundou o meio aristocrata, onda em que os varões se
não banharam exclusivamente. Cabe aqui a bem-humorada observação de Viana da Mota,
numa carta para António Arroio: "[...] o mulherio da Renascença sabia a valer:
escreviam em latim, faziam versos, eram espirituosas, conhecedoras em arte." Essa
alta feminilidade teve expoentes na infanta D. Maria, filha de D. Manuel, rodeada
de sua "academia de consonancias", na ilustre e muito música _ângela Sigea, cantora
e :, tangedora, e sua irmã Luísa, versada em literatura da Antiguidade e do
Oriente, tão sábia que, além do nome clássico de Aloysia que usava, lhe puseram 0
epíteto de Minerva (79)!
D. Luís, irmão da infanta D. Maria, estudou Matemáticas com Pedro Nunes e dizia-se
que era hábil no contraponto. A sua capela privada compreendia quarenta e sete
músicos, sem contar os oito trombetas. Também sua irmã tinha músicos privativos,
entre os quais, como tangedora, Paula Vicente, filha de Gil.
Tornemos ao teatro deste, que é o assunto muito de tratar na história da música
portuguesa. De certo modo, ele pode considerar-se prolongamento de uma tradição
ligada à Igreja. No entanto, e se bem que os estatutos sinodais das dioceses
portuguesas da alta Idade Média deixem transparecer representações profanas, estas
parece terem sido muito limitadas, talvez pelos mesmos motivos de austeridade que
teriam impedido a prática de tropos e sequências. É a atmosfera renascentista que
vem favorecer o auto sacramental, e com ele encontramo-nos junto do que "não tem
nem ceitil, que faz os aytos a el Rey", esse grande homem da literatura portuguesa
que foi a primeira figura do teatro do seu tempo e, propriamente, o introdutor da
arte de Talia em Portugal.
O teatro vicentino e a ópera
Deve atender-se com alguma reserva a afirmação de que Gil Vicente foi precursor da
ópera nacional. A associacão de música e representação não era ideia nova, como
vimos. Ademais, o teatro de Gil Vicente não tem aquilo que será essencial à ópera e
que a distinguirá da representação *com* música, tornando-a representação *por*
música. E que, em Gil Vicente, os cantares e tangeres aparecem quando os
personagens, na sua acção em cena, cantam e tocam, como cantariam ou tocariam se a
coisa se passasse na vida corrente, fora do tablado. Disse-o muito bem Adolfo
Salazar, referindo-se a Encina e sucessores: "A música intervém na comédia como
consequência de algum pormenor da acção que pede a actuação de algum cantante, um
tangedor ou uma dança."
Os trechos musicais não são, porém, sempre pontos de completo estacionamento do
fluido psicoteatral. Sirvam de exemplo as palavras de Flerida no *_Dom Duardos*,
pedindo às companheiras que cantem e desejando evidentemente com isso encontrar
serenidade para o seu espírito perturbado; e, na *_Comédia da Rubena*, o canto de
Benita, a distrair a parturiente de seus achaques.
Nada de essencialmente análogo, em todo o caso, ao Rigoletto dizendo, a
cantar, ."*piangi, piangi*", para consolo de Gilda, que vai cantando, por sua vez,
com igual acerto musical; nem ao Hans Sachs a transmitir-nos, por entre as cinco
linhas da pauta wagneriana, a sua filosofia da vida e das artes; nem à Electra, a
debater-se ao mesmo tempo contra a desvergonha de Clitmnestra e o fragor de toda
uma orquestra sinfónica; nem tão-pouco às melodias com :, que Francis Poulenc dota
as suas amedrontadas freiras carmelitas. *_Mutatis mutandis*, poderíamos dizer o
mesmo das danças vicentinas, em relação ao espectáculo de bailado.
Não há querer engrandecer Gil Vicente, fazendo da sua obra degrau para algum trono,
alguma inovação futura. Como todas as obras de arte autênticas, os seus autos
bastam-se a si próprios, são completos, realizam plenamente a missão que lhes
coube, são inconfundíveis e insubstituíveis. Nem as influências que aceitou o
diminuem, nem as que exerceu o engrandecem. O que, evidentemente, não quer dizer
que seja inútil ou descabido estudá-las.
Como em Encina, e na medida em que temos conhecimento da música das representações
vicentinas, os trechos polifónicos eram muito menos floreados do que na arte
madrigalesca franco-flamenga, movendo-se as vozes em simultaneidade rítmica.
Aventou-se que houvesse aí um propósito de inteligibilidade das palavras, essencial
ao teatro. A hipótese é de considerar, mas também sabemos que as peças de
cancioneiro mais nitidamente portuguesas, ou usadas em Portugal, dão essa
simplicidade como regra da nossa música profana, independentemente das exigências
do teatro (80).
Existem mais pontos de contacto entre Encina e Gil Vicente que de pronto nos
interessam. Um deles é o já mencionado pendor para o popular, o rústico, com
aspectos deliciosamente pitorescos. Outro consiste num evocar (não sistemático) do
classicismo greco-latino, que em Encina é anterior à sua viagem a Itália, em
princípios do século XVI. Este traço não se liga directamente à música, mas tem
aqui significado porque sublinha o renascentismo da arte de Gil Vicente.
A parte que a música toma nos autos é importante, no sentido acima apontado, e,
como vimos, a literatura musical palaciana dá-nos alguma ideia do que ela de facto
era. Admite-se que o próprio Gil Vicente tivesse composto alguns dos trechos,
porque no *_Auto da Sibila Cassandra* há uma cantiga "feita e ensoada pelo autor".
Recentemente, Rebelo Bonito ensaiou a reconstituição de um trecho cantado na farsa
*_Quem tem farelos*, baseando-se no texto: "ré mi fá sol lá sol lá" e, depois, "fá
lá mi ré ut dó", e nos versos respectivos (81).
Merecem também atenção, no teatro vicentino, os trechos puramente instrumentais,
menos frequentes do que os para cantar. Entre eles encontram-se exemplos que
descendem da *música alta*. São as entradas pomposas, como a de Lisboa, "com grande
aparato de música", no princípio da *_Tragicomédia da nau de amores*. A
ressurreição de Cristo, no *_Auto da história de Deus*, é assinalada por trombetas
e chamarelas. Além destes instrumentos, Gil Vicente pede também gaitas, violas, o
rabel e o tamborim.
O *vilancico*, na acepção polifónica que explanámos -- também denominado
*vilancete* --, aparece com frequência no teatro renascentista a que nos estamos
referindo, algumas vezes como número final da peça. Também há referência em Gil
Vicente à *canzoneta*, ou *chanzonetta*, ao que parece, importada de França por via
espanhola. Em que consistia exactamente a *chacota* não está por ora averiguado.
Quando Gil Vicente escreve: "aqui ordenam sua chacota, e a letra da cantiga é a
seguinte [...]", ou então: pois não sabemos rezar, façamos-lhe uma chacota, porque
toda a alma devota o :, que tem, isto há-de dar", refere-se evidentemente a trechos
cantados, talvez dançados também e de sabor popular. Mas aparece igualmente, por
exemplo na *_Farsa dos físicos*, a indicação de personagens que entram disfarçados
"em chacota". Por seu lado, Carolina Michaªelis suspeitou de que no tempo de Gil
Vicente estivesse em uso um instrumento chamado *chacota*. Luís de Freitas Branco
associava os trechos deste nome, cantados e dançados nos autos, à significação
burlesca que a palavra ainda hoje tem, considerando-os tradicionais desde longa
data no país e pertencentes à linha evolutiva da *chacóina*.
Possuímos mais elementos que nos informem acerca da *folia*, também representada
nos auto de mestre Gil. Como a chacóina e a sarabanda, as *folias* consistem em
variações assentes sobre uma melodia, ou simples fragmento de melodia, repetindo-se
continuamente, no geral em sons graves. Eram, portanto, antepassados da *_Folia*,
de Corelli, da grande *_Passacaglia* em dó ou da célebre *_Chaconne*, de Bach, ou
dos últimos andamentos das *_Variações sobre um tema de Haydn e da 4.a Sinfonia* de
Brahms. Mas todos estes casos ulteriores são de música puramente instrumental.
Ao terminar uma *folia*, Gil Vicente indica a "volta", supõe-se que no sentido de
repetição. Muitas vezes, se não sempre, as *folias* davam azo a baile e envolviam
execução instrumental de mistura com as vozes. Aceita-se como certa a sua origem
portuguesa, afirmada explicitamente por Salinas no importante tratado a que já nos
referimos, e também por Gil Vicente quando faz apetecer ao divino Apolo que lhe
cantem "en Portuguesa folia la causa de su alegria" (*_Tragicomédia do templo de
Apolo*) (82).
Aquilo a que hoje chamamos personagens e peças características atraem-nos de
maneira especial no teatro vicentino. Dialectos que deviam fazer rir a
assistência,: pronúncia peculiar dos negros e outras sortes realistas do géner4
emprestavam ainda maior viveza às representações. A canção final da *_Nau de
amores* é sucessivamente cantada pelo velho "coma velho" e pelo negro "após ele
coma negro". O notável é ter Gil Vicente compreendido como o efeito podia
associarse à música. A "cantiga muito desacordada", isto é, desafinada, que cantam
mensageiros celestiais enquanto conduzem certo patife às profundezas do Inferno
lembra-nos o *_Musikalischer Spass*, de Mozart, ou a interpretação que Mussorgsky
solicitou de quem cante os papéis de Varlaam e Missail embriagados.
Outras ideias de relacionação directa e objectiva entre a música e a acção teatral
revelam-nos *_A barca do Purgatório*, com o canto dos anjos ao ritmo do movimento
dos remos, e *_A frágua de Amor*, onde os ferreiros cantam uma "serrana" a quatro
vozes, acompanhando-se a preceito com as pancadas dos martelos, cena que não só
sugere um quadro muito conhecido de Velazquez mas também efeitos que Richard Wagner
demandou no *_Anel do nibelungo*.
Dos vários géneros em que se dividem os duzentos e tal trechos musicais incluídos
nas obras de Gil Vicente, merece também a atenção a *ensalada*, de intenção cómica,
miscelânea de métricas e vocabulários sem qualquer regra aparente. A que põe termo
ao *_Auto da fé* reúne quatro vozes. Gil Vicente informa que essa salada
poéticomusical "veio de França", mas há razões para admitir que a sua origem fosse
ibérica
ou americana. :,
Apesar de a corte se ter tornado num círculo fechado, o teatro de Gil Vicente teve
expansão fora dela, desde que correu impresso em edições de cordel. Não sabemos
como noutros meios sociais eram realizados trechos de música. É todavia de presumir
que, assim como a montagem cénica, a realização musical fosse mais singela nessas
diferentes circunstancias. A arte vicentina teve também projecção noutros autores,
portugueses e estrangeiros, como Chiado e Diego Sánchez de Badajoz. É de admitir
que as representações teatrais quinhentistas conhecessem também certa voga em casas
particulares, a ajuizar pelo que nos dizem Chiado e Camões no *_Auto da natural
invenção* e no de *_El-rei Seleuco*.
Outros escritores que cultivaram a música
Os nomes de um Garcia de Resende e de um Gil Vicente não são os únicos da
literatura portuguesa renascentista que merecem honras na história da nossa música.
Não é possível mencionar aqui todos os poetas que praticaram então a arte dos sons.
Mas devemos fazê-lo para com outras figuras de destaque, tal um Sá de Miranda, que,
nascido em 1481, era portanto uns dezasseis anos mais novo do que Gil Vicente. Foi
muito amador de música e sabia tanger a viola de arco. Essa predilecção,
compartilhou-a provavelmente com os seus próximos, porque Jerónimo de Sá, seu
filho, tocava habilmente vários instrumentos, e um seu cunhado, de nome Manuel
Machado de Azevedo, ganhou reputação de alaudista notável. Sá de Miranda esteve em
Itália alguns anos e não pode ter deixado de trazer do pleno Renascimento italiano
ideias sobre a música diferentes das que preponderavam em Portugal.
"Novo mundo, bom Sá, nos foste abrindo, com tua vida e com teu doce canto", assim
escreveu António Ferreira, uma das altas personalidades com quem Sá de Miranda
manteve relações depois de se isolar das intrigas da corte, fixando-se no Minho.
Outro desses homens ilustres foi Jorge de Montemor, que era neto duma cantora judia
e exercera durante a juventude profissão de músico em Espanha e nos Países Baixos.
Voltaremos a falar dele a respeito da música instrumental (83).
Entretanto, e para que o nosso quadro da importância da música na cultura
renascentista fique menos incompleto, citemos ainda, entre os vultos destacados que
a reconheceram, João de Barros, Aires Barbosa -- o helenista que foi professor na
Universidade de Salamanca e que, na sua *_Epometria* (1515), estudou a produção do
som --, André de Resende e Damião de Góis -- de que adiante se falará a propósito
da música litúrgica -- e Luís de Camões, em cuja obra a presença da arte dos sons é
considerável, se bem que o elogio dos efeitos da música fique porventura aquém dos
de um Petrarca e as descrições de actividades musicais não atinja o nível
informativo e cognitivo observável nas obras de um Boccaccio ou de um Sá de
Miranda, para já não falar do antes citado Jorge de Montemor. Os dados biográficos
que hoje possuímos, acrescidos da análise da obra camoniana, :, sugerem a forte
probabilidade da inexistência de formação musical teórica ou técnica, em sentido
profissional, na pessoa do nosso grande Vate. Conclusão que não afasta a hipótese,
essa sim plausível, de ter ele executado, como puro amador, instrumentos de corda
dedilhada.
Na poesia de Camões a música manifesta-se, antes de mais, aí mesmo; isto é, na
própria *musicalidade do verso* em si, na própria estrutura da métrica e das rimas.
Repare-se no jogo de intensidades sonoras e de ritmos, bem como na harmonia dos
elementos do fraseado poético presentes nos versos deste soneto:
Foi já um tempo doce cousa amar,
Enquanto me enganava a esperança;
_o coração, com esta confiança,
Todo se desfazia em desejar.
Oh! vão, caduco e débil esperar!
Como se desengana ua mudança!
Que, quanto é mor a bem-aventurança,
Tanto menos se crê que há-de durar.
Quem já se viu contente e prosperado,
Vendo-se em breve tempo em pena tanta,
Razão, tem de viver bem magoado;
Porém, quem tem o mundo experimentado,
Não o magoa a pena nem o espanta,
Que mal se estranhará o costumado.
(Son. 37-281) (84)
Mas a presença da música faz-se sentir também de outros múltiplos modos. Por
exemplo, na explicita referência a instrumentos:
Orfeu com a doce harpa
Venceu o reino de Plutão;
Vós a mi[m], com perfeição
(Red. 101-623)
É o som da trombeta que anuncia o inicio da batalha em Aljubarrota:
Deu sinal a trombeta Castelhana,
Horrendo, fero, ingente e temeroso;
Ouviu-o o monte Artabro, e Guadiana
Atrás tornou as ondas de medroso.
Ouviu o Douro e a terra Transtagana;
Correu ao mar o Tejo duvidoso;
E as mães que o som terribil escuitaram,
Aos peitos os filhinhos apertaram.
(*_Lusíadas*, IV, 28-96)
Repare-se no peso do efeito sonoro, assim como a atenção posta na caracterização do
próprio som: "som terribil". Caracterização porventura :, ainda mais cuidada quando
atinente à voz. "Suave", "agreste", "rude", "cansada", "dura", "doce",
"horríssona", "branda", etc. são apenas alguns exemplos da adjectivação associada à
caracterização do timbre ou da coloração dos sons vocais.
Seu doce canto dava
Tristes águas ao rio,
E o rio triste som ao doce canto.
[...]
(Egl. 4-398)
A análise das menções de instrumentos indicia ter sido o Poeta frequentador pouco
assíduo de ambientes palacianos e de cerimónias religiosas, dado serem os
instrumentos mais em uso nesses lugares (instrumentos de tecla, órgão) precisamente
aqueles que não são referidos pelo autor dos *_Lusíadas*. Os instrumentos que mais
povoam o espaço musical camoniano, se bem que também aceites nos paços e nos salões
burgueses, eram de uso em locais frequentados por gente de extratos sociais mais
modestos. Também isto sugere a ausência de uma formação musical erudita, sem no
entanto excluir a já apontada probabilidade de ter sido Camões tangedor amador de
instrumentos de corda dedilhada (85).
Música litúrgica
Cabem nesta epígrafe os primeiros compositores portugueses de quem hoje se conhece
obra.
Pero do Porto foi cantor da capela de Isabel de Castela, de 1489 a 1499, e mestre
de capela da Catedral de Sevilha antes de 1507, ano da concessão do mesmo cargo a
Pero de Escobar. Sabe se que, em 1521, prestava idêntico serviço ao cardeal D.
Afonso, filho de D. Manuel, em Évora. Pela mesma altura, Gil Vicente mencionou-o
nas *_Cortes de Júpiter*.
Irão todolos cantores;
Contra altos, carapaos;
Os tiples, alcapetores;
Enxarrocos os tenores;
Contrabaixos, bacalhaos.
Com eles Pero do Porto
Em figura de çafio,
Meio congro deste rio,
Cantando mui sem conforto,
"Yo me soy Pero Çafio".
Pero do Porto vivia ainda em 1535, em Évora. Conhece-se de sua autoria um
*_Magnificat*, conservado no arquivo de música da Catedral de Tarragona :, e
transcrito por Manuel Joaquim e Robert Stevenson, respectivamente em 1952 e 1978.
Outro músico português da mesma época chamou-se Fernão Gomes Correia. Foi referido
em 1505 e em 1532 como capelão e cantor do bispo de Coimbra, 1). Jorge de Almeida.
Da sua obra de compositor estão hoje identificados uma *_Missa*, conservada num
livro de coro da Biblioteca Nacional, e um Ofertório da Missa de Defuntos,
*_Hostias et preces*, incluído num livro de coro da Biblioteca, onde o autor é
designado por "Lusitanus et optimus in Arte" (86).
Os já mencionados André de Resende (1500-1573) (87) e Damião de Góis (1500-1572)
foram compositores, e imprimiram-se até obras suas: de André de Resende, um
*_Ofício de S. Gonçalo* e uma *_Missa de Santa Isabel*, em Lisboa, no ano de 1551,
obras que fez por se não conformar com a maneira como na Sé de _évora se tratavam
musicalmente os textos; de Damião de Góis, os motetes *_Ne laeteris*, a três vozes,
que teve honras de inclusão no *_Dodecacordon*, de Glareanus (1547), e *_Surge
prospera*, a cinco vozes, numa colecção publicada em 1545 por Salminger.
Temos notícia de ter sido identificada outra sua composição polifónica, *_In die
tribulationis*, a três vozes, numa das edições (*_Tricina*, 1559) da importante
firma impressora Montanus e Neuber, de Nuremberga (88).
Damião de Góis, que era filho de um fidalgo português e de uma senhora de origem
flamenga, foi nomeado em 1523, por D. João III, escrivão da feitoria portuguesa em
Antuérpia, por onde se conservou durante anos. A estada no estrangeiro, aproveitoua
para se relacionar com muitas das mais eminentes personalidades e instituições
culturais do seu tempo, não só nos Países Baixos mas também na Alemanha, Itália e
França. O mesmo é dizer que o interessaram ideias suspeitas de heresia. Eoi amigo
de Erasmo e colaborou numa diligência no sentido de compatibilizar as doutrinas da
Igreja romana e as de Lutero. Fixado em Portugal, foi-lhe impossível amoldar a sua
mentalidade universalista, aberta a todos os interesses intelectuais, às limitações
de um meio pequeno, que, embora marcado de renascentismo, se tornava cada vez mais
acanhado para espíritos como o seu, mormente pela força que se dava ao clero.
Denunciou-o um padre jesuíta em 1545, mas decorreu ainda um quarto de século até
que a Inquisição o tomou à sua guarda. E uma das razões de queixa que ela tinha
era, precisamente, o seu convívio muito assíduo com artistas músicos, que convidava
para sua casa (89).
No depoimento dum fidalgo chamado João Carvalho lê-se o seguinte: "E neste mesmo
tempo via ele testemunha que entravam alguns estrangeiros em casa do dito Damião de
Góis; e diziam que comiam e bebiam e por muitas vezes ouviu ele testemunha cantarem
coisas que ele não entendia. Somente ouvia as vozes e durar aquilo muito espaço; e
que não eram cantigas que cá costumam cantar. E os que cantavam eram o dito Damião
de Góis e o Jacques que faz os óculos e o Adrião Lúcio já defuntos e outros que não
conhecia." (90)
Sem saber, provavelmente, o que este e outros depoentes tinham dito a seu respeito,
Damião de Góis prestou as declarações ao Santo Ofício, talvez não completamente
exactas quanto ao género de música que mais se cantava e tangia nas suas recepções
privadas: "Perguntado se iam alguns :, estrangeiros, algumas vezes, a sua casa, e
quem eram e o que é que lá faziam e praticavam, disse que sua casa era estalagem de
estrangeiros, assim dos que vinham de fora a esta cidade, como dos que vivem nela.
E os banqueteava e lhes fazia bona xira. E que entre estes dos que ora vivem nesta
cidade ia lá um Tibaldo Luís, alemão casado nesta cidade com uma mulher portuguesa,
e outro Rombaut Perez, também casado, morador nesta cidade flamengo, e Hans Pelque,
solteiro que há muito reside nesta cidade, estralim de nação, e Mestre Jacques, que
faz os óculos, francês, músico", etc. Também lá iam "outros estrangeiros, assim
músicos como não músicos cujos nomes ora lhe não lembram; e outros também
portugueses, e depois de jantar ele e os mais se punham a cantar missas e motetes,
compostos em canto de órgão". Desses seus compatriotas, "um deles era um Pero Gil,
sacerdote, com o qual certas vezes vinha um seu sobrinho, e outros portugueses
cantores desta cidade, por ele réu ser muito músico e folgar de cantar e ser muito
dado à música e passar nisto o tempo."
Tantos anos depois de o cardeal D. Henrique haver poupado o suspeito de heresia -e
tendo-lhe até encomendado entretanto, em 1558, a crónica de seu pai, D. Manuel I
--, que motivos o levariam a molestá-lo? O mais determinante pode ter sido algo que
se encontra escrito noutros autos da Inquisição e que só desde 1974 se tornou
conhecido, graças a investigações do cónego Isaías da Rosa Pereira, com a
colaboração de Maria Clara Pereira da Costa, conservadora do Arquivo Nacional da
Torre do Tombo.
Eis que, a respeito de Damião de Góis, consta do processo de um Manuel Travaços,
"cristão velho desta cidade de Lisboa, para instrução dos autos do licenciado
_álvaro Fernandez, cristão novo e físico-mor nesta cidade preso no cárcer da santa
inquisição" (91): "disse que no mesmo tempo praticando [falando, conversando] ele
confessante com _álvaro Fernandez de que tem dito lhe dissera o dito _álvaro
Fernandez que lhe dissera Damião de Góis que o Cardeal [Infante D. Henrique,
inquiridor-mor e futuro rei] o mandara chamar ou lhe perguntara um dia que quem
eram os principais luteranos em Alemanha porque se os tivéramos cá os queimáramos
dizendo mais o dito Damião de Góis ao dito _álvaro Fernandez que se os ditos
luteranos estiveram cá fizeram do Cardeal o que quisera dando a entender que o
fizeram da sua banda e al[mais] não disse."
Este depoimento é de Janeiro de 1571. Dez dias volvidos, junta-se-lhe outro, sobre
a mesma matéria (92): "E disse mais que no mesmo tempo praticando ele confessante
com _álvaro Fernandez de que tem dito ele disse ao dito _álvaro Fernandez que lhe
dissera Damião de Góis que o cardeal o mandara chamar ou lhe perguntara um dia que
quem eram os principais luteranos em Alemanha porque se os tivéram cá os
queimáramos dizendo mais o dito Damião de Góis ao dito _álvaro Fernandez que se os
ditos luteranos estiveram cá fizeram do cardeal o que quiseram dando a entender que
o fizeram da sua banda e que ao presente não é lembrado de outra cousa."
Aos 19 do mesmo Janeiro de 1571, novas declarações, estas não comprometedoras (93).
"Perguntando se era lembrado ouvir dizer a alguma pessoa que lhe perguntara como se
chamavam os principais dos luteranos que insinuavam sua seita e que se os cá
tiveram que os houveram de queimar todos disse que :, não era lembrado de tal." A
resposta não satisfez, pois que o interrogatório se tornou insistente: "Perguntado
se era lembrado dizer-lhe alguma pessoa que o Cardeal lhe perguntara pelo sobredito
dizendo-lhe mais tal pessoa que se os ditos luteranos quem Sua Alteza lhe
perguntara vieram cá ou o tiveram lá lhe presuadiram [o persuadiriam] ou fizeram
crer os erros que eles tinham ou outras algumas palavras desta maneira disse que
não. Perguntado se iria lembrado ouvir dizer o sobredito Damião de Góis ou a alguma
outra pessoa nesta cidade ou em outra alguma parte disse que não é lembrado
praticar com ele tal cousa posto que tem muita amizade com ele e nunca lhe ouviu
dizer tal cousa senão muitas santidades. Perguntado se era lembrado dizer ele a
_álvaro Fernandez alguma pessoa em prática que com ele tivera que ouvira dizer o
sobredito ao dito Damião de Góis disse que não é lembrado de tal cousa".
Finalmente, a ameaça: "E lhe foi dito que olhasse muito bem o que dizia porque
havia informação nos autos porque constava o contrário do que tinha respondido e
portanto o admoestavam da parte da Santa Madre Igreja que cuidasse muito bem nisso
e viesse dizer a verdade de tudo e senão que seria necessário fazer no caso o que
parecesse justiça." O nome do licenciado _álvaro Fernandez abre o rol das
testemunhas de Damião de Góis no processo de 1571 (94).
Há ainda a "reconciliação" dum tal João de Barros, ataqueiro e cristão novo que
trabalhava "junto da tenda de Belchior Fernandez livreiro". A data do documento é
de 9 de Abril do mesmo ano e por ele ficamos à saber o que entretanto sucedera a
Manuel Travaços: "E disse que este sábado passado fez oito dias que achando-se em
uma taverna [...] em companhia de Gaspar Diaz luveiro e de Simão Gonçalvez que foi
pasteleiro á....] e depois de terem bebido e comido vieram a falar em Manuel
Travaços que foi relaxado por este santo ofício à justiça secular dizendo o dito
Simão Gonçalvez que diziam que ele culpara Damião de Góis que neste cárcer está
preso dizendo mais o dito Simão Gonçalvez que ouvira dizer isto e que era o dito
Damião de Góis homem muito honrado ao que respondeu ele confessante dizendo que já
que o queimavam para que acusava estoutro." Temendo, compreensivelmente, o mesmo
caminho do Travaços, o depoente apressou-se a atribuir o seu imprudente comentário
aos efeitos do álcool: "O que disse estando tomado de vinho sem entender o que
dizia."
Estas transcrições dão uma ideia do método da Inquisição na averiguação de
suspeitas e denúncias. E evidenciam o especial interesse que houve em apurar se era
ou não verdade que Damião de Góis ousara proferir aquele dito. Na verdade, afirmar
que os maiorais do protestantismo transformariam o infante e inquisidor-mor num
luterano era uma enormidade de todo o calibre. E pode ter sido ela que mudou a
atitude de D. Henrique, quando a idade do réu pedia clemência maior que a de vinte
e seis anos atrás. Por outro lado, a ser verídico o dito de Góis, ele reflecte uma
natureza humana e uma formação mental inclinadas à liberdade de expressão, à
critica e ao humor, o que joga certo com outras ousadias de língua que lhe foram
atribuídas. Havemos de convir em que não era propriamente a maneira de ser mais
recomendável numa altura em que por todos os lados espreitavam informadores do
Santo Oficio. :,
Nos reinados quinhentistas e seiscentistas, até D. João IV, a música manteve
esplendor em Portugal, dentro ainda do quadro renascentista. D. João III contratou
bons músicos de capela e de câmara, alguns dos quais estrangeiros. O seu mestre de
capela, João de Vila Castim, dispôs de cinquenta e dois cantores. Estavam
normalmente ao serviço seis tangedores, entre os quais um organista e um harpista;
quinze menestréis (charamelas, sacabuxas, etc.), doze trombetas e nove atabaleiros.
A este quadro devemos acrescentar os oito bailadores da *mourisca*, com suas
mulheres. D. Sebastião apreciou a arte dos sons, a julgar pelos músicos de câmara
que, para seu comprazimento, arrastou para Alcácer Quibir (95).
D. Henrique protegeu a instrução musical. O primeiro dos Filipes, entendendo que
não existia na capela real de Lisboa quem lhe soubesse tanger os órgãos a contento,
mandou vir um organista de Espanha. Pelos estatutos de 1592, sabemos de um mestre
de capela, vinte e quatro cantores (seis para cada voz), dois fagotistas, um
trompista e dois organistas. Em 1608, o número de cantores foi reduzido para
dezassete. Sob o domínio castelhano, prolongando-se pelos primeiros tempos da
Restauração, floresceram entre nós a música para *vihuela* e outros instrumentos de
corda ou tecla e a polifonia imitativa, atingindo esta o seu máximo brilho.
No entanto, a morte de Damião de Góis tem qualquer coisa de simbólico e fatalista
para a história da música portuguesa. Dir-se-ia que o seu desaparecimento
significava a inviabilidade de uma arte verdadeiramente europeia, no sentido de
comparticipar, na evolução geral, no plano das principais personalidades que a
operavam. Talvez que, em quaisquer circunstâncias, os condicionamentos atávicos da
nação portuguesa fizessem um ingénuo de todo e qualquer que pretendesse realizar
tamanho projecto. O certo é que os acontecimentos históricos, os erros e
calamidades, as opressões e mesquinhezes o não favoreceram de nenhum modo.
Pouco tempo depois do encerramento do Concílio de Trento (1563), a Sagrada
Congregação dos Ritos, de Roma, pediu ao doutor espanhol Azpilcueta Navarro um
parecer sobre se a polifonia devia ou não integrar-se nas cerimónias litúrgicas.
Navarro foi da opinião de que "ouesse musica de canto de órgão na Igreja com
condição que se cantasse cõ a perfeição, com que se cantaua no Mosteiro de S. Cruz
de Coimbra em Portugal" (96).
Mais uma razão para que importe saber quais foram os mais destacados compositores
desta instituição religiosa e cultural.
D. Heliodoro de Paiva (m. 1552), ao qual voltaremos noutro contexto, escreveu
grande número de obras polifónicas que se conservam em manuscritos da Biblioteca
Geral da Universidade de Coimbra. D. Braz (m. 1582) foi autor de quatro Aleluias e
de um Hino (*_Salve gemma confessorum*) que igualmente chegaram até nós, enquanto
que de D. Bento (m. 1602) se conhece um *_Salve Regina* e um *_Portynam consunmatus
est*. Mas tudo indica que maiores honras são devidas a outros dois músicos: D.
_francisco de _santa Maria (m. 1597) e D. Pedro de Cristo (m. 1618).
O primeiro era o famoso "D. Francisco castelhano", nascido em Ciudad _rodrigo.
Exerceu o cargo de mestre de capela do bispo da Guarda, D. João de Portugal, e do
bispo de Coimbra, D. João Soares. Professou em Santa Cruz em 1562, sendo já
sacerdote. Foi mestre de capela do mosteiro até morrer. :, Há muitas obras
litúrgicas suas nos manuscritos musicais da Biblioteca Geral da Universidade de
Coimbra.
Tido pelo maior compositor da Escola de Santa Cruz, D. Pedro de Cristo (m. 1618) é
também aquele de quem sobrevivem maior número de obras (mais de 250, sobretudo nos
códices da Biblioteca Geral da Universidade de Coimbra e algumas na Biblioteca
Nacional). Nelas predominam os Salmos de Vésperas, os Responsórios da Semana Santa,
os *_Magnificat* e as Paixões segundo S. Mateus, S. João e S. Marcos. A notícia
respeitante a D. Pedro de Cristo ao obituário de D. Gabriel de Santa Maria informa
de que "particularmente tinha graça para chansonetas, e musica alegre e por tal era
buscado de todos os mosteiros de freyras e frades". De tais composições profanas só
cinco se salvaram, a menos que outras estejam por descobrir.
Outro centro importante da música litúrgica da mesma época residiu em Braga. Entre
os vários compositores que aí desenvolveram actividade, distinguiu-se Miguel da
Fonseca, que, em 1542 e no ano seguinte, foi mestre da capela do infante D. Duarte,
filho de D. João III. Em 1544, encontramo-lo mestre da capela da Sé de Braga.
Conhecem-se obras a 4 e a 6 vozes, incluídas num dos livros de coro da mesma Sé.
Merecem ainda referência Aires Fernandes (com obras na Biblioteca Geral da
Universidade de Coimbra, na Biblioteca do Palácio Ducal de Vila-_Viçosa e na
Biblioteca Pública de Évora), Vasco Pires e André Moutinho (códices da B. G. U. C.)
e João Guedes Pimenta, representado num livro de coro da Biblioteca Nacional.
Aspectos especificamente peninsulares
O cosmopolitismo de alto coturno não é, todavia, o único meio que se oferece a uma
nação para que nela se exerçam actividades artísticas válidas. O cosmopolitismo
pode mesmo tornar-se balofo se não tiver uma infraestrutura específica da cultura
local. Nesse âmbito mais restrito, pôde medrar na Península uma arte notável que,
por natureza, não levantava suspeições nos zeladores da ortodoxia e que, mercê
principalmente da influência espanhola na Itália, veio a ser contributo da evolução
da música europeia (97).
É o caso da música instrumental, que não deve considerar-se independente da para
vozes com instrumentos, por isso que foi como que uma sua excrescência de fecunda
vitalidade. Não sabemos porquê, a Península, que irradiara o alaúde, de origem
árabe, para todos os centros de cultura musical da Europa, preferiu-lhe depois a
*vihuela*, instrumento do mesmo género e com a mesma afinação das seis cordas, mas
de construção e técnica diferentes. Os historiadores Borges Coelho e Cláudio
Torres, aos quais o musicólogo Rui Nery pôs esta questão, sugeriram a possibilidade
de ela se relacionar com uma tendência geral, depois da Reconquista, para
aproveitar a herança árabe, escondendo-lhe a origem por meio de modificações
formais ou onomásticas. Seria o caso da *vihuela*, que apenas difere do alaúde de
seis ordens na forma. Não só a afinação se manteve a mesma como também a :, técnica
de execução. Parece que era considerada própria dos meios cultivados, enquanto a
guitarra de quatro cordas se empregava ao nível popular.
Note-se, porém, que a correspondência entre os instrumentos musicais e as suas
designações estava longe de ser rigorosa, e muito menos biunívoca. Além de que
alguns termos eram genéricos e outros de certo modo específicos. Em Portugal, a
*vihuela* e as guitarras de quatro e de cinco ordens compartilhavam da denominação
de *viola de mão*, que as distinguia da *de arco*. Estes vários instrumentos de
corda serviam às monódias acompanhadas, a que chamavam *vilancicos, sonetos,
romances*.
Luís de Milán (nascido por volta de 1500), o grande mestre espanhol, esteve em
Portugal, foi feito gentil-homem por D. João III e dedicou-lhe o seu importante
livro *_El Maestro*, que, além de peças para voz com acompanhamento (entre as quais
aparece o idioma português), inclui trechos só para viola, que, consistindo em
variações simples, deixam admitir que tivessem origem na arte da improvisação. É
curioso que, na terminologia usada por Milán, apareça o vocábulo português *tento*,
em vez do *tiento* espanhol. Na arte da *vihuela*, de que Milán é lídimo expoente,
existem elementos populares muito interessantes, nomeadamente nos desenhos
rítmicomelódicos repetidos nos sons graves, à semelhança das folias.
É digno de destaque o facto de Milán e o seu contemporâneo e compatriota Luís de
Narvaez, também violista notável, terem sido dos primeiros compositores a indicar o
andamento em que a música devia ser tocada. Outro pormenor técnico interessante
reside na correlação directa dos sinais convencionais da escrita musical
(*tablatura*) com os pontos das cordas onde os dedos do executante deviam premir.
Sabemos assim exactamente quais as notas que se tocavam, e, como muitas peças do
repertório de viola eram transcrições de trechos vocais que nos chegaram por outras
vias, tornou-se possível o cotejo das diferentes versões, devendo concluir-se ou
que os cantores alteravam o que estava escrito muito mais do que o que se tem
suposto, subentendendo numerosos acidentes, sustenidos e bemóis, não explicitamente
indicados (prática a que se chamava *música ficta*), ou, então, que os violistas
ibéricos tinham tendência para introduzir acidentes, os sustenidos mais do que os
bemóis, talvez para emprestarem à música maior colorido e outro sabor mundano.
De qualquer modo, é seguro que tanto cantores como instrumentistas recorriam à
*música ficta*, como o demonstra o cotejo de várias cópias da mesma obra, para
utilização vocal. A vantagem das tablaturas dos instrumentos de corda (e também das
dos instrumentos de tecla, que não figuram a posição dos dedos) consiste no registo
integral daquela semitonia, que na escrita vocal ficava muitas vezes subentendida.
No prólogo de *_El Maestro*, Milán elogia a cultura musical portuguesa: "La mar
donde he echado este libro es piamente el reyno de Portugal, que es la mar dela
musica: pues enel tanto la estiman: y tambien la entienden." Tivemos, sem dúvida,
violistas notáveis, como Afonso da Silva, Pêro Vaz, Alexandre de Aguiar ou o
franciscano Peixoto da Pena, que causou assombro pela sua técnica na corte do
imperador Carlos V, Domingos Madeira (m. 1589), violista dos reis D. Sebastião e D.
Henrique, e Luis de Vitória, violista do infante D. Luís. Nos *_Ditos portugueses
dignos de memória*, este :, último é referido como "excelente tangedor de viola, o
qual compôs um credo e tangeu-o e cantou-o ao infante, a quem pareceu tão bem que
lhe fez por isso mercê". Noutro passo, o autor anónimo reforça o elogio, afirmando
que Luís de Vitória "no seu tempo foi único tangedor de viola". Infelizmente, não
se conhecem hoje quaisquer obras destes compositores (98).
A arte de violistas e guitarristas prolongou-se até fins do século XVIII. Foram
ainda seus representantes Doizi de Velasco, com obras editadas em Nápoles no ano de
1645, e António de Abreu, na segunda metade de Setecentos, que se fixou em Madrid e
escreveu um livro didáctico: *_Escuela para tocar con perfeccion guitarra de cinco
y seis ordenes*. Depois decaiu completamente, permanecendo no âmbito da música
popular e burguesa, sem grande interesse artístico. Só desde há poucos anos se tem
tentado em Portugal a revivescência desse culto, que a invasão da ópera italiana
havia impiedosamente ofuscado (99).
Música para outros instrumentos
Com a música para instrumentos do tipo da viola dedilhada relacionou-se intimamente
a que se tocava noutros instrumentos, como o órgão e a harpa e, num grau ainda mal
averiguado, o clavicórdio e o cravo. Na Península, os pequenos órgãos portáteis
(*portativos*) e os que se apoiavam sobre mesas (*positivos*) tinham os comandos em
forma de teclas desde, pelo menos, o século XIV. Poderemos talvez chamar já com
propriedade *músico de tecla* a Estêvão Dominguez, que sabemos era mestre dos
órgãos em Coimbra em 1337. Mas supõe-se terem existido no século anterior órgãos em
Braga, Coimbra é Alcobaça, sem excluirmos a hipótese de estar mais generalizado um
instrumento que já então tinha funções importantes na música de igreja. O infante
D. Fernando, filho de D. João I, teve ao seu serviço, por volta de 1434, um afamado
organista de nome João _álvares, e pelo menos quatro estiveram às ordens de D.
Afonso V. Nos séculos XV e XVI foi grande o número de organistas em Portugal,
sabendo-se da existência de órgãos em igrejas que hoje os não possuem. Deviam ser
instrumentos relativamente pequenos e de reduzidos recursos sonoros. Os órgãos
peninsulares, no Renascimento e inclusivamente no século XVII tinham, na sua grande
maioria, um só manual, e era exíguo o seu mecanismo de pedaleira, quando existia
(100).
Em 1551 havia em Lisboa treze escolas de organistas. Executantes e compositores que
se distinguiram foram um António Carreira, contemporâneo de Camões, mestre da
capela real de quem se conservam obras na Biblioteca da Universidade de Coimbra;
Gregório Silvestre de Mesa, da mesma geração, autor do tratado de tablatura *_A
arte de escrever por cifra*, que também foi poeta, amigo de Jorge de Montemor,
aureolado de grande fama em Granada, de cuja catedral foi organista; D. Heliodoro
de Paiva (m. 1552), cónego regrante que foi professor no Convento de Santa Cruz em
Coimbra, versado em latim, grego e hebraico, bom compositor e tangedor de viola de
arco e harpa (além do órgão), e ademais elogiado como cantor (101). :,
Também relativamente ao órgão, é mister aludir a contactos com o estrangeiro, que
foram decerto importantes. A imperatriz Isabel, mulher de Carlos V, era filha de D.
Manuel I. Tinha uma capela privada, formada por músicos espanhóis, entre os quais
António de Cabezón, o célebre organista cego que ficou, sem contestação, a maior
figura da música de tecla do seu tempo. Mestre consumado da variação, deve ter
contribuído muito para que essa arte florescesse na literatura de órgão e outros
instrumentos de tecla, como nos de corda dedilhada. Cabezón praticou inclusivamente
a variação ornamental (*diferencia*), sobre um tema repetido na região dos sons
graves, no que provavelmente sofreu influência da música inglesa, que conheceu *in
loco*. Neste capítulo, que nos leva já próximo do estilo barroco, o eminente músico
espanhol foi muito moderno para a época (102).
O hábito de tocar em instrumentos de tecla transcrições variadas de trechos vocais
constituía outro meio de contacto com música estrangeira, nomeadamente flamenga, de
polifonistas como Gombert, Arcadelt, Willaert ou Josquin. É de notar estoutra
relação entre a música de órgão e a de viola dedilhada, que, como vimos, incluía
também transcrições de polifonia vocal. Aliás, trechos para instrumentos de tecla
adaptavam-se igualmente à *vihuela* e similares. A música de tecla
caracterizadamente peninsular era muito afim da dos vihuelistas, mesmo quando se
não tratasse de transcrições. Deu-se um caso análogo na música de tecla francesa
com relação ao alaúde. Facto curioso e o de se não conhecerem transcrições de
polifonistas portugueses, talvez porque já então os compositores nacionais fossem
menosprezados no confronto com os estrangeiros.
Não sendo de admitir que à arte de António de Cabezón ficasse sem qualquer reflexo
coetâneo em Portugal, e não obstante o incremento da música de órgão, com
representantes tão notáveis como António Carreira (103), não pode surpreender-nos
muito o já mencionado conceito de Filipe I, expresso assim numa carta de 1581 para
suas filhas: "Y no sé si havreis sanido que por no aver aqui quien tañese bien los
organos en la capilla, hize venir aqui á Cabezón." Este Cabezón não é já o mesmo,
que tinha morrido em 1566, mas sim seu filho Fernando, que lhe sucedeu como
organista e clavicordista da corte.
Por alturas em que o primeiro dos Filipes escrevia aquelas palavras pouco
abonatórias da música portuguesa, nasceu em Elvas (talvez em 1583) o que viria a
ser o mais ilustre dos nossos compositores de música de tecla e harpa, antes da
avassaladora influência italiana. 0 _p.e Manuel Rodrigues Coelho, que foi
"capelãotangedor de tecla de sua Magestade" e que teve como colega o organista de
origem
espanhola Diogo de Alvarado, escreveu uma colectânea chamada *_Flores de música
para instrumento de tecla e harpa*, publicada em 1620 em Lisboa. Consiste em vinte
e quatro tentos e quatro glosas sobre a canção polifónica *_Suzanne un jour*, de
Orlando de Lasso, trecho que então estava muito em moda e foi objecto de diversas
transcrições e variações (104).
Rodrigues Coelho mereceu a consideração de Francisco Correa de Arauxo, que estudou
os seus tentos das *_Flores de musica* e deles aproveitou, Correa de Arauxo,
provavelmente espanhol, é "talvez o mais ibérico de :, todos os autores para tecla
nos séculos XVI e XVII", na opinião autorizada de Santiago Kastner. A sua obra foi
conhecida e estudada em Portugal (105, 106).
A denominação de *glosa* que aparece, mas raramente, aplicada à música de viola
dedilhada, tornou-se frequente na de tecla. É também uma arte de variação, e
praticara-a António de Cabezón com a sua mestria admirável. Incidia geralmente
sobre uma obra polifónica de outro autor (no caso de Rodrigues Coelho a referida
canção de Orlando de Lasso), mantendo a sua textura mas elaborando uma ou mais
partes da polifonia, frequentemente a mais aguda. Era um outro passo no sentido do
estilo barroco, destacando uma linha melódica e fundindo as outras num
acompanhamento harmónico. As glosas causaram o desespero de muitos músicos
conservadores quinhentistas, que viam nelas um sacrilégio praticado contra a
sacrossanta arte da polifonia (107).
Conjuntos de instrumentos
Depois de breve referência, deixemos em claro o interessante caso de Jorge de
Montemor, um dos escritores portugueses que têm lugar na história da literatura
mundial, nascido entre 1520 e 1524. Como vimos, foi músico de profissão em terras
espanholas e neerlandesas. Desempenhou funções de músico de câmara da infanta D.
Maria, irmã de Filipe II de Espanha, e esteve ao serviço de D. Joana, a quem
acompanhou a Portugal quando veio casar-se com o príncipe D. João, filho d'o
Piedoso. Infelizmente, não se conhecem obras musicais suas, mas tão-só de outra
autoria sobre letra do seu punho, escrita em espanhol, como os outros textos que
chegaram até nós (108).
Do ponto de vista musical, o seu nome associa-se não só à arte vocal com
acompanhamento de viola (Montemor é um dos autores das letras insertas no
*_Cancioneiro musical da casa de Medinaceli*) mas também à execução simultânea em
vários instrumentos. Refere-se Montemor a conjuntos de quatro violas de arco e
clavicórdio, de alaúde, harpa e saltério, de flauta e rabel, de três trombetas e
sacabuxa. Se estes concertos tiveram lugar na Península, acaso em Portugal,
encontravam-se as manifestações ibéricas adiantadas para a época, participando nos
alvores da *sonata*. É de notar que Diego Ortiz, que tinha sensivelmente a mesma
idade de Montemor, menciona conjuntos de violas; e o seu contemporâneo Venegas de
Henestrosa deu à estampa uma "fuga" em quarenta partes, que podiam ser executadas
em dez instrumentos. Há também notícia de "bandas de trombetas", cuja música se
desconhece mas que deviam descender da *música alta* de tempos anteriores.
Recordese que estes tangeres, segundo autorizados musicólogos actuais, foram origem
(ou
uma das origens) da tocata (109). :,
Construção de instrumentos
Podemos ter como certa a existência, já na primeira dinastia, de uma pequena
indústria de construção de instrumentos musicais. Os violeiros e fabricantes de
outros instrumentos tinham seus estabelecimentos nas mesmas ruas, segundo o costume
medieval resultante das corporações, da conveniência de os seus membros irem à
mesma igreja e, também, para fácil verificação do cumprimento das prescrições
atinentes ao ofício (110).
Violeiro era, no século XV, Martin Vasques Coelho, e a construção de instrumentos
de corda dedilhada teve razão para progredir no Renascimento, dado o papel que
violas e guitarras foram chamadas a desempenhar na vida palaciana. Apareceram
também os fabricantes de órgãos, fornecendo não só Portugal mas também a Espanha.
Um documento quinhentista fala de certo Bento de Solorzano e do "cumprimento de
pago de 8500 reaes, que lhe nós mandamos dar por uns órgãos que nos há de fazer".
Os organeiros podiam limitar-se ao trabalho de manutenção e reparação, sem se
abalançarem a construir todo um instrumento. Em tempos de D. Manuel, três
carpinteiros de órgãos exerciam a profissão em Lisboa. No reinado d' 0 Piedoso, o
organeiro mestre João, provavelmente estrangeiro, tinha por obrigação conservar
"sempre afinados os órgãos" da capela real "e das capelas de Almeirim e de Sintra e
os da sala de Santa Maria da Pena e Pera Lomga" (111).
Outros instrumentos de tecla foram fabricados em Portugal nesse período,
nomeadamente manicórdios, de que havia doze construtores em princípios de
Quinhentos. Também se fizeram entre nós cravos que, desde o princípio do século
XVI, se tornaram aqui apreciados, enquanto em Espanha o clavicórdio era preferido.
D. João III teve ao seu serviço um neerlandês, Copym de Holanda, como "mestre de
fazer os nossos cravos", sendo obrigado a "temperar e encordoar e fazer alguns
coregimentos nos nossos estromentos".
Mais antiga era por certo a manufactura de instrumentos de sopro e de percussão,
que no Renascimento continuaram a ter emprego nas ocasiões aparatosas. Por exemplo,
no famoso banquete oferecido pelo duque de Bragança em Vila Viçosa ao
cardeallegado, no reinado de D. Sebastião, cada coberta, servida por fidalgos ou
cavaleiros, foi assinalada por sonoros toques de trombetas, atabales e adufes. O
próprio D. João IV, tão cultivado na melhor música, precisou desses instrumentos
estrepitosos, pois tomou um obscuro João Nunes por oficial "de latoeiro de fazer
trombetas, bastardas e sacabuxas".
A imprensa
Já nos referimos a música *impressa*, e não podemos omitir alusão mais explícita a
essa novidade renascentista, que, no nosso país, não fez todavia mudança tão
radical da expansão da música escrita como noutros, devido à :, pequenez do mercado
e ao não valer a pena, nos mais dos casos, empatar dinheiro numa reduzida tiragem.
A introdução da imprensa
posterior à sua invenção
supõe-se que na China) e
da Península. Foi Leiria
Claro que nem em Portugal nem noutros países as primitivas impressões foram de
música. Nos anos setenta do século XV a arte então recente foi aplicada a música
monódica e, em princípios do século seguinte, também à polifónica. Mas já em 1457
se imprimira em Mainz um livro contendo música: o *_Psalterium* saído da oficina de
Johann Fust e Peter Schõffer, colaboradores de Gutenberg. Além do texto, só três
linhas da pauta foram impressas, a preto. A quarta linha, encarnada, e as notas
acrescentaram-se à mão. Empregavam-se blocos de madeira ou de metal e, parece que
com primazia da Itália, tipos móveis (113).
A impressão, por este último processo, de música que não de cantochão, constituindo
já uma indústria de vulto, vem com o italiano Petrucci, que, por este motivo, é
considerado o Gutenberg da música. É de um espanhol -- o já mencionado Ramos de
Pareja -- um dos mais antigos incunábulos sobre música, mas foi impresso em
Bolonha: a *_Música practica*, publicada em 1482. Com tipos mandados vir de Itália
se imprimiu pela primeira vez em Espanha um livro de música para viola, que era o
mencionado *_El Maestro*, de Milán (Valência, 1536). No mesmo ano é passado alvará
de licença a Gonçalo de Baena, músico da câmara de D. João III, para poder imprimir
"uma obra e arte pera tanger", licença que talvez nunca tenha sido aproveitada pelo
interessado. Se assim foi, é de admitir que as já mencionadas *_Flores de música*,
de Rodrigues Coelho, constituíssem a primeira edição, impressa na importante firma
Craesbeeck, de música instrumental. O flamengo Pieter Craesbeeck, discípulo de
Plantin, fixara-se em Lisboa em fins do século XVI. Fundou uma notável indústria de
impressão continuada por seus descendentes, da qual saíram edições preciosas,
inclusivamente de poesias de Camões.
Para fazermos uma ideia do que sejam as tiragens naquele tempo, basta-nos saber dos
1500 exemplares contratados em 1552 entre Guillaume Morlaye e o impressor Fezandat
de um livro de alaúde destinado principalmente ao mercado francês. Um outro
contrato de impressão, das importantes *_Obras de música para tecla, harpa e
viola*, de Cabezón (publicadas postumamente em Madrid, em 1578), estabelece 1200
exemplares. Compreende-se que a música polifónica vocal, de igreja, tivesse
tiragens muito menores do que a música profana para uso de profissionais e
amadores, inclusivamente em suas casas. De uma colecção de obras de Victória,
publicada em 1600, deveu o impressor tirar 200 exemplares e, se quisesse, mais 100,
que ele próprio poderia vender decorrido algum tempo. :,
CAPÍTULO V
O APOGEU DA POLIFONIA
Música religiosa e música profana
Seria errado supor que os participantes nas festas mundanas renascentistas
procurassem nelas alguma vivência musical séria e profunda, como as que hoje
demandamos numa sala de concerto onde se vá ouvir o *_Quarteto op. 131*, de
Beethoven, ou o prelúdio do *_Tristão e Isolda* ou os *_Kindertotenlieder*, de
Mahler, ou a *_Sinfonia dos três rés*, de Honegger. Devemos ver na música profana
de então alguma coisa de comum com o género que hoje dizemos *ligeiro*, na medida
em que este é caracterizado pelo propósito de mero entretenimento ou divertimento,
e sem levarmos longe de mais a comparação, lembrados de que o espírito
renascentista ornava esses lazeres de subtilezas artísticas e matizes intelectuais
que os hodiernos cultores da música ligeira deliberadamente desprezam.
Era na Igreja que a música devia revestir o seu aspecto sério e respeitável, desde
logo nos cantos litúrgicos e, também, nas obras expressamente escritas por
compositores da época. Tivemos ocasião de falar desse monumento admirável que é a
*_Missa* de Guillaume de Machault e poderíamos ter mencionado muitas outras
composições polifónicas sobre o mesmo texto litúrgico, com eventuais modificações
em função dos ofícios a que se destinavam. Na verdade, a missa foi, por excelência,
a forma musical de grande envergadura, e com razão se tem dito que a sinfonia veio
a usurpar-lhe o lugar que lhe pertencia no reino da música, do mesmo passo que
contribuiu decididamente para a secularização da arte dos sons de índole séria.
Este processo não se deu, todavia, de um momento para o outro, com as primeiras
sinfonias galantes, que foram ainda peças de entretenimento, mais do que de
edificação. Onde se realiza nitidamente é nas últimas sinfonias de Haydn e de
Mozart e, não muito depois, nas de Beethoven, que são já intérpretes de uma outra
sociedade, marcadamente burguesa.
Também nos referimos ao *motete*, que já se cultivava na Idade Média e que nasceu
nas primeiras décadas do século XIII como diferenciação das cláusulas, com texto,
do *organum*. O motete sofreu uma longa evolução, impossível de aqui descrever.
Devemos, no entanto, acentuar que, em todos os seus aspectos, o motete foi
polifónico e que, por influência da *_Ars Nova*, se cultivou também no domínio
profano. O seu maior esplendor foi atingido no século XVI (e no XVII, em Portugal),
tendo-se então abandonado a prática de :, sobreposição de diferentes textos. Na
música de igreja, o texto era geralmente bíblico (114).
A história da música só em raros pontos pode reduzir-se em distinções precisas e
estanques sem que se cometa pecado de simplismo. Assim, a separação entre música
religiosa (séria) e profana (ligeira) deve atender-se com alguma reserva, porque
também nos círculos mundanos se evocaram temas religiosos, como vimos, e se
apreciaram tratamentos poéticos de assuntos tão sérios como a morte de Inês de
Castro, cantada por Garcia de Resende (mas note-se que sob o título de "cousas de
folgar"), ao mesmo tempo que na Igreja as incursões de música imprópria levavam a
medidas repressivas das autoridades eclesiásticas. Acrescente-se ainda que, em toda
a música polifónica renascentista, religiosa ou não, o estilo foi essencialmente um
só -- a diferenciação marcada veio depois, como obra do barroco.
Do movimento musical ligado à Reforma, importantíssimo na história geral da música,
não temos aqui que nos ocupar, porquanto não influiu directamente na música
portuguesa.
O máximo esplendor da polifonia
Pertence mais ao âmbito religioso do que ao profano o apogeu da polifonia
portuguesa, já porque os nossos maiores compositores se dedicaram à música
eclesiástica, já pelas circunstancias que rodearam esse belo florescimento da
segunda metade do século XVI e primeira do seguinte (115).
Mencionámos alguns polifonistas destacados. É rigorosamente certo que a opulência
polifónica figurava entre os atributos convenientes às grandes ocasiões. Nas
solenes festas do Mosteiro de Santa Cruz, de Coimbra, celebradas em 1592, por
ocasião do recebimento de novas relíquias, sabemos que junto a uma cruz "iam os
cónegos músicos da capela de canto de órgão, cantando uma obra a oito vozes, a que
alternadamente respondia um suavíssimo realejo, que levavam quatro irmãos leigos e
que, com destreza e saber, tocava o nosso mestre D. João Leite". Não passe
inadvertida a alusão a um instrumento, o "suavíssimo realejo", alternando com as
oito vozes.
Trinta e seis anos antes dessa festividade coimbrã, estivera em Lisboa o insigne
polifonista espanhol Francisco Guerrero, para oferecer o seu primeiro livro de
missas a D. João III. Não é este o único facto a indicar o convívio da música
polifónico-religiosa estrangeira com a que se compunha no país. As importações mais
desejadas continuem sendo flamengas, cujo prestígio na Península vinha de longa
data, como vimos, e que fora aumentado em 1516 pelo futuro imperador Carlos V, que
trouxe então consigo da Flandres toda uma capela.
Os mestres polifonistas portugueses aderiram à escola neerlandesa, de tal sorte que
se empregou para a sua arte a classificação de "música jusquina". Josquin des Près
foi modelo seguido, e não só em Portugal. Mas outras sumidades estrangeiras tiveram
o justo preito dos nossos compositores, nomeadamente Palestrina. Mateus de Aranda
(m. 1548), que, em :, 1544, ocupou a cátedra de Música em Coimbra e que fora mestre
de capela na Sé de _évora, obteve em Itália os seus conhecimentos de música
prática. Em meados do século XVI, António Prestes, no *_Auto do mouro encantado*,
alude a Josquin e Morales com uma naturalidade de quem pressupõe divulgado
conhecimento desses autores estrangeiros. Estudo interessante seria o que
averiguasse da existência na literatura polifónica portuguesa entre os traços
estilísticos e técnicos de origem estrangeira, de caracteres específicos nacionais
(116).
Portanto, o estilo dos mestres polifonistas portugueses envolve a escrita
imitativa, isto é: a imitação entre diferentes vozes, que sucessivamente vão
fazendo ouvir os mesmos desenhos melódicos, mais ou menos modificados, e
realizando, no conjunto polifónico, uma espécie de tecido de fios semelhantes mas
desencontrados. A forma imitativa mais rigorosa é o *cânone*, em que todas as vozes
têm exactamente a mesma melodia e de que é exemplo muito divulgado o *_Frère
Jacques*.
Supõe-se que Guerrero teve, entre os seus discípulos, António Pinheiro (m. 1617),
cujo primeiro livro de missas foi dedicado a D. Sebastião e de quem existiu um
motete a cinco vozes na famosa biblioteca de D. João IV. Foi mestre da capela ducal
de Vila Viçosa e, depois, da de Évora e parece ter formado escola, se é certo terem
sido seus directos continuadores polifonistas como Nunes Pegado, Dias Vilhena,
Francisco Baptista (que se fixou em Córdova) e Manuel Pousão, frade agostiniano que
teve um *_Liber passionum* de sua autoria publicado em Lião.
Na melhor linhagem de polifonistas, que vinha de Mateus de Aranda, encontramos
Manuel Mendes (m. 1605) e, antes, seu professor (?) Cosme Delgado, mestre de capela
da Sé de Évora, autor de missas, motetes e lamentações e de uma obra teórica.
Manuel Mendes também foi mestre de capela da Sé de _évora, depois de ter exercido
idênticas funções em Portalegre. Perdeu-se parte da sua obra, mas conhecem-se duas
missas incluídas num códice manuscrito do século XVII. O valor de Manuel Mendes
como pedagogo foi reconhecido no seu tempo, como se deduz destas curiosas palavras
do calendarista e músico Tomé Alvares, escritas em 1610 numa carta para um amigo
que se encontrava na Flandres: "*Este reino não é pobre de habilidades como é de
quem as favoreça e de comodidade para se publicarem, com que se sepultam todas a
que falta posse para se valerem de reinos estranhos. Lopo Soares de Albergaria,
Deão que foi desta capela [real], grande amigo de V. M. e tanto meu que, com sua
morte, perdi as esperanças da Terra, tinha tomado a sua conta fazer imprimir uns
livros de Missas e Magnificas de Manuel Mendes (que também faleceu) mestre de
Duarte Lobo* e de toda boa música deste reino." (117)
Vale a pena transcrever um pouco mais da carta, não só pela referência a outro dos
maiores -- Filipe de Magalhães -- como pelo mais que nos informa das dificuldades
que então, como hoje, os compositores portugueses tinham em publicar suas músicas.
Prossegue Tomé _álvares: "*Com a morte do primeiro [Soares de Albergaria] e pouca
posse do segundo [Manuel Mendes] nada se efectuou. Estas obras deixou Manuel Mendes
a Filipe de Magalhães, capelão de sua Magestade e nesta capela mestre de música,
seu discípula primogénito no saber, herdeiro nos benefícios, lagar a espírito, :, o
qual também tem trabalhado em muitas, que dão preço as de seu mestre. Folgara,
porque sou discípulo de ambos e me criei em o zelo de Lopo Soares, que para honra
de Deus, lustre de sua Igreja e crédito da nossa pátria (se nesta matéria o tem
perdido) saíssem a lume ocupações tão bem trabalhadas e desejadas de todos."
A opinião deste patriota esclarecido (que escrevia sob a dominação espanhola), tão
consciente de qual era "a boa música deste reino", merece-nos atenção e confirma o
lugar que entre os maiores compositores portugueses do tempo se atribui a Duarte
Lobo e Filipe de Magalhães, ambos discípulos de Manuel Mendes. E se a Magalhães
chama "seu discípulo primogénito no saber", não emitiu aí parecer que hoje nos
repugne perfilhar, instruídos que estamos, embora menos do que ele, na vívida
audição de páginas representativas da plêiade dos polifonistas admiráveis que
serviram sob os ceptros filipinos e do Restaurador.
Grandes nomes da chamada escola de Évora
Duarte Lobo e Filipe de Magalhães foram menos vítimas das dificuldades de impressão
de obras musicais do que temia _álvares ao escrever ao seu amigo Baltasar Moreto.
Ambos tiveram honras de impressão, em Lisboa e Antuérpia, ao que talvez devamos a
sorte de nos terem chegado obras suas em número considerável. A análise técnica
descobre nelas os motivos do respeito que mereceram dos contemporâneos e a audição
faz que as admiremos. São autênticas obras de arte, de perfeita harmonia formal a
revestir coerentemente de valor estético o conteúdo religioso.
O ilustre musicólogo Manuel Joaquim, que aventara local e data do nascimento de
Duarte Lobo, esclareceu posteriormente que o assento de baptismo que descobrira se
não refere ao célebre músico mas sim a um seu homónimo e contemporâneo. Na
ignorância de onde e quando veio ao mundo um dos maiores compositores portugueses,
podemos, no entanto, afirmar que viveu toda a dominação espanhola e conheceu ainda
os primeiros seis anos quase completos da dinastia de Bragança. Morreu em Lisboa,
aos 24 de Novembro de 1646. Foi em Évora que estudou com Manuel Mendes e ali
exerceu funções de mestre do coro da Sé. Depois ocupou sucessivamente os lugares de
mestre de capela do Hospital Real e da Sé em Lisboa. A sua música teve projecção
além-fronteiras, pois que está representada em bibliotecas estrangeiras,
nomeadamente em Viena e Munique. Filipe de Magalhães nasceu em Azeitão, não sabemos
em que data. Conheceu também os princípios da Restauração, pois que era vivo em
1648. Foi mestre de capela da Misericórdia, em Lisboa, e, a partir de 1623, da
capela real (118).
Provavelmente da mesma geração de Duarte Lobo e Filipe de Magalhães, o frade
carmelita Manuel Cardoso (alentejano, natural de Fronteira, que morreu em Lisboa em
1650, com cerca de 84 anos, pois nascera em 1566) é também um dos grandes da música
portuguesa, discípulo de Manuel Mendes em Évora, cidade cujo brilho musical nessa
época escusamos de :, sublinhar, depois das referências que lhe temos feito.
Brilho, aliás, não só musical; basta lembrar que, em 1559, o Colégio da Companhia
de Jesus se transformara em Universidade (119).
Foi em Lisboa, no Convento do Carmo, que, em 1588, Manuel Cardoso tomou o hábito e
professou. No convento exerceu funções de mestre de capela, de subprior e,
finalmente, de vigário provincial da ordem. Muito considerado, inclusivamente por
D. João IV, que o visitou no convento, Manuel Cardoso teve várias obras impressas.
Na sua música tem sido enaltecida, além da perícia técnica, uma austeridade
impregnada de misticismo (120).
Homenagens que músicos portugueses prestaram ao soberano espanhol, na dinastia dos
Filipes, são chocantes à sensibilidade moderna. Filipe de Magalhães dedicou ao
terceiro dos seus reais homónimos um livro de missas; Manuel Cardoso foi a Madrid
oferecer ao monarca uma *_Missa filipina*, em que palavras litúrgicas são
substituídas por *_Philippus quartus*. Por exemplo, no Glória, enquanto três vozes
cantam "*qui tollis peccata mundi, miserere nobis*, etc.", outra vai repetindo
"Philippus quartus", sendo de presumir que se lhe pedisse destaque mais do que o
suficiente para bem se perceberem as duas palavras. Depois da Restauração, o mesmo
Manuel Cardoso faz cantar a nove vozes o nome de *_Joannes quartus Portugaliae
Rex*. Aliás, dedicara já a D. João, quando era apenas duque de Barcelos, em pleno
regime espanhol, o seu primeiro livro de missas impresso em Lisboa, em 1625 (121).
Que se não tratava do que hoje chamamos *colaboracionismo*, dizem-nos não apenas as
atenções de D. João IV para com Manuel Cardoso, como os costumes e a organização
social da época. O respeito completamente submisso a um senhor pertencia tanto à
ordem natural das coisas como o que era devido a Deus. E não esqueçamos que a
candidatura de D. João se não concretizou como oposição clara e oficial, digamos
assim, possibilitando às modestas pessoas daqueles compositores optarem pelo
serviço a ele, em vez de Filipe. Devemos considerar que qualquer circunstancia
evidentemente propícia a prestar a este -- ao rei conhecido -- uma homenagem
explícita e em forma se transformava, *ipso facto*, na quase obrigação de o fazerem
(122).
Dos nossos polifonistas de primeira plana, Duarte Lobo ficou o mais reputado como
professor, e acaso foi na teoria e no ensino que mais se distinguiu, não obstante o
alto valor artístico das suas obras que hoje conhecemos. Muitos polifonistas
receberam directamente os benefícios do seu vasto saber (123).
Aos grandes nomes de que acabamos de nos ocupar é indispensável acrescentar outros.
O P.e Francisco Martins (n. 1620?, m. 19 de Março de 1680), compositor notável,
entrou para o Seminário de Évora em 1629 e foi mestre de capela da, Sé de Elvas, e
é na Biblioteca Municipal desta cidade que se conservam as suas obras (*_Livro da
Quaresma*). O eminente musicólogo norte-americano Robert Stevenson, ao conhecer
alguns dos responsórios de Francisco Martins, estimou-os iguais em qualidade, se
não superiores aos de Ingegneri (124). :,
Mencionemos
de Viseu de
Dias Melgaz
*_Escola de
finalmente Estêvão Lopes Morago (n. 1575), que foi mestre de coro na Sé
1599 a 1628 e de quem se conhece um *_Te Deum*, e o alentejano Diogo
(1638-1700), geralmente considerado o último representante da chamada
_évora* (125, 126).
Carlos Seixas
José António Carlos de Seixas, ou simplesmente Carlos Seixas, como é conhecido,
deve ter estudado com seu pai, cujas funções desempenhou depois da sua morte. Mas
por pouco tempo -- uns dois anos --, pois que em 1720 se fixou em Lisboa. Apesar da
sua juventude, Seixas ganhou fama de músico excelente, que parece trazia já de
Coimbra e se avolumou na capital. Não tardou a nomeação para organista da Santa Sé
Patriarcal, significando, *ipso facto*, que Seixas passava a pertencer à capela
régia (176).
Ficou notícia de o infante D. António, irmão de D. João V, ter encarregado Domenico
Scarlatti de dar lições a Carlos Seixas. Porém, mal este pôs as mãos no teclado, o
mestre napolitano teria dito que nada poderia ensinar ao português, antes aprender
com ele. E a sua informação ao infante seria de que Seixas era um dos melhores
músicos que em toda a sua vida tinha ouvido. Seja ou não verídico o episódio, e
mesmo que não demos todo o crédito, por princípio, à reputação que em seu tempo
tiveram os artistas, as obras de Carlos Seixas que chegaram aos nossos dias não
permitem hesitações em contá-lo entre os maiores compositores portugueses (177).
Na maior parte, as peças de Seixas são para órgão e para cravo, geralmente
denominadas *tocata* ou *sonata*, termos que, neste caso, são sinónimos.
Conservamse poucas obras para orquestra -- uma abertura, uma sinfonia e um concerto
para
cravo e orquestra de arcos -- e alguns trechos de música vocal religiosa. O estilo
reflecte com nitidez a influência italiana e não pode confundir-se com os dos
compositores portugueses renascentistas, pois que tem implícito muito do que de
novo trouxera o movimento chamado *barroco*, possuindo mesmo já marcas nítidas do
gosto galante que lhe sucedeu. Modelos franceses terão porventura servido também ao
notável compositor, designadamente na abertura (*_Overture*) acima mencionada.
A debatida questão de saber se Carlos Seixas sofreu ou exerceu influência em
Domenico Scarlatti, quando da estada deste em Lisboa, é talvez impossível de
resolver dentro do são critério. No entanto, desde que parece provada a data
avançada das mais representativas obras do napolitano, devemos inclinar-nos à tese
do musicólogo Santiago Kastner, segundo a qual Scarlatti aceitou de Seixas ideias
fecundas para a sua arte genial. Kastner aponta também, em duas sonatas de
Scarlatti, a influência do folclore português: uma canção da Estremadura e um
fandango.
A comparação entre os dois compositores esbarra com a grande disparidade das suas
vidas. Scarlatti morreu aos 72 anos, Seixas aos 38! Pode, todavia, afirmar-se que o
italiano demonstra mais sólida preparação técnica, que é mais rica a sua invenção,
mais variada e equilibrada a sua planificação formal, mais brilhantes os efeitos
que obtém. Em Seixas vale mormente a inspiração melódica de índole lírica,
subjectiva, por vezes melancólica, na qual têm sido apontados caracteres
essencialmente portugueses, quiçá realçados pela lembrança da poética paisagem
coimbrã.
Não se conhecem dados biográficos de Fr. Jacinto, mas é de supor que fosse
contemporâneo de Carlos Seixas. A pouca música de sua autoria de que temos
conhecimento é escrita no mesmo estilo, sem qualquer inovação na :, factura, mas
valiosa pela sua qualidade artística. Revela uma perícia técnica talvez superior à
de Seixas e, como as sonatas deste, mantém-se hoje actual, com todo o direito a
figurar mais amiúde nos programas dos cravistas ou pianistas. Note-se, a propósito,
que a música deste estilo resulta bem no moderno pianoforte, se bem que lhe faça
falta a gama dos timbres característicos do cravo (178, 179).
Aspectos musicais da corte de D. João V
Um acontecimento importante para a história da música em Portugal foi a exploração
do oiro do Brasil, que só começou uns duzentos anos depois da viagem de Pedro
Álvares Cabral. Novo influxo para as finanças portuguesas, aparente resolução dos
magnos problemas da administração e, portanto, realização de meios necessários para
se atingirem esplendores artísticos muito ao gosto do tempo e estimulados pelo
exemplo de um Luís XIV, que todos os monarcas se empenhavam em imitar (180).
Acresce que D. João V casou com uma princesa da sumptuosa Casa de Áustria, D.
Mariana, filha do imperador Leopoldo I, que, ele próprio, foi compositor de mérito.
Tudo se conjugava para o brilho musical da corte d'o Magnânimo, aspecto particular
de uma orientação que tem na elevação de Lisboa a patriarcado e na construção do
Convento de Mafra expoentes dos mais elucidativos. Aliás, a música não decaíra de
todo nas cortes dos imediatos sucessores de D. João IV. Com efeito, D. Afonso VI
restabelecera a música de câmara, sob a direcção de Fr. Filipe da Madre de Deus,
afamado compositor de tonos; e D. Pedro II teve como mestre de capela um músico de
renome, António Marques Lésbio (1639-1709), que soube corresponder ao gosto barroco
escrevendo para avultado número de vozes. Era também poeta, o que lhe permitia
escrever não só a música, mas também os versos dos seus vilancicos. Apoiado nas
receitas do tesouro, D. João V pagou por bom preço as cópias de livros de coro
usados no Vaticano, não olhou tão-pouco a despesas quando se tratou de mandar vir
cantores da capela pontifícia e decerto sentiu íntima satisfação quando conseguiu
que um artista cuja classe guindara a mestre da Capela de S. Pedro aceitasse o
cargo que lhe mandara oferecer em Lisboa (181).
