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GLOBALIZAÇÃO E NEOLIBERALISMO

GLOBALIZAÇÃO E NEOLIBERALISMO

OCTAVIO IANNI
Professor do Departamento de Sociologia da Unicamp. Autor de A sociedade global, entre outros

O processo de globalização aparece de forma parti- nhecem plenamente, seja os que a relativizam, ou ainda
cularmente acentuada no âmbito das ideologias que os que simplesmente a negam, todos revelam-se inquie-
se criam e recriam, ou mesclam e degladiam. São tos. Alguns alegam que se trata de uma realidade antiga,
ideologias nas quais convivem utopias, nostalgias e esca- evidente desde os inícios do capitalismo, quando declina
tologias, em geral decantando ou exorcizando o jogo das for- o feudalismo e emerge o mercantilismo. Outros afirmam
ças sociais que fermentam os novos quadros sociais e men- que está em curso uma diabólica maquinação ideológica
tais de referência. Em todo o mundo, ainda que em diferentes do neoliberalismo. Há os que distinguem “mundializa-
gradações, multiplicam-se as interrogações e as convicções ção” da cultura e “globalização” da economia. Também
nas quais ressoam utopias, nostalgias e escatologias sobre o existem os que dizem que a globalização não é senão uma
destino de indivíduos e coletividades. nova face do imperialismo. São muitos os que insistem
Desde que se tornou evidente a globalização de pro- na prevalência do nacionalismo, compreendendo a sobe-
cessos e estruturas sociais, abalando territórios e frontei- rania do Estado-Nação e a importância das relações in-
ras ou soberanias e hegemonias, multiplicaram-se as con- ternacionais, como se a globalização não fosse senão uma
trovérsias e os estudos, tanto quanto as inquietações e as dimensão secundária ou até mesmo episódica das rela-
perspectivas, sobre as configurações e os movimentos da ções econômicas e políticas entre nações agrárias, sub-
sociedade, em âmbito local, nacional, regional e mundial. desenvolvidas, mais ou menos desenvolvidas, emergen-
O mapa do mundo revelou-se movediço e quebradiço, re- tes, industrializadas e pós-industriais. Para outros, os
fletindo uma espécie de megaterremoto, simultaneamen- processos de integração regional, tais como os da União
te geoistórico, econômico, político e cultural. E assim se Européia (UE), Tratado de Livre Comércio da América
abalam mais ou menos drasticamente os territórios e as do Norte (Nafta), Mercado Comum Sul-Americano (Mer-
fronteiras de todos os tipos, compreendendo os quadros cosul), Comunidade de Estados Independentes (CEI) e
sociais e mentais de referência de uns e outros, indiví- Cooperação Econômica Ásia-Pacífico (Apec), entre tan-
duos e coletividades ou povos, tribos, nações e nacionali- tos regionalismos, seriam uma reação de autodefesa das
dades, em todo o mundo. economias nacionais, embora haja os que alegam que o
Essa é a realidade: quando se abalam as bases sociais e regionalismo revela-se uma forma de atenuar o impacto
mentais de referência de uns e outros, todos são desafia- do globalismo sobre o nacionalismo. São muitos os que
dos a repensar as suas práticas e os seus ideais, compre- se revelam inquietos com a sucessão de acontecimentos,
endendo as suas convicções e as suas ilusões. Ao mesmo simultaneamente sociais, econômicos, políticos e cultu-
tempo em que se abalam as formas de sociabilidade que rais, embaralhando ou redirecionando as fronteiras de
pareciam estabelecidas e o jogo das forças sociais que todos os tipos, modificando os desenhos e os movimen-
parecia equacionado, abalam-se as interpretações e os ima- tos do mapa do mundo.
