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Desgourmetizando

o veganismo:
discursos políticos nas práticas
comunicacionais e de consumo
do coletivo Vegano Periférico

Antônio Carlos de Souza


São Paulo | 2022
Autorizo a reprodução total ou parcial da minha dissertação Desgourmetizando
o veganismo: discursos políticos nas práticas comunicacionais e de consumo do coletivo
Vegano Periférico, para fins de estudo e pesquisa, desde que seja sempre citada a fonte.
Antônio Carlos de SOUZA

DESGOURMETIZANDO O VEGANISMO:
discursos políticos nas práticas comunicacionais e de consumo
do coletivo Vegano Periférico

Dissertação apresentada ao PPGCOM-ESPM


como requisito parcial para obtenção do título de
Mestre em Comunicação e Práticas de Consumo.

São Paulo, 14 de janeiro de 2022

BANCA EXAMINADORA

____________________________________________________________
Orientador(a) e Presidente da Banca:
Profa. Dra. Tânia Márcia Cezar Hoff (ESPM)

____________________________________________________________
Avaliador(a) Externo(a)
Prof. Dr. Eneus Trindade Barreto Filho (ECA/USP)

____________________________________________________________
Avaliador(a) Interno(a)
Profa. Dra. Gabriela Machado Ramos de Almeida (ESPM)
DEDICATÓRIA

Dedico esse trabalho às mulheres da minha vida. Vilma Célia do Nascimento (mãe),
Alcinda Francisco do Nascimento (avó), Aparecida Denize de Souza (irmã)
e Vera Lúcia do Nascimento (tia — In memoriam).
AGRADECIMENTOS

Aos meus filhos, Pedro e Arthur a quem sou grato a cada dia, pelo amor, apoio e
incentivo a todas as minhas decisões, e pela presença sempre inspiradora.
Aos meus amigos, companheiros nesta caminhada no PPGCOM-ESPM e também os de
fora. São muitas pessoas, e cada um sabe no que contribuiu, mas escolhi nomear os que
estiveram juntos, especialmente ao André e Danielly, amigos de turma, obrigado demais pelo
apoio e por compartilhar as alegrias, as angústias e as trocas de informações, para facilitar nosso
propósito. À minha amiga, Cristina Dias, parceira de criação publicitária e incentivadora ativa
na minha produção acadêmica.
À minha orientadora, Tânia Hoff, que desde da minha preparação para o processo
seletivo, antes de me conhecer, respondeu aos meus e-mails, com dicas valiosas, para eu poder
fazer parte da turma de mestrando de 2020. Tem participação fundamental na minha formação
acadêmica. Muito competente e rigorosa, mas primeiro, pesquisadora admirável, bom caráter,
humilde, compreensível e sempre aberta ao diálogo.
A todos os professores do PPGCOM-ESPM, especialmente os que estiveram comigo
nos semestres de 2020/2021, Eliza Casadei, Mônica Nunes, João Carrascoza, Denise Cogo,
Rose de Mello e Gisela Castro, sempre próximos, generosos e empenhados na formação de
novos pesquisadores. Agradecimentos especiais aos Professores Eneus Trindade e à Professora
Gabriela Machado pela cuidadosa leitura e pelas contribuições no relatório de Qualificação.
Momento em que este trabalho ganhou musculatura. Avaliei e considerei as contribuições
sugeridas, aqui incorporadas.
Agradecimentos aos meu amigos, Pedro Lucente e Duca Rachid meus maiores
incentivadores, e sempre acreditaram no meu trabalho intelectual.
São muitas pessoas para agradecer, porque a caminhada foi longa, mas o fardo foi leve
e suave. A todos, muito obrigado!