Esse músico de justificado destaque era Domenico Scarlatti, de quem, segundo reza a
*_Gazeta de Lisboa*, se cantou na Igreja de S. Roque, no último dia do ano de 1721,
o hino *_Te Deum Laudamus*, em celebração de agradecimento de todos os benefícios
concedidos por Deus Nosso Senhor, durante o ano, a este reino e seus habitantes. A
notícia diz-nos também que a igreja estava magnificamente decorada e cheia de
infinitas luzes, que os músicos se dispunham em tribunas triangulares especialmente
construídas para o efeito, que toda a nobreza esteve presente e que semelhantes
solenidades se haviam realizado em anos anteriores (182).
Scarlatti chegou provavelmente a Lisboa em Setembro de 1719. É possível que no dia
24 desse mês tivesse já participado na serenata que :, teve lugar no palácio real,
cantada pelos músicos que o monarca chamara de Roma. Cerca de um ano depois
comemorou-se o aniversário da rainha com a serenata *_Contesa delle stagioni*, com
música de Scarlatti, que não foi a única obra de vulto por ele composta para a
corte portuguesa.
Na capela de D. João V Scarlatti tinha sob as suas ordens trinta a quarenta
cantores e aproximadamente outros tantos instrumentistas, na maioria italianos. Os
instrumentos que tocavam eram violinos, violas de arco, violoncelos, oboés e
outros, sem esquecer o indispensável órgão. Entre os cantores, estava representada
a classe dos *castrati*, como em todas as capelas que se prezassem. Muitas crianças
do sexo masculino foram desvirilizadas nesses tempos em Itália, com o
consentimento, quando não por expressa vontade, das pessoas que deviam olhar por
elas. A probabilidade de virem a ser cantores excepcionais era pequena; mas, se
tivessem essa sorte (?), fariam a fortuna da família, porque o negócio dos
*castrati* tornara-se muito rendoso. Antes dos primeiros espectáculos de ópera, já
a igreja de Roma tinha *castrati* entre os seus cantores; em 1562 havia pelo menos
um na capela papal. Aliás, a castração foi praticada já na Antiguidade, por exemplo
entre os sacerdotes de Cíbele. Na Península, esses cantores mutilados eram
conhecidos desde muito antes do reinado de D. João V. A viagem de D: Sebastião por
Espanha, em 1576, havia sido amenizada por representações em que participaram
alguns.
As ocupações de Domenico Scarlatti dividiam-se entre música religiosa e profana,
ambas muito cultivadas então na corte portuguesa. Tinha também funções de
professor, cabendo-lhe ensinar a infanta Maria Bárbara, filha de D. João. Em 1729
deu-se, na fronteira do Caia, a famosa troca das infantas -- a espanhola, para
casar com o príncipe herdeiro português, D. José; D. Maria Bárbara, para ser futura
rainha de Espanha, que realmente foi, não obstante o desgosto que consta ter
sentido seu noivo, D. Fernando, quando pela primeira vez a viu. Seguiu-a Scarlatti,
e continuou ao seu serviço no país vizinho, fornecendo-lhe muitas das obras-primas
da música de tecla de todos os tempos. De Portugal levou o ilustre napolitano o
título de cavaleiro da Ordem de Sant'_Iago, que tivera também um artista genial de
origem portuguesa: o pintor Velasquez. Como o mesmo grau da mesma Ordem foi
concedida nos anos 50 à cantadeira Amália Rodrigues, depreende-se que nos séculos
XVII e XVIII constituísse honraria mais significativa do que no XX (183).
A introdução da ópera
Não faz sentido alongarmo-nos em considerações sobre a música na corte de D. João V
antes de tratarmos da introdução do espectáculo de ópera em Portugal. Já tivemos
que nos referir demoradamente a representações teatrais com música. Além do caso
singularmente importante de Gil Vicente, há a considerar as representações na
igreja, cujos assuntos nem sempre foram religiosos. Por isso D. João III decretou,
em 1538, a proibição de todo :, e qualquer auto de conteúdo profano nas cerimónias
eclesiásticas. Parece, todavia, que esta e outras medidas não tiveram grande
eficácia, nem no continente português nem nas ilhas.
D. Sebastião folgava em que lhe representassem farsas que terminavam sempre com
música. Adaptavam-se-lhes cantos acompanhados à viola, dentro ainda do estilo
renascentista. Durante a dominação espanhola, o *vilancico* representado teve
grande aceitação, do mesmo passo que perdeu características populares para se
adaptar ao gosto da corte absolutista. D. João IV apreciava esses espectáculos, a
julgar pelo grande número de textos respectivos na sua biblioteca. Na segunda
metade do século XVII a forma normal do *vilancico* parece ter consistido numa
série de três *nocturnos*, cada um dos quais formado por dois *vilancetes*
separados por um responsório. O *vilancete*, por sua vez, articulava-se em
*introdução, romanza, estribilho* e *coplas* (184).
Dezenas de músicos portugueses compuseram para estas cerimónias, entre eles Filipe
de Magalhães, de quem existiam na biblioteca d'*o Restaurador* obras a sete vozes
destinadas ao efeito. _álvares Frovo (1602-1682), discípulo de Duarte Lobo, teórico
e bibliotecário do rei, compôs também para *vilancicos*, a quatro e seis vozes,
números que se elevam a oito, onze e doze nos *vilancicos* de Marques Lésbio, já no
reinado de D. Pedro II.
Os textos dos vilancicos, ao que parece, eram na sua maioria, castelhanos. Mas,
entre outras línguas ou dialectos, empregou-se também o português, e, com certa
frequência, imitaram-se as maneiras de falar de gente exótica, nomeadamente de
negros. Também castelhanos são os textos do _p.e Luís Calisto da Costa de Faria (n.
1679, m. depois de 1759), poeta e músico, autor da *_Fábula de Alfeu e Aretusa*,
"sesta harmónica com toda a variedade de instrumentos músicos, com que la Reyna
nuestra Senhora D. Marianna d'_Austria celebró el Real nombre del nuestro Señor D.
Juan V, a 24 de Junho de 1712". Do mesmo autor temos notícia da comédia *_Son
triunfo de amor los zelos* (1712), da "fiesta de zarzuela", *_El poder de la
harmonia* (1713) e de vários vilancicos que se representaram na Sé de Lisboa e nas
festas e matinas de S. Vicente, entre 1719 e 1723.
Estas datas levam-nos já a um ponto em que a música de ópera era provavelmente
conhecida em Portugal. Mas devemos observar que às representações do tipo do
vilancico, ou mesmo da zarzuela, se aplica o que dissemos a respeito de Gil
Vicente. Trata-se de representação *com* música, e não *por* música. A novidade
técnica que permitira a passagem de uma coisa a outra pode dizer-se o *recitativo*.
Nasceu em Florença, na *camerata* de Bardi, Galilei e outros espíritos cultivados,
em fins de Quinhentos, como vimos. É importante sublinhar que essa inovação
decisiva para o surgimento da ópera pertence fundamentalmente ao domínio técnico,
não consistindo propriamente em revelar a possibilidade da expressão de sentimentos
através da música, ideal já anteriormente demandado, e muito, na Península Ibérica
(185).
Não cabe aqui tratar de saber quem foi o inventor do recitativo, ponto aliás não
inteiramente esclarecido. Importa, sim, frisar que o emprego de um meio-termo entre
o cantar e o falar possibilitou a expressão por música de textos dramaticamente
dinâmicos, isto é: não teatralmente estáticos. :, Imagine-se o que seria um
*_Barbeiro de Sevilha* sem recitativos -- como seria possível a música transmitir,
só por árias e conjuntos, todos os pormenores da acção? Se bem que, de Peri até
Rossini, o recitativo tenha evoluído muito, o exemplo serve para nos darmos conta
do que significou esse modernismo sensacional nos alvores do barroco.
É interessante notar que, ao contrário do que muitas vezes se afirma, os membros da
*camerata* de Florença não se convenceram de que estavam reproduzindo exactamente a
maneira do teatro grego. O seu erro foi apenas suporem que este era inteiramente
preenchido com música. Jacopo Peri, no prefácio da *_Eurídice*, diz-nos: "apesar de
o Senhor Emilio del Cavaliere, antes de qualquer outro de que eu saiba, nos ter
proporcionado, com maravilhosa invenção, a audição do nosso género de música em
cena, isto tão cedo como 1594, aprouve aos Senhores Jacopo Corsi e Ottavio
Rinuccini que eu o empregasse de outro modo e pusesse em música a fábula de
*_Dafne*, escrita pelo Senhor Ottavio, para simples experiência do que a música do
nosso tempo podia fazer. Vendo que se tratava de poesia dramática e que era
portanto necessário imitar a fala no canto (e decerto nunca alguém falou cantando),
julguei que os antigos Gregos e Romanos (que, na opinião de muitos, cantavam as
suas tragédias de princípio a fim, ao representá-las) tinham usado uma harmonia
superior à da fala comum, mas caindo abaixo da melodia do canto de tal sorte que
tomava uma forma intermédia." E mais adiante: "[...] assim como me não aventuraria
a afirmar que esta é a maneira de cantar usada nas fábulas dos Gregos e Romanos,
também chego à conclusão de ser ela a única que a nossa música pode dar-nos, para
ser adaptada à nossa fala." (186)
Supõe-se ter sido em 1682, cerca de um ano antes de D. Afonso VI morrer no
cativeiro de Sintra, que se ouviu pela primeira vez em Portugal música do novo
estilo italiano. Quase cinquenta anos tinham decorrido sobre a morte de Peri, quase
quarenta sobre a de Monteverdi, e Alessandro Scarlatti era já autor de *_L'onesta
nell'amore*. A ópera sofrera uma importante evolução, diferenciando-se em vários
géneros e adquirindo grande voga. É portanto de admitir que se referisse a música
de ópera o panegirista da princesa D. Isabel Luísa Josefa, filha de D. Pedro II, ao
afirmar que se ouviu pela primeira vez "música italiana" em Portugal quando da
vinda da comitiva do duque de Sabóia, por motivo do projectado casamento daquela
"Sereníssima Senhora" (187).
Para mais, a novidade não agradou, e foi até escarnecida. Era natural que
acontecesse com pessoas que nunca tinham ouvido cantar dessa maneira. Não tinha
acontecido o mesmo nos tempos da *camerata*, cujos membros deveram justificar-se
citando Platão e outras autoridades? Não é verdade que Pietro de Bardi (filho de
Giovanni), na preciosa carta para Doni, informa que o novo estilo -- o "*stile
reppresentativo*" -- era "então considerado quase ridículo" (188)?
De qualquer maneira, é impossível que a festa da comitiva do duque de Sabóia
compreendesse uma ópera com todos os matadores. Deve ter sido alguma *cantata* de
camara ou, como também se dizia, uma *serenata*, com árias, duetos, eventualmente
tercetos, e recitativos, tudo marcado do cunho operista. Este género barroco
atingiu o auge com Alessandro Scarlatti, que :, escreveu mais de 600 cantatas.
Entre nós, a cantata de câmara, ou *cantata humana*, acabou por se impor como nas
cortes estrangeiras. E não só nos palácios reais, visto sabermos que, por volta de
1720, eram frequentes em festas de aniversário e outras, fora dos meandros régios.
A ópera propriamente dita ainda tardou a manifestar-se em Portugal, enquanto em
Espanha talvez a "écloga pastoral" *_La selva sin amor* (1629), de Lope de Vega,
com música de autor desconhecido, possuísse características operistas essenciais,
tendo-as certamente a "fiesta" *_Celos aun del aire matan* (1660), de Calderón, com
música do harpista da capela real Juan Hidalgo. Esta foi, provavelmente, a primeira
ópera espanhola em absoluto. Conhecia-se apenas um fragmento de 255 compassos da
sua música, arquivado na livraria do duque de Alba, até que, em 1942, Luís de
Freitas Branco descobriu, na Biblioteca de Évora, a obra completa, com suas três
jornadas (189).
Uma companhia italiana, de que faziam parte as cantoras Helena e Angela Paghetti
(conhecidas por "Paquetas"), filhas de um violinista que esteve ao serviço do rei,
aparece em 1731 a querer fazer do Pátio das Comédias o primeiro teatro de ópera em
Portugal. Parece que a principal dificuldade que se lhe opôs não foi a eclesiástica
mas sim a de obter a indispensável licença régia. Resta saber quem aconselhava D.
João V a não ceder facilmente à solicitação. Conseguiram os artistas por fim
realizar o que pretendiam, marcando um acontecimento histórico na vida musical
portuguesa. Por essa altura, no Carnaval de 1733, representa-se, num teatro montado
no Paço da Ribeira, *_La pazienza di Socrate*, música de Francisco António de
Almeida, sobre libreto italiano de Alexandre de Gusmão, que é a primeira ópera de
autor português (190).
Pensionistas em Itália
O mesmo Francisco António de Almeida, de quem se cantara, em 1722, um
"*componimento sacro*" intitulado *_il pentimento di Davide* -- oratória cuja
partitura se perdeu (191) --, foi um dos primeiros músicos portugueses enviados por
D. João V a Itália como pensionistas. Seguira para Roma poucos anos antes, em 1717,
António Teixeira, que, segundo Barbosa Machado, só regressou onze anos depois.
O mesmo e reafirmar que D. João V apreciava o espectáculo de ópera e o estilo
italiano que dele irradiava para todos os géneros de música. Confirma-o ainda o
número de teatros de ópera que entraram a funcionar no seu reinado e a que adiante
nos referiremos. Sabendo-se quanto o monarca era zeloso em cumprir a orientação
eclesiástica, pode parecer estranho que assim favorecesse manifestações tão
profanas, a ponto de mandar músicos portugueses ao estrangeiro para nelas se
aperfeiçoarem. Voltaremos também a este assunto.
Estes dois pensionistas distinguiram-se entre os músicos portugueses coetâneos, não
desmerecendo, portanto, da protecção régia. Mencionaram-se :, já obras importantes
de Francisco António de Almeida, que em parte, chegaram até nós. Da *_Pazienza di
Socrate* conserva-se, na Biblioteca da Ajuda, a partitura de orquestra autógrafa do
3.o acto, além de todo o libreto impresso. Existe na mesma biblioteca a partitura
autógrafa completa de outra ópera sua, em três actos -- *_La Spinalba* --, e há
ainda o libreto impresso de *_La finta pazza*, para o qual também compôs a música.
De António Teixeira falaremos a propósito de uma das mais interessantes tentativas
músico-teatrais que se fizeram em Portugal no século XVIII: o teatro de António
José da Silva, *o Judeu*. Entretanto, é mister voltarmos um pouco atrás, para
sabermos de algumas atitudes eclesiásticas ante os brilhantes triunfos que, ainda
jovem, a ópera ia somando em diferentes pontos da Europa.
Os Jesuítas e a ópera
Conhecendo-se as reacções tradicionais da igreja católica, e sendo objecto destes
parágrafos uma época em que a Inquisição exerceu actividade tão interferente em
tudo, é caso de perguntar o que da ópera pensaram os eclesiásticos influentes.
Pode dizer-se que no seio da Igreja houve atitudes diversas e mesmo antagónicas, se
bem que, dentro do espírito do Concílio de Trento, concordantes em impedir a
entrada nos templos de elementos marcadamente profanos. Vistas as coisas de maneira
talvez simplista, mas não fundamentalmente errada, desenham-se duas atitudes: uma,
de oposição condicionada apenas pela força irresistível do fluxo histórico e dos
concomitantes costumes das gentes; outra, de inteligente e hábil aproveitamento das
novas diversões, joeiradas do que tivessem de pernicioso. No primeiro pólo
encontramos a dominicana Inquisição, no segundo, a Companhia de Jesus (192).
Já nos primeiros tempos da ópera, quando era ainda espectáculo de corte
marcadamente renascentista, foi posta a questão de saber se o novo estilo profano
poderia servir os objectivos da Contra-_Reforma, que eram, entre outros, de não
perder, antes ganhar cada vez mais, adeptos da religião católica. Cavalieri
responde afirmativamente, dizendo no prefácio da sua representação cénica *_Anima e
corpo* que o estilo então moderno "também pode promover os pios afectos". Essa
representação, dada em Roma, foi criada para os Jesuítas. Seguiram-se-lhe várias
peças alegóricas com música, como o *_Eumelio*, de Agazzari, em 1606, ou a
*_Apoteose de Santo Inácio*, de Kapsberger, e toda uma longa série de espectáculos
próprios para escolas católicas, que os Jesuítas fizeram representar primeiro nos
seus seminários de Roma e, mais tarde, em diferentes países (193).
Em Portugal, também houve festividades desse género em colégios da Companhia, e
algumas deram que falar pela sua pompa. Foram, ainda no século XVI, as
tragicomédias em colégios de Lisboa, Coimbra, Évora e Braga, das ilhas e do Brasil,
inclusivamente. Em 1570 (antes da primeira ópera), :, o jesuíta Luís da Cruz
escreveu o texto e a música da tragicomédia *_Sedecias*, publicada trinta e cinco
anos depois. O autor diz-nos que nas tragicomédias se empregavam sempre flautas e
que as peças terminavam com dilatados números corais. Na tragicomédia real que se
representou em 1619 no Colégio de St.o António, em Lisboa, por ocasião da entrada
de Filipe III na cidade, participou um coro de 300 vozes. A música era de vários
autores, um dos quais o jesuíta José Leite, que, no ano seguinte, compôs a
tragicomédia alegórica *_Angola triunfante*.
Não sabemos se, pouco depois da criação do drama por música em Florença, e portanto
muito antes dos primeiros espectáculos públicos de ópera em Portugal, o estilo
representativo teria sido usado nessas festas dos Jesuítas, cujas actividades na
Península tiveram amplitude bem conhecida. É possível que tal se tenha dado, mas, à
falta de provas, temos de deixar a questão em aberto. Que colégios da Companhia
vieram a relacionar-se de algum modo com a arte operática, inclusivamente em terra
ultramarina, prova-o o exemplo interessante das operas de Marcos Portugal e de seu
irmão, Simão Portugal, inteiramente interpretadas, no Brasil, por negros e mestiços
ensinados num conservatório que fora fundado pelos Jesuítas (194).
A orientação do Santo Ofício diferia da da Companhia de Jesus, em medidas como as
que, em 1564, 1581 e 1597, proibiram grande parte do teatro. A Inquisição também
deve ter influído em D. João V quando interditou os vilancicos, que no primeiro
quartel do século XVIII ainda foram muito representados, nomeadamente pela
Irmandade de Santa Cecília. Essa última fase do vilancico acusa também a influência
da ópera italiana, com árias e recitativos. A velha denominação não caiu em
completo desuso na Península. Luigi Boccherini (1743-1805), mais conhecido pelas
obras instrumentais, que o tornam um dos grandes do período clássico, compôs em
Espanha vilancicos de Natal para quatro vozes e orquestra (195).
Evolução do espectáculo de ópera
Depois dos princípios palacianos da ópera, o novo espectáculo tornou-se público, em
Veneza, em 1637, exemplo que não tardou a ser seguido. Foi uma data importante na
história da música, essa das primeiras récitas de ópera a que podia assistir
qualquer cidadão munido de dinheiro suficiente para comprar um bilhete. Mas eram
espectáculos ainda principalmente dirigidos à aristocracia. Companhias
profissionais proporcionavam assim o espectáculo da moda, em bases comerciais, aos
nobres sem posses suficientes para o terem em suas residências.
Era todavia um passo decisivo para o teatro de ópera destinado à classe média dos
burgueses. O interessante é que a essas modalidades corresponderam diferentes
géneros de espectáculo. Como sempre, a expressão artística foi função não só da
personalidade dos autores, mas também, e profundamente, da classe de pessoas a que
se propunha e das condições materiais. Assim, a ópera de corte subentendia os
conhecimentos de pessoas cultas e :, obrigava a dispendiosos recursos vocais,
instrumentais e cénicos. Na ópera comercial impõem-se necessidades de economia,
obrigando à redução dos conjuntos instrumentais e dos coros. E os autores procuram
corresponder ao gosto de uma audiência de baixo nível intelectual, explorando o
virtuosismo solístico dos cantores e trocando a lentidão dos assuntos mitológicos
por acções mais rápidas em cena (196).
Relaciona-se com esta evolução a distinção entre ópera séria e ópera cómica (*opera
buffa*), diferenciação de um género anterior em que os dois elementos se
associavam. O estilo *buffo*, que introduziu no barroco as primeiras tintas do
gosto galante, apareceu pela primeira vez nitidamente no *_Patre Calienno, em 1709,
do compositor Orefice. Mas só em 1722 surge a que pode considerar-se a mais antiga
*opera buffa*, já plenamente desenvolvida: *_Zite'n galera*, de Vinci. O
"intermezzo" *_La serva padrona* (1733), de Pergolesi, frequentemente citado como
primeira *opera buffa*, ganhou a sua enorme reputação pelo papel sensacional que
representou em Paris, na *querelle des bouffons*, verdadeira guerra entre
partidários da ópera cómica italiana e da francesa.
Compreende-se que o género cómico se tornasse a ópera da classe média, com os
personagens mitológicos ou históricos substituídos por burgueses, a aristocracia
ridicularizada, algumas vezes com paródia à ópera séria, com suas pompas e
dignidades, e alusões irónicas a acontecimentos recentes, sem exclusão da piada
política. A ópera cómica setecentista está impregnada do espírito da Revolução
Francesa e os seus progressos artísticos correram paralelos à propagação da cultura
fora da aristocracia.
Vinha, portanto, já muito evoluída a ópera quando, na quarta década do século
XVIII, iniciou a conquista do mercado português.
Os teatros de ópera no tempo de D. João V
Os espectáculos públicos pela companhia das "Paquetas" realizaram-se em instalações
improvisadas em casas alugadas para o efeito, em frente do Convento da Trindade. A
mesma companhia actuou também noutro local, parece que mais apropriado: uma das
casas situadas à Boavista, aonde o público afluía copiosamente.
Em 1735 iniciou a Academia de Música da Trindade os seus espectáculos, com uma
companhia dirigida por um compositor bolonhês que tinha sido mestre de capela da
corte de Darmstadt: Gaetano Schiassi. Em 1738 a concessão do pequeno teatro da
Trindade passou às mãos de António Ferreira Carlos, que deslocou a cena para o
Pátio dos Condes.
Em 1733 iniciam-se espectáculos com certas características de ópera no Teatro do
Bairro Alto. Foram as faladas representações d' *o Judeu*, a que devemos fazer mais
desenvolvida referência na rubrica seguinte. Por enquanto, limitemo-nos a acentuar
que estas récitas públicas, não obstante as instalações, que eram más, para não
dizermos péssimas, vieram ao encontro do interesse de uma população considerável
dentro do burgo :, lisboeta. No entanto, o negócio da ópera não deve ter sido dos
mais tentadores para um administrador prudente, como, por sua própria natureza, o
não foi verdadeiramente em nenhuma cidade da Europa, mesmo nas mais populosas. Em
Portugal instituiu-se a "Sociedade para a subsistência dos teatros públicos da
corte", que protegeu exclusivamente a arte músico-teatral italiana.
Para uso da corte de D. João V funcionaram o já mencionado teatro, a que chamavam
"forte", no Paço da Ribeira e outro numa antiga quinta do conde de Aveiras, onde é
hoje o Palácio de Belém.
O teatro de "o Judeu"
É lógico que as audiências burguesas propiciassem a ópera nacional, isto é: a ópera
cantada, não numa língua estrangeira -- o italiano --, que o ouvinte compreendia
mal, se não no próprio idioma do público. Pertencem a esse movimento nacionalista a
*_Ópera dos mendigos* (1728), de John Gay, em Inglaterra, o *vaudeville* e a ópera
cómica francesa, ou o *_Singspiel* austríaco, de que *_A flauta mágica* (1791), de
Mozart, é o exemplo hoje mais conhecido.
Foi um homem notável, o comediógrafo, poeta e advogado António José da Silva
(17051739), judeu nascido no Brasil, quem despertou em Lisboa o mesmo sentimento.
Mais
um nome da história da literatura portuguesa que estreitamente se liga à da música.
As suas operas, encenadas no Teatro do Bairro Alto, eram representadas, não por
pessoas, mas por fantoches, um pouco como no *_Retablo de Maese Pero*, de Manuel de
Falla. Por isso, chamavam ao Teatro do Bairro Alto a "Casa dos Bonecos". Como os
espectáculos estrangeiros nos respectivos idiomas nacionais, as palavras dos textos
(da autoria de António José da Silva) não eram todas cantadas e, à semelhança do
*vaudeville*, os trechos musicais podiam ser populares ou, melhor, popularizados:
modinhas e outras pequenas peças que toda a gente trazia no ouvido. Mas também se
empregava música operista de conceituada autoria, como veremos. Por isso podemos
dizer que as operas d' *o Judeu* associavam a elementos ligeiros do tipo
*vaudeville* aspectos propriamente artísticos da *opera buffa* (197).
Foi no teatro do Bairro Alto que, em Outubro de 1733, se representou a que, de
algum modo, pode dizer-se a primeira ópera em língua portuguesa: *_Vida do grande
D. Quixote de la Mancha e do gordo Sancho Pança*, -- texto literário em prosa de
António José da Silva, música de autor ou autores desconhecidos, que não chegou até
nós, constando de abertura orquestral e muitos números de canto com acompanhamento
instrumental.
Em 1734, nova ópera com libreto de António José estreada em Abril, sobre a vida de
Esopo; em Maio de 1735, *_Os encantos de Medeia*, e, um ano depois, *_Anfitrião ou
Júpiter de Alcmena*, seguido, em Novembro, do *_Labirinto de Creta*. Não há traço
da música utilizada nestas peças d' *o Judeu*. A nossa ignorância sobre este
assunto tão importante para a história da música :, portuguesa tornou-se menos
completa desde que João de Figueiredo, conservador do museu do Palácio Ducal de
Vila Viçosa, descobriu partes de canto e de orquestra da "ópera joco-séria", com
texto também de António José, *_As guerras do alecrim e da manjerona*, representada
no Carnaval de 1737.
A música é de António Teixeira, a quem j á nos referimos como pensionista enviado a
Itália por D. João V. Supõe-se que nasceu em 1707 e que foi uma das vítimas do
terramoto, pois não há notícia sua depois do fatídico dia 1 de Novembro de 1765. A
música d'*_As guerras do alecrim e da manjerona*, para vozes e orquestra de
primeiros e segundos-violinos, violas, violoncelos, contrabaixos, oboés, clarins e
o indispensável cravo acompanhador, acusa boa qualidade artística, em estilo
italiano e dentro do sistema, então generalizado, do baixo contínuo, o mesmo
podendo dizer-se do dueto de sopranos com acompanhamento de orquestra de arcos e
cravo que Luís de Freitas Branco encontrou na Biblioteca de Évora, também de
António Teixeira (198).
Mais duas óperas de António José da Silva foram representadas no Teatro do Bairro
Alto, nomeadamente *_As variedades de Proteu*, em Maio de 1737, de cuja música
também João de Figueiredo nos proporcionou alguma informação: fragmentos sem nome
do autor, subentendendo uma orquestra semelhante à das *_Guerras*, mas com duas
trompas em vez dos clarins.
Estes espectáculos agradaram sem dúvida ao público a que se dirigiam, e talvez o
serem de fantoches permitisse uma economia que assegurasse longo prosseguimento da
empresa. Liquidou-a todavia um acontecimento de outra ordem. Acusado de
reincidência no judaísmo, o cristão-novo António José da Silva teve de submeter-se
à Inquisição, que o "relaxou à Justiça Secular". Em 1739 foi garrotado e os seus
restos queimados em auto-de-fé, no antigo Terreiro da Lã, em Lisboa. Tinha 34 anos
de idade.
Depois, o Teatro do Bairro Alto serviu a outras tentativas operáticas. Alexandre
António de Lima e outros homens de teatro fizeram adaptações de libretos de
Metastasio e Zeno, enxertando-lhes, aqui e acolá, notas cómicas de sabor popular
lisboeta. Em 1737 Alexandre de Lima publicou a ópera cómica *_Novos encantos do
amor*.
A loucura da ópera
Se no tempo de D. João V a ópera já teve grandes honras em Portugal, foi no reinado
de seu filho e sucessor que o entusiasmo por ela tocou as raias da loucura. Pouco
depois de subir ao trono, D. José mandou construir, nos Paços da Ribeira, a
fabulosa "Ópera do Tejo", um teatro de grande ostentação, cuja plateia tinha uns
seiscentos lugares e que, situado à beira do rio, permitia curioso realismo
cenográfico nos quadros em que a paisagem aquática viesse a propósito. Foi
inaugurado em comemoração do aniversário da rainha, com a ópera *_Alessandro
nell'_Indie*, de David Perez. Para fazermos ideia da pompa dessa récita basta dizer
que, ao abrir o pano, aparecia no quadro de um :, acampamento de Alexandre da
Macedónia todo um corpo de cavalaria, diz-se que de quatrocentos cavalos! Depois
vinha um consumado mestre-picador, cavalgando um soberbo corcel e trazendo atrás de
si mais vinte e cinco cavaleiros bem montados, cujos ginetes seguiam o compasso da
música. Sete meses volvidos a Ópera do Tejo era reduzida a escombros pelo
terramoto.
A corte refugiou-se na colina da Ajuda (199). Relativamente pouco tempo depois já
se tratava da construção do pequeno Teatro da Ajuda, de que restam sinais na
meialaranja da Calçada do Galvão. A lotação da sala era pequena, mas grande o
palco,
adequado às altas cavalarias então ao gosto dos amadores da ópera. Como a família
real costumava ir caçar para Salvaterra de Magos, ali mandou D. José edificar um
bonito teatro de ópera, onde se deram várias representações entre 1765 e 1791. No
Palácio de Queluz também se fizeram espectáculos de ópera, mas foi já no reinado de
D. Maria I que se construiu um teatro de madeira para esse efeito. Antes disso as
representações haviam tido lugar na sala de música do palácio.
Havia também teatros públicos. O do Bairro Alto, no Pátio do Conde de Soure, não
era já o mesmo das peças d' *o Judeu*, que o terramoto destruíra. Foi inaugurado em
1761, teve na sua primeira fase espectáculos de ópera de fantoches e, ampliado em
1765, passou a votar-se à ópera italiana. O novo Teatro da Rua dos Condes surge
pouco depois, com espectáculos que deram brado. Foi lá que se exibiu a Zamperini,
por quem muitos perderam a cabeça, entre os quais o conde de Oeiras, filho do
marquês de Pombal e presidente da Câmara Municipal de Lisboa. O resultado desse
escândalo foi não só a expulsão da perigosa cantora mas também a proibição da
participação de mulheres nos espectáculos, medida promovida pelo primeiro-ministro,
a quem, ao que parece, haviam assustado os gastos estouvados do filho em proveito
da Zamperini.
Nos teatros da corte, mais do que nestes, dominou a preocupação do aparato e do
brilho, para o que eram solicitados arquitectos, decoradores e maquinistas de
nomeada, como Bibiena, Azzolini e Servandoni. Libretos de operas foram
esplendidamente ilustrados com gravuras de artistas como Berardi. Mas ainda foi nas
somas dispendidas com cantores célebres que mais flagrantemente se espelhou a
loucura pela ópera italiana (200).
A arte do canto
O surgimento da ópera não podia deixar de afectar grandemente a arte do canto.
Vimos que o canto solístico das primeiras operas tinha certos precedentes,
inclusivamente na Península Ibérica, e a tendência para ornamentar as linhas vocais
mais agudas da polifonia (tendência que fora mais de músicos latinos do que dos
setentrionais) com desenhos de notas rápidas contribuiu para apurar a técnica dos
cantores. Até o Renascimento, e seguindo alguns preceitos que os cantores de hoje
ainda observam, o gosto da música vocal cingia-se ao timbre, à naturalidade da
emissão, e também :, ao âmbito das vozes, sem desejar as grandes intensidades. Um
madrigal de Jacopo da Bononia, cerca de 1350, diz-nos que "per gritar forte non si
canta bene; ma con soav' e dolce melodia". É só no século XVI que começa a exigirse
de um bom cantor também o considerável volume de voz, além da boniteza do
timbre.
Se bem que não possamos referir-nos aqui desenvolvidamente à evolução da pedagogia
do canto, interessa salientar que muitas das regras actualmente válidas foram
preconizadas há muito tempo, inclusivamente a de o estudioso de canto se ouvir
quanto possível a si mesmo, o que hoje é fácil por meio da gravação
electromagnética. Então, o recurso era o eco, e muitos cantores devem ter procurado
locais que assim permitissem escutar as suas próprias vozes, reflectidas em algum
muro convenientemente afastado. Os professores de canto conheciam também as
vantagens do estudo defronte dum espelho, para evitar as contracções faciais.
Relações do canto com a fisiologia foram investigadas por um Vesalius, um Zacconi,
um Mersenne, ou seja, nos séculos XVI e XVII.
Não admira, portanto, que se conhecessem diferentes maneiras de colocar a voz, o
que aliás transpareceu já de uma passagem do *_Leal conselheiro*, de D. Duarte, que
transcrevemos num dos capítulos anteriores. Foi muito apreciado o falsete, que no
entanto, Caccini, o famoso cantor da *camerata fiorentina*, condenou como "voz
fingida", recomendando a "voz plena e natural". A arte do falsete, que parece ter
tido bons cultores ibéricos, foi perdendo terreno à medida que os *castrati* o
ganhavam. O apogeu destes marca, de algum modo, o máximo esplendor do *bel'canto*,
antes das operas de Bellini, Donizetti e outros a que geralmente associamos aquela
internacionalizada designação italiana.
A operação cirúrgica a que já aludimos, efectuada antes de a vítima ter a muda da
voz, motivava o não desenvolvimento da laringe. Os *castrati* conservavam até idade
avançada vozes agudas, de soprano ou de contralto, mas não débeis como as das
crianças, porque a caixa toráxica e os pulmões tinham o seu crescimento normal. Um
bom cantor *castrato* gozava de vantagens apreciáveis sobre os sopranos e
contraltos femininos, nomeadamente na igualdade da emissão e na extensão do fôlego,
porque, dispondo de energia sensivelmente igual, a aplicava a órgãos atrofiados,
que a absorviam menos. Uma das suas especialidades era o som filado: o crescer e
diminuir, em graduação lenta e uniforme, a intensidade do som numa só expiração.
Vários *castrati* formaram escola, entre os quais Bernacchi, em Bolonha, que
ensinou o célebre Farinelli (também *castrato*) e Anton Raaff, tenor de fama que
esteve em Portugal e tomou parte na histórica representação do *_Alessandro
nell'_Indie*, na Ópera do Tejo. Este mesmo Raaff ficou para sempre com o seu nome
ligado ao de Mozart, desde que cantou em Munique, já de idade avançada, o
*_Indomeneo*. Foram seus discípulos dois baixos excepcionais: Ludwig Fischer, para
quem Mozart escreveu a parte de Osmin d'*_O rapto do serralho*, e Georg Gern,
criador do pequeno papel de eremita no *_Freischütz*, de Weber.
É mister reconhecer que os *castrati* tiveram enorme influência na evolução da arte
do canto. Foi um extraordinário progresso na técnica, permitindo agilidade incrível
nas notas rápidas, efeitos surpreendentes obtidos pelo :, domínio da respiração e a
mais doce maleabilidade no desenho melódico. Toda a Europa aclamou esses estranhos
entes, aos melhores dos quais aplicavam, talvez sem ironia, a denominação de *primo
uomo* -- primeiro homem. Ainda hoje chamamos *prima donna* a uma cantora de
principais papéis. Causa espanto saber que esses costumes, agora incompreensíveis
para uma mentalidade europeia, existiam há tão pouco tempo. O último *castrato*
célebre da Igreja de S. Pedro morreu há pouco mais de setenta anos, em 1924!
A arte de canto apreciada no século XVIII, e em especial a dos *castrati*, diferia
muito da dos cantores dos nossos dias. Apesar de, desde Quinhentos, haver um ideal
de intensidade, não se desejavam vozes fortes no mesmo sentido em que o são as de
um Ramon Vinay ou de uma Kirsten Flagstad. Na verdade, um cantor ou cantora daquele
tempo, se cá voltasse, nunca poderia satisfazer-nos na interpretação do *_Otelo*,
de Verdi, ou no *_Crepúsculo dos Deuses*, de Wagner. A intensidade relativamente
grande da voz agradava nos registos grave e médio, enquanto nas notas agudas se
evitava o risco do som gritante. Antes de mais, um cantor devia saber dar suavidade
e lisura às melodias e executar com um virtuosismo extremo os passos de agilidade
produzindo efeitos ornamentais superabundantes, as mais das vezes improvisados, que
hoje consideraríamos de péssimo gosto. Os autores setecentistas ficariam
surpreendidos perante a sobriedade do que actualmente se aponta como interpretação
de bom estilo das suas obras.
Outra diferença em relação aos tempos actuais residia na preparação técnica
profissional, então muito mais intensa. Bontempi (1624-1705) descreveu assim o
trabalho diário de um estudioso de canto: de manhã, uma hora para as passagens
difíceis, uma hora de trilos, uma hora de escalas e ornamentos, uma hora de
literatura e outra hora de exercícios na presença do mestre; à tarde, uma hora de
teoria, uma de exercícios contrapontísticos e ainda uma última de literatura. No
resto do dia o aluno tocava algum ou alguns instrumentos, compunha ou ouvia
cantores famosos. Só ao fim de oito anos neste regime ele podia considerar-se bem
músico e bom cantor. Isto não quer dizer que todos, nem mesmo a maioria dos
cantores setecentistas tivessem esta formação, mas dá uma ideia de quanto os
professores podiam exigir.
Esse virtuosismo extremo, em parte motivado pelo desejo de imitar com a voz a
execução em instrumentos (nomeadamente o violino), que nos últimos séculos havia
progredido na mesma medida dos aperfeiçoamentos na construção (recordem-se os nomes
de Stradivarius, Guarnerius e tantos outros), tornou os cantores em senhores
absolutos da cena operista. E, como todos os poderes absolutos, também este
conduziu a abusos insuportáveis, contra os quais se insurgiu Gluck e, mais tarde,
Rossini. Mas estes acontecimentos são já posteriores ao reinado do nosso D. José I,
em que estávamos. :,
Cantores célebres em Portugal
Muitos cantores famosos foram contratados para Portugal, na maioria *castrati*,
tanto mais que não era costume a participação de mulheres nas operas representadas
nos teatros da corte. Entre outros, citam-se Gizzielo Caffarelli, Guadagni,
Guarducci e o sopranista Manzuoli, que era um cantor de bravura. Eram caríssimos
esses divos, e parece que D. José compreendeu ainda, acaso aconselhado por Pombal e
convencido pela diminuição alarmante do ouro do Brasil, que era necessário não
gastar tanto dinheiro com esses e outros divertimentos. Persuasão nem sempre fácil
num senhor desses tempos de capricho. O duque de Brunswick, para obter dinheiro
compensador das despesas com a ópera, não lhe chegando as receitas de engenhosas
taxas directas e indirectas, enveredou pelo negócio de escravos vendendo como
soldados muitos dos seus súbditos plebeus (201).
Mas as vindas de cantores célebres não ficaram por aí; aos nomes mencionados
poderíamos acrescentar outros que vieram mais tarde, como o *castrato* Crescentini,
em 1798. E é bem sabido que pelo Teatro de S. Carlos passaram numerosas
notabilidades, como Tamberlick, Rosina Stoltz, a Castellan, a Alboni, Cotogni,
Caruso e tantos outros, tradição que se reavivou no período da 2.a Grande Guerra e
no que imediatamente lhe sucedeu, com artistas da craveira de Beniamino Gigli,
Maria Caniglia, Tito Gobbi, Boris Christoff, Giulietta Simionato, Ramon Vinay,
Renata Tebaldi ou Maria Callas.
Os reportórios
Se os cantores do século XVIII diferiam dos de hoje, ainda mais as operas que
interpretavam. Não são, no geral, as mesmas desse tempo que ainda estão no
reportório, porque estas são muito poucas. Voltando ao reinado de D. João V,
podemos citar compositores como Gaetano Maria Schiassi, Leonardo Leo, Caldara ou
Rinaldo di Capua. Sob o ceptro de D. José foram numerosas as representações de
operas de David Perez (1711-1779), o festejado compositor napolitano de ascendência
espanhola que se fixou em Lisboa. O rei condecorou-o com a Ordem de Cristo e
nomeou-o mestre da capela real. A sua posição era invejável, porquanto, além do
muito dinheiro que a coroa lhe pagava, a sua influência era tida por decisiva em
matéria musical.
Outro compositor muito apreciado foi Piccini (o das lutas entre piccinnistas e
gluckistas), e podemos acrescentar os nomes de Jommelli, Paisiello, Galuppi e
Guglielmi, para citarmos só alguns. D. José pretendeu chamar Jommelli a Portugal,
mas não conseguiu mais do que obter que ele aceitasse um contrato segundo o qual
enviaria cópias de todas as suas novas obras. Em vários palcos portugueses se
representaram então quase todas as operas que compôs para a corte de Estugarda e
outras, nomeadamente *_il trionfo di :, Clelia* (1774), e dois divertimentos (1775)
escritos expressamente para a portuguesa. Sabendo-se hoje da importância histórica
de Jommelli, seria interessante investigar mais profundamente as suas relações com
a cultura musical portuguesa setecentista.
Este reportório italiano não era exclusivamente do género sério; compreendeu também
operas cómicas, impregnadas do estilo galante, que, entretanto, sucedera ao
barroco. O mesmo é dizer que a música se aligeirara, que o baixo contínuo se
tornava obsoleto, que à dignidade pesada se preferia cada vez mais a delicadeza
graciosa e que o amador de música esperava do compositor "sensibilidade", uma
palavra que esteve imensamente em voga nos círculos cultivados da Europa do tempo.
O reinado de D. Maria I é de nítida decadência, mas não de completa inactividade
músico-teatral. Paisiello e Cimarosa parecem ter sido os compositores italianos
mais aplaudidos. Mas há notícia da representação de obras significativas, como
*_Axur*, de Salieri, em 1790, no Teatro da Ajuda, e *_Ricardo cor di leone*, de
Grètry, no de Salvaterra, dois anos depois. Pouco tempo decorreu até que ficaram
prontas as aceleradas obras de edificação do real Teatro de S. Carlos, fomentadas
por Pina Manique -- desejoso não só de que Lisboa possuísse um teatro de ópera
digno duma capital, mas também de obter novas receitas para a Casa Pia --,
financiadas por um grupo de homens ricos, entre os quais o barão de Quintela, e
dirigidas pelo arquitecto José da Costa e Silva, que seguira o modelo do antigo
Teatro de S. Carlos de Nápoles. Mazoneschi, um italiano, foi encarregado da
decoração. As obras importaram em cerca de 10.000 contos de hoje (202, 203).
A inauguração deu-se no dia 30 de Junho de 1793, com *_La ballerina amante*, de
Cimarosa, posta por empresários italianos, com a direcção musical confiada ao
compositor português Leal Moreira. Em 1797 inaugurou-se a sala de concertos
integrada no edifício, com a *_Paixão* de Paisiello. Este e Cimarosa eram tidos
pelos maiores compositores coetâneos, apesar de Mozart ter morrido poucos anos
antes e Haydn ser ainda vivo. Além de operas suas, o primeiro reportório do S.
Carlos incluiu partituras de Sarti, Borghi e outros autores, inclusivamente
portugueses. A proibição da entrada de mulheres no palco ainda vigorava, pois só
foi levantada em 1799. Os *castrati* eram os elementos dominantes no desempenho.
Fez parte de uma companhia do célebre Crescentini o compositor Valentino
Fioravanti, de quem foi reposta (e até gravada e radiodifundida pela então Emissora
Nacional) a festejada obra-prima *_Le cantatrice villane*. Fioravanti, que chegou a
ser apontado como rival de Rossini, ficou algum tempo em Lisboa, no princípio do
século, e compôs expressamente para o S. Carlos.
As invasões francesas interromperam a carreira normal do teatro, que foi retomada
na segunda década de Oitocentos, parece que a um nível menos elevado. Não tardou
que começasse também em Portugal a era de Rossini, de quem, só em 1821, se
representaram seis operas, entre as quais *_La gazza ladra, La cenerentola* e
*_Otello*. Dois anos depois o *_Barbeiro de Sevilha* fazia o seu primeiro
aparecimento em terra portuguesa. Entre outros compositores representados na fase
rossiniana, foram-no Meyerbeer, Mercadante e Morlacchi. Nova interrupção foi
motivada pelas lutas miguelistas. A partir :, de 1835, dá-se um ressurgimento; a
categoria dos cantores volta a ser a mais alta. Quanto ao reportório, Bellini e
Donizetti tiveram os seus nomes assinalados por grandes êxitos, para depois
Giuseppe Verdi chamar a si as principais atenções. Praticamente todas as suas
produções vieram cedo ao S. Carlos e ajusta admiração de que foi alvo prejudicou
outros compositores então modernos. Operas francesas, ou em estilo francês, nem
sempre foram bem recebidas. *_Os Huguenotes*, de Meyerbeer, sofreram mesmo completo
fiasco, em 1584, e treze anos depois *_A africana*, cujo principal personagem
masculino é Vasco da Gama, ofendeu o patriotismo dos espectadores. Mas em 1866, com
a Volpini, o *_Fausto*, de Gounod, obteve estrondoso triunfo (204).
O *_D. João*, de Mozart, foi representado algumas vezes em condições indignas da
sua estirpe, até que, em 1871, a admirável interpretação do barítono Cotogni o
impôs sensacionalmente. Quando a récita agradava, aplaudia-se em S. Carlos como em
nenhum outro teatro da Europa. Esta era, pelo menos, a opinião da Alboni, que bem
habituada estava a que os públicos se rendessem à sua arte.
Sem nos determos aqui na referência a outras operas, que em parte serão mencionadas
mais adiante, acentuamos que no século passado, no principio do actual e, depois do
silêncio motivado pelo advento da República e prolongado durante uns trinta anos,
nestas últimas temporadas (se bem que menos nitidamente) o reportório do S. Carlos
tem sido dominado pela ópera italiana, no múltiplo aspecto da autoria, do estilo e
da interpretação. Claro que muitos músicos portugueses participaram e continuam a
participar nas récitas, mas principalmente como elementos de orquestra. Em 1761,
sob a direcção de David Perez (antes portanto da construção do S. Carlos), esta era
constituída por 48 músicos. Cem anos depois, no S. Carlos, o número sobe a 54, a
que se acrescentavam 24 músicos militares. Os coristas contavam-se por uns 45. Mas
nem todos esses executantes eram portugueses.
Preponderantemente italiano era também o reportório lírico que veio a popularizarse
nos espectáculos do Coliseu, primeiro na Rua Nova da Palma (inauguração em
1887), depois a Santo Antão, onde é hoje. E para o estilo italiano iam igualmente
as preferências dos convivas dos saraus por amadores, no Teatro das Laranjeiras -
teatro particular do conde de Farrobo, que, ainda como barão de Quintela,
mencionámos a propósito da construção do S. Carlos --, nas *_Academias
Filarmónicas* e *_Melpomenense* ou na *_Assembleia Filarmónica*. Já em 1787 existia
um outro palco lírico privado, na casa do marquês de Marialva.
A evolução da arte do canto
Durante este período a arte de cantar ópera evoluiu muito, desde as peculiaridades
dos *castrati* ao estilo de Bellini e Donizetti (que ainda conserva bastantes
traços da maneira anterior) à violência das operas de Verdi ou Meyerbeer. Vários
factores se conjugaram, como as influências mútuas de diferentes escolas, italianas
ou não (há que considerar também a :, Alemanha e, mais ainda, a França), o
alargamento das dimensões dos teatros de óperas, solicitando vozes potentes e
acentuações incisivas, e, noo menos, a evolução geral das ideias e do gosto nos
meios cultos europeus, que, depois do racionalismo setecentista e impregnados do
espírito da Revolução Francesa, deram o que genericamente se chama a *época
romântica*.
Se é certo que já no século XVIII se escreveu música de ópera fortemente teatral -
por exemplo a ária "Or sai, che l'onore", do *_D. João*, de Mozart --, devemos
atribuir a Verdi a revelação, no domínio da ópera italiana, de todo o partido
dramático que pode tirar-se da voz, quebrando a tradição da contínua lisura e
suavidade da emissão com o emprego de acentuações, *sforzati*, incisões no discurso
vocal que, aos mais conservadores, pareceram sacrilégios cometidos contra o
*bel'canto*. Verdi foi acusado de barbarismo no tratamento das vozes!
Não há dúvida de que em Portugal, como em todos os outros países conquistados pela
ópera, essa evolução foi seguida, foi vivida pelo público. Pena que representasse
só uma parte do que entretanto se processava na música europeia e que os nossos
burgos ficassem quase completamente alheios à produção instrumental austro-alemã,
cujo significado se exprime nos conceitos de classicismo e romantismo e em nomes de
um Haydn, um Mozart, um Beethoven, um Schubert, um Schumann (205).
Compositores portugueses
Era indispensável descrever com certo desenvolvimento a carreira da ópera italiana
em Portugal para se compreender em que circunstancias os compositores nacionais
deviam integrar-se para que a sua arte tivesse aceitação. Referimo-nos a Francisco
António de Almeida, o primeiro compositor português autor de operas. No teatrinho
da Ajuda apresentaram-se obras de outros portugueses, com libretos italianos, como
o "drama giocoso" *_L'amore industrioso*, de Sousa de Carvalho, *_Gioas, ré di
Giudá*, de António da Silva, *_Edalide e Cambise*, de João Cordeiro da Silva,
*_Erime*, de Luciano Xavier dos Santos, *_Esther*, de Leal Moreira, ou *_La vera
costanza*, de Jerónimo Francisco de Lima.
No Teatro de Salvaterra também esteve representada música de autores portugueses,
mas foi mormente em Queluz que ela se cantou para entretenimento da corte. Nos
teatros públicos, como sabemos, os compositores nacionais apresentaram partituras
de sua autoria. Por exemplo, no Teatro da Rua dos Condes representou-se, também em
italiano, *_il geloso*, de Gomes da Silva.
_história da
_música _portuguesa
por
_joão de _freitas _branco
_publicação em 16 volumes
_s. _c. da _misericórdia
do _porto
_c_p_a_c -- _edições
_braille
_r. do _instituto de
_s. _manuel
4050 __porto
1998
_oitavo _volume
_joão de _freitas _branco
_história da
_música _portuguesa
_organização,
_fixação de _texto,
_prefácio e _notas
de _joão _maria
de _freitas _branco
2.a _edição,
_revista e _aumentada
_publicações
_europa-_américa
_capa: estúdios _p. _e. _a.
_herdeiros de _joão
_c de _freitas _branco, 1995
_editor: _francisco _lyon de
_castro
:__publicações europa-américa, __lda.
_apartado 8
2726 __mem __martins __codex
__portugal
_edição n.o: 116512/6266
_execução técnica:
_gráfica _europam, _lda.,
_mira-_sintra -- _mem
_martins
_depósito legal n.o: 85462/
/95
__isbn 972-1-04012-6
__capítulo __vi
(cont.)
Sousa Carvalho
Dos compositores mencionados, o alentejano João de Sousa Carvalho salienta-se como
o mais notável, e não só como autor de óperas. Nasceu em Estremoz, em 1745, este
pensionista que D. José I mandou aperfeiçoar-se em Itália, como a alguns seus
colegas. Sousa Carvalho ensinou depois Contraponto no Seminário Patriarcal e, em
1778, foi nomeado para o cargo de mestre dos príncipes e infantes, que tinha sido
exercido por David Perez. Número considerável das suas óperas, serenatas e
pastorais chegou até nós. É talvez lícito apontar em Sousa Carvalho o nosso melhor
compositor de óperas, não obstante a muito maior projecção que teve o seu discípulo
Marcos Portugal (206).
O seu nome é ademais importante no domínio da música religiosa (missas,
responsórios, etc.) e de tecla, onde praticou também um estilo italiano, com alguns
traços que reflectem a transição do cravo para o pianoforte. (Em meados do século
havia em Lisboa um construtor de "*clavicembali a martelletti col piano e forte*",
de nome Manuel Antunes, que teve como continuador seu neto João Baptista Antunes. A
propósito, lembramos o nome importante de António Xavier Machado e Cerveira
[17561828], que veio a ser considerado o mais notável construtor de órgãos
português.)
No aspecto formal, as sonatas de Sousa Carvalho estão atrasadas para a época. São
conjuntos de tocatas bipartidas, cada uma constituindo um andamento, em geral com
duas ideias temáticas pouco contrastantes e escassamente desenvolvidas. As
tocatasandamentos são três em cada sonata, seguindo o esquema rápido-lento-rápido.
Na
opinião de Santiago Kastner, Sousa Carvalho é "o último dos autores para cravo
portugueses que conhecemos, que demonstra, apesar de seus múltiplos italianismos,
ainda alguns traços lusitanos". Casado com uma senhora rica, e tendo ele próprio
ganho muitos proventos, retirou-se para uma das suas propriedades no Alentejo, onde
morreu em 1798 (207, 208).
Outros compositores
Luciano Xavier dos Santos era mais velho do que Sousa Carvalho, pois que nasceu em
1734, em Lisboa. Mas morreu depois do seu ilustre colega, já entrado no século XIX.
Era organista e compositor, escreveu óperas, cantatas, oratórias e serenatas; a sua
reputação tornou-se maior dentro do âmbito religioso. Foi músico da câmaras de D.
José e do infante D. Pedro, futuro rei como marido de D. Maria I. Trata-se,
evidentemente, de mais um caso de enfeudacão ao italianismo.
Pedro António Avondano (m. 1782) pode ser contado entre os compositores nacionais,
apesar do seu sangue italiano. Além de óperas e trechos religiosos, escreveu música
instrumental. :,
Aludimos a António Leal Moreira(1758-1819) a propósito do Real Teatro de S. Carlos,
de que foi o primeiro maestro-compositor. Eram de sua autoria as primeiras obras
ali cantadas em português: a farsa *_A saloia enamorada ou o remédio é casar*,
sobre libreto do poeta brasileiro Domingos Caldas Barbosa, e a serenata *_Os
voluntários do Tejo*. Das suas óperas em italiano, *_Il desertore francese*
estreou-se em 1800 em Turim e foi repetida no ano seguinte no Scala de Milão.
Escreveu também música religiosa e puramente instrumental, para orquestra. Leal
Moreira casou com uma irmã de Marcos Portugal, de quem foi condiscípulo, porquanto
recebeu lições de Sousa Carvalho no Seminário Patriarcal.
João José Baldi (1770-1816), outro discípulo de Sousa Carvalho no Seminário, filho
de um músico da capela real, foi ele próprio, mestre de capela nas sés da Guarda e
de Faro e da capela real da Bemposta, sucedendo a Luciano Xavier dos Santos.
Finalmente, mereceu a nomeação de professor no mesmo Seminário onde aprendera.
Compôs, além de óperas e trechos para peças representadas em teatros públicos,
música religiosa também de estilo italiano. Era sua a música do drama *_Ulisses
libertado*, que se representou em 1808 como festa por terem retirado os franceses
da primeira invasão. E, em 1811, o termo da terceira celebrou-se na Sé com um *_Te
Deum* também de sua lavra.
Marcos Portugal
Estes factos traduzem sentimentos patrióticos que nem sempre se manifestaram tão
nitidamente. Marcos António da Fonseca Portugal (1762-1830) apresentou em 1808, no
Teatro de S. Carlos, nova música de sua autoria sobre um *_Demofoonte* que já
anteriormente musicara, não em honra da corte portuguesa, mas sim para os franceses
invasores, chefiados por Junot, em comemoração do aniversário natalício de
Napoleão. Mas também é verdade que, afastada a tropa estrangeira, colaborou com
Leal Moreira na composição do *_Te Deum* da libertação e festejou o dia de anos de
D. João VI. Talvez fosse o talento da adaptação às circunstancias que valeu a
Marcos Portugal a sua aura de compositor. De tal sorte assimilou o gosto do público
pela ópera italiana que na própria Itália se notabilizou como compositor, antes
daqueles acontecimentos menos abonatórios do seu verticalismo ideológico (209).
Tinha entrado aos 9 anos para o Seminário Patriarcal, onde recebeu os ensinamentos
de mestre Sousa Carvalho. Aprendeu não só composição, mas também canto e órgão. Já
tinha dado várias provas profissionais, preponderantemente no domínio da música
religiosa, quando, aos vinte e poucos anos, assumiu a direcção musical do Teatro do
Salitre, onde fez representar a que se supõe ser a sua primeira obra teatral: a
farsa *_A casa de pasto*. Seguiram-se-lhe numerosas peças musicadas cómicas e
sérias, com textos também em português. A essa actividade no Teatro do Salitre
sucedeu, desde 1792, a situação de pensionista régio em Itália. É notável a fama
que o seu nome alcança durante os oito anos de permanência na pátria da ópera, :,
fama que se traduz nas mais de vinte partituras suas que por lá viram a luz da
ribalta.
As óperas de Marcos Portugal tiveram muitas representações, transpuseram as
fronteiras da Itália e há mesmo notícia de algumas terem sido traduzidas em alemão
e russo. Diz-se também que Cimarosa e Paisiello estimaram altamente que nas
representações das suas óperas se intercalassem números do colega português. Era
então costume fazer dessas miscelânias, com o objectivo de agradar ao volúvel
público. Como se hoje se introduzissem no *_Wozzek*, no *_Rake's progress* ou nos
*_Diálogos das carmelitas* trechos apetecidos do público, de um Richard Strauss, um
Benjamim Britten ou um Menotti!
Raiava o século XIX quando Marcos Portugal voltou ao seu país, conhecido já de
todos os públicos melómanos da Europa. Foram-lhe logo oferecidos os cargos de
regente da capela real e do Teatro de S. Carlos. Aqui tinham sido já postas em
cena, com geral agrado, óperas de sua autoria. Compôs expressamente para o real
teatro várias óperas sobre libretos italianos, entre os quais *_La morte di
Semiramide*, em que se estreou a famosa Angelica Catalani, cujas relações com o
festejado compositor parece terem sido muito íntimas.
A Catalani participou nas representações de dez óperas de Marcos Portugal,
rivalizando, em três delas, com o não menos famoso *castrato* Crescentini. Claro
que ao jactante Marcos António era agradável que abundassem no S. Carlos as récitas
de óperas suas. No entanto, na sua passagem pelo teatro, preparou umas vinte óperas
de diferentes autores, e não só dos mais queridos do auditório. São de sublinhar a
apresentação do *_Orfeu*, de Gluck, em 1801, e de *_La clemenza di Tito*, de
Mozart, em 1806, com a colaboração da Catalani.
Depois dos aludidos e menos agradáveis episódios ligados de perto à primeira
invasão francesa, Marcos António decidiu reaproximar-se da corte portuguesa. Para
tanto teve que deslocar-se até o Brasil. Chegou ao Rio de Janeiro em 1811, e o seu
orgulho não teve motivo de queixa pelo tratamento que recebeu, porquanto foi
nomeado mestre da capela real e director da música da corte. Em 1816 vemo-lo
dirigir os responsórios nas exéquias de D. Maria I. E quando, em 1813, fora
inaugurado um teatro de ópera, imitado do S. Carlos de Lisboa -- o Real Teatro de
S. João, com lotação para 1600 pessoas, que ardeu em 1824 --, foi a ópera de Marcos
Portugal *_O juramento dos Numes* a que se representou na récita de estreia, e a
direcção esteve confiada ao músico português. Trabalhos musicológicos de Jean-Paul
Sarraute (publicados em 1958) confirmam que Marcos Portugal teve todas as honras no
Brasil, junto da corte exilada (210).
Os maus tempos vieram depois e foram os últimos da vida do artista outrora célebre.
Não acompanhou a família real, em 1821, no regresso à Europa. Os nove anos que lhe
restavam foram de sofrimento moral e físico. A sua conduta não fora de molde a
multiplicar simpatias e não faltaram certamente as invejas. Morreu em 7 de
Fevereiro de 1830 (211).
Valor da música de Marcos Portugal
Durante mais de cem anos, foi exagerado o prestígio do nome de Marcos Portugal
entre os estudiosos da música lusitana. Depreendeu-se da projecção internacional da
sua obra (inegavelmente a maior dos compositores portugueses de todos os tempos) um
valor artístico superior aos dos seus colegas e compatriotas. Porém, uma coisa não
implica a outra. Rossini não foi melhor compositor do que Beethoven, nem as
romanzas de Tosti são superiores às canções de Gustav Mahler.
Há que considerar, com o talento ou o génio do compositor, o estilo a que ele
pertenceu, as ideias que nortearam a sua actividade criadora. No caso de Marcos
Portugal -- e não só no domínio da ópera, como no da música religiosa, a que mais
se votou no princípio e no fim da carreira -- o talento artístico aplicou-se a algo
que declinava na história da música europeia: o estilo galante italiano. Fora já um
produto tardio a ópera *_Cosi fan tutte* (1790), de Mozart, mas possuía a
vitalidade duma invenção genial. Depois, o triunfo espantoso de Rossini deveu-se
mais à excepcional veia do compositor do que à culminância histórica do estilo
galante, que, na verdade, tinha passado já. Aliás, o próprio Rossini e também
Bellini e Donizetti compreenderam que era mister acompanhar a evolução histórica,
que então se inclinava toda para as bandas românticas.
Para se aperceber disto, Marcos Portugal, nascido em 1762, era demasiado velho. E o
seu brilhante talento não tinha todavia a fibra que deu um *_Barbeiro de Sevilha*,
e menos a iluminada graça de que brotaram as páginas de *_Cosi fan tutte*. No
entanto, a arte de Marcos Portugal conservou actualidade, como o provaram as
récitas dos anos 50, no Teatro de S. Carlos, da ópera *_O ouro não compra amor*,
que, na sua versão italiana original (*_L'oro non compra amore*), fora ali
representada em 1804, sob a direcção do autor. Assim como em Itália se fizeram
reviver páginas de um Fioravanti -- para citarmos apenas um exemplo muito a
propósito --, assim também se justifica a reposição entre nós das melhores obras de
Marcos Portugal ou do seu mestre Sousa Carvalho ou doutros compositores portugueses
arredados dos programas hodiernos.
Vida musical no Brasil
Só a título excepcional temos tentado avistar das páginas deste livro o que
musicalmente se passou em terra ultramarina. O Brasil tem direito especial a uma
dessas excepções, que mais não seja porque nele residiu a corte portuguesa durante
quase década e meia. Não admira que a actividade musical de feição europeia fosse
muito mais intensa nos últimos anos do Brasil colonial do que 0 podia ser noutras
possessões, africanas ou asiáticas (212).
Como é natural, também o gosto operista italiano dominou a opinião dos musicófilos
que rodearam D. João em terra americana. Demonstra-o claramente :, a referida
construção de um teatro seguindo o modelo do S. Carlos. Dentro da escola italiana
formaram-se, no Brasil, cantores que alcançaram nomeada, designadamente o mulato
João dos Reis, um esplêndido baixo que mereceu o entusiástico aplauso do príncipe
(213).
A vida musical fluminense não estava, no entanto, totalmente subjugada pelo
italianismo. António de Araújo Azevedo, conde da Barca, que fora embaixador de
Portugal em Paris, era então ministro do reino e exercia grande influência. A sua
orientação era de elevação da cultura; em 1816 chamou de Paris ao Rio a *_Missão
Artística*, brilhante conjunto de intelectuais desafectos ao regime da Restauração.
Não fazia parte dela músico algum, o que, mais ainda do que uma carta de
recomendação do príncipe de Talleyrand, deve ter sido favorável a Siegmund Neukomm
(1778-1858) quando se fixou no Brasil. Eis como ele próprio nos relata, nas suas
memórias, as palavras de Araújo Azevedo: "Temos a esperança de fundar um novo
império no Novo Mundo e tereis todo o interesse em testemunhar 0 desenvolvimento
deste país." (214)
Este Siegmund Neukomm era conterrâneo de Mozart, pois que nasceu em Salzburg. Fora
discípulo de Michael e Joseph Haydn, compusera o *_Te Deum* para a cerimónia da
Notre-_Dame, em 1814, por motivo da entrada de Luís XVIII em Paris, e o *_Requiem*
por intenção de Luís XVI, cantado na catedral de St.o Estêvão durante o Congresso
de Viena. Quando, em 1842, se inaugurou em Salzburg um monumento a Mozart, o
discurso oficial, em nome da comissão promotora, foi proferido pelo mesmo Siegmund
Neukomm, que, como se vê, era personalidade de muito destaque nos círculos musicais
da Europa do tempo.
A acção de Neukomm no Brasil deve ter sido importante e, de algum modo um
correctivo do demasiado entusiasmo pela ópera em estilo italiano. Claro que as suas
relações com Marcos Portugal nem sempre foram fáceis. Fácil foi, sim, entender-se
com o muito dotado brasileiro José Maurício Nunes Garcia (1767-1830), sob cuja
proficiente direcção se executou, em 1819, o *_Requiem* de Mozart. Escrevendo à
redacção da *_Allgemeine Musik_Zeitung*, de Viena, Neukomm afirma: "A execução da
obra-mestra mozartiana nada deixou a desejar; todos os talentos rivalizaram para
que o genial estrangeiro Mozart fosse dignamente recebido neste novo Mundo."
Há dois outros aspectos em que a diligente acção de Neukomm no Brasil assumiu
significado duradoiro. Um deles não é propriamente obra sua, mas reflecte a
influência que tinha. Referimo-nos ao primeiro livro sobre música publicado no
Brasil (em 1820), que o tradutor dedicou a Neukomm. É a *_Notícia histórica da vida
e das obras de Joseph Haydn, doutor em música, [...] lida na Sessão Pública de 6 de
Outubro de 1810 por Joaquim Le Breton, Secretário Perpétuo da Classe das Belas
Artes, [...] Traduzida em português por um amador, e dedicada ao Senhor Siegmund
Neukomm, Cavaleiro da Legião de Honra, Membro da Sociedade Imperial de São
Petersburgo, da Academia Real das Ciências de Paris*, etc. Esse tradutor "amador"
envolvido em anonimato, era provavelmente José da Silva Lisboa, visconde de Cairu.
O outro aspecto diz respeito à música popular brasileira. É que Neukomm harmonizou
algumas das gabadas modinhas do mulato Joaquim Manuel da :, Câmara. Existem na
Biblioteca do Conservatório de Paris manuscritos de Neukomm entre os quais Corrêa
de Azevedo descobriu quinze dessas harmonizações, com acompanhamento de piano, e
mais quatro recolhas da mesma origem, estas sem acompanhamento.
Antes de terminarmos esta rápida digressão pelo Brasil colonial, vale salientar que
por lá se construíram instrumentos musicais, inclusivamente órgãos. A oficina de
Agostinho Leite, em Olinda, forneceu alguns para igrejas locais e para outras da
Baía. E não foi essa a única firma construtora de órgãos em terra brasileira antes
da independência.
Luísa Todi
É tempo de nos determos no domínio da interpretação, que nos tem ocupado menos do
que o da criação musical. Isto, principalmente, porque urge falar de Luísa Todi, a
cantora mundialmente célebre. Não há dúvida de que foi sob o signo da ópera
italiana que músicos portugueses alcançaram maior fama internacional: Marcos
Portugal como compositor e Luísa Todi como intérprete (215).
Luísa Rosa de Aguiar era setubalense. Nas margens do Sado viu pela primeira vez a
luz do dia aos 9 de Janeiro de 1753. Estava-lhe reservada uma longa vida, plena de
acontecimentos e coroada de glória. Morreu em Lisboa no primeiro dia de Outubro de
1833. As suas primeiras experiências de palco circunscreveram-se ao teatro de
declamação. Pouco depois, em 1770, estreou-se como cantora, na ópera *_il
viaggiatore ridicolo*, de Scolari. Casara no ano anterior com o rabequista italiano
Saverio Todi, que lhe deu o apelido para a imortalidade (216).
Foi seu professor de canto David Perez, a cuja proeminente situação na vida musical
portuguesa desse tempo já fizemos referência. Em 1771 Luísa Todi canta o papel
principal em *_L'incognita perseguita*, de Piccinni, e no ano seguinte apresenta-se
pela primeira vez em Londres, sem êxito, em *_Le due contesse*, de Paisiello. A
grande revelação não se dera ainda, porque Luísa Rosa estava a apresentar-se num
género cómico, que não era o seu. Só em Junho de 1772 se abalançou ao género sério,
cantando no *_Demofoonte, de David Perez. Esse acontecimento deu-se no Porto, no
teatrinho do Corpo da Guarda.
Como vimos, o escândalo da Zamperini levou o marquês de Pombal a interditar a
presença de mulheres nos palcos. Pouco tempo depois, o poder do primeiro-ministro
caía verticalmente, mas essa determinação sua não era das que desagradavam a D.
Maria I, muito pelo contrário. Para seguir carreira de cantora, Luísa Todi tinha
que procurá-la no estrangeiro, e assim fez. Não vamos narrar, nem mesmo
resumidamente, o que foi essa órbita triunfal, desde a segunda apresentação em
Londres, em 1777, o êxito na *_Olimpiade*, de Paisiello, em Espanha, ou os
primeiros aplausos recebidos nos "Concerts Spirituels" parisienses. Há na sua longa
trajectória por toda a Europa a idolatria do público, há a rendição de pessoas
reais, como a :, imperatriz Catarina II da Rússia, há a rivalidade sensacional,
provocando a cisão e a luta entre os que a consideravam a maior cantora do mundo
(*todistes*) e os partidários da virtuosística soprano alemã Gertrude Mara
(*marasistes*); há mesmo um *anno Todi* em Veneza: o ano de 1791.
A Mara possuía uma voz aguda, extraordinariamente ágil, de incrível precisão nos
ornamentos e em especial nos trilos. As características de Luísa Todi eram muito
diferentes: voz grave, de timbre um tanto velado, agilidade menos exuberante e
expressividade intensíssima insuperável na opinião dos seus adeptos. A Todi
representava, portanto, mais do que a sua rival, as ideias esclarecidas sobre a
arte músico-dramática, ideias que eram contrárias ao virtuosismo como fim e
defendiam a tese da verdade dramática na interpretação musical, isto é: a
equivalência entre a expressão musical e o sentido das palavras, a situação e o
momento psíquico dos personagens. Ideias, portanto, que se conciliam com a doutrina
reformadora de Gluck. Quando Luísa Rosa iniciou a série de êxitos no estrangeiro,
Gluck, sexagenário, vivia ainda a agitação da rivalidade com Piccinni.
A arte imensamente emotiva e comunicativa da Todi exerceu importante influência em
cantores do seu tempo, e talvez não seja descabido sugerir que contribuísse
indirectamente para a evolução da composição operista do século XIX. No Verão de
1790 a grande cantora esteve em Bona, de passagem, e ficou notícia de que "a nossa
briosa cantora Demoiselle Willmann, a mais nova discípula de Righini, depois da
partida da Mad. Todi, se animou de extraordinário fervor artístico. Tinha pedido
algumas das suas principais árias, estudou-as ininterruptamente, até que, no dia 16
de Dezembro de 1790, no concerto, pôde cantá-las à maneira da Todi, e com a sua
expressão. Na manhã seguinte, 0 Sr. Neefe enviou-lhe o seguinte poema [...]" (217).
Tem mais interesse do que conhecermos os dotes da prendada "*_Demoiselle*" e o mau
poema de Christian Gottlob Neef o sabermos que o seu autor, organista da corte, foi
mestre de Beethoven e talvez a primeira pessoa a ter alguma consciência do que era
a natureza excepcional do jovem músico renano. Beethoven escreveu, numa carta para
Neef, estas palavras significativas: "Se alguma vez chegar a ser um grande homem, a
si pertencerá uma parte do meu crédito." Como Neef era admirador entusiástico da
Todi, é provável que entre ele e Beethoven se tivessem trocado palavras
apreciativas da festejada intérprete nos últimos tempos em que residiu em Bona o
futuro autor da *_Sinfonia pastoral*.
Depois da sua gloriosa carreira artística, Luísa Todi veio terminar os seus dias na
pátria. Passou transes difíceis aquando da invasão de Soult, fixou-se em Lisboa em
1811 e isolou-se da sociedade, talvez por motivo do seu padecimento da vista. Aos
70 anos, estava completamente cega. O tempo que ainda viveu -- toda uma década -
devem tê-lo acalentado as imperecíveis recordações de uma celebridade não excedida
por nenhum cantor do mundo. :,
Outros intérpretes portugueses
O caso da Todi foi excepcional, e sê-lo-ia em qualquer outro país, como o
demonstram os seus maiores triunfos, alcançados no estrangeiro. A ilustre
setubalense distinguiu-se imensamente dos outros intérpretes portugueses coetâneos.
Mas não devemos esquecer estes por completo, para que a Todi nos não pareça puro
milagre, qual planta magnífica num deserto.
Em 1760 um certo Joaquim de Oliveira foi estudar para Itália, como Sousa Carvalho.
Por lá se rodeou de um prestígio como cantor teatral que se confirmou em Lisboa.
Casou com Isabel de Aguiar, irmã da Todi. Um tenor da capela real portuguesa,
Policarpo da Silva, que entrou em récitas de ópera, mereceu louvores pela
intensidade e maleabilidade da sua voz. Beckford, numa das suas cartas, faz-lhe
grandes elogios (218). Foi também compositor. Em 1790 estreou-se em Madrid uma
cantora portuguesa, Lourença Nunes Correa (n. 1771), cujos clamorosos êxitos se
estenderam a Itália (Veneza, Nápoles, Milão). Parece ter agradado menos em Paris
(219).