ginários que pareciam sedimentados. O que predomina, na época em que se dá a globaliza-
É evidente que a problemática da globalização tem ção, é a visão neoliberal do mundo. Em todos os países,
agitado os espíritos em todo o mundo. Seja os que a reco- as práticas e as idéias neoliberais estão presentes e ati-

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vas. É claro que elas não se difundem de modo homogê- o capital, sob suas diversas formas, globalizam-se as tec-
neo; ao contrário, concretizam-se irregular e contradito- nologias de todos os tipos, compreendendo crescentemente
riamente. Defrontam-se com realidades sedimentadas, no as eletrônicas e informáticas. A informática concretiza,
que se refere seja às atividades, organizações e diretrizes agiliza e generaliza os processos decisórios, favorecendo
econômicas, políticas e sociais, seja às tradições cultu- a dinâmica das empresas, corporações e conglomerados.
rais, compreendendo instituições, modos de vida e traba- Multiplicam-se as redes de todos os tipos, incluindo os
lho, formas de sociabilidade e outras características movimentos de capitais, mercadorias, gentes e idéias,
próprias de cada povo, coletividade, tribo, nação e nacio- sempre envolvendo decisões adotadas pelas tecno-estru-
nalidade. O nacionalismo, tribalismo, localismo, provin- turas nas quais se diagnosticam, decidem e implementam
cianismo, chauvinismo e outras peculiaridades ou excentri- as práticas por meio das quais operam e desenvolvem-se
cidades revelam-se, com freqüência, obstáculos à difusão e as forças produtivas e as relações de produção. Nesse sen-
assimilação de práticas e idéias neoliberais. tido é que as atividades, os movimentos e as diferencia-
O neoliberalismo compreende a liberação crescente e ções da força de trabalho também se transnacionalizam,
generalizada das atividades econômicas, englobando pro- atravessando territórios e fronteiras. Inauguram-se mo-
dução, distribuição, troca e consumo. Funda-se no reco- vimentos migratórios, em novas direções, principalmen-
nhecimento da primazia das liberdades relativas às ativi- te de nações do ex-Terceiro Mundo para as do ex-Primei-
dades econômicas como pré-requisito e fundamento da ro Mundo. O que já ocorria nos tempos da guerra fria, em
organização e funcionamento das mais diversas formas parte alimentando de força de trabalho barata o “milagre
de sociabilidade, compreendendo não só as empresas, europeu”, intensificou-se ainda mais quando se dissolvem
corporações e conglomerados, mas também as mais dife- as fronteiras geopolíticas criadas durante a guerra fria.
rentes instituições sociais. “Neo” liberalismo porque se Ocorre uma espécie de “terceiromundização” do Primei-
impõe e generaliza em escala mundial, alcançando inclu- ro Mundo; ou revela-se neste muito do que se encobria
sive os países nos quais se havia experimentado ou conti- com a “diplomacia total” que alimentava a guerra fria.
nua a se experimentar o regime socialista ou o planeja- Passam a ser numerosos, multidões, os migrantes chegan-
mento econômico centralizado. Sob o neoliberalismo, do em países da Europa Ocidental e nos Estados Unidos,
reforma-se o Estado tanto dos países que se haviam orga- vindos da Ásia, Oceania, África, América Latina e Cari-
nizado em moldes socialistas como os que sempre estive- be, além dos provenientes dos países que faziam parte do
ram organizados em moldes capitalistas. Realizam-se a mundo socialista. Mesclam-se trabalhadores de todas as
desregulamentação das atividades econômicas pelo Esta- qualificações, etnias, culturas, línguas, religiões e outras
do, a privatização das empresas produtivas estatais, a pri- características, como se a fábrica global se tivesse trans-
vatização das organizações e instituições governamentais formado em um vasto e intrincado caleidoscópio ou nova
relativas à habitação, aos transportes, à educação, à saú- Babel.