“O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de


Pessoal de Nível Superior — Brasil (CAPES) — Código de Financiamento 001”

“This study was financed in part by the Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal


de Nível Superior — Brasil (CAPES) — Financia Code 001”
EPÍGRAFE

indóceis tempos
vírus mentiras crimes
vícios lamentos mártires
difíceis versos
dor in[di]visível luto
me enluto reluto surto
firo as páginas
sangro em palavras

Abel Coelho
SOUZA, ANTÔNIO CARLOS DE. Desgourmetizando o veganismo: discursos políticos nas práticas
comunicacionais e de consumo do coletivo Vegano Periférico. Dissertação (Mestrado em Comunicação
e Práticas de Consumo) — Programa de Pós-Graduação em Comunicação e Práticas de Consumo,
Escola Superior de Propaganda e Marketing (ESPM), São Paulo.

RESUMO

Nessa pesquisa, abordamos os aspectos biopolíticos no Veganismo Interseccional, a partir da


identificação dos discursos políticos nas práticas comunicacionais e de consumo do coletivo
“Vegano Periférico”, considerando especialmente os discursos disciplinares relativas à saúde
no período de janeiro /2018 a janeiro/2021. Nosso objetivo principal problematizar os aspectos
biopolíticos, a partir dos discursos políticos presentes no ativismo e no consumo vegano,
considerando as inter-relações com os discursos disciplinares relativos ao alimento e à saúde,
bem como de sua apropriação pelas lógicas capitalistas no contexto das contemporâneas
culturas do consumo. Para tanto, são objetivos secundários identificar e analisar as produções
de sentido no discurso político vegano, nas práticas comunicacionais do coletivo Vegano
Periférico, com foco na saúde. O coletivo Vegano Periférico é um representante do Veganismo
Interseccional que será delimitado nessa pesquisa por meio do conceito de Interseccionalidade,
tendo em vistas a construção política e social através dos marcadores sociais: raça, gênero e
classe. O corpus selecionado é formado pelo documentário “VEGANO PERIFÉRICO” e por
postagens na mídia social Instagram. Pretendemos responder a seguinte questão problema:
Como se dá a dimensão biopolítica do Veganismo Interseccional, na perspectiva da construção
de cidadania (notadamente os discursos disciplinares no que se refere ao alimento e à saúde),
considerando sua apropriação pelas lógicas capitalistas no contexto das contemporâneas
culturas do consumo? Quanto à fundamentação teórico-metodológica, propomos, como
conduta geral, associar a (ADF) — Análise de Discurso de Linha Francesa a uma visada de
Estudos Decoloniais para o desenvolvimento dos três eixos temáticos desta pesquisa — A)
Comunicação e Consumo, B) Veganismo e Decolonialidade e C) Política e Biopolítica. Para os
pressupostos da ADF, serão mobilizados Orlandi (2020), Maingueneau (2014) e Baccega
(2015), dos estudos Decoloniais, Maldonado-Torres (2019), Grosfoguel (2019) e Dussel (2013)
e da Política e Biopolítica Mouffe (2015), Fisher (2020) e Mbembe (2018). Destacamos alguns
resultados das análises desenvolvidas: no documentário “Vegano Periférico”, o sujeito
periférico é autorrepresentado pelos irmãos Luvizetto como um cidadão detentor de potências;
no Instagram, ele é representado como indivíduos “políticos” capazes de construir com outras
pessoas novos sentidos para o que é ser “periférico”. Diante desses resultados, podemos afirmar
que os discursos políticos do coletivo Vegano Periférico estabelecem sentidos de resistência e
reexistência.

Palavras-chave: Comunicação e Consumo; Política e Biopolítica; Análise do Discurso