De entre os instrumentistas, recorde-se o já mencionado guitarrista António de
Abreu, não só pelo seu valor, de que o renome na Península não deixa duvidar, mas
também para salientarmos que, no seu tempo -- ou seja, na segunda metade do século
XVIII -- um guitarrista português dado à música erudita era uma raridade, ou, pelo
menos, era mais raro do que o justificava o passado. Há também notícia da
celebridade do guitarrista Rodrigo António de Meneses, a quem, segundo Joaquim de
Vasconcelos, "os escritores contemporâneos tecem os maiores elogios e mencionam o
sucesso *extraordinário* dos seus concertos na Alemanha, e particularmente na
cidade de Leipzig em 1766". Bom tangedor devia também ser João da Mata de Freitas,
que compôs, entre outras obras, uma sonata para bandolim (220).
Que foi pena os instrumentos da família da viola dedilhada não terem sido mais
cultivados, ao nível erudito, no século XV1II, prova-o melhor o caso de Manuel
Paixão Ribeiro, autor do tratado *_Nova arte de viola* (Coimbra, 1789), que contém
curiosos minuetes e modinhas. Na opinião de Santiago Kastner, "existe mui estreito
parentesco entre os minuetes de Seixas, Baptista e os de Ribeiro, pelo que se pode
ver que qualquer dos três buscava o material para essas danças e modinhas nas
melodias que estavam na moda. Com seus minuetes, os três mencionados autores
fizeram uma concessão ao gosto do grande público. As peçazinhas de Ribeiro também
podem tocar-se no cravo e não resultariam inferiores às de alguns mais célebres
autores portugueses. Acrescentemos que Ribeiro, como era de esperar, não se
inspirou tanto nos italianos como em Rousseau e Rameau" (221).
Estas considerações estão-nos afastando da interpretação, do mesmo passo que nos
reconduzem aos domínios da composição musical. Antes de outra vez nos embrenharmos
nestes, lembremos a curiosíssima figura do abade António da Costa (1714-1780), um
portuense que era guitarrista, violinista e compositor e de quem se conservam
saborosas cartas escritas de Roma, Veneza e Viena. Reeditadas em 1946 com prefácio
de Fernando Lopes Graça, só podemos recomendá-las ao leitor. Em Viena, pertenceu ao
círculo intelectual e artístico de D. João Carlos de Bragança, duque de Lafões e :,
então ministro de Portugal, círculo que abrangia personalidades como Gluck,
Wagenseil, Hasse, Dittersdorf e Metastasio. Charles Burney deixou-nos do abade
António da Costa a memória de "uma espécie de Rousseau, mas ainda mais original"
(222).
Música de tecla e de corda
O compositor Baptista a quem Santiago Kastner se refere, na passagem acima
transcrita, é Francisco Xavier Baptista, tangedor de órgão e de cravo que viveu na
segunda metade do século XVIII. Mais do que os escassos dados biográficos que dele
possuímos, interessa aqui sublinhar que, autor de sonatas ditemáticas, representa
uma fase de transição entre o estilo de um Seixas ou de um Fr. Jacinto e o estilo
chamado *clássico*, de que foram obreiros um Philipp Emanuel Bach, um Wagenseil, um
Haydn.
O que acima foi dito da música para instrumentos de corda dedilhada relaciona-se
com este caso interessante de Francisco Xavier Baptista. É a questão de saber se
estaria mais certo fazer a música de autoria portuguesa inscrever-se na linha de
força da evolução musical europeia que estava a deslocar o centro de gravidade da
Itália para terra austríaca, ou se, pelo contrário, conviria que ela se alheasse
mais dos modelos estrangeiros, italianos ou não. Tem-se lamentado muitas vezes que
a trajectória da música portuguesa não tivesse passado pelo classicismo vienense se
não tarde e forçadamente. Mas veremos adiante que faltaram em Portugal
circunstancias históricas essenciais ao processo que deu um Haydn, um Mozart, um
Beethoven.
Reconhecer os malefícios da excessiva e não filtrada influência italiana não
implica lastimar que em sua vez se não produzisse algo parecido com as obras
daqueles mestres, na linha esboçada por Francisco Baptista. É também defensável uma
opinião mais agarrada às tradições peninsulares, como seja a de que foi pena os
guitarristas portugueses se não terem elevado a um mais alto nível estético, sem
deixarem de alimentar a sua invenção em modinhas, lunduns e outros cantares ou
bailares em voga. Também a arte dos mestres clássicos centro-europeus tem genes da
canção e dança populares, ou popularizadas.
Se tal se tivesse dado, se, neste sentido, tivessem surgido *right men in the right
place*, o parentesco entre a música de corda dedilhada e a de tecla haveria
provavelmente funcionado como produtor dum interessante, valioso e caracterizado
reportório português para cravo e piano.
Italianismo da música religiosa
O italianismo da música portuguesa setecentista estendeu-se aos géneros religiosos,
e já desde os tempos de compositores como Fr. Manuel dos :, Santos (m. 1737),
discípulo de Marques Lésbio, de João da Silva Morais (n. 1689), que regeu a capela
da Casa da Misericórdia e depois a da Sé de Lisboa, e de Pedro da Conceição, que
morreu aos 21 anos (em 1711) e foi chorado como artista de dotes excepcionais.
Referimo-nos ao italianismo, não de um Palestrina -- que era de raiz
franconeerlandesa --, mas sim ao já timbrado pela ópera, cantata e oratória, de
que, no
entanto, não são de apontar marcas exageradas na música daqueles autores
portugueses hoje esquecidos. Foi um pouco mais tarde que a italianização se
processou de maneira declarada, significando, no geral, um declínio estético em
relação às obras religiosas dos mestres polifonistas de outros tempos, como Filipe
de Magalhães, Duarte Lobo ou Manuel Cardoso.
O novo gosto musical deve ter-se reflectido inclusivamente na maneira de cantar o
gregoriano, para cujo ensino D. João V fundou uma escola em S. José de Ribamar,
confiando a sua direcção a um monge veneziano. Usou-se muito em Setecentos o canto
"gregoriano" a várias vozes. Publicaram-se métodos e ofícios para as práticas
corais, de que um *_Teatro eclesiástico* (1743), de Fr. Domingos do Rosário, teve
oito sucessivas edições.
Na segunda metade do século o género religioso mais apreciado parece ter sido a
oratória. Cantaram-se muitas de autores portugueses mencionados, como Luciano
Xavier dos Santos ou Leal Moreira, e de outros. E também de compositores
estrangeiros. Na Ajuda cantou-se a oratória *_Il ritorno di Tobia*, de Haydn, em
1784, ou seja, cerca de dez anos depois da data da composição e com o autor ainda
vivo. Aliás, a regra de então era escolherem-se para execução obras de autores
contemporâneos. Os compositores trabalhavam com objectivos imediatos; a "criação
para a posteridade" veio depois, em parte como consequência das profundas
alterações sociais que se operaram na transição de Setecentos para o século
romântico.
Aquela obra de Haydn -- a sua primeira tentativa no campo da oratória -- está
impregnada de italianismo e cheia de árias um tanto formalistas, ao lado de outras,
menos numerosas, em que se reflecte a estirpe do autor. O valor artístico da obra
reside principalmente nos números corais, quase todos magníficos. Seria
interessante conhecermos a opinião da aristocracia portuguesa quando ouviu *_il
ritorno di Tobia*, por certo sem consciência de que o nome do compositor era mais
para fixar do que o da maior parte dos outros.
Convém destacar também a audição de música de Jommelli (a sua *_Paixão*,
designadamente), o compositor que soube introduzir na sua arte elementos benéficos
de proveniência germânica e tornar o acompanhamento orquestral dos recitativos
muito mais plástico e intenso como expressão dramática. Na obra de Jommelli, há
também traços nítidos do drama francês. Na verdade, ele conheceu e aplicou, talvez
primeiro do que qualquer outro músico de qualidade, as teorias dramatúrgicas
despendidas pelos filósofos iluministas.
O ensino de música em Coimbra no período a que nos referimos pertence ao âmbito
religioso. O organista e compositor José Maurício (1752-1816) -- não confundir com
o mencionado músico brasileiro _p.e José Maurício Nunes Garcia --, que vivera em
Salamanca e fora mestre de capela da Sé da Guarda, assumiu em 1802 funções de lente
de Música da Universidade da :, sua cidade natal, Coimbra. A sua primeira medida
pedagógica foi a reforma dos estatutos da cadeira. As lições diárias que ministrava
incidiam sobre o canto eclesiástico, a execução no órgão e o contraponto. Em 1806,
publicou um *_Método de música*, destinado a orientar os estudos musicais em
Coimbra, a que adiante voltaremos.
José Maurício ganhou reputação de artista esclarecido e cultivado; ficaram ecos dos
serões em sua casa, em que se ouviam obras de Haydn e Mozart. Se é certo que tenha
tido consciência do valor desses mestres seus contemporâneos, não podemos todavia
alimentar ilusões quanto à medida em que podia impor as suas opiniões numa época
que, no tocante ao gosto musical no nosso país, era de decadência. Depois de José
Maurício o ensino da música em Coimbra declinou, apesar de não por completo
desligado de personalidades de algum modo significativas para a história da música
portuguesa, como Francisco Xavier Migone. No último quartel do século XIX já se
encontrava reduzido a um curso de cantochão ao nível liceal.
Tem-se afirmado que, em fins do século XVIII e princípios de Oitocentos, se
diferenciaram duas correntes na música religiosa de autores portugueses. Dentro do
italianismo -- que nem sempre deve entender-se em sentido pejorativo --, uns
seguiram modelos como o de Jommelli, outros utilizaram meios por de mais operistas
e ao gosto fútil dos menos cultivados amadores de música (223).
Um Fr. José Marques (m. 1837), um António José Soares (1783-1865), discípulo de
Leal Moreira, um Francisco Xavier Migone (1811-1861) ficaram com fama de menos
superficiais. Migone aprendeu com Fr. José Marques no Seminário Patriarcal e parece
ter sido por protectora influência do mestre que ascendeu à universidade. Quando o
Conservatório se fundou em Lisboa, foi nomeado para o seu corpo docente como
professor de piano. Mais tarde sucedeu a Bomtempo na direcção do estabelecimento e
assumiu a regência do real Teatro de S. Carlos, onde se representaram óperas de sua
autoria: *_Sampiero* e *_Mocanna*.
A marca operática italiana talvez tenha afastado mais de sentimentos devotos a
música religiosa de outros autores. O talentoso Joaquim Casimiro Júnior (18021862),
que recebeu lições de José Marques e que, além de trechos religiosos, compôs
música para muitas récitas dos teatros do Salitre, da Rua dos Condes, do Ginásio e
de D. Maria, tendo tido a honra de colaborar com Almeida Garrett, foi
comprometedoramente apreciado pelo público mais superficial. Apelidaram-no de
"Donizetti português", o que, relativamente à música sacra, não podemos hoje ter
por grande recomendação. As solicitações vinham inclusivamente de altos dignitários
da Igreja. Houve um que exigiu de Casimiro música religiosa semelhante ao rondó da
*_Lucia*! Aliás, j á D. João VI manifestara a Marcos Portugal o seu real desejo de
que tornasse a sua música sacra mais leve e parecida com a profana -- de ópera,
está claro.
Para nos darmos conta dos extremos a que podia ir a degradação da música religiosa,
basta recordar as matinas que _ângelo Carrero (1826-1867) compôs sobre temas de
*_Roberto o Diabo*, do *_Dominó negro*, etc. Esse _ângelo Carrero, filho de
espanhóis, pertenceu à Irmandade de Santa Cecília, foi violinista em S. Carlos e
professor substituto de rudimentos no Conservatório. Algumas obras suas foram
aclamadas nos *_Concertos populares*, na :, Academia Melpomonense e no S. Carlos.
Casos como este são provas concludentes de quanto, apesar de tudo, a sensibilidade
musical se apurou de há cem anos até hoje, menos por acção do próprio meio
português do que pela evolução da cultura europeia.
Por mais de uma vez temos feito referência à Irmandade de Santa Cecília.
Provavelmente fundada no século XVI (o seu primeiro estatuto foi aprovado
oficialmente em 1603), desempenhou papel importante na vida musical portuguesa.
Algumas das suas realizações relevam um são critério artístico: na festa anual em
honra da padroeira cantou-se reiteradamente o *_Requiem* de Jommelli e também o de
Mozart, pouco mais de dez anos depois de ter sido composto.
Testemunhos de um visitante singular:
William Beckford
No seu *_Diário* (224), William Beckford (1760-1844) registou impressões dos
festejos da Irmandade em 1787, colhidas em Lisboa. Referindo-se a 21 de Novembro,
véspera do dia da padroeira: "Já era escuro quando chegámos [à Igreja dos
Mártires]. Como tínhamos vindo muito depressa, afigurou-se-nos encontrarmo-nos, de
repente, não numa igreja, mas num esplêndido teatro, cintilante de luzes e de fios
de lantejoulas. Todos os altares resplandeciam com as suas velas acesas, todas as
tribunas estavam engalanadas com reposteiros do mais vistoso damasco da Índia.
Centenas de cantores e de músicos executavam as mais animadas e brilhantes
sinfonias." A palavra sinfonia deve entender-se aqui no sentido muito lato de
música de conjunto, instrumental e vocal, não vinculada a determinada forma.
Continuando a descrição, Beckford alude ao "muito bater de leques, muitos risos
abafados e muitos namoricos pela espaçosa nave, confortavelmente atapetada para a
acomodação de numerosos grupos de senhoras. A concavidade, em frente da entrada
principal, onde fica o altar-mor, de tal modo me parecia um palco, e era decorada
tão à moda das óperas, que eu estava sempre à espera de ver a entrada triunfal do
herói ou a descida de qualquer divindade pagã, cercada de Cupidos e de rolas. Toda
esta ostentação era em honra de Santa Cecília e custeada pela irmandade dos
músicos. Devo confessar que tudo isto me alegrou o espírito e me encheu de ideias
pagas."
Na manhã seguinte, Beckford voltou à Igreja dos Mártires para assistir à missa
cantada. O que depois escreveu no *_Diário* é mais esclarecedor do tipo de música
que ouviu. Isto apesar de colocado numa tribuna mesmo por cima do altar, ter ficado
tão longe dos executores que mal pôde distinguir as vozes dos cantores. De qualquer
modo, a música não lhe agradou muito, porque nada tinha "de solene nem de patético
e era feita de fragmentos de *ouvertures*, de começos e cadências de árias de
ópera". As *ouvertures* também deviam ser de óperas mas, segundo parece, a
orquestra não as tocava na íntegra, senão que lhes isolava andamentos, o que então
era corrente, não :, só em Portugal. Decerto não foi por isto que Beckford se
sentiu "muito enfadado com a execução", que bocejou "lastimosamente" e todo se
regozijou quando a missa cantada chegou ao fim.
Os contextos musicais na parte do *_Diário* relativa a Portugal não se limitam a
festas da Irmandade de St.a Cecília. Longe disso. E a singular personalidade de
Beckford incita a observá-los em diferentes aspectos. Bastaria tratar-se de um
homem com a cultura, a sensibilidade e o génio literário do autor de *_Vathek* para
que as suas reacções e opiniões merecessem ser conhecidas. Acresce que esse inglês
riquíssimo e de péssima fama em círculos puritanos do seu país, escandalizados por
uma conduta assaz livre e com claros indícios de homossexualidade, tinha uma rara
disposição para a música que o fez cultivá-la não apenas como ouvinte mas também
como cantor, tangedor e até compositor. Herdeiro de enorme fortuna de seu pai,
proveniente de plantações e negócios de escravos na Jamaica, Beckford deu-se ao
luxo de viajar com séquitos principescos que podiam compreender um músico privativo
e, por vezes, até uma orquestra. Aqueles que o ouviram fazer música elogiaram-lhe a
mestria na execução ao cravo e, sobretudo, o excepcional talento para o canto.
O facto de tal personagem ter conhecido directamente coisas da vida musical
portuguesa e escrito sobre elas ajuda-nos a formar ideias do que concretamente
eram.
Comecemos por passos do *_Diário* em que Beckford se apresenta como músico
praticante. Interessa-nos saber que não desprezou estudar obras de João de Sousa
Carvalho. Em 15 de Julho de 1787: "Apareceu [Gregório] Franchi, que parecia pateta
e envergonhado. Tenho os meus receios de que o rapaz experimente mais prazer do que
deve, quando me ouve cantar as composições de J. de Sousa."
Beckford conhecia música de Sousa Carvalho desde, pelo menos, 10 de Junho, dia em
que a cantora Maria Justina de Mendonça Scarlatti o entusiasmara: "Quando cantou
algumas árias compostas por [David] Perez e João de Sousa, fiquei deslumbrado. A
sua voz modulava com uma singela naturalidade as mais patéticas inflexões e com uma
trémula suavidade que vinha do coração". Com conhecimento de causa, Beckford vai
mais longe, reportando a arte da Scarlatti à dum *castrato* italiano, contralto da
capela real: "Embora tivesse adoptado o estilo magistral e científico de [Ansano]
Ferracuti, o primeiro cantor da Rainha", Beckford achou que a Scarlatti interpretou
com "uma tal simplicidade de expressão as mais difíceis e laboriosas frases" que
mais pareceu "uma jovem romântica no mais profundo recesso duma floresta".
Justina Scarlatti casou pouco depois, em 1790, com um alto funcionário do
Ministério do Reino. Deve ter sido mais uma decidida vocação musical que se perdeu.
A julgar pelas frases subsequentes de Beckford, poderia ter-se tornado uma
intérprete profissional de grande carreira: "Nunca mais esquecerei a impressão que
esta cantora me produziu. Caí em prostração e sentei-me num recanto escuro,
inconsciente diante de tudo que se passava à volta de mim -- o pasmo e os murmúrios
e o bater dos leques da grotesca assembleia." :,
Efeitos parecidos causou-os o mesmo Beckford sobre ouvintes portugueses. A
propósito dum serão na casa do Ramalhão, perto de Sintra, onde então residia:
"Depois do jantar, sentei-me ao piano e toquei quase sem interrupção. Mascarenhas
[prelado da Patriarcal], que é doido por música, ficou todo o tempo a ouvir-me,
sentado ao lado do meu instrumento. [...] Bastou-me tocar ao de leve no teclado
para arrancar-lhe modulações tão lamentosas e patéticas que toda a gente naquela
sala se sentia comovida" (30.8.87).
Beckford tinha trazido para Portugal pianos provavelmente dos mais aperfeiçoados
que então se fabricavam. Não dá porém notícia de terem provocado espanto entre os
portugueses que recebeu em casa. O pianoforte já não constituía novidade em
Portugal e, quanto a refinamentos técnicos, a ignorância dos marialvas e outros
fidalgos com quem Beckford se deu era excessiva em tal matéria. Não nos esqueçamos,
porém, de que o milionário inglês também teve muito trato com músicos
profissionais, durante as suas estadas em Portugal.
Um deles foi Jerónimo Francisco de Lima (1741-1822), a quem já foi feita referência
como compositor representado no Teatro da Ajuda. Em 1760 tinha ido para Nápoles
aperfeiçoar-se no contraponto, por ordem de D. José I. Ao regressar à pátria foi
nomeado professor do Seminário Patriarcal, onde havia estudado. Acumulou aquele
cargo com o de cantor da Patriarcal e, em 1798, por morte de Sousa Carvalho,
sucedeu-lhe como mestre da capela (225).
Vejamos um pouco o que foram os serviços que este qualificado músico português
prestou a Beckford: "Lima sentou-se ao piano e eu cantei até a hora do jantar.
Nunca na minha vida tinha cantado com mais expressão. Há uma cena numa das óperas
de Lima, em que o espectro de Polidoro pede a Eneias [...] que vingue a sua morte
matando Polimnestor. A música é de uma melodia e de um patetismo impressionantes.
Soltei um grito veemente: *_Vendica i torti miei*, que ficou a ecoar longamente
pelos ares. Tão possuído estava por estas comovedoras notas que mal pude comer.
Lima ficou encantado com a atenção que eu prestei às composições dele" (8.9.87).
Logo se desencantaria, se pudesse antever a desatenção dos seus compatriotas
vindouros.
Quando acabava de interpretar música a seu próprio contento, Beckford devia ficar
numa boa disposição que o tornava mais acessível. Jerónimo Lima parece ter sabido
aproveitar esses momentos: "Cantei mais de seis ou sete vezes aquela apaixonada
ária de Sacchini, *_Poveri affetti*, com tanta veemência que fiz brilhar lágrimas
nos olhos do grão-prior. Lima veio pedir-me que conseguisse um aumento dos seus
salários, falando, uma vez mais, ao marquês a seu favor. Detesto pedir favores. A
petição que ele me apresentou pesa-me na algibeira" (23.10.87).
No dia 6 Novembro o musicófilo inglês deve ter-se sentido em ainda melhor forma. E
o que escreveu no *_Diário* mostra o prazer que lhe davam as acrobacias vocais, ao
gosto da época; do mesmo passo que atesta a competência de Policarpo José António
da Silva, tenor, compositor e instrumentista: "Apesar da minha má disposição, nunca
cantei tão bem na minha vida as três claras oitavas caindo a prumo sobre a nota,
como um falcão sobre a presa. Policarpo uivava e gritava com infinita execução. É
um perfeito mestre da :, sua arte e compõe com saber e discernimento." O
certificado vale, já que o Beckford músico também se habilitara à criatividade:
"Estou a precisar de qualquer animalzinho novo para me animar o espírito, para
correr comigo pelo meio dos limoeiros e para me trazer ramos em flor, me arranjar
as minhas gravuras, me transpor as minhas canções e registar as ideias musicais que
me vêm à mente nos momentos felizes" (24.9.87). "Fiquei em casa a compor
*seguidillas*" (25.11.87).
A referência a Policarpo da Silva e a imagem do "animalzinho novo" têm mais que se
lhe diga. Beckford abonou mais vezes o conceito que aquele mestre de música fruía
no seio de famílias ricas e pintou-o num enquadramento elucidativo de hábitos da
alta-roda lisboeta. A cena decorre no palácio do marquês de Marialva em Belém, onde
é hoje a Presidência da República: "Nesta dependência encontrei D. Pedro de
Marialva [filho do marquês], um adolescente não de todo deselegante, mas
desfigurado por um absurdo rabicho. Recebeu-me com muita deferência, objecto que eu
era da particular predilecção de seu pai. Policarpo, o primeiro cantor da Capela da
Rainha, estava sentado ao cravo, no meio da sala. Através da porta aberta de uma
escura dependência vizinha pude vislumbrar D. Henriqueta, irmã de D. Pedro, que ora
avançava ora recuava, impaciente por se aproximar e poder examinar a exótica
criatura de quem, provavelmente, muito tinha ouvido já falar, mas sem coragem de
pôr os pés no salão, na ausência da mãe. Pareceu-me uma linda rapariga com os olhos
cheios de juvenil alegria e uma figurinha muito graciosa. Mas que hei-de eu dizer
mais? Apenas a vi como num sonho; talvez os seus encantos se desvanecessem à plena
luz do dia. A minha imaginação, exaltada por uma aparição tão romântica, deu-me
para tocar e cantar de tal forma que fui a surpresa de todo o rebanho de
preceptores, clérigos, músicos e mestres de esgrima que rodeava o herdeiro dos
Marialvas" (25.5.87).
Não se julgue que a "particular predilecção" do marquês provinha do desejo de
aproveitar a oportunidade de intercâmbio de ideias e conhecimentos com um
estrangeiro de tão refinada cultura. Apesar de se encontrarem artistas na
residência dos titulares portugueses, estes, na sua maior parte, não brilhavam pela
ilustração e os interesses de ordem estética. Neste caso, o interesse do marquês
era pela fabulosa abastança de Beckford, já então viúvo e, portanto, possível
marido de D. Henriqueta. Mas o noivado não se realizou. A filha do marquês veio a
casar em Janeiro do ano seguinte com o velho duque de Lafões (1719-1806), o mesmo
cujo nome ficou ligado à Academia das Ciências e a Gluck. Encontrá-lo-emos ainda
nos relatos de Beckford.
Entretanto, voltemos a Policarpo da Silva, para uma configuração dos seus méritos
profissionais, junta a outras referências informativas. Importa saber que Haydn -já
então célebre, embora não estivesse ainda no glorioso troço final da sua
carreira, tão ligado à Inglaterra -- tinha música sua a ornamentar o reportório dos
salões aristocráticos portugueses. E que o violinista e compositor espanhol Josè
Palomino y Quintana, o seu colega Rumi e outros músicos da rainha eram artistas de
primeira ordem. E que Beckford também chamou ao Ramalhão o tenor português Joaquim
de :, Oliveira (n. 1749), cunhado de Luísa Todi, considerado o melhor dos cantores
que então actuavam em Lisboa (226).
"Claro que tudo conspirava para fascinar e inflamar uma imaginação juvenil", diznos
Beckford, tirando rendimentos literários duma recepção no palácio que habitava.
E o autor de *_Vathek* logo salienta "a elegância e o esplendor das instalações,
espelhos que sobem do chão, como pórticos de quiméricas mansões, reflectindo
flutuantes e ligeiras figuras juvenis, o perfume das rosas e a deliciosa música de
Haydn, executada por Rumi, Palomino e mais dois executantes, primeiros músicos de
Lisboa e talvez da Europa. Gelati, Joaquim de Oliveira e Policarpo, que acabava de
chegar das Caldas, cantavam uma série de árias com uma delicadeza extraordinária.
Os meus convidados não começaram a retirar antes das onze, e tenho razões para
acreditar que todos eles partiram muito satisfeitos com a noite que passaram"
(17.6.87).
Quanto ao "animalzinho novo", a comparação foi inspirada simultaneamente pelo já
referido Gregório Franchi e pelo pendor homossexual daquele que veio a ser o seu
protector de vida inteira. Gregório Filipe Franchi (1770-1828) nascera em Lisboa,
duma família italiana, e fora admitido em 1783 no Seminário Patriarcal, onde
recebeu a sua formação musical E grande diploma passou Beckford à instituição, se a
cegueira afectiva lhe não influiu demasiado na pena, ao escrever numa carta para
Sir William Hamilton que Franchi era "talvez o primeiro cravista da Europa".
Depois da primeira visita de Beckford ao Seminário, Policarpo da Silva pediu-lhe
que lá voltasse no dia seguinte, "para ouvir um dos rapazes tocar
maravilhosamente". O inglês acedeu, provavelmente de muito boa vontade. Apesar de
protestante, começou por ajoelhar "junto do altar, com muita devoção". Quem
oficiava era o patriarca. "Durante o sermão, escapei-me na companhia de Policarpo e
subi o lanço de uma ampla escadaria no topo da qual estava o *menino* que tocava
cravo muito bem. Aproveitou a deixa de Policarpo e parecia deleitado com a
oportunidade que se lhe oferecia de exibir os seus talentos. Vários rapazes se
aproximaram de nós. Só um teve autorização de entrar na sala, bastante asseada,
onde estava o instrumento. Os outros espreitavam à vez, enfiando os grandes olhos
pela frincha da porta, cautelosamente fechada e aberta por um padre. O *menino* é
dotado de surpreendentes habilidades e prestou ampla justiça às admiráveis
composições de Haydn que executou." (227)
Estoutra referência a Haydn também abona a pedagogia do Seminário Patriarcal. O que
lá não devia existir era nenhum instrumento como os que o inglês trouxera consigo.
É o que se depreende duma sugestão de Policarpo também anotada no *_Diário*: "Muito
desejaria ouvir o *menino* outra vez e espero voltar amanhã, se o Patriarca quiser!
Policarpo, em nome do seu discípulo, insinuou que os meus pianos seriam de grande
vantagem para fazer sobressair os seus talentos. Suponho que ele deseja que eu o
mande chamar. Tudo a seu tempo" (28.5.87).
O tempo foi de cerca de um mês. 1 de Julho: "Cheguei a casa ao escurecer. Apareceu
Gregório Franchi, o rapaz que tocou cravo admiravelmente na Patriarcal e que tanto
honra Lima, Leal [Moreira], Policarpo e todos os seus mestres espirituais e
temporais. Os seus olhos pareciam maiores do que :, nunca, e tanto me fitavam que
eu não pude deixar de corar. Apanhou o meu estilo de cravista, instantaneamente, e
interpretou várias *ouvertures* e sonatas à primeira vista, exactamente à minha
maneira."
Embora Franchi tivesse ascendência italiana, Beckford atribui-lhe caracteres
temperamentais portugueses, aliás não menos próprios dos conterrâneos de Cimarosa.
Não fica, porém, claro que se tratasse principalmente de interpretação musical:
"Estes jovens portugueses são feitos de matérias mais inflamáveis de que os outros
mortais. Pude mantê-lo fascinado a meu lado, horas seguidas, escutando as notas
infantis da minha voz, e a dissolver-se como a neve ao Sol."
A disciplina do corpo discente do Seminário não era tão rígida que deixassem de
transparecer as provavelmente brejeiras reacções dos outros moços aos favores que o
colega estava recebendo do magnata estrangeiro: "Ao que parece, os seus
condiscípulos da Patriarcal quase lhe furaram os grandes olhos quando ouviram dizer
ao Lima e ao Policarpo o bem que eu pensava das habilidades musicais do pobre
pequeno. Este maldito mundo é feito de inveja, de malícia e de crueldade de todas
as formas e feitios."
Poucos dias volvidos, a 7 do mesmo Julho, Beckford acrescenta razões para
lamentarmos que o seu protegido não tenha vindo a desempenhar maior papel na vida
musical portuguesa. Gaba-lhe o engenho e o estilo de execução, dizendo-os o seu
encanto. As referências a Franchi não se desobrigam, porém, de algum sentido
crítico: "Gregório esteve comigo das dez até ao meio-dia. Cantei umas árias.
Acompanhou-me razoavelmente, mas muitas vezes acelera o ritmo, por causa da
impetuosidade do cantor a que está habituado" (10.7.87).
A observação lança alguma luz sobre a maneira interpretativa do Policarpo da Silva.
Com efeito, dá a entender que, quando se entusiasmava, este tendia a cantar mais
depressa. E, provavelmente, mais forte. Alias, não devia ser só ele, nem só
cantores. A solidariedade de andamento e dinâmica era e continuaria a ser
instintiva. Ainda hoje todos os bons mestres de interpretação musical têm de
ensinar os discípulos a dissociá-la. Entretanto, nem todos os intérpretes célebres
aprenderam a tornar as duas variáveis independentes uma da outra. Por exemplo; o
mestre Arthur Nikisch (1855-1922) acelerava ou retardava quando a intensidade
crescia ou diminuía, respectivamente, mesmo que não houvesse indicação de mudança
de andamento. O que Beckford dá a entender é, pois, que o temperamental Policarpo
da Silva acentuava ainda mais do que devia ser comum esse processo de frisar a
intenção expressiva. Se era só por sua influência que fazia o mesmo, ao teclado,
Franchi devia ser de uma musicalidade mais fina e subtil.
Musicalidade que percorria, em todo o caso, uma gema considerável de disposições,
entre os extremos da interioridade anuviada e da exteriorização de grande efeito.
Em mais um dia passado no Ramalhão, depois de ter tocado "adágios de Haydn na veia
mais funebremente melancólica", Franchi entregou-se a "variações ao piano, com todo
o seu vigor", produzindo música fragorosa (20.8.87). E de supor que as "variações"
fossem improvisadas.
Convém que voltemos à recepção de 17 de Junho, para darmos atenção a um caso de
amadorismo musical aristocrático, equivalente setecentista do :, de frequentadores
dos serões do tempo de Garcia de Resende: "O jovem marquês de Penalva toca piano
com infinito gosto, por mera intuição do engenho, pois não sabe uma nota de
música". O que se lê a seguir é outra generalização de Beckford, induzida das suas
vivências musicais em Portugal, evidentemente limitadas a uma pequena parte da
realidade social de então: "Os portugueses caem sempre, naturalmente, em modulações
de acentuação lamentosa que me vão direitas ao coração."
Vale a pena continuar a transcrição, para vermos confirmada a voga do minuete e
para entrarmos um pouco mais no ambiente em que aquela sociedade ia preenchendo os
seus ócios. Continuando a referir-se ao "jovem marquês de Penalva": "Os seus
minuetes são ao mesmo tempo ternos e majestosos. Não posso ouvi-los sem principiar
logo a deslizar pela sala e a abandonar-me a atitude teatrais. Acontece o mesmo com
D Pedro [o aludido herdeiro do marquês de Marialva], e dançámos juntos até o
marquês estar cansado de tocar para nós. O velho *conservador* [João Teles],
manhoso armou o seu doce sorriso de admiração e pôs-se a tecer-nos os mais
calorosos elogios. Não pude deixar de imaginar quanto teriam rido certos ingleses
meus conhecidos se me vissem a mim e a um rapazinho da primeira sociedade, educado
com maior severidade do que ninguém em Portugal, ambos requebrados num minuete e de
olhos fixados um no outro."
Há mais referências a minuetes, e até com indicação de peculiaridades nacionais: "O
padre Duarte chupava o dedo a um canto, o general Forbes tinha tido a prudência de
se ir embora, e o velho marquês, inspirado por um adágio patético, pôs-se a
deslizar repetidamente pela sala, numa espécie de passo de dança que pensei ser o
princípio dum *hornpipe*, mas que afinal se revelou um minuete no estilo português,
com todos os rapateados e floreios, que Miss Sill, convidada para o chá, foi
forçada a dançar contra sua vontade. Nunca eu assistira a uma dança tão nervosa.
Mal acabou, pôs-se o médico a dançar, com a sua extensa e deplorável pessoa, um
retorcido e anguloso minuete como tão cedo não tornarei a ver" (24.6.87).
Como seria de esperar, Beckford também alude a modinhas: "Passei a noite em casa de
Mr. Horne [negociante inglês], deliciado a ouvir D. Luísa de Almeida e o seu mestre
de música, um fradinho quadrado, de olhos verdes, cantando *modinhas* brasileiras.
Trata-se duma espécie original de música, diferente de quanta tenho ouvido, a mais
sedutora, a mais voluptuosa que imaginar se possa, a mais calculada para fazer
perder a cabeça aos santos e para inspirar delírios profanos." Não admira que o
sensível convidado tenha ficado "muito bem-disposto", com ganas de dançar com uma
quantidade de senhoras "até as duas da manhã" (7.6.87).
Na descrição dum espectáculo teatral: "Dois rapazinhos, um deles vestido de moça,
muito elegante, cantaram uma deliciosa *modinha*. Quem nunca ouviu cantar
*modinhas* não conhece as mais voluptuosas e enfeitiçantes melodias que jamais
existiram, desde o tempo dos sibaritas. São extensões lânguidas e entrecortadas,
como se o fôlego faltasse por excesso de enlevo e a alma ansiasse por despedir-se
do corpo, para se unir àquilo a que mais queremos. Infantil e desapercebidamente,
conquistou-nos, sorrateiras, a alma, sem nos darem tempo para defendê-la da sua
enervante influência. Supomos estar a ingerir leite, mas é veneno o que bebemos.
Por :, mim, confesso, sou escravo das *modinhas* e sempre que me lembro delas não
suporto a ideia de deixar Portugal. Se eu tivesse alguma esperança de resistir a
dois meses de viagem por mar, nada me impediria de me fixar no Brasil, berço das
*modinhas*, e lá viver em barracas como as do *_Chevalier* de Parny, descritas no
seu pequeno e tão agradável *_Voyage* [de Bourgogne, Paris 1777], baloiçando-me em
redes e estiraçando-me em suaves esteiras, na companhia de jovens coroados de
jasmins e de moças que a cada gesto derramassem essência de rosas" (15.10.87).
No relato do convívio de 24 de Junho há uma curiosa referência a sonatas: "À tarde
não dispensei o meu passeio e levei os Penalvas comigo. Voltámos à hora do chá e
estavam à minha espera um rabequista e um padre, humildes servidores e parasitas do
marquês. Atiraram-se aos murros ao meu pobre piano e tocaram sonatas, quer eu
quisesse quer não." _depois de confessar que detesta sonatas, Beckford queixa-se de
que os "guinchos cromáticos da rabeca", enquanto o tangedor revirava os olhos,
agitando o gorduroso queixo e fingindo entrar em êxtase, lhe revolviam as tripas.
"O aspecto purgativo do médico já bastaria para isso, mesmo sem a presença desses
parasitas que são o padre e o músico."
O termo *sonata* deve ter sido aqui usado para caracterizar, não a forma musical,
na sua generalidade, mas sim a sua particularização em termos de instrumento de
tecla com violino obrigado. Pelos vistos, apreciava-se em Portugal uma execução
violinística bastante espectacular, para não dizer histriónica, que hoje associamos
mais a uma época ulterior, marcada de romantismo. Os "murros no pobre piano"
tãopouco podem parecer muito próprios do século XVIII. E até que ponto iriam os
cromatismos desse rabequista anterior à revolução de Paganini, que era então um
menino de 5 anos incompletos?
Por outro lado, este passo do *_Diário* volta a mostrar que membros do clero
continuavam a desempenhar papéis salientes na vida musical profana, quer como
professores particulares quer como intérpretes prontos a animar as reuniões em
casas de gente importante. Funções que, como vimos, já tinham um longo passado e
que foram sendo desempenhadas em sucessivas adaptações ao gosto musical. Nestes
aspectos, os maiores concorrentes dos padres e frades eram os cantores, castrados
ou não, e os tangedores ao serviço da coroa ou da Igreja, muitos dos quais
estrangeiros que acumulavam o ensino da música com o da sua língua. Beckford
deixou-nos um testemunho, a propósito duma visita ao Jardim Botânico, em Belém,
"onde habitualmente se encontram uns certos animais de pouca idade, do sexo
feminino, chamados, em português, *açafatas*", que são algo entre a criada de
quarto e a dama de honor. As "ninfas" que o sensual inglês encontrou no jardim eram
"as flores do bando da rainha" (D. Maria I). Entre elas, uma "linda irlandesa de 15
anos, há pouco casada com um oficial português". O marido fora numa peregrinação à
Senhora do Cabo e ela aproveitara para se pavonear "na companhia das *açafatas* e
dum rancho de sopranos que lhe ensinam a gorjear, a falar italiano, etc.". O
aspecto dos *castrati* devia ser bastante ridículo, a julgar pelo complemento do
quadro primaveril: "[A irlandesa] tinha qualquer coisa de um ser quimérico,
deslizando ao longo das alamedas :, do jardim, deixando para trás os barrigudos
sopranos e as desalinhadas *açafatas*, todas extasiadas perante a sua ligeireza"
(1.6.87).
Quanto a música em cerimónias religiosas, o *_Diário* contém mais informações que
nos interessam, além das já citadas. Vejamos como, no decurso do século XVIII, a
escolha da música para ser ouvida dentro das igrejas se liberalizara, em comparação
com os rigores de outros tempos. A respeito de uma ida à igreja de Santo António da
Sé: "A cerimónia era assaz pomposa. Um principal, acompanhado de considerável
destacamento de padres da Patriarcal, oficiava ao som de animadas gigas e de
ruidosos minuetes, muito mais próprios para dançar em estabelecimentos termais do
que para ordenar os movimentos dum pontífice e dos seus acólitos." Sobre ser muita
essa música, vocal e instrumental, soou medíocre e correu "a pleno galope no mais
rápido *allegro*" (13.6.87).
No mesmo dia de Santo António, o falso beato ainda foi ver passar a procissão, com
a sua "imensidade de esfarrapados lapuzes que caminhavam a dois e dois, de velas na
mão, seguidos de um bando de rabequitas, com seus sebentos capotes de todos os
dias, e atrás deles muitos pretos com uma espécie de mesas aos ombros, espécie de
tabuleiros de sobremesa atulhados de vasos e 1magens de cera que representavam
santos, anjos e madonas". No dia seguinte, as freiras do convento do Sacramento
enviaram os seus músicos a Beckford, "com fogo-de-artifício e pandeiros" em sua
honra, além do convite "para uma grande missa na sua igreja, pelo Coração de
Jesus". O convite foi aceite e deu ensejo a mais audições. O ser tão desfavorável o
respectivo assento no *_Diário* reforça o crédito dos elogios feitos a outras
manifestações da vida musical olissiponense: "Todas as frestas [da pequena igreja]
estavam tapadas com grossos panos de veludo e colchas de damasco as janelas
atulhadas de vasos de flores e o altar-mor flamejante, com vinte filas de velas de
cera, umas por cima das outras, não penetrando ali o mais pequeno sopro de ar. A
madre-abadessa mandou-me oferecer uma grande cadeira de braços forrada de
tapeçaria, onde estive sentado três longas horas, bocejando as tripas e destilando
por todos os poros, enquanto dois ou três rapazes cobertos de suor [provavelmente
cantores] e meia vintena de rabecas e oboés assassinavam algumas composições
admiráveis de João de Sousa [Carvalho]. Não pude escapar-me antes da hora do
jantar, tão de perto me espiavam um velho devoto da alta hierarquia e o seu
confessor" (15.6.87).
A consideração por Jerónimo de Lima fê-lo deslocar-se num domingo, para ouvir
música sua, com a fortuna de encontrar na igreja de S. Pedro situada na actual
Calçada da Tapada da Ajuda, o contralto italiano Totti Mencarelli em óptima forma
vocal: "Fui à nova igreja de S. Pedro de Alcântara e ouvi a Missa do Lima. Nela
participavam todos os meus conhecidos musicais -- Rumi, Palomino, Ferracuti, Totti,
etc. O Totti cantou admiravelmente e estava bem de voz, coisa que raro lhe
acontece. Tive a sorte de ficar na galeria da música" (5.8.87).
As vivências ganhas em Mafra começaram ainda antes da entrada no colossal edifício:
"Estas torres contêm vários sinos dos maiores que há e um famoso carrilhão que
custou muitas centenas de milhares de *cruzados* e que principiou a tocar logo que
se anunciou a nossa chegada." A "uma confusa :, matinada de sinos" sucedeu uma
complicada melodia, "executada nos carrilhões por um grande *virtuose*".
Depois, foram as vésperas, "na vasta igreja do Convento". O abade entrou com os
frades, em procissão, e "subiu ao seu trono, tendo aos pés uma fileira de
sacristães e à sua direita uma de cónegos, com os seus paramentos bordados a oiro.
O ofício divino foi cantado com a mais imponente solenidade, ao som dos órgãos,
pois há, pelo menos, seis na igreja, todos de enormes proporções". Não foi o único
ensejo de os ouvir. Quando se tratou de assistir a matinas, "os órgãos ressoaram
outra vez e o Abade retomou o seu trono, com pompa igual" (27.8.87). Outra
referência ao mais eclesiástico dos instrumentos musicais ocorre na descrição duma
ida aos Jerónimos: "A maré [de fiéis em procissão] levou-me para dentro da grande
igreja, vasta, solene e fantástica, como as gravuras do Templo de Jerusalém das
velhas bíblias germânicas. O tremendo ecoar do órgão e do coro vinham dum escuro
recesso, lá do mais distante extremo do edifício, um dos maiores que existem em
Portugal" (19.11.87).
A opinião do ânglico forasteiro sobre o valor de David Perez e da maneira como era
interpretado também nos ajuda a fazer uma ideia da realidade musical lisboeta,
junto das classes dominantes: "Fui aos Mártires para ouvir as Matinas de Perez.
Música majestosa e comovedora, acima de tudo o que possa descrever-se. A esplêndida
decoração da igreja fora substituída por paramentos de luto, o coro forrado de
preto, os altares velados, o altar-mor coberto de panejamentos púrpura e oiro e, no
meio do coro, um catafalco rodeado de castiçais e altas velas. Sacerdotes
paramentados a preto e oiro rodeavam-no. Primeiro um silêncio tremendo, depois o
solene ofício de finados. Os músicos até empalidecem quando cantam *_Timor mortis*,
etc. Todos se esmeravam. Depois do *_Requiem*, a missa solene de Jommelli, em
comemoração dos defuntos. Termina com o *libera me, Domine*. Todo eu tremia, pouco
me faltou para que desatasse a chorar" (26.11.87).
Convém juntar a esta uma outra versão da mesma experiência, na qual Beckford dá
mais pormenores sobre a audição das "famosas Matinas de Perez e a Missa de defuntos
de Jommelli, executada por todos os principais músicos da Capela Real". Depois de
acentuar que nunca ouvira nem provavelmente tornaria a ouvir "música tão majestosa
e comovedora", o sensível e cultivado bretão foi ao ponto de colocar a prática
musical religiosa, tal como se mantinha em Portugal, acima das que ele conhecera lá
fora: "Porque a chama de ardor religioso está a apagar-se em quase toda a Europa e
ameaça extinguir-se por completo dentro de poucos anos. Como ainda arde em Lisboa,
consegue produzir a mais impressionante expressão musical, nos nossos dias. Todos
os componentes da orquestra parecem compenetrados do espírito das terríveis
palavras que Perez e Jommelli puseram em música com tão tremenda sublimidade."
Adiante, Beckford confirma o empalidecer dos cantores sobre a palavra *_Timor
mortis me conturbat*, precisando agora que Ferracuti e Totti "se saíram
admiravelmente, em especial nas patéticas súplicas", para depois tornar mais
impressivo o efeito nele causado pelo *_Libera me*. Essa página de Jommelli
fazialhe "estremecer todos os nervos do corpo" e, assim interpretada, impressionou-
o
"tão profundamente" que rompeu a chorar. "Os :, joelhos batiam-me um contra o
outro, um suor frio humedecia-me a testa."
Beckford já tinha registado no seu *_Diário* emoções despertadas por música da
mesma autoria. A respeito duma já referida visita ao Seminário Patriarcal: "A
música da missa, vulgar, exceptuados dois sublimes motetes de Jommelli. Valeu a
pena arrastar com a canícula para ouvi-los" (27.5.87). Mas, ao que parece, o nível
da interpretação variava com as circunstancias. No da seguinte, a música de
Jommelli ainda lhe faz ter "as mesmas impressionantes sensações". Mas a 29, outra
vez na Patriarcal, acha-se "mal recompensado pelo trabalho" que teve e compreende
porquê: "Estando ausente o Patriarca, o ofício da missa foi rezado de forma mais
desalinhada e os excelentes motetes de Jommelli foram barbaramente assassinados."
Importa destacar também os passos do *_Diário* que atestam a existência de bons
tangedores na Lisboa da época e até a possibilidade de os contratar para conjuntos
instrumentais privados, sem que, mesmo sendo o patrão fabulosamente rico, eles se
mostrassem muito firmes nas suas condições: "Tenho estado a discutir com ele
[Jerónimo de Lima] o preço duma orquestra paga por mim para o Ramalhão. Os marotos
tiveram o descaramento de começar por me pedir vinte moidores por mês, depois
passaram para quinze, e por fim para dez. Ou descem para oito, ou nada feito."
Isto, não obstante serem todos "excelentes", como o milionário confessa,
distinguindo um deles como "músico de primeira ordem" (5.8.87).
As reacções de um Beckford ao que em Lisboa lhe pediram, para pagamento de serviços
musicais, parecem acusar ou avareza da sua parte ou um nível de salários para
executantes profissionais superior, em Portugal, ao estabelecido em Inglaterra e
noutros países ou, ainda, uma oportunista cupidez dos músicos com quem o nababo
tratou, a começar por Jerónimo de Lima. Com este parece não ter havido contratação
prévia, na suposição, talvez, de que qualquer prenda à despedida o deixaria
satisfeito. Teria interesse ouvirmos as duas partes mas temos de nos contentar com
a versão patronal:
"[O Lima], com o mais submisso dos sorrisos, apresentou-me, de joelhos, uma leviana
conta, de 200 libras esterlinas, mais qualquer coisa, pelos serviços que prestou no
Ramalhão. Se este apreciável artista não tivesse passado o tempo a falar contra as
extorsões e rapinas de que os estrangeiros eram vítimas, etc., a minha surpresa
teria sido menor. Dominei-me admiravelmente e mandei passar um recibo daquela
importância. E, em vez de mandar pôr na rua o *_Signor Maestro*, como ele merecia,
fi-lo compreender que, a partir de hoje, as suas visitas estão dispensadas.
Encolhendo modestamente os ombros, o *_Signor* Lima desceu as escadas,
assegurandome que não pedira mais do que aquilo a que estritamente tinha direito e
que o meu
alto carácter lhe merecia demasiada consideração para me supor capaz de pretender
que um pobre artista perdesse comigo o seu precioso tempo" (21.11.87). :,
Voltemos àquilo que então podia receber o nome de *orquestra* mas que era
quantitativamente bem pouco, para os padrões do nosso tempo [mesmo os das
orquestras de câmaras]. Para isso, temos de nos reportar a três meses antes da
corrida de Jerónimo de Lima pela escadaria abaixo, com as suas duzentas e tal
libras:
"Tudo está a entrar em ordem no Ramalhão e espero encontrar-me dentro em pouco
razoavelmente instalado. O Lima veio de Lisboa para tratar do caso da orquestra, de
que o encarreguei. Resolvi contratar seis músicos a partir do dia 1 de Setembro.
Deve ser delicioso ouvir música nas galerias e nos espaçosos terraços do Ramalhão"
(17.8.87).
A realidade parece ter igualado a expectativa, e logo desde as primeiras actuações
dos instrumentistas. A 2 de Setembro: "A noite estava serena e deliciosa, as
portas, que comunicavam com as varandas, abertas de par em par, e as harmoniosas
sonoridades das trompas e dos oboés subiam do pomar de limoeiros e das laranjeiras.
Nem a mais ligeira brisa agitava a clara chama das velas e dos lustres, que
lançavam uma luz doce sobre os arbustos dos terraços. Mais tarde, D. Pedro e eu
dançámos vários minuetes."
No entanto, as delícias musicais também têm os seus reversos: "Sinto vergonha de
confessar que passei a manhã inteira sem ler uma frase, sem escrever uma linha ou
trocar uma palavra com alguém, embalado que estive pela plangente harmonia dos
instrumentos de sopro, suavizada pela distancia. Esses sons penetravam-me
furtivamente a alma e enchiam-me o coração de ternas e melancólicas nostalgias.
Debalde tentei várias vezes libertar-me daquelas notas e pôr-me eu a compor. Quando
penso na saúde do meu espírito, reconheço que devia mandar embora estes músicos. As
harmonias que eles produzem despertam milhares de ideias excitantes e voluptuosas
dentro de mim. Estendido sobre a minha esteira, olho em meu redor, procurando algum
objecto com o qual partilhe os meus sentimentos. Responde-me, calado e triste, o
vácuo" (4.9.87). Em momentos destes, a consciência de pertencer a uma classe
ociosa, contribuinte primeira duma gritante injustiça social: ao som de música
"lenta e melancólica", tocada pela orquestra, "eu, de braços cruzados, fechei os
olhos e pus-me a imaginar o Franchi, numa soturna divisão da Patriarcal,
completamente abandonada, contando as gotas de chuva que caíam do alto duma cornija
desconjuntada" (21.9.87). Situações psicológicas equivalentes ainda hoje são bem
possíveis. Só que à orquestra privativa se substitui a aparelhagem fonográfica, com
os mais recentes e caros requintes da electrónica.
Noutra ocasião, Jerónimo de Lima ensaiava o agrupamento musical, enquanto Beckford
errava, "desconsoladamente, pela casa", sem saber usar o tempo que faltava para a
ceia (23.9.87). Uma semana depois, em circunstâncias mais divertidas, o trabalho
dos seus criados músicos soou-lhe muito melhor. A companhia era de donzelas do paço
ao serviço da rainha. "Pedi o meu cavalo e pus-me a cavalgar com elas, pelo meio
dos limoeiros e das canas, roçando folhas, frutos e flores. O som dos instrumentos
de sopro, ali, no meio das árvores, tornava-se emocionante." Não fossem as meninas
reentrar em fraqueza nos aposentos da soberana, foi-lhes ainda servida :, "uma
refeição numa espécie de gruta, junto de um dos terraços enquanto a música se ia
ouvindo". Para dançar é que já não houve tempo, se bem que muito lhes apetecesse
(30.9.87).
Estas amostras bastam a que se veja um tipo de trabalho, inequivocamente marcado
pela diferença de classes, a que se sujeitaram músicos profissionais de primeira
qualidade. O curioso é que, com todo o seu elitismo aristocrático, Beckford se
referiu, com alguma acentuação de censura, à falta de contacto entre diferentes
estratos sociais, nas casas da fidalguia lusitana: "o palácio dele [conde de S.
Vicente] é talvez o único em Portugal onde a gente das mais baixas classes tem
ocasião de dançar, de se divertir e de namoriscar com a da mais alta nobreza"
(28.10.87). Por "mais baixas classes" devemos provavelmente entender a média e a
pequena-burguesia.
Há mais páginas do *_Diário* que nos informam acerca de várias manifestações
musicais. A respeito duma "grande festa" em honra do corpo diplomático, na quinta
do conde de Pombeiro, em Belas, à qual Beckford não assistiu mas que depois lhe foi
contada: "Pela descrição [...], a festa deve ter sido muito romântica e sumptuosa.
A casa, bem como os jardins, cobertos de flores, escondem-se no meio duma mata com
grandes árvores, laranjais e imensas murtas. Pelas moitas havia orquestras e os
brilhantes pavilhões, todos iluminados dentro da escuridão da espessa folhagem,
dir-se-iam edifícios feéricos. Quando têm ensejo, os portugueses perdem a cabeça
com divertimentos. Os convidados do conde de Pombeiro, cuja festa começou pouco
antes do crepúsculo, só se foram embora às seis da manhã l" (5.7.87). Aqui, o que
mais nos interessa é a palavra "orquestras", no plural. Em recepções como aquela,
de estadão, podia portanto haver mais do que uma orquestra, presumivelmente até
mais do que duas ou três. Mas não esqueçamos que se deva o nome de orquestra a
qualquer pequeno grupo de instrumentistas, como o que foi contratado para o
Ramalhão.
Infelizmente, a hostilidade implacável do embaixador de Inglaterra levou de vencida
todas as diligências para que Beckford fosse recebido por D. Maria I, com todas as
honras que ele desejou. Ficámos assim privados da sua opinião sobre a qualidade da
música que se fazia na corte régia. É pena que não tenha ouvido as respectivas
formações instrumentais em actuações de palácio ou de capela privada, nem assistido
a nenhum espectáculo real de teatro por música, no período desta sua primeira
estada em Portugal. Período em que -- vem a propósito dizê-lo -- ardeu o teatro do
Palácio da Ajuda, acontecimento a que também há referência no *_Diário*. O palácio
não era ainda o actual.
Quanto a teatros, Beckford teve que contentar-se com os da Rua dos Condes e do
Salitre. O de S. Carlos nem sequer começara a ser construído, mas não faltava
muito.
O teatro da Rua dos Condes, situado no arruamento que ainda conserva o mesmo nome,
esquina da Avenida da Liberdade, era a mais conceituada casa de espectáculos
públicos de Lisboa e nele se representavam óperas, não exclusivamente. Veio a ser
demolido em 1882. As primeiras impressões de Beckford não foram muito favoráveis.
Note-se o efeito que a proibição de mulheres no tablado produziu num cultivado
europeu no mesmo ano em que Mozart compôs o *_Don Giovanni*: "_o teatro é baixo e
estreito, o palco uma :, pequena galeria e os actores, pois não há actrizes, abaixo
de toda a crítica. Sua Majestade-que, claro está, é toda prudência e devoção-correu
com as mulheres do palco e mandou que os papéis delas sejam desempenhados por uns
franganotes [*calvish young fellows*]." É em relação aos bailados que o *travesti*
suscita maiores reparos, devido a "uma corpulenta pastora, em trajes duma brancura
virginal" e decerto contrastante com a barba, os "largos ombros (com um presumido
chapeuzinho à banda e uma grinalda de rosas)" e o ramalhete que trazia "em mão
capaz de derrubar o gigante Golias. Atrás dela, uma comitiva de leiteiras,
seguindo-lhe os grandes passos e fazendo passar as saias por cima da cabeça a cada
pulo. Bamboleamentos, trambolhões, abanões e olhares de revés como estes, nunca eu
os tinha visto e espero nunca tornar a ver".
O outro teatro público acima referido ficava no então extremo leste da Rua do
Salitre. Construído em 1782, durou até 1879, ano em que foi demolido para a
rasgadura da Avenida da Liberdade. Nele se divertiu Beckford mais do que esperava,
"embora a representação tivesse durado para cima de quatro horas e meia". O
programa foi variado, pois incluiu "uma bombástica tragédia em prosa, em três
actos, intitulada *_Sesostris*" -- peça de Voltaire, traduzida em português --,
dois bailados, uma pastoral e uma farsa.
Eis um cartaz que reflecte profundas diferenças de padrões culturais e gostos de
públicos mais ou menos cultivados, em comparação com os de hoje. Para a época, a
qualidade cénica da sequência de espectáculos deve ter sido aceitável, a julgar
pelo comentário de Beckford: "As decorações não eram más e os trajes faziam vista."
O pior foi o desempenho, afectado pela mesma interdição régia: "Um moço
saracoteante e de olhos ramelosos, com um traje de zibelina, guinchava de dor e
roncava, alternadamente, no papel de princesa viúva. Um adolescente desajeitado, a
cair duns sapatos de salto alto, fazia de Sua Majestade a Rainha do Egipto e
garganteava duas árias com toda a doçura enjoativa dum aflautado falsete. A minha
vontade foi puxar-lhe as orelhas por me ter sujado tanto os ouvidos." Mesmo assim,
o êxito parece não ter sofrido contestação: "Os espectadores eram numerosos e
calorosos nos seus aplausos". Do por certo mais esclarecido ponto de vista de
Beckford, o melhor estava num dos bailados, que lhe "agradou muito" (11.10.87).
Quando voltou à Rua dos Condes, Beckford reagiu menos desfavoravelmente, ganho
entretanto o termo de comparação na do Salitre. E torna a merecer atenção o seu
testemunho em matéria de cenários e guarda-roupa: "Depois do chá fomos [...] ao
teatro da Rua dos Condes, edifício mais tolerável que o do Salitre mas, para falar
com franqueza, mesmo assim bastante pobre. Fiquei surpreendido com o cenário,
realmente bom, e com os trajes, na verdade esplêndidos e muito bem concebidos. Os
actores também não eram tão abomináveis como os da outra casa de espectáculos. A
peça era uma tradução da *_Mérope*, de Voltaire. Seguiram-se-lhe bailados e uma
farsa. O actor que desempenhava o papel de *_Mérope* estava muito bem caracterizado
e não se saiu mal, com a sua saia de anquinhas. No palco, parecia mesmo uma viúva
velha, em casa" (15.10.87). Foi neste mesmo espectáculo que Beckford se enamorou da
modinha cantada por dois rapazinhos. :,
A alusão a outra ida ao teatro da Rua do Salitre indica que, quando D. Maria I
assistia a récitas públicas, a afluência de espectadores mudava de escalão:
"Excepcionalmente, o teatro estava à cunha, em virtude de lá se encontrarem Sua
Majestade e a pequena infanta D. Carlota [Joaquina, que tinha então 12 anos], tão
travessa e brincalhona como o Duarte [primo de Pedro Marialva]. O príncipe
herdeiro, D. José, que pouco tempo tinha de vida, e o seu irmão, futuro rei D. João
VI, não pareceram muito interessados em manifestações teatrais ou, pelo menos,
naquela a que estavam também assistindo, só abriram a boca para bocejar" (relativa
a 25. 11.87, mas escrito anos depois).
Pelos vistos, nenhuma das representações a que Beckford assistiu lhe deu ensejo de
opinar sobre a produção operática, propriamente dita, em Portugal. Há sobretudo que
lamentar a falta de comentários a montagens de óperas de compositores portugueses.
Tudo indica que o insaciável melómano lhes seria receptivo. Como vimos, gostou
manifestamente de ouvir e até interpretou de alma e coração trechos de Sousa
Carvalho e de Jerónimo de Lima. Quanto a autores de óperas estrangeiros então
especialmente admirados em Portugal, há três linhas que jogam certo com a especial
predilecção por Domenico Cimarosa (1749-1801), repetidamente apontada por
musicólogos: "O Franchi trouxe-me uma admirável ária de Cimarosa, mas não tive nem
voz nem força para a cantar" (18.7.87).
Registemos ainda que António Leal Moreira agradou a Beckford como compositor e, é
de supor, também como executante -- "estiraçei-me num sofá para ouvir umas
deleitosas músicas compostas por António Leal, um dos mestres de capela da igreja
Patriarcal, e por ele tocadas ao cravo" (6.6.87) -- para darmos atenção a certas
queixas de largo significado não só em relação à história da música, porque
atinente à de toda a cultura portuguesa, durante séculos. E porém sobre a arte dos
sons que o presente livro mais deve incidir e, antes de mais, cabe aqui advertir
que os seguintes desabafos de Beckford, embora confirmem as vantagens potenciais da
via marítima para o transporte de valores culturais vindos do estrangeiro,
contrariam o ponto de vista defendido por alguns investigadores contemporâneos.
Beckford conta como descarregou sobre um tio de Pina Manique o seu descontentamento
pela recusa do zeloso intendente, de "deixar passar, sem autorização da rainha,
alguns caixotes de livros, etc." que lhe eram destinados e já tinham chegado à
alfândega. "Lamentei-me e irritei-me alternadamente, dizendo que não se pode viver
em Portugal, que o marquês [de Marialva] entorpeceu e que, bem vistas as coisas,
uma pessoa até pode escolher um cepo para seu amigo do coração." Compreende-se que
o destinatário estivesse como "morto de poder esquadrinhar o recheio das caixas",
visto que supunha virem nelas "gravuras muito valiosas" e, sobretudo, as últimas
revistas inglesas, onde esperava ler a recensão de nada menos do que o seu
*_Vathek*.
Mais ainda nos interessa, porém, desaprovar o marquês, que decerto não entorpecera
e, muito pelo contrário, deve ter usado quanto pôde a sua influência para que os
caixotes saíssem da alfândega. Porque, se assim foi, o caso mostra claramente que a
fiscalização da entrada no país, tanto por mar como por terra, e ainda que
temporariamente, de bens culturais, :, possíveis veículos de ideias suspeitas -
fiscalização de que já houvera prenúncios na Idade Média, começara a esboçar-se no
tempo de D. Manuel I e se tornara implacável com o triunfo do contra-reformismo -
continuava a exercer-se sistematicamente, embora sem o fanatismo, sincero ou
embusteiro, dos dois séculos anteriores. Quanto à via marítima, já em meados de
Quinhentos se estabelecera que, antes da descarga das naus, um delegado do Santo
Ofício iria a bordo para inquirir da existência de "livros suspeitos e prejudiciais
à religião cristã".
Os livros, eis o que deve ter mantido o intendente-geral da polícia do reino na sua
obstinação: "O Manique já foi contactado por causa das minhas caixas: mas nada o
convence a deixar levantá-las enquanto não vier uma ordem formal de Sua Majestade,
e para conseguir este favor é preciso recorrer ao Melo [Martinho de Melo e Castro,
ministro e secretário de Estado dos negócios da marinha e domínios ultramarinos]"
(21.7.87). Num apêndice não datado: "O Manique já deixou sair o meu piano da
alfândega mas retém ainda quatro ou cinco caixas minhas, apesar dos pedidos do
marquês [de Marialva]. Ou consigo uma ordem especial da rainha ou nunca mais fico
pacificamente em poder dos meus livros e castiçais "
A referida tese historiográfica tem, no entanto, a sua razão de ser. Porque nunca
as músicas, manuscritas ou impressas, devem ter constituído matéria de cuidados
especiais por parte dos cães de fila arreganhados contra os importadores de
cultura. É certo que no estrangeiro se avolumaram, desde o século XVI, composições
marcadamente protestantes, com letras que qualquer censor português reprovaria ao
primeiro lance de olhos. Mas a gente lusa não era forte no alemão nem no francês e
não se antevia qualquer facilidade de tradução. Quanto à música propriamente dita,
por um lado, não havia solicitação estética dela, em função das suas peculiaridades
estilísticas; e, por outro lado, os poucos portugueses que sabiam ler semibreves e
mínimas ou pertenciam à Igreja ou estavam de algum modo na sua dependência. Além do
que o significado semântico de melodias, acordes e ritmos era tão indefinido que
não metia medo a ninguém.
Nada de extraordinário, portanto, no facto de terem chegado às mãos de Beckford
muitas peças musicais que ele havia encomendado: "O [Jerónimo de] Lima estava a
copiar um grande carregamento de músicas que acabo de receber de Inglaterra"
(21.9.87). Bastante diferentes destas deviam ser as "novas melodias do Brasil" que
Policarpo da Silva lhe levou, "muito belas e originais" a ponto de o entreterem
"até à uma hora da manhã" (8.11.87).
A partir do momento em que, já sem esperança de conseguir os seus intentos,
Beckford decidiu abandonar Portugal, o seu sentido crítico torna-se talvez mais
severo: "nada mais desejo agora do que ver-me, são e salvo, longe desta terra de
pobreza e de ignorância" (29.9.87). Porém, esse aceramento não pode dizer-se
injusto nem desmentidor duma ligação afectiva ao país, bem patente nestas frases:
"Agora, que vou deixá-la, já Lisboa me não parece nem tão estúpida nem tão
barulhenta, nem tão desagradável como até aqui. Não posso apartar os olhos da
alegre e luminosa superfície do rio. Tenho mil projectos de grandes passeios de
barco, e de audições de música, e de merendas à sombra dos caramanchais de
parreiras ao longo das suas margens" (15.10.87). :,
Assim, não tem de se lançar à conta de azedume ou despeito a descrição duma cena em
casa do marquês de Marialva, abrilhantada pela presença de D. Maria: "Ao subir para
o gabinete que dá para o pavilhão, vi a rainha e as infantas sentadas, como que
formando uma fila de figuras de cera, no meio duma iluminação deslumbrante,
enquanto um indivíduo sebento e de mau aspecto ia embalando a sua augusta estupidez
com uma sonata tocada ao saltério. Existirá instrumento mais detestável que o
saltério? Não conheço nenhum. A espineta, esse instrumento que as meninas dos
internatos costumam espancar com teimosa impertinência, não me fere mais
desagradavelmente o ouvido. Logo que o insuportável concerto chegou ao fim, começou
um bobo a guinchar uma ária duma ópera portuguesa, fazendo tudo o que podia por ter
graça. Apesar do destempero da exibição, Sua Majestade e toda a demais audiência
estavam divertidíssimas. Só a anã preta, a D. Rosa, encolhia os ombros e deitava a
língua de fora ao *virtuoso*. Creio que D. Pedro [Marialva] estava encantado com o
bobo. É natural: ele tem um gosto bem português de tudo quanto seja chocarrice
grosseira. Depois, dançou um minuete com a irmã, D. Henriqueta, diante da rainha,
mantendo sempre a mais glacial compostura" (29.10.87).
Uma referência à falta de hábitos literários da família do seu principal protector
em Lisboa é tão peremptória quanto extensiva a muitos mais agregados da fidalguia
portuguesa: "Em casa dos Marialvas não se vê um livro. Esta gente nunca lê"
(23.7.87). Beckford pôs também o dedo numa outra chega lusitana, sintoma, aliás, da
mesma enfermidade cultural: "O [conde de] Assumar veio hoje com o marquês [de
Marialva]. Pareceu-me menos peralta do que de costume. As gravuras, a música e as
decorações do meu salão encantaram-no e foi com a maior sinceridade que me exprimiu
a sua admiração. Os portugueses em geral, e os das classes mais elevadas em
particular, parecem ter vergonha de admirar seja o que for" (23.9.87).
A insuficiência da formação mental da nobreza era velha maleita para a qual se
procurava remédio desde centenas de anos antes, nomeadamente pela política cultural
de D. João III, cujo seguimento não fora, infelizmente, o do humanismo inspirador
das suas primeiras fases. Muito.mais perto da estada de Beckford registada no
*_Diário*, Pombal fizera incidir também sobre esse problema uma parte das suas
reformas. Porém, e ressalvadas as honrosas excepções de sempre, a impermeabilidade
dos fidalgos aos valores literários e artísticos, fruto da instrução e da educação
que recebiam, subsistiu pode dizer-se que até os nossos dias. A cultura musical
portuguesa sofreu muito da consequente falta de cultivo, apoio e estimulação
esclarecida. Se ela se não tivesse verificado, a nobreza poderia ter compensado em
alguma medida a debilidade socioeconómica da burguesia, ao mesmo tempo que haveria
de influenciar melhor a camada mais alta desta, atraindo-a para outros modelos de
conduta cultural cuja componente musical não fosse quase exclusivamente a ópera,
como de facto sucedeu. Além do que tal acção teria contribuído para uma
descentralização da vida musical cultivada contrariando o agravamento da
convergência em Lisboa dos acontecimentos importantes. É claro que esta observação
diz respeito aos membros das famílias brazonadas de maiores senhorios, muito mais
do que a reis e infantes, entre os quais muitos houve que fizeram florescer a
música nas :, suas capelas, câmaras e teatros, e que mandaram bolseiros
aperfeiçoar-se na arte de compor.
Retomemos ainda o fio beckfordiano, agora pela ponta deixada por aquela D. Rosa, "a
anã preta", que deitava a língua de fora ao bobo. Porque o *_Diário* tem outras
alusões a escravos africanos que não deixam de dizer respeito à música. Isto, não
só, nem principalmente, pela lembrança do pagem da straussiana marechala de *_o
cavaleiro da rosa*: "Um dos criados do marquês chegou, logo depois de nós, com um
pretinho, presente [!] do governador de Angola" (11.8.87). Durante uma das
representações no Teatro do Salitre, "no camarote de boca" os cabelos e a pele da
"afectada condessa de Pombeiro" faziam "curioso contraste com a negra tez de dois
pajenzinhos pretos encarrapitados junto dela, um de cada lado" (11.10.87).
A já referida embaixada de músicos enviada pelas freiras do convento do Sacramento
torna a vir a propósito: "Estávamos a tomar chá quando ouvimos um grande alarido na
rua e vimos um súbito fulgor de luzes que nos chamou à janela. Era uma imensa
multidão de crianças, de megeras, de esfarrapados, à frente dos quais meia dúzia de
pretos tocavam cornetim com uma energia insólita, todos voltados para onde nós
estávamos" (14.6.87). Numa corrida tauromáquica, outros africanos apareceram, estes
em funções mais desgraçadamente ridículas, ainda que também associadas a música:
"Quinze ou dezasseis infelizes touros foram massacrados. Os pretos saltaram para a
praça, mascarados de macacos, agitando os rabos no meio do pavoroso chinfrim de não
sei quantos horríveis fagotes e rabecas. Outro grupo de pretos, metidos em sacos,
tropeçavam e rebolavam diante dos toiros, fazendo-os perder a cabeça." Passou-se
isto por ocasião de feira e houve dança a que Beckford assistiu depois: "A barraca
era tudo quanto há de menos convidativo". Também aí compareceram os pretos, tocando
"uns abomináveis instrumentos e pedindo dinheiro", talvez o único a que as lides
lhes davam direito (10.8.87).
A terminar esta deambulação pelo *_Diário*, mais quatro apontamentos. O primeiro dá
a entender que não era fácil ter em ordem os instrumentos de corda e tecla: "Um
português de toscas mãos e horríveis olhos mecânicos está a afinar, ou antes a
desafinar os meus pianos. Já outro esteve, há dias, em volta deles. A quantos
outros instrumentos acontecerá a mesma coisa?" (1.6.87). O segundo talvez tenha
também a ver com afinação, o que, no entanto, não está explícito. Refere-se a uma
"banda de música marcial" (25.7.87). E os últimos ajudam a crer que foi o fandango
a dança popular que mais se inculcou no espírito do forasteiro como tipicamente
portuguesa: "Espera-se que a família real apareça às janelas da Casa do Senado,
deve haver fogo de vistas e uma grande fogueira em redor da qual os pescadores e as
ninfas do Tejo dançarão o fandango, dando estalos com os dedos" (29.6.87). Já
antes, comparando a sorte dos presumivelmente muitos rebentos não perfilhados de D.
João V com a dos "meninos de Palhavã", Beckford conjecturara que aqueles, "enquanto
os irmãos vão bocejando sob dosséis bolorentos, fazem talvez ressoar as cordas das
suas guitarras em desabusadas serenatas ao luar, meneando-se em alegres *fandangos*
ou dormindo profundos sonos, e divertindo-se em comesainas campestres na posse de
qualquer curato em alguma bonita aldeia" (30.5.87). Sinais de que :, o fandango
beneficiava de privilégio da veia folclórica da fidalguia portuguesa ou, pelo
menos, daquela que, como os Marialvas, a paixão hípica e taurina lançava nos braços
do Ribatejo.
Na *_Excursão a Alcobaça e à Batalha (Recollections of an excursion to the
monasteries of Alcobaça and Batalha)* Beckford voltou a mencionar o fandango, ao
dizer que divertidas danças esperava se seguissem a um opíparo banquete, em vez das
quais teve de suportar uma série interminável de decorosos e fastidiosos minuetes,
ao som de clarinetes e guitarras cujos executantes envergavam dominós de seda,
"como os fazedores de serenatas nas burletas italianas". Mas, aí, juntou-lhe o
bolero e a fofa, apresentando esta, ironicamente, como "dança tão decente como os
bailados exibidos para recreio de Muley Liezit, sua exemplaríssima majestade
marroquina". Segundo vários outros visitantes estrangeiros que a disseram a dança
nacional portuguesa, a fofa era extremamente lúbrica, senão obscena, sem no entanto
ser tida por inadmissível diante de virtuosas senhoras.