de e à previdência. O poder estatal é liberado de todo e Está em curso a reprodução ampliada do capital, em
qualquer empreendimento econômico ou social que pos- escala global. Simultaneamente, desenvolvem-se a con-
sa interessar ao capital privado nacional e transnacional. centração do capital, no sentido da crescente reinversão
Trata-se de criar o “Estado mínimo”, que apenas estabe- do excedente, lucro ou mais-valia, e a centralização do
lece e fiscaliza as regras do jogo econômico, mas não joga. capital, através de absorção de empreendimentos menos
Tudo isto baseado no suposto de que a gestão pública ou ativos, secundários ou marginais pelos mais ativos, dinâ-
estatal de atividades direta e indiretamente econômicas é micos ou agressivos. Assim é que as forças produtivas e
pouco eficaz, ou simplesmente ineficaz. O que está em as relações de produção atravessam territórios e frontei-
causa é a busca de maior e crescente produtividade, com- ras, globalizando-se. Essa é uma globalização que causa
petitividade e lucratividade, tendo em conta mercados impactos mais ou menos drásticos não só nas “frontei-
nacionais, regionais e mundiais. Daí a impressão de que ras”– isto é, nas regiões ainda pouco impregnadas pelas
o mundo se transforma no território de uma vasta e com- forças produtivas e pelas relações de produção capitalis-
plexa fábrica global e, ao mesmo tempo, em shopping tas, dominantes –, mas também nas nações que haviam
center global e disneylândia global. experimentado regimes socialistas, ou economias central-
Simultaneamente, dá-se a globalização das forças pro- mente planificadas. Mais do que isso, a globalização causa
dutivas e das relações de produção, ainda que de maneira impactos inclusive nas nações tradicionalmente organi-
desigual, contraditória e simultaneamente combinada. Sob zadas em moldes capitalistas, “emergentes” ou “dominan-
as suas diversas formas, o capital atravessa territórios e tes”, centrais ou periféricas, ao norte ou ao sul. Nessas
fronteiras, mares e oceanos, englobando nações, tribos, condições, a globalização do capitalismo implica sempre
nacionalidades, culturas e civilizações. Juntamente com e necessariamente o desenvolvimento desigual, contradi-

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tório e combinado. “Desigual”, devido aos desníveis e às ção Mundial do Comércio (OMC), que dispõem de re-
irregularidades na realização das forças produtivas e das cursos financeiros, técnicos e organizatórios, mobilizan-
relações de produção. “Contraditório”, porque leva con- do ciência e técnica, equipes e aparatos, para diagnosti-
sigo tensões e atritos entre os subsistemas econômicos car, planejar e pôr em prática decisões que influenciam
nacionais e regionais, enquanto províncias do sistema eco- as economias de cada uma e todas as nações, assim como
nômico global. E “combinado”, já que, a despeito das de- da economia mundial. A sua capacidade de estabelecer
sigualdades de todos os tipos e das contradições também critérios e diretrizes, não só econômico-financeiras mas
múltiplas, desenvolve-se em geral alguma forma de aco- também técnico-organizatórias e outras, aos quais devem
modação, associação, subordinação ou integração, nas ajustar-se os governos nacionais, lhes confere a catego-
quais os pólos dominantes ou mais dinâmicos subordi- ria de estruturas mundiais de poder (Banco Mundial, 1996;
nam, orientam ou administram os “emergentes”. Tanzi, 1993; Tommasi, Warde e Haddad, 1996; Melo e
Sob o neoliberalismo predominante na economia glo- Costa, 1994).