Francesa; Estudos Decoloniais; Veganismo Interseccional
ABSTRACT
In this research, we address the biopolitical aspects of Intersectional Veganism, based on the
identification of political discourses in the communication and consumption practices of the
“Vegano Periférico” collective, especially considering the disciplinary discourses related to
health in the period from January/2018 to January/2021. Our main objective is to problematize
the biopolitical aspects, from the political discourses present in activism and vegan
consumption, considering the interrelationships with the disciplinary discourses related to food
and health, as well as their appropriation by capitalist logics in the context of contemporary
cultures of consumption. Therefore, secondary objectives are to identify and analyze the
productions of meaning in vegan political discourse, in the communication practices of the
Vegano Periférico collective, with a focus on health. The collective Vegano Periférico is a
representative of Intersectional Veganism that will be delimited in this research through the
concept of Intersectionality, considering the political and social construction through social
markers: race, gender and class. The selected corpus is formed by the documentary “VEGANO
PERIFÉRICO” and by posts on the social media Instagram. We intend to answer the following
problem question: How does the biopolitical dimension of Intersectional Veganism take place,
from the perspective of the construction of citizenship (notably the disciplinary discourses
regarding food and health), considering its appropriation by capitalist logics in the context of
contemporary cultures of consumption? As for the theoretical-methodological foundation, we
propose, as a general approach, to associate the (ADF) - French Discourse Analysis with a view
of Decolonial Studies for the development of the three thematic axes of this research - A)
Communication and Consumption, B) Veganism and Decoloniality and C) Politics and
Biopolitics. For the assumptions of the ADF, Orlandi (2020), Maingueneau (2014) and Baccega
(2015), from the Decolonial studies, Maldonado-Torres (2019), Grosfoguel (2019) and Dussel
(2013) and from the Politics and Biopolitics Mouffe (2013) will be mobilized. 2015), Fisher
(2020) and Mbembe (2018). We highlight some results of the analyses developed: in the
documentary “Vegano Periférico”, the peripheral subject is self-represented by the Luvizetto
brothers as an empowerment citizen; on Instagram, he is represented as “political” individuals
capable of building with other people new meanings for what it is the “ghetto”. Given these
results, we can say that the political discourses of the Vegano Periférico collective establish
meanings of resistance and re-existence.

Keywords: Communication and Consumption; Politics and Biopolitics; French Discourse


Analysis; Decolonial Studies; Intersectional Veganism
LISTA DE FIGURAS

Imagem 1 — The Game Changers. Fonte: Netflix.....................................................................38


Imagem 2 — Foto da manifestação no Dom Pedro Shopping. Fonte: site vista-se...................49
Imagem 3 — Foto de alguns produtos certificados e selo da SVB. Fonte: SVB.........................50
Imagem 4 — Paola Carosella. Fonte: Veja São Paulo (Vejinha) .............................................52
Imagem 5 — Postagens realizadas por Paola Carosella em sua rede Social (Twitter). Fonte:
redação VEJA São Paulo. Matéria publicada em 26 set. 2019, 17h13, na seção Comida &
Bebida Saúde e atualizado em 14 fev. 2020, 15h57...................................................................52
Imagem 6 — Gráfico desenvolvidos pela SVB. Fonte: SVB.....................................................53
Imagem 7 — Notícias na home da organização. Fonte: Organização Animal Equality.............75
Imagem 8 — Painel adesivado nas paredes no Metrô da linha Amarela. Fonte: SVB................76
Imagem 9 — Frames do público em circulação no Metrô. Fonte: SVB.....................................77
Imagem 10 — Gráfico de Circulação da Linha amarela do Metrô. Fonte: Elemidia.................77
Imagem 11 — Fotogramas, documentário Vegano Periférico...................................................98
Imagem 12 — Fotogramas, documentário Vegano Periférico.................................................100
Imagem 13 — Fotogramas, documentário Vegano Periférico.................................................102
Imagem 14 — Fotogramas, documentário Vegano Periférico.................................................104
Imagem 15 — Maloca Arte e Cultura — Fotogramas, documentário Vegano Periférico........105
Imagem 16 — Depoimentos de agricultores e nutricionista no documentário Vegano
Periférico.................................................................................................................................106
Imagem 17 — Manifestação no Bosque Jequitibá, fotogramas, documentário Vegano
Periférico.................................................................................................................................108
Imagem 18 — Fotogramas, documentárioVegano Periférico..................................................112
Imagem 19 — Kevin Systrom e Mike Krieger, os criadores do Instagram. Fonte:
https://rockcontent.com/br/blog/instagram/............................................................................123