A *_Excursão* vale sobretudo como fascinante obra literária. O grau de confiança
que a sua informação merece, a factual como a marcadamente subjectiva, sofre do
muito tempo decorrido entre os acontecimentos e a redacção: quarenta anos. Tanto
mais que, a acreditar numa advertência do autor, apenas uns apontamentos muito
breves ("*very slight notes*") lhe avivaram a memória.
Nem por isso deixa de se justificar uma chamada de atenção para certas referências
que não devem ser fruto da pura fantasia do escritor. Este reportou-se a Junho de
1794 e, portanto, à sua segunda estada em Portugal (Novembro de 1793 a Outubro de
1795).
As sonoridades dos vários órgãos majestosos ("*several stately organs*") que, em
Alcobaça, acompanhados pelo coro, proclamaram a adoração da "real Presença" são
ditas "plenas" e "harmoniosas" (5.o dia). As "cadências" duma deliciosa brasileira
(sinha che [*sic*] vem da Bahia) não qualificadas de excitantes ("*thriling*") (6.o
dia). Castanholas vêm mencionadas como instrumentos tangíveis por meninas da
sociedade (*ibid.*). Na Batalha, "as vozes dos monges, claras mas graves,
elevaramse ressoando por vastos e reverberantes espaços". O canto era austero e
simples,
mitigado "nalgumas partes pelo soprano de coristas muito jovens". "As doces e
inocentes sonoridades encontraram o caminho do meu coração -- trazendo-me à
lembrança os belos ofícios das nossas catedrais e chorei!" (7.o dia). Assim
reagiria também um Benjamim Britten.
O espantoso quadro da representação da tragédia de *_Inês de Castro*, num teatro
temporariamente armado no mosteiro de Alcobaça, compreende uma orquestra de "meia
dúzia de ásperas rabecas, um rosnante baixo [provavelmente um violoncelo ou
instrumento afim], dois bandolins desmedidamente crescidos", ou antes alaúdes, "e
um par de flautas". Orquestra que executa uma "abertura antiquada", de tipo
singular e original, "cheia de passagens sacudidas, no estilo de *_Les Folies
d'_Espagne*", e terminando com uma fuga que é o perfeito "agarre-quem-puder"
(*ibid.*).
No convento franciscano de St.o António, em Alenquer, é o "venerável hino", como
que vindo "de um só coração", consonantemente cantado pela imensa multidão. "_o
perfeito uníssono de tantos milhares de vozes :, masculinas, misturadas com os
timbres mais claros das crianças e das suas mães, encheu a atmosfera estival com um
volume de som mais intelectualmente harmonioso do que qualquer outro que desde
sempre me tenha chegado aos ouvidos, proveniente dos esforços artificiais de
músicos e coristas" (11.o dia, 13 de Junho, festa de St.o António).
Em Cadafais, ao fim da tarde, perfumes de laranjal em flor e de jasmins. Canto de
aves. E também música proveniente de Franchi. Acompanham-no à guitarra dois
noviços, tocando com alma e coração. Depois, "uma dança de verdadeiro fervor
oriental, executada por um grupo escolhido de entre os que tinham entrado na
procissão, com trajes mouriscos" (*ibid.*).
Preparativos de festa em Queluz, para divertimento de Carlota Joaquina. A "Alcina
do local" encontra-se "rodeada de trinta ou quarenta mulheres jovens, qualquer
delas muito superior à sua augusta senhora, quanto a encanto do rosto e fascínio do
sorriso". Entre as habilidades de Beckford que a infanta capricha em ver
confirmadas, a arte de dançar um bolero. "A Antonita há-de ser a parceira, ela que
é, de longe, a melhor dançarina que me seguiu desde a Espanha."
Mal a ordem é dada, um coro doce e suave, de vozes femininas, "sem a mínima
dissonância, sem a mais leve quebra -- macio, afinado e perfeitamente melodioso -
encheu-me o ouvido de um tal encantamento que deslizei num delírio de romântico
deleite" (12.o dia, 14 de Junho).
Embora narrado de memória, tanto tempo depois, este episódio, condizente com a
imagem de Carlota Joaquina que chegou até nós, merece ser contado entre os que
melhor serviram a Beckford para filtrar diferentes práticas musicais no Portugal de
fins do século XVIII através da sua hipersensibilidade.
A versão de um embaixador
No mesmo período em que se deram os contactos de Beckford com Portugal, o marquês
Marc-_Marie de Bombelles foi embaixador de França em Lisboa. Escreveu um diário
abundante em relatos e impressões que, de um angulo diferente, também lançou luz
sobre manifestações musicais do absolutismo decadente. Os acontecimentos referidos
no *_Journal* ocorreram nos anos de 1786 a 1788 (228).
Não admira que o diplomata francês desprezasse o idioma do país onde estava
acreditado. Só muito recentemente, com o fortalecimento do anticolonialismo,
passaram os representantes das grandes potências a cuidar de se exprimir na língua
de Camões, ao dirigirem-se a portugueses. Tem no entanto interesse verificar até
que ponto podia ir o complexo de superioridade. A sua tolerância do lado nativo, ao
longo de séculos, não deixa de ter relação com aspectos de subalternidade
periférico-europeia da cultura musical portuguesa.
Dezembro de 1787. Dia dos anos de D. Maria I. _o embaixador da França desloca-se a
Belém. M.me de Bombelles, "sempre bem recebida, sempre :, merecedora de o ser, foi
mais particularmente acolhida depois de ter tido a atenção de cumprimentar a rainha
e as princesas em língua portuguesa. Ela explica-se lindamente ("*très joliment*")
neste idioma. [...] Sua Majestade fidelíssima acentuou-me da maneira mais amável a
sua sensibilidade à atenção de M.me de Bombelles". Muito bem. Só que "haveria
inconveniente em que um embaixador de França acostumasse a corte de Lisboa a ouvilo
falar português; em breve se pretenderia que fosse nesta língua que ele
dirigisse os seus discursos ao soberano." O marquês entendeu, no entanto, que sua
mulher "podia sem consequência, e uma vez ou duas, de passagem, dar a uma nação que
é nosso dever reconduzir, essa marca de estima e de respeito por ela."
Bombelles achou que, em Portugal, havia poucos fidalgos em condições de "servir
sofrivelmente". Distinguindo um deles: "Para um país onde as ciências são em geral
muito negligenciadas, pode dizer-se que tem instrução" (25.7.87). Tão-pouco é sem
sentido crítico que o diplomata promove Lisboa a "terra mais sensível do que
qualquer outra às coisas do aparato" (25.8.87).
Joga com esta opinião o quadro da Igreja dos Paulistas, em cerimónia de Sexta_Feira
Santa. Como todas as outras, a igreja está numa grande obscuridade no
princípio do oficio, mas desde que o *_Gloria in excelsis* é entoado, "espessos 165
reposteiros são tirados, outras cortinas caem, outros mecanismos tombam e todo o
templo se torna resplandecente de luzes". Para Bombelles, uma tal expressão,
deslocada numa igreja, "acha-se justa e necessária para produzir os efeitos dum
espectáculo que faz sobre os Portugueses o mesmo efeito da ópera." E vai ao ponto
de acrescentar: "Fala-se dum carnaval da Ascensão em Veneza; pode dizer-se que em
Lisboa o verdadeiro carnaval da corte e do povo é o tempo da quaresma e
principalmente o da semana santa" (22.3.88).
Os modos das senhoras lusas deviam ser-lhe quase insuportáveis. Referindo-se à
marquesa de Pombal: "chacoteia como um pato e depois de ter viajado durante três
anos em Inglaterra, na Alemanha, em França, tem mais desagradavelmente as maneiras
portuguesas do que as cunhadas que nunca saíram do seu país" (25.1.88).
Relações e serviços culturais tão notórios como os do duque de Lafões não lhe
boleiam a antipatia. Não hesita em afirmar ter sido pelas "coisas honestas" a seu
respeito, ouvidas de manhã, da boca da rainha, que o fundador da Academia Real das
Ciências, na tarde do mesmo dia, se apressou a visitá-lo, honra que não lhe
prestava havia muito tempo. E a rematar: "é um dos mais baixos cortesãos deste país
onde eles excedem o servilismo dos lacaios do favor das outras cortes" (29.3.88).
Noutro passo, di-lo um D. Quixote que "depois de ter estado meio maluco não tardará
a ficar imbecil de todo". Mas não se contenta com isto: "o mesmo duque de Lafões
que, no palácio, corre a visitar todas as criadas de quarto e trata por Excelência
a favorita subalterna M.me de Arriaga, volta a casa eriçado de pretensões e com
gumes de príncipe de sangue". Durante um jantar "de uma tristeza mortal", tentou
animar os comensais com "discursos os mais ridículos, os mais próprios para
comprometê-lo desagradavelmente com a corte, se se ligasse qualquer importância
àquilo que ele diz" (3.4.88).
_história da
_música _portuguesa
por
_joão de _freitas _branco
_publicação em 16 volumes
_s. _c. da _misericórdia
do _porto
_c_p_a_c -- _edições
_braille
_r. do _instituto de
_s. _manuel
4050 __porto
1998
_nono _volume
_joão de _freitas _branco
_história da
_música _portuguesa
_organização,
_fixação de _texto,
_prefácio e _notas
de _joão _maria
de _freitas _branco
2.a _edição,
_revista e _aumentada
_publicações
_europa-_américa
_capa: estúdios _p. _e. _a.
_herdeiros de _joão
_c de _freitas _branco, 1995
_editor: _francisco _lyon de
_castro
:__publicações europa-américa, __lda.
_apartado 8
2726 __mem __martins __codex
__portugal
_edição n.o: 116512/6266
_execução técnica:
_gráfica _europam, _lda.,
_mira-_sintra -- _mem
_martins
_depósito legal n.o: 85462/
/95
__isbn 972-1-04012-6
__capítulo __vi
(cont.)
_testemunhos de um visitante singular: _william _beckford
Retomemos ainda o fio beckfordiano, agora pela ponta deixada por aquela D. Rosa, "a
anã preta", que deitava a língua de fora ao bobo. Porque o *_Diário* tem outras
alusões a escravos africanos que não deixam de dizer respeito à música. Isto, não
só, nem principalmente, pela lembrança do pagem da straussiana marechala de *_o
cavaleiro da rosa*: "Um dos criados do marquês chegou, logo depois de nós, com um
pretinho, presente [!] do governador de Angola" (11.8.87). Durante uma das
representações no Teatro do Salitre, "no camarote de boca" os cabelos e a pele da
"afectada condessa de Pombeiro" faziam "curioso contraste com a negra tez de dois
pajenzinhos pretos encarrapitados junto dela, um de cada lado" (11.10.87).
A já referida embaixada de músicos enviada pelas freiras do convento do Sacramento
torna a vir a propósito: "Estávamos a tomar chá quando ouvimos um grande alarido na
rua e vimos um súbito fulgor de luzes que nos chamou à janela. Era uma imensa
multidão de crianças, de megeras, de esfarrapados, à frente dos quais meia dúzia de
pretos tocavam cornetim com uma energia insólita, todos voltados para onde nós
estávamos" (14.6.87). Numa corrida tauromáquica, outros africanos apareceram, estes
em funções mais desgraçadamente ridículas, ainda que também associadas a música:
"Quinze ou dezasseis infelizes touros foram massacrados. Os pretos saltaram para a
praça, mascarados de macacos, agitando os rabos no meio do pavoroso chinfrim de não
sei quantos horríveis fagotes e rabecas. Outro grupo de pretos, metidos em sacos,
tropeçavam e rebolavam diante dos toiros, fazendo-os perder a cabeça." Passou-se
isto por ocasião de feira e houve dança a que Beckford assistiu depois: "A barraca
era tudo quanto há de menos convidativo". Também aí compareceram os pretos, tocando
"uns abomináveis instrumentos e pedindo dinheiro", talvez o único a que as lides
lhes davam direito (10.8.87).
A terminar esta deambulação pelo *_Diário*, mais quatro apontamentos. O primeiro dá
a entender que não era fácil ter em ordem os instrumentos de corda e tecla: "Um
português de toscas mãos e horríveis olhos mecânicos está a afinar, ou antes a
desafinar os meus pianos. Já outro esteve, há dias, em volta deles. A quantos
outros instrumentos acontecerá a mesma coisa?" (1.6.87). O segundo talvez tenha
também a ver com afinação, o que, no entanto, não está explícito. Refere-se a uma
"banda de música marcial" (25.7.87). E os últimos ajudam a crer que foi o fandango
a dança popular que mais se inculcou no espírito do forasteiro como tipicamente
portuguesa: "Espera-se que a família real apareça às janelas da Casa do Senado,
deve haver fogo de vistas e uma grande fogueira em redor da qual os pescadores e as
ninfas do Tejo dançarão o fandango, dando estalos com os dedos" (29.6.87). Já
antes, comparando a sorte dos presumivelmente muitos rebentos não perfilhados de D.
João V com a dos "meninos de Palhavã", Beckford conjecturara que aqueles, "enquanto
os irmãos vão bocejando sob dosséis bolorentos, fazem talvez ressoar as cordas das
suas guitarras em desabusadas serenatas ao luar, meneando-se em alegres *fandangos*
ou dormindo profundos sonos, e divertindo-se em comesainas campestres na posse de
qualquer curato em alguma bonita aldeia" (30.5.87). Sinais de que :, o fandango
beneficiava de privilégio da veia folclórica da fidalguia portuguesa ou, pelo
menos, daquela que, como os Marialvas, a paixão hípica e taurina lançava nos braços
do Ribatejo.
Na *_Excursão a Alcobaça e à Batalha (Recollections of an excursion to the
monasteries of Alcobaça and Batalha)* Beckford voltou a mencionar o fandango, ao
dizer que divertidas danças esperava se seguissem a um opíparo banquete, em vez das
quais teve de suportar uma série interminável de decorosos e fastidiosos minuetes,
ao som de clarinetes e guitarras cujos executantes envergavam dominós de seda,
"como os fazedores de serenatas nas burletas italianas". Mas, aí, juntou-lhe o
bolero e a fofa, apresentando esta, ironicamente, como "dança tão decente como os
bailados exibidos para recreio de Muley Liezit, sua exemplaríssima majestade
marroquina". Segundo vários outros visitantes estrangeiros que a disseram a dança
nacional portuguesa, a fofa era extremamente lúbrica, senão obscena, sem no entanto
ser tida por inadmissível diante de virtuosas senhoras.
A *_Excursão* vale sobretudo como fascinante obra literária. O grau de confiança
que a sua informação merece, a factual como a marcadamente subjectiva, sofre do
muito tempo decorrido entre os acontecimentos e a redacção: quarenta anos. Tanto
mais que, a acreditar numa advertência do autor, apenas uns apontamentos muito
breves ("*very slight notes*") lhe avivaram a memória.
Nem por isso deixa de se justificar uma chamada de atenção para certas referências
que não devem ser fruto da pura fantasia do escritor. Este reportou-se a Junho de
1794 e, portanto, à sua segunda estada em Portugal (Novembro de 1793 a Outubro de
1795).
As sonoridades dos vários órgãos majestosos ("*several stately organs*") que, em
Alcobaça, acompanhados pelo coro, proclamaram a adoração da "real Presença" são
ditas "plenas" e "harmoniosas" (5.o dia). As "cadências" duma deliciosa brasileira
(sinha che [*sic*] vem da Bahia) não qualificadas de excitantes ("*thriling*") (6.o
dia). Castanholas vêm mencionadas como instrumentos tangíveis por meninas da
sociedade (*ibid.*). Na Batalha, "as vozes dos monges, claras mas graves,
elevaramse ressoando por vastos e reverberantes espaços". O canto era austero e
simples,
mitigado "nalgumas partes pelo soprano de coristas muito jovens". "As doces e
inocentes sonoridades encontraram o caminho do meu coração -- trazendo-me à
lembrança os belos ofícios das nossas catedrais e chorei!" (7.o dia). Assim
reagiria também um Benjamim Britten.
O espantoso quadro da representação da tragédia de *_Inês de Castro*, num teatro
temporariamente armado no mosteiro de Alcobaça, compreende uma orquestra de "meia
dúzia de ásperas rabecas, um rosnante baixo [provavelmente um violoncelo ou
instrumento afim], dois bandolins desmedidamente crescidos", ou antes alaúdes, "e
um par de flautas". Orquestra que executa uma "abertura antiquada", de tipo
singular e original, "cheia de passagens sacudidas, no estilo de *_Les Folies
d'_Espagne*", e terminando com uma fuga que é o perfeito "agarre-quem-puder"
(*ibid.*).
No convento franciscano de St.o António, em Alenquer, é o "venerável hino", como
que vindo "de um só coração", consonantemente cantado pela imensa multidão. "_o
perfeito uníssono de tantos milhares de vozes :, masculinas, misturadas com os
timbres mais claros das crianças e das suas mães, encheu a atmosfera estival com um
volume de som mais intelectualmente harmonioso do que qualquer outro que desde
sempre me tenha chegado aos ouvidos, proveniente dos esforços artificiais de
músicos e coristas" (11.o dia, 13 de Junho, festa de St.o António).
Em Cadafais, ao fim da tarde, perfumes de laranjal em flor e de jasmins. Canto de
aves. E também música proveniente de Franchi. Acompanham-no à guitarra dois
noviços, tocando com alma e coração. Depois, "uma dança de verdadeiro fervor
oriental, executada por um grupo escolhido de entre os que tinham entrado na
procissão, com trajes mouriscos" (*ibid.*).
Preparativos de festa em Queluz, para divertimento de Carlota Joaquina. A "Alcina
do local" encontra-se "rodeada de trinta ou quarenta mulheres jovens, qualquer
delas muito superior à sua augusta senhora, quanto a encanto do rosto e fascínio do
sorriso". Entre as habilidades de Beckford que a infanta capricha em ver
confirmadas, a arte de dançar um bolero. "A Antonita há-de ser a parceira, ela que
é, de longe, a melhor dançarina que me seguiu desde a Espanha."
Mal a ordem é dada, um coro doce e suave, de vozes femininas, "sem a mínima
dissonância, sem a mais leve quebra -- macio, afinado e perfeitamente melodioso -
encheu-me o ouvido de um tal encantamento que deslizei num delírio de romântico
deleite" (12.o dia, 14 de Junho).
Embora narrado de memória, tanto tempo depois, este episódio, condizente com a
imagem de Carlota Joaquina que chegou até nós, merece ser contado entre os que
melhor serviram a Beckford para filtrar diferentes práticas musicais no Portugal de
fins do século XVIII através da sua hipersensibilidade.
A versão de um embaixador
No mesmo período em que se deram os contactos de Beckford com Portugal, o marquês
Marc-_Marie de Bombelles foi embaixador de França em Lisboa. Escreveu um diário
abundante em relatos e impressões que, de um angulo diferente, também lançou luz
sobre manifestações musicais do absolutismo decadente. Os acontecimentos referidos
no *_Journal* ocorreram nos anos de 1786 a 1788 (228).
Não admira que o diplomata francês desprezasse o idioma do país onde estava
acreditado. Só muito recentemente, com o fortalecimento do anticolonialismo,
passaram os representantes das grandes potências a cuidar de se exprimir na língua
de Camões, ao dirigirem-se a portugueses. Tem no entanto interesse verificar até
que ponto podia ir o complexo de superioridade. A sua tolerância do lado nativo, ao
longo de séculos, não deixa de ter relação com aspectos de subalternidade
periférico-europeia da cultura musical portuguesa.
Dezembro de 1787. Dia dos anos de D. Maria I. _o embaixador da França desloca-se a
Belém. M.me de Bombelles, "sempre bem recebida, sempre :, merecedora de o ser, foi
mais particularmente acolhida depois de ter tido a atenção de cumprimentar a rainha
e as princesas em língua portuguesa. Ela explica-se lindamente ("*très joliment*")
neste idioma. [...] Sua Majestade fidelíssima acentuou-me da maneira mais amável a
sua sensibilidade à atenção de M.me de Bombelles". Muito bem. Só que "haveria
inconveniente em que um embaixador de França acostumasse a corte de Lisboa a ouvilo
falar português; em breve se pretenderia que fosse nesta língua que ele
dirigisse os seus discursos ao soberano." O marquês entendeu, no entanto, que sua
mulher "podia sem consequência, e uma vez ou duas, de passagem, dar a uma nação que
é nosso dever reconduzir, essa marca de estima e de respeito por ela."
Bombelles achou que, em Portugal, havia poucos fidalgos em condições de "servir
sofrivelmente". Distinguindo um deles: "Para um país onde as ciências são em geral
muito negligenciadas, pode dizer-se que tem instrução" (25.7.87). Tão-pouco é sem
sentido crítico que o diplomata promove Lisboa a "terra mais sensível do que
qualquer outra às coisas do aparato" (25.8.87).
Joga com esta opinião o quadro da Igreja dos Paulistas, em cerimónia de Sexta_Feira
Santa. Como todas as outras, a igreja está numa grande obscuridade no
princípio do oficio, mas desde que o *_Gloria in excelsis* é entoado, "espessos 165
reposteiros são tirados, outras cortinas caem, outros mecanismos tombam e todo o
templo se torna resplandecente de luzes". Para Bombelles, uma tal expressão,
deslocada numa igreja, "acha-se justa e necessária para produzir os efeitos dum
espectáculo que faz sobre os Portugueses o mesmo efeito da ópera." E vai ao ponto
de acrescentar: "Fala-se dum carnaval da Ascensão em Veneza; pode dizer-se que em
Lisboa o verdadeiro carnaval da corte e do povo é o tempo da quaresma e
principalmente o da semana santa" (22.3.88).
Os modos das senhoras lusas deviam ser-lhe quase insuportáveis. Referindo-se à
marquesa de Pombal: "chacoteia como um pato e depois de ter viajado durante três
anos em Inglaterra, na Alemanha, em França, tem mais desagradavelmente as maneiras
portuguesas do que as cunhadas que nunca saíram do seu país" (25.1.88).
Relações e serviços culturais tão notórios como os do duque de Lafões não lhe
boleiam a antipatia. Não hesita em afirmar ter sido pelas "coisas honestas" a seu
respeito, ouvidas de manhã, da boca da rainha, que o fundador da Academia Real das
Ciências, na tarde do mesmo dia, se apressou a visitá-lo, honra que não lhe
prestava havia muito tempo. E a rematar: "é um dos mais baixos cortesãos deste país
onde eles excedem o servilismo dos lacaios do favor das outras cortes" (29.3.88).
Noutro passo, di-lo um D. Quixote que "depois de ter estado meio maluco não tardará
a ficar imbecil de todo". Mas não se contenta com isto: "o mesmo duque de Lafões
que, no palácio, corre a visitar todas as criadas de quarto e trata por Excelência
a favorita subalterna M.me de Arriaga, volta a casa eriçado de pretensões e com
gumes de príncipe de sangue". Durante um jantar "de uma tristeza mortal", tentou
animar os comensais com "discursos os mais ridículos, os mais próprios para
comprometê-lo desagradavelmente com a corte, se se ligasse qualquer importância
àquilo que ele diz" (3.4.88). :,
Sem nada de especificamente musical, estas amostras visam sobretudo a afiançar que,
nas seguintes alusões à arte dos sons, as apreciações elogiativas não resultam de
qualquer tendência do aristocrata francês para encarecer os valores humanos e
culturais do país onde se encontrava. O mesmo duque de Lafões vai servir-nos de elo
de ligação à música, ainda no contexto do diário de Bombelles.
No seguimento de um "medíocre jantar numa soberba baixela", em sua casa, fez-se
música (3.1.87). Música talvez de sopro, como a que deu a ouvir à sobremesa de
outra refeição. Mas também podiam ser "peças de cravo, as mesmas que o embaixador
mais tarde disse ter ouvido todas as vezes que a duquesa teve a condescendência de
passear os seus bonitos dedos e os seus olhos inclinados sobre o teclado" (3.4.88).
Outra afirmação das práticas musicais em residência da nobreza leva-nos ao palácio
do marquês de Penalva. Aí se deu "um muito belo concerto" no qual nada menos de
duas condessas e uma marquesa "cantaram muito bem belas áreas italianas". Especial
atenção merece o reportório com que a embaixatriz de França abrilhantou ainda mais
a festa: "a música de Gluck, de Piccini, de Sacchini e de Grétry cantada por M.me
de Bombelles dá grande prazer aos Portugueses; os acompanhadores são excelentes e
em parte nenhuma ouvi a música concertante mais bem executada do que em Lisboa".
Depois desta afirmação, que não pode deixar de causar certa surpresa, Bombelles
presta-nos uma informação mais objectiva sobre costumes da fidalguia lusa. Em vez
de ceia, reunião entre as seis e as sete da tarde. Jogava-se depois, e fazia-se
música. Pelas oito vinha o chá, o chocolate, pastelaria e rebuçados, "nos quais os
oficiais portugueses são excelentes". Decorrida mais uma hora, limonada, orchata,
capilé e algumas vezes ponche. Entre as dez e as onze horas, a sociedade
separavase: "ao voltar a casa, cada qual põe-se à vontade e ceia, se lhe apetecer,
coisa
mais conveniente num país quente do que grandes ceias em que as mulheres se sentem
embaraçadas pelos seus adereços e em que raramente nos põem num lugar onde
encontremos nos vizinhos o género de conversação ou de divertimento que se deseja"
(28.12.86). Relator e coisas relatadas não poderiam reflectir melhor uma verdadeira
classe ociosa.
O mínimo pretexto servia para recepções, onde a música representava em regra um
papel mais mundano do que cultural, em sentido estrito do termo. Dia de anos de um
sobrinho do marquês de Pombal? Concerto, baile e -- dessa vez sim -- grande ceia no
palácio do tio. Comentário do embaixador Bombelles: "Há aqui uma bonomia que excede
muito a que existe em França. Em Lisboa, convidam-se sessenta a oitenta amigos para
os fazer ouvir cantar a mulher, as sobrinhas, as primas, e tudo isto, como em nosso
detrimento ouvimos esta noite, quanto mais desafinado melhor" (6.1.88).
Poucos dias volvidos, o mesmo Pombal, filho do famigerado Sebastião José, comemora
a completação de um ano sobre um ridículo acidente de viação, por este não ter tido
consequências graves. Bombelles, ainda no diário, regista que, mais do que qualquer
outro, Portugal é 0 país dos aniversários. Não deixa por isso de aceitar 0 convite
e lá vai até Oeiras, onde "as sobrinhas cantaram mais uma vez as mesmas árias que
causavam tédio há um ano e que elas estropiam em 1788 como em 1787". A celebração
reteve :, as voluntárias vítimas "até as onze horas da noite, em cadeiras de verga
cujo assento acaba por se tornar mais fresco do que mole" (25.1.88).
Na alta-roda lisboeta, havia quem desse concertos privados com pendular
regularidade. Era o caso de Monsieur de Visme, francês enriquecido em Portugal.
Bombelles queixa-se das cerca de cinco horas que durou um dos concertos que o
compatriota levava a efeito todos os domingos. Concertos em que tocavam "os piores
músicos de Lisboa" (4.2.87).
Festa de Verão em casa do conde de Pombeiro. "Numerosa e brilhante sociedade
reuniu-se das cinco às sete horas da tarde sob os magníficos freixos de Belas;
bandas de músicos distribuíam-se por várias partes do parque". Ao cair da noite, a
elegante companhia desloca-se para o interior da casa. "Depois de termos admirado
umas belas salas, ficámos naquela onde, depois duma sinfonia, foram dançados
intermináveis minuetes. Para salvar das dificuldades de cerimónia, M.me de
Bombelles viu-se obrigada a abrir o baile dançando um desses minuetes" (4.7.87).
As regras de cerimónia devem ter sofrido infracção chocante, pelo menos para a
mentalidade do principal convidado gaulês. "Uma embaixatriz recebe aqui sem
dificuldade as honras que lhe são devidas; não tenho portanto qualquer observação a
fazer a este respeito, mas parece-me que as mulheres dos ministros de segunda ordem
são tratadas ligeiramente de mais pelas grandes damas deste país. Depois de começar
os minuetes pelo de M.me de Bombelles, seguiu-se a ordem dos lugares das senhoras,
de modo que algumas delas, não titulares, dançaram antes de ter sido proposto a
M.me Walpole, mulher do enviado de Inglaterra, que dançasse o seu minuete. Ao menos
poderia fazer-se alternar com as mulheres titulares as dos ministros das cabeças
coroadas", etc.
Para que a ideia do que eram estas manifestações fique menos incompleta, falta-nos
ainda uma componente que nos traz à lembrança a *_Ariana em Naxos*, de Richard
Strauss: o fogo-de-artifício. Houve-o também na festa estival de Belas, "igualmente
longo e frouxo", a seguir ao baile. Depois, instalação num terraço, ao luar.
"Dentro dum pavilhão, uma orquestra executou muito boa música, após o que
apareceram, envoltos em suas capas, oito ou dez improvisadores que começaram por
recitar sonetos feitos com todo o vagar e que tiveram honra; de grandes *bravos*."
Dilatando a deliciosa *suite* de entretenimentos, as damas, lá do alto da galeria,
propuseram temas aos poetas. Que temas? Por exemplo, o da superioridade dos olhos
verdes sobre os azuis. Descendências setecentistas, em linha recta, dos passatempos
apregoados mais de duzentos e cinquenta anos antes por Garcia de Resende.
Escusado seria dizer que a música também ornamentava recepções em embaixadas. E até
havia embaixadores bons músicos, nomeadamente o da Espanha. Depois do grande
banquete com que assinalou o dia dos anos do príncipe das Astúrias, o diplomata
"reteve toda a sociedade, acrescida de visitas, para assistir a um belo concerto em
que três cantores italianos cantaram negligentemente as mais tristes árias"
(12.11.86). Quanto a embaixatrizes, M.me de Bombelles não era a única dotada de
prendas artísticas. A mulher do enviado de Inglaterra agradou mais, ao cravo, do
que os cantantes italianos. "Esta mulher bastante bonita tem diversos talentos :,
agradáveis, dança com todas as graças que possam desejar-se; foi ao vê-la dançar o
minuete que o marido se enamorou dela." O que indica ainda maior hegemonia do
minuete, nos tempos de D. Maria I, do que a apontada pelos historiadores da dança.
O mesmo Bombelles proporcionou música à classe dominante portuguesa. Boa música,
segundo diz, ainda que neste depoimento ele tenha sido parte interessada. Como
sempre, não era só música, na embaixada de França. A respeito duma dessas
recepções: "conduzi a companhia para uma sala disposta de maneira que o ar vinha de
três lados e que, independentemente de oitenta pessoas colocadas em bancos, mais
cento e cinquenta vissem facilmente um teatro no qual M.me de Bombelles, minha
irmã, o príncipe Victor de Rohan, M. de Villeblanche e M. de Garat representaram
muito bem e muito alegremente *_Les fausses infidélités*, uma bonita comédia de M.
Barthe" (18.7.87).
Apesar de ter evitado o excesso de calor, o anfitrião entendeu que a representação
duma segunda peça, no mesmo local, seria alongar de mais aquele capítulo do seu
programa. Assim, fez passar a amável assembleia para "uma sala vasta e fresca",
onde se realizou "um concerto excelente, executado pelos mais hábeis músicos de
Lisboa, que não durou mais do que três quartos de hora". O que não quer dizer que
Bombelles tenha deixado de propor às senhoras de idade que o fizessem continuar e
aos jovens que fossem passear-se pelo jardim. Todas optaram pelo passeio. Por "uma
escada provisória mas sólida e ornamentada, foram para esse jardim que dois mil
lampiões iluminavam, sem contar as terrinas e as lanternas; um conjunto de sopro
fazia ressoar, ao ar livre, os sons dos clarinetes, das trompas e dos fagotes;
estava colocada sob um grande caramanchão onde não tardou que se juntasse toda a
gente e que a juventude se pusesse a dançar."
O que segue dá claramente a entender que, além do mais, aquelas festanças
resultavam muitas vezes fastidiosas para os participantes Também o privilégio do
divertimento acaba por saturar. Pior seria, no entanto, para aquelas mentalidades
rendidas à ostentação e à preguiça, a obrigação de algum trabalho indigno da sua
classe. "Ao contrário do que é costume nas grandes festas, a alegria aumentava cada
vez mais, mulheres imponentes pela sua posição e pela sua presença juntaram-se às
outras dançantes; uns minuetes repousaram de alemandas ou de contradanças vivamente
conduzidas."
Dessa vez, a festa prolongou-se até mais tarde. Depois da ceia, ainda um baile, com
música diferente da que se ouvira antes. "Já tinham soado as quatro horas da manhã
quando as mães e as aias começaram a aconselhar a retirada." Mas valeu a pena:
"enfim, pelo seu êxito, esta festa compensou-me amplamente dos trabalhos que tive
com os preparativos."
Examinemos agora um pouco o que se passava em esferas mais oficiais. Para já,
ousemos penetrar nas imediações de Pina Manique. Estamos outra vez no dia dos anos
da soberana. No "velho castelo", o intendente da Policia "deu uma festa
verdadeiramente brilhante e singular. Começou pelo casamento de trinta e uma órfãs
dotadas pelo governo que vão ser enviadas, com os esposos, para uma pequena vila do
Algarve para aumentar a população e ali introduzir a indústria. [...]. Depois do
casamento e do baptismo duma :, negra e dum negro, depois dum discurso pronunciado
em português, passámos para uma imensa galeria onde estava posta uma soberba
refeição. Estivemos um quarto de hora à mesa, depois fomos conduzidos a outra sala
onde foi executado um bom concerto. Após ter ouvido umas sinfonias e
quatro árias, todo o corpo diplomático levantou ferro para ir terminar este
demasiado activo dia em casa de M. Kantzow, o agente da Suécia, que dava um baile e
uma ceia servida em mesas pequenas" (17.12.86). Bem vistas as coisas, estes
diplomatas não levavam uma vida muito diferente das dos seus colegas de hoje. Em
todo o caso, as festas onde fulgiam sempre tinham um pouco mais de música, ao vivo.
O sindicato dos músicos não existia ainda.
Certas manifestações culturais na régia corte ferem o sentido crítico do
embaixador. Em relação a um concerto marcado para dois dias depois: "Desde há muito
tempo que os ministros se queixam, com mais razão do que consequência e nobreza,
de, nestas ocasiões, não só não terem lugares marcados como, afastados da Rainha e
da família real, serem deixados de pé, quase confundidos com os cortesãos de todas
as classes; por fim deram-lhes uma vez ou duas cadeiras numa sala de concerto que
há no palácio da Ajuda" (23.7.87).
Como o palácio que D. Maria ocupava então em Lisboa só tinha acomodações
provisórias, a rainha fez saber aos diplomatas que deplorava não poder dar-lhes
lugares convenientes. Assim, deixava-lhes a opção entre faltarem ao próximo
concerto ou aceitarem as suas desculpas, no caso de comparecerem. Os diplomatas
decidiram-se pela segunda alternativa, desde que recebessem a garantia de que na
Ajuda e noutros locais onde se pudesse mais adequadamente arranjar lugares o
problema seria resolvido, e de que o concerto em questão não viria a ser invocado
como precedente.
É tipicamente elucidativo duma visão dos acontecimentos musicais o facto de
Bombelles consagrar tanto espaço do seu diário à questão dos lugares e da sua
distancia de Sua Majestade, enquanto os aspectos artísticos lhe merecem pouca
atenção. Vejamos o que a este respeito nos diz, relativamente ao concerto em causa.
"À noite dirigimo-nos ao palácio, às oito horas. Quando já estávamos na sala do
concerto, a Rainha e a família real vieram tomar o seu lugar. Com grande espanto
meu, o do corpo diplomático estava separado do de Suas Majestades e Altezas reais
por toda a orquestra; enquanto que cinco castrados, de costas viradas para nós,
estavam sentados defronte da rainha, nós estávamos de pé, dez passos mais longe"
(25.7.87). Seguem-se mais considerações sobre o escândalo protocolar dos lugares.
Quanto ao que, mais ou menos eufonicamente se ouviu no concerto, ficamos só a saber
que os sons musicais provieram de uma orquestra e das gargantas duns capados.
Este exemplo não é único, nas páginas do diário. No entanto, ainda na esfera da
corte, Bombelles foi um pouco menos omisso, ocasionalmente, quanto a valores
musicais. Isto, sem se desligar das suas preocupações de dignidade e conforto: "fui
à capela da Ajuda, onde os marqueses de Marialva e de Pombal nos tinham feito
reservar lugares cómodos e decentes, para mim e para os meus oficiais de marinha.
Ai ouvimos cantar uns soberbos motetes, terminados por um *_Miserere* de bela
composição" (21.3.88). Não deixa de ter interesse saber que, para o embaixador de
França, aqueles ofícios eram :, "duma longura verdadeiramente cansativa"
(*assommante*), sem que a devoção pudesse ser satisfeita, porque se tratava muito
mais de "espectáculos do que de uma junção de orações dirigidas pelos fiéis no
templo do Senhor". No entanto, mais nos importaria saber quem tão bem tinha
composto os motetes e o *_Miserere* e, sobretudo no caso de autoria portuguesa, os
carácteres essenciais das obras e das execuções.
Embora não saiam daquele tipo de informação, vale a pena registar outras alusões a
música religiosa. No mosteiro das freiras de Santana havia uma pensionista que
cantava as lamentações de Jeremias "de maneira muito agradável". Na Igreja de Nossa
Senhora da Pena, que fazia parte do palácio do Infantado, a música régia era "a
mesma que, nos dias grandes", formava "a orquestra e os cantos da capela da
Bemposta". No mesmo dia, na Bemposta e na presença da rainha, "o *_Miserere* em
música foi muito bem executado". Quando, perto das onze da noite, os Bombelles
regressaram à embaixada, sentiram-se "bem saciados de música e muito mais fatigados
do que edificados" (20.3.88)
As referências a música na Igreja dos Mártires são das menos lacónicas. Não
contradizem as de Beckford, nomeadamente no que respeita a David Perez, que
Bombelles diz português. "O morgado de Oliveira veio buscar-nos à saída da mesa,
para irmos à igreja dos Mártires, onde se fez o ofício de Defuntos para os músicos
falecidos e membros da irmandade de S.ta Cecília. É preciso ser bom sinfonista ou
cantor para aí ser admitido. A música executada nesta cerimónia é a de David Peres
(*sic*), célebre compositor português que morreu há poucos anos. Todos os amadores
da cidade estiveram nos Mártires e o embaixador da Espanha tinha-nos reservado
lugares numa tribuna. Tive grande satisfação com vários trechos, mas tão bela
música pediria melhores cantores do que aqueles que mais brilham neste momento em
Lisboa" (26.11.86).
Exactamente um ano depois, Bombelles volta aos Mártires. Refere-se então a
celebrações pelo mesmo motivo fúnebre mas que se realizava noutro dia, com missa
cantada, de Jommelli, precedida de "uma das obras-primas de Perez", provavelmente o
*_Mattutino de'morti*. Tornando às audições de 26 de Novembro, reafirma que a
música era "soberba", mas insiste em que, "como todas as solenidades portuguesas, é
duma duração excessivamente longa". O que não impede "as senhoras que ouviram mil
vezes esta música de voltarem fielmente a ouvi-la todos os anos, porque em todas as
ordens da nação ninguém sabe como matar o tempo".
David Perez já havia sido objecto de considerações no diário, mas relativamente a
outra circunstancia religiosa. "As matinas de Natal, compostas por David Peres
(*sic*), não são menos estimadas que as suas outras obras; há muito tempo que nos
tinham recomendado ir ouvir cantá-las na igreja de São Vicente [...]. Há
efectivamente um grande mérito de composição nestas matinas de Peres. O serviço
divino faz-se com decência mas não tem, nesta primeira igreja do reino de Portugal,
nem de longe, a pompa imponente dos ofícios das nossas paróquias de Paris"
(24.12.86).
Poucos dias depois, no fim do ano, há uma indicação objectiva de despesas com a
arte dos sons e uma identificação de intérprete musical, coisas raras no diário.
"Estivemos no palácio da Ajuda para assistir ao *_Te Deum* cantado :, em acção de
graças pelos favores derramados por Deus sobre o reino de Portugal ao longo do ano
de 1786. Podemos entrar em linha de conta com a morte do imbecil do rei, cujas
tolas fantasias a Rainha respeitava demasiado."
É a seguir a esta ferroada na memória de D. Pedro III que vêm aquelas duas
informações. "A música da patriarcal é a mesma que, nas solenidades, executa os
motetes na capela da Rainha. Esta música é muito boa mas não é menos verdade que
custa mais de cem mil *écus* por ano." Se por estes "*écus*" devem entender-se os
franceses da época, então o conjunto régio de executantes musicais importava em
avultada soma anual.
Bombelles comenta que "por uma soma tão considerável seria com certeza possível ter
muito melhor ainda, sobretudo em cantores". E acrescenta que "há um soprano chamado
Ferracuti com quem toda a Lisboa anda de cabeça perdida mas que, na opinião dos
estrangeiros acostumados a ouvir bons cantores, é um dos mais tristes miadores que
se pode encontrar". O castrado italiano Ansano Ferracuti era o mesmo referido por
Beckford. As suas insuficiências vocais eram de algum modo compensadas por notáveis
capacidades técnicas e estilísticas. O remoque à ignorância dos portugueses em
matéria de canto é tão desdenhoso quanto inexacto. Por certo, entre os
frequentadores da corte, havia bastante memória dos cantores prodigiosos que se
tinham exibido em Lisboa, não era ainda decorrido muito tempo.
A sobranceria de Bombelles deve ter contribuído para o anonimato em que deixou a
autoria portuguesa de alguma da música que ouviu. O que é tanto mais de lamentar
quanto é certo que entre os compositores omissos se encontravam provavelmente um
Sousa Carvalho, um Leal Moreira, um Marcos Portugal. O referido *_Te Deum* é um bom
exemplo. Bombelles limita-se a registar que ele "é da composição dum jovem
português" e que "o conjunto desta peça, assim como os seus pormenores, honram o
talento do autor". Para além do nome deste -- que não será talvez difícil descobrir
--, seria interessante saber alguma coisa de quantitativo e qualitativo sobre a sua
execução, tanto mais que esta deve ter sido de vulto, a julgar pelo encarecimento
da generosidade de quem a pagou: "Este *_Te Deum* e toda a despesa que ele ocasiona
são encargo do patriarca, que assim dá o presente de Ano Bom à Rainha."
Quando a obra que lhe agrada é de um Pergolesi, o marquês não se esquece de
escrever o nome do autor. A informação interessa, já que não nos é hoje indiferente
saber que o famoso *_Stabat Mater* podia beneficiar duma realização de categoria na
residência dum membro da alta burguesia do tempo de D. Maria I. "Fomos terminar o
dia em casa dum negociante português, *_Monsieur* Pessoa, onde nos esperavam o
marquês de Pombal e a morgada d'_Oliveira. Logo que nos sentámos começou o mais
belo concerto entre todos os que se deram em Lisboa desde que aqui estou. O
*_Stabat Mater* de Pergolèse (*sic*) foi executado tanto pelas vozes como pelos
instrumentos com uma perfeição rara; uma rapariga brasileira tocou um concerto de
flauta com tão surpreendente afinação quanto seguro bom gosto. Outras mulheres da
sociedade da dona da casa cantaram árias italianas e deram-me muito mais prazer do
que o que sinto no ouvir as cantoras de profissão da corte ou da patriarcal. Mas as
melhores coisas devem ter o seu termo e se este :, concerto tivesse demorado só
metade do tempo que lhe dedicaram teria sido encantador" (21.2.87). A referência a
"*chanteuses de profession de la cour ou de la patriarcale*" soa um tanto estranha.
Não seriam "*chanteurs*"? Parece de admitir um erro na leitura do manuscrito
original.
Outro local onde Bombelles gostou de ouvir música foi a Igreja de S. Luís, por
ocasião de vésperas. Com a vantagem de se sentir quase em França. "A música era
excelente tanto em *virtuosi* cantores como distintos pelo seu talento para a
flauta, o violino e o oboé" (25.8.87). Vem a propósito de instrumentos usados em
cerimónias religiosas uma referência ao piano, em ambiente de noite de Natal.
"Depois de termos tido o duque de Cadaval e várias pessoas não convidadas para
jantar, fechámos a nossa porta para o resto do serão. A meia-noite, o mais ruivo, o
mais sujo dos capuchinhos disse-nos as três missas na minha capela, iluminada com
requinte. Durante a terceira missa, ouvimos umas encantadoras melodias de Natal
tocadas por um bom violino, acompanhado muito agradavelmente ao forte-piano. Esta
música doce era executada numa câmara que tem uma janela interior sobre o altar"
(24.12.87). Outra alusão vem confirmar a existência de pianos em casas
particulares. Foi na da condessa de Vimieiro que "um forte-piano me inspirou também
alguns versos postos em canções" (30.3.88).
Voltando aos festejos do Natal, observe-se que os então habituais em Lisboa
suscitaram alguma estranheza no embaixador de França "Esta terra entregue à
superstição oferece contradições bastante bizarras a este respeito. [...] Os
teatros estão abertos no dia de Natal e nas maiores festas do ano dão-se, como
noutro dia, bailes públicos. Se a noite de Natal não oferece aqui exactamente as
mesmas folias que estavam ainda em uso em meados do século passado, se já não se
vêem máscaras grotescas e danças nas igrejas, se o povo já não grita *victor*
àquele que melhor canta um *villancico* duma mula que escoucinha, as *trompettes*,
os gritos estridentes, os bandolins, os berimbaus celebram ainda nas ruas de Lisboa
a vinda do Salvador" (25.12.87).
Infelizmente, Bombelles não dá notícia que nos esclareça sobre alguns aspectos
ainda obscuros das representações de ópera, privadas e públicas, nas vésperas da
construção do Teatro de S. Carlos. Mas não será descabido trazer aqui um pouco das
impressões que colheu noutros espectáculos teatrais, que mais não seja para
comparação com as de Beckford. Espectáculos, aliás, onde a música também tinha
papéis a representar.
Apesar de não se encontrar bem de saúde, Bombelles sente-se obrigado a ir ao Teatro
do Salitre: "Um acontecimento que surpreende igualmente toda a gente em Lisboa
arrancou-me esta tarde do quarto para ir, bem contra vontade, ao espectáculo
português que a Rainha honrou com a sua presença. Não se esperava que uma princesa
que leva tão longe a sua austeridade, que só com extrema dificuldade cedeu a que
fossem reabertos os teatros da sua capital, se tenha de repente deixado conduzir ao
mais indecente de todos quantos mereceram a censura da Igreja. Pensando que o meu
dever me prescrevia a presença no espectáculo aonde ela ia, tomei um camarote, que
só com extrema dificuldade obtive; imaginava eu que todos os outros estavam
ocupados pela grande nobreza do país que, ao ser informada da resolução da sua
soberana, se tinha apressado a ir ao mesmo local, para :, lhe fazer a sua corte.
Assim, fiquei ainda mais surpreendido quando vi, exceptuada a família real, a sua
comitiva, o meu camarote e os de MM. de Pavolide e de Pombal, o resto da sala cheio
da mais baixa classe de cidadãos."
Ao que parece, e apesar de tudo, o absolutismo era menos alérgico às castas
"inferiores" em Portugal do que em França. Uma das razões, talvez, pelas quais a
Revolução Francesa ia começar menos de dois anos depois. Entretanto, o marquês de
Bombelles continuou assim as suas considerações: "O camarote que se chama, em
França, o do primeiro gentil-homem apresentava a descoberto e comodamente sentados
dois reles e sujos lacaios vestindo a libré da corte. As cenas eram condizentemente
sujas; uma mulher há dezoito anos separada do marido apresenta-lhe uma bastardinha
que há-de fazer muito agradável sociedade para o bastardinho que, pelo seu lado, o
marido teve, durante o tempo de libertinagem.
Os bailados correspondem à comédia: homens de barba bem preta, vestidos de
mulheres, procuram, à força de indecências, produzir qualquer ilusão sobre o seu
sexo, sem conseguirem mais do que representar o asqueroso quadro de horríveis e
velhas prostitutas. Depois do primeiro bailado pensei que a minha missão estava
suficientemente cumprida; achei-me muito feliz de poder descansar, em casa, de uma
tão suja estopada" (2.9.87)
As convicções monárquicas de Bombelles não são isentas de sentido crítico.
Reafirma-o estoutro passo do diário. "Os soberanos são inexplicáveis nas suas
afeições e em muitos outros movimentos da alma. A Rainha que, segundo tudo o que se
observa no palácio, não tem nenhuma amiga mais querida do que a superiora do
convento votado ao Coração de Jesus, deveria neste momento estar muito afectada
pelo perigo em que se encontra a vida dessa religiosa. Diz-se que Sua Majestade
está com efeito muito inquieta por causa desta favorita e [no entanto] nunca a
vimos de mais bom humor do que esta manhã. Ontem assistiu ao espectáculo, amanhã
espera-se que vá a um teatro onde as peças e os actores não são mais dignos dos
olhares e da atenção duma soberana, para mais rigorosamente devota, do que o teatro
de Nicolet, nestes dias de licença, conviria a um cura de St. Sulpice ou a um
arcebispo de Paris" (24.11.87). Nos teatros ambulantes que Jean Baptiste Nicolet
dirigia então em Paris representaram-se pantomimas que alcançaram muito êxito.
Outro depoimento sobre os teatros públicos de Lisboa: "Decorações bastante
agradáveis, trajes soberbos são utilizados no teatro do Salitre e no dos Condes
para representações de que não pode fazer-se uma ideia sem ter assistido:
obscenidade de palavras, de gestos, absurdos de todo o género servem de
divertimento a uma multidão cuja maior parte é das classes honestas ou distintas
desta capital. O *provedor* do arsenal, sentado no camarote ao lado do nosso,
mendigava-me elogios de vez em quando. Não podia conceber que eu não sentisse
prazer ao ver homens de barba preta, vestidos de mulheres, saltar sem sombra de
graça e muitas vezes sem compasso; queria consolar-me da minha falta de gosto
convencendo-me de que Portugal tinha adoptado a dança italiana. Não pude deixá-lo
neste doce erro: os piores dançarinos de corda da Itália são mais suportáveis do
que os bailarinos mais aplaudidos em Lisboa" (30.1.88). :,
Meses depois, novo desagrado, apesar de se representar Goldoni. "Tínhamos combinado
encontrar-nos, M.me de Bombelles e eu, na Comédia do Salitre; tinham-nos feito
pomposo elogio de dançarinos chegados recentemente; e é verdade que foram
aplaudidos com tanta razão como a comédia do duque." (O remoque é a uma peça do
duque de Lafões, lida em sociedade, no mesmo dia.) "Ah!, como uma nação está ainda
longe das primeiras noções do bom-gosto, quando entre todas as ordens dos seus
cidadãos reunidos em semelhante espectáculo, cada um admira e encoraja à vontade
uns convulsionários cujos saltos e contorções fazem mal ao coração. O mesmo cabe
dizer da actuação dos homens vestidos de mulheres. *_As quatro nações*, peça
italiana de Goldoni traduzida em português, foi representada por estas barrocas
figuras e, exceptuando as truanices de um criado bastante divertido, o resto é
verdadeiramente horrível. Espero ter sido a última vez na vida que perdi tão
desagradavelmente o meu tempo. Corre-se um risco maior neste teatro, que é o de ser
irremediavelmente queimado se houver fogo na sala, pois existe uma só porta, tanto
para sair como para entrar" (3.4.88).
No palácio de um dos principais fidalgos do reino, Voltaire não foi tratado mais ao
gosto de Bombelles do que Goldoni. O acontecimento veio ao encontro do interesse de
várias pessoas ligadas às letras e que tinham viajado, no sentido de "ter aqui um
espectáculo francês para familiarizar a nação portuguesa com a língua que se
generalizou na Europa e para lhe dar a conhecer o teatro mais apurado e mais fino
da Europa". Bombelles apadrinhou menos a ideia do que o seu colega espanhol. Com
efeito, este tinha franceses ao serviço da embaixada e encorajou-os a representar
nada menos do que a Zaïre.
"Houve dificuldades quanto ao teatro. Como o tenente achasse mal, e com razão, que
o cavaleiro Caamaño, secretário da embaixada de Espanha, assinasse, por ordem do
seu embaixador, uma autorização para o seu pessoal representar, o marquês de Pombal
socorreu os actores e negociou junto de M. Manique, que permitiu verbalmente o
espectáculo, reservando-se a faculdade de o proibir, se ele desse origem a rumores
que desagradassem à Rainha. Fiquei em boa posição, não tendo aparecido em nada, em
todo este negócio, e limitando-me a permitir que um dos meus criados de quarto
representasse.
"Hoje, às seis horas da tarde, num teatro pertencente ao marquês de Marialva,
deram-nos a primeira representação de *_Zaïre. Exceptuando o actor que fazia o
papel de Orosmane e que o deva com pronúncia da Gasconha, o resto era do pior que
há. O embaixador de Espanha tinha feito reservar lugares de honra para ele, para
mim e para as senhoras do corpo diplomático. Isso desagradou muito, e com razão, às
pessoas da primeira nobreza, que tinham sido atra das por tão insatisfeita
curiosidade" (4.1.87).
É de notar a relativa transigência da autoridade policial entre a perspectiva de
representar Voltaire em Portugal. Teria Pina Manique a noção de que se tratava duma
crítica à intolerância religiosa? De qualquer modo, vem ao de cima o resultado de
uma grande evolução em tal matéria, se compararmos com o que fora a repressão nos
séculos XVI e XVII. Quase dois séculos mais tarde, o regime salazarista também ia
tolerar teatro francês, em francês, nas temporadas do S. Luís, deixando representar
(mesmo assim com alterações) :, peças que a censura cortaria se se pretendesse
dálas em português e para um público de menor confiança.
Por outro lado, o episódio não deixa de confirmar que, tal como antes e depois, o
teatro era objecto de cuidados especiais, devido ao seu poder de comunicação pela
palavra e a acção dramática. Neste aspecto, a música propriamente dita -- entendida
como abstracção desligada de palavras
cantadas e de movimentos de dança -- sofreu menos os efeitos do enfreamento
cultural institucionalizado. Só que essa abstracção se inscreveu, na prática do
concreto, em círculos muito diminutos, sobretudo no longo espaço de tempo anterior
à emancipação da música puramente instrumental.
Note-se ainda que o teatro do marquês de Marialva, ao qual como vimos Beckford
também alude, estava em condições de funcionamento, não sendo de excluir que nele
se tenham realizado espectáculos de ópera de que hoje nos falte notícia.
Finalmente, convém registar que Bombelles fala de manifestações em Lisboa dum tipo
de actividade musical que o melómano de hoje conhece do seu quotidiano mas não
estava ainda tão desenvolvida na Europa daquele tempo, conquanto já estivesse a
entrar em moda nos maiores centros culturais: as apresentações de instrumentistas
vindos de fora, que andavam de terra em terra a exibir o seu virtuosismo. Foi esta
uma das vias pelas quais veio a acentuar-se a liberalização da profissão de
executante musical.
Vem isto a propósito da passagem por Lisboa do violinista italiano Antonio Lolli,
que andava então pelos 57 anos de idade e gozava da máxima fama. Que foi percursor
de Paganini, mostram-no várias referências de contemporâneos, como esta de Cramer,
publicada meses antes da vinda a Lisboa: "Na sua inimitável habilidade e presteza
consiste todo o mérito de Lolli, que se tornou o maior violinista sem ganhar
direito ao nome de músico [*_Tonkünstler*/ú". Entre as suas especialidades
figuravam execuções surpreendentes e acrobáticas, possibilitadas pela *scordatura*
(afinação das cordas diferente da habitual), a exploração dos sons mais agudos e,
para contraste, as variações sobre a quarta corda do violino. Segundo Hanslick,
pode com razão datar-se o virtuosismo itinerante propriamente dito a partir de
Lolli (*_Geschichte des Concertwesens in Wien*, 1869).
Eis o que Bombelles nos conta: "Há muito tempo que o talento de M. Lolli faz grande
barulho entre todos os amadores de música. Viajando com autorização da imperatriz
da Rússia, que ele serve na qualidade de primeiro violino da sua orquestra, veio
aqui para se fazer ouvir e colheu esta noite justos aplausos num concerto por ele
dado na sala do *long-room* das nações estrangeiras. Tudo o que a sala pode conter
de pessoas lá esteve certamente hoje; apesar dum calor muito desagradável, ninguém
se queixou de nada, de tal modo M. Lolli chamou a si a nossa atenção, encantando-a
pela sua habilidade e pela escolha da música que tão superiormente executou."
Torna-se hoje curioso saber como podia ser o fecho do recital dum violinista
celebérrimo. Inconcebível que um Isaac Stern aceitasse um semelhante remate: "O meu
filho mais velho teve com este concerto um prazer surpreendente para a sua idade e
a satisfação foi completa quando :, pôde figurar nas contradanças inglesas que
terminaram um serão muito agradável" (11.1.87).
Depois, foi em casa do marquês de Marialva, a seguir a mais um jantar. "Não tardou
que Lolli, apoiado por uma grande orquestra, fizesse ouvir todas as maravilhas da
sua arte. Após um encantador concerto, vimos soltar um fogo-de-artifício cuja
última girândola foi o sinal dum baile muito alegre. A ceia que se lhe seguiu não
foi menos bem servida do que o jantar" (25.1.87). Não seria absolutamente exacto
dizer hoje extinta esta possibilidade de encontrar grandes virtuosos musicais em
recepções privadas. Os frequentadores da casa da marquesa de Cadaval, em Colares,
têm beneficiado de convívios com um David Oistrach, um Paul Tortelier, um Jörg
Demus e tantas outras sumidades da interpretação, muitas vezes com ensejo de lhes
admirar a mestria. Sem esquecer todo o estado maior que, há umas dezenas de anos,
passou pelos serões de Elisa de Sousa Pedroso.
Tornemos ao Setecentos. A desolação pela notícia dum grande incêndio não impediu
Bombelles de ir ao Teatro do Salitre assistir a um concerto de Lolli, cuja receita
revertia a seu favor. Quanto ao conteúdo musical do espectáculo, nada ficamos a
saber. Apenas que o consagrado rabequista "recebeu os aplausos das grandes damas
portuguesas que enchiam os reles camarotes duma sala que era dantes um feio e
demasiado estreito jogo da péla" (28.1.87).
Em todo o caso, estes relatos permitem fazer uma ideia da medida em que a música
entrava no preenchimento dos ócios da aristocracia e da alta burguesia portuguesas,
já perto do fim do antigo regime. É pena que os testemunhos de Beckford e de
Bombelles não tenham equivalentes hoje conhecidos, com incidência sobre as práticas
musicais nas classes menos favorecidas, não só em Lisboa mas também, e sobretudo,
nas diferentes regiões de Portugal.
Algumas tentativas de emprego da língua portuguesa
A utilização sistemática de determinado idioma na música para canto processa na
própria música uma caracterização que a diferencia. E não só na música vocal, senão
também, por um fenómeno de contágio, na puramente instrumental. Por exemplo, a
abundância de vocábulos alemães com a acentuação tónica na primeira sílaba pode ter
sido motivo, ao longo de toda uma evolução, de caracteres que nos fazem reconhecer
desde logo o germanismo dum trecho musical. Outro caso é o do idioma francês, que
pode ser musicalmente tratado como conjunto de palavras de maior plasticidade, sem
acentuação tónica propriamente dita (veja-se, a este respeito, a correspondência
entre Romain Rolland e Richard Strauss).
No domínio da música séria não se empregou suficientemente a língua portuguesa no
longo período da dominação italiana. E, como estamos ainda não muito distantes
dele, sentimos os seus efeitos negativos na falta de características musicais
inconfundivelmente portuguesas, exceptuadas as :, obras que se socorrem de
elementos populares. No entanto, cantou-se em português nos séculos XVIII e XIX. Já
focámos alguns exemplos interessantes e havemos de tornar ao assunto noutro
capítulo.
Simplesmente, a maior parte da música que se cantou em português era em estilo
italiano, e às vezes até de autoria italiana, como a partitura (de Spontini) de *_O
templo da glória*, apresentada por Fr. Marcelino de Santo António, um músico que,
não obstante a sua condição de religioso, dirigiu os espectáculos líricos do Teatro
da Rua dos Condes (229).
Mais tarde, em 1842, João Guilherme Daddi (1813-1887), que fora convidado pelo
conde de Farrobo a dirigir a parte musical do Teatro da Rua dos Condes, tentou
representações em português de operas italianas e francesas, como *_O barbeiro de
Sevilha, Zampa* e *Fra diavolo*. O próprio Daddi compôs óperas: *_O salteador*,
representado em 1845 no Teatro das Laranjeiras (do conde de Farrobo), *_Um passeio
pela Europa*, que também ali subiu à cena, em 1851, e *_A feiticeira de Gissoi*,
que não chegou a ser estreada. Entre as partituras de autores nacionais cantadas no
Teatro de S. Carlos em português até ao fim do século encontram-se obras da autoria
de Marcos Portugal, Leal Moreira, António Luís Miró (nomeadamente, *_Os infantes de
Ceuta*, sobre libreto de Alexandre Herculano), Manuel Inocêncio dos Santos, Miguel
_ângelo Pereira (*_Eurico*) e Freitas Gazul (*_Frei Luís de Sousa*).
Entre os compositores que tiveram colaboradores literários ilustres conta-se também
um Francisco Santos Pinto (1815-1860). Parte da sua obra destinou-se a números de
bailado.
Como compositores de ópera, mencionem-se ainda Francisco de Sá Noronha (1820-1881),
autor de *_Beatriz de Portugal, O arco de Santana* e *_Tagir*, e José Augusto
Ferreira da Veiga (visconde de Arneiro), cuja ópera *_La Derelitta*, com texto
italiano, teve medalha de ouro num concurso em Milão. Ferreira Veiga compôs também
a ópera *_D. Bibas*, inspirada no *_Bobo*, de Herculano, que nunca foi
representada.
Das várias tentativas de ópera em português, no século passado, nenhuma se rodeou
do considerável êxito da Imperial Academia de Música e Ópera Nacional, fundada no
Brasil em 1857. Na inauguração representou-se, com enorme agrado, uma zarzuela
traduzida por José Feliciano de Castilho. Um dos principais intérpretes era
português: o barítono Eduardo Medina Ribas. Ao fim de catorze meses de existência,
a Imperial Academia tinha levado a efeito 62 espectáculos.
O gosto italiano fora do meio lisboeta
A influência italiana fez-se sentir não só no domínio da ópera como, pode dizer-se,
em todas as manifestações musicais que não fossem o cantar de modinhas ou o
acompanhar alguma dança das que estavam em voga. Já em pleno século XIX,
praticamente todos os concertos que se davam consistiam numa espécie de espectáculo
de variedades com pretensões a arte séria, que em grande parte se preenchia com
romanzas de ópera. Se acontecia haver :, algum número de piano solo, ou de violino
e piano, o mais provável era que fosse uma fantasia, paráfrase ou série de
variações sobre temas de operas conhecidas. Antes de partir para a Alemanha, Viana
da Mota ainda compôs obras deste tipo (230).
O culto da música italiana era, entre músicos e amadores, a religião oficial; os
raros que o não professavam arriscavam-se a ser olhados como hereges num meio que
já rodava entre os dois pólos que Jaime Batalha Reis definiu com acidulada ironia:
a difamação e a "homenageação". Isto não só em Lisboa. No Porto, a antiga
cavalariça do palácio dos condes de Miranda fora transformada em teatro por ordem
do governador D. João de Almada e Melo. Nesse improvisado teatro, dito do Corpo da
Guarda -- o mesmo onde assistimos às primeiras tentativas da Todi no seu género
sério --, teve a população portuense o seu baptismo operático, supõe-se que com uma
partitura feita de trechos de várias operas de Pergolesi, sob o título de *_Il
trascurato* (231).
O acontecimento faz-nos recuar ao ano de 1762 e, portanto, ao reinado de D. José.
Durante as temporadas as récitas efectuaram-se duas vezes por semana. Essas
temporadas estenderam-se para além da vida do Reformador, até 1788. Entretanto, e
sob a égide do mesmo Almada e Melo, construíra-se um teatro de ópera à semelhança
do S. Carlos, de que era proprietária uma sociedade por acções. O Teatro de S.
João, de que foi arquitecto Vincenzo Mazzoneschi, teve a sua inauguração solene em
1798. No seu palco deram-se acontecimentos artísticos de relevo, nomeadamente a
interpretação, em 1816, de *_Cosi fan tutte*, de Mozart, que só cento e quarenta e
um anos depois teve a sua primeira representação pública em Lisboa! Ali se
apresentaram também obras de autoria portuguesa, como *_I pungegli per ecquivoco
eAstuzia delle donne*, ambas em 1807, do compositor António da Silva Leite
(17591833), mestre da capela nacional do Porto e mais tarde da Sé da mesma cidade.
O
Teatro de S. João ardeu completamente em 1908, não muito tempo depois de por lá ter
passado Béla Bartók em prometedor início de carreira como pianista. O edifício que
hoje existe com o mesmo nome não é reconstituição exacta do de Mazzoneschi (232).
No tocante à ópera, depois de temporadas de grande brilho, tais como as que dirigiu
o violinista José Edolo por volta de 1820, o S. João veio a transformar-se numa
espécie de sucursal um tanto desprezada do S. Carlos. No elogio que tece à memória
de Edolo, Joaquim de Vasconcelos, no seu dicionário publicado em 1870, deplora "a
decadência a que chegou o nosso segundo teatro lírico pela incúria do governo, pela
*ignorância crassa* de pretendidos *dilettanti* que o frequentam e que vão lá
exibir a força de seus tacões e de seus pulsos, e pela indiferença duma burguesia
rica mas essencialmente estúpida e avara". O mesmo Edolo era compositor. Entre
outras obras, escreveu uma transcrição da abertura do *_Otelo*, de Rossini, e
várias modinhas com textos em português e italiano.
Em italiano se cantaram as referidas óperas de Silva Leite, autor também de
*_Sonatas de guitarra com acompanhamento de rebeca e duas trompas "ad libitum"*, de
música religiosa, de um "hino patriótico" pela coroação de D. João VI e de modinhas
ao gosto da época, publicadas num jornal de música. Muito mais tarde, em 1867,
representou-se, antes da :, apresentação em Lisboa, *_O arco de Santana*, do
vianense Francisco de Sá Noronha, com libreto extraído do romance de Garrett. A sua
ópera anterior, *_Beatriz de Portugal* também era de inspiração garrettiana (*_Um
auto de Gil Vicente*). O seu libreto português, de Carlos Monteiro, foi traduzido
em italiano. Subira à cena no S. João em 1862. No ano anterior Sá Noronha fizera
meritória tentativa de criação duma companhia de ópera cómica portuguesa no Teatro
Baquet, do Porto; mas também dessa vez a ideia não teve realização duradoira. A
empresa manteve-se por poucos meses.
Sá Noronha, que foi violinista aplaudido em Portugal e no estrangeiro, dera
concertos no Teatro de S. João antes da representação do *_Arco de Santana*, com
êxitos assinalados. Outras récitas de óperas portuguesas no S. João do Porto foram
as da *_Tagir* (1876), também de Sá Noronha, com libreto baseado no romance *_A
virgem de Guaraciaba*, de Pinheiro Chagas, e em 1874, a do *_Eurico*, de Miguel
Angelo Pereira (1834-1901), que, tendo ido muito novo para o Porto, era considerado
um filho da cidade invicta. O *_Eurico*, inspirado no romance de Alexandre
Herculano, já tivera a mencionada apresentação em Lisboa, no S. Carlos, com
diminuto agrado. Miguel _ângelo Pereira reviu a partitura para a realização no
Porto, o que talvez tenha contribuído para o melhor acolhimento do público (233).
Sem estarem propriamente deslocados neste capítulo dedicado à dominação italiana,
Sá Noronha e M. A. Pereira assumiram todavia significados que, de certo modo, os
diferenciam dos que tacitamente aceitavam os modelos de um Cimarosa, um Rossini, um
Verdi. O primeiro fez o que pôde pela criação de boa música *portuguesa*. Do
segundo basta dizer que foi, com Moreira de Sá, um dos fundadores da Sociedade de
Quartetos, que veio a integrar-se no ainda hoje existente Orpheon Portuense. Está,
portanto, na origem da obra de elevação da cultura musical realizada no Porto
durante os últimos cem anos, adiantando-se por vezes à iniciativa lisboeta.
Pode dizer-se que, nos séculos XVIII e XIX, onde quer que, em território português,
se produziram manifestações musicais públicas, o selo italiano de feição mais ou
menos operista foi regra que admitiu poucas excepções. Como exemplos, além dos
aduzidos, sejam os fragmentos dum *_Artaserse* cantados em 1759 na Madeira, ou a
companhia que, por. volta de 1814, ali permaneceu a representar óperas de estilo
*buffo*; ou as récitas de ópera italiana dirigidas por Martin Roeder entre 1874 e
1877, nos Açores (S. Miguel); ou, ainda, os espectáculos do mesmo género de que
ficou notícia realizados em 1867 em Macau (234).
_teatro da _rua dos _condes.
_salão do _conservatório.
_d. _joão __vi.
_carlos _seixas.
_joão _domingos _bontempo.
_marcos _portugal.
_o barítono _francisco de _andrade.
_alfredo _keil.
_guilhermina _suggia.
_josé _viana da _mota.
_luís de _freitas _branco.
_guilhermina _suggia tocando violoncelo com _josé _viana da _mota ao piano.
_joão de _freitas _branco.
_tomás _alcaide, o mais notabilizado tenor português, durante um recital em
_dezembro de 1963, em que foi acompanhado ao piano pelo autor. _a "virar a página"
vê-se _maria _amélia de _freitas _branco, a quem esta "história" é dedicada.
Teoria musical
Dentro de todo o longo período a que este capítulo se refere escreveram-se obras de
teoria musical de autoria portuguesa, mas nenhuma de projecção europeia. Além da já
citada *_Escuela*, de António de Abreu, não a única obra didáctica sobre a execução
de obras de corda dedilhada (António da Silva Leite, por exemplo, elaborou um
*_Estudo da guitarra em que se expõe :, o modo mais fácil para aprender este
instrumento* -- Porto, 1796), trabalho que não é propriamente teórico; no sentido
de propor novos princípios fundamentais e basear neles toda uma teoria coerente,
podem mencionar-se a *_Arte mínima, que com semibreve prolação trata em tempo breve
os modos da maxima ç longa ciência da música*, do _p.e Manuel Nunes da Silva, a
*_Nova instrução ou teórica prática da música rítmica, com a qual se forma e ordena
sobre os mais sólidos fundamentos um novo método, e verdadeiro sistema para
constituir um inteligente solfista e destríssimo cantor*, etc., de Francisco Inácio
Solano, publicada em 1764 (Solano foi *autor* de outros trabalhos que, como este,
conheceram grande aceitação, mas depois perderam qualquer actualidade), o *_Método
de música* (Coimbra, 1806), de José Maurício, o *_Compêndio de música teórica e
prática*, etc. (Porto, 1806), do beneditino vimaranense Varela (Fr. Domingos de S.
José), e os *_Princípios de música ou exposição metódica das doutrinas da sua
composição e execução*, obra publicada pela Academia das Ciências, do setubalense
Rodrigo Ferreira da Costa (1776-1825).
Manuel Nunes da Silva nasceu em Lisboa, provavelmente no terceiro quartel do século
XVII e com certeza antes de 1667. A sua *_Arte mínima* foi editada pela primeira
vez em 1685. A duradoira utilidade da obra é comprovada pelo facto de ter tornado a
ser dada à estampa em 1704 e em 1725. No prefácio, Nunes da Silva menciona a *_Arte
da música* (1626) de António Fernandes como o único tratado impresso então
disponível, sobre a mesma matéria, diminuindo-lhe, no entanto, a utilidade por ser
difícil de mais para principiantes. É talvez legítimo concluir que o nível da
formação técnica dos músicos portugueses descera entretanto ou, pelo menos, que se
dera uma evolução na maneira de expor a teoria musical que tornara pouco acessível
a dos mestres de outros tempos. De qualquer modo, parece de admitir que a falta de
obras impressas fosse mais um reflexo da crise que o país sofreu no período de luta
pela restauração e consolidação da independência nacional.
Dos autores mencionados, Francisco Inácio Solano (c. 1720-1800) foi o que ficou com
maior reputação. A sua actividade de cantor e organista pode ter contribuído para
que o pendor teórico o não afastasse mais da realidade prática. Na *_Nova
instrução*, aquilo que Solano entende por "novo método" diz respeito ao solfejo
pelo velho sistema das mutanças. Não foi total invenção sua, na medida em que se
baseou em ensinamentos recebidos dum padre italiano conhecido em Portugal por João
Jorge, seu mestre na escola de música de Santa Catarina de Ribamar. De qualquer
modo, o método não pode dizer-se nem luminosamente simples nem propriamente moderno
para a época, uma vez que, nos centros mais avançados da Europa, o velho sistema
das mutanças estava a ser abandonado. A *_Nova instrução* tem um aditamento em que
Solano se ocupa resumidamente da notação usada até princípios do século XVIII
apoiando-se na *_Arte mínima*, de Nunes da Silva.