bal, “o critério principal é a competitividade; e, deriva- Porém, cabe ressaltar a presença e a importância das
dos dele, os imperativos universais da desregulação, pri- empresas, corporações e conglomerados transnacionais,
vatização e redução da intervenção governamental nos que estão direta e ativamente presentes em todos os ní-
processos econômicos. O neoliberalismo está transforman- veis do sistema econômico, compreendendo a produção,
do os Estados em amortecedores situados entre as forças distribuição e troca, mas sempre induzindo, intensifican-
econômicas externas e a economia nacional; isto é, agên- do e generalizando o consumo. São empreendimentos que
cias destinadas à adaptação das economias nacionais às atuam em todos os níveis e setores, incluindo a eletrônica
exigências da economia global. Assim, o mercado irrom- e a informática, o turismo e o entretenimento, a mídia im-
pe livre de quaisquer barreiras nacionais, submetendo a pressa e a eletrônica. Não se deve esquecer que esses
sociedade global às suas leis” (Cox, 1995:39). empreendimentos são administrados por tecno-estruturas
O neoliberalismo predomina e prevalece em um mun- sofisticadas, capazes de realizar diagnósticos e prognós-
do organizado em moldes cada vez mais sistêmicos. São ticos, planejamentos e projetos. Estão presentes e ativos
várias as articulações sistêmicas que organizam e dina- em extensas partes da sociedade mundial, em geral ma-
mizam as atividades econômicas, políticas e culturais, ou peadas em termos de mercados reais e potenciais,
sociais, que articulam e balizam as coisas, gentes e idéias. É conquistados e a conquistar. Tudo isso influenciando,
óbvio que são muitas, distintas e também contraditórias cooptando ou atropelando Estados nacionais, em suas
as formas de organização social de indivíduos e coletivi- organizações, diretrizes e intenções. Basicamente, a glo-
dades, tribos e nações, empresas e corporações, igrejas e balização significa a globalização do capitalismo pe-
religiões, culturas e civilizações. Esse é um vasto e intrin- las atividades das corporações globais (Korten, 1996;
cado caleidoscópio, sempre em movimento, colorido, Barnet e Cavanagh, 1994).
sonoro, articulado e caótico. Nem por isso, no entanto, Sim, o neoliberalismo diz respeito à transnacionaliza-
deixam de prevalecer e predominar as articulações sistê- ção das forças produtivas e das relações de produção, atra-
micas, também muitas vezes tensionadas entre si ou mes- vessando os territórios e as fronteiras, tanto quanto os
mo embaralhadas. Por dentro e por sobre tudo o que é regimes políticos e as culturas. São “forças produtivas”,
local e nacional, revelam-se articulações de tipo regional tais como o capital, a tecnologia, a força de trabalho, a
e mundial. A despeito dos graus variáveis de organização divisão do trabalho social, o mercado, o planejamento e a
e concretização, é inegável que a União Européia, a Coo- violência, concretizando a transformação de formas de
peração Econômica Ásia-Pacífico, o Tratado de Livre vida e trabalho, compreendendo práticas e imaginários.
Comércio da América do Norte e outras organizações re- São “relações de produção”, tais como a liberdade e a
gionais afirmam-se como estruturas de poder incipientes igualdade de proprietários organizados no contrato, o que
ou já poderosas. Em outros termos, também são estrutu- compreende a empresa, a corporação, o conglomerado, o
ras de poder mais ou menos eficientes a Organização para Estado, o direito, os códigos jurídico-políticos, a conta-
a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico (OCDE), bilidade, a calculabilidade, a produtividade, a competiti-
o Grupo dos 7 (G7), transformado em 1997 em Grupo vidade e a lucratividade. Envolvem instituições e organi-
dos 8 (G8), e a conferência anual de empresários, repre- zações, práticas e ideais, modos de pensar e agir, em geral
sentantes governamentais e outros, que se realiza em racionais, pragmáticos ou instrumentais, de modo a agi-
Davos. Porém, as mais poderosas estruturas de poder são lizar e generalizar as condições de operação dos “fatores
as corporações transnacionais, o Fundo Monetário Inter- da produção”.
nacional (FMI), o Banco Mundial (Banco Internacional Esse é o contexto em que se cria e recria a nação, com-
de Reconstrução e Desenvolvimento, Bird) e a Organiza- preendendo a sociedade e o Estado, o território e a fron-

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teira. Sob vários aspectos, pode-se afirmar que a nação conglomerados que atuam no âmbito da mídia, cultura de
se forma principalmente no contexto do liberalismo e massa e indústria cultural.