Imagem 20 — Posts do Instagram coletivo Vegano Periférico...............................................129

Imagem 21 — Nuvem de palavras com gírias do Vegano Periférico. Fonte: elaborado pelo
autor........................................................................................................................................134

Imagem 22 — Nuvem de palavras com as palavras mais usadas nos posts do Vegano Periférico.
Fonte: elaborado pelo autor.....................................................................................................134
Imagem 23 — Posts do Instagram Vegano Periférico.............................................................135
Imagem 24 — Posts do Instagram Vegano Periférico............................................................139
Imagem 25 — Posts do Instagram Vegano Periférico............................................................143
Imagem 26 — Campanha publicitária composta de cards para o Instragram divulgado no site
http://pesquisassan.net.br/olheparaafome/..............................................................................157
LISTA DE QUADROS

Quadro 1 — Gráfico de análise das inter-relações dos aspectos biopolíticos e discursivas........92


Quadro 2 — Eixos das ordens de discursos e significados discursivos Fonte: elaborado pelo
autor com base em Acosta (2019), Fairclough (2001) e Foucault (2010).................................125
Quadro 3 — Discursos na categoria político e consumo consciente. Fonte: elaborado pelo autor
.................................................................................................................................................129
Quadro 4 — Discursos na categoria critica social. Fonte: elaborado pelo autor......................135
Quadro 5 — Discursos na categoria interseccionalidade. Fonte: elaborado pelo autor........... 139
Quadro 6 — Discursos na categoria Saúde. Fonte: elaborado pelo autor.............................. 143
Quadro 7 — Pesquisa Vigitel Brasil 2018 População Negra. Fonte: Ministério da Saúde
................................................................................................................................................ 162
LISTA DE ABREVIATURAS

ADC — Análise de Discurso Crítica


ADF — Análise de Discurso Francesa
BM — Banco Mundial
CONAQ — Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais
Quilombolas
CONSEA — Conselho Nacional de Segurança Alimentar
CPI — Comissão Parlamentar de Inquérito
CPMI — Comissão Parlamentar Mista de Inquérito
EMBRAPA — Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária
FMI — Fundo Monetário Internacional
IBOPE — Instituto Brasileiro de Opinião Pública e Estatística
INCRA — Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária
IPHAN — Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional
MMA — Ministério do Meio Ambiente
MP — Medida Provisória
ONGs — Organização Não Governamental
ONU — Organização das Nações Unidas
OMS — Organização Mundial da Saúde
OTAN — Organização do Tratado do Atlântico Norte.
PNUD — Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento
PT — Partido dos Trabalhadores.
REDE PENSSAN — Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar
SISAN — Sistema Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional
SVB — Sociedade Vegetariana Brasileira
TJSE — Tribunal Superior de Justiça Eleitoral
WWF — World Wide Fund for Nature
SUMÁRIO

INTRODUÇÃO.................................................................................................................................... 15
1 — COMUNICAÇÃO, CONSUMO E POLÍTICA NO VEGANISMO INTERSECCIONAL...32
1.1 — INTER-RELAÇÕES: COMUNICAÇÃO, CONSUMO E POLÍTICA............................... 32
1.1.1 - Comunicação e consumo .............................................................................................. 32
1.1.2 - Comunicação e consumo política ..................................................................................43
1.1.3 - Comunicação, consumo e o político ..............................................................................53
1.1.4 - Democracia e os sentidos políticos para liberdade ........................................................63

2 - VEGANISMO INTERSECCIONAL UMA PERSPECTIVA DECOLONIAL..........................69


2.1 - Simplesmente veganismo................................................................................................................69
2.2 - Veganismo e seus cruzos: as vertentes do movimento....................................................................74
2.2.1 - O Veganismo Liberal (V. L.) ..........................................................................................74
2.2.2 - O Veganismo Interseccional (V. I.) ................................................................................78
2.3 - Coletivos e ações juvenis na contramão do individualismo neoliberal...........................................81
2.4 - Coletivo vegano periférico: dois jovens insurgentes na encruzilhada.............................................85