Em 1779, apareceu impresso o *_Novo tratado da música métrica e rítmica, 0 qual
ensina a acompanhar no cravo, órgão, ou outro qualquer instrumento, em que se
possam regular todas as espécies, de que se compõe a harmonia da mesma música*. :,
À sua maneira enfática, Solano realça ainda que na obra se demonstra "este assunto,
prática e teoricamente", e que também se tratam "algumas coisas parciais do
Contraponto e da Composição." O principal interesse deste tratado reside naquilo
que refle te o desenvolvimento da concepção harmónica do discurso musical -- tão
própria do estilo barroco --, inclusive no que respeita à arte da fuga. Segundo
Ernesto Vieira, Solano seguiu por vezes muito de perto *_L'armonéco pratico al
cimbalo*, de Francesco Gasparini (1668-1727). Esta obra aparecera em Veneza em
1708, e a sua larga aceitação, como o mais apreciado livro italiano sobre o
acompanhamento harmónico, estendeu-se até ao princípio do século XIX. A sua sexta
edição é de 1802.
Deve ainda mencionar-se uma outra obra de Solano, impressa em 1790, de título não
menos pomposo e auto-elogiativo: *_Exame instrutivo sobre a música multiforme,
métrica e rítmica, no qual se pergunta e dá resposta de muitas coisas interessantes
para o solfejo, contraponto e composição; seus termos privativos, regras e
preceitos, segundo a melhor prática, e verdadeira teórica*. A favor do seu mérito
depõe o ter sido traduzido em castelhano por um mestre do colégio real de meninos
cantores de Madrid, versão que aí saiu impressa em 1818.
O *_Método de música* de José Maurício apresenta-se-nos digno de atenção a vários
títulos. Por debaixo do nome do autor, está a informação importante de que ele é
"lente proprietário da cadeira de Música da Universidade, mestre da real Capela da
mesma e mestre da Capela da Catedral de Coimbra"; e de que o livro é "destinado
para as lições da aula da dita cadeira". Assim, a obra fornece-nos indicações
preciosas sobre o que no princípio do século XIX se esperava que um estudante
universitário aprendesse na cadeira de Música.
Esse ensino fora reformado pouco antes, como logo decorre das palavras dirigidas ao
príncipe regente D. João: "Senhor. A graça que Vossa Alteza Real foi Servido
fazerme de me nomear Professor e Lente Proprietário da Cadeira de Música da
Universidade
de Coimbra, que Vossa Alteza Real foi Servido reformar pela Sua Carta Régia de 18
de Março de 1802, oferecendo-a à Mocidade Portuguesa como uma parte essencial da
Educação pública, exige de mim um um tributo eterno de reconhecimento."
Depois, na introdução, José Maurício trata de explicar a orientação da reforma. Na
certeza de que "um ouvido de pau supõe um coração de pedra", observa que "se os
Filósofos modernos julgam que a Música é não somente útil, mas necessária, é porque
uma longa experiência tem mostrado que ela faz os homens sociáveis, civis, afáveis,
humanos, e os dispõe para todas as virtudes; inspira aos que a cultivam aquela
aptidão, confiança e desambaraço tão necessário nas funções públicas, restaura as
forças do espírito cansado pela aplicação às coisas sérias, principalmente ao
estudo das Ciências, ocupando aquelas horas chamadas de descanso ou recreação, que
muitas vezes correria risco de se empregarem na dissipação; de sorte que pode
dizer-se que os homens de Letras e todos aqueles que se destinam ao estudo das
Ciências têm necessidade da Música para prosseguirem nas suas fadigas com energia e
fruto". O autor assegura-nos que foi "debaixo deste :, ponto de vista e neste
espírito" que o príncipe regente reformou a antiga Aula de Música da Universidade e
o escolheu para lente.
É de notar que José Maurício pôs a tónica em benefícios de ordem sociocultural que
a boa música podia proporcionar a portugueses não músicos profissionais. É evidente
que os beneficiários do ensino universitário ministrado em Coimbra haviam de ser
muito poucos. O objectivo não era, nem podia ser, aquilo que hoje se entende pela
democratização da cultura musical. No entanto, estamos sem dúvida em face duma
atitude progressista, para a época.
O mestre dá a entender um grande interesse do corpo discente e justifica a decisão
de escrever o livro. "A avidez com que a Mocidade Portuguesa lançou mão do ensino
público desta Aula reformada, desde a sua abertura, que foi a 10 de Maio de 1802; o
extraordinário número de Ouvintes, para cujas lições não tem chegado o espaço de
hora e meia (que tinha parecido muito suficiente), pois quase sempre tem excedido o
de duas horas, e algumas vezes tem chegado a três, apesar da simplicidade e
brevidade do método; os grandes e inesperados progressos que se têm feito
constantemente; tudo isto são factos tão públicos que não precisam de provas e que
excedem tudo quanto racionavelmente se podia esperar. Eu mesmo o não esperava,
tendo a experiência que se pode adquirir em doze anos, em que ensinei Música na
Aula pública do Paço Episcopal de Coimbra. É por isso que me parecia que, ordenando
algumas teorias em pequenos manuscritos, que girassem de mão em mão, e reservando
outras para as repetir verbalmente na Aula, o que assim tenho feito até aqui,
poderia evitar (não por fugir ao trabalho) a composição de um livro. Mas acho-me
presentemente convencido do contrário; pois os ditos manuscritos, além de me serem
bastante incómodos, são talvez insuficientes ao grande número de Ouvintes, e o
tempo é mais necessário para as Lições de solfejar do que para repetir teorias, que
se podem ler em toda a sua extensão em um Livro Clássico. Eis aqui pois o Livro tal
e qual meu fraco talento foi capaz de produzir."
Pode causar hoje estranheza que, numa cadeira universitária de música, o solfejo
ocupasse tanto espaço. Na verdade, à luz do conceito do nosso tempo, o nível do
ensino era bem pouco universitário. Depois de definir a música como "Arte de
combinar os sons de um modo agradável ao ouvido", o autor comenta que, considerada
em todo este âmbito, ela exige não só "um perfeito conhecimento e exercício de
exprimir os caracteres, mas também a ciência das leis da Harmonia, do Contraponto"
e de tudo o mais que pode contribuir para uma perfeita composição. Mas José
Maurício não ambiciona ensinar tanta coisa aos seus numerosos discípulos. No seu
"pequeno volume", limita-se a tratar "da produção actual dos sons pela Voz Humana,
ou pelos Instrumentos, que se chama vulgarmente *_Solfa* e, mais propriamente,
*_Execução*". Reconhece que esta parte da música é "puramente mecânica e
operativa", supondo "a faculdade de entrar ou afinar os *_Intervalos*, de fixar as
*_Durações* no *_Tempo* e de dar aos *_Sons* o lugar prescrito no *_Tom*
[tonalidade]", sem exigir "rigorosamente mais do que o conhecimento dos caracteres
e a destreza de os exprimir". E remata o parágrafo afirmando ser só este o objecto
principal do livro. :,
No fim do seu discurso preliminar, José Maurício salienta que pôs na obra os frutos
da sua própria experiência e das suas reflexões, fazendo todo o possível para
"simplificar e ligar sistematicamente todas as teorias", juntando só as ideias que
lhe pareceram "as mais necessárias e relativas ao objectivo principal". E confirma
que eram admitidos na cadeira alunos que não sabiam praticamente nada de música:
"No capítulo último resumi a teoria de solfejar para maior facilidade de alguns
principiantes, desejando como membro da Sociedade, e como Músico, a utilidade
pública e o progresso de uma Arte que amei sempre apaixonadamente."
É curioso observar que a velha tradição de ligação da música à matemática ainda se
manifestava de algum modo, em Coimbra. Aliás, o autor lembra que a arte dos sons
"fazia uma parte essencial do estudo dos antigos sectários de Pitágoras". Era
matemático José Monteiro da Rocha, a quem José Maurício se refere como "Mestre dos
Sereníssimos Senhores Príncipe da Beira e Infantes", como "Sábio Português que a
Providência nos deu para honra das Letras e Glória da Nação" e como possuidor do
melhor gosto e dos mais profundos conhecimentos na música, tanto teórica como
prática. "Eu devo a este Homem raro um tributo de reconhecimento pelas muitas luzes
e instruções que ele teve a bondade de me comunicar no decurso de muitos anos."
Não era só Monteiro da Rocha. "Os Lentes actuais de Matemática da Universidade são,
pela maior parte, não somente bons conhecedores e amadores da música, mas também
muito peritos nesta Arte." A seguir a esta informação vem outra que, se não peca
demasiado por optimismo, leva a supor uma disseminação da cultura musical que,
infelizmente, não veio a dar aquela verdadeira descentralização que ainda hoje
ambicionamos: "Não é só na Corte e nas Cidades principais das Províncias que a
cultura desta Arte é quási geral; pode dizer-se que não há Vila, e ainda mesmo
Aldeia, em que não haja um tal ou qual Mestre de Música, ou ao menos um curioso ou
amador."
Antes de focar alguns brilhos musicais portugueses ao longo dos tempos, José
Maurício faz menção de ilustres personalidades estrangeiras, entre as quais
significativamente inclui "o cavalheiro Gluck" (*sic*), "M.r Rousseau, M.r
D'_Alembert" e "M.r Blainville". Quanto ao "apreço que em Portugal se tem feito
desta Arte", desde os primeiros séculos da monarquia, a aula de música da
universidade é apresentada como "um monumento o mais autêntico". Nem por isso deixa
a mesma aula de, "apesar do aumento das luzes, e da polícia deste século", poder
"parecer inútil ou estranha a alguns menos instruídos ou prevenidos." Então como
hoje, *mutatis mutandis*.
Deve ter sido principalmente para combater tal incompreensão que o autor lembra ser
a aula "tão antiga como a mesma Universidade", acrescentando pormenores que pouca
gente conhecia: "O Senhor Rei D. Dinis foi quem estabeleceu o primeiro Ordenado de
2$340 por ano para o Lente de Música. Este ordenado e outros que este Monarca
estabeleceu para os Lentes de Cânones, Leis etc. eram neste tempo tão
consideráveis, que eles foram capazes de atrair os Estrangeiros convidados para a
criação da Universidade. Bem se deixa ver que os nossos Instituidores antigos
estiveram sempre tão persuadidos da influência da Música sobre os costumes, que
eles a :, consideravam como uma parte essencial da Educação pública. Não podem ser
outras as razões da conservação desta Aula desde a sua criação até o presente, e do
aumento que em diversas épocas se tem feito ao seu primeiro Ordenado."
Infelizmente, houve muito de exagero nestas asserções. É muito duvidoso que, na
menor parte da sua existência, a cadeira de música da universidade tenha realmente
correspondido a algo de "essencial da Educação pública". E muito menos fora por via
sua que D. João IV se tornara "tão perito em Música, que até foi um excelente
Compositor do seu tempo". Ou que D. João V se mostrara "um grande conhecedor e
amador da Música, principalmente da Eclesiástica".
Os elogios da veia musical dos Braganças não ficam por aqui. "O Senhor Rei D. José
o I, este Monarca que a providência deu a Portugal para Restaurador das Ciências,
das Artes, do Comércio e da Agricultura, era peritíssimo nesta Arte: o seu ouvido
fino e gosto delicadíssimo excediam a tudo quanto se pode imaginar", etc. Isto,
para chegar ao príncipe regente, a cujo serviço José Maurício diz encontrar-se
"magnífica Orquestra, composta de Professores da primeira ordem", bem como uma
"excelente Capella dos melhores Cantores".
O parágrafo seguinte merece também atenção, na medida em que reflecte o facto de a
Igreja ter continuado a desempenhar um papel importante no ensino da música, de
maneira geograficamente descentralizada. "O Ex.mo Sr. Bispo Conde, segunda vez
Reformador Reitor da Universidade, cujo gosto e amor pelas Ciências e Artes será
sempre memorável, querendo prover de Músicos novos a Capela da sua Catedral, e pôla
no estado em que presentemente se acha, criou no seu Paço Episcopal uma Aula
pública de Música." É a mesma, já referida, que José Maurício regera durante uma
dúzia de anos. "Nela se habilitou não somente a maior parte dos Professores de que
hoje se compõe a dita Capela, mas também um grande número de outros, que se acham
empregados em diversas partes. Entre outros Ex.mos Srs. Bispos deste Reino, que
seguindo o exemplo do Ex.mo Sr. Bispo Conde, criaram Escolas de Música para o mesmo
fim, distinguiram-se notavelmente o Ex.mo Sr. Bispo da Guarda, falecido há poucos
anos, e o Ex.mo Sr. Bispo actual de Castelo Branco."
Alguns passos já transcritos indicam um interesse pelo progresso das ciências.
Falta ainda referir os mais significativos de uma evolução própria da época que,
mais tarde ou mais cedo, não podia deixar de se manifestar também entre músicos
portugueses. Foi provavelmente neste período -- ou seja, na transição do século
XVIII para o XIX -- que começou a manifestar-se uma atitude "científica" de base
experimental perante a música, atitude conducente ao positivismo que viria a ditar
leis cento e tal anos mais tarde.
Tornemos às palavras de José Maurício: "A ignorância e o modo de pensar de alguns
acreditados por sábios tem sido tão miserável que ainda não são passados muitos
anos havia quem reputasse a Física Experimental e a Química como Artes de fazer
peloticas; a História Natural como uma curiosidade vã; as Ciências matemáticas como
fúteis ou perigosas; e a Botânica e Agricultura como própria somente dos Abegões
que, incapazes de instrução, fazem mais caso de uma experiência tão cega como
ignorante, do :, que das teorias as mais bem fundadas." Como razão comenta José
Maurício que "se assim se pensava de todas estas Ciências, de cujas extensíssimas
utilidades o homem mais ignorante do vulgo não pode duvidar, como se pensaria das
belas Artes, que exigem génio, talentos, gosto e uma certa ordem de ideias?"
Num *_Discurso preliminar* em que a música é dita "filha da Natureza", "tão antiga
como o mesmo mundo", o autor escusa-se a fazer um resumo histórico. Tem especial
interesse saber qual a autoridade que ele invoca. "A história da Música acha-se
escrita em muitos lugares. O *_Dicionário das Ciências* e o de *_Música* de M.r
Rousseau apresentam ao Leitor uma narração circunstanciada dos progressos desta
Arte, que aqui se omite para não aumentar volume."
Depois de umas considerações sobre intérpretes e apreciações de ouvintes, José
Maurício critica os artistas em regime de *tournée* que, como vimos a propósito de
Lolli, tinham começado a ser moda umas dezenas de anos antes. "Há Músicos
atrevidos, que em duas ou três peças mostram toda a sua capacidade; de sorte que,
ouvidos uma vez até duas, não há mais que ouvir. A esta classe pertence uma grande
parte dos Músicos volantes, que giram de terra em terra, fazendo benefícios com
algumas pecas estudadas e repetidas milhares de vezes." E, com uma ironia cortante:
"Eles à primeira vista podem impor; mas se se demoram onde se vejam obrigados a
empregarem-se em outro género de Música, mostram logo a sua insuficiência." Também
aqui José Maurício pinta algo que ia desenvolver-se por mais de cem anos, até os
nossos dias. A sua crítica antecipa-se à que tantas vezes virá a ser formulada no
círculo da sociedade Sonata, em meados do século XX.
O objecto dos reparos passa a ser não só a interpretação mas também a composição. A
consciência de que muita coisa ia mal reflecte-se nesta interrogação: "Mas
porventura todos os que fazem Profissão da Música são verdadeiros Músicos, ou
sábios nesta Arte, e livres de paixões ou prejuízos?" Que diria o bom lente de
música da Universidade de Coimbra se conhecesse certos indivíduos que fazem hoje
"profissão da Música"?
É numa posição racionalista que José Maurício tenta abarcar a questão do ajuizar
musical. "Para formar pois um juízo conforme à razão, e à equidade sobre uma peca
de Música, parece que seria conveniente (depois de haver a ciência e qualidade
necessárias) atender principalmente a quatro coisas: à peça em si mesma, a quem a
executa, aos ouvintes e ao lugar em que se executa."
Ao desenvolvimento desta inteligente afirmação, a parte relativa à execução
interessa-nos especialmente, porque lança luz sobre aspectos importantes da
realidade musical portuguesa de então. "Uma grande parte dos que se destinam à
Profissão da Música por necessidade ou modo de vida [...] são indivíduos que,
devendo talvez aprender um ofício mecânico para subsistirem, se aplicam desde a sua
infância a esta Arte, sem outra educação ou princípios mais do que saber apenas ler
e escrever; e em chegando a executar sofrivelmente pelas notas um papel de Música,
dão por acabados os seus estudos, e se constituem Professores, reservando talvez
suprir a inabilidade, que lhes resta, com o apoio de um Protector poderoso, ou com
uma intriga manejada destramente, para quando se tratar de prover :, um lugar vago,
o que se costuma fazer quase sempre sem exame, nem público, nem particular, e menos
pelo merecimento do que pelas outras razões."
Ficamos depois a saber que muitos cantores interpretavam a maior parte das peças
estupidamente, sem que se lhes entendessem mais do que algumas sílabas truncadas,
principalmente se são latinas ou italianas.
"Mas como poderão eles exprimir bem os afectos de uma língua que não entendem, e
talvez não sabem pronunciar, e que muitas vezes está errada na escrita pela
ignorância dos Copistas? Eis aqui porque há também Músicos que, manejando algumas
notas gerais da Harmonia sobre um teclado, sem mais princípios nem estudos, se dão
por Compositores, metendo em Música palavras cuja significação talvez ignoram; como
se a Arte de compor Música vocal consistisse em acomodar a cada sílaba um ou mais
sons indiferentemente, com tanto que se observem certas regras. E que progresso se
pode esperar desta carta de Autores? Daqui nasce acharem-se os afectos mal
exprimidos ou trocados, e outros muitos disparates."
Muito de notar é também a alusão ao pender para o virtuosismo de velocidade pura.
Era uma das linhas de força da história da música europeia, de que já havia
expoentes notáveis. Porém, Paganini ainda estava longe da máxima celebridade,
enquanto Liszt e Chopin nem sequer tinham nascido.
A virtuosidade estava na que pode chamar-se a fase de Clemente, que hoje nos soa
quase infantil. Mas é claro que José Maurício não se refere a nenhum Clemente
quando acusa os defeitos de certos instrumentistas que, "sacrificando todos os seus
exercícios à destreza de uma execução rápida a fim de admirar ou aturdir os ou
ridos, despregam ou desconhecem inteiramente a parte expressiva, que toca o
coração".
Tornando à incultura de muitos músicos, com novo apoio no autor do *_Emile*, José
Maurício volta a adiantar-se na formulação dum dos principais problemas a cuja
solução iam visar os reformadores do futuro Conservatório, mais de cento e dez anos
depois. "M.r Rousseau diz, no Prefácio do seu *_Dicionário de Música*, que os
Músicos lêem pouco; e contudo ele conhece poucas Artes em que a leitura e a
reflexão sejam mais necessárias. Com efeito, se o verdadeiro espírito da Música não
se limita somente a lisonjear o ouvido, mas principalmente a imitar a Natureza,
exprimir as paixões e mover o coração, que reflexões, que estudos e que
conhecimentos não são necessários a todos os Músicos, não somente aos Compositores,
mas ainda aos símplices Executores?"
Entre os obstáculos ao bom desenvolvimento do ensino da música é ainda apontada,
como "não pouco considerável", a falta de método. E isto não só em Portugal, porque
em todos os países onde a música se cultivava. Por toda a parte "a mesma falta de
método, ainda que em alguns acompanhada talvez de meios capazes de a poder vencer".
A explicação subsequente acentua a atitude anti-rotineira. Todo esse mal provinha
"da pouca filosofia com que os músicos olham para as teorias da sua Arte". E não
por desrespeito dos ensinamentos que receberam, senão que por sua lamentável
observância. Esses músicos estavam persuadidos de que a perfeição da arte dos sons
consistia "no antigo caminho que lhes mostraram seus Mestres, os quais pensavam o
mesmo". :,
É claro que são distinguidos "os filósofos franceses", mas não sem que se lhes
juntem "outros, de diferentes Nações", que também "têm trabalhado há muito tempo,
não sem fruto, para remediar este obstáculo". Mas o objectivo não era complicar a
matéria de ensino. Muito pelo contrário, esses filósofos simplificaram as teorias e
reduziram-nas "a sistemas pouco conhecidos pela maior parte dos Músicos". O mesmo
pretendeu fazer o autor do livro.
As simplificações dos filósofos estrangeiros são um pouco explicitadas. E são ainda
as velhas mutanças que servem de principal exemplo, não, evidentemente, no sentido
de as reabilitar, mas sim no de acabar para sempre com elas. Vem, pois, a
informação de que "os Franceses" inventaram "a sétima sílaba *_Si*, para de uma vez
desterrarem as *_Mutanças*" e de que "diminuíram o número de *_Deduções*". Outros
foram mais longe e "aboliram de todo a nomenclatura *dos Signos* e com ela todas as
*_Deduções* e *_Propriedades*, nomeando os signos unicamente pelas Letras A, B, C,
D, E, F, G e aplicando a cada um uma *_Sílaba* _ut a C, Ré a D, Mi a E, Fá a F, Sol
a G, Lá a A, Si a B. Esta *_Seita* dividiu-se em dois sistemas um de *_solfejar ao
Natural* e outro de *_Solfejar por Transposição*."
Embora o "Solfejar ao Natural" fosse o sistema "mais comum em França", José
Maurício, consciente de que "ele não deixa de ser defeituoso", prefere o "Solfejar
por Transposição", no qual se muda, ou transporta, "a *_Escala das sílabas*, Ut,
Ré, Mi, Fá, Sol, Lá, Si, de uns *_Signos* para outros, conforme o número dos
Acidentes assinados na *_Clave*, ou ocorrentes no meio da peça, a fim de que
conservem sempre, ou quanto for possível, a mesma relação de *_Intervalos*". No
nosso tempo, muitas pessoas iniciadas em música acharão este jogo de notas e nomes
(ou sílabas) tudo menos estranho, por terem aprendido a aplicar praticamente o
mesmo princípio de transposição, adoptado, sem diferenças essenciais, por alguns
dos modernos métodos de educação musical.
Diferenças introduziu-as já o lente proprietário da cadeira de música da
universidade, baseado, como vimos, na sua própria experiência pedagógica e tendo em
vista uma simplificação ainda maior do que a já conseguida do lado de lá dos
Pirenéus.
No contexto do presente livro, os capítulos e artigos em que se divide o *_Método
de música* propriamente dito têm menos cabimento do que a sua introdução e discurso
preliminar, com as significativas tomadas de posição que acabamos de ver. Na
verdade, para o musicófilo genérico de hoje, essas definições e regras não oferecem
interesse de maior, apenas merecendo atenção alguns pormenores elucidativos de
práticas da época.
O instrumento musical padrão é ainda o cravo. Referindo-se às classes de alturas em
que se dividiam os signos, José Maurício explica que é para se conformar com o
teclado do cravo que se limita a falar de seis.
É curioso que, a seguir à designação das quatro vozes usadas na música -- "*_Basso,
Tenor, Alto* ou *_Contralto, Soprano* ou *_Tiple*" --, se leia que "os Antigos
aumentavam o catálogo destas vozes, metendo entre *_Basso* e *_Tenor* uma voz
intermediária, a que chamavam *_Barítono*, e entre *_Alto* e *_Soprano* outra voz,
a que chamavam *_Meio Soprano*". Curioso, porque ambos os nomes dessas vozes
intermédias vieram a tornar-se correntes, até hoje. :,
Apesar do seu desígnio de simplificação e de, em coerência também com o seu tempo,
aceitar como o mais prático o sistema da afinação igual, José Maurício ainda queria
que os seus alunos universitários distinguissem, teoricamente, os dois meios-tons
dos tratados medievos. Com efeito, considera não ser "inútil anotar aqui que um
*_Tom* é composto de 9 *comas*, ou 9 partes iguais", esclarecendo logo que o
meiotom maior "consta de 5 *comas* e o menor de 4". Que esta diferença era (e
continua
hoje a ser) mais teórica do que prática é o que dizem artigos subsequentes, em
especial os que voltam ao teclado do cravo. Neste, vê-se que "entre todas as teclas
*naturais*, ou brancas, que fazem entre si um Tom, há uma tecla *acidental*, ou
preta, que divide este Tom em dois Demitons" (meios-tons) "e serve de Sustenido à
branca inferior e de Bemol à superior. Por isto, e por outras razões que se passam
em silêncio, é que todos os Demitons se reputam praticamente iguais".
O *_Método* dá a entender a fundamental adopção do solfejo cantado. "Ainda que o
solfejar seja um meio, e não fim, contudo, qualquer pessoa que estiver destra em
entoar os Intervalos regularmente e sem alteração, pouco trabalho terá em entoá-los
alterados." E note-se que, se não fosse assim, outro passo do livro não faria
sentido, pelo menos em relação aos alunos que pretendessem ser não cantores mas
instrumentistas: "Quando uma pessoa aprende a solfejar, é ordinariamente pela Clave
daquela voz que lhe é própria; v. g. se tem voz de Tiple, aprende pela Clave de C
na 1.a linha." De onde parece poder concluir-se que a antimusical praga do solfejo
"rezado", que mais tarde alastrou no ensino musical português e que, bem dentro do
nosso século, ainda foi preciso combater com unhas e dentes, não passava no tempo
de sua alteza real o príncipe regente D. João.
Finalmente, no que respeita à prática da execução ou interpretação, José Maurício é
muito mais lacónico do que seria de desejar. Alude, por exemplo, a alguma liberdade
permitida na adopção de andamento-base e às diferenciações dinâmicas, incluindo o
"crescendo" e o "diminuindo". É porém omisso em matéria de mudanças agógicas. Seria
de especial interesse qualquer esclarecimento sobre o "rubato".
Há no entanto referências a andamentos que não deixam de indicar, ainda que
vagamente, preceitos interpretativos. Numa delas aparece o adjectivo *galante*,
próprio dum estilo bem representativo do século anterior, estilo que associamos a
um Haydn, um Mozart, um Sousa Carvalho: "*_Grazioso* indica um *_Movimento* como
*_Andante* ou *_Andantino* e uma execução alegre e galante." Ainda em matéria de
andamento, já vimos que José Maurício se insurgiu contra os excessos de velocidade,
que deviam ser bem modestos em comparação com os que se praticam hoje.
Ficamos ainda cientes de que também em Portugal a cadência solística mais ou menos
improvisada continuava em moda, mas que poucos amadores se arriscavam a tanto: "A
*_Cadência de suspensão* é muitas vezes assinada com *_Pojaturas ligadas*, ou
*_Portamentos*; o que o Autor da peça faz, ou para subsídio daqueles que têm alguma
dificuldade em produzir uma fantasia sua, como a maior parte dos curiosos, ou para
dar aos Professores uma ideia do estilo em que ele quer que esta Cadência seja
feita; deixando contudo a fantasia à vontade de quem executa." :,
Vale a pena trazer ainda aqui umas considerações sobre õ trilo ("trinado"), não
tanto pelo elogio que lhe é feito como para nos darmos conta de que, mesmo num
período em que se cometeram os maiores abusos em matéria de ornamentação
"interpretativa", havia em Portugal quem defendesse o rigor. Depois de dizer o
trinado um dos melhores ornamentos da execução, José Maurício explica que ele não
se emprega somente na cadência final. E acrescenta: "A aplicação que dele se faz é
assaz extensa, como se vê ao primeiro golpe de vista que se lança sobre uma peça de
Música, principalmente instrumental. É claro que o *_Trinado* deve ser executado
exactamente assim como tudo o mais que se acha escrito; mas ele pode ser algumas
vezes aplicado arbitrariamente: é porém necessário ter um grande fundo de
discernimento e um gosto muito seguro para não abusar da liberdade de o empregar."
A explicitação da música instrumental não deve ter querido dizer que, na prática da
execução, os trilos fossem menos frequentes na vocal. Por toda a parte os cantores
daquele tempo abusaram das ornamentações, metendo-as a torto e a direito onde os
compositores as não tinham escrito. A recomendação do "fundo de discernimento"
justificava-se ainda mais relativamente aos garganteadores do que aos dedilhadores
de instrumentos.
O princípio da execução exacta, que hoje nos soa bem actual, pode causar alguma
estranheza na pena de alguém que escrevia tão perto do romantismo. Não esqueçamos
porém que José Maurício se referiu à "parte expressiva" como a "que toca o
coração". Nem a sua observação de que, se todos os intérpretes executassem "com
igual agilidade e no mesmo gosto, perder-se-ia, por falta de diversidade, a maior
parte do prazer da Música", admitindo que seguir "cada um o seu próprio sentimento"
fosse "talvez mais seguro". No que aliás o tratadista se manteve fiel a uma velha
tradição da execução musical peninsular.
Se, não só nestes aspectos interpretativos, a cultura musical portuguesa tivesse
conhecido um considerável desenvolvimento, conforme à orientação do lente de
Coimbra, ter-se-iam tornado muito prováveis reflexos artísticos importantes, nos
domínios da criação, da reprodução e da recepção, com a ajuda do efeito de
*feedback* proveniente de auditórios burgueses. Mas os tempos que estavam para vir
eram de nova, longa e profunda crise nacional. A partir do ano seguinte ao da
publicação do *_Método*, e até 1810, foram as invasões francesas. Em 1808 a corte
transplantou-se para o Brasil. Dois anos antes, começara o Bloqueio continental. Em
1822, independência do Brasil.
Entretanto deram-se acontecimentos que poderiam ter aquelas boas consequências
culturais (não deixando de ter algumas). Em 1820 foi a revolução do Porto, em 1822
a primeira Constituição. Mas logo veio a reacção absolutista e, escassos dois anos
volvidos sobre a outorga da Carta Constitucional, D. Miguel restaurou o
absolutismo. O período da legislação de Mouzinho da Silveira representa novos
alentos para as forças progressistas. Mas não tarda a guerra civil, que vai de 1832
a 1834. A revolução de Setembro dá-se em 1836.
Estes factos pertencem já ao capítulo seguinte. Não convém focar já acontecimentos
musicais importantes do segundo quartel do século. Por ora, :, acrescente-se apenas
que, em 1846 e no ano imediato, se deram a revolta da Maria da Fonte e a guerra
civil da Patuleia. D. Maria II pediu apoio estrangeiro e o país foi penetrado por
tropa espanhola e francesa ao mesmo tempo que a marinha inglesa tomava conta de
pontos estratégicos da costa. O golpe de Estado veio a terminar na convenção de
Gramido, em 1847.
Semelhante instabilidade, propiciando sucessivas agitações conflituosas que a não
superavam definitivamente, num sentido ou noutro, não podiam favorecer qualquer
processo contínuo de melhoria do ensino da música, sector que as efémeras
governações, mormente as mais reaccionárias, haviam de considerar de mínima
importância. E é precisamente junto da mesma cadeira de música da universidade de
Coimbra, regida com tanta iluminação por José Maurício no principio do século, que
vamos encontrar confirmação dessa falta de continuidade progressista.
Foi em 1849 que apareceram impressos os *_Princípios elementares da música,
destinados para as lições da aula da cadeira de música da Universidade de Coimbra*,
de António Florêncio Sarmento que, entre outras distinções, averbava a de ser
professor da mesma cadeira, desde cerca de dez anos antes. Talvez para desde logo
se mostrar bem estribado e actualizado, o autor consagra a página à esquerda da da
dedicatória a uma transcrição, em francês, de Fétis, cuja importante *_Biographie
universelle des musiciens et bibliographie générale de la musique* acabara de se
publicar cinco anos antes. Essa transcrição adverte que cada arte tem os seus
princípios e que é preciso estudá-los para que o prazer do ouvinte se torne maior,
ao mesmo tempo que o seu gosto se for formando. E que a música tem princípios mais
complicados do que a pintura, pelo que é, simultaneamente, uma arte e uma ciência.
Dir-se-ia um aviso ao leitor-estudante de que ia topar, nas páginas subsequentes do
livro, com osso, dos mais difíceis de roer, só vulneráveis a dentes tão penetrantes
de matéria quer artística quer científica como os de um d'_Alembert, ou pouco
menos. Mas não. O que segue é ainda muito mais elementar e mais simplificado do que
o recheio do *_Método* de José Maurício.
_é pena que Sarmento não explique quais eram as "circunstâncias especiais" que
acompanhavam os alunos da aula de música, exigindo que o estudo se lhes facilitasse
"por um método claro e conciso". Maneira delicada de dar a entender o analfabetismo
musical da maior parte dos estudantes? De qualquer modo, o autor -- que parece
agradado com a precisão do metrónomo de Mälzel, "máquina com que hoje se regulam os
andamentos com toda a exactidão" -- podia ter conciliado a elementaridade da
matéria com o rigor do seu ensino. Poucos exemplos bastam a demonstrar que não o
conseguiu, apesar da advertência de Fétis.
"Escala *enharmónica* é aquela em que duas *notas* parecem ser um intervalo, mas na
realidade e praticamente são o mesmo *som*; e se alguma diferença há, esta é tão
pouco sensível que só se pode achar em um instrumento cujos *sons* não sejam
fixos." Os alunos não devem ter ficado mais elucidados acerca de certos "termos que
se ajuntam ao *movimento*": "*_Cantabile*, com gosto, com graça. *_Tempo di
minuetto*, tempo de dança. *_Tempo di polka*, movimento animado. *_Tempo di
bolero*, movimento de bolero. *_Con moto*, com calor"! Que terá pensado Fétis de
semelhante "ciência", se acaso :, teve conhecimento dela? Saiu anos depois em
Portugal uma versão dum seu dicionário de termos musicais. Vejamos, para
comparação, o que aí se diz sobre *cantabile* e *bolero*: "*_Cantabile* -Adjectivo
Italiano que se emprega substantivamente e designa em geral toda a
melodia própria para ser facilmente executada pela voz humana. O que sobretudo o
caracteriza é um canto claro, simples, que está em oposição com o canto irregular,
duro e pouco natural. O seu Andamento é vagaroso." -- "*_Bolero* -- Ária Espanhola
que serve ao mesmo tempo para cantar e dançar. As mais das vezes, esta ária é um
tom menor e o seu ritmo em compasso ternário. Acompanha-se com violão. Em Espanha,
há uma multidão de *_Boleros*" (*_Dicionário das palavras que habitualmente se
adoptam em música*. Escrito em francês por F. J. Fétis, traduzido e acrescentado
por José Ernesto d'_Almeida, Porto 1858).
Como José Maurício, António Sarmento considera preferível o solfejo por
transposição. Mas as regras das cantorias são reduzidas ao mínimo dos mínimos.
Quanto aos modos, por igual se mantêm o simplismo e a imprecisão: "*_Modo* é a
maneira por que se estabelecem os *tons*. São *maiores* ou *menores. Modo maior* é
quando da *tónica* ou 1.a à 3.a há o *intervalo* de dois *tons*, e da *tónica* à
6.a o *intervalo* de quatro *tons* e um *semitom. Modo menor* é quando da *tónica*
ou 1.a à 3.a há o *intervalo* de um *tom* e de um *semitom*." A este respeito, os
alunos pouquíssimo mais ficavam a saber. É verdade que toda a música europeia tinha
evoluído para a bipolarização. Mesmo na esfera da Igreja, os aprendizes da arte dos
sons já não tinham de aprender as muito mais complexas teoria e prática dos modos
que, até o século XVII, todo o verdadeiro músico tinha de dominar, além de muitas
outras coisas. Mas também neste capítulo se exigia demasiado pouco dos alunos da
Universidade de Coimbra.
Poderá objectar-se que os *_Princípios elementares* eram tão-só um compêndio-base,
sobre o qual o mestre ministrava um ensino oral de nível superior. Não é porém isso
o que indica a informação de que eles serviam "para a melhor inteligência da sua
teoria, reservando para a aula alguns exercícios e perguntas, que verbalmente farei
em todas as lições". Assim não parece que a total falta, no texto, de considerações
de ordem estética e histórica, tendentes a elevar a mentalidade dos alunos e a
formar-lhes o gosto (de que encontrámos estimáveis exemplos em José Maurício) fosse
de algum modo preenchida por aquilo que o professor dizia na aula.
_é certo que a disciplina universitária não constituía o único meio de aprender
música em Portugal. Longe disso, felizmente. Admite-se até que uma parte
considerável dos estudantes não pretendesse vir a exercer profissão de músico,
limitando-se a procurar um complemento artístico para a sua formação universitária
de fundo. A Igreja continuava a propiciar muito ensino de música espalhado pelo
país, ainda que sem o brilho dos grandes focos de outros tempos. Mas o
acontecimento histórico recente, nos domínios da pedagogia musical, fora a fundação
do Conservatório, da qual nos ocuparemos no capítulo seguinte. No que respeita
ainda ao ensino de música na universidade, parece lícito concluir que, com António
Florêncio Sarmento, estava mais de meio caminho andado para o seu total apagamento.
Como, de facto, veio a suceder. :,
Falta dizer mais alguma coisa sobre dois dos autores mencionados: Fr. Domingos de
S. José, mais conhecido por Varela, e Rodrigo Ferreira da Costa.
Já se deu a entender que o compêndio de Varela tem um título mais longo do que o
indicado. Na verdade, ele fala duma "breve instrução para tirar música", de "lições
de acompanhamentos em órgão, cravo, guitarra ou qualquer outro instrumento em que
se pode obter regular harmonia"; de "medidas para regular os braços das violas,
guitarra, etc. e para a canaria do órgão"; dos "melhores métodos de afinar o órgão,
cravo, etc."; do "modo de tirar os sons harmónicos ou flautados" e de "várias e
novas experiências interessantes ao *_Contraponto, Composição* e à *_Física*". Tudo
isto, na edição de 1806, à qual, vinte anos depois o autor juntou um suplemento
sobre nomenclatura e o modo de construir instrumentos curiosos: "Nova harmónica
tocada com arco de rabeca, harmónicas de metal ou pau tocadas com arco de rabeca,
harmónicas de campainhas de vidro, ou de metal com arcos de rabeca movidos por
teclado."
O conteúdo do *_Compêndio* oferece bastantes motivos de interesse Por exemplo, em
matéria de dedilhação de instrumentos de tecla, ele reflecte, ao mesmo tempo, o
atraso do ensino e o não conservantismo do autor: "Alguns Mestres proíbem tocar
*_Tecla* acidental com o dedo polegar, exceptuando em 8.as; proíbem executar com o
dedo mínimo por ter pouca força; ora o dedo anelar é de sua natureza o mais
estúpido e, por consequência, de cinco dedos só restam dois ou três para executar a
*_Música*, se seguirmos semelhantes Mestres."
Varela não hesita em recomendar a infracção de tais regras, que hoje fazem rir
qualquer principiante. "Do bom jogo dos dedos nasce toda a facilidade que se pode
obter, ainda na mais dificultosa execução; portanto em qualquer passo dificultoso
se deve estudar, combinando muitas vezes os dedos até que se ache uma combinação
mais fácil, ainda que vá o dedo polegar à *_Tecla* acidental e se cometam erros na
opinião dos Mestres vulgares."
O capítulo do acompanhamento, centrado, como seria de esperar, no baixo cifrado, é
muito resumido. Depreende-se que era matéria de aprender muito mais pela prática do
que por preceitos teóricos. Aliás, é o manter-se junto da prática que torna Fr.
Domingos de S. José um caso de singular interesse na musicografia pedagógica
portuguesa. Isto, mormente no que respeita a concepção, construção e afinação de
instrumentos que ele mesmo sabia executar. E pena desconhecermos hoje o piano que
ele disse ter inventado. Como construtor de órgãos, os seus mais importantes
trabalhos entre muitos, destinaram-se aos mosteiros de S. Bento, no Porto, e dos
Paulistas, em Lisboa.
Varela abriu-se às novidades de teor musical que, desde as últimas décadas do
século anterior, vinham do estrangeiro, especialmente de França. Para epígrafe do
*_Compêndio* escolheu um passo dos *_éléments de musique théorique et practique,
suivant des principes de M. Rameau*, de D'_Alembert (1752). No texto do livro há
citações da *_Encyclopédie méthodique*, que a livraria Panckoucke lançara a partir
de 1781. :,
Quanto a Ferreira da Costa, bacharel em leis e matemática que foi deputado às
Cortes Constituintes e professor de matemática da Academia Real da Marinha, era
pessoa de elevada mentalidade, senhor de uma cultura vasta e de um género raro em
musicógrafos portugueses.
Os seus mencionados *_Princípios de música ou exposição metódica das doutrinas da
sua composição e execução* foram publicados, o primeiro tomo em 1820 e o segundo em
1824, pela Academia Real das Ciências, da qual era sócio.
Conhecidos os parâmetros socioculturais de Ferreira da Costa, e depois do que vimos
em obras anteriores, também de autoria portuguesa e editadas em Portugal, não
admira que os *_Princípios* se apoiem em conhecimentos, interpretações e teorias
então modernas, recebidas mormente da França, mesmo quando não se trate de autores
franceses. Logo na primeira página do prólogo, aparecem os nomes de Euler,
d'_Alembert, Rousseau, Iriarte, sem discriminar por enquanto "muitos outros
engenhos vastos e profundos cujas obras preciosas recreiam o mundo erudito".
Também era de esperar que Ferreira da Costa tenha considerado "os escritos do
Solano incompreensíveis até aos Professores por indigestos, confusos e enunciados
na linguagem da rançosa solfa das mutanças; e os mais, que há em português,
expressos na mesma linguagem; ou incompleto; ou sem método, razões, nem dedução". É
evidente que se encontram aqui implicitamente compreendidos os trabalhos de José
Maurício e de Varela.
A maior admiração de Ferreira da Costa vai parar para os enciclopedistas, com
relevo para vários celebradores da já referida *_Encyclopédie méthodique*. Esta
adesão tem a ver com a tomada de posição contra o princípio do baixo fundamental de
Rameau, um dos autores mais vezes mencionados mas quase sempre para o dizer em
erro.
No princípio do segundo tomo, o autor alegra-se por ter finalmente aparecido "o
complemento da Parte da *_Música* da Enciclopédia metódica", parte que adverte não
ser "tratado elementar". Nem por isso deixará o "músico de espírito filosófico" de
achar "princípios fecundíssimos, e intuitos originais, que possam ampliar o seu
saber, aguçar o engenho e dirigir os voos da atrevida fantasia". Pouco adiante: "E
ousamos prever que a Enciclopédia será o tesouro dos estudiosos da Ciência
harmónica e fixará os destinos da Arte para os séculos vindouros." Aqui a escolha
do século como unidade de tempo foi demasiado imprudente para um homem de ciência.
Escusado seria dizer que Ferreira da Costa quer científico um dos seus dois
principais ângulos de visão. "Como Ciência", a música "supõe cadeia de princípios e
preceitos travados entre si, e todos conducentes para um fim". Mas há também o
outro angulo. "Estudar Música é analisar os sons, e o coração." Se Ferreira da
Costa vivesse hoje, haviam de fasciná-lo as primeiras revelações da psicofísica da
música que estamos tendo, sem falar do que poderia ser para ele a nova luz há mais
tempo lançada pela psicanálise no "coração" de compositores, intérpretes e simples
melómanos.
O livro propriamente dito começa assim: "Os primeiros princípios das Ciências
físicas, estes factos capitais, donde extraímos pelo raciocínio a cadeia das
verdades que constituem o corpo das mesmas Ciências, mais ou menos amplo segundo os
progressos que alcançam de acasos e esforços do :, entendimento, são ministrados
pela experiência e demonstrados pelo testemunho dos sentidos." No parágrafo
seguinte: "recorrer aos sentidos, a fim de lançar os fundamentos da Ciência em
experiências radicais, é processo inicial, de que não podia eximir-se *a Música*,
cuja prática entende imediatamente com a sensibilidade física por meio do ouvido."
O autor desengana os que porventura estivessem na expectativa de um "tratado
apodíctico", como se fosse obra sobre geometria, com as suas conclusões todas
derivadas de "axiomas, definições e hipóteses"; mas também aqueles que não
quisessem mais que uma "colecção de regras soltas e sem ordem, qual se encontra nos
rudimentos que temos desta Arte". O que ele promete é "um tratado resumido nos
princípios e metódico na dedução". E esclarece: "Embora consultemos várias vezes as
decisões do ouvido e tomemos resultados da experiência por base de raciocínios,
ver-se-á contudo que, nos ramos da ciência menos sujeitos aos domínios do gosto do
que aos da razão, me esmerei em sustentar o método geométrico, quanto era possível:
1.o tirando da observação os princípios que me pareceram indispensáveis para
arreigar as teorias; 2.o chamando de outras Ciências os que julguei necessários
para demonstração e esclarecimentos; 3.o deduzindo ordenadamente de uns e outros as
consequências e doutrinas que produzo."
Ferreira da Costa conta entre os "princípios de experiência" os "limites dos
andamentos, a infinidade dos sons, o estabelecimento do semítono por unidades de
intervalos afinados, o prazer da série diatónica, a quase identidade das oitavas, a
composição do som, a série dos harmónicos, etc.". Os "princípios estranhos" vai
colhê-los na geometria, álgebra e acústica, introduzindo-os "em lemas sem
demonstração, pois se acham nos Elementos destas Ciências". Assim tem por firmados
os "preceitos invariáveis da arte". Reconhece que "ficam menos sólidas as leis do
gosto", que na música "tem grande império". Mas está em que esses preceitos não
deixarão de se achar "acompanhados de razões suficientes para autorizarem a sua
prática".
Como não podia deixar de ser, muitos dos dados objectivos em que Ferreira da Costa
se apoia estão errados, à luz de conhecimentos actuais. Por exemplo, em relação ao
campo de audibilidade humana, em função da frequência vibratória: "Procurando os
Geómetras fixar os *limites dos sons*, acharam que o mais grave apreciável faz por
segundo 30 vibrações, e o mais agudo 7552." Hoje, em resultado de medições muito
mais precisas, o espaço da audibilidade humana, no que respeita à dimensão altura,
é colocado pelos cientistas entre, números redondos, 20 e 16.000 hz (235).
Erro de outra ordem e em que, por sinal, continuam a incorrer pessoas de
considerável formação matemática, é o que Ferreira da Costa comete quando,
referindo-se a razões de números pequenos (1/2, 2/3, 3/4 etc., ainda em relação a
frequências) depois de afirmar acertadamente que "as conclusões deduzidas da razão
geométrica destes números não podem ter lugar no sistema do *temperamento* [igual]
pelo qual afinamos os instrumentos", porque nele os números das oscilações dos sons
da escala diatónica e da cromática "deixam de ter com a tónica as razões
precedentes", acentua que as razões temperadas "até são irracionais". Como bacharel
em matemática, Ferreira da Costa devia ter-se dado conta da incorrecção desta
maneira de :, dizer. A menos que não soubesse que, em qualquer vizinhança de
qualquer som de frequência definida por um número racional, há infinitos sons de
frequências irracionais, cuja altura o ouvido humano é incapaz de distinguir da do
primeiro. Em rigor, nem os mais precisos meios de medição actual permitem afirmar
que a frequência de qualquer som concreto está em razão racional ou irracional com
a de outro. O mais que pode afirmar-se é a proximidade de determinada razão, abaixo
do limiar diferencial das alturas.
Note-se que Ferreira da Costa se mostra consciente da condicionante influência do
aparelho auditivo e do sistema nervoso central. "Como, mudada a fábrica dos
sentidos, se alteram as relações dos objectos connosco e transtorna o efeito da sua
impressão, segue-se que as sensações não podem ser avaliadas por princípio algum
abstracto, e independente da prova dos sentidos; e que as relações dos objectos
connosco hão-de ser determinadas por experiências sensuais."
Consequentemente, aqueles que recorrem só "às qualidades físicas dos corpos sonoros
para dar razão dos prazeres da *_Música*" são acusados de se esquecerem "de que os
órgãos dos sentidos são os primeiros agentes das afeições da alma e, recebendo as
impressões dos objectos externos, lhes conferem a tintura e qualidades com que
estas se transmitem à câmara do cérebro, onde o espírito exercita raciocínios e
sentimentos". Neste ponto, o leitor é remetido para outra obra do autor, intitulada
*_Teoria das faculdades e operações intelectuais e morais*.
Sem poder chegar ainda ao grau de generalização das concepções do nosso tempo,
mantendo-se fiel às do seu, muito centradas no momento histórico-musical europeu,
Ferreira da Costa vai, porém, mais longe, a título conjectural exemplificativo:
"Com outra organização auricular, talvez os sons do sistema humano não devessem
distar de *semítono*; os pontos que, no *monocordo*, marcam sons afinados devessem
ficar mais ou menos largos; as oitavas não fizessem impressões quase idênticas; a
série de sons gratos não fosse periódica; ou os períodos constassem de mais ou
menos de 7 sons, com intervalos maiores ou menores do que o semítono, e espalhados
nesta ou naquela sequência. Assim, a escala actual e os modelos gerais do canto e
da harmonia foram estabelecidos experimentalmente pela organização auricular da
espécie humana; e o juízo do *_Ouvido* é supremo sobre a impressão dos sons."
Tudo isto tem de se entender através de um prisma imensamente marcado do século da
razão, que foi também o de Rousseau. Sob a epígrafe *_Do caminho para a invenção em
música*: "ainda que o Ouvido determine o que é ou não conforme com a nossa
organização, fica contudo a Música sujeita ao império da razão: 1.o porque a esta é
submisso o bom método de estudos, e o nexo de noções teóricas e abstractas; 2.o por
ser o verdadeiro guia que pode conduzir-nos no exame das combinações possíveis de
sons, a que em harmonia damos extensa consideração. Tal é a base do tratado
filosófico de Música que apresentamos." Tratado *filosófico*, repare-se bem.
Que filosofia se propôs o autor representar? Não a define explicitamente, mas há
pelo menos um passo em que mostra não ser ateu o seu racionalismo escorado na
ciência experimental. É onde se lê o seguinte: "*_Rousseau* requer neste [ou seja,
no compositor completo], além da perícia e jogo das regras da :, Harmonia, ouvido
fino e culto, engenho fecundo e ardente, gosto puro e delicado e inspiração divina.
De todas estas qualidades, umas adquirem-se da Arte e do Mestre, outras do hábito e
frequência dos bons concertos e orquestras; porém outras só o Criador e a Natureza
podem dá-las." Não será aventurar muito dizer que os conceitos de Criador e de
Natureza que aqui entram devem ter andado muito perto das ideias maçónicas a que
aderiram tantos músicos de todos os pontos da Europa, nos séculos XVIII e XIX.
O racionalismo de Ferreira da Costa foi ao ponto de se bater por certos aspectos da
elevação mental do músico dos quais muitas vezes se tem dito que só foram
propugnados, em Portugal, já em pleno Novecentos. É o caso da sua insistência numa
análise metódica das composições musicais, baseada não só na morfologia tonal
harmónica (escalas e seus graus, acordes e sua arrumação) mas também em
articulações do discurso musical (verso, frase, período, peça). Em seu entender, "a
autoridade e decisão dos ouvidos cultos" é "alcançada pela análise das Obras dos
grandes Compositores". E esclarece que essa análise "tem florescido especialmente
do meado do século XVIII por diante". Noutro passo do livro, ao escrever o que
parece ter pensado em termos da química, acentua que "as obras puras dos Mestres da
Arte oferecem a composição ordenada dos seus símplices elementos: e é preciso saber
analisá-los. Os tratados elementares da Ciência expõem os princípios na sua nudez;
e cumpre saber combiná-los, para se obterem os produtos regulares na perfeição do
estado composto."
Naquilo a que Ferreira da Costa chama a "lógica dos sons" entra uma noção de
*motivo* que, embora não seja idêntica à de futuros analistas musicais, merece
atenção: "Combina-se pois multidão de *motivos* com a unidade da peça por meio do
fio lógico, que ata as diversas ideias. E posto que hajam indícios externos, pelos
quais cheguemos a reconhecer este laço, contudo as mais das vezes é metafísico, e
só o espírito e o sentimento podem percebê-lo. Se o Compositor não possui a Lógica
dos sons, mal poderá encadear as suas ideias." Pensar que cem anos depois ainda foi
necessário lutar em Portugal contra a concepção de um compor música todo feito de
inspiração de momento!
O seguimento do mesmo parágrafo continua a revestir interesse, até pelo que
demonstra de atraso em relação ao que havia muito tempo já tinha sido praticado por
grandes compositores, nomeadamente os que Ferreira da Costa mais admirava (Haydn,
Mozart): "Cada frase de uma peça deve ser deduzida estreitamente das que lhe
precedem; e jamais motivo novo, posto que muitas possam vir a sê-lo, passando da
classe de ideias acessórias à de principais. Por maior interesse que o Compositor
dê aos períodos diferentes do inicial, há este de ocupá-lo sempre como primário; e
se os Ouvintes lhe negam a maior consideração, é culpa dele."
A "modernidade" de Ferreira da Costa reflecte uma emancipação social do músico que,
escusado seria dizê-lo, se verificou incomparavelmente mais em países do centro da
Europa, e em Inglaterra, do que em Portugal. Aspecto bem representativo do fenómeno
é o da elevação do nível cultural do músico, muito por via livresca. Ao longo do
século XIX assistir-se-á a uma como que consolidação prestigiosa do conceito de
*cultura geral*, feita de conhecimentos -- mais em superfície do que em
profundidade - que :, noutros tempos os senhores tinham por desnecessários aos seus
músicos-criados. Note-se, porém, que o devir histórico, também neste aspecto, tem
contradições. Em termos genéricos, pode talvez dizer-se que o que o músico ganhou
de cultura geral, naquele período de transição histórica, foi perdendo na banda dos
conhecimentos e aptidões especializados. Vejamos o comentário de Ferreira da Costa
ao que o velho Zarlino exigira do músico perfeito: "posto não sejam indispensáveis
ao *_Compositor de Música* tantos conhecimentos, contudo será mais completo o que
reunir a tintura de todos eles; ajuntando com *Guinguené*, que deverá ainda ter
luzes de todos os instrumentos, a fim de evitar escrever para algum deles passos de
execução impossível." Foi precisamente isto o que veio a acontecer a ninguém menos
do que Robert Schumann.
Estribando-se embora tanto em autores publicados no estrangeiro, Ferreira da Costa
diligenciou por imprimir no texto a marca da sua própria personalidade. A formação
de matemático reflecte-se em lemas, teoremas, problemas. Formação de músico
propriamente dito é que parece não ter tido, a julgar pelo que adverte no prólogo:
"eis aqui o fruto de assíduas meditações empreendidas e continuadas por impulsos da
alma sem sementes de escola ou mestre algum, nem auxílios alheios."
Dá a entender que depreendeu independentemente conclusões importantes. "Chegando-me
à mão o complemento da parte da Música da Enciclopédia Metódica (aparecido em
Lisboa em Fevereiro de 1819) muito depois de ter escrito e entregue este 1.Q Tomo,
acho nele com bastante satisfação opiniões de *_Mr. de Momigny* mui conformes com
as que sigo." Não hesita em manifestar-se discordante, não só de Rameau, como
vimos, senão que também, em questões pontuais, de um Rousseau e um d'_Alembert ou
de investigadores e mestres ainda vivos, designadamente o ilustre Jérôme-_Joseph de
Momigny (1762-1842), considerado o fundador da teoria do fraseado musical, e
Charles-_Simon Catel (1773-1830), que tinha nos seus pergaminhos as qualidades de
professor e inspector do Conservatório de Paris e de membro do Instituto.
Como seria de esperar, adere ao metrónomo de Mälzel. Mas com um sentido crítico que
lhe estimula a veia de inventor. Depois de dar notícia de que os primeiros
aparelhos apareceram em Lisboa em Agosto de 1818 -- parece que juntamente com
"algumas músicas francesas com os andamentos indicados pelos *sinais metronómicos*"
faz considerações curiosas, cuja pertinência não viria a ser plenamente comprovada
pela prática da execução musical.
Por meio do "metronómio" ou "cronómetro", diz-nos o autor, veremos agora,
finalmente, "os Compositores e Executores de Música seguirem os mesmos rumos e
derrotas, como segue o Piloto a da sua viagem perdendo a terra de vista, depois que
o inventor da agulha lha deu para o conduzir pelo meio das ondas entre os Ceos e o
Mar. Só desejaríamos que o metronómio, por um registo, se torne sonoro ou surdo". E
isto para quê? A explicação não pode deixar de hoje causar um certo espanto: "para
que, surdo, sirva de governo ao Corifeu no concerto de sala, sem perturbar os mais
Executores, que devem regular-se sempre por este." O registo sonoro deveria servir
só :, "nas escolas de Música e estudos particulares para dirigir pelo ouvido os
exercícios do Discípulo, mormente na ausência do Mestre".
Passemos por cima da descrição do pêndulo concebido pelo académico português, com a
vantagem, segundo ele, não só da surdez (ou, mais exactamente, mudez) mas também de
uma isocronia mais igual que a do mecanismo de Mälzel. O interessante é observar
que a utilidade de qualquer metrónomo tinha que verificar-se no plano do estudo,
mas não no da execução em público. Neste capítulo, toda a tendência do momento
histórico pouco antes do auge do fervor romântico, era para a flutuação de
andamento e de ritmo, o mais possível ao sabor do sentimento, da fantasia, do
impulso quase improvisador. Numa palavra, para o *não* metronómico.
Ferreira da Costa dá como suas outras ideias, estas ditadas por um propósito de
racional simplificação. A primeira é a de reduzir todas as claves a uma só. Esta
seria basilarmente escrita assim:
significando que a terceira linha corresponde ao dó central. O problema das
diferenças de tessitura seria resolvido pelo acrescento de pares de pontos à
direita e à esquerda, significando saltos de outras tantas oitavas, para cima ou
para baixo, respectivamente. Se por exemplo conviesse um salto para duas oitavas
acima, escrever-se-ia
enquanto que
indicaria uma descida de duas oitavas. Não custa admitir que esta radical
simplificação poderia ter feito brilhante carreira internacional se, entre os
músicos práticos de todos os países, não tivesse continuado tão poderosa a força do
hábito, ou da rotina. :,
Músico prático, eis o que Ferreira da Costa não era com certeza. Outra ideia que
defende prova-o bem. Nada menos do que reduzir todos os compassos ao binário! E
como? Vejamos, por exemplo, como se reduziria o ternário. "Por dois modos", explica
o autor. O primeiro consistiria em "repartir cada compasso ternário em três
binários, com a competente mudança das figuras"; isto, no caso de andamento
vagaroso. Se, porém, este fosse rápido, haveria que "reunir cada dois ternários em
um só de 6/8", com ou sem mudança de figuras. Qualquer executante musical, de hoje
como de então, reage imediatamente a este esquema, pelo que ele denuncia de
desconhecimento da interrelação prática de compasso e ritmo.
Outro contexto em que Ferreira da Costa se inculca original é o da ainda hoje
controversa explicação "científica" dos privilégios do acorde perfeito maior e,
sobretudo, do menor. Temos no entanto que concluir que a argumentação dificilmente
poderia ser menos científica: "Supondo nulos na ressonância o *incomensurável 7*
(onde é já sensível a divergência entre as linhas da filiação harmónica, e do
temperamento) e todos os harmónicos mais agudos e pianos do que ele, e
simplificados os intervalos compostos, teremos uma colecção de três únicos sons
distintos, que são 1.a, 3.a e 5.a. Com pequena alteração na 3.a para cima, e na 5.a
para baixo, torna-se esta em acorde de 1.a, 3.a maior e 5.a exacta. E com a mesma
alteração na 5.a, e outra um pouco maior na 3.a para baixo, torna-se em acorde de
1.a, 3.a menor e 5.a exacta."
Se malabarismos destes fossem correctos, facílimo se tornaria prestigiar
cientificamente qualquer acorde. Ferreira da Costa ainda tem um certo escrúpulo ao
observar que a sua fundamentação do acorde perfeito menor envolve um processo menos
"explícito" e também menos "aproximado" que o apontado para o acorde maior. No
entanto, poucas páginas adiante, logo depois de acusar Rameau de delírio, ousa
afirmar que "ninguém até agora extraiu" do fenómeno da ressonância do corpo sonoro
"os acordes principais do tom maior ou menor com tanta simplicidade como nós".
Noutros passos do livro, o sentido crítico do autor exerce-se de modo a prestar-nos
informações interessantes sobre certas práticas musicais do seu tempo. Ficamos, por
exemplo, a saber que a marcação do compasso se fazia de maneiras diferentes nas
manifestações musicais profanas e nas eclesiásticas: "Adquirido o hábito de acertar
as demoras das figuras pelo compasso, é preciso perder o de batê-lo de rijo. Sendo
o compasso (como o *ponto* nos teatros) necessário para a certeza dos executores,
estraga o efeito das peças, se deixa perceber-se pelo auditório. As pancadas do
compasso perturbam a doçura do canto e depravam a expressão dos *acentos*, e mais
belezas, de que o ouvido deve apossar-se, independente do anúncio das batutas. Nos
concertos de sala não se bate compasso: apenas marca o Regente os primeiros quatro
tempos nas mudanças de andamento, ou quando algum dos executores se desencaminha.
Nos teatros também se não bate compasso, salvo no mesmo caso."
Que flexibilidade, que diferenciação, que dinamismo poderia obter-se desta maneira?
Como soaria um divertimento em estilo galante, quanta graça perderia a música de
qualquer ópera cómica, ainda que fosse de Mozart? Mas Ferreira da Costa queixa-se
de que nas músicas de igreja era ainda muito pior, onde se mantinha o "abuso" de
marcar sempre o compasso, :, com ruído. Às vezes, o ouvinte não podia impedir-se
"de ver com ludíbrio o empenho do *_Corifeu*", que, para se mostrar superior,
conduzia "com rijas pancadas a marcha da música". Isto, mesmo que ninguém estivesse
fora de tempo. E até acontecia ser ele, corifeu, quem "mil vezes" desordenava o
discurso musical, "pelo seus estrondos".
Quanto a andamentos, o segundo é proposto como "a medida mais natural e filosófica"
adoptável como "unidade do tempo". Mais elucidativo se torna o acrescento de que
convém fixar nele (segundo), "por uma vez, o ponto médio do *_Andante*, e da escala
dos andamentos". Note-se, porém, que este critério era o observado trinta anos
antes, "quando os grandes executores, fazendo menos ostentação de dificuldades,
conduziam os concertos de Música com maior gravidade e doçura".
Parece lícito inferir que, em Portugal como nos países europeus mais evoluídos, a
execução musical acelerou consideravelmente desde o tempo em que Mozart fazia as
suas derradeiras apresentações públicas, como pianista, e aquele em que o jovem
Liszt se aventurava nas primeiras. Também neste aspecto Ferreira da Costa não se
deu conta da necessidade histórica de um vector evolutivo, dirigido no sentido
crescente da virtuosidade. O seu conservadorismo a tal respeito manifesta-se, por
exemplo, quando fala dos "allegros e rondós desregrados, em que os Compositores
modernos de torto engenho acumulam exércitos de notas sem coerência nem ligação".
Falta-nos saber a que autores se referia. Mas, de qualquer modo, volta aqui a
expressar-se uma atitude contrária à tendência para apressar os movimentos. Não
deixa, aliás, de ter a noção de que estava na indústria da construção de
instrumentos um dos mais decisivos factores dessa evolução. Na mesma página
reconhece que "o invento e perfeição dos pianos-fortes" tornaram estes "muito mais
aptos do que o cravo para a ligeireza e voo dos cantos". Precisamente os pianos
estavam em vias de importantes melhorias, como aliás muito outros instrumentos,
incluindo arcos e sopros. Até os violinos, cuja indústria de fabrico tantos
pergaminhos tinha, estava sofrendo alterações. Pode dizer-se que todas estas se
orientaram pelo aumento da virtuosidade e da intensidade sonora, indispensável ao
alargamento dos auditórios, pressionado por motivos socioeconómicos.
Com tudo o que tem de imensamente parcial, a crítica do contraponto tem outra
validade histórica. Está em consonância com as ideias então "modernas". Ferreira da
Costa não deixa de dizer que, "apesar do desprezo que hoje se tem pelo
*_Contraponto*", entende "necessário ao Compositor que o possua". E, já perto do
fim do livro, vai mais longe: "Mas por que meio chegará o Compositor a achar dois
cantos que, suposto diferentes, não quebrem a unidade de melodia, e possam ser
transpostos a diversos tons e modos, sem sair no dueto vocal do diapasão das vozes?
Estudando com cuidado o Contraponto duplicado, as imitações e mesmo a fuga livre."
Em todo o caso, a atitude do autor é avessa a construtivismos. "É sábia puerilidade
tornar a tarefa de imitações retrógradas ou em movimento contrário. Tudo o que não
se sente torna-se nulo. Os trabalhos difíceis têm por certo seu merecimento; mas
não é esse o verdadeiro fim das belas Artes." Fazendo-se eco de Rousseau, diz que,
"em geral, as fugas tornam a música mais estrondosa do que aprazível, e portanto
convém antes nos coros do que :, noutra parte". Que, "sendo sempre medíocre o
prazer movido por este género de música, pode dizer-se que uma bela fuga é o
ingrato primor de um bom harmonista". Que "as *_Contrapugus, duplas fugas* e outras
combinações ridículas e pueris, que o ouvido não pode sofrer nem a razão
justificar, são visivelmente restos da barbaridade e do mau gosto, que como as
fachadas dos templos agóticas, só subsistem para vergonha dos que tiveram a
paciência de fazê-las". Que, com "Cânones inversos, retrógrados e de duas caras" os
"antigos Mestres" definhavam-se "só pelo gosto de atormentarem os Leitores, e com o
fruto de fazerem bocejar todo o Auditório, quando chegavam a decifrá-los". E que,
depois dum tão cansativo "fazer música para a vista", passou a compor-se só "para o
ouvido e para o coração".
Vale ainda a pena observar que Ferreira da Costa discrimina o emprego do
contraponto em função dos fins a que a música se destinava, dando-o como máximo
(relativo) na esfera eclesiástica e mínimo, para não dizer nulo, na teatral e na
puramente instrumental: "veio a chamar-se *_Contraponto* em geral toda a música
combinada segundo as leis do Contraponto ligado ao Cantochão; e hoje mesmo, que
estas se têm relaxado em grande parte, chama-se muitas vezes *_Contraponto* a toda
a Música sábia e rigorosa, para distinção da teatral ou instrumental, muito mais
florida e variada." Depois de acentuar que as regras dadas pelos Contrapontistas
antigos ainda eram observadas "na música de Igreja a vozes, ou com acompanhamento
de órgão", acrescenta que, "na harmonia dos modernos", as mais delas eram
desprezadas, "e felizmente a miúdo".
As últimas transcrições já indicam outra faceta relevante dos *_Princípios de
música: o desígnio de historicidade. Incomparavelmente mais do que qualquer
tratadista musical português, Ferreira da Costa esforça-se por traçar o presente
como o segmento final de um longo passado, no curso do qual a arte dos sons
evoluíra mais ou menos continuamente. Também neste aspecto se mostra moderno. Como
não podia deixar de ser, os seus conhecimentos de história da música enfermam de
erros, à luz da musicologia de hoje. Por igual se compreende que a sua exposição
não contenha praticamente nada de análise económico-sociológica. E que a evolução
histórica da música seja pintada como um contínuo progresso artístico, sem aquele
sentido de relatividade, implicando diferentes sistemas de coordenadas, que o
entendedor de arte hoje tem.
A este respeito, o exemplo mais elucidativo é porventura o do menosprezo do
cantochão: "Eram bem escassos os efeitos da Música, quando os sons lisonjeando o
ouvido somente por serem afinados, produziam pela igualdade de suas durações
insípida monotonia, como sucede no cantochão." Noutro passo, lê-se que o cantochão
só pode "lisonjear o ouvido" se se lhe juntarem a "plenitude e riqueza da harmonia"
de sucessivos acordes. Esta incompreensão foi muito partilhada na época, inclusive
no seio da Igreja. Só nos tempos de Mussorgsky e de Debussy vieram os antigos
cantos monódicos cristãos a readquirir o seu prestígio de formas musicais
esteticamente superiores, junto da intelectualidade afecta à música.
A redução dos modos eclesiásticos ao maior e ao menor não é relatada como
empobrecimento de algum modo lamentável. "Nascido o *_Contraponto* debaixo do
império do *_Cantochão*, não teve por muito tempo outros *modos* :, senão os dos
antigos, que não eram verdadeiros modos de escala e tom completo, mas diversas
formas de tetracórdios; noo teve outros *tons* senão os da Igreja, que não passavam
de combinações parciais de diferentes tons sem unidade harmónica." Isto joga com
outras afirmações igualmente simplistas e marcadas pela época. "Reconheceu-se que
em toda a Melodia e Harmonia há somente duas *escalas* e dois *tons*, um do *modo
maior* e outro do *menor*, ambos estabelecidos pela natureza com caracteres
distintivos e formando duas famílias de heptacórdios com diverso predomínio de cada
som. E sentiu-se que todos os mais tons e escalas vêm a ser exactamente
transposições, ou transporte dos dois modelos a outras cordas do *sistema
dodecafónico* (ou temperado)."
Está claro que o compasso é tido na mais alta conta. Nada menos do que "a vida da
Música". E também a harmonia funcional, com rasgados elogios às potencialidades do
baixo e de determinados acordes, como os de sétima da dominante e de sétima
diminuta. "A *_Harmonia* é hoje reconhecida pela parte mais bela da *_Música*, mais
susceptível de novas e variadas combinações, mais sujeita ao império da razão e
enfim mais própria na sua união com a *_Melodia* e o *_Ritmo* para os grandes
efeitos da expressão. Ela contribui por si principalmente a representar ao Ouvido
os maiores quadros da natureza e da fantasia, e arrebatar o coração com os seus
divinos encantos." A asserção de que, então, o melhor modelo de harmonia era "o
estilo Alemão", e o de melodia e canto "o gosto Italiano" quase parece uma
antecipação daquele crítico musical (?) que, há poucos anos, pasmava de ninguém ter
tido a ideia de encarregar Puccini de compor novas melodias para as harmonias de
Wagner.
Se o compasso é a vida da música e a harmonia a sua parte mais bela, o baixo é a
sua alma, "e a *bússola* do Compositor". Quanto aos acordes, é claro que; mesmo que
não explicitamente, são apresentados através do prisma do baixo cifrado. Dos seus
encadeamentos, Ferreira da Costa realça os que, com bom gosto e perícia técnica,
envolvem mudança de tonalidade. Note-se que não lhes chama modulações, mas sim
transições. Na sua nomenclatura, modulação é todo o progresso de melodia ou
harmonia, com ou sem mudança de tom. Compreende-se assim o que quis dizer no
seguinte passo: "As transições do género enarmónico exigem mão de mestre na sua
preparação e resolução; mas, sendo poupadas e bem feitas, transportam a alma e
produzem os efeitos mais sublimes da Música." É evidente que se trata de enarmonia
reduzida ao sistema da afinação igual.
Sobre instrumentação e orquestração, o livro nada oferece merecedor de atenção.
Apesar das importantíssimas contribuições de Gluck e outros, o culto do colorido
instrumental ainda estava para vir, com Berlioz, Liszt, Wagner, os russos. Mas há
várias referências a instrumentos, por vezes com informação sobre funções que
desempenhavam. Ficamos por exemplo cientes de que o cravo não só estava ainda em
uso nos anos 20 do Oitocentos como continuava a ser o normal instrumento
acompanhador.
Aliás, cravista era a designação genericamente aplicada aos executantes de tecla.
Mas, além das vantagens do piano já referidas, é salientada a sua melhor aptidão
"para os variados matizes da expressão". Noutra alusão, o piano é dito "uma
orquestra em pequeno". Por outro lado, não é só a cantores, :, mas também a
instrumentistas que o autor se reporta, ao falar de "*cadências* e prelúdios *ad
libitum* no fecho dos *concertos* e *solos*", cadências que "até se executam em
*dueto*", parecendo, no entanto, apenas "próprias de peças de execução e alardo".
Que é como quem diz, de virtuosidade.
É de sublinhar o espaço dedicado a formas musicais. Um capítulo incide sobre
"dueto, terceto, quarteto, etc.". Nele se lê que o terceto, vocal ou instrumental,
"é conceituado a mais excelente espécie de composição e deve ser também a mais
regular". Mais ainda do que este, o capítulo sobre a sonata, o concerto e a
sinfonia trai um grande atraso em relação às últimas inovações ou elaborações dos
clássicos de Viena. Por exemplo, ao esquematizar uma forma-padrão da sinfonia,
Ferreira da Costa não dá ainda o *scherzo* como, pelo menos, alternativa do
minuete. E leva depois a supor que o último andamento -- não só da sinfonia como
também da sonata e do quarteto -- tinha de consistir num rondó com duas coplas.
Isto, publicado na terceira década do século XIX!
Mesmo assim, é estimável, porque significativo para a história da musicografia
didáctica portuguesa, que aquelas formas musicais tenham merecido a atenção do
autor, dum ponto de vista analítico. Significativo também é o desinteresse de
Ferreira da Costa pelas formas especificamente operistas. Dir-se-ia, até, que evita
a palavra ópera. Na verdade, emprega-a muito pouco, substituindo-a às vezes por
teatro. Lidas as cerca de 470 páginas dos dois tomos dos *_Princípios de música*,
não resta a mínima dúvida de que Ferreira da Costa não era afecto à ópera, no que
parece legítimo ver uma atitude do sector da intelectualidade portuguesa que, não
apenas no que tangia à música, se considerava a si mesmo o mais esclarecido.
Enquanto Ferreira da Costa aprontava o seu livro, representava-se em Lisboa, entre
outras de diferentes autorias, qualquer coisa como uma dezena e meia de óperas de
Rossini, incluindo *_La Cenerentola, O barbeiro de Sevilha, La gazza ladra, Otelo,
Il turco in Italia, Tancredo* e *_Mosè in Egitto*. Quanto a produção indígena,
contentemo-nos com assinalar pelo menos duas óperas de Marcos Portugal, que ainda
era vivo: *_Demofoonte* e *_Mérope*. Ferreira da Costa passa no entanto em claro o
então mais festejado compositor de ópera do mundo e o seu colega português de maior
reputação.