transforma-se mais ou menos drasticamente no contexto “As mudanças que abalam o mundo criam inseguran-
do neoliberalismo. No âmbito do neoliberalismo, o Esta- ça. Elas exigem que o povo reavalie e mude de atitudes,
do-Nação entra em crise, é levado a redefinir-se. A dinâ- de modo a administrar as novas mudanças. O povo busca
mica da globalização exige a reestruturação do Estado, a orientação e informação, mas tem também uma forte ne-
privatização das empresas produtivas estatais, da saúde, cessidade de entretenimento e recreação. Para fazer face
educação, transporte, habitação e previdência. Assim se a essas diversas necessidades, uma corporação global da
modifica, ou mesmo rompe, a relação entre o Estado e a mídia tem responsabilidades especiais. A comunicação é
sociedade. Enquanto o Estado é rearticulado mais aberta- um elemento básico de qualquer sociedade. A mídia tor-
mente às exigências e às possibilidades da globalização na essa comunicação possível, ajuda a sociedade a com-
do capitalismo, amplos setores da sociedade civil dina- preender as idéias políticas e culturais, e contribui para
mizam-se no sentido do nacionalismo, compreendendo o formar a opinião pública e o consenso democrático. Hoje,
território e a fronteira, a história e a tradição. Os indiví- a sociedade usa a mídia para exercer uma forma de auto-
duos e as coletividades são desafiados a reposicionarem- controle. Com estas responsabilidades como pano de fun-
se em face de um Estado cada vez mais divorciado das do, os executivos da mídia devem permanecer conscien-
suas inquietações e ambições. Divorciam-se o Estado e a tes das suas obrigações, respeitando princípios éticos em
sociedade, devido às diversidades e às exclusividades das suas atividades” (Bertelsman, 1994:4).1
suas tendências predominantes. Rompem-se algumas das Na época da globalização, a mídia adquire a figura e
articulações que conformavam o todo, Estado e socieda- as figurações de um “príncipe” eletrônico. Já não se trata
de, ou Estado-Nação. O Estado é reorganizado e dinami- mais de O príncipe de Maquiavel; nem do “moderno prín-
zado de conformidade com as injunções e as possibi- cipe”, ou partido político, do qual falou Gramsci. No fim
lidades da dinâmica dos processos de concentração e do século XX, quando os meios de comunicação em ge-
centralização, compreendendo o desenvolvimento desi- ral adotam as tecnologias eletrônicas e informáticas cres-
gual, contraditório e combinado, operando em escala centemente sofisticadas, intensificam-se e generalizam-
mundial. Ao passo que a maior parte da sociedade nacio- se a importância e o predomínio da mídia na formação e
nal, por seus indivíduos e coletividades, bem como gru- transformação da opinião pública. As notícias sobre os
pos e classes sociais, organiza-se e dinamiza-se na dire- fatos sociais, econômicos, políticos, culturais, religiosos,
ção do nacionalismo. Sendo assim, desloca-se o lugar da demográficos, ecológicos e outros são registradas, sele-
política. Quando se torna difícil falar em soberania, per- cionadas, organizadas, enfatizadas, minimizadas ou es-
de-se de vista um princípio fundamental da atividade, quecidas, ao mesmo tempo em que são difundidas pelos
organização e luta políticas. Os indivíduos e coletivida- quatro cantos do mundo; em geral em inglês e traduzidas
des, compreendendo não só grupos e classes, mas parti- em línguas nativas. Mais do que o partido político, o sin-
dos políticos, sindicatos e movimentos sociais, defrontam- dicato, o movimento social, o parlamento, a igreja e ou-
se com novos obstáculos ou outras dificuldades para tras instituições “classicamente” consideradas formado-
pensar e concretizar qualquer tipo de hegemonia. Acon- ras de opinião pública, é a mídia que ocupa crescentemente
tece que a nação está se transformando ainda mais con- as mentes e os corações de indivíduos e coletividades.