3 - ANÁLISE DOS DISCURSOS POLÍTICOS NO DOCUMENTÁRIO VEGANO


INTERSECCIONAL............................................................................................................................91
3.1 – Procedimentos e análises: observando os discursos políticos nas redes de discursividades do
coletivo Vegano Periférico......................................................................................................................91
3.2 - Documentário Vegano Periférico: acontecimento discursivo, produção de sentido e
interpretação............................................................................................................................................95
3.3 - Sintetizando nossas análises do documentário “Vegano Periférico”........................................117

4 - ANÁLISE DOS DISCURSOS POLÍTICOS NO INSTAGRAM DO COLETIVO VEGANO


PERIFÉRICO.....................................................................................................................................120
4.1 - De janeiro a janeiro: análises de discurso de postagens no Instagram do coletivo Vegano
Periférico...............................................................................................................................................126
4.1.1 - Discursos políticos e consumo consciente: um tributo à vida periférica....................131
4.1.2 - Discursos políticos e crítica social: diversidade, inclusão social e solidariedade
periférica........................................................................................................................131
4.1.3 - Discursos políticos e interseccionalidade: o aquilombamento na periferia.................136
4.1.4 - Discursos políticos e saúde: um diagnóstico desfavorável à periferia.........................140
4.2 - Sintetizando nossas análises do Instagram do coletivo Vegano Periférico........................144
5 – POLÍTICAS E BIOPOLÍTICAS NO VEGANISMO INTERSECCIONAL............................147
5.1 - Entre vírus e jacarés: subcidadania, insegurança alimentar e ausência do estado...........................148
5.2 - Órfãos da terra: políticas, comunicação e consumos nas comunidades periféricas........................153
5.3 - Para descolonizar é preciso ter estômago.......................................................................................157
5.4 - Necropolítica e nutricídio instaurados nas comunidades periféricas.............................................161

6. CONSIDERAÇÕES FINAIS.........................................................................................................168
6.1 - A gente não quer só comida, a gente quer comida, diversidade, inclusão social e cidadania..........168

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS..............................................................................................176

APÊNDICE..........................................................................................................................................180
15

INTRODUÇÃO

Esta pesquisa intitulada Desgourmetizando o veganismo: discursos políticos nas


práticas comunicacionais e de consumo do coletivo Vegano Periférico nasceu a partir de
algumas inquietações, motivações pessoais e da insurgência de um determinado momento
histórico, que coloca em risco a vida humana em nosso planeta. O mundo está sendo assolado
por uma pandemia, a Covid-19. No Brasil, as florestas estão sendo devastadas, pela exploração
ilegal da madeira e pelas queimadas, atingindo toda a biodiversidade do país. As temperaturas
estão sofrendo bruscas variações e num futuro próximo, segundo o mais novo relatório
climático1 da (ONU) — Organização das Nações Unidas, divulgado no dia 26 de outubro 2021
a temperatura do planeta deve se elevar até 2,7 graus até o fim do século, prejudicando todo o
ecossistema, por exemplo, o derretimento das calotas polares e alteração das cadeias
alimentares nos oceanos. As reservas hídricas estão ameaçadas e há o risco de outras epidemias,
principalmente relacionadas à produção e ao consumo de proteína animal, que trataremos no
decorrer da nossa pesquisa.
Quanto às motivações pessoais, o primeiro motivo a destacar é o meu interesse e afetos
pela publicidade, assunto que foi sempre de interesse popular e enraizado na cultura brasileira.
O espaço midiático, sempre seduziu, encantou e emocionou os consumidores. Os comerciais
de televisão, as páginas duplas de revistas, os jingles, os spots de rádios e não muito distantes
os bons e velhos outdoors, que para alguns poluíam a cidade, mas, para os profissionais das
agências de publicidade era um desafio de síntese no texto e na arte da produção da imagem,
para poderem agarrar a atenção do público em trânsito. Imagens que prendiam nosso olhar