Não podem dizer-se compensatórias as inclusões de certos outros compositores, como
Angelo Maria Benincori, gabado em termos de "compositor elegantíssimo, cheio de
imaginação, gosto e ciência da arte, e interesse a todas as partes da harmonia".
Note-se que, tirando o êxito póstumo da sua revisão e completação do *_Aladino*, de
Isouard, o mesmo Benincori tinha fracassado na ópera.
Os compositores mencionados por Ferreira da Costa a título elogiativo confirmam o
seu anti-operismo. Ainda quando se trata de alguns de importância capital na
crónica do teatro por música, não é como tal que são enaltecidos. O facto de essa
hostilidade não ser manifestada explicitamente pode talvez explicar-se pelo receio
de ofender a opinião melómana, a ponto de afectar seriamente a venda do livro.
Em contrapartida, há informações importantes relativas à música de concerto. Por
exemplo, a que toca a escola de Mannheim, nomeadamente através da referência aos
Stamitz. Mas não estão suficientemente actualizadas. :, Para o provar, bastam os
casos de Schubert, completamente omisso, e sobretudo o de Beethoven, que em 1824 já
tinha criado quase todas as suas obras capitais, incluindo a *9.a Sinfonia*, cuja
estreia se deu nesse mesmo ano. É claro que não podia exigir-se de Ferreira da
Costa o seu conhecimento; e ainda menos o de partituras não terminadas, como os
quartetos de corda op. 131, 132, 133 (*_Grande fuga*) e 135. Mas isto não é razão
para que o autor da *_Sonata apassionata* e da *_Sinfonia pastoral* tenha sido
tratado como vamos ver.
A respeito da sonata então moderna: "E que diremos de *_Steibelt*, de *_Beethoven,
Kozeluch, Clemente* [sic], *_Cramer, Pleyel, Bomtempo* e tantos outros, cujas
composições e execuções, portentosas e admiráveis por diversos estilos e
qualidades, enchem hoje de encantos as sociedades filarmónicas? Acaso têm eles já
concluído a sua brilhante carreira? Vendo-os caminhar pela árdua vereda da glória
para o templo das Musas, só nos cabe apreciar seus méritos relevantes; que julgálos
compete à posteridade. Direi contudo que a sonata, nas mãos destes criadores,
tem recebido em si por várias formas os mais belos períodos da eloquência, as
descrições e transportes da poesia, a viveza e coloridos da pintura e a acção
animada do teatro." Aqui, o que mais choca hoje é ver Beethoven metido num saco com
um Daniel Steibelt -- que fora uma espécie de compositor da moda -- um Leopold
Kozeluch, um Johann Baptist Cramer, um Ignaz Pleyel.
A outra menção reporta-se à sinfonia e, por tabela, à música de câmara. Reza assim:
"*_Beethowen* [sic] mostra-se grande músico na sinfonia, como no quarteto e na
sonata: mas falta-lhe às vezes a naturalidade e o sólido saber que exalta os
verdadeiros modelos." E pronto. O autor passa logo, no mesmo parágrafo, a Méhul,
André (provavelmente Johann Anton, n. 1775, o mesmo que adquirira o espólio de
Mozart) -- de quem diz que "maneja na grande orquestra efeitos prodigiosos e
harmonia canora mui rica e sábia" -- e outra vez Pleyel, para terminar com outra
interrogação: "Mas podemos nós avaliar o quilate de merecimento de tantos engenhos
que dedicam hoje à sinfonia seus trabalhos e invenções?"
Ao longo do livro, Ferreira da Costa ignora quase totalmente os compositores e
intérpretes musicais seus compatriotas. A referência a Bomtempo, acima transcrita,
é excepcional. O seu nome nem sequer é dado com os João e Domingos que mais
precisamente o identificariam. Contudo, Bomtempo já entretanto conquistara e
firmara fama em Paris e em Londres, como compositor e pianista. Parcimónia tanto
mais de estranhar, quanto é certo que as inclinações musicais de Ferreira da Costa
não parecem divergir essencialmente das de Bomtempo. Teria havido política de
permeio? Recearia o musicógrafo arranhar susceptibilidades miguelistas?
Do que não cabe duvidar é de que a máxima admiração de Ferreira da Costa vai para
Haydn e Mozart; com o que não pode dizer-se que fique mal colocado. São aduzidos
vários casos exemplares dos dois mestres, logo desde o princípio do livro. Até que
perto do fim, a respeito das grandes formas instrumentais, se lhes atribui a maior
contribuição para que o Setecentos tivesse ganho jus ao "título de século das luzes
no império das Musas e de Apolo". Porque "do seu saber e força de invenção alcançou
a :, harmonia e a arte das transições progressos espantosos e efeitos até então
desconhecidos".
Em relação à sonata, lêem-se considerações bastante judiciosas: "*_Mozart*, igual a
*_Haydn* na composição, porém mais hábil pianista, mostra quanto importa esta
qualidade para achar debaixo dos dedos o que se oculta sem o seu socorro. As
sonatas de *_Mozart* produzem maior efeito no piano do que as de *_Haydn*; porque
têm mais graus de força relativamente ao jogo do instrumento. Para ser
perfeitíssimo na música de piano, cumpria juntar ao sabor e engenho de *_Haydn* e
*_Mozart* a habilidade dos grandes pianistas modernos. Então teríamos na sonata a
união do novo e admirável com o sólido e brilhante."
Mais adiante, Ferreira da Costa acaba por fazer discreta alusão ao teatro, cuja
falta, pelo menos em relação a Wolfgang Amadeus, tocaria as raias do escandaloso.
Parte da sinfonia, dizendo que "chegou ao máximo da perfeição" no fim do século
XVIII. Isto, "pelas últimas 12 sinfonias de *_Haydn*, que reúnem toda a frescura da
primavera aos ardores do verão e à madureza do outono. *_Haydn* é o engenho que
melhor concebeu o tipo da sinfonia; e vê-se com admiração que tanto mais ele se
adiantava em anos mais verniz de mocidade reluz nas suas obras. A sinfonia de
*_Mozart*, igualmente férvida e vigorosa, posto que às vezes menos castigada, ocupa
o lugar imediato à testa deste género de composição. A orquestra é um instrumento
complicado, que estes dois mestres tocam perfeitamente, movendo-o com as notas de
música pintadas no papel. Recheado o entendimento de espécies e efeitos sonoros,
sem consultarem o ouvido (que contudo lhes forneceu os elementos da arte), ordenam
sobre a banca e com a pena na mão prodígios de harmonia; e daí expedem acabadas as
grandes composições para inumerável instrumental, que hão-de encher o auditório de
prazer e admiração no Templo e no Teatro. Eis aqui pois a verdadeira ciência da
música."
O conceito de evolução histórica da música como uma sucessão de progressos não só
na extensão dos meios e das incidências mas também nos valores estéticos, aferidos
por uma escala absoluta, deveria levar Ferreira da Costa a considerar o seu próprio
tempo o de supremo nível. Parece, no entanto, haver-se-lhe sobreposto a tendência
geral, manifestada possivelmente em todas as gerações desde há milénios, para
colocar as realizações dum recente passado acima das do presente, acusando estas de
decadência ou degeneração. Para o que decerto contribuiu a falta de conhecimento
directo, vivencial, das mais representativas manifestações da modernidade musical
de então.
Tudo somado, com o seu amadorismo teorizante, a sua autodidaxia livresca, a sua
falta de informação e vivência musical *up to date*, o seu alheamento da história
da cultura portuguesa e do que esta então concretamente era, os *_Princípios de
música* apresentam-se-nos afectados de sinal positivo. Isto em grande medida, e por
paradoxal que pareça, em virtude dessa mesma realidade concreta nacional que, nos
domínios da arte dos sons, enfermava de um nível mental médio muito abaixo daquele
que o livro reflecte. As mais das linhas-mestras do pensamento de Ferreira da Costa
-- um cientismo de base experimental não primariamente mecanicista, um desígnio de
conciliar a razão com o prazer do ouvido e com os afectos :, traduzíveis por
música; a propugnação do melódico acórdico em detrimento do construtivo
contrapontístico, do instrumental na esteira do classicismo vienense contra o vocal
operista infectado de superficialidade; e até um incitamento, posto que tímido, à
exploração das virtualidades cromáticas da harmonia -- apontavam no sentido do
momento histórico europeu, ou seja do romantismo, cujas mais representativas,
brilhantes e inovadoras manifestações iam dar-se nas décadas subsequentes. É
evidente que não podemos exigir de Ferreira da Costa uma beethoveniana antevisão de
que a expressividade subjectiva teria que vir a ser superada por um novo
construtivismo objectivante.
Ante o desconhecimento das teorias da música que então reinava em Portugal,
Ferreira da Costa propôs-se escrever obra "capaz de dirigir os estudos da mocidade
e as aplicações de tantos curiosos que desejam penetrar os mistérios da harmonia e
contraponto".
O capítulo seguinte focará condições histórico-sociais, iniciativas individuais ou
colectivas, oficiais ou particulares, êxitos e fracassos que algumas vezes vieram a
saldar-se a favor daquelas solicitações da "mocidade" e dos "curiosos" de 1820, mas
que não puderam elevar tanto o nível da cultura musical portuguesa quanto o
bacharel Rodrigo Ferreira da Costa decerto desejou.
CAPÍTULO VII
ANTECEDENTES DA ÉPOCA ACTUAL
Aspectos sociais e económicos
A dominação da nossa cultura musical pela de um país estrangeiro, *_Leitmotiv* do
último capítulo, apresentou-nos um panorama português muito diferente do actual.
Hoje é impossível apontar o equivalente do italianismo de então, porque, na
verdade, ele não existe. As maiores demonstrações de apreço distribuem-se agora,
pode dizer-se que igualmente, por obras e intérpretes representativos da música
alemã, da francesa, da espanhola, da italiana. A portuguesa, essa continua a
receber tratamento de favor, e é até de algum modo menos cotada do que nos tempos
de Sousa Carvalho, Marcos Portugal e Leal Moreira.
Essa diferença entre passado e presente só pode compreender-se tendo em atenção
toda uma transformação social e económica, muito mais intensa e profunda noutros
países, mas que se operou também no nosso, com o habitual atraso. Uma transformação
que, a pouco e pouco, foi opondo solicitações colectivas à opinião e vontade dos
senhores absolutos -- opinião e vontade individuais que se impunham a grupos
sociais delas dependentes (236).
No campo das artes tais solicitações colectivas só podiam ganhar expressão na
medida em que uma quantidade considerável de indivíduos se libertasse do poder
senhorial e dispusesse de meios de sobrevivência. E não só isto: também na medida
em que pudesse elevar-se intelectualmente, em consequência do seu levantamento
económico-social. Estas condições realizaram-se por um longo processo histórico,
foram uma das causas da Revolução Francesa e, depois, uma das suas consequências.
Nesse movimento histórico se integra o racionalismo de Setecentos, de que a reforma
de Gluck é um reflexo musical. Portanto, uma das censuras feitas ao italianismo
então mais apreciado radicou-se numa substrutura social, económica e cultural de
que recebeu o seu suco vivificante. Vimos como Gluck frequentou círculos
intelectuais a que pertenciam individualidades portuguesas, como António da Costa
ou o notável D. João Carlos de Bragança, duque de Lafões, a quem é dedicada a ópera
*_Paride ed Elena* ( 1770) (237).
Gluck inicia assim a extensa alocução: "Alteza! No dedicar a Vossa Alteza este novo
trabalho, dirijo-me menos a um protector do que a um juiz. Um :,
_história da
_música _portuguesa
por
_joão de _freitas _branco
_publicação em 16 volumes
_s. _c. da _misericórdia
do _porto
_c_p_a_c -- _edições
_braille
_r. do _instituto de
_s. _manuel
4050 __porto
1998
_décimo _volume
_joão de _freitas _branco
_história da
_música _portuguesa
_organização,
_fixação de _texto,
_prefácio e _notas
de _joão _maria
de _freitas _branco
2.a _edição,
_revista e _aumentada
_publicações
_europa-_américa
_capa: estúdios _p. _e. _a.
_herdeiros de _joão
_c de _freitas _bran-
co, 1995
_editor: _francisco _lyon de
_castro
:__publicações europa-américa, __lda.
_apartado 8
2726 __mem __martins __codex
__portugal
_edição n.o: 116512/6266
_execução técnica:
_gráfica _europam, _lda.,
_mira-_sintra -- _mem
_martins
_depósito legal n.o: 85462/
/95
__isbn 972-1-04012-6
__capítulo __vi
(cont.)
_teoria musical (cont.)
Foi em 1849 que apareceram impressos os *_Princípios elementares da música,
destinados para as lições da aula da cadeira de música da Universidade de Coimbra*,
de António Florêncio Sarmento que, entre outras distinções, averbava a de ser
professor da mesma cadeira, desde cerca de dez anos antes. Talvez para desde logo
se mostrar bem estribado e actualizado, o autor consagra a página à esquerda da da
dedicatória a uma transcrição, em francês, de Fétis, cuja importante *_Biographie
universelle des musiciens et bibliographie générale de la musique* acabara de se
publicar cinco anos antes. Essa transcrição adverte que cada arte tem os seus
princípios e que é preciso estudá-los para que o prazer do ouvinte se torne maior,
ao mesmo tempo que o seu gosto se for formando. E que a música tem princípios mais
complicados do que a pintura, pelo que é, simultaneamente, uma arte e uma ciência.
Dir-se-ia um aviso ao leitor-estudante de que ia topar, nas páginas subsequentes do
livro, com osso, dos mais difíceis de roer, só vulneráveis a dentes tão penetrantes
de matéria quer artística quer científica como os de um d'_Alembert, ou pouco
menos. Mas não. O que segue é ainda muito mais elementar e mais simplificado do que
o recheio do *_Método* de José Maurício.
_é pena que Sarmento não explique quais eram as "circunstâncias especiais" que
acompanhavam os alunos da aula de música, exigindo que o estudo se lhes facilitasse
"por um método claro e conciso". Maneira delicada de dar a entender o analfabetismo
musical da maior parte dos estudantes? De qualquer modo, o autor -- que parece
agradado com a precisão do metrónomo de Mälzel, "máquina com que hoje se regulam os
andamentos com toda a exactidão" -- podia ter conciliado a elementaridade da
matéria com o rigor do seu ensino. Poucos exemplos bastam a demonstrar que não o
conseguiu, apesar da advertência de Fétis.
"Escala *enharmónica* é aquela em que duas *notas* parecem ser um intervalo, mas na
realidade e praticamente são o mesmo *som*; e se alguma diferença há, esta é tão
pouco sensível que só se pode achar em um instrumento cujos *sons* não sejam
fixos." Os alunos não devem ter ficado mais elucidados acerca de certos "termos que
se ajuntam ao *movimento*": "*_Cantabile*, com gosto, com graça. *_Tempo di
minuetto*, tempo de dança. *_Tempo di polka*, movimento animado. *_Tempo di
bolero*, movimento de bolero. *_Con moto*, com calor"! Que terá pensado Fétis de
semelhante "ciência", se acaso :, teve conhecimento dela? Saiu anos depois em
Portugal uma versão dum seu dicionário de termos musicais. Vejamos, para
comparação, o que aí se diz sobre *cantabile* e *bolero*: "*_Cantabile* -Adjectivo
Italiano que se emprega substantivamente e designa em geral toda a
melodia própria para ser facilmente executada pela voz humana. O que sobretudo o
caracteriza é um canto claro, simples, que está em oposição com o canto irregular,
duro e pouco natural. O seu Andamento é vagaroso." -- "*_Bolero* -- Ária Espanhola
que serve ao mesmo tempo para cantar e dançar. As mais das vezes, esta ária é um
tom menor e o seu ritmo em compasso ternário. Acompanha-se com violão. Em Espanha,
há uma multidão de *_Boleros*" (*_Dicionário das palavras que habitualmente se
adoptam em música*. Escrito em francês por F. J. Fétis, traduzido e acrescentado
por José Ernesto d'_Almeida, Porto 1858).
Como José Maurício, António Sarmento considera preferível o solfejo por
transposição. Mas as regras das cantorias são reduzidas ao mínimo dos mínimos.
Quanto aos modos, por igual se mantêm o simplismo e a imprecisão: "*_Modo* é a
maneira por que se estabelecem os *tons*. São *maiores* ou *menores. Modo maior* é
quando da *tónica* ou 1.a à 3.a há o *intervalo* de dois *tons*, e da *tónica* à
6.a o *intervalo* de quatro *tons* e um *semitom. Modo menor* é quando da *tónica*
ou 1.a à 3.a há o *intervalo* de um *tom* e de um *semitom*." A este respeito, os
alunos pouquíssimo mais ficavam a saber. É verdade que toda a música europeia tinha
evoluído para a bipolarização. Mesmo na esfera da Igreja, os aprendizes da arte dos
sons já não tinham de aprender as muito mais complexas teoria e prática dos modos
que, até o século XVII, todo o verdadeiro músico tinha de dominar, além de muitas
outras coisas. Mas também neste capítulo se exigia demasiado pouco dos alunos da
Universidade de Coimbra.
Poderá objectar-se que os *_Princípios elementares* eram tão-só um compêndio-base,
sobre o qual o mestre ministrava um ensino oral de nível superior. Não é porém isso
o que indica a informação de que eles serviam "para a melhor inteligência da sua
teoria, reservando para a aula alguns exercícios e perguntas, que verbalmente farei
em todas as lições". Assim não parece que a total falta, no texto, de considerações
de ordem estética e histórica, tendentes a elevar a mentalidade dos alunos e a
formar-lhes o gosto (de que encontrámos estimáveis exemplos em José Maurício) fosse
de algum modo preenchida por aquilo que o professor dizia na aula.
_é certo que a disciplina universitária não constituía o único meio de aprender
música em Portugal. Longe disso, felizmente. Admite-se até que uma parte
considerável dos estudantes não pretendesse vir a exercer profissão de músico,
limitando-se a procurar um complemento artístico para a sua formação universitária
de fundo. A Igreja continuava a propiciar muito ensino de música espalhado pelo
país, ainda que sem o brilho dos grandes focos de outros tempos. Mas o
acontecimento histórico recente, nos domínios da pedagogia musical, fora a fundação
do Conservatório, da qual nos ocuparemos no capítulo seguinte. No que respeita
ainda ao ensino de música na universidade, parece lícito concluir que, com António
Florêncio Sarmento, estava mais de meio caminho andado para o seu total apagamento.
Como, de facto, veio a suceder. :,
Falta dizer mais alguma coisa sobre dois dos autores mencionados: Fr. Domingos de
S. José, mais conhecido por Varela, e Rodrigo Ferreira da Costa.
Já se deu a entender que o compêndio de Varela tem um título mais longo do que o
indicado. Na verdade, ele fala duma "breve instrução para tirar música", de "lições
de acompanhamentos em órgão, cravo, guitarra ou qualquer outro instrumento em que
se pode obter regular harmonia"; de "medidas para regular os braços das violas,
guitarra, etc. e para a canaria do órgão"; dos "melhores métodos de afinar o órgão,
cravo, etc."; do "modo de tirar os sons harmónicos ou flautados" e de "várias e
novas experiências interessantes ao *_Contraponto, Composição* e à *_Física*". Tudo
isto, na edição de 1806, à qual, vinte anos depois o autor juntou um suplemento
sobre nomenclatura e o modo de construir instrumentos curiosos: "Nova harmónica
tocada com arco de rabeca, harmónicas de metal ou pau tocadas com arco de rabeca,
harmónicas de campainhas de vidro, ou de metal com arcos de rabeca movidos por
teclado."
O conteúdo do *_Compêndio* oferece bastantes motivos de interesse Por exemplo, em
matéria de dedilhação de instrumentos de tecla, ele reflecte, ao mesmo tempo, o
atraso do ensino e o não conservantismo do autor: "Alguns Mestres proíbem tocar
*_Tecla* acidental com o dedo polegar, exceptuando em 8.as; proíbem executar com o
dedo mínimo por ter pouca força; ora o dedo anelar é de sua natureza o mais
estúpido e, por consequência, de cinco dedos só restam dois ou três para executar a
*_Música*, se seguirmos semelhantes Mestres."
Varela não hesita em recomendar a infracção de tais regras, que hoje fazem rir
qualquer principiante. "Do bom jogo dos dedos nasce toda a facilidade que se pode
obter, ainda na mais dificultosa execução; portanto em qualquer passo dificultoso
se deve estudar, combinando muitas vezes os dedos até que se ache uma combinação
mais fácil, ainda que vá o dedo polegar à *_Tecla* acidental e se cometam erros na
opinião dos Mestres vulgares."
O capítulo do acompanhamento, centrado, como seria de esperar, no baixo cifrado, é
muito resumido. Depreende-se que era matéria de aprender muito mais pela prática do
que por preceitos teóricos. Aliás, é o manter-se junto da prática que torna Fr.
Domingos de S. José um caso de singular interesse na musicografia pedagógica
portuguesa. Isto, mormente no que respeita a concepção, construção e afinação de
instrumentos que ele mesmo sabia executar. E pena desconhecermos hoje o piano que
ele disse ter inventado. Como construtor de órgãos, os seus mais importantes
trabalhos entre muitos, destinaram-se aos mosteiros de S. Bento, no Porto, e dos
Paulistas, em Lisboa.
Varela abriu-se às novidades de teor musical que, desde as últimas décadas do
século anterior, vinham do estrangeiro, especialmente de França. Para epígrafe do
*_Compêndio* escolheu um passo dos *_éléments de musique théorique et practique,
suivant des principes de M. Rameau*, de D'_Alembert (1752). No texto do livro há
citações da *_Encyclopédie méthodique*, que a livraria Panckoucke lançara a partir
de 1781. :,
Quanto a Ferreira da Costa, bacharel em leis e matemática que foi deputado às
Cortes Constituintes e professor de matemática da Academia Real da Marinha, era
pessoa de elevada mentalidade, senhor de uma cultura vasta e de um género raro em
musicógrafos portugueses.
Os seus mencionados *_Princípios de música ou exposição metódica das doutrinas da
sua composição e execução* foram publicados, o primeiro tomo em 1820 e o segundo em
1824, pela Academia Real das Ciências, da qual era sócio.
Conhecidos os parâmetros socioculturais de Ferreira da Costa, e depois do que vimos
em obras anteriores, também de autoria portuguesa e editadas em Portugal, não
admira que os *_Princípios* se apoiem em conhecimentos, interpretações e teorias
então modernas, recebidas mormente da França, mesmo quando não se trate de autores
franceses. Logo na primeira página do prólogo, aparecem os nomes de Euler,
d'_Alembert, Rousseau, Iriarte, sem discriminar por enquanto "muitos outros
engenhos vastos e profundos cujas obras preciosas recreiam o mundo erudito".
Também era de esperar que Ferreira da Costa tenha considerado "os escritos do
Solano incompreensíveis até aos Professores por indigestos, confusos e enunciados
na linguagem da rançosa solfa das mutanças; e os mais, que há em português,
expressos na mesma linguagem; ou incompleto; ou sem método, razões, nem dedução". É
evidente que se encontram aqui implicitamente compreendidos os trabalhos de José
Maurício e de Varela.
A maior admiração de Ferreira da Costa vai parar para os enciclopedistas, com
relevo para vários celebradores da já referida *_Encyclopédie méthodique*. Esta
adesão tem a ver com a tomada de posição contra o princípio do baixo fundamental de
Rameau, um dos autores mais vezes mencionados mas quase sempre para o dizer em
erro.
No princípio do segundo tomo, o autor alegra-se por ter finalmente aparecido "o
complemento da Parte da *_Música* da Enciclopédia metódica", parte que adverte não
ser "tratado elementar". Nem por isso deixará o "músico de espírito filosófico" de
achar "princípios fecundíssimos, e intuitos originais, que possam ampliar o seu
saber, aguçar o engenho e dirigir os voos da atrevida fantasia". Pouco adiante: "E
ousamos prever que a Enciclopédia será o tesouro dos estudiosos da Ciência
harmónica e fixará os destinos da Arte para os séculos vindouros." Aqui a escolha
do século como unidade de tempo foi demasiado imprudente para um homem de ciência.
Escusado seria dizer que Ferreira da Costa quer científico um dos seus dois
principais ângulos de visão. "Como Ciência", a música "supõe cadeia de princípios e
preceitos travados entre si, e todos conducentes para um fim". Mas há também o
outro angulo. "Estudar Música é analisar os sons, e o coração." Se Ferreira da
Costa vivesse hoje, haviam de fasciná-lo as primeiras revelações da psicofísica da
música que estamos tendo, sem falar do que poderia ser para ele a nova luz há mais
tempo lançada pela psicanálise no "coração" de compositores, intérpretes e simples
melómanos.
O livro propriamente dito começa assim: "Os primeiros princípios das Ciências
físicas, estes factos capitais, donde extraímos pelo raciocínio a cadeia das
verdades que constituem o corpo das mesmas Ciências, mais ou menos amplo segundo os
progressos que alcançam de acasos e esforços do :, entendimento, são ministrados
pela experiência e demonstrados pelo testemunho dos sentidos." No parágrafo
seguinte: "recorrer aos sentidos, a fim de lançar os fundamentos da Ciência em
experiências radicais, é processo inicial, de que não podia eximir-se *a Música*,
cuja prática entende imediatamente com a sensibilidade física por meio do ouvido."
O autor desengana os que porventura estivessem na expectativa de um "tratado
apodíctico", como se fosse obra sobre geometria, com as suas conclusões todas
derivadas de "axiomas, definições e hipóteses"; mas também aqueles que não
quisessem mais que uma "colecção de regras soltas e sem ordem, qual se encontra nos
rudimentos que temos desta Arte". O que ele promete é "um tratado resumido nos
princípios e metódico na dedução". E esclarece: "Embora consultemos várias vezes as
decisões do ouvido e tomemos resultados da experiência por base de raciocínios,
ver-se-á contudo que, nos ramos da ciência menos sujeitos aos domínios do gosto do
que aos da razão, me esmerei em sustentar o método geométrico, quanto era possível:
1.o tirando da observação os princípios que me pareceram indispensáveis para
arreigar as teorias; 2.o chamando de outras Ciências os que julguei necessários
para demonstração e esclarecimentos; 3.o deduzindo ordenadamente de uns e outros as
consequências e doutrinas que produzo."
Ferreira da Costa conta entre os "princípios de experiência" os "limites dos
andamentos, a infinidade dos sons, o estabelecimento do semítono por unidades de
intervalos afinados, o prazer da série diatónica, a quase identidade das oitavas, a
composição do som, a série dos harmónicos, etc.". Os "princípios estranhos" vai
colhê-los na geometria, álgebra e acústica, introduzindo-os "em lemas sem
demonstração, pois se acham nos Elementos destas Ciências". Assim tem por firmados
os "preceitos invariáveis da arte". Reconhece que "ficam menos sólidas as leis do
gosto", que na música "tem grande império". Mas está em que esses preceitos não
deixarão de se achar "acompanhados de razões suficientes para autorizarem a sua
prática".
Como não podia deixar de ser, muitos dos dados objectivos em que Ferreira da Costa
se apoia estão errados, à luz de conhecimentos actuais. Por exemplo, em relação ao
campo de audibilidade humana, em função da frequência vibratória: "Procurando os
Geómetras fixar os *limites dos sons*, acharam que o mais grave apreciável faz por
segundo 30 vibrações, e o mais agudo 7552." Hoje, em resultado de medições muito
mais precisas, o espaço da audibilidade humana, no que respeita à dimensão altura,
é colocado pelos cientistas entre, números redondos, 20 e 16.000 hz (235).
Erro de outra ordem e em que, por sinal, continuam a incorrer pessoas de
considerável formação matemática, é o que Ferreira da Costa comete quando,
referindo-se a razões de números pequenos (1/2, 2/3, 3/4 etc., ainda em relação a
frequências) depois de afirmar acertadamente que "as conclusões deduzidas da razão
geométrica destes números não podem ter lugar no sistema do *temperamento* [igual]
pelo qual afinamos os instrumentos", porque nele os números das oscilações dos sons
da escala diatónica e da cromática "deixam de ter com a tónica as razões
precedentes", acentua que as razões temperadas "até são irracionais". Como bacharel
em matemática, Ferreira da Costa devia ter-se dado conta da incorrecção desta
maneira de :, dizer. A menos que não soubesse que, em qualquer vizinhança de
qualquer som de frequência definida por um número racional, há infinitos sons de
frequências irracionais, cuja altura o ouvido humano é incapaz de distinguir da do
primeiro. Em rigor, nem os mais precisos meios de medição actual permitem afirmar
que a frequência de qualquer som concreto está em razão racional ou irracional com
a de outro. O mais que pode afirmar-se é a proximidade de determinada razão, abaixo
do limiar diferencial das alturas.
Note-se que Ferreira da Costa se mostra consciente da condicionante influência do
aparelho auditivo e do sistema nervoso central. "Como, mudada a fábrica dos
sentidos, se alteram as relações dos objectos connosco e transtorna o efeito da sua
impressão, segue-se que as sensações não podem ser avaliadas por princípio algum
abstracto, e independente da prova dos sentidos; e que as relações dos objectos
connosco hão-de ser determinadas por experiências sensuais."
Consequentemente, aqueles que recorrem só "às qualidades físicas dos corpos sonoros
para dar razão dos prazeres da *_Música*" são acusados de se esquecerem "de que os
órgãos dos sentidos são os primeiros agentes das afeições da alma e, recebendo as
impressões dos objectos externos, lhes conferem a tintura e qualidades com que
estas se transmitem à câmara do cérebro, onde o espírito exercita raciocínios e
sentimentos". Neste ponto, o leitor é remetido para outra obra do autor, intitulada
*_Teoria das faculdades e operações intelectuais e morais*.
Sem poder chegar ainda ao grau de generalização das concepções do nosso tempo,
mantendo-se fiel às do seu, muito centradas no momento histórico-musical europeu,
Ferreira da Costa vai, porém, mais longe, a título conjectural exemplificativo:
"Com outra organização auricular, talvez os sons do sistema humano não devessem
distar de *semítono*; os pontos que, no *monocordo*, marcam sons afinados devessem
ficar mais ou menos largos; as oitavas não fizessem impressões quase idênticas; a
série de sons gratos não fosse periódica; ou os períodos constassem de mais ou
menos de 7 sons, com intervalos maiores ou menores do que o semítono, e espalhados
nesta ou naquela sequência. Assim, a escala actual e os modelos gerais do canto e
da harmonia foram estabelecidos experimentalmente pela organização auricular da
espécie humana; e o juízo do *_Ouvido* é supremo sobre a impressão dos sons."
Tudo isto tem de se entender através de um prisma imensamente marcado do século da
razão, que foi também o de Rousseau. Sob a epígrafe *_Do caminho para a invenção em
música*: "ainda que o Ouvido determine o que é ou não conforme com a nossa
organização, fica contudo a Música sujeita ao império da razão: 1.o porque a esta é
submisso o bom método de estudos, e o nexo de noções teóricas e abstractas; 2.o por
ser o verdadeiro guia que pode conduzir-nos no exame das combinações possíveis de
sons, a que em harmonia damos extensa consideração. Tal é a base do tratado
filosófico de Música que apresentamos." Tratado *filosófico*, repare-se bem.
Que filosofia se propôs o autor representar? Não a define explicitamente, mas há
pelo menos um passo em que mostra não ser ateu o seu racionalismo escorado na
ciência experimental. É onde se lê o seguinte: "*_Rousseau* requer neste [ou seja,
no compositor completo], além da perícia e jogo das regras da :, Harmonia, ouvido
fino e culto, engenho fecundo e ardente, gosto puro e delicado e inspiração divina.
De todas estas qualidades, umas adquirem-se da Arte e do Mestre, outras do hábito e
frequência dos bons concertos e orquestras; porém outras só o Criador e a Natureza
podem dá-las." Não será aventurar muito dizer que os conceitos de Criador e de
Natureza que aqui entram devem ter andado muito perto das ideias maçónicas a que
aderiram tantos músicos de todos os pontos da Europa, nos séculos XVIII e XIX.
O racionalismo de Ferreira da Costa foi ao ponto de se bater por certos aspectos da
elevação mental do músico dos quais muitas vezes se tem dito que só foram
propugnados, em Portugal, já em pleno Novecentos. É o caso da sua insistência numa
análise metódica das composições musicais, baseada não só na morfologia tonal
harmónica (escalas e seus graus, acordes e sua arrumação) mas também em
articulações do discurso musical (verso, frase, período, peça). Em seu entender, "a
autoridade e decisão dos ouvidos cultos" é "alcançada pela análise das Obras dos
grandes Compositores". E esclarece que essa análise "tem florescido especialmente
do meado do século XVIII por diante". Noutro passo do livro, ao escrever o que
parece ter pensado em termos da química, acentua que "as obras puras dos Mestres da
Arte oferecem a composição ordenada dos seus símplices elementos: e é preciso saber
analisá-los. Os tratados elementares da Ciência expõem os princípios na sua nudez;
e cumpre saber combiná-los, para se obterem os produtos regulares na perfeição do
estado composto."
Naquilo a que Ferreira da Costa chama a "lógica dos sons" entra uma noção de
*motivo* que, embora não seja idêntica à de futuros analistas musicais, merece
atenção: "Combina-se pois multidão de *motivos* com a unidade da peça por meio do
fio lógico, que ata as diversas ideias. E posto que hajam indícios externos, pelos
quais cheguemos a reconhecer este laço, contudo as mais das vezes é metafísico, e
só o espírito e o sentimento podem percebê-lo. Se o Compositor não possui a Lógica
dos sons, mal poderá encadear as suas ideias." Pensar que cem anos depois ainda foi
necessário lutar em Portugal contra a concepção de um compor música todo feito de
inspiração de momento!
O seguimento do mesmo parágrafo continua a revestir interesse, até pelo que
demonstra de atraso em relação ao que havia muito tempo já tinha sido praticado por
grandes compositores, nomeadamente os que Ferreira da Costa mais admirava (Haydn,
Mozart): "Cada frase de uma peça deve ser deduzida estreitamente das que lhe
precedem; e jamais motivo novo, posto que muitas possam vir a sê-lo, passando da
classe de ideias acessórias à de principais. Por maior interesse que o Compositor
dê aos períodos diferentes do inicial, há este de ocupá-lo sempre como primário; e
se os Ouvintes lhe negam a maior consideração, é culpa dele."
A "modernidade" de Ferreira da Costa reflecte uma emancipação social do músico que,
escusado seria dizê-lo, se verificou incomparavelmente mais em países do centro da
Europa, e em Inglaterra, do que em Portugal. Aspecto bem representativo do fenómeno
é o da elevação do nível cultural do músico, muito por via livresca. Ao longo do
século XIX assistir-se-á a uma como que consolidação prestigiosa do conceito de
*cultura geral*, feita de conhecimentos -- mais em superfície do que em
profundidade - que :, noutros tempos os senhores tinham por desnecessários aos seus
músicos-criados. Note-se, porém, que o devir histórico, também neste aspecto, tem
contradições. Em termos genéricos, pode talvez dizer-se que o que o músico ganhou
de cultura geral, naquele período de transição histórica, foi perdendo na banda dos
conhecimentos e aptidões especializados. Vejamos o comentário de Ferreira da Costa
ao que o velho Zarlino exigira do músico perfeito: "posto não sejam indispensáveis
ao *_Compositor de Música* tantos conhecimentos, contudo será mais completo o que
reunir a tintura de todos eles; ajuntando com *Guinguené*, que deverá ainda ter
luzes de todos os instrumentos, a fim de evitar escrever para algum deles passos de
execução impossível." Foi precisamente isto o que veio a acontecer a ninguém menos
do que Robert Schumann.
Estribando-se embora tanto em autores publicados no estrangeiro, Ferreira da Costa
diligenciou por imprimir no texto a marca da sua própria personalidade. A formação
de matemático reflecte-se em lemas, teoremas, problemas. Formação de músico
propriamente dito é que parece não ter tido, a julgar pelo que adverte no prólogo:
"eis aqui o fruto de assíduas meditações empreendidas e continuadas por impulsos da
alma sem sementes de escola ou mestre algum, nem auxílios alheios."
Dá a entender que depreendeu independentemente conclusões importantes. "Chegando-me
à mão o complemento da parte da Música da Enciclopédia Metódica (aparecido em
Lisboa em Fevereiro de 1819) muito depois de ter escrito e entregue este 1.Q Tomo,
acho nele com bastante satisfação opiniões de *_Mr. de Momigny* mui conformes com
as que sigo." Não hesita em manifestar-se discordante, não só de Rameau, como
vimos, senão que também, em questões pontuais, de um Rousseau e um d'_Alembert ou
de investigadores e mestres ainda vivos, designadamente o ilustre Jérôme-_Joseph de
Momigny (1762-1842), considerado o fundador da teoria do fraseado musical, e
Charles-_Simon Catel (1773-1830), que tinha nos seus pergaminhos as qualidades de
professor e inspector do Conservatório de Paris e de membro do Instituto.
Como seria de esperar, adere ao metrónomo de Mälzel. Mas com um sentido crítico que
lhe estimula a veia de inventor. Depois de dar notícia de que os primeiros
aparelhos apareceram em Lisboa em Agosto de 1818 -- parece que juntamente com
"algumas músicas francesas com os andamentos indicados pelos *sinais metronómicos*"
faz considerações curiosas, cuja pertinência não viria a ser plenamente comprovada
pela prática da execução musical.
Por meio do "metronómio" ou "cronómetro", diz-nos o autor, veremos agora,
finalmente, "os Compositores e Executores de Música seguirem os mesmos rumos e
derrotas, como segue o Piloto a da sua viagem perdendo a terra de vista, depois que
o inventor da agulha lha deu para o conduzir pelo meio das ondas entre os Ceos e o
Mar. Só desejaríamos que o metronómio, por um registo, se torne sonoro ou surdo". E
isto para quê? A explicação não pode deixar de hoje causar um certo espanto: "para
que, surdo, sirva de governo ao Corifeu no concerto de sala, sem perturbar os mais
Executores, que devem regular-se sempre por este." O registo sonoro deveria servir
só :, "nas escolas de Música e estudos particulares para dirigir pelo ouvido os
exercícios do Discípulo, mormente na ausência do Mestre".
Passemos por cima da descrição do pêndulo concebido pelo académico português, com a
vantagem, segundo ele, não só da surdez (ou, mais exactamente, mudez) mas também de
uma isocronia mais igual que a do mecanismo de Mälzel. O interessante é observar
que a utilidade de qualquer metrónomo tinha que verificar-se no plano do estudo,
mas não no da execução em público. Neste capítulo, toda a tendência do momento
histórico pouco antes do auge do fervor romântico, era para a flutuação de
andamento e de ritmo, o mais possível ao sabor do sentimento, da fantasia, do
impulso quase improvisador. Numa palavra, para o *não* metronómico.
Ferreira da Costa dá como suas outras ideias, estas ditadas por um propósito de
racional simplificação. A primeira é a de reduzir todas as claves a uma só. Esta
seria basilarmente escrita assim:
significando que a terceira linha corresponde ao dó central. O problema das
diferenças de tessitura seria resolvido pelo acrescento de pares de pontos à
direita e à esquerda, significando saltos de outras tantas oitavas, para cima ou
para baixo, respectivamente. Se por exemplo conviesse um salto para duas oitavas
acima, escrever-se-ia
enquanto que
indicaria uma descida de duas oitavas. Não custa admitir que esta radical
simplificação poderia ter feito brilhante carreira internacional se, entre os
músicos práticos de todos os países, não tivesse continuado tão poderosa a força do
hábito, ou da rotina. :,
Músico prático, eis o que Ferreira da Costa não era com certeza. Outra ideia que
defende prova-o bem. Nada menos do que reduzir todos os compassos ao binário! E
como? Vejamos, por exemplo, como se reduziria o ternário. "Por dois modos", explica
o autor. O primeiro consistiria em "repartir cada compasso ternário em três
binários, com a competente mudança das figuras"; isto, no caso de andamento
vagaroso. Se, porém, este fosse rápido, haveria que "reunir cada dois ternários em
um só de 6/8", com ou sem mudança de figuras. Qualquer executante musical, de hoje
como de então, reage imediatamente a este esquema, pelo que ele denuncia de
desconhecimento da interrelação prática de compasso e ritmo.
Outro contexto em que Ferreira da Costa se inculca original é o da ainda hoje
controversa explicação "científica" dos privilégios do acorde perfeito maior e,
sobretudo, do menor. Temos no entanto que concluir que a argumentação dificilmente
poderia ser menos científica: "Supondo nulos na ressonância o *incomensurável 7*
(onde é já sensível a divergência entre as linhas da filiação harmónica, e do
temperamento) e todos os harmónicos mais agudos e pianos do que ele, e
simplificados os intervalos compostos, teremos uma colecção de três únicos sons
distintos, que são 1.a, 3.a e 5.a. Com pequena alteração na 3.a para cima, e na 5.a
para baixo, torna-se esta em acorde de 1.a, 3.a maior e 5.a exacta. E com a mesma
alteração na 5.a, e outra um pouco maior na 3.a para baixo, torna-se em acorde de
1.a, 3.a menor e 5.a exacta."
Se malabarismos destes fossem correctos, facílimo se tornaria prestigiar
cientificamente qualquer acorde. Ferreira da Costa ainda tem um certo escrúpulo ao
observar que a sua fundamentação do acorde perfeito menor envolve um processo menos
"explícito" e também menos "aproximado" que o apontado para o acorde maior. No
entanto, poucas páginas adiante, logo depois de acusar Rameau de delírio, ousa
afirmar que "ninguém até agora extraiu" do fenómeno da ressonância do corpo sonoro
"os acordes principais do tom maior ou menor com tanta simplicidade como nós".
Noutros passos do livro, o sentido crítico do autor exerce-se de modo a prestar-nos
informações interessantes sobre certas práticas musicais do seu tempo. Ficamos, por
exemplo, a saber que a marcação do compasso se fazia de maneiras diferentes nas
manifestações musicais profanas e nas eclesiásticas: "Adquirido o hábito de acertar
as demoras das figuras pelo compasso, é preciso perder o de batê-lo de rijo. Sendo
o compasso (como o *ponto* nos teatros) necessário para a certeza dos executores,
estraga o efeito das peças, se deixa perceber-se pelo auditório. As pancadas do
compasso perturbam a doçura do canto e depravam a expressão dos *acentos*, e mais
belezas, de que o ouvido deve apossar-se, independente do anúncio das batutas. Nos
concertos de sala não se bate compasso: apenas marca o Regente os primeiros quatro
tempos nas mudanças de andamento, ou quando algum dos executores se desencaminha.
Nos teatros também se não bate compasso, salvo no mesmo caso."
Que flexibilidade, que diferenciação, que dinamismo poderia obter-se desta maneira?
Como soaria um divertimento em estilo galante, quanta graça perderia a música de
qualquer ópera cómica, ainda que fosse de Mozart? Mas Ferreira da Costa queixa-se
de que nas músicas de igreja era ainda muito pior, onde se mantinha o "abuso" de
marcar sempre o compasso, :, com ruído. Às vezes, o ouvinte não podia impedir-se
"de ver com ludíbrio o empenho do *_Corifeu*", que, para se mostrar superior,
conduzia "com rijas pancadas a marcha da música". Isto, mesmo que ninguém estivesse
fora de tempo. E até acontecia ser ele, corifeu, quem "mil vezes" desordenava o
discurso musical, "pelo seus estrondos".
Quanto a andamentos, o segundo é proposto como "a medida mais natural e filosófica"
adoptável como "unidade do tempo". Mais elucidativo se torna o acrescento de que
convém fixar nele (segundo), "por uma vez, o ponto médio do *_Andante*, e da escala
dos andamentos". Note-se, porém, que este critério era o observado trinta anos
antes, "quando os grandes executores, fazendo menos ostentação de dificuldades,
conduziam os concertos de Música com maior gravidade e doçura".
Parece lícito inferir que, em Portugal como nos países europeus mais evoluídos, a
execução musical acelerou consideravelmente desde o tempo em que Mozart fazia as
suas derradeiras apresentações públicas, como pianista, e aquele em que o jovem
Liszt se aventurava nas primeiras. Também neste aspecto Ferreira da Costa não se
deu conta da necessidade histórica de um vector evolutivo, dirigido no sentido
crescente da virtuosidade. O seu conservadorismo a tal respeito manifesta-se, por
exemplo, quando fala dos "allegros e rondós desregrados, em que os Compositores
modernos de torto engenho acumulam exércitos de notas sem coerência nem ligação".
Falta-nos saber a que autores se referia. Mas, de qualquer modo, volta aqui a
expressar-se uma atitude contrária à tendência para apressar os movimentos. Não
deixa, aliás, de ter a noção de que estava na indústria da construção de
instrumentos um dos mais decisivos factores dessa evolução. Na mesma página
reconhece que "o invento e perfeição dos pianos-fortes" tornaram estes "muito mais
aptos do que o cravo para a ligeireza e voo dos cantos". Precisamente os pianos
estavam em vias de importantes melhorias, como aliás muito outros instrumentos,
incluindo arcos e sopros. Até os violinos, cuja indústria de fabrico tantos
pergaminhos tinha, estava sofrendo alterações. Pode dizer-se que todas estas se
orientaram pelo aumento da virtuosidade e da intensidade sonora, indispensável ao
alargamento dos auditórios, pressionado por motivos socioeconómicos.
Com tudo o que tem de imensamente parcial, a crítica do contraponto tem outra
validade histórica. Está em consonância com as ideias então "modernas". Ferreira da
Costa não deixa de dizer que, "apesar do desprezo que hoje se tem pelo
*_Contraponto*", entende "necessário ao Compositor que o possua". E, já perto do
fim do livro, vai mais longe: "Mas por que meio chegará o Compositor a achar dois
cantos que, suposto diferentes, não quebrem a unidade de melodia, e possam ser
transpostos a diversos tons e modos, sem sair no dueto vocal do diapasão das vozes?
Estudando com cuidado o Contraponto duplicado, as imitações e mesmo a fuga livre."
Em todo o caso, a atitude do autor é avessa a construtivismos. "É sábia puerilidade
tornar a tarefa de imitações retrógradas ou em movimento contrário. Tudo o que não
se sente torna-se nulo. Os trabalhos difíceis têm por certo seu merecimento; mas
não é esse o verdadeiro fim das belas Artes." Fazendo-se eco de Rousseau, diz que,
"em geral, as fugas tornam a música mais estrondosa do que aprazível, e portanto
convém antes nos coros do que :, noutra parte". Que, "sendo sempre medíocre o
prazer movido por este género de música, pode dizer-se que uma bela fuga é o
ingrato primor de um bom harmonista". Que "as *_Contrapugus, duplas fugas* e outras
combinações ridículas e pueris, que o ouvido não pode sofrer nem a razão
justificar, são visivelmente restos da barbaridade e do mau gosto, que como as
fachadas dos templos agóticas, só subsistem para vergonha dos que tiveram a
paciência de fazê-las". Que, com "Cânones inversos, retrógrados e de duas caras" os
"antigos Mestres" definhavam-se "só pelo gosto de atormentarem os Leitores, e com o
fruto de fazerem bocejar todo o Auditório, quando chegavam a decifrá-los". E que,
depois dum tão cansativo "fazer música para a vista", passou a compor-se só "para o
ouvido e para o coração".
Vale ainda a pena observar que Ferreira da Costa discrimina o emprego do
contraponto em função dos fins a que a música se destinava, dando-o como máximo
(relativo) na esfera eclesiástica e mínimo, para não dizer nulo, na teatral e na
puramente instrumental: "veio a chamar-se *_Contraponto* em geral toda a música
combinada segundo as leis do Contraponto ligado ao Cantochão; e hoje mesmo, que
estas se têm relaxado em grande parte, chama-se muitas vezes *_Contraponto* a toda
a Música sábia e rigorosa, para distinção da teatral ou instrumental, muito mais
florida e variada." Depois de acentuar que as regras dadas pelos Contrapontistas
antigos ainda eram observadas "na música de Igreja a vozes, ou com acompanhamento
de órgão", acrescenta que, "na harmonia dos modernos", as mais delas eram
desprezadas, "e felizmente a miúdo".
As últimas transcrições já indicam outra faceta relevante dos *_Princípios de
música: o desígnio de historicidade. Incomparavelmente mais do que qualquer
tratadista musical português, Ferreira da Costa esforça-se por traçar o presente
como o segmento final de um longo passado, no curso do qual a arte dos sons
evoluíra mais ou menos continuamente. Também neste aspecto se mostra moderno. Como
não podia deixar de ser, os seus conhecimentos de história da música enfermam de
erros, à luz da musicologia de hoje. Por igual se compreende que a sua exposição
não contenha praticamente nada de análise económico-sociológica. E que a evolução
histórica da música seja pintada como um contínuo progresso artístico, sem aquele
sentido de relatividade, implicando diferentes sistemas de coordenadas, que o
entendedor de arte hoje tem.
A este respeito, o exemplo mais elucidativo é porventura o do menosprezo do
cantochão: "Eram bem escassos os efeitos da Música, quando os sons lisonjeando o
ouvido somente por serem afinados, produziam pela igualdade de suas durações
insípida monotonia, como sucede no cantochão." Noutro passo, lê-se que o cantochão
só pode "lisonjear o ouvido" se se lhe juntarem a "plenitude e riqueza da harmonia"
de sucessivos acordes. Esta incompreensão foi muito partilhada na época, inclusive
no seio da Igreja. Só nos tempos de Mussorgsky e de Debussy vieram os antigos
cantos monódicos cristãos a readquirir o seu prestígio de formas musicais
esteticamente superiores, junto da intelectualidade afecta à música.
A redução dos modos eclesiásticos ao maior e ao menor não é relatada como
empobrecimento de algum modo lamentável. "Nascido o *_Contraponto* debaixo do
império do *_Cantochão*, não teve por muito tempo outros *modos* :, senão os dos
antigos, que não eram verdadeiros modos de escala e tom completo, mas diversas
formas de tetracórdios; noo teve outros *tons* senão os da Igreja, que não passavam
de combinações parciais de diferentes tons sem unidade harmónica." Isto joga com
outras afirmações igualmente simplistas e marcadas pela época. "Reconheceu-se que
em toda a Melodia e Harmonia há somente duas *escalas* e dois *tons*, um do *modo
maior* e outro do *menor*, ambos estabelecidos pela natureza com caracteres
distintivos e formando duas famílias de heptacórdios com diverso predomínio de cada
som. E sentiu-se que todos os mais tons e escalas vêm a ser exactamente
transposições, ou transporte dos dois modelos a outras cordas do *sistema
dodecafónico* (ou temperado)."
Está claro que o compasso é tido na mais alta conta. Nada menos do que "a vida da
Música". E também a harmonia funcional, com rasgados elogios às potencialidades do
baixo e de determinados acordes, como os de sétima da dominante e de sétima
diminuta. "A *_Harmonia* é hoje reconhecida pela parte mais bela da *_Música*, mais
susceptível de novas e variadas combinações, mais sujeita ao império da razão e
enfim mais própria na sua união com a *_Melodia* e o *_Ritmo* para os grandes
efeitos da expressão. Ela contribui por si principalmente a representar ao Ouvido
os maiores quadros da natureza e da fantasia, e arrebatar o coração com os seus
divinos encantos." A asserção de que, então, o melhor modelo de harmonia era "o
estilo Alemão", e o de melodia e canto "o gosto Italiano" quase parece uma
antecipação daquele crítico musical (?) que, há poucos anos, pasmava de ninguém ter
tido a ideia de encarregar Puccini de compor novas melodias para as harmonias de
Wagner.
Se o compasso é a vida da música e a harmonia a sua parte mais bela, o baixo é a
sua alma, "e a *bússola* do Compositor". Quanto aos acordes, é claro que; mesmo que
não explicitamente, são apresentados através do prisma do baixo cifrado. Dos seus
encadeamentos, Ferreira da Costa realça os que, com bom gosto e perícia técnica,
envolvem mudança de tonalidade. Note-se que não lhes chama modulações, mas sim
transições. Na sua nomenclatura, modulação é todo o progresso de melodia ou
harmonia, com ou sem mudança de tom. Compreende-se assim o que quis dizer no
seguinte passo: "As transições do género enarmónico exigem mão de mestre na sua
preparação e resolução; mas, sendo poupadas e bem feitas, transportam a alma e
produzem os efeitos mais sublimes da Música." É evidente que se trata de enarmonia
reduzida ao sistema da afinação igual.
Sobre instrumentação e orquestração, o livro nada oferece merecedor de atenção.
Apesar das importantíssimas contribuições de Gluck e outros, o culto do colorido
instrumental ainda estava para vir, com Berlioz, Liszt, Wagner, os russos. Mas há
várias referências a instrumentos, por vezes com informação sobre funções que
desempenhavam. Ficamos por exemplo cientes de que o cravo não só estava ainda em
uso nos anos 20 do Oitocentos como continuava a ser o normal instrumento
acompanhador.
Aliás, cravista era a designação genericamente aplicada aos executantes de tecla.
Mas, além das vantagens do piano já referidas, é salientada a sua melhor aptidão
"para os variados matizes da expressão". Noutra alusão, o piano é dito "uma
orquestra em pequeno". Por outro lado, não é só a cantores, :, mas também a
instrumentistas que o autor se reporta, ao falar de "*cadências* e prelúdios *ad
libitum* no fecho dos *concertos* e *solos*", cadências que "até se executam em
*dueto*", parecendo, no entanto, apenas "próprias de peças de execução e alardo".
Que é como quem diz, de virtuosidade.
É de sublinhar o espaço dedicado a formas musicais. Um capítulo incide sobre
"dueto, terceto, quarteto, etc.". Nele se lê que o terceto, vocal ou instrumental,
"é conceituado a mais excelente espécie de composição e deve ser também a mais
regular". Mais ainda do que este, o capítulo sobre a sonata, o concerto e a
sinfonia trai um grande atraso em relação às últimas inovações ou elaborações dos
clássicos de Viena. Por exemplo, ao esquematizar uma forma-padrão da sinfonia,
Ferreira da Costa não dá ainda o *scherzo* como, pelo menos, alternativa do
minuete. E leva depois a supor que o último andamento -- não só da sinfonia como
também da sonata e do quarteto -- tinha de consistir num rondó com duas coplas.
Isto, publicado na terceira década do século XIX!
Mesmo assim, é estimável, porque significativo para a história da musicografia
didáctica portuguesa, que aquelas formas musicais tenham merecido a atenção do
autor, dum ponto de vista analítico. Significativo também é o desinteresse de
Ferreira da Costa pelas formas especificamente operistas. Dir-se-ia, até, que evita
a palavra ópera. Na verdade, emprega-a muito pouco, substituindo-a às vezes por
teatro. Lidas as cerca de 470 páginas dos dois tomos dos *_Princípios de música*,
não resta a mínima dúvida de que Ferreira da Costa não era afecto à ópera, no que
parece legítimo ver uma atitude do sector da intelectualidade portuguesa que, não
apenas no que tangia à música, se considerava a si mesmo o mais esclarecido.
Enquanto Ferreira da Costa aprontava o seu livro, representava-se em Lisboa, entre
outras de diferentes autorias, qualquer coisa como uma dezena e meia de óperas de
Rossini, incluindo *_La Cenerentola, O barbeiro de Sevilha, La gazza ladra, Otelo,
Il turco in Italia, Tancredo* e *_Mosè in Egitto*. Quanto a produção indígena,
contentemo-nos com assinalar pelo menos duas óperas de Marcos Portugal, que ainda
era vivo: *_Demofoonte* e *_Mérope*. Ferreira da Costa passa no entanto em claro o
então mais festejado compositor de ópera do mundo e o seu colega português de maior
reputação.
Não podem dizer-se compensatórias as inclusões de certos outros compositores, como
Angelo Maria Benincori, gabado em termos de "compositor elegantíssimo, cheio de
imaginação, gosto e ciência da arte, e interesse a todas as partes da harmonia".
Note-se que, tirando o êxito póstumo da sua revisão e completação do *_Aladino*, de
Isouard, o mesmo Benincori tinha fracassado na ópera.
Os compositores mencionados por Ferreira da Costa a título elogiativo confirmam o
seu anti-operismo. Ainda quando se trata de alguns de importância capital na
crónica do teatro por música, não é como tal que são enaltecidos. O facto de essa
hostilidade não ser manifestada explicitamente pode talvez explicar-se pelo receio
de ofender a opinião melómana, a ponto de afectar seriamente a venda do livro.
Em contrapartida, há informações importantes relativas à música de concerto. Por
exemplo, a que toca a escola de Mannheim, nomeadamente através da referência aos
Stamitz. Mas não estão suficientemente actualizadas. :, Para o provar, bastam os
casos de Schubert, completamente omisso, e sobretudo o de Beethoven, que em 1824 já
tinha criado quase todas as suas obras capitais, incluindo a *9.a Sinfonia*, cuja
estreia se deu nesse mesmo ano. É claro que não podia exigir-se de Ferreira da
Costa o seu conhecimento; e ainda menos o de partituras não terminadas, como os
quartetos de corda op. 131, 132, 133 (*_Grande fuga*) e 135. Mas isto não é razão
para que o autor da *_Sonata apassionata* e da *_Sinfonia pastoral* tenha sido
tratado como vamos ver.
A respeito da sonata então moderna: "E que diremos de *_Steibelt*, de *_Beethoven,
Kozeluch, Clemente* [sic], *_Cramer, Pleyel, Bontempo* e tantos outros, cujas
composições e execuções, portentosas e admiráveis por diversos estilos e
qualidades, enchem hoje de encantos as sociedades filarmónicas? Acaso têm eles já
concluído a sua brilhante carreira? Vendo-os caminhar pela árdua vereda da glória
para o templo das Musas, só nos cabe apreciar seus méritos relevantes; que julgálos
compete à posteridade. Direi contudo que a sonata, nas mãos destes criadores,
tem recebido em si por várias formas os mais belos períodos da eloquência, as
descrições e transportes da poesia, a viveza e coloridos da pintura e a acção
animada do teatro." Aqui, o que mais choca hoje é ver Beethoven metido num saco com
um Daniel Steibelt -- que fora uma espécie de compositor da moda -- um Leopold
Kozeluch, um Johann Baptist Cramer, um Ignaz Pleyel.
A outra menção reporta-se à sinfonia e, por tabela, à música de câmara. Reza assim:
"*_Beethowen* [sic] mostra-se grande músico na sinfonia, como no quarteto e na
sonata: mas falta-lhe às vezes a naturalidade e o sólido saber que exalta os
verdadeiros modelos." E pronto. O autor passa logo, no mesmo parágrafo, a Méhul,
André (provavelmente Johann Anton, n. 1775, o mesmo que adquirira o espólio de
Mozart) -- de quem diz que "maneja na grande orquestra efeitos prodigiosos e
harmonia canora mui rica e sábia" -- e outra vez Pleyel, para terminar com outra
interrogação: "Mas podemos nós avaliar o quilate de merecimento de tantos engenhos
que dedicam hoje à sinfonia seus trabalhos e invenções?"
Ao longo do livro, Ferreira da Costa ignora quase totalmente os compositores e
intérpretes musicais seus compatriotas. A referência a Bontempo, acima transcrita,
é excepcional. O seu nome nem sequer é dado com os João e Domingos que mais
precisamente o identificariam. Contudo, Bontempo já entretanto conquistara e
firmara fama em Paris e em Londres, como compositor e pianista. Parcimónia tanto
mais de estranhar, quanto é certo que as inclinações musicais de Ferreira da Costa
não parecem divergir essencialmente das de Bontempo. Teria havido política de
permeio? Recearia o musicógrafo arranhar susceptibilidades miguelistas?
Do que não cabe duvidar é de que a máxima admiração de Ferreira da Costa vai para
Haydn e Mozart; com o que não pode dizer-se que fique mal colocado. São aduzidos
vários casos exemplares dos dois mestres, logo desde o princípio do livro. Até que
perto do fim, a respeito das grandes formas instrumentais, se lhes atribui a maior
contribuição para que o Setecentos tivesse ganho jus ao "título de século das luzes
no império das Musas e de Apolo". Porque "do seu saber e força de invenção alcançou
a :, harmonia e a arte das transições progressos espantosos e efeitos até então
desconhecidos".
Em relação à sonata, lêem-se considerações bastante judiciosas: "*_Mozart*, igual a
*_Haydn* na composição, porém mais hábil pianista, mostra quanto importa esta
qualidade para achar debaixo dos dedos o que se oculta sem o seu socorro. As
sonatas de *_Mozart* produzem maior efeito no piano do que as de *_Haydn*; porque
têm mais graus de força relativamente ao jogo do instrumento. Para ser
perfeitíssimo na música de piano, cumpria juntar ao sabor e engenho de *_Haydn* e
*_Mozart* a habilidade dos grandes pianistas modernos. Então teríamos na sonata a
união do novo e admirável com o sólido e brilhante."
Mais adiante, Ferreira da Costa acaba por fazer discreta alusão ao teatro, cuja
falta, pelo menos em relação a Wolfgang Amadeus, tocaria as raias do escandaloso.
Parte da sinfonia, dizendo que "chegou ao máximo da perfeição" no fim do século
XVIII. Isto, "pelas últimas 12 sinfonias de *_Haydn*, que reúnem toda a frescura da
primavera aos ardores do verão e à madureza do outono. *_Haydn* é o engenho que
melhor concebeu o tipo da sinfonia; e vê-se com admiração que tanto mais ele se
adiantava em anos mais verniz de mocidade reluz nas suas obras. A sinfonia de
*_Mozart*, igualmente férvida e vigorosa, posto que às vezes menos castigada, ocupa
o lugar imediato à testa deste género de composição. A orquestra é um instrumento
complicado, que estes dois mestres tocam perfeitamente, movendo-o com as notas de
música pintadas no papel. Recheado o entendimento de espécies e efeitos sonoros,
sem consultarem o ouvido (que contudo lhes forneceu os elementos da arte), ordenam
sobre a banca e com a pena na mão prodígios de harmonia; e daí expedem acabadas as
grandes composições para inumerável instrumental, que hão-de encher o auditório de
prazer e admiração no Templo e no Teatro. Eis aqui pois a verdadeira ciência da
música."
O conceito de evolução histórica da música como uma sucessão de progressos não só
na extensão dos meios e das incidências mas também nos valores estéticos, aferidos
por uma escala absoluta, deveria levar Ferreira da Costa a considerar o seu próprio
tempo o de supremo nível. Parece, no entanto, haver-se-lhe sobreposto a tendência
geral, manifestada possivelmente em todas as gerações desde há milénios, para
colocar as realizações dum recente passado acima das do presente, acusando estas de
decadência ou degeneração. Para o que decerto contribuiu a falta de conhecimento
directo, vivencial, das mais representativas manifestações da modernidade musical
de então.
Tudo somado, com o seu amadorismo teorizante, a sua autodidaxia livresca, a sua
falta de informação e vivência musical *up to date*, o seu alheamento da história
da cultura portuguesa e do que esta então concretamente era, os *_Princípios de
música* apresentam-se-nos afectados de sinal positivo. Isto em grande medida, e por
paradoxal que pareça, em virtude dessa mesma realidade concreta nacional que, nos
domínios da arte dos sons, enfermava de um nível mental médio muito abaixo daquele
que o livro reflecte. As mais das linhas-mestras do pensamento de Ferreira da Costa
-- um cientismo de base experimental não primariamente mecanicista, um desígnio de
conciliar a razão com o prazer do ouvido e com os afectos :, traduzíveis por
música; a propugnação do melódico acórdico em detrimento do construtivo
contrapontístico, do instrumental na esteira do classicismo vienense contra o vocal
operista infectado de superficialidade; e até um incitamento, posto que tímido, à
exploração das virtualidades cromáticas da harmonia -- apontavam no sentido do
momento histórico europeu, ou seja do romantismo, cujas mais representativas,
brilhantes e inovadoras manifestações iam dar-se nas décadas subsequentes. É
evidente que não podemos exigir de Ferreira da Costa uma beethoveniana antevisão de
que a expressividade subjectiva teria que vir a ser superada por um novo
construtivismo objectivante.
Ante o desconhecimento das teorias da música que então reinava em Portugal,
Ferreira da Costa propôs-se escrever obra "capaz de dirigir os estudos da mocidade
e as aplicações de tantos curiosos que desejam penetrar os mistérios da harmonia e
contraponto".
O capítulo seguinte focará condições histórico-sociais, iniciativas individuais ou
colectivas, oficiais ou particulares, êxitos e fracassos que algumas vezes vieram a
saldar-se a favor daquelas solicitações da "mocidade" e dos "curiosos" de 1820, mas
que não puderam elevar tanto o nível da cultura musical portuguesa quanto o
bacharel Rodrigo Ferreira da Costa decerto desejou.
CAPÍTULO VII
ANTECEDENTES DA ÉPOCA ACTUAL
Aspectos sociais e económicos
A dominação da nossa cultura musical pela de um país estrangeiro, *_Leitmotiv* do
último capítulo, apresentou-nos um panorama português muito diferente do actual.
Hoje é impossível apontar o equivalente do italianismo de então, porque, na
verdade, ele não existe. As maiores demonstrações de apreço distribuem-se agora,
pode dizer-se que igualmente, por obras e intérpretes representativos da música
alemã, da francesa, da espanhola, da italiana. A portuguesa, essa continua a
receber tratamento de favor, e é até de algum modo menos cotada do que nos tempos
de Sousa Carvalho, Marcos Portugal e Leal Moreira.
Essa diferença entre passado e presente só pode compreender-se tendo em atenção
toda uma transformação social e económica, muito mais intensa e profunda noutros
países, mas que se operou também no nosso, com o habitual atraso. Uma transformação
que, a pouco e pouco, foi opondo solicitações colectivas à opinião e vontade dos
senhores absolutos -- opinião e vontade individuais que se impunham a grupos
sociais delas dependentes (236).
No campo das artes tais solicitações colectivas só podiam ganhar expressão na
medida em que uma quantidade considerável de indivíduos se libertasse do poder
senhorial e dispusesse de meios de sobrevivência. E não só isto: também na medida
em que pudesse elevar-se intelectualmente, em consequência do seu levantamento
económico-social. Estas condições realizaram-se por um longo processo histórico,
foram uma das causas da Revolução Francesa e, depois, uma das suas consequências.
Nesse movimento histórico se integra o racionalismo de Setecentos, de que a reforma
de Gluck é um reflexo musical. Portanto, uma das censuras feitas ao italianismo
então mais apreciado radicou-se numa substrutura social, económica e cultural de
que recebeu o seu suco vivificante. Vimos como Gluck frequentou círculos
intelectuais a que pertenciam individualidades portuguesas, como António da Costa
ou o notável D. João Carlos de Bragança, duque de Lafões, a quem é dedicada a ópera
*_Paride ed Elena* ( 1770) (237).
Gluck inicia assim a extensa alocução: "Alteza! No dedicar a Vossa Alteza este novo
trabalho, dirijo-me menos a um protector do que a um juiz. Um :, espírito imune dos
preconceitos vulgares, um suficiente conhecimento dos magnos princípios da Arte, um
gosto que se formou não tanto pelos grandes modelos como pelos fundamentos
invariáveis da Beleza e da Verdade, eis as qualidades que procuro no meu Mecenas e
que encontro conciliadas em Vossa Alteza."
As relações entre a cultura portuguesa e a nova mentalidade que se afirmava na
Europa (movida pela força ascensional da burguesia, mas declarando-se e
cultivandose também entre aristocratas) não se limitaram, no domínio musical, aos
casos do
futuro fundador da Academia das Ciências e do curioso abade Costa. Em 1762 o cónego
Francisco Bernardo de Lima protestava, nas colunas da *_Gazeta Literária*, do
Porto, contra o artificialismo das cantoras, afirmando que seria muito melhor que a
melodia se utilizasse para criar imagens poéticas e os encantos da harmonia para
embelezamento das modulações das vozes. Também na *_Gazeta Literária*, ocupando-se
dum livro inglês sobre o teatro europeu, o notável intelectual emite opiniões
avisadas sobre a verdade dramática e a verosimilhança no espectáculo de ópera
(238).
A reforma de Gluck, como todas as que vingam, não foi acto de pura criação. Era
expressão superior de uma ordem de ideias que andava no ar. Antes dela, em 1755, o
*_Saggio sopra l'opera in musica*, de Algarotti, pusera em cheque algumas das
inferioridades da ópera tal como se praticava então, sem 0 mínimo respeito pela
lógica. Seria possível apontar mais exemplos (239).
O que a reforma de Gluck tinha de autenticidade histórica, essa condição necessária
para que uma doutrina perdure, foi todavia um dos motivos que tornaram impossível
um seu reflexo importante em Portugal. O mesmo podemos dizer, e até com mais forte
razão, do sinfonismo e da música de câmara austro-alemães. A autenticidade que
envolvia a existência duma classe média numerosa, em vias de rápido desenvolvimento
intelectual, transformava-se em falsidade onde quer que tal não houvesse A arte
músico-dramática do Gluck reformador exigia da plateia uma mentalidade mais
cultivada do que as acrobacias vocais sem qualquer conteúdo.
Fenómeno muito interessante esse, que pôde dar-se na Europa central (e não na
meridional), da superação dum espectáculo de ópera que a burguesia amoldara ao seu
corpo por outros, de ópera ou não, que uma burguesia mais instruída preferia e
preconizava, porque reflectiam a sua própria imagem. O sinfonismo e a música de
câmara dos períodos ditos clássico e romântico ainda mais significam a elevação da
mentalidade da classe média, porque solicitavam mais o sentido do ouvido, quase não
entretendo o da vista. Se não se tivesse dado essa elevação, não teria sido
possível aparecer um público suficientemente numeroso para garantir a administração
de concertos sinfónicos ou de câmara. Estes, em todo o caso, mantiveram-se
praticamente durante todo o século XIX como espectáculos variados, em que os
números de ópera não tinham dificuldade de encontrar lugar (240).
Relaciona-se com esse fenómeno o surgimento da musicografia no sentido moderno.
Muito bem diz Bukofzer, no seu livro *_Music in the baroque era*, que, "estando a
sala de concerto e uma audiência anónima em pleno processo de formação na última
fase do período barroco, não havia ainda :, necessidade de que críticos musicais
formulassem a opinião pública". E acrescenta: "E característico que os primeiros
traços de crítica musical aparecessem em revistas de informação geral, como o
*_Mercure galant* e o *_Spectator*, mais tarde imitados pela *_Critica musica*, de
Mattheson, e por *_Der Critische Musikus*, de Scheibe, os primeiros exemplos de
crítica profissional de música. Os escritos de Mattheson e, especialmente, os de
Scheibe mostram já uma crescente influência das ideias do iluminismo."
A *_Critica musica* publicou-se de 1722 a 1725, *_Der Critische Musikus* na década
seguinte. Em 1752, num ensaio sobre a expressão musical, o inglês Charles Avison
preconiza que os periódicos insiram crítica de novas obras musicais. Um dos casos
mais curiosos, que chega a ser enternecedor, nesse período de transição em que
germinou a mentalidade moderna, surge em 1757 com o primeiro volume da *_Storia
della musica* (dedicado à rainha de Espanha, D.a Maria Bárbara, filha de D. João
V), do bom e sábio _p.e Martini, o mesmo que deu lições a Mozart. O livro começa
por "A música desde a criação de Adão até o Dilúvio", prossegue com "A _música
desde o Dilúvio até o nascimento de Moisés", e assim por diante.
Integra-se no mesmo movimento histórico a progressiva libertação do músico da sua
total dependência da classe nobre. Despontava o século XIX quando Haydn, reformado
depois de longos anos ao serviço da Casa Esterhazy, confessou numa carta para Maria
von Genzinger: "como é bom possuir um certo grau de liberdade! Tive um príncipe
bondoso e delicado, mas fui algumas vezes obrigado a estar na dependência de almas
vis. Frequentemente suspirei pela libertação e agora tenho-a em certa medida." Não
ia tardar muito que o mister de músico pudesse tornar-se em profissão liberal. O
primeiro grande caso na história foi o de Beethoven. Schubert, tantas vezes citado
como vítima da incompreensão, ganhou todavia, em média, durante doze anos, como
músico liberal, uma importância, por mês, cujo poder de compra devia ser superior
ao que tem hoje cento e cinquenta mil escudos em Portugal (241).
A elevação do nível intelectual da classe média e a concomitante liberalização da
profissão de músico são fenómenos sem os quais se não pode compreender o
romantismo. E a medida reduzida, acanhada, em que se deram em Portugal constitui um
dos motivos por que o nosso romantismo musical foi um mau período. Compreende-se
também que o público português não estivesse preparado para assimilar a arte de um
Mozart, de um Haydn, de um Beethoven, de um Schubert, de um Schumann, produtos do
complexo desenvolvimento cultural accionado pela evolução económica, social e
política, desenvolvimento que verdadeiramente se processara entre outras gentes
(242).
Deve acrescentar-se que também noutros países mais adiantados havia um público da
classe média cujo gosto artístico se equiparava ao do português. O que nos faltou
foi, dentro da mesma classe, uma camada superior pela sua maior cultura, isto é,
pela necessidade, a possibilidade e a aspiração de a possuir. Já no último quartel
do século XIX, Planton von Waxel, um estrangeiro culto que viveu algum tempo em
Portugal e se interessou por coisas de música, escreveu estas palavras, decerto
justas: "No que respeita a crítica tem de se dizer que ela se encontra na infância.