cretamente em província do capitalismo global, em suas Além disso, na mesma medida que a mídia adquire pre-
implicações não só econômicas, mas sociais, políticas e ponderância na formação da opinião pública em geral, o
culturais. Isto significa que o Estado se transforma cres- partido político, o sindicato, o parlamento, a igreja e ou-
centemente em aparelho administrativo das estruturas tras instituições, assim como personalidades ou lideran-
mundiais de poder, divorciando-se crescentemente de ças, passam a disputar um lugar na mídia. Buscam pro-
amplos setores sociais da sociedade nacional (Camilleri duzir notícias, manchetes, comentários, imagens, debates
e Falk, 1992; Ohmae, 1995). ou controvérsias na mídia e para a mídia. Nesse proces-
Esse é um cenário que se torna ainda mais complicado so, ajustam-se às linguagens prevalecentes na mídia, nas
quando se reconhece que a mídia impressa e eletrônica quais podem predominar o texto taquigráfico, a narração
predomina decisivamente nas mentes e nos corações de rápida, a tonalidade momentosa, a palavra mágica, a ima-
todo o mundo. As mentalidades e as correntes de opinião gem imediata e impactante, a figura impressionante, o
pública, bem como as noções e as interpretações sobre colorido, o sonoro, o movimento, a velocidade, o cho-
muito do que ocorre no mundo, em âmbito local, nacio- que, a surpresa do insólito, o brutal da violência; e tudo
nal, regional e mundial, tudo isso está cada vez mais de- isso estetizado. Nos programas de entretenimento, pre-
cisivamente influenciado pelas empresas, corporações e dominam o coloquial, a afetividade, o intimismo, a frus-

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tração, o desencanto, a acomodação, a realização mate- dentes ao individualismo e à escolha racional. Rein-
rial, o consumismo, o narcisismo, a estetização do cotidi- terpretam-se as raízes civilizatórias dos povos, tribos,
ano. São muitos os meios e modos pelos quais a mídia nações e nacionalidades à luz das hipóteses, instituições,
amplia e aprofunda a sua presença e o seu predomínio na práticas, valores e ilusões compreendidos pelo imaginá-
formação e conformação das mentes e corações de indi- rio neoliberal (Birnbaum e Leca, 1986; Elster, 1986).
víduos e coletividades, transformando-se no “príncipe Talvez se possa dizer que o individualismo metodoló-
eletrônico” que desloca radicalmente o lugar da política. gico e a escolha racional sintetizam-se, em boa medida,
Em lugar do parlamento, assembléia, partido, sindicato no “cartão de crédito”, magnético, transnacional, global,
ou movimento social, é principalmente a mídia que se ubíquo. Esse é o signo de individualidade e individualis-
desenvolve; e resolve muito do que é o político, a políti- mo, circulação e liberdade, diálogo e felicidade, em to-
ca, a construção da hegemonia. Nesse sentido é que a mídia das as partes do mundo. Na prática, é o signo por exce-
não só provoca o deslocamento da política para outros lência da cidadania no âmbito da sociedade mundial, isto
lugares como opera decisivamente como “intelectual or- é, do mercado global. O cartão de crédito, magnético,
gânico” dos grupos e classes sociais ou blocos de poder adquiriu maior vigência do que a cédula de identidade e
dominantes em todo o mundo, em âmbito nacional e glo- o passaporte, os quais padecem das limitações da nacio-
bal. Sendo assim, poucos são os espaços que restam aos nalidade, do nacionalismo ou das limitações da provín-
grupos e classes sociais ou setores e coletividades subal- cia. Com ele o indivíduo pode circular pelo mundo, atraves-
ternos, se se trata de organizar, conscientizar, mobilizar, sando territórios e fronteiras, regimes políticos e culturas,
reivindicar e lutar. Reduzem-se ainda mais as possibili- línguas e religiões, como algo volante, desenraizado ou
dades de construção de hegemonias, em níveis locais, desterritorializado. Compra o que quiser e onde quiser,
nacionais, regionais e mundiais, quando se pensa em glo- sempre com a tranqüila confiabilidade de alguém trans-
balização de baixo para cima. parecendo credibilidade. Assim se combinam o cartão e
Esse é o cenário em que prevalecem e florescem as teo- o consumismo, as duas faces mais evidentes do tipo de
rias ou os mitos do “individualismo metodológico” e da cidadania característica do neoliberalismo. Aquele que
“escolha racional”. Supõe-se que o indivíduo é o ator e compra necessariamente elege, escolhe ou pondera as al-
agente por excelência da organização e funcionamento da ternativas possíveis, os ganhos e as perdas, de modo a
sociedade, a começar pela economia ou o mercado. Su- realizar da melhor forma os seus interesses e objetivos
põe-se que o indivíduo tende predominantemente a agir reais ou imaginários, em geral pragmáticos ou prosaicos.
de modo racional, próprio, deliberado, com relação aos Aos poucos, fica evidente que o cartão de crédito e as
seus interesses, à realização dos seus objetivos. E que agirá operações que se podem realizar com ele configuram a
mais ou menos racionalmente, conforme a soma das in- prática do individualismo e da escolha racional, em esca-
formações de que dispõe, tendo naturalmente em conta la local, nacional, regional e mundial.
as escolhas racionais que também poderão estar realizan- Sim, o neoliberalismo articula o mundo em moldes sis-
do os outros indivíduos situados no mesmo contexto, têmicos. A despeito de complexo e contraditório, ou ca-
com base nas informações de que dispõem. São mitos que leidoscópico e caótico, esse mundo é simultaneamente
dizem algo sobre as ações e relações sociais em alguns organizado, integrado, administrado e dinamizado em
contextos sociais, mas principalmente no mercado, no moldes basicamente sistêmicos. Sob certos aspectos, o
processo de compra e venda de mercadorias reais e ima- individualismo e a escolha racional podem ser vistos como
ginárias; e se transferem do mercado para praticamente produtos e condições de toda uma visão sistêmica bas-
todos os outros contextos sociais, vistos ou constituídos tante sofisticada; na qual as condições e as possibilidades
com base no modelo do mercado. Desde que se desen- da atividade de indivíduos e coletividades estão mais ou
volva essa construção – uma espécie de “tipo ideal” –, menos delimitadas. As tecnologias eletrônicas e infor-
logo se passa a preconizar o individualismo por todos os máticas, agilizadas pelas corporações transnacionais e as
cantos do mundo. Nesse sentido é que os japoneses, os organizações multilaterais, intensificam e generalizam a
chineses e os hindus têm sido levados a descobrir ou in- articulação sistêmica do mundo, compreendendo indiví-
ventar os germes de individualismo no confucionismo, duos e coletividades. Esse o contexto em que o cartão de
hinduísmo, budismo, taoísmo e outras correntes do pen- crédito e o consumismo se traduzem em cidadania trans-
samento oriental. Algo semelhante tem ocorrido em po- nacional, o mesmo cosmopolitismo das coisas no merca-
vos da África subsaharica, assim como entre árabes, do. “Em todos os lugares, eletricidade vale como eletrici-
indonésios, sul-americanos e antilhanos. Também os po- dade, dinheiro como dinheiro, homem como homem; com
vos da Europa Central e Rússia estão sendo induzidos ou as exceções que sinalizam um estado patológico, atrasa-
forçados a adotar instituições, práticas e ideais correspon- do e ameaçado” (Luhmann, s.d.:154).2 É assim que o pen-

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