Para nos convencermos :, disto, basta um relance sobre o que se escreve da Arte nos
jornais de Lisboa. A ignorância trai-se constantemente [...]" Nem existiu uma
produção musical de qualidade que estimulasse a crítica idónea, nem esta surgiu a
reclamar aquela. Tudo aspectos de uma única e modesta realidade nacional (243).
Colectividades musicais
Um aspecto da vida musical portuguesa que acusa a influência, apesar de tudo,
recebida da evolução europeia é o das colectividades votadas à arte dos sons. De
algum modo, essas instituições corresponderam, na classe média, ao que eram as
sessões musicais em casas aristocráticas, para audiências de convidados. Ao mesmo
tempo que se realizavam espectáculos com entradas compráveis por qualquer cidadão,
destinados portanto a uma população anónima, existiam agremiações cujos membros
formavam um público de indivíduos identificados, unidos por solicitações comuns.
Claro que o falar-se aqui da classe média também não significa uma total separação
de outras camadas sociais. Era filho do conde de Farrobo o principal propugnador da
Academia Filarmónica, em Lisboa, que não deve ser confundida com a de Bontempo, de
que adiante falaremos. Aquela colectividade promoveu concertos semanais durante
cerca de cinco anos. Deveu-se-lhe, em 1844, a representação da pequena ópera *_Os
infantes de Ceuta*, de Miró, atrás referida. Também se representou ópera na
Academia Melpomonense e na Assembleia Filarmónica. Esta última, fundada em 1840,
deu a conhecer a ópera *_D. Sebastião*, de Donizetti, e outras. Colaboraram nessas
récitas artistas portugueses e estrangeiros, profissionais e amadores.
A ópera não detinha o exclusivo dessas manifestações. Realizaram-se concertos,
alguns rodeados de um ambiente de vivo interesse. E, se bem que houvesse sempre que
transigir com alguma ária ou conjunto operático, esboçava-se um movimento favorável
à música sinfónica e de câmara. Havia casas particulares onde se homenageava essa
arte ainda desconhecida do público. Estabeleceu-se até certa rivalidade entre os
cenáculos de José Dias Pereira Chaves (m. 1824) e do abastado comerciante alemão
Driesel. Na residência deste executaram-se obras de câmara de Haydn e Mozart.
Em 1808 e 1816 músicos amadores tocaram uma sinfonia de Mozart e a *1.a* de
Beethoven, respectivamente. Em 1821, por influência de Driesel e de outro
comerciante seu compatriota, Klingelhöfer, formou-se uma orquestra de amadores, que
no primeiro ano teve vinte e uma actuações. Muito mais tarde, em 1870, fundou-se em
Lisboa a Orquestra 24 de Junho. Mas ainda nessa altura as limitações da execução
sinfónica eram tais que foram baldados os esforços para se tocar o *_Allegretto* da
*7. a Sinfonia* de Beethoven.
Oito anos mais tarde a direcção da associação musical a que pertencia a Orquestra
24 de Junho tomou a decisão de contratar o maestro Barbieri, de Madrid -- a mesma
pessoa a quem tivemos de fazer tão larga referencia no :, Capítulo IV, porque o seu
nome ficou ligado ao cancioneiro renascentista também chamado *de Palácio*. No novo
Teatro da Trindade deram-se então primeiras audições, como as da *5.a* e *6.a
Sinfonias* de Beethoven. Esta última foi executada três vezes consecutivas, sempre
com a sala cheia de público. O facto demonstra que, não obstante a posição
geográfica e o concomitante atraso em relação ao estrangeiro, teria sido possível
uma vida musical de mais alto nível artístico e maior significado cultural se o
problema tivesse merecido a atenção sistemática dos governantes do país, que, neste
aspecto, se interessaram menos por ele do que o espanhol Francisco Barbieri. Quando
partiu, este ofereceu à orquestra os materiais completos de todas as sinfonias de
Beethoven, com excepção da *9.a*.
Nos programas da Orquestra 24 de Junho, figuraram também obras de Mozart, Haydn,
Weber, Mendelssohn, Glinka e Saint-Saëns, entre outros. Depois de Barbieri, a
orquestra foi dirigida por Colonne, no S. Carlos. Ouviram-se então partituras de
Berlioz e de Wagner. Entretanto, a 24 de Junho fizera grandes progressos. Viana da
Mota, no seu livro de *_Música e músicos alemães*, refere-se à "excelente Orquestra
24 de Junho", que, sob a direccão de Barbieri, Colonne e Rudorff, lhe proporcionou,
antes de partir para Berlim, a audição das *5.a, 6.a* e *7.a Sinfonias* de
Beethoven. A orquestra da Real Academia de Amadores de Música, dirigida por Vítor
Hussla (1857-1899), também desenvolveu acção cultural importante.
Quanto à música de câmara, deve mencionar-se a Sociedade de Concertos, fundada em
1875, que, de mistura com peças de qualidade duvidosa, fez ouvir quartetos de Haydn
e Mendelssohn, o *_Quinteto da truta*, de Schubert, e até o *_Quinteto* com piano
de Schumann. Em princípios de 1882, realizou-se uma série de concertos de música de
câmara pelo Quarteto Monasterio-_Mirecki, de Madrid, com muito êxito. Não sabemos
em que medida contribuiu para ele a presença da corte em todos os concertos. O
famoso *_Septimino* de Beethoven executou-se nessa altura, com a colaboração de
Augusto Neuparth (fagote), Freitas Gazul (contrabaixo), Carlos Campos (clarinete) e
Tomás del Negro (trompa). Augusto Neuparth, um alemão que se havia fixado em Lisboa
e abriu uma loja de música com o seu nome, organizara, em 1860, com Guilherme
Cossoul, a Sociedade de Concertos Populares.
A vinda de instrumentistas ou conjuntos estrangeiros era uma raridade. Um
agrupamento feminino austríaco, a Wiener Damenorchester, provocou maior interesse
do público pela música orquestral. Por iniciativa de Miguel _ângelo Lambertini -- o
musicógrafo que, em 1899, fundou a revista *_A Arte Musical* --, veio a Orquestra
Filarmónica de Berlim, que se fez ouvir sob a direcção de Arthur Nikisch. A mesma
orquestra voltou sete anos depois, ou seja, em 1908, mas dessa vez sob a batuta de
Richard Strauss.
Concertistas individuais adregavam passar da fronteira para cá, e podia acontecer
que se apresentassem em público. Em 1799 estivera em Portugal o célebre
violoncelista Bernhard Romberg, um dos primeiros virtuosos que tocaram publicamente
de cor. No princípio do século havia ainda poucos pianos em Lisboa: uns vinte em
1809. Doze anos depois o número havia crescido até a ordem dos quinhentos. Na
maioria eram de fabrico inglês, mas também se construíram pianos em Portugal,
nomeadamente pela firma de :, Luís Joaquim Lambertini, que imigrou em 1836 e se
estabeleceu em Lisboa.
O interesse por instrumentistas não parece ter crescido na mesma proporção em que
aumentaram os pianos. O público tolerava-os mais facilmente como passatempo, no
intervalo entre dois actos duma récita de ópera. A passagem de Liszt por Lisboa, em
1845, não podia deixar de constituir excepção como acontecimento sensacional. Mas
ainda houve quem o achasse inferior a Manuel Inocêncio dos Santos! Mais para o fim
do século intensificaram-se um tanto os concertos por virtuosos estrangeiros, como
Sarasate, Annette Essipov e Anton Rubinstein. Viana da Mota conta nas suas
memórias: "Rubinstein, o rival russo de Liszt, em 1881, deu só um concerto no
Teatro D. Maria, ao qual assisti, e bem me lembro que se podiam contar os ouvintes
na sala; partiu indignado, tomando por pretexto o assassinato do czar Alexandre II,
do qual era amigo pessoal." (244)
Apesar de o meio não estimular esse género de música, houve instrumentistas
portugueses que se distinguiram. As colectividades musicais sempre lhes iam
proporcionando apresentações públicas, e alguns até exerceram actividade
profissional no estrangeiro, como o notável violinista portuense, de origem
espanhola, Nicolau Medina Ribas (m. 1900) e seu irmão Hipólito, que era flautista.
Discípulos de João António Ribas (pai dos mencionados) e de Nicolau Medina Ribas,
foram dois distintos violinistas portuenses, Augusto Marques Pinto (1838-1888) e
Francisco Pereira da Costa (1847-1890). Artur Napoleão (outro portuense de
ascendência estrangeira), nascido em 1843, foi menino-prodígio aplaudido em grandes
meios europeus. Liszt elogiou-lhe os dotes de pianista, Meyerbeer apresentou-o na
corte da Prússia. Fixou-se finalmente no Brasil, vindo a falecer no Rio de Janeiro,
em 1925. O seu mérito de compositor não igualou o de executante.
Vimos que as colectividades musicais não possuíam todas as características das que
hoje conhecemos. No entanto, foram suas precursoras e exerceram acção importante.
Não só em Lisboa, porquanto, em 1874, fundou-se no Porto a já mencionada Sociedade
de Quartetos, que dava seis concertos de câmara por ano. Logo na sua primeira
temporada proporcionou audições de páginas de um Beethoven, um Mendelssohn, um
Schumann, para quarteto ou trio. Deveram-se-lhe também concertos orquestrais de
igual importância para a cultura musical portuense. Tanto a Sociedade de Quartetos
como o Orpheon beneficiaram da esclarecida orientação do seu fundador Bernardo
Moreira de Sá (1853-1924), dirigida contra a rotina e o italianismo de mau gosto,
apontando o que realmente era a melhor música, directriz que presidiu também à
Sociedade de Concertos Sinfónicos, fundada em 1910 por Raimundo de Macedo
(18801931), o pianista e chefe de orquestra portuense que teve a honra de receber
lições
de Nikisch (245).
Como exemplo curioso de colectividades musicais noutras regiões portuguesas, seja a
Sociedade Filarmónica existente na Madeira, entre 1840 e 1848. Finalmente,
relevemos, no seu conjunto, as muitas associações populares que foram surgindo em
diferentes localidades, com seus empreendimentos musicais, em geral confiados a
conjuntos de instrumentos na maioria de cordas dedilhadas (tunas ou sol-e-dós), e a
bandas semelhantes :, às militares. Também estas exerceram acção positiva na
instrução musical do povo, durante a segunda metade do século passado e no actual,
até que um decreto de 1937 reduziu o seu número a oito (246).
João Domingos Bontempo (247)
A personalidade ilustre do compositor, pianista, regente de orquestra e pedagogo
que se chamou João Domingos Bontempo (1775-1842) (248) aparece-nos coerente com o
momento histórico em que viveu, mas transbordando da pequenez pátria. Não foi
propriamente o caso do conflito entre uma natureza genial e um meio incapaz de a
compreender. Bontempo foi um bom músico, e nomeadamente um bom compositor, mas não
aquilo a que se chama um génio. O conflito deu-se mais pela sua elevada mentalidade
de feição europeia e pelo seu desejo activo de fazer cultivar em Portugal uma arte
a que a maior parte das pessoas de influência eram alheias. Ao mesmo tempo, houve
um factor político, porque Bontempo era afecto à causa liberal e os miguelistas
estiveram por vezes na mó de cima.
Bontempo estudou no Seminário Patriarcal. Em 1801 foi para Paris e lá publicou as
suas primeiras obras, influenciadas por Clementi. Em 1810, a sua 1.a Sinfonia é bem
recebida pela crítica parisiense. No mesmo ano desloca-se para Londres, onde
encontra ambiente favorável e prossegue a carreira de pianista e compositor.
Publica então mais obras suas, na casa editora de Clementi, a quem o ligavam laços
de amizade desde Paris.
Quando, em 1814, regressou a Portugal, uma das ideias que trazia era de fundar uma
sociedade de concertos segundo o modelo da recente Philharmonic Society, de
Londres. Pretendia assim preencher uma grave lacuna da cultura musical do seu país:
o confrangedor desconhecimento da música instrumental clássica. Não conseguiu o que
queria, voltou para o estrangeiro, conheceu novos êxitos em Paris e mais em
Londres, nomeadamente com a *_Missa de requiem* em memória de Camões, por ocasião
da publicação, em França, de *_Os Lusíadas*, fomentada pelo morgado de Mateus.
Só em 1820, por motivo de viragem política, é recebido com as devidas honras. A sua
Sociedade Filarmónica chega a vias de facto, mas a reacção miguelista proíbe-lhe os
concertos, que se realizavam na Rua Nova do Carmo. Vale a pena transcrever parte do
texto típico dum parecer policial: "Ainda que seja certo que a tal Sociedade
costuma concorrer grande parte das pessoas da maior Jerarquia e consideração desta
Capital, a ela também concorrem muitos indivíduos que, assim como o Suplicante
[Bontempo], não merecem melhor conceito da Polícia por isso mesmo que a título
d'_Ensaios mais a miúdo se reúnem; assim para evitar que com este título se
estabeleça alguma Sociedade Secreta, entendo que se faça persuadir ao Recorrente
que tal prática deve imediatamente cessar. Sua Magestade, porém ordenará o que For
Servido." Assina o "intendente-geral da polícia da corte e reino", um Lima de
Castro, que não deve com este aviso ter feito melhor serviço à Nação do que o
estava prestando o suplicante (249). :,
Foi porque Bontempo tinha entre os seus admiradores alguns fidalgos não inscritos
na lista negra que se tornou possível levantar-se a interdição. Os concertos
prosseguiram, no insuspeito "palácio velho" do duque de Cadaval, onde é hoje a
Estação do Rossio. Porém, os acontecimentos de 1828 puseram termo à Sociedade e
iniciaram um período muito difícil na vida de Bontempo, cuja integridade física
esteve seriamente ameaçada. O seu exemplo não é único. Recorde-se essoutro liberal
João Evangelista Pereira da Costa (1798-1832), cuja ideologia tornou também algo
atribulada a sua carreira artística.
A obra do compositor é extensa, incluindo, entre outras partituras, quatro sonatas
para piano e mais cinco com violino; seis concertos para piano e orquestra, duas
cantatas, sete sinfonias, quatro fantasias, um capricho e um divertimento para
piano e orquestra, o mencionado *_Requiem*, uma *_Missa* e um *_Te Deum*, um
divertimento para conjunto de câmara, um quinteto, quatro sextetos e fragmentos
duma ópera. Ninguém refuta hoje a importância de João Domingos Bontempo na história
da música portuguesa: toda a gente o considera o seu maior vulto entre os que
viveram no período romântico, mas até há bem pouco tempo a sua música raríssimas
vezes era tocada. Felizmente ao longo dos últimos anos a situação tem vindo a
alterar-se (250).
Bontempo não pode ser apontado como um músico da vanguarda europeia. Tinha
sensivelmente a mesma idade de Beethoven e sobreviveu-lhe quinze anos, morrendo
pouco antes de Chopin. E, no entanto, afirma quem lhe analisou as obras de maior
envergadura que a sua arte é, de certo modo, menos moderna do que muitas páginas de
Haydn e Mozart. Mesmo assim, porque era de qualidade e porque a cultura musical
lisboeta permanecera à margem da admirável floração clássica, a sua produção
reveste-se de grande significado. Para compreendermos quanto se perdeu com as
tiranias de que foi vítima a Sociedade Filarmónica basta dizer que aos sócios se
proporcionaram audições de obras de autores tão pouco conhecidos como os três
grandes da chamada escola de Viena, ou o francês Méhul, um precursor de Berlioz,
além de outras páginas, inclusive do próprio Bontempo (251).
O Conservatório
Com o regresso ao poder dos liberais, Bontempo pode retomar a sua vida de artista
intelectual. Decerto influiu em que se reconhecesse que o velho Seminário
Patriarcal se tornara obsoleto. Foi ele o primeiro director do Conservatório,
criado por decreto de 1835 como anexo da Casa Pia. (Seria interessante averiguar a
contribuição de um músico de certo prestígio, António José do Rego (252), que
parece ter-se ocupado do problema do ensino e da música, preconizando a ligação com
a Casa Pia.) No ano seguinte, subindo Silva Passos ao poder, foi Almeida Garrett
nomeado para escrever o relatório e projecto de um *_Conservatório Geral da Arte
Dramática*, o que o ilustre escritor fez prontamente. O novo estabelecimento foi
fundado por :, decreto desse ano de 1836 e desde logo se integrou nele o
Conservatório de Música, sob a direcção de Bontempo, constituindo uma das três
escolas. As outras duas eram a "dramática propriamente dita ou de *declamação*" e a
"de *dança, mímica e ginástica especial*" (253) .
De princípio não foi possível tornar o ensino no Conservatório muito diferente do
que era no Seminário Patriarcal, cujo corpo docente houve que ser aproveitado na
nova escola. No entanto, João Domingos Bontempo, que, além de director, era
professor de piano, dava exemplo de uma pedagogia menos antiquada. O seu amigo
Muzio Clementi, então já falecido, fora um dos mais notáveis mestres de piano do
seu tempo, cujos métodos, então modernos, o colega português decerto conhecia.
O ensino no Conservatório, sob a direcção de Bontempo e posteriormente, foi melhor
ministrado no capítulo da execução de instrumentos do que naqueles que ainda mais
implicam uma atitude consciente e esclarecida ante as questões estéticas. Canongia
e Neuparth na classe de instrumentos de palheta, Migone na de piano, Jordani e
Cossoul na de violoncelo, Masoni e Freitas na de violino, Ernesto Wagner na de
trompa -- estes e outros competentes instrumentistas sabiam formar bons
profissionais; e foi porque os formaram que se tornaram viáveis algumas das mais
importantes iniciativas musicais no meio português, nomeadamente as execuções
instrumentais, sinfónicas ou de câmara.
Nos outros capítulos, como o da composição ou o da cultura geral do músico, o
magistério exercia-se de forma atrasada e rudimentar. Mas, ainda que a evolução se
realizasse lentamente, ela deu-se no bom sentido, apontado de maneira nítida na
reforma decretada por Hintze Ribeiro em 1901, apoiado num estudo prévio de Augusto
Machado. Se o curso de harmonia, contraponto e fuga continuava distante do momento
histórico e da vida real, agarrado a regras formalistas que nenhum compositor que
se prezasse aplicava j á, também é verdade que a formação da mentalidade dos alunos
merecia maior atenção, através das disciplinas obrigatórias de história da música e
literatura musical e de língua italiana.
Sob a organização do ensino entrevia-se ainda o espectáculo de ópera, que -- não o
esqueçamos -- permaneceu como a manifestação musical preponderante até à
implantação da República. No Conservatório, a formação completa dum cantor envolvia
os cursos de solfejo preparatório, de canto individual e colectivo e canto teatral,
abrangendo sete anos de estudo. O tipo de intérprete que chamamos hoje "cantor de
*_Lied*" não era objecto da pedagogia conservatorial. O espectáculo de ópera
constituía também objectivo de muitos alunos das classes de instrumentos, que
aspiravam a um lugar na orquestra do S. Carlos. Quanto aos futuros compositores, se
não quisessem enveredar pela música ligeira, o que de melhor podiam desejar era a
representação de uma ópera de sua autoria, o que, aliás, se tornara cada vez menos
provável.
A reforma de Hintze Ribeiro favorecia a ideia, preconizada por vários músicos e
amadores, como o conde de Farrobo ou Alfredo Keil, da criação de teatros
exclusivamente de ópera em português. O de Lisboa esteve para ser construído no
local do Governo Civil, cujo edifício teria que ser demolido. A ideia nunca se
concretizou. :,
Nos últimos anos do regime monárquico o Conservatório foi frequentado, em média,
por trezentos alunos. A estes acrescentavam-se muitos mais estudantes de música,
leccionados particularmente, mas examinados no estabelecimento oficial. Esta
procura não se explicava apenas pelos atractivos da ópera. Com o S. Carlos fechado,
no regime republicano, e sem que outras empresas operáticas oferecessem
propriamente uma garantia suficiente para escolha de profissão, o Conservatório viu
aumentar a sua frequência. E que não existiam os meios de reprodução musical que
hoje conhecemos; antes dos aparelhos de telefonia ou de televisão, os comerciantes
que necessitavam de proporcionar música aos fregueses tinham que contratar
executantes; os teatros possuíam os seus pequenos conjuntos instrumentais, as
bandas militares e civis eram numerosas. Além disso, até há relativamente pouco
tempo, fazia parte da boa educação de qualquer menina burguesa o saber tocar piano.
Não porque diga directamente respeito ao Conservatório, mas por ser importante
aspecto do ensino musical da gente portuguesa, cabe aqui uma referência à lei de
instrução pública de 1878, que introduziu o canto coral nas escolas primárias. Uns
trinta anos depois Ernesto Vieira queixava-se da maneira como esse ensino era
ministrado, dizendo que a sua prática era "ainda rara e imperfeita", o que atribuía
"às escolas normais, onde os futuros professores não praticam esta matéria nem lhe
ligam a menor importância. Consequência natural, sociedades orfeónicas também não
há, embora se tenham feito tentativas em diferentes épocas para vulgarizar o canto
harmonizado; geralmente quando se canta nas escolas ou nas sociedades populares é
em uníssono" (254).
Influências francesas e alemãs
Apesar das vantagens que de longa data trazia a música italiana e da costumada
lentidão do influxo de ideias modernas em Portugal, era inevitável que determinados
autores e partituras celebrizados no estrangeiro exercessem influência entre nós.
Alfredo Keil (1850-1907), 0 compositor e pintor de origem alemã que conquistou
lugar na história da arte portuguesa, admirou a música de Massenet, a quem dedicou
a *_Serrana*. Numa "Carta de Paris", publicada no *_Diário de Notícias* de 19 de
Agosto de 1900, lêem-se estas palavras significativas: "[...] estive com o insigne
maestro francês Massenet, a quem entreguei a partitura da Serrana que aquele nosso
laureado compositor lhe dedicou [...] Nos agradecimentos que ele me encarregou de
transmitir a Alfredo Keil [...] referiu-se às obras do nosso ilustre compatrício -
especialmente à *_Dona Branca* e à *_Irene* -- com elogios que tinham todo o cunho
da sinceridade, porque não eram revestidos das banalidades usuais em tais casos
[...]". E, mais adiante: "Sei que Alfredo Keil está trabalhando num pequeno assunto
francês, para ser agradável a Massenet, a cuja escola se inclina um pouco." :,
Quanto a influências francesas, o caso de Augusto Machado é não só mais nítido como
porventura mais digno de atenção. Machado possuía conhecimentos técnicos que
faltavam a um amador como Alfredo Keil, que tinha o cuidado de submeter os seus
trabalhos a músicos profissionais, designadamente Luís Filgueiras. Nascido em
Lisboa em 1845, Augusto Machado recebeu lições de Joaquim Casimiro, J. Guilherme
Daddi e Emílio Daddi. Note-se, de passagem, que João Guilherme Daddi era o mesmo
compositor pianista que, precisamente no ano em que Machado nasceu, tivera a honra
de tocar com Franz Liszt, no S. Carlos, a *_Fantasia para dois pianos*, de
Thalberg, sobre temas da *_Norma*, de Bellini (255).
Ainda novo, Augusto Machado seguiu para Paris, a aperfeiçoar-se como pianista. Já
nessa altura esteve bem relacionado na capital francesa, onde inclusivamente
conheceu o velho Rossini. Mas foi mais tarde, na sua segunda estada em Paris, que a
sua personalidade aceitou voluntariamente as mensagens de um Massenet e de um
Saint-Saëns.
Quando voltou para Lisboa, ocupando o lugar de professor de canto no Conservatório
-- de cuja Escola de Música veio a ser director, como o fora Bontempo --, Machado
iniciou uma série de obras significativas, como a opereta *_O Degelo* (1875), sobre
texto traduzido por Antero de Quental e Batalha Reis; a *_Maria da Fonte* (1878),
mal recebido ensaio de opereta nacional; a ode sinfónica intitulada *_Camões e os
Lusíadas* e, sobretudo, a ópera *_Lauriana*, inspirada nos *_Beaux messieurs de
Bois Doré*, de George Sand, representada no grande Teatro de Marselha, em 1883, com
franco agrado.
Depois da *_Lauriana*, que também subiu à cena do S. Carlos e do Teatro Lírico do
Rio de Janeiro, Augusto Machado apresentou ainda as óperas *_I Doria, Mario Wetter*
(com libreto de Leoncavallo) e *_La borghesina*, todas sobre textos italianos; as
operetas *_Espadachim do outeiro* (Henrique Lopes de Mendonça), *_A triste
viuvinha* (D. João da Câmara) e *_Rosas de todo o ano* (Júlio Dantas), esta última
elogiada por Viana da Mota em crítica inserta na *_Revista do Conservatório*; e,
com a colaboração de Lopes de Mendonça, a farsa lírica *_O tição negro*. Não chegou
a utilizar um libreto que possuía, de Ghislanzoni, o libretista da *_Ainda*, de
Verdi. Morreu em 1924.
Augusto Machado é um desses casos de esquecimento injusto, resultante em parte da
índole pessoal do artista. A sua nenhuma arrogância, a sua modéstia excessiva,
retratou-as Eça de Queirós com mão de mestre no Crujes de *_Os Maias*. Se a
*_Serrana*, de Keil, tem sobrevivido em algumas representações, é principalmente
porque lhe assiste o direito de ser considerada a primeira ópera nacional
portuguesa. As melhores obras de Augusto Machado talvez possuam, todavia, razões
mais consistentes para o reaparecimento em público. Razões, não de primazia
cronológica, senão que de qualidade técnica.
João Arroio (1861-1930), um político amador de música, aspirando a alcançar nesta
arte posição ainda mais destacada do que a que logrou na administração pública,
admirou Wagner e quis introduzir na música portuguesa algumas das suas inovações.
Compôs, entre outras partituras, as óperas *_Amor de perdição*, com texto italiano,
representada no S. Carlos, em 1907, e depois em Hamburgo, e *_Leonor Teles*, de que
a Sociedade de Música :, de Câmara revelou o 2.o acto em 1941, um poema sinfónico e
uma cantata, *_Inês de Castro*, além de outras peças de menor vulto, nomeadamente
para piano solo, em que talvez resida o seu melhor (256).
Em todas estas referências o romantismo alemão tem tido pouco ou nenhum cabimento.
Foi acaso Óscar da Silva (1870-1958) um dos primeiros músicos portugueses a
prestar-lhe homenagem digna de nota, já como pianista, já como compositor. Estudou
em Leipsig e depois em Frankfurt am Main, aqui sob a orientação de Clara Schumann,
a viúva de Robert Schumann e consagrada pianista. Óscar da Silva pretendeu contudo
unir ao romantismo germânico um carácter português, por vias de um saudosismo de
inspiração poética tangente ao lirismo de Pascoais. A maior parte da sua obra
destina-se ao piano solo, mas escreveu também o poema sinfónico *_Miriam*, a
*_Sonata saudade*, para violino e piano, e a ópera *_Dona Mécia*, sobre libreto de
Júlio Dantas, que agradou manifestamente ao público lisboeta quando foi
representada em 1901, no Coliseu.
Entretanto haviam-se operado grandes modificações no panorama da música europeia.
Em França, os músicos e o público de vanguarda dividiam-se entre os partidários da
escola de César Franck e os de Debussy. O movimento moderno francês era seguido com
ansiedade em todos os meios musicais pelas personalidades mais atentas à cultura
contemporânea. Antes, porém, de nos adiantarmos por este caminho é mister
determonos ante um caso à parte da música portuguesa desse período.
Viana da Mota
José Viana da Mota, nascido em São Tomé em 1868, veio com seus pais para a
metrópole e, sendo ainda uma criança, revelou espantosa disposição musical. Por
felicidade, seu pai era não só amador de música, mas também pessoa inteligente, que
soube incitar a extraordinária vocação do filho. Fez o necessário e suficiente para
que o rei D. Fernando e a condessa de Edla se interessassem pelo pequeno músico,
que, terminado com brilho o curso do Conservatório, seguiu para Berlim com uma
bolsa de estudo (257).
Na Alemanha, os primeiros contactos com os mestres não foram os mais proveitosos,
ainda que pouco tempo depois da chegada a Berlim um crítico comparasse Viana da
Mota ao jovem Mozart. As influências decisivas vieram de Carl Schaeffer e Hans von
Bülow. Uma estada em Weimar revestiu-se outrossim de grande significado para a
carreira do artista português, porquanto recebeu então lições de Franz Liszt.
Distinguindo-se desde cedo na Alemanha, Viana da Mota fixou residência em Berlim.
De lá irradiaram inúmeras viagens artísticas pela Europa e Américas. Muitas vezes
se associou a outros artistas, como Sarasate, Nachez e Ysaye, Amalie Joachim ou
Marcella Sembrich, ou o pianista Ferruccio Busoni, que o escolheu para seu
colaborador no concerto realizado em Weimar em 1900, assinalando o 14.o aniversário
da morte de :, Liszt. Foi considerado, em suma, entre os pianistas verdadeiramente
grandes do seu tempo.
Encontrava-se Viana da Mota no auge da carreira de concertista quando a primeira
guerra mundial o obrigou a abandonar a residência em Berlim. Por indicação de
Risler, foi convidado para o lugar de professor da classe de virtuosidade no
Conservatório de Genebra, que pertencera a pianistas ilustres, entre os quais o
próprio Liszt. Exerceu de facto esse cargo, até que, no fim da guerra, o chamou a
Portugal a nomeação para a direcção do Conservatório Nacional. Aliás, Viana da Mota
viera ao seu país frequentemente, tantas vezes quantas a sua vida profissional lho
permitia.
Nesse mesmo ano de 1919 elaborou, com Luís de Freitas Branco, uma notável reforma
do ensino no Conservatório, modernizando os programas e os métodos pedagógicos e
fornecendo aos alunos meios de obtenção de uma cultura menos rudimentar do que era
regra entre os músicos portugueses. No Conservatório regeu uma classe de Curso
Superior de Piano e deu inúmeros recitais que foram grande estímulo para os
estudantes, até no aspecto material, porquanto muitas vezes os utilizou para obter
receitas destinadas aos alunos pobres.
No primeiro ano lectivo ulterior à reforma de 1919 (o ano de 1919-1920, portanto),
o Conservatório teve 759 alunos internos e 775 externos. Em 1929-1930 estes números
ascenderam a 1191 e 1028, respectivamente. Se bem que Viana da Mota fosse ainda
director da Escola de Música (sendo Júlio Dantas inspector do Conservatório), não
podem ser-lhe assacadas responsabilidades pela lamentável contra-reforma de 1930,
retrógrada no que prescindiu na cultura geral e profissional de futuros
compositores e intérpretes musicais.
A carreira internacional, se bem que prejudicada pelas funções permanentes no
Conservatório, não terminou entretanto. E quando, em 1927, a Alemanha comemorou o
centenário da morte de Beethoven, Viana da Mota foi chamado a interpretar páginas
das mais transcendentes do genial compositor. A crítica saudou então nele um dos
poucos pianistas à altura dessa arte cuja verdadeira interpretação se estava
perdendo.
Atingido o limite de idade em 1943, Viana da Mota continuou a leccionar,
particularmente, e a actuar como pianista, em concertos públicos ou através da
rádio, até 1945. Faleceu em Lisboa em 1948, pouco depois de completados os 80 anos.
Não é apenas a projecção internacional de Viana da Mota o que o torna um caso
isolado entre os músicos portugueses do seu tempo. Na verdade, ele foi um artista
de tipo raro não só em Portugal. Possuía, desde novo, uma cultura artística,
literária e filosófica notável, que pode dizer-se ter partido do caso Wagner (que o
fascinou) e não cessou de se ampliar, em todos os sentidos, até os últimos dias da
sua existência.
Erravam os que vissem em Viana da Mota apenas um virtuoso extraordinário, admirável
pela precisão com que executava trechos os mais difíceis. A sua arte integrava-se
num mundo de ideias, num mundo fáustico ou, melhor, goethiano. Porque foi no
conjunto da obra de Goethe que Viana da Mota encontrou a sua *_Weltanschauung*. As
interpretações que propunha, ao piano ou como chefe de orquestra, eram sempre
edifícios de uma bela :, arquitectura, alicerçados num profissionalismo
solidíssimo, desenhados não ao sabor da intuição, mas sim em obediência a uma
lógica estética em que participavam os múltiplos conhecimentos e os supremos ideais
do intelectual e do artista. Por isso as suas lições tiveram alguma coisa de
estranho num círculo musical de raio tão curto como o português, onde professores
medianos -- ainda que competentes, como um Carlos Botelho -- puderam ser gabados
como *non plus ultra* da pedagogia.
A grandeza de Viana da Mota era dessas que a maioria das gentes não pode
completamente compreender, mas que todos sentem dever respeitar, não por mera
obrigação formal, senão que pela força indefinível da verdadeira classe. A
mesquinhez do nosso meio não podia deixar de por algum modo o hostilizar; e, no
entanto, a sua presença no palco, a realidade imediata das suas execuções
magistrais conquistavam o auditório, levando-o quantas vezes ao máximo do
entusiasmo.
Viana da Mota, o pianista, reflectiu naturalmente a formação germânica. Não, porém,
aquela feição que com mais propriedade se chama *romântica*; porque a sua
mentalidade era essencialmente clássica. Revelava-o, tanto como as interpretações
ao piano, o tom em que se referia a um Dante, um Camões, um Dürer, um Spinoza. Eram
elementos de classicismo os que relevava em obras musicais do seu tempo que o
interessavam mais vivamente.
Como compositor, depois de algumas obras de juventude marcadas do romantismo alemão
-- obras que não contava entre as suas representativas --, soube compreender que
essa estética não tinha autenticidade histórica. Pareceu-lhe que esta residia mais
num nacionalismo de que admirou os exemplos russos, e adaptou essa ordem de ideias
ao seu caso de português. No entanto, as influências de um Wagner e de um Liszt são
nítidas em páginas já colocadas pelo autor sob o signo nacionalista, como a
*_Sinfonia à Pátria* (mormente nos 2.o e 4.o andamentos) e a *_Balada* para piano
solo (258).
Luís de Freitas Branco
Embora tivesse alcançado dos seus mais brilhantes êxitos em Paris, e sempre o
tivesse interessado sobremaneira a cultura francesa, Viana da Mota só relativamente
tarde se apercebeu da medida em que Debussy afectava o curso da história da música.
Foi outro músico português mais novo, pois que nasceu em 1890, quem primeiro
introduziu na literatura musical do seu país resultados valiosos da mensagem não só
de Debussy, de Fauré, de Ravel, como de Franck e seus discípulos.
Luís de Freitas Branco era também um artista-intelectual. A sua cultura muito
vasta, especialmente nos capítulos da música e da literatura, começou muito novo a
recebê-la de seu tio João de Freitas Branco. Estudou no estrangeiro, em Paris, com
Gabriel Grovlez e em Berlim com Humperdinck, entre 1910 e 1915. De Lisboa levava já
conhecimentos adiantados de música, :, ministrados por Augusto Machado, Tomás
Borba, pelo maestro Mancinelli e por Désiré Pâques, o compositor belga que hoje é
considerado vulto importante da história do atonalismo e que vivia então em Lisboa.
A *1.a Sonata para violino e piano*, escrita aos 16 anos e, portanto, anterior
também aos estudos no estrangeiro, traduz a admiração do jovem autor por César
Franck, ao mesmo tempo que afirma uma personalidade própria. Depois, as *_Folhas de
álbum*, os *4 Poemas de Baudelaire*, o poema sinfónico os *_Paraísos artificiais*
(estreado por Pedro Blanch em 1913 e pateado pela assistência), as variações
*_Vathek*, que David de Sousa se recusou a dirigir por temer a reacção do público,
os *10 Prelúdios para piano*, dedicados a Viana da Mota, foram outros tantos
aspectos de um processo de actualização e elevação, em Portugal, da arte de compor
música. As influências que Freitas Branco então aceitou voluntariamente,
assimilando-as a sua superior mentalidade, não foram exclusivamente francesas.
Interessaram-no também as inovações da escola contemporânea de Viena e
esporadicamente pendeu para o cromatismo extremo que ela preconizava, até as raias
da atonalidade. Mas outra, que não impressionista nem expressionista, veio a ser a
sua directriz nos períodos da maturidade plena e da superação.
Perfilhando um eclectismo que consistia em aceitar como possíveis todas as
estéticas e técnicas, mas sempre em função da obra (isto é: da sua índole, do seu
conteúdo, da sua mensagem), Freitas Branco acompanhou no entanto a tendência para
um novo classicismo que começou a manifestar-se na música europeia durante a
segunda década do nosso século. O classicismo do ilustre compositor português
estabilizou-se num corpo de doutrina cujos princípios eram o emprego de escalas
diferentes das duas vulgares, maior e menor (e também, possivelmente, diferentes
dos modos antigos); uma harmonia funcional generalizada, ou seja: admitindo todos
os acordes, mas atribuindo-lhes funções rítmicas (efeito do "leve" e do "pesado") e
explorando-lhes as virtualidades expressivas; o culto da forma e, de maneira geral,
a atitude consciente, racional e analítica do compositor ao processar-se a criação
da sua obra (259).
O público português não se apercebeu ainda completamente do que significa a
produção de Luís de Freitas Branco, o compositor, nem do valor de obras como os
*_Madrigais camonianos* ou a 4.a Sinfonia. Tendo falecido em 1955, a sua
personalidade de intelectual, de articulista, conferencista e professor está ainda
na lembrança de alguns? e o brilho que era seu apanágio deixa ainda supor que esses
fossem os principais aspectos da sua actividade. E é certo que adquiriram magna
importância, dirigidos que foram sempre no sentido do esclarecimento, da propagação
das ideias, da elevação da cultura geral e profissional dos músicos portugueses
(260).
Outros contributos para a actualização da cultura musical
Não eram ainda muitos os músicos portugueses que acompanhavam a evolução da música
moderna, procurando estar informados das últimas :, revelações estrangeiras. Mas
não foram apenas aqueles cujos nomes, amiúde, e justificadamente, se evocam, como
Bernardo Moreira de Sá, Rey Colaço (de quem falaremos adiante), Viana da Mota ou
Luís de Freitas Branco. Exemplo, o professor de piano Marcos Garin (1875-1955), que
sistematicamente deu a conhecer aos seus discípulos literatura musical recente,
segundo elevado critério (261).
Foi discípulo de Marcos Garin e Luís de Freitas Branco o infeliz António de Lima
Fragoso (1897-1918), vitimado pela epidemia do fim da guerra. Também ele pertenceu
ao número dos que se interessaram pelos movimentos estrangeiros contemporâneos,
mormente o francês. O seu talento invulgar pôde ainda legar-nos obras de qualidade,
para piano, canto e piano e conjuntos de câmara, em que se encontram páginas
surpreendentes num compositor com menos de 21 anos. A morte prematura de António
Fragoso é tanto mais sentida como perda para a música portuguesa quanto mais se
ouvem esses compassos reveladores de uma sensibilidade (262, 263).
Da zona de influência francesa recebeu também Francisco de Lacerda (1869-1934) a
sua formação moderna, enquanto David de Sousa (1880-1918) trouxe da Rússia o
entusiasmo pelos "cinco" e por Tchaikowsky. Compositor de merecimento, foi todavia
como chefe de orquestra que David de Sousa exerceu acção mais relevante, apesar de
curta, interceptada pela morte. Tinha o poder da comunicação com o público, os seus
concertos no Politeama agitaram a vida lisboeta. Viana da Mota, que lhe sucedeu,
não conseguiu o mesmo efeito, porque lhe faltavam dotes histriónicos que o público
exigia dum chefe de orquestra. Joaquim Fernandes Fão dirigiu também obras
desconhecidas em Portugal de autores modernos, como Richard Strauss.
O maestro espanhol Pedro Blanch (1877-1946), que viveu grande parte da sua vida em
Portugal e cá findou os seus dias, prestou inestimáveis contributos para a
actualização da cultura musical portuguesa. Deveram-se-lhe inúmeras primeiras
audições da maior importância, e não só de obras estrangeiras, pois que também deu
a conhecer muitas de autoria nacional. A sua bem alicerçada competência fez da
Orquestra Sinfónica Portuguesa um conjunto de qualidade notável, em relação às
dificuldades do meio. Foi Viana da Mota quem teve a ideia da criação daquela
orquestra permanente, por ocasião das comemorações do centenário do nascimento de
Liszt, mas a realização só se tornou possível pela dedicação de Pedro Blanch e a
compreensão colaborante da empresa do Teatro da República, hoje S. Luís.
Os concertos da Orquestra Portuguesa prolongaram-se de 1911 até 1928, ano em que
foi dissolvida. Por esta altura, já Pedro de Freitas Branco tentava criar uma
companhia portuguesa de ópera, que chegou a apresentar-se em Lisboa e no Porto, e
organizava concertos no Tivoli, com a colaboração de artistas como Béla Bartók,
Wilhelm Backhaus, Walter Gieseking, Elisabeth Schumann, Glazunov, Alfred Cortot,
Jacques Thibaut e outros, concertos esses em cujos programas incluiu muitas obras
modernas desconhecidas do público. Estes empreendimentos conduziram a fracassos
financeiros. Dir-se-ia passado o tempo em que o público se interessava tão
vivamente :, pela boa música que era possível registarem-se enchentes nas duas
séries semanais, de Pedro Blanch e David de Sousa, motivos de discussões por vezes
apaixonados entre os partidários de um e outro.
O nacionalismo
Se os músicos portugueses eram unanimes em considerar útil, e mesmo indispensável,
o conhecimento das melhores obras estrangeiras, também é certo que as opiniões se
dividiam quanto à maneira como elas poderiam servir aos compositores nacionais.
Assim, Augusto Machado parece ter considerado mais viável uma arte
caracterizadamente portuguesa no domínio ligeiro, ou semiligeiro, digamos assim.
Alfredo Keil, depois de se ter experimentado num género também leve, de ter
apresentado a ópera cómica em um acto *_Susana*, em 1883, as cantatas *_Patrie* e
*_Orientais* ( 1885 e 1886), a ópera *_D. Branca*, em 1888, no S. Carlos, e a
*_Irene*, em 1893, no Teatro Régio de Turim -- depois destas obras marcadas ainda
de italianismo e com influências francesas, dá o exemplo de uma ópera nacional com
a *_Serrana*, sobre libreto de Henrique Lopes de Mendonça, baseado no conto *_Como
ela amava*, de Camilo Castelo Branco. A estreia efectuou-se no S. Carlos, em 1899.
Têm também significado histórico as *_Rapsódias portuguesas*, de Vítor Hussla,
outro músico de origem alemã que preconizou o nacionalismo português (264).
Vimos que Óscar da Silva procurou o carácter português pela expressão saudosista,
ao mesmo tempo que um Francisco de Lacerda aplicava o requinte da sua formação
francesa a motivos populares. No sector de Alexandre Rey Colaço (1854-1928) -- a
que pertenciam não só músicos, mas também outros artistas e intelectuais, como
Afonso Lopes Vieira -- defendia-se a causa da música essencialmente portuguesa.
Vimos também que Viana da Mota, passado o período de aprendizagem, enveredou
decididamente por uma arte de feição nacional, muitas vezes directamente inspirada
em temas populares, ou popularizados. E no eclectismo de Luís de Freitas Branco, ao
lado dos poemas sinfónicos, das sinfonias, das sonatas, do quarteto, houve lugar
para as *_Suites alentejanas* e para inúmeras harmonizações de canções do povo.
Aliás, Freitas Branco dizia demandar um portuguesismo autêntico nas suas obras da
última maneira, portuguesismo não necessariamente de aspecto folclórico, de que a
*3.a Sinfonia* e os *_Madrigais camonianos* são talvez os mais altos expoentes.
Naquela diversidade encontra-se algo de comum, que podemos denominar por tendência
nacionalista. Note-se que também neste caso a cultura musical portuguesa se
atrasou, porquanto se trata, de algum modo, do equivalente dos fenómenos
estrangeiros que conhecemos pelos nomes de um Weber, de um Chopin, de um Liszt, dos
"cinco" russos, de Smetana, ou de Grieg. A Espanha, talvez por motivos análogos aos
portugueses, também esperou até Granados e Albéniz (265).
_história da
_música _portuguesa
por
_joão de _freitas _branco
_publicação em 13 volumes
_s. _c. da _misericórdia
do _porto
_c_p_a_c -- _edições
_braille
_r. do _instituto de
_s. _manuel
4050 __porto
1998
_décimo _primeiro _volume
_joão de _freitas _branco
_história da
_música _portuguesa
_organização,
_fixação de _texto,
_prefácio e _notas
de _joão _maria
de _freitas _branco
2.a _edição,
_revista e _aumentada
_publicações
_europa-_américa
_capa: estúdios _p. _e. _a.
_herdeiros de _joão
_c de _freitas _branco, 1995
_editor: _francisco _lyon de
_castro
:__publicações europa-américa, __lda.
_apartado 8
2726 __mem __martins __codex
__portugal
_edição n.o: 116512/6266
_execução técnica:
_gráfica _europam, _lda.,
_mira-_sintra -- _mem
_martins
_depósito legal n.o: 85462/
/95
__isbn 972-1-04012-6
__capítulo __vii
(cont.)
Viana da Mota
José Viana da Mota, nascido em São Tomé em 1868, veio com seus pais para a
metrópole e, sendo ainda uma criança, revelou espantosa disposição musical. Por
felicidade, seu pai era não só amador de música, mas também pessoa inteligente, que
soube incitar a extraordinária vocação do filho. Fez o necessário e suficiente para
que o rei D. Fernando e a condessa de Edla se interessassem pelo pequeno músico,
que, terminado com brilho o curso do Conservatório, seguiu para Berlim com uma
bolsa de estudo (257).
Na Alemanha, os primeiros contactos com os mestres não foram os mais proveitosos,
ainda que pouco tempo depois da chegada a Berlim um crítico comparasse Viana da
Mota ao jovem Mozart. As influências decisivas vieram de Carl Schaeffer e Hans von
Bülow. Uma estada em Weimar revestiu-se outrossim de grande significado para a
carreira do artista português, porquanto recebeu então lições de Franz Liszt.
Distinguindo-se desde cedo na Alemanha, Viana da Mota fixou residência em Berlim.
De lá irradiaram inúmeras viagens artísticas pela Europa e Américas. Muitas vezes
se associou a outros artistas, como Sarasate, Nachez e Ysaye, Amalie Joachim ou
Marcella Sembrich, ou o pianista Ferruccio Busoni, que o escolheu para seu
colaborador no concerto realizado em Weimar em 1900, assinalando o 14.o aniversário
da morte de :, Liszt. Foi considerado, em suma, entre os pianistas verdadeiramente
grandes do seu tempo.
Encontrava-se Viana da Mota no auge da carreira de concertista quando a primeira
guerra mundial o obrigou a abandonar a residência em Berlim. Por indicação de
Risler, foi convidado para o lugar de professor da classe de virtuosidade no
Conservatório de Genebra, que pertencera a pianistas ilustres, entre os quais o
próprio Liszt. Exerceu de facto esse cargo, até que, no fim da guerra, o chamou a
Portugal a nomeação para a direcção do Conservatório Nacional. Aliás, Viana da Mota
viera ao seu país frequentemente, tantas vezes quantas a sua vida profissional lho
permitia.
Nesse mesmo ano de 1919 elaborou, com Luís de Freitas Branco, uma notável reforma
do ensino no Conservatório, modernizando os programas e os métodos pedagógicos e
fornecendo aos alunos meios de obtenção de uma cultura menos rudimentar do que era
regra entre os músicos portugueses. No Conservatório regeu uma classe de Curso
Superior de Piano e deu inúmeros recitais que foram grande estímulo para os
estudantes, até no aspecto material, porquanto muitas vezes os utilizou para obter
receitas destinadas aos alunos pobres.
No primeiro ano lectivo ulterior à reforma de 1919 (o ano de 1919-1920, portanto),
o Conservatório teve 759 alunos internos e 775 externos. Em 1929-1930 estes números
ascenderam a 1191 e 1028, respectivamente. Se bem que Viana da Mota fosse ainda
director da Escola de Música (sendo Júlio Dantas inspector do Conservatório), não
podem ser-lhe assacadas responsabilidades pela lamentável contra-reforma de 1930,
retrógrada no que prescindiu na cultura geral e profissional de futuros
compositores e intérpretes musicais.
A carreira internacional, se bem que prejudicada pelas funções permanentes no
Conservatório, não terminou entretanto. E quando, em 1927, a Alemanha comemorou o
centenário da morte de Beethoven, Viana da Mota foi chamado a interpretar páginas
das mais transcendentes do genial compositor. A crítica saudou então nele um dos
poucos pianistas à altura dessa arte cuja verdadeira interpretação se estava
perdendo.
Atingido o limite de idade em 1943, Viana da Mota continuou a leccionar,
particularmente, e a actuar como pianista, em concertos públicos ou através da
rádio, até 1945. Faleceu em Lisboa em 1948, pouco depois de completados os 80 anos.
Não é apenas a projecção internacional de Viana da Mota o que o torna um caso
isolado entre os músicos portugueses do seu tempo. Na verdade, ele foi um artista
de tipo raro não só em Portugal. Possuía, desde novo, uma cultura artística,
literária e filosófica notável, que pode dizer-se ter partido do caso Wagner (que o
fascinou) e não cessou de se ampliar, em todos os sentidos, até os últimos dias da
sua existência.
Erravam os que vissem em Viana da Mota apenas um virtuoso extraordinário, admirável
pela precisão com que executava trechos os mais difíceis. A sua arte integrava-se
num mundo de ideias, num mundo fáustico ou, melhor, goethiano. Porque foi no
conjunto da obra de Goethe que Viana da Mota encontrou a sua *_Weltanschauung*. As
interpretações que propunha, ao piano ou como chefe de orquestra, eram sempre
edifícios de uma bela :, arquitectura, alicerçados num profissionalismo
solidíssimo, desenhados não ao sabor da intuição, mas sim em obediência a uma
lógica estética em que participavam os múltiplos conhecimentos e os supremos ideais
do intelectual e do artista. Por isso as suas lições tiveram alguma coisa de
estranho num círculo musical de raio tão curto como o português, onde professores
medianos -- ainda que competentes, como um Carlos Botelho -- puderam ser gabados
como *non plus ultra* da pedagogia.
A grandeza de Viana da Mota era dessas que a maioria das gentes não pode
completamente compreender, mas que todos sentem dever respeitar, não por mera
obrigação formal, senão que pela força indefinível da verdadeira classe. A
mesquinhez do nosso meio não podia deixar de por algum modo o hostilizar; e, no
entanto, a sua presença no palco, a realidade imediata das suas execuções
magistrais conquistavam o auditório, levando-o quantas vezes ao máximo do
entusiasmo.
Viana da Mota, o pianista, reflectiu naturalmente a formação germânica. Não, porém,
aquela feição que com mais propriedade se chama *romântica*; porque a sua
mentalidade era essencialmente clássica. Revelava-o, tanto como as interpretações
ao piano, o tom em que se referia a um Dante, um Camões, um Dürer, um Spinoza. Eram
elementos de classicismo os que relevava em obras musicais do seu tempo que o
interessavam mais vivamente.
Como compositor, depois de algumas obras de juventude marcadas do romantismo alemão
-- obras que não contava entre as suas representativas --, soube compreender que
essa estética não tinha autenticidade histórica. Pareceu-lhe que esta residia mais
num nacionalismo de que admirou os exemplos russos, e adaptou essa ordem de ideias
ao seu caso de português. No entanto, as influências de um Wagner e de um Liszt são
nítidas em páginas já colocadas pelo autor sob o signo nacionalista, como a
*_Sinfonia à Pátria* (mormente nos 2.o e 4.o andamentos) e a *_Balada* para piano
solo (258).
Luís de Freitas Branco
Embora tivesse alcançado dos seus mais brilhantes êxitos em Paris, e sempre o
tivesse interessado sobremaneira a cultura francesa, Viana da Mota só relativamente
tarde se apercebeu da medida em que Debussy afectava o curso da história da música.
Foi outro músico português mais novo, pois que nasceu em 1890, quem primeiro
introduziu na literatura musical do seu país resultados valiosos da mensagem não só
de Debussy, de Fauré, de Ravel, como de Franck e seus discípulos.
Luís de Freitas Branco era também um artista-intelectual. A sua cultura muito
vasta, especialmente nos capítulos da música e da literatura, começou muito novo a
recebê-la de seu tio João de Freitas Branco. Estudou no estrangeiro, em Paris, com
Gabriel Grovlez e em Berlim com Humperdinck, entre 1910 e 1915. De Lisboa levava já
conhecimentos adiantados de música, :, ministrados por Augusto Machado, Tomás
Borba, pelo maestro Mancinelli e por Désiré Pâques, o compositor belga que hoje é
considerado vulto importante da história do atonalismo e que vivia então em Lisboa.
A *1.a Sonata para violino e piano*, escrita aos 16 anos e, portanto, anterior
também aos estudos no estrangeiro, traduz a admiração do jovem autor por César
Franck, ao mesmo tempo que afirma uma personalidade própria. Depois, as *_Folhas de
álbum*, os *4 Poemas de Baudelaire*, o poema sinfónico os *_Paraísos artificiais*
(estreado por Pedro Blanch em 1913 e pateado pela assistência), as variações
*_Vathek*, que David de Sousa se recusou a dirigir por temer a reacção do público,
os *10 Prelúdios para piano*, dedicados a Viana da Mota, foram outros tantos
aspectos de um processo de actualização e elevação, em Portugal, da arte de compor
música. As influências que Freitas Branco então aceitou voluntariamente,
assimilando-as a sua superior mentalidade, não foram exclusivamente francesas.
Interessaram-no também as inovações da escola contemporânea de Viena e
esporadicamente pendeu para o cromatismo extremo que ela preconizava, até as raias
da atonalidade. Mas outra, que não impressionista nem expressionista, veio a ser a
sua directriz nos períodos da maturidade plena e da superação.
Perfilhando um eclectismo que consistia em aceitar como possíveis todas as
estéticas e técnicas, mas sempre em função da obra (isto é: da sua índole, do seu
conteúdo, da sua mensagem), Freitas Branco acompanhou no entanto a tendência para
um novo classicismo que começou a manifestar-se na música europeia durante a
segunda década do nosso século. O classicismo do ilustre compositor português
estabilizou-se num corpo de doutrina cujos princípios eram o emprego de escalas
diferentes das duas vulgares, maior e menor (e também, possivelmente, diferentes
dos modos antigos); uma harmonia funcional generalizada, ou seja: admitindo todos
os acordes, mas atribuindo-lhes funções rítmicas (efeito do "leve" e do "pesado") e
explorando-lhes as virtualidades expressivas; o culto da forma e, de maneira geral,
a atitude consciente, racional e analítica do compositor ao processar-se a criação
da sua obra (259).
O público português não se apercebeu ainda completamente do que significa a
produção de Luís de Freitas Branco, o compositor, nem do valor de obras como os
*_Madrigais camonianos* ou a 4.a Sinfonia. Tendo falecido em 1955, a sua
personalidade de intelectual, de articulista, conferencista e professor está ainda
na lembrança de alguns? e o brilho que era seu apanágio deixa ainda supor que esses
fossem os principais aspectos da sua actividade. E é certo que adquiriram magna
importância, dirigidos que foram sempre no sentido do esclarecimento, da propagação
das ideias, da elevação da cultura geral e profissional dos músicos portugueses
(260).
Outros contributos para a actualização da cultura musical
Não eram ainda muitos os músicos portugueses que acompanhavam a evolução da música
moderna, procurando estar informados das últimas :, revelações estrangeiras. Mas
não foram apenas aqueles cujos nomes, amiúde, e justificadamente, se evocam, como
Bernardo Moreira de Sá, Rey Colaço (de quem falaremos adiante), Viana da Mota ou
Luís de Freitas Branco. Exemplo, o professor de piano Marcos Garin (1875-1955), que
sistematicamente deu a conhecer aos seus discípulos literatura musical recente,
segundo elevado critério (261).
Foi discípulo de Marcos Garin e Luís de Freitas Branco o infeliz António de Lima
Fragoso (1897-1918), vitimado pela epidemia do fim da guerra. Também ele pertenceu
ao número dos que se interessaram pelos movimentos estrangeiros contemporâneos,
mormente o francês. O seu talento invulgar pôde ainda legar-nos obras de qualidade,
para piano, canto e piano e conjuntos de câmara, em que se encontram páginas
surpreendentes num compositor com menos de 21 anos. A morte prematura de António
Fragoso é tanto mais sentida como perda para a música portuguesa quanto mais se
ouvem esses compassos reveladores de uma sensibilidade (262, 263).
Da zona de influência francesa recebeu também Francisco de Lacerda (1869-1934) a
sua formação moderna, enquanto David de Sousa (1880-1918) trouxe da Rússia o
entusiasmo pelos "cinco" e por Tchaikowsky. Compositor de merecimento, foi todavia
como chefe de orquestra que David de Sousa exerceu acção mais relevante, apesar de
curta, interceptada pela morte. Tinha o poder da comunicação com o público, os seus
concertos no Politeama agitaram a vida lisboeta. Viana da Mota, que lhe sucedeu,
não conseguiu o mesmo efeito, porque lhe faltavam dotes histriónicos que o público
exigia dum chefe de orquestra. Joaquim Fernandes Fão dirigiu também obras
desconhecidas em Portugal de autores modernos, como Richard Strauss.
O maestro espanhol Pedro Blanch (1877-1946), que viveu grande parte da sua vida em
Portugal e cá findou os seus dias, prestou inestimáveis contributos para a
actualização da cultura musical portuguesa. Deveram-se-lhe inúmeras primeiras
audições da maior importância, e não só de obras estrangeiras, pois que também deu
a conhecer muitas de autoria nacional. A sua bem alicerçada competência fez da
Orquestra Sinfónica Portuguesa um conjunto de qualidade notável, em relação às
dificuldades do meio. Foi Viana da Mota quem teve a ideia da criação daquela
orquestra permanente, por ocasião das comemorações do centenário do nascimento de
Liszt, mas a realização só se tornou possível pela dedicação de Pedro Blanch e a
compreensão colaborante da empresa do Teatro da República, hoje S. Luís.
Os concertos da Orquestra Portuguesa prolongaram-se de 1911 até 1928, ano em que
foi dissolvida. Por esta altura, já Pedro de Freitas Branco tentava criar uma
companhia portuguesa de ópera, que chegou a apresentar-se em Lisboa e no Porto, e
organizava concertos no Tivoli, com a colaboração de artistas como Béla Bartók,
Wilhelm Backhaus, Walter Gieseking, Elisabeth Schumann, Glazunov, Alfred Cortot,
Jacques Thibaut e outros, concertos esses em cujos programas incluiu muitas obras
modernas desconhecidas do público. Estes empreendimentos conduziram a fracassos
financeiros. Dir-se-ia passado o tempo em que o público se interessava tão
vivamente :, pela boa música que era possível registarem-se enchentes nas duas
séries semanais, de Pedro Blanch e David de Sousa, motivos de discussões por vezes
apaixonados entre os partidários de um e outro.
O nacionalismo
Se os músicos portugueses eram unanimes em considerar útil, e mesmo indispensável,
o conhecimento das melhores obras estrangeiras, também é certo que as opiniões se
dividiam quanto à maneira como elas poderiam servir aos compositores nacionais.
Assim, Augusto Machado parece ter considerado mais viável uma arte
caracterizadamente portuguesa no domínio ligeiro, ou semiligeiro, digamos assim.
Alfredo Keil, depois de se ter experimentado num género também leve, de ter
apresentado a ópera cómica em um acto *_Susana*, em 1883, as cantatas *_Patrie* e
*_Orientais* ( 1885 e 1886), a ópera *_D. Branca*, em 1888, no S. Carlos, e a
*_Irene*, em 1893, no Teatro Régio de Turim -- depois destas obras marcadas ainda
de italianismo e com influências francesas, dá o exemplo de uma ópera nacional com
a *_Serrana*, sobre libreto de Henrique Lopes de Mendonça, baseado no conto *_Como
ela amava*, de Camilo Castelo Branco. A estreia efectuou-se no S. Carlos, em 1899.
Têm também significado histórico as *_Rapsódias portuguesas*, de Vítor Hussla,
outro músico de origem alemã que preconizou o nacionalismo português (264).
Vimos que Óscar da Silva procurou o carácter português pela expressão saudosista,
ao mesmo tempo que um Francisco de Lacerda aplicava o requinte da sua formação
francesa a motivos populares. No sector de Alexandre Rey Colaço (1854-1928) -- a
que pertenciam não só músicos, mas também outros artistas e intelectuais, como
Afonso Lopes Vieira -- defendia-se a causa da música essencialmente portuguesa.
Vimos também que Viana da Mota, passado o período de aprendizagem, enveredou
decididamente por uma arte de feição nacional, muitas vezes directamente inspirada
em temas populares, ou popularizados. E no eclectismo de Luís de Freitas Branco, ao
lado dos poemas sinfónicos, das sinfonias, das sonatas, do quarteto, houve lugar
para as *_Suites alentejanas* e para inúmeras harmonizações de canções do povo.
Aliás, Freitas Branco dizia demandar um portuguesismo autêntico nas suas obras da
última maneira, portuguesismo não necessariamente de aspecto folclórico, de que a
*3.a Sinfonia* e os *_Madrigais camonianos* são talvez os mais altos expoentes.
Naquela diversidade encontra-se algo de comum, que podemos denominar por tendência
nacionalista. Note-se que também neste caso a cultura musical portuguesa se
atrasou, porquanto se trata, de algum modo, do equivalente dos fenómenos
estrangeiros que conhecemos pelos nomes de um Weber, de um Chopin, de um Liszt, dos
"cinco" russos, de Smetana, ou de Grieg. A Espanha, talvez por motivos análogos aos
portugueses, também esperou até Granados e Albéniz (265). :,
Era o nacionalismo oitocentista, outro aspecto, afinal, da evolução da sociedade
europeia de que, no principio deste capitulo, se ensaiou pequeno resumo.
Nacionalismo que, no campo da música, foi uma estilização, um excerto de elementos
nacionais numa técnica, uma gramática musical que vinha do passado e cujos
fundamentos permaneciam os mesmos. Outra coisa veio a ser o nacionalismo ou, antes,
a rusticidade de um Béla Bartók, descoberta, por meio da investigação folclórica e
do método científico, de elementos para a criação de uma arte nova desde a raiz,
capaz de validamente suceder a uma longa linha evolutiva que chegara às últimas
consequências.
Interpretação musical
Além dos intérpretes portugueses já referidos, como o violinista Sá Noronha, o
pianista Artur Napoleão, o insigne Viana da Mota, Óscar da Silva, o maestro David
de Sousa, notabilizaram-se o barítono Francisco de Andrade (1859-1921), seu irmão
António (1854-1942), a soprano Maria Augusta Correia da Cruz (1869-1901), Francisco
de Lacerda, como chefe de orquestra, e a violoncelista Guilhermina Suggia
(18781950). Todos estes artistas fizeram carreira internacional e alcançaram
reputações
justificadas (266).
Para se ajuizar da craveira de Francisco de Andrade como intérprete de ópera bastam
estas palavras escritas por Bruno Walter nas suas memórias: "outra realização que
nunca esquecerei foi o fascinante *_Don Giovanni* de Andrade, um dos raros exemplos
em que um artista parecia, por natureza, predestinado ao papel. Em 1901, em Riga,
dirigi o *_Don Giovanni* com Andrade como artista convidado. A sua voz tinha-se
deteriorado sensivelmente, mas nem por isso deixou de me ser grata a renovada
impressão de extático ouvinte, confirmada enquanto o observava da estante de
regência e através de contacto pessoal. Também evoco com admiração o brilhante
Figaro de Andrade no *_Barbeiro de Sevilha*, o seu humor exuberante, a sua natural
vivacidade, o seu esplendor vocal, a sua mestria técnica na palavra falada e a sua
aristocrática elegância, que, por certo, ia menos bem ao barbeiro do que ao Dom."
(267)
O tenor António de Andrade percorreu a Europa como artista lírico de categoria
reconhecida, contracenando, em papéis importantes, com alguns dos mais afamados
cantores da época, como Cotogni ou Marie Rose. Foi ele o criador do principal
personagem da ópera *_I promessi sposi*, de Ponchielli, no Teatro Rossini, de
Livorno. Maria Augusta Correia da Cruz teve uma carreira curta mas brilhante, na
Europa e América do Sul, interpretando papéis como a Desdémona do *_Otelo*, de
Verdi, a Elisabeth e a Elsa do *_Tannhäuser* e do *_Lohengrin*, de Wagner.
No domínio da direcção de orquestra, o açoriano Francisco de Lacerda foi o primeiro
português que alcançou prestigio no estrangeiro. Vincent d'_Indy depositou nele
confiança suficiente para o tornar seu substituto na :, regência da classe de
orquestra da *_Schola Cantorum*. Mais tarde aperfeiçoou-se com Nikisch e Richter na
Alemanha. Funda em 1905, e dirige até 1908, os Concertos Históricos de Nantes; rege
de 1908 a 1912 os concertos do Kursaal de Montreux, onde dá a conhecer muitas obras
de autores como Borodin, Mussorgsky, Fauré, Debussy.
Dirigiu os Grandes Concertos Clássicos de Marselha e foi convidado a ingressar como
chefe de orquestra na companhia de bailado de Diaghilev em 1913 (o ano da
*_Sagração da primavera*), convite que se viu obrigado a recusar. Indicou, para o
efeito, um maestro que fora seu discípulo e que ia tornar-se muito conhecido:
Ernest Ansermet.
Lacerda pretendeu contribuir com o seu saber e o seu prestígio para o progresso da
cultura musical portuguesa. Pouco depois de chegar à capital, em 1921, fundou a
Filarmónica de Lisboa e com ela realizou uma série de concertos memoráveis. Mas o
empreendimento não teve continuidade, talvez porque a mentalidade do dirigente se
tivesse afastado grandemente do meio português, com as suas tradicionais
peculiaridades.
Se Guilhermina Suggia não teve tão dilatada carreira no estrangeiro como alguns dos
seus colegas e compatriotas, não é razão para que lhe atribuamos menor valor. Para
além-fronteiras, foi em Inglaterra que se prestou inteira justiça ao seu talento
extraordinário, que tinha algo de genial. Se é legítima a distinção entre
intérpretes intelectuais e impulsivos, nenhuma comparação a pode ilustrar melhor do
que a que se fizesse entre Viana da Mota e Guilhermina Suggia.
Exceptuadas as peças de bravura, nomeadamente as de Liszt, em que Viana da Mota era
magistral, os grandes monumentos do pensamento beethoveniano, ou de Johann
Sebastian Bach, foram as coroas de glória do emigrante pianista, enquanto a
inconfundível violoncelista portuense atingia o seu máximo em páginas como os
concertos de Saint-Saëns, de Lalo, Dvorák ou de Elgar, como as *_Variações* de
Boëllmann ou, no género miniatural, a transcrição da *_Habanera*, de Ravel.
Fascinava então o público pela fibra da interpretação, a elegância da linha
melódica, a vivacidade do ritmo, a graça de uma simples inflexão da frase, tudo
como se fosse inteiramente espontâneo, transfigurando o imenso labor de preparação
necessário a qualquer artista de craveira.
Viana da Mota e Guilhermina Suggia formaram escola em Portugal e a sua acção
pedagógica reflecte-se hoje em considerável número de pianistas e violoncelistas de
merecimento, alguns em vias de carreira internacional.
Aos seus nomes deve acrescentar-se o de Alexandre Rey Colaço, intérprete notável,
bem como, relativamente ao Porto, Hernâni Torres (1881-1939). Rey Colaço fez o
curso de piano no Conservatório de Madrid e mais tarde, depois de se ter
apresentado em Lisboa, em 1880, partiu para França, onde prosseguiu os seus
estudos, que veio a terminar na Alemanha sob a orientação de mestres tão ilustres
como o pianista Ernest Rudorff e o musicólogo Philipp Spitta. Teve a honra de lhe
ser confiada a regência de uma classe de piano da Escola Superior de Música, em
Berlim, de que era director o célebre violinista Joachim.
Rey Colaço fixou-se definitivamente em Lisboa em 1887, consagrando-se à actividade
de concertista -- através da qual deu a conhecer muitas obras :, basilares e
fomentou o gosto pela música de câmara -- e, principalmente, à de professor, quer
no Conservatório quer em curso particular. A sua personalidade culta, inteligente e
cativante e os seus conhecimentos da arte pianística e dos segredos da
interpretação musical formaram uma plêiade de pianistas distintos, alguns dos quais
procuram, através do ensino, manter viva a sua escola. Como compositor, deixou
peças que o colocam na corrente nacionalista, mas nem sempre de carácter português,
pois também o tocou o estro popular espanhol.
É facto de salientar o de todos os músicos mencionados, que se notabilizaram nesse
período dividido entre o século XIX e o presente, terem beneficiado do contacto com
os meios estrangeiros mais desenvolvidos e, por assim dizer, mais europeus do que o
português. Se bem que o mesmo se não tivesse dado com uma cantora excelente -Laura
Wake Marques (1879-1957), que bem poderia ter conhecido triunfos no
estrangeiro, se os houvesse procurado --, aquele facto é de ponderar pelo que
demonstra de inviabilidade de uma cultura musical estritamente nacionalista.
O barítono de bela e potente voz D. Francisco de Sousa Coutinho (1867-1924) -
conhecido por Chico Redondo nos meios de boémia -- foi um caso especial e
pitoresco. A sua figura estava talhada para representar o gordo Falstaff, de que
foi intérprete aplaudido. Elogiou-o o famoso tenor Tamagno, com quem colaborou no
*_Otelo*, de Verdi, no papel de Iago.
Não deve omitir-se um grupo de violinistas como o mencionado Bernardo Moreira de
Sá, Alexandre Bettencourt (n. 1868) -- porventura o mais categorizado de todos --,
Júlio Cradona (n. 1879), Luís Barbosa (n. 1887) e Tomás de Lima (n. 1887) (268).
Cabe nestas considerações votadas à interpretação musical a alusão a um
instrumentista de primeira qualidade que, não sendo português, residiu e actuou em
Portugal durante tempo suficiente para obrigar a que o lembrem as páginas deste
livro. O eminente Pablo Casals pertenceu a um conjunto instrumental contratado pelo
Casino de Espinho e conheceu de perto a vida musical portuguesa, tendo colaborado
com artistas como Artur Napoleão, Bernardo Moreira de Sá, Viana da Mota e
Guilhermina Suggia. Ainda novo, impunha Já uma admiração que transparece desta
referência curiosa, publicada no *_Primeiro de Janeiro*, a propósito da morte de um
modesto violoncelista italiano, de nome Joaquim Casella, que se fixara no Porto
(269). Diz-nos a nota biográfica:
"Repugnava-lhe tocar onde se estivesse de chapéu na cabeça e se fizesse ruído [...]
Necessidades da vida e principalmente por ter visto a tocar num café em Espinho o
grande violoncelista espanhol Casals, levaram-no a transigir e foi contratado há
anos para tocar num café em Matosinhos." (270)
Música ligeira
A chamada *música ligeira* não pode ser banida totalmente de uma história da música
portuguesa, ainda que resumida como esta tem de ser e :, consagrada aos aspectos
mais elevados da arte dos sons. Aliás, a distinção entre um conceito e outro é
produto da mentalidade moderna, germinada nos séculos XVII e XVIII. Em tempos mais
recuados, música séria era, verdadeiramente, a religiosa. Essa outra diferenciação
processou-se com a progressiva secularização da cultura.
Vimos que, no século XVIII, música popularizada entrou nas récitas de António José
da Silva. Em 1792 começou a publicar-se o *_Jornal de Modinhas*, onde, entre
outras, apareceram composições de Marcos Portugal. A modinha foi importante agente
de intercâmbio natural com o Brasil, como o vieram a ser, igualmente ao nível
ligeiro, o lundum e o fado. No século XIX também compositores de responsabilidade
se permitiram contactar com o público menos cultivado, mormente no domínio do
teatro. São exemplos um Augusto Machado, um Alfredo Keil, um Luís Filgueiras. Este
último, em Lisboa, e, antes dele, Ciríaco Cardoso, no Porto, em 1891, tentaram
atrair à melhor música o público dos espectáculos ligeiros por via de operas do
reportório traduzidas em português.
Foi em meados do século, e por influência francesa, que surgiu a *revista do ano*,
novo género de teatro musicado diferente da opereta. Era a progenitora do actual
espectáculo de revista, diverso hoje do que foi ao longo da sua curta história. Em
1874 apareceu a primeira revista que não era do "ano", escrita por Sousa Bastos e
Baptista Machado, que, por sinal, não agradou. O público exigia espírito, chiste,
oportunidade (sobretudo política) e, também, música acessível e agradável ao
ouvido. A revista era alguma coisa de vivo e agitante, davam-se casos como o de
Rodrigo da Fonseca pedindo à empresa de Manuel Roussado que, numa rábula do
escandaloso *_Fossilismo e progresso* (1855), a figura escarnecida do marechal
Saldanha fosse substituída pela sua própria, e até com traje de raposa, se
quisessem! *_Tempora mutantur (271).
Se na música de revista não encontramos nenhum equivalente, em qualidade, dos
melhores exemplos estrangeiros de música ligeira -- contando embora os números de
mais feliz inspiração, alguns dos quais permaneceram longamente em voga, -- também
é verdade que esse género de espectáculo, antes de chegar ao estado de degradação
em que hoje se encontra, teve virtualidades que foi pena não produzissem outros
frutos musicais, talvez por falta de um compositor de centelha genial. De qualquer
maneira, e atentos os exemplos de um Chabrier, de um Granados, de um Richard
Strauss, de um Albert Roussel --para citarmos só alguns --, não será disparatado
sugerir que a música ligeira portuguesa seja tratada com menos desprezo por
compositores "sérios" de hoje. Talvez que o seu estudo pudesse conduzir a uma
solução (entre outras possíveis) do debatido problema da música nacional, isto é,
da caracterização de uma arte inconfundível com a de outras nações.
A ideia não é propriamente nova, tem sido praticada de algum modo, e por vezes com
valor artístico, mas não pode encontrar adeptos nos que, talvez movidos por uma
espécie de sentimento de casta, supõem absolutamente inconciliável com uma arte
superior qualquer elemento marcado de superficialidade ligeira. :,
Edição de música
Desde o momento em que, instalados ainda no remoto século XV, aludimos às primeiras
imprensas musicais pouco temos falado de edições portuguesas. Na verdade, este
ponto reflecte mais do que qualquer outro as limitações nacionais, impostas pela
pobreza do meio e por outras consabidas circunstancias. Note-se que também nos
outros países a edição musical foi restrita enquanto a regra era compor para
determinada oportunidade, sem preocupação de deixar obra para o futuro. Por outras
palavras: até princípios do século XIX. Mozart, cujo catálogo de composições
ascende acima de seiscentas, só teve cerca de setenta publicadas em vida e Schubert
não encontrou editor para nenhuma das suas sinfonias.
Em Portugal, o século XIX e o XX, até hoje, não ofereceram muitas mais
possibilidades de edição aos compositores, principalmente por motivo de falta de
mercado compensador das despesas e, também, do interesse do Estado. Em entrevista
concedida ao autor deste livro, Paul Hindemith afirmou fácil a solução do problema,
desde que exista boa música portuguesa, uma vez que poderosas casas editoras
estrangeiras anseiam por originais modernos, oriundo de onde quer que seja. Em todo
o caso, concretizaram-se as esperanças inicialmente depositadas na Fundação
Calouste Gulbenkian, que desde há muito inscreveu nas suas iniciativas culturais a
edição de música de autoria portuguesa.
Há, portanto, todas as razões para enaltecer o esforço daqueles estabelecimentos
comerciais, como o de Moreira de Sá, no Porto, a antiga Casa Sassetti ou o salão
_neuparth (actual Valentim de Carvalho), em Lisboa, que, entre outros, deram à
estampa obras dos melhores compositores portugueses do período que estamos focando
(272).
As partituras da *_Serrana*, de Alfredo Keil (a primeira ópera impressa em língua
portuguesa), e da *_Sinfonia à Pátria*, de Viana da Mota, foram editadas no Brasil.
Musicografia
Poucas foram também as publicações de textos sobre música em Portugal. Casos como o
da *_História da música* (de que só se publicou o 1.o volume, em 1920) e da
*_História da evolução musical*, de Bernardo Moreira de Sá, constituíram excepções,
enquanto em páginas de jornais e revistas ia sendo mais frequente a matéria de
música. Na já mencionada *_A Arte Musical*, de Lambertini, e na *_Amphion*, fundada
por Augusto Neuparth, colaboraram personalidades como Viana da Mota e António
Arroio (273).
Casos excepcionais foram também os de um Joaquim de Vasconcelos, com o seu
dicionário *_Os músicos portugueses*, de Ernesto Vieira, com o *_Dicionário
biográfico de músicos portugueses*, de um Manuel de Almeida Carvalhais, ou dos
inúmeros subsídios musicológicos de um Sousa Viterbo. No entanto, e tal :, como em
capítulos anteriores, as referências explícitas que aqui se fazem não esgotam o que
sobre música se escreveu em Portugal na transição do século XIX para o XX. De
portugueses que no estrangeiro se tenham dedicado à musicologia e ciências musicais
cabe distinguir Frederico Nascimento (1852-1924), que se fixou no Brasil (274).
O desenvolvimento da crítica musical e o ocuparem-se dela homens de craveira mental
de António Arroio, Viana da Mota, Francisco de Lacerda, Luís de Freitas Branco
esboçaram um círculo que, noutros países, havia muito se fechara: o círculo
produção-crítica-produção, activador poderoso da vida musical de uma sociedade
moderna. Ainda hoje não há em Portugal grande probabilidade de que uma crítica
idoneamente favorável conduza, pela estimulação do público e dos influentes, à
proliferação daquilo que lhe mereceu incitamento. Os múltiplos e eficientes
aspectos por que esse círculo activante se apresenta nos grandes meios quase se não
manifestaram ainda. Assim, não há exemplo de sistematicamente se atrair a atenção
pública para determinado autor, por meio de artigos, ensaios, monografias
biográficas e analíticas segundo um plano pré-estabelecido, criando o auditório
para a sua música e o mercado para as edições das suas obras, impressas ou gravadas
em disco (275).
Actualmente a multiplicação e o aperfeiçoamento dos meios de informação, o
concomitante aumento do número de manifestações musicais e dos que por elas se
interessaram, a necessidade de variar programações tão densas e contínuas como as
de rádio ou de televisão -- a própria força da evolução histórica, em suma, parece
querer rapidamente mudar o curso dessa tradição de tentativas isoladas, que por
certo contribuíram -- e mais do que no geral se admite -- para que a música em
Portugal deixasse de ser mal olhada ocupação de uns poucos, sem grande função nem
cotação social.
CAPÍTULO VIII
A ACTUALIDADE (276)
Um problema que persiste
A prática da boa música em Portugal concentra-se hoje em Lisboa e no Porto,
manifesta-se com alguma regularidade em poucas mais cidades, é esporádica noutros
aglomerados populacionais e não existe na quase totalidade do território. Problema
basilar da cultura musical portuguesa, hoje como ontem (277). Nunca houve uma
significante percentagem de apreciadores da melhor música e de quem a execute em
horas vagas, como se lê um romance ou se cultivam flores por amadorismo (278).
Em Lisboa, onde os amadores de música parecem em vias de aumento considerável, a
atitude da população musicófila é passiva, recebendo audições para as quais
eventualmente concorre pela acção de comprar bilhete para um concerto, ou adquirir
algum disco, ou somente rodar um botão de telefonia. Amadores de música. Os músicos
amadores, esses, são anomalia ainda mais rara.
A iniciativa particular
Aquela propagação do gosto musical, que, todavia, se tem verificado, deve-se muito
à iniciativa particular. Em capítulos precedentes, assistimos à fundação de
colectividades musicais, e algumas das que hoje existem vêm de relativamente longe:
o Orpheon Portuense, a Academia de Amadores de Música, a Sociedade Nacional de
Música de Câmara, a Sociedade de Concertos de Lisboa. Que nem sempre o progresso
tem sido a regra nestas instituições demonstra-o só por si o exemplo da Academia de
Amadores de Música, que chegou a possuir uma orquestra sinfónica de louvada
qualidade.
O Círculo de Cultura Musical, organização mais nova, é obra de Elisa de Sousa
Pedroso; a mais importante, mas não a única devida a essa personalidade
inconfundível que perdemos em 1958 (279).
Elisa Pedroso não se limitava ao papel de animadora e patrocionadora, por isso ela
própria era pianista de mérito. Levou a públicos estrangeiros a mensagem de
compositores portugueses. :,
O seu Círculo de Cultura Musical marcou uma data na história da música portuguesa
quando, depois de exercer em Lisboa e no Porto funções análogas às que
desempenhavam há mais tempo a Sociedade de Concertos e o Orpheon, alargou o seu
âmbito a outras cidades metropolitanas e, sobretudo, quando se tornou a primeira
associação musical com delegações permanentes em território insulano e ultramarino.
Esta irradiação, até pontos afastados dezenas de milhares de quilómetros, pôde
concretizar-se mercê da ajuda do Estado (280) e porque à ideia corresponderam
colaborações de entidades locais.
A curiosidade e o interesse pela música menos conhecida -- ou totalmente
desconhecida -- tinham sido despertados já noutros tempos por um Bernardo Moreira
de Sá, um Francisco de Lacerda, um David de Sousa e outros atrás mencionados. Se as
sementes não caíram em terreno fertilizado, vieram todavia florações a provar que
ele não era de todo estéril. Houve outros empreendimentos que não mencionámos, como
os de Ema Romero da Câmara Reis. Mais recentemente, a sociedade Sonata tem-se
votado à revelação de obras contemporâneas, seu principal objectivo (281).
Desde 1948, uma associação integrada no movimento internacional das *_Jeunesses
Musicales* -- a Juventude Musical Portuguesa (282) -- tem atraído para a boa música
um número apreciável de estudantes das escolas secundárias e superiores, enquanto a
Associação das J. M. P. do Porto demanda os mesmos fins (283).
O género de realizações mais característico das Juventudes Musicais, a audição com
prévio comentário, também não constitui propriamente uma novidade, nem no
estrangeiro nem em Portugal. Viana da Mota fez sensação na Alemanha, quando lá
residia, ao explicar em público obras de Wagner, ilustrando as suas palavras com
exemplos ao piano. Em Portugal teve a colaboração de um António Arroio em concertos
comentados que não foram únicos no seu tempo. Francisco de Lacerda, nomeadamente,
levou a sociedades populares boas execuções de música, inclusivamente de câmara,
fazendo-as preceder de alocuções por individualidades da estatura de um António
Sérgio. O disco e a alta fidelidade trouxeram novas possibilidades a esse excelente
meio de cultura.
A uma instituição de tipo diferente, denominada Pró-_Arte, tem cabido acção
positiva de iniciação musical na província e junto de sectores sociais de limitada
instrução artística. Simultaneamente, vai divulgando música portuguesa e
proporcionando a intérpretes nacionais apresentações públicas frequentes.
O aumento do auditório musical conduziu a alguns empreendimentos de índole
comercial, por vezes com resultados compensadores e significativos de grande
progresso em relação aos tempos em que Anton Rubinstein chamava escassos
espectadores ao D. Maria. Aliás, também aqui sabemos de precedentes, como os
concertos sinfónicos no S. Luís e no Politeama ou as tentativas de Pedro de Freitas
Branco no Tivoli e de Lourenço Varela Cid no Royal. A empresa do Cinema Tivoli
temse distinguido nestes últimos anos como a mais sistemática na organização de
espectáculos de música, apresentando algumas celebridades mundiais. :,
Sem embargo, foi possível o fracasso financeiro de Sol Maior, simpática iniciativa
em prol dos concertistas portugueses. Um intérprete da estirpe de Robert Casadesus,
no Teatro Monumental, tocou para uma sala vazia em 1952, ou seja, no auge da
carreira. Quando a empresa do Cinema Império trouxe pela primeira vez (284) a
Portugal uma grande orquestra americana -- a Filarmónica de Filadélfia, dirigida
por Ormandy --, com toda a justificável publicidade prévia, os concertos não
tiveram as lotações esgotadas. O espectáculo de bailado oferece maior garantia
administrativa do que o puramente musical. Mas também já foi possível (em 1919) a
companhia de Sergey Diaghilev dançar em Lisboa para meia dúzia de entusiastas e
alguns indiferentes.
Lamentável é a escassez dos grupos corais portugueses, devida principalmente à
falta de ensino musical eficiente nas escolas. São casos anormais e frutos de muita
persistência, os da Sociedade Coral Duarte Lobo, da Sociedade Coral de Lisboa (que
não sobreviveu), de Polifonia -- através da qual a melhor música polifónica
portuguesa tem chegado a público -- ou do grupo vocal Harmonia, que já colheu
merecidos encómios no estrangeiro. Neste capítulo da música coral, a Academia de
Amadores de Música tem desenvolvido acção porfiada e progressiva, alimentada pelo
melhor folclore português.
Fora de Lisboa, a actividade coral não parece mais intensa, sendo também raridade
de admirar uma realização como a das Pequenas Cantoras de Portugal, no Porto. A
vida orfeónica, se existisse, poderia elevar a cultura musical do povo, e exemplos
tais como os do Coro Aleluia, em Aveiro, ou do Orfeão Scalabitano merecem atenção
pelo que demonstram de utilidade cultural e social de uma prática ainda hoje sem
condições de expansão no país, não obstante terem-se dado movimentos nesse sentido,
designadamente a importante acção de António Jóice (1886-1964) em Coimbra e Lisboa.
A Fundação Calouste Gulbenkian é caso sem precedentes em Portugal. A poderosa
instituição foi oficialmente fundada em 1956, como precioso legado do
multimilionário arménio que residiu nos últimos anos da sua vida em Lisboa. De
harmonia com uma das suas muitas e beneméritas finalidades, tem subsidiado
instituições musicais, concedido bolsas de estudo e prestado outros incitamentos
importantes à arte dos sons, inclusivamente três festivais internacionais de
música, o último dos quais, em 1959, se estendeu a Coimbra e ao Porto. A Fundação,
cujo rendimento diário excede o milhão de escudos, pode marcar o início de uma nova
era na música portuguesa (285).
Se exceptuarmos a ópera, pode bem dizer-se que à iniciativa privada se deve a
europeização da vida musical portuguesa, já quanto a reportório, já pela vinda de
muitos artistas estrangeiros de primeira linha, como Ravel, Strawinsky, Prokofiev,
Honegger, Poulenc ou Hindemith, Friedman, Rubinstein ou Cláudio Arrau, Kreisler,
Heifetz ou Isaac Stern, Piatigorsky ou Fournier, Kirsten Flagstad ou Irmagard
Seefried, Ansermet, Klemperer ou Kubelik, o coro de Robert Shaw, a Orquestra
Filarmónica de Viena, a Hallé, a Colonne ou a de Câmara de Estugarda, o Quarteto
Húngaro ou o Duo Mainardi-_Zecchi, para citarmos só alguns exemplos. :,
Realizações oficiais
Houve ocasião de aludir noutro capítulo ao actual brilho do Teatro Nacional de S.
Carlos, que voltou à antiga e apurada qualidade dos elencos, ao mesmo tempo que, de
ano para ano, vai revelando obras modernas a par de outras do reportório
consagrado, ou injustamente esquecidas.
Relativamente à ópera, devemos aliás tornar à iniciativa particular, nalguns casos
subsidiada pelo Estado ou por municípios. Também foi já sublinhado o valor das
tantas temporadas do Coliseu dos Recreios. Por iniciativa do Ministério da Educação
Nacional (1959), levaram-se ao Coliseu algumas das récitas do S. Carlos, uma das
quais por artistas portugueses. A afluência de público foi vultosa, para o que pode
ter contribuído o facto de a Fundação Nacional para a Alegria no Trabalho ter
adquirido bilhetes para venda barata aos seus beneficiários. Seria deveras
interessante que o empreendimento se alargasse a mais espectáculos musicais, e não
só de ópera.
Realizações operáticas sem a mesma continuidade das temporadas no Coliseu tiveram
lugar noutras salas de Lisboa (nomeadamente o S. Luís e o Politeama), no Porto e,
ainda mais esporadicamente, noutras cidades. Pela velha causa da *ópera nacional*
batem-se hoje algumas instituições, como a Acção Nacional da _ópera (cuja
actividade se tem circunscrito à obra do seu fundador e director, Rui Coelho) e,
mais recentemente, a mencionada Juventude Musical Portuguesa, através do seu curso
de ópera -- a primeira apresentando operas sempre cantadas em português, a segunda
recorrendo a reportório estrangeiro, no original ou em tradução portuguesa e
fomentando a realização de espectáculos na província -- ambas solicitando
sistematicamente cantores portugueses.
A menos rara actuação destes no teatro de S. Carlos, inclusivamente constituindo
todo o elenco de pequenas séries de récitas, e a existência naquele teatro de um
bom corpo coral português alimentam a esperança de que surja uma verdadeira ópera
nacional, isto é, uma organização permanente, formada preponderantemente por
artistas portugueses e destinada à representação de óperas cantadas, como regra, em
português.
_é do âmbito oficial a quase totalidade da boa música que se transmite pela rádio.
Neste ponto, a iniciativa particular tem-se mostrado demasiado receosa de perder a
simpatia do grande público e, consequentemente, de que diminuam as receitas de
publicidade.
A Emissora Nacional de Radiodifusão tem considerável parte dos seus programas
consagrada à música séria. O posto de "Lisboa 2", que funciona diariamente durante
cerca de cinco horas, é de índole exclusivamente cultural e ouve-se em todo o
Portugal continental. Algumas das suas rubricas são retransmitidas para o ultramar.
Se a maior parte das emissões de música se faz por meio do disco comercial, é
também verdade que a Emissora está a desempenhar funções de primeira importância na
música viva, através das suas Orquestra Sinfónica Nacional e Orquestra de Concerto,
ambas actuando normalmente em Lisboa. A Orquestra Sinfónica do Conservatório de
Música do Porto, :, fundada por iniciativa particular, em ligação com o
Conservatório Municipal, pertence hoje também, em grande parte, à Emissora
Nacional, que praticamente a administra.
O mesmo é dizer que as realizações sinfónicas de suficiente qualidade artística
pressupõem a colaboração da estação oficial de rádio -- inclusive as récitas de
ópera e de bailado no Teatro Nacional de S. Carlos, que noutros tempos possuiu a
sua orquestra privativa. No entanto, existem outras orquestras que nos obrigam a,
mais uma vez, aludir à iniciativa particular. A Orquestra Filarmónica de Lisboa tem
sido actividade continuada, a um nível de meio amadorismo. Nos últimos anos,
tentativas de criação de uma orquestra permanente, sob o nome de Orquestra
Sinfónica de Lisboa, têm-se concretizado em alguns concertos públicos, sem lograrem
superar o problema da falta de músicos de suficiente qualidade.
Tornando às realizações de organismos oficiais, devem recordar-se outros aspectos
da acção da Emissora Nacional: os concursos de interpretação e composição e a
directa estimulação do trabalho criador. O extinto Gabinete de Estudos Musicais, de
que Pedro do Prado foi principal obreiro, funcionou durante cerca de dez anos,
encomendou obras a compositores como Luís de Freitas Branco, Frederico de Freitas,
Armando José Fernandes e Joly Braga Santos, entre outros, prestando, nalguns casos,
remunerações mensais fixas. Parece agora em vias de ressurreição, e é de desejar
que ressurja a desempenhar a mesma função, mas ampliada a todos os compositores
portugueses qualificados. Outros estímulos para alguns compositores nacionais
provieram do grupo de bailado Verde Gaio, integrado no Secretariado Nacional da
Informação. Este organismo instituiu em 1959 prémios de composição e interpretação
(286).
Em 1957 e 1958 a Emissora Nacional e o Teatro de S. Carlos levaram a efeito,
conjuntamente, temporadas de concertos sinfónicos com a participação de
categorizados intérpretes portugueses e estrangeiros, reatando uma iniciativa, de
cerca de dez anos antes, que não tivera continuidade.
No plano das realizações municipais, tem havido alguns acontecimentos de relevo.
Avultam entre eles as notáveis séries de concertos sinfónicos gratuitos promovidas
pela Câmara Municipal de Lisboa, em colaboração com a Emissora Nacional, a que se
têm acrescentado outras com o concurso da Banda da Guarda Nacional Republicana.
Aqueles concertos têm oferecido reiteradamente a vastos auditórios programas do
melhor reportório interpretados por artistas de nome. Não foram os únicos serviços
prestados à música pelo tenente-coronel Álvaro Salvação Barreto, que, pouco antes
de abandonar a presidência da Câmara, instituiu o prémio de composição *_Elisa de
Sousa Pedroso*.
A Câmara Municipal do Porto tem desenvolvido acção considerável, nomeadamente
através do Conservatório e da Orquestra Sinfónica. De outras iniciativas
concelhias, destaca-se a da Câmara Municipal de Sintra, com as suas Jornadas
Musicais, esboço de festival que parece em vias de desenvolvimento.
Entre as realizações oficiais, podem também contar-se as dos institutos
estrangeiros, designadamente o Instituto Francês e os seus congéneres italiano,
alemão, britânico e espanhol. Devem-se-lhes muitas apresentações :, de obras e
intérpretes de positivo significado cultural. Uma actividade semelhante à sua,
exercida por instituições oficiais portuguesas noutros países, constituiria grande
serviço para a música e os músicos nacionais, correspondendo também a solicitações
estrangeiras que mais se fazem sentir quanto mais se intensificam os desejáveis
intercâmbios entre
nações.
O ensino da música
No que toca ao ensino da música, o Conservatório Nacional ainda não soube aplicar
meios eficientes para a superação da crise atrás referida. Está hoje (287)
longíssimo das copio ,as frequências de outros tempos: no ano lectivo de 1957-1958,
requereram matrícula nas escolas de música e teatro 299 alunos internos e 330
externos. Chegaram a termo dos seus cursos 24 estudantes (17 de Piano, 1 de
Violino, 2 de Órgão, 3 de Canto e 1 de Saxofone). Ultimamente, parece desenhar-se
um tímido aumento de frequência (288).
Os alunos também não abundam na Academia de Amadores de Música, mas a sua população
cresceu sensivelmente nos últimos anos, enquanto -- em relação à população da
cidade, comparada com Lisboa -- o Conservatório de Música do Porto parece possuído
de maior vitalidade académica. Há em Coimbra o Instituto de Música, e um
estabelecimento semelhante existe no Funchal. Algumas associações da província
contam entre as suas actividades a leccionação de música.
O ensino por professores particulares é ainda uma realidade, mas a um grau muito
inferior ao de antanho.
Os modernos meios de ensino musical, nomeadamente as reuniões nacionais ou
internacionais, que, em alguns países estrangeiros, são exemplos de pedagogia viva
e estímulos excelentes para os jovens músicos, não têm tido aplicação em Portugal.
No Porto, o compositor Fernando Correia de Oliveira está a ensaiar um método
pedagógico moderno e, em parte, original. O pedagogo Edgar Willems tem vindo a
Portugal e as suas lições estão a suscitar interesse em círculos limitados, mas que
talvez venham a exercer benéfica influência no ensino geral da música. Este está
presentemente a ser objecto de uma comissão do Ministério da Educação Nacional.
Os compositores
Pode supor-se a existência de laços de tradição entre compositores portugueses de
ontem e de hoje. São, no entanto, relacionações exteriores e ilusórias, reflexos
enganadores que se espelham no emprego de vocábulos :,
como *nacionalismo, folclorismo* ou *eclectismo* em acepções diferentes. Raro lhes
corresponde qualquer vínculo interno.
O folclorismo de Fernando Lopes Graça (1906-1994) não descende directamente de
Oitocentos, porquanto pressupõe, além de toda uma formação humanista moderna, a
mensagem bartokiana aplicada ao caso português. Pode mesmo afirmar-se que o
fenómeno Lopes Graça constitui, na sua totalidade poliédrica e de firme coerência,
o exemplo mais radical de antítese do oitocentismo musical português. A procurar-se
uma ligação com o passado, seríamos porventura reconduzidos a Viana da Mota, não
porém ao compositor (nem ao pianista). É pela atitude mental, pela organização do
pensamento sobre princípios em parte comuns, ante problemas éticos e estéticos
atinentes à arte musical que Lopes Graça tem direito a ser, de algum modo,
considerado o mais lídimo discípulo de José Viana da Mota (289).
O eclectismo de Frederico de Freitas (1902-1980) não pode tão-pouco confundir-se
com o de Luís de Freitas Branco, nem resulta dele. Não deixa por isso de ser
particularmente interessante, na hodierna música portuguesa, essa união na mesma
autoria de obras como os bailados *_Ribatejo* ou *_A menina tonta* e o *_Quarteto
concertante*; a música para o filme *_Severa* e a ópera radiofónica *_A igreja no
mar* (1958); as pequenas peças para piano d'*_O livro de Maria Frederica* e a
*_Missa solene* (290).
Nos últimos cem anos, e com uma excepção talvez única, que adiante se apontará,
nenhum compositor português descende artisticamente de outro compositor português.
Será acaso uma consequência do culto da originalidade (outro fruto da evolução
europeia desde fins do século XVIII) e, por outro lado, de uma certa xenofilia
associada ao desejo de importar neste distante país produtos de fabricação
estrangeira.
Não há que recusar ao compositor o direito que sempre lhe assiste de escolher as
suas influências, de *prendre son bien oú il le trouve*, nem tão-pouco negar a
vital necessidade de uma osmose de ideias, de concepções estéticas, de processos
técnicos através das fronteiras nacionais. O certo é que em Portugal não se
esboçaram correntes de tradição em que viessem confluir subsídios de diversas
origens, como nos casos estrangeiros de Weber-_Wagner-_Schönberg-
_Webern_Stockhausen, ou Rossini-_Verdi-_Puccini-_Pizzetti, ou Albéniz-_Falla-
_Ernesto
Halffter, para lembrarmos só alguns exemplos nítidos.
As composições parecem suspensas de linhas oblíquas, de diferentes proveniências,
que não, verticalmente, de outros compositores portugueses de gerações acima. Não
significa isto que a todas as obras de autoria portuguesa falte o apoio em
fundamentos válidos, seja a força de uma genuína personalidade criadora, seja o
terreno firme do folclore autêntico, seja ainda uma concepção lúcida e coerente de
um portuguesismo definível por constantes do nosso património literário-artístico.
Outro é decerto o caso singular do compositor Rui Coelho (1892-1986), que, todavia,
não descende tão-pouco de outros compositores portugueses. Trata-se antes de um
portuguesismo de outra época, de arrogo patriótico: auto-sugestão de uma
mentalidade que se mira como expoente musical do "génio da Raça", ideia tão cara a
um Teófilo Braga e hoje tão desacreditada. Ao longo da sua extensa obra, Rui Coelho
tem tentado superar influências :, estrangeiras, de forma a produzir música
iniludivelmente portuguesa e de sua marca. Por certo conseguiu, a seu modo, definir
uma individualidade, porquanto a sua música não pode confundir-se com qualquer
outra. O mais nítido paralelo é porventura com o cinema português, que também não
pode contundir-se com o de qualquer realizador de coturno.
Devemos prestar homenagem ao decano dos músicos portugueses, Luís Costa (18791960),
compositor e pianista distinto que teve a honra de receber ensinamentos de
Ferruccio Busoni. Não pode aqui ser esquecida a sua vasta acção de pedagogo do
piano, principalmente desenvolvida no Porto.
Cláudio Carneiro (1895-1963) dotou a literatura musical portuguesa de páginas
representativas onde diferentes influências estrangeiras se filtram por uma vincada
e introvertida individualidade, que não exclui todavia uma arte de imediata
comunicação. Também lhe cabem importantes contributos para a obra de cultura
musical que se tem realizado no Porto.
Com Armando José Fernandes (1906-1983), temos ainda um exemplo de legitimo e
desejável influxo de além-fronteiras -Fauré, Ravel, Strawinsky, Hindemith --, de
que um sentido estético, uma
sensibilidade requintada e um sólido conhecimento de ofício fizeram verdadeiras
obras de arte, que vivem uma vida própria.
Em Jorge Croner de Vasconcelos (1910-1974), a influência estrangeira (do Ravel do
*_Tombeau de Couperin*, por exemplo) também se legitima pela assimilação, a
absorção orgânica da influência exterior pela personalidade influenciada, processo
de que, neste caso, resulta uma feição portuguesa, no que tem de aristocraticamente
evocativo dos tempos renascentistas ou de D. João V, quando a corte se entretinha
com vilancicos ou escutando alguma tocata para cravo ou clavicórdio (291).
De outro modo passadistas são as composições de Ivo Cruz (1901-1985), que aspiram a
uma expressão mística e racial aparentada com o nefelibatismo de um Afonso Lopes
Vieira. No Porto, Berta Alves de Sousa (n. 1916) tem afirmado uma personalidade
original.
Destes compositores existe número considerável de obras sinfónicas, de câmara, para
piano solo, para canto e piano, para conjuntos corais, para espectáculos de
bailado. Uns têm sido mais fecundos, como Frederico de Freitas e Rui Coelho, outros
parecem menos produtivos, como Croner de Vasconcelos. Só um, Rui Coelho, se tem
reiteradamente dedicado à ópera, a um nível artístico duvidoso.
É em geração mais nova que topamos um caso nítido de descendência artística de
outro autor português: o muito dotado compositor Joly Braga Santos (1924-1988), com
relação ao seu mestre Luís de Freitas Branco. No entanto, a sua produção reflecte
também influência estrangeira, de Williams, Walton e Sibelius, nomeadamente. Joly
Braga Santos obteve em 1959, no S. Carlos, com a sua *_Mérope*, um estrondoso êxito
sem precedentes em óperas portuguesas contemporâneas (292).
Têm vindo menos a público as composições de Vítor Macedo Pinto (n. 1917), Filipe de
Sousa (n. 1927) e Luís Filipe Pires (n. 1934) (293), mas as peças que já
apresentaram são de bom augúrio. :,
O primeiro admira especialmente Bartók, os dois outros talvez mais Paul Hindemith.
O desditoso Gabriel Morais de Sousa (1927-1956) ainda pôde manifestar um promissor
talento para a composição.
Quanto ao portuense Fernando Correia de Oliveira (n. 1921), a sua posição é
singular na música portuguesa, por isso é inventor de uma teoria de composição
(harmonia e contraponto simétricos), que sistematicamente aplica nas suas obras.
Maria de Lurdes Martins (n. 1926) é a última revelação entre os compositores
portugueses, já com provas públicas apreciáveis.
No domínio da música religiosa, ocupa lugar de destaque 0 _p.e Luís de Sousa
Rodrigues (n. 1906), que tem feito obra de renovador, acompanhando a evolução
moderna. Outro sacerdote compositor que se tem distinguido é Manuel Faria,
diplomado em Itália.
Os movimentos musicais de vanguarda, no estrangeiro, pouco têm penetrado em
Portugal. A atonalidade e o dodecafonismo não parecem atraentes para a maioria dos
compositores portugueses. Há exemplos esporádicos, designadamente em Cláudio
Carneiro, mas, dos mencionados, é talvez só Correia de Oliveira quem se aproxima
dessa ordem de ideias de origem centro-europeia. Esboçou-se recentemente (1958) um
movimento de interesse pelo dodecafonismo serial entre estudantes de composição.
A música concreta e a electrónica, se bem que já dadas em público, nomeadamente
pela Juventude Musical Portuguesa (música electrónica) e pela empresa do Tivoli
(música concreta), esta em espectáculos de bailado (1959) -- sem falar de audições
através de fitas cinematográficas --, não assentaram ainda arraiais em terra
portuguesa, e o microtonalismo não encontrou tão-pouco praticantes até à data. O
mesmo pode dizer-se do *jazz*.
Mais do que lamentá-lo, há que pôr a questão de saber se, na literatura musical
contemporânea, existem ou não páginas que produzam no ouvinte aquela indefinível
impressão, que o cativem daquela maneira especialíssima, que o dominem deleitando-o
por esse inefável modo que é apanágio da vivência artística de ordem superior.
A resposta a esta questão só poderia ganhar alguma objectividade se se estribasse
num consenso colectivo com significado estatístico, coisa que não pode existir onde
a música indígena poucas vezes aparece em público, e raríssimas reaparece (294).
Seja, pois, tolerado um critério subjectivo e, respondendo afirmativamente à
interrogação, apontemos, entre outros exemplos aduzíveis, o bailado *_A menina
tonta*, de Frederico de Freitas, as *_Glosas para piano*, os *_Cantos da
natividade*, para coro, ou as *_Cinco estrelas funerárias*, para orquestra, de
Fernando Lopes Graça, o *_Quarteto para piano e cordas*, de Armando José Fernandes,
as peças de inspiração trovadoresca de Cláudio Carneiro, as páginas camonianas ou
as *_Tocatas a Seixas*, de Croner de Vasconcelos, a *_Elegia a Viana da Mota*, para
orquestra, a ópera radiofónica *_Viver ou morrer*, ou a mencionada *_Mérope*, de
Joly Braga Santos.
Estas e outras páginas contemporâneas, acrescidas às que o mesmo critério ditaria
dirigido ao passado -- de um Filipe de Magalhães, de um Duarte Lobo, de um
Francisco Martins, de um Manuel Cardoso ou de um :, D. Pedro de Cristo, de um
António Carreira, um Rodrigues Coelho, um Carlos Seixas, esta ou aquela ária de um
Sousa Carvalho ou Marcos Portugal, alguma peça instrumental de João Domingos
Bontempo, o *adagio* da *_Sinfonia à Pátria*, de Viana da Mota, as *_Trovas* de
Francisco de Lacerda, os *_Madrigais camonianos* ou as *_Sinfonias* de Luís de
Freitas Branco, sem que tão-pouco esgotemos os exemplos possíveis --, o conjunto,
em suma, das obras musicais de autoria portuguesa capazes de suscitar uma autêntica
vivência artística, sem apoio em amuletos patrióticos, autoriza a encerrar as
resumidas referências deste livro à criação nacional com um voto, não isento de
protesto, de que ela mereça maior atenção de promotores de espectáculos,
intérpretes e entidades com possibilidades de fomentar a sua audição.
O folclore
Uma história da música portuguesa, ainda que tendo como objecto a arte sapiente de
compositores e intérpretes, não pode ignorar o que é, afinal, a mais portuguesa de
quantas músicas, porque vive no seio do povo. Desses cantos e bailes, entre os
quais se encontram espécimes admiráveis, alguns parecem conservar traços de ritos
pagãos, como as *danças dos pauliteiros*, em Trás-os-Montes, ou as *encomendações
das almas*, na mesma região e noutras (295).
A sobrevivência da música folclórica implica uma contínua variação e assimilação de
díspares elementos. Assim, as danças dos pauliteiros, com seus trajes e preceitos
curiosíssimos, dir-se-iam também reconstituições de costumes medievais, enquanto as
encomendações das almas acusam de outro modo a penetração cristã. Os belos corais
alentejanos sugerem a influência da música polifónica religiosa, que foi tão
brilhantemente cultivada na região, e outros exemplos, nomeadamente no Douro
Litoral, descendem também do canto a duas e mais vozes de há centenas de anos,
conservando por vezes, pouco deterioradas, formas definidas, designadamente de
vilancico, e permitindo até, num ou outro caso, aventar a hipótese de proveniência
de trechos conhecidos por via dos cancioneiros renascentistas (296).
O estudo ao mesmo tempo aprofundado, sistemático e em grande escala do folclore
nacional está ainda por fazer. Uma iniciativa oficial preferiu ao avisado conselho
de quem preconizava, para uma primeira fase, dez anos de trabalho aturado a
realização de uma campanha-relâmpago, que, naturalmente, resultou atabalhoada e não
teve os desejáveis frutos.
Trabalhos mais meritórios, mas nem todos orientados por verdadeiro método
científico, devem-se a particulares, como Pereira das Neves, Gonçalo Sampaio,
António Arroio, o diplomata britânico Rodney Gallop, António Jóice, Fernando Lopes
Graça, Virgílio Pereira, Artur Santos, Margot Dias, Alexandre Lima Carneiro, Rebelo
Bonito e poucos mais. O número de espécimes recolhidos até 1959 é da ordem dos três
a quatro mil. Estudos do folclore musical insulano e ultramarino têm sido
efectuados por Artur :, Santos, Margot Dias, Hugh Tracey, Belo Marques, Carlos M.
Santos, entre outros. Alguns destes labores têm sido subsidiados eventualmente pelo
Estado e por entidades diversas, oficiais e particulares (297).
O campo de acção é vasto, mas lentíssimos os passos que deste modo se dão no
sentido de verdadeiramente se conhecer o folclore musical português, que, onde quer
que haja um fio eléctrico, está morrendo afogado em ondas hertzianas. Em muitas
regiões, as modas tradicionais só são conhecidas de pessoas com mais de 60 anos. Se
as entidades competentes lhes não acudirem, não tardará que se perca para sempre um
insubstituível tesouro nacional.
Edições
Houve já ocasião de lastimar a escassez de edições de música portuguesa, outra
negativa realidade presente que se mantém pela força de inércia de um longo
passado. Aliás, trata-se do aspecto particular de um problema complexo, em que
entram, como temos visto, a tradicional falta de verdadeiro conhecimento da função
social da música por parte da administração pública, o não se ter verificado no
século XIX um movimento económico-social tão progressivo como nos países mais
adiantados e a concomitante inexistência de um mercado que constitua garantia para
o editor. Empreendimentos como o de Pereira das Neves, em 1868, no Porto, não
podiam ter grande futuro. Uma iniciativa recente (1958) promete solução
temporariamente satisfatória do problema da falta de edições de música séria, por
meio de reprodução fotográfica (298).
Há todavia indícios de que, para além do pequeno mercado português, existe uma
procura talvez muito maior do que podia supor-se. É o que parecem demonstrar as
vendas relativamente avultadas, na maior parte para os E. U. A., de edições de
música polifónica portuguesa promovidas pelo mencionado grupo coral Polifonia.
Nota-se algum progresso na musicografia, e é natural que se acentue na medida em
que as novas gerações mais vão solicitando uma cultura musical. Se houve
personalidades ilustres que outrora escreveram sobre música, é na sua linha que
encontramos hoje um Fernando Lopes Graça, que associa ao conhecimento da matéria e
à compreensão dos problemas os dotes de notável prosador. Além de musicólogos
portugueses, como Manuel Joaquim, Mário de Sampaio Ribeiro, Fernandes Lopes ou
Maria Antonieta de Lima Cruz, e de estrangeiros que sistematicamente têm estudado a
música portuguesa, como Santiago Kastner, Jean-_Paul Sarrautte ou Solange Corbin,
entre outros, seria possível citar número relativamente extenso de colaboradores de
jornais e revistas, da rádio ou da televisão, que têm escrito sobre assuntos
musicais de maneira esclarecida e com positiva acção cultural. O mais animador dos
sintomas é, porém, a solicitação de originais sobre música por parte das casas
editoras, que parece tender a multiplicar-se (299). :,
De revistas da especialidade cabe mencionar apenas a *_Arte Musical*, recentemente
reaparecida, já depois do falecimento do seu fundador e director de muitos anos,
Luís de Freitas Branco (não confundir com *_A Arte Musical* de Lambertini). Neste
capítulo, não estamos muito melhor do que há meio século, ainda que a *_Gazeta
Musical e de Todas as Artes* -- que até 1957 foi exclusivamente *_Musical* -
desempenhe papel relevante pela qualidade da colaboração e a frequência regular da
sua publicação (300).
Intérpretes
A história da música portuguesa abunda mais em intérpretes de verdadeiro renome
internacional do que em compositores de igual sorte, de que, na verdade, houve
apenas um, na pessoa de Marcos Portugal, e este sem projecção para além do seu
tempo. Qualquer história da música europeia, acima do nível colegial ou da mera
divulgação, deve referência a um Viana da Mota ou um Francisco de Andrade e, sem
dúvida, a Luísa Todi, o caso de maior celebridade entre todos os músicos
portugueses. O mesmo dever com relação a alguns compositores não será provavelmente
sentido por tratadistas estrangeiros enquanto não houver meio de lhes criar uma
fama convincente.
Também hoje são intérpretes os mais dos músicos portugueses de reputação
internacional, à frente dos quais se salienta o maestro Pedro de Freitas Branco
(301) (1896-1963), que, entre muitas distinções, teve a de ser considerado um dos
melhores intérpretes de um Ravel ou de um Florent Schmitt, por estes próprios
compositores, e a de ter sido escolhido pela Radiodifusão Francesa para dirigir em
Paris o concerto de homenagem oficial à memória de Albert Roussel. E, ainda, a do
Grande Prémio do Disco, da Academia Charles Gros, que lhe coube em 1954. Devem-se a
Pedro de Freitas Branco incontáveis primeiras audições em Portugal e várias
apresentações de música sinfónica portuguesa no estrangeiro (302).
Antes de prosseguirmos com intérpretes actualmente em carreira, reportemo-nos mais
uma vez ao passado, para lembrarmos Maria Júdice da Costa (n. 1870), que se estreou
como cantora no teatro Baquet, do Porto, se tornou artista profissional de elevada
craveira e percorreu a Europa e a América em *tournées* sucessivas, com artistas
líricos como Caruso, Titta Ruffo, Battistini, Stracciari, colhendo grandes
triunfos, na *_Tosca, Gioconda, Fedora, Tannhäuser, Valquíria* e outras óperas do
reportório.
Regina Paccini (n. 1871), de ascendência italiana, filha de um empresário do Teatro
de S. Carlos, aqui teve os seus primeiros louros, a que vieram juntar-se os de
Espanha, Itália, Inglaterra e Rússia. Na mesma geração, Júlio Câmara (n. 1876)
apresentou-se como tenor lírico em Portugal e em muitos teatros estrangeiros.
Nascidos por volta de 1890, o barítono Luís Macieira e os tenores Manuel Alves da
Silva, Nuno Lomelino Silva e José Rosa não pertencem tão-pouco ao presente, mas
recordam-se ainda as suas melhores actuações operáticas. :,
Um cantor que infelizmente se afastou há anos da cena (303), Tomás Alcaide (n.
1901), conheceu muitos e retumbantes êxitos em vários teatros líricos de categoria.
Fez a maior parte da carreira no estrangeiro e ficaram memoráveis interpretações
suas em óperas como, entre outras, *_Os pescadores de pérolas, Fausto, Werther,
Manon, Rigoletto, Lakmé*.
Entre os pianistas, Helena Moreira de Sá e Costa (n. 1913) está a realizar
assinalada carreira internacional como digna representante de uma família a que
pertencem um Bernardo Moreira de Sá, seu avô, e um Luís Costa, seu pai. Marie
Lévèque de Freitas Branco (n. 1903), francesa de nascimento, também se tem
apresentado com frequência e êxito, não só em Portugal como no estrangeiro. Nella
Maissa, de origem italiana (n. 1914), está a oferecer, principalmente ao meio
português, os benefícios da sua arte consumada. Maria da Graça Amado da Cunha (n.
1919) tem sido incansável militante da música moderna, enquanto Sequeira Costa (n.
1929) parece definitivamente lançado na senda mundial.
Este pianista, que, como tal, é por certo o mais legítimo discípulo de Viana da
Mota, alcançou em 1951 o Prémio de Paris, ou seja, o segundo lugar da classificação
geral do Concurso Internacional Marguerite Long. Deve-se-lhe o acontecimento que
mais agitou a vida musical lisboeta nestes últimos anos, o Concurso Internacional
Viana da Mota (1957), com o qual prestou homenagem de larga projecção à memória do
seu insigne mestre.
Entre outros pianistas, distinguem-se ainda Sérgio Varela Cid e Fernando Laires,
ambos já conhecidos além-fronteiras; Katharina Heinz e Angeles Presutto da Gama, de
origem estrangeira; Maria Campina, Maria Manuela Araújo, Maria Elvira Barroso,
Elisa Lamas, Maria Fernanda Wandschneider, José Carlos Picoto, Luís Filipe Pires e
Maria João Alexandre Pires, enquanto executantes de gerações acima, como Evaristo
Campos Coelho, Jorge Croner de Vasconcelos, Lourenço Varela Cid, Cristina Lino
Pimentel, Florinda Santos, Isabel Manso e outros, continuam a apresentar-se em
público, representando as escolas de um Viana da Mota, um Rey Colaço, um Marcos
Garin. Teve distinto lugar neste grupo de pianistas João Abreu e Mota, já falecido
(1959).
Recorde-se ainda uma pianista que infelizmente abandonou a carreira: Maria
Antonieta Aussenac, distinguida em 1906 com o 1.o prémio do Conservatório de Paris
e elogiada em termos entusiásticos por Viana da Mota, que lhe deu lições em Berlim.
Violinistas como Leonor de Sousa Prado (n. 1917), Antonino David (n. 1923) e Vasco
Barbosa (n. 1930), filho de Luís Barbosa, assim como a violoncelista Madalena
Moreira de Sá e Costa Gomes de Araújo (n. 1915), estão em plena carreira
ascensional, com louvores colhidos dentro e fora do país. Não são, aliás, os únicos
instrumentistas de arco actualmente em evidência, pois têm surgido outros de
mérito, como os violinistas César Pinto Lobo, Lídia de Carvalho Conceição e João
Nogueira, ou os violoncelistas Celso de Carvalho, Carlos de Figueiredo e Maria da
Conceição Macedo.
Entre os mais intérpretes contemporâneos, não pode esquecer-se um grupo notável de
cantores como Maria Amélia Duarte de Almeida, Elsa Penchi Levy, Arminda Correia,
Marina Dewander, Ana de Brito Aranha, Stella Tavares, Leonor Viana da Mota, Olga
Violante, Raquel Bastos, Maria :, Teresa de Almeida, Judite Lúpi Freire, Natália
Viana, Leontina Miranda, Germana de Medeiros, Maria Teresa Dinis Sampaio, Regina
Dinis da Fonseca, Fernanda Mela, Maria Cristina de Castro, Guilherme Kjölner,
Loureiro Dinis, Edgard Duarte de Almeida, José Eurico Lisboa, Hugo Casais, Álvaro
Malta e Luís França. :,
Na execução de outros instrumentos, o flautista Luís Boulton, o trompetista Adácio
Pestana ou o fagotista João Mateus são modelos de competência profissional; os
organistas Filipe Rosa de Carvalho, Maria Celeste Silva e Eduardo Simões, a
cravista Maria Malafaia e o violista Duarte Costa distinguem-se entre os poucos
interessados em fazer reviver modalidades instrumentais que noutros tempos foram
tão cultivadas em Portugal.
É facto curioso o repentino aparecimento de uma plêiade de chefes de orquestra,
como Silva Pereira -- que fizera carreira de violinista --, António de Almeida, os
compositores Joly Braga Santos e Filipe de Sousa ou o pianista Jaime Silva (Filho),
que, com os que já exerciam o mister, Pedro de Freitas Branco, Frederico de
Freitas, Fernando Cabral, Wenceslau Pinto e outros, estão a produzir uma como que
inflação de maestros no pequeno meio português, reduzido praticamente a Lisboa e
Porto, sem por isso deixarem de nele introduzir uma certa vitalidade desejável, na
mesma medida em que vão demonstrando os seus desiguais méritos.
Conjuntos de câmara
O número e a actividade dos conjuntos instrumentais de câmara nunca foram grandes
em Portugal, e não o são ainda hoje. Alguns instrumentistas distintos, como o
violinista Paulo Manso e o violoncelista Fernando Costa, que tiveram a honra de
frequentemente colaborarem com Viana da Mota, ou ainda o violoncelista Filipe
Loriente, o violetista Fausto Caldeira, os violinistas Flaviano Rodrigues, Joaquim
de Carvalho e Alfredo David, a pianista Regina Cascais, entre outros, têm lutado
devotadamente para que essa lacuna se preencha, sem que, no entanto, alguém o
conseguisse plenamente. Relevante tem sido também, neste aspecto, a acção da
Sociedade Nacional de Música de Câmara e de outras associações mencionadas.
Existiram o quarteto de Luís Barbosa e o trio de Silva Pereira, que, até à sua
extinção, actuaram com regularidade aos microfones da Emissora Nacional e algumas
vezes em público. Desempenham papel importante a Academia de Instrumentistas de
Câmara (orquestra de corda de que se destacam vários conjuntos menores), o Quarteto
de Lisboa (com piano), o Quinteto Nacional de Instrumentistas de Sopro e, no Porto,
o Quarteto de Cordas do Emissor Regional do Norte e o Trio Portugalia.
Ouvem-se também com certa frequência alguns duos de qualidade: Helena Costa-_Henri
Mouton, Nella Maissa-_Leonor Prado, Khatarina Heinz-_Antonino David, Grazi
Barbosa_Vasco Barbosa, Helena de Matos Silva-_Lídia de Carvalho Conceição, todos
estes de
piano e violino. :,
Que a música de câmara não tem ainda em Portugal o lugar que lhe compete em
qualquer meio de formação musical europeia demonstra-o o simples facto de não
existir permanentemente, em Lisboa, um só quarteto de cordas.
Nem os nomes citados nestas últimas páginas são todos os que poderiam sê-lo, nem
provavelmente ficarão todos eles para a futura historiografia da música portuguesa.
Construção de instrumentos
Quase não valia a pena abrir este parágrafo, porque a indústria portuguesa de
instrumentos musicais não tem condições para se impor à concorrência estrangeira. É
uma das razões do mérito de José Brandão, construtor de instrumentos de arco que se
dedica também à composição musical.
Considerações finais
O presente (304) não parece indigno do passado e eleva-se de algum modo acima do
que, em média e em função das diferentes épocas, foi a vida musical portuguesa
durante a maior parte dos oito séculos de história. Com os poucos meios que têm
sido utilizados, talvez fosse mesmo possível revestir-se de aparência mais
brilhante, a menos que algum daqueles pontos singulares da linha da história a que
se chama *génios* tivesse podido ascender à contemplação rendida de todo o mundo. O
que, como é sabido, pode resultar de um acontecimento fortuito, de um simples acaso
da fortuna. Tal sorte, não a conheceu ainda nenhum músico português contemporâneo.
A música e os músicos necessitam de uma audiência. Como outros produtos, as obras
musicais e as suas concretizações sonoras dependem da procura, que é, afinal, uma
das suas fontes vitais. Em Portugal, o desequilíbrio entre produção e consumo tem
sido notório, verificando-se que as composições e os potenciais artísticos de
execução pública excedem grandemente o grau de solicitação. Não quer isto dizer que
os concertos sejam em número exagerado, mas sim que o número de obras de autores
portugueses e as possibilidades de as levar a público vão muito além do desejo
manifesto de as ouvir e tornar a ouvir.
Uma casa editora portuguesa que, em 1955, organizou um ficheiro de musicófilos em
todo o país não precisou para tanto de mais de 10.000 fichas. A grande função
social de que a boa música é capaz só poderá cabalmente exercer-se quando as
solicitações vierem de muito maior percentagem da população, o que pressupõe a
reforma do ensino musical nas escolas primárias e secundárias. De outro modo, só
muito lentamente será possível :, oferecer aos habitantes de pequenas localidades a
inestimável vivência artística através do som, à qual se obstinarão em resistir,
fechando-se de boa-fé no seu acanhado mundo de empregos, cafés, clubes e
comentários desportivos.
Isto, num dos pratos da balança. No outro, o da produção, há talvez, por
concomitância, que aguardar aquele milagre que seria a instrução pública através da
arte. O que não é motivo para que, entretanto, se não atente em realidades tão
inquietantes como a escassez dos alunos de música.
O excesso da produção nacional, filho de admirável persistência de compositores e
intérpretes, às vezes com aspectos quixotescos, é ainda resto de outros tempos, que
passaram. Urge reformar também o ensino especializado de música. Porque é possível
que a venda de aparelhos de rádio e televisão, de discos e de bilhetes para
espectáculos musicais bata todos os recordes de todos os tempos, em Portugal, no
mesmo dia em que se tornar inviável a reunião de uma orquestra de músicos
portugueses, por inexistência dos mesmos.
_história da
_música _portuguesa
por
_joão de _freitas _branco
_publicação em 13 volumes
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do _porto
_c_p_a_c -- _edições
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_r. do _instituto de
_s. _manuel
4050 __porto
1998
_décimo _segundo _volume
_joão de _freitas _branco
_história da
_música _portuguesa
_organização,
_fixação de _texto,
_prefácio e _notas
de _joão _maria
de _freitas _branco
2.a _edição,
_revista e _aumentada
_publicações
_europa-_américa
_capa: estúdios _p. _e. _a.
_herdeiros de _joão
_c de _freitas _bran-
co, 1995
_editor: _francisco _lyon de
_castro
:__publicações europa-américa, __lda.
_apartado 8
2726 __mem __martins __codex
__portugal
_edição n.o: 116512/6266
_execução técnica:
_gráfica _europam, _lda.,
_mira-_sintra -- _mem
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Y
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1 -- *_Amphion*.
2 -- *_A Arte Musical*.
3 -- *_águia*.
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5 -- *_Revista do Conservatório Nacional de Música*.
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13 -- *_átomo*.
14 -- *_Ler*.
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19 -- *_African Music* -- Roodeport, Transval.
20 -- *_O Século*. :,
_história da
_música _portuguesa
por
_joão de _freitas _branco
_publicação em 13 volumes
_s. _c. da _misericórdia
do _porto
_c_p_a_c -- _edições
_braille
_r. do _instituto de
_s. _manuel
4050 __porto
1998
_décimo _terceiro _volume
_joão de _freitas _branco
_história da
_música _portuguesa
_organização,
_fixação de _texto,
_prefácio e _notas
de _joão _maria
de _freitas _branco
2.a _edição,
_revista e _aumentada
_publicações
_europa-_américa
_capa: estúdios _p. _e. _a.
_herdeiros de _joão
_c de _freitas _branco, 1995
_editor: _francisco _lyon de
_castro
:__publicações europa-américa, __lda.
_apartado 8
2726 __mem __martins __codex
__portugal
_edição n.o: 116512/6266
_execução técnica:
_gráfica _europam, _lda.,
_mira-_sintra -- _mem
_martins
_depósito legal n.o: 85462/
/95
__isbn 972-1-04012-6
NOTAS
(1) Marx/_Engels, *_Die Deutsche Ideologie, _m_E_W*, 3, 18.
(2) R. G. Collingwood, *_The idea of history*, The Clarendon Press, Oxford; trad.
port. *_A ideia de história*, Editorial Presença, Lisboa, 1989 (7.a ed.), pág. 17.
(3) Karl Löwith, *_Meaning in history*, The University of Chicago, 1949; trad.
port. *_O sentido da história*, Edições 70, Lisboa, 1990, pág. 19.
(4) Cf. Vitorino de Almeida, *_Música*, Col. "O que é?", Difusão Cultural, Lisboa,
1993, pág. 116.
(5) Para poder manter a actividade artística e musicológica, João de Freitas Branco
optou por um regime também de *part- time* no _A_C_P.
(6) Cf. pág. 229 da 1.a edição.
(7) Todas as notas deste segundo tipo estão assinaladas com a indicação (*_n. do
_o.*), "Nota do Organizador".
(8) Veja-se nota relativa a Luís de Freitas Branco, na nota n.o 260.
(9) Tema particularmente caro a João de Freitas Branco, por considerar que, mesmo
entre a população especializada, reina a este respeito a maior confusão.
(10) A importância que atribuo a este texto introdutório faz-me pensar na utilidade
de, no futuro, promover a sua publicação em separado.
(11) _p. 208 da 1.a edição.
(12) Ambas as obras estão referenciadas na bibliografia suplementar.
(13) Ver bibliografia _ES 1, X 7.
(14) Dado que a presente *_História da música portuguesa* se metamorfoseou,
deixando de ser um "pequeno livro de divulgação", como não sem alguma modéstia o
próprio Autor se lhe referia -- considerando tão só a edição de 59 --, era meu
desejo intercalar no texto, sob a forma de notas de pé-de-página, a quase
totalidade das indicações bibliográficas que na primeira edição figuravam no fim do
texto, de modo a melhor corresponder às exigências do leitor estudioso. Razões de
ordem técnica impediram que essa opção fosse levada à prática. Em face desta
dificuldade, resolveu-se não alterar a localização das notas, que assim, à
semelhança do que ocorria na primeira edição, continuam a figurar no fim do volume.
No entanto, optou-se por intercalar no texto a chamada de cada uma dessas notas,
coisa que não acontecia na anterior edição, onde estas referências bibliográficas
nem sequer tinham numeração própria. Achei por bem manter a forma codificada (v.
nota anterior), tão representativa de uma muito pessoal metodologia criativa e até
mesmo reveladora, por isso mesmo, do temperamento intelectual de João de Freitas
Branco. Como já antes se disse (v. Prefácio), a bibliografia organizada em 1959
tem, segundo penso, um valor documental que importa preservar. Por isso, toda a
actualização bibliográfica, mesmo quando da responsabilidade do próprio Autor, foi
remetida para outras notas, paralelamente intercaladas, e obedecendo a outros
critérios formais. Porém, a numeração é continua, não fazendo qualquer distinção
entre um e outro tipo de notas.
Para o completo esclarecimento da função deste tipo de notas, directamente
importadas da primeira edição, convirá talvez dizer que elas se destinam a dar
indicação de :, pistas bibliográficas que possibilitem ao leitor interessado o
aprofundamento do estudo do assunto (ou assuntos) focado no texto imediatamente
anterior -- geralmente um parágrafo ou conjunto de parágrafos. A convenção aqui
utilizada (relacionada com a numeração da Bibliografia organizada pelo Autor)
esclarece-se com o seguinte exemplo: _Ka 4, _Sa 6, significa que sobre o tema do
respectivo parágrafo o leitor estudioso terá porventura interesse em consultar
Santiago Kastner, *_Contribución*... e Adolfo Salazar, *_La música... (_n. do _o.)
(15) Sobre este período, leia-se Günther Wille, *_Musica romana. Die Bedeutung der
Musik im Leben der Römer*, P. Schippers, Amesterdão, 1967, pp. 145, 313 e 574. Foi
esta a obra em que o Autor se baseou para redigir este novo parágrafo que não
figurava na primeira edição. Como já ficou dito no *_Prefácio*, João de Freitas
Branco não chegou a redigir as notas que tinha a intenção de introduzir nesta 2.a
edição da *_História da música portuguesa*. No entanto, foi anotando algumas
referências bibliográficas à margem do texto dos acrescentos. Com base nesses
breves apontamentos, muitas vezes incompletos, e no conhecimento directo que deriva
do meu trabalho de colaboração com o Autor serão anotadas ao longo do texto todas
as principais fontes bibliográficas utilizadas. Nos casos, infelizmente raros, em
que se encontraram referências completas, elas serão de aqui em diante apresentadas
como notas do Autor; relativamente às restantes, completadas ou redigidas por mim,
aparecerão com a indicação de serem notas introduzidas pelo organizador da presente
edição. Sempre que possível, procurou-se actualizar a informação bibliográfica.
Quer isto dizer que nas notas de minha inteira responsabilidade as referências
bibliográficas referem-se apenas a textos publicados mais recentemente e dos quais
João de Freitas Branco já não teve conhecimento ou pelo menos não utilizou no seu
trabalho de investigação historiográfica. (_n. do O.)
(16) Ver bibliografia _RE 1.
(17) Ver bibliografia _CO 2.
(18) 0 Autor tinha a intenção de alterar estes períodos do texto mas não chegou a
redigir o novo texto. Apenas lavrou a seguinte nota: "Já não é bem assim -folclore
em paiíses capitalistas." (_n. do _o.)
(19) Ver bibliografia _AP 3, _RE 1.
(20) Ver bibliografia _GE 1.
(21) Ver bibliografia _AP 3.
(22) José Perez de Urbel, in *_Archivos Leoneses* VIII/15, 1954, p. 138. A citação
de Stevenson encontra-se no *_Prefácio a Antologia da polifonia portuguesa*,
"Portugaliae Musica", Vol. XXXVII, Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa, 1982.
(23) Ver bibliografia _DA 2, _LE 2, _PA 1.
(24) Ver bibliografia _CO 2.
(25) Ver bibliografia _CO 2, _RE 3, _TR 3.
(26) Ver bibliografia _PI 1.
(27) Mumadona é o nome por que é geralmente conhecida D. Mumadona Dias, ou D. Muma,
dama galega muito rica que, depois da morte do marido, o conde Hermenegildo
Gonçalves, fundou em Guimarães um mosteiro de "monges e monjas consagrados ao
Salvador do Mundo". No final dos anos 60 a Academia Portuguesa de História, através
de uma conferência do académico correspondente João Albino Pinto Ferreira,
dedicoulhe alguma atenção revelando a existência de um texto sobre Mumadona, o
"Livro de
Mumadona". Sobre a comunicação de J. A. Pinto Ferreira veja-se o artigo, não
assinado, intitulado "Há dez séculos", *_Diário de Lisboa*, 17/11/1968. (*_n. do
_o.*)
(28) Ver bibliografia _CO 2.
(29) Ver bibliografia _RE 3, _SA 20, _SA 23.
(30) _o Autor anotou a intenção de alterar o último período deste parágrafo. (*_n.
do _o.*)
(31) Carolina Michäelis de Vasconcelos, *_Cancioneiro da Ajuda*, Max Niemeyer
Buchdrukerei des Weisenhauses, Halle, 1904. :,
(32) Ver bibliografia _AN 3, _AN 4, _LO 2, _RE 1, _RI 14, _SA 5.
(33) Relativamente à investigação mais recente sobre Martin Codax veja-se Manuel
Pedro Ferreira, *_o som de Martin Codax*, Unysis/_imprensa Nacional-_Casa da Moeda,
Lisboa, 1986. (*_n. do _o.*)
(34) Ver bibliografia _PI 1.
(35) Há que considerar também o fenómeno da censura. Aliás, o Autor tinha a
intenção de desenvolver essa temática neste capitulo, mas não chegou a redigir o
novo texto. Mais adiante é feita breve referência ao regime censório a que os
jograis estavam sujeitos:
Sobre a censura em Portugal leia-se José Timóteo da Silva Bastos, *_História da
censura intelectual em Portugal*, Imprensa da Universidade de Coimbra, Coimbra,
1926; Graça Almeida Rodrigues, *_Breve história da censura literária em Portugal*,
Instituto de Cultura e Língua Portuguesa, Lisboa, 1980; Luiz Francisco Rebelo,
*_História do teatro português*, Europa-_América, Lisboa, 1968. (*_n do _o.*)
(36) Recorde-se que na altura da primeira publicação deste texto toda a imprensa
portuguesa estava sujeita à censura. Trata-se portanto de uma ironia critica
directamente endereçada ao totalitarismo salazarento então reinante no pais. (*_n.
do _o.*)
(37) Na bibliografia encontram-se referenciadas obras sobre este tema. (*_n. do
_o.*)
(38) Citado a partir de Fernando Venâncio Peixoto da Fonseca, *_Cantigas de
escárnio e maldizer dos trovadores galego portugueses*, Clássica, Lisboa, 1971.
(*_n. do _o.*)
(39) Ver bibliografia _PI 1, _NU 1.
(40) _o Autor manifestou a intenção de alterar todo este parágrafo. Segundo julgo
saber, era principalmente a questão das condicionantes geográficas que motivava
essa intenção. Seja como for, a verdade é que o novo parágrafo nunca chegou a ser
redigido. Optei por não introduzir nenhuma modificação. (*_n. do _o.*)
(41) Ver bibliografia _AN 1, _SA 6.
(42) José Hermano Saraiva. *_História concisa de Portugal*, Publicações
Europa_América, colecção "Saber", n.o 123, Lisboa, 1978. Sempre que possível,
indicar-seá, como neste caso, a fonte ou fontes bibliográficas de que o Autor se
serviu. Como
se sabe, a 1.a edição desta *_História* não tinha notas e o Autor não chegou a
escrever as notas para a 2.a edição. (*_n. do _o.*)
(43) Nan Cooke Carpenter, *_Music in the Medieval and Renaissance Universities*,
Norman, University of Oklahoma Press, Oklahoma 1958.
(44) Esta antiga moeda árabe, que corria em Portugal na Idade Média, também foi
conhecida pelo nome de "morabitino". (*_n. do _o.*)
(45) Ver bibliografia _CA 3, _SA 22.
(46) Ver bibliografia _CO 1.
(47) "Pipia" era um instrumento de sopro antigo constituído por um tubo pequeno,
normalmente feito de cana do trigo ou da cevada, em que se abria uma fenda e que
produzia um som muito agudo e forte. Chama-se "voz de pipia" à voz muito aguda.
(*_n. do _o.*)
(48) Ver bibliografia _SA 19.
(49) Ver bibliografia Y 17.
(50) Ver bibliografia _SA 6.
(51) Ver bibliografia X 3.
(52) Ver bibliografia _MA 1.
(53) Ver bibliografia _SA 6.
(54) Ver bibliografia _CA 4.
(55) *_Eu vi Binchois ter vergonha e calar-se ao pé da rabeca deles; e Dufay
despeitado e sombrio por não ter tão bela melodia*.
(56) Prática hoje completamente ca da em desuso e até mesmo inaceitável. A última
vez que algo de semelhante ocorreu entre nós foi numa récita da *_Carmen*, no
Teatro de :, S. Carlos, no ano de 1973, em que o tenor Franco Corelli interpretou
uma parte do papel de D. José em italiano, enquanto o resto do elenco respeitou
integralmente o idioma original. (*_N. do _o.*)
(57) Ver bibliografia _KR 1, Y 9, Y 17. Indica-se aqui a revista Canto Gregoriano
porque o leitor poderá verificar nas suas colunas que ainda hoje o emprego dos
instrumentos é um problema da música eclesiástica. Veja-se, por exemplo, o número
de março de 1959, a pp. 21 e segs.
(58) Ver bibliografia _VI 13, _VI 25.
(59) Ver bibliografia _KA 4, _VI 23.
(60) Sobre isto, consulte-se José Augusto Alegria, *_Biblioteca Pública de Évora -
Catálogo dos fundos musicais*, Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa, 1977, p. 133.
(61) Ver bibliografia _CO 1.
(62) Ver bibliografia _RI 7.
(63) Ver bibliografia _CO 1, _DI 2.
(64) Ver bibliografia _CO 3.
(65) Ver bibliografia _RE 2.
(66) Ver bibliografia _LA 4.
(67) Ver bibliografia _PO 1.
(68) Ver bibliografia _MI 2.
(69) Ver bibliografia _JO 2, _LO 1, _RI 7.
(70) Ver bibliografia _FA 2, Y 17.
(71) D. João IV, *_Defensa de la musica moderna contra la errada opinion de/ Obispo
Cyrilo Franco*, com prefácio, introdução e notas de Mário de Sampaio Ribeiro,
Coimbra, 1965. (*_n. do O.*)
(72) Veja-se Adolfo Salazar, *_História da dança e do ballet*; tradução, notas e
parte relativa a Portugal por Tomaz Ribas, Lisboa 1949. (*_n do_o.*)
(73) Anna Ivanova, *_The dancing spaniards*, Baker, London, 1970. Veja-se também A.
Ivanova, *_The dance in Spain*, Praeger Publishers, N. York, 1970. (*_n do_o.*)
(74) Mateus Aranda, *_Tractado de cãto llano*, edição facsimilada com introdução e
notas de José Augusto Alegria, Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa, 1962.
*_Tractado de canto mensurable*, edição facsimilada com introdução e notas de José
Augusto Alegria, Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa, 1978.
(75) Ver bibliografia _RI 8.
(76) Ver bibliografia _BE 1, _BR 1, _SA 6, _SA 17, _SA 22.
(77) Embora não sendo música de autos vicentinos, merece aqui referência uma
recente edição fonográfica que é um interessante documento sonoro da canção ibérica
do Renascimento: Senhora del mundo: música española y portuguesa para vihuela,
Chandos, 1995, __CHAN 0546, __CD. (*_N. do O.*)
(78) Ver bibliografia _VI 21.
(79) Ver bibliografia _BR 2.
(80) Ver bibliografia _MO 3, _PO 2.
(81) Ver bibliografia Y 6.
(82) Ver bibliografia _PI 3.
(83) Ver bibliografia _SA 6, _VI 11.
(84) A numeração corresponde à da seguinte edição: Luís de Camões, *_Obra
completa*, Aguilar Editora, Rio de Janeiro, 1963. O segundo número indicado é o da
página da citada edição. (*_N. do O.*)
(85) No texto da 1.a edição não era feita nenhuma alusão a Luís de Camões neste
contexto do cultivo da música por parte dos escritores renascentistas. Nos anos 50,
estava ainda por fazer a investigação musicológica da obra camoniana. Mas, por
ocasião das comemorações do IV Centenário da morte do Poeta, o próprio João de
Freitas Branco levou a cabo um trabalho pioneiro que, pela importância de que se
reveste, muito se :, justificaria ser mais referido. O essencial desse notável
trabalho de investigação musicológica materializou-se em dois livros para os quais
se remete o leitor interessado: *_A música na obra de Camões*, Biblioteca Breve,
n.o 42, Instituto de Cultura Portuguesa, Lisboa, 1979; *_Camões e a Música*,
Academia das Ciências de Lisboa, Lisboa, 1982 (note-se que a ordem da publicação
destas duas obras é inversa à da sua redacção; na realidade, a primeira baseia-se
na segunda). No entanto, o Autor tinha o propósito de incluir nesta 2.a edição toda
uma nova parte dedicada a Camões e que apareceria exactamente no final deste
subponto. Uma nota colocada na margem da p. 66 do exemplar de trabalho não deixa
dúvidas quanto a este propósito. Infelizmente não chegou a ser redigida. Com a
finalidade de colmatar aquilo que seria hoje uma lacuna grave, optei por redigir eu
próprio, com base nas obras acima citadas e, portanto, em perfeita sintonia com as
teses de João de Freitas Branco, as linhas que aqui se incluíram sobre o autor
d'*_Os Lusíadas*. Para um estudo mais aprofundado da relação do Poeta com a arte
dos sons devem consultar-se, para além dos dois livros referidos, a comunicação de
José Mimoso Barreto Santinho ao Colóquio Camoniano (1980), da Sociedade de
Geografia de Lisboa, intitulada "Camões e a música" e publicada nas actas do
Colóquio. De referir também os textos de apoio incluídos na edição discográfica "A
música no tempo de Camões" (_E_M_I/_valentim de Carvalho, 8_E-17140511/12). (*_n.
do _o.*)
(86) 0 texto original manuscrito, relativo a este acrescento à 1.a edição do livro,
é interrompido neste ponto, tendo o Autor indicado que a respectiva continuação se
encontra "entre filetes na p. 66". Acontece, porém, que em nenhum dos cadernos se
encontra uma página com o número 66 que aborde o tema da música litúrgica, e no
exemplar da 1.a edição de que o Autor se serviu para introduzir correcções ou
alterações não aparece nenhum texto colocado entre filetes. A inexistência desta
"continuação", bem assim como outra alusão, nesta mesma passagem do original, a uma
"p. 5, manuscrita, sobre Damião de _góis,, (caderno J-5, p. 5), faz temer que se
tenha perdido alguma parte dos acrescentos à 1.a edição. Desconhece-se, porém, a
existência de qualquer outro caderno. Pode também supor-se ter havido simplesmente
um erro de paginação, que aliás não seria caso único: onde se indica "p.5" pode ter
havido a intenção de escrever "p. 65" do primeiro caderno, essa sim dedicada a
Damião de Góis. Na tentativa de superar estas dificuldades, interpretando as
escassas indicações presentes no original, afigura-se-me plausível que o Autor
tenha pretendido integrar a parte relativa a Damião de Góis ("D. de Góis, um músico
de mentalidade universalista", pp. 66-68 da 1.a ed.) numa nova subdivisão
intitulada "Música litúrgica". Foi esta a opção tomada. (*_n do _o.*)
(87) Não há a certeza da data de nascimento ter sido 1500, pois, segundo outras
fontes, pode ter sido 1498 ou 1495. Daí que na 1.a edição figurasse apenas "149?".
No entanto, o *_Dicionário de Literatura*, dirigido por Jacinto do Prado Coelho
(Figueirinhas, Porto, 1978), dá como certa a data de 1500. Em qualquer dos casos,
convirá não confundir este André de Resende (que alguns supuseram chamar-se Lúcio
André) com o autor do poema *_Microcosmografia*, o poeta André Falcão de Resende
(1527-1599), que era seu primo segundo e sobrinho do conhecido polígrafo e músico
Garcia de Resende (c.1470-1536), já antes referido. (*_n. do _o.*)
(88) Ver bibliografia _CR 2, _RI 3.
(89) Ver bibliografia _VI 8.
(90) Raul Rego, *_O processo de Damião de Góis na Inquisição*, Lisboa, 1971. Sobre
Damião de Góis, o autor baseou-se também na obra de Elisabeth Feist Hirsch,
*_Damião de Gois. The life and thought of a portuguese humanist*, Martinus Nijhoff,
Hague, 1967. Merecem igualmente menção algumas outras obras da mesma autora que, no
entanto, não foram utilizadas na redacção deste acrescento: *_Damião de Góis*,
Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa, 1987 e ainda "Damião de Góis as a
representative of his era (1502-1574)", Fac. de Letras da Universidade de Coimbra,
Sep. *_Biblos*, 51 (número de homenagem :, a Joaquim de Carvalho), pp. 327-338,
Coimbra, 1980. Tenha-se também em consideração Marcel Bataillon, Borges de Macedo,
*et. al, Damião de Góis, humaniste européen*, Barbosa ç Xavier, Braga, 1982. (*_N.
do _o.*)
(91) Arquivo Nacional da Torre do Tombo: Inq. Lisboa, n.o 1888, Fl. 5 v.o
(92) Arquivo Nacional da Torre do Tombo, Inq. Lisboa, n.o 10259, Fl. 115, 115 v.o
(93) Arquivo Nacional da Torre do Tombo, Inq. Lisboa, n.o 1888, Fl. 55, 55 v.o
(94) Arquivo Nacional da Torre do Tombo -- Inf. Lisboa, Caderno do Promotor, Vol. 5
-- 1551-1590, n.o 89.
Raul Rego, *_O processo de Damião de Góis na Inquisição*, Lisboa 1971.
(95) Ver bibliografia _VI 6, _VI 15.
(96) Cf. D. Nicolau de Santa Maria, *_Chronica da Ordem dos Cónegos Regrantes do
Patriarca S. Agostinho* (Lisboa, 1668), P. II -- Livro I, Cap. XXI, p. 85.
(97) Ver bibliografia _AN 2, _AN 6, _AP 1, _PE 2, _PU 1, _PU 2, _RI 5, _SA 4, _TR
2.
(98) Ver bibliografia X 3. Não se confirmam as suposições de que Robert de Visée
fosse português.
(99) As alterações introduzidas neste ponto estão indicadas de modo pouco claro. No
entanto, uma nota à margem sugere que o nome de Doizi de Velasco deve aparecer
juntamente com o de António de Abreu. (*_n. do _o.*)
(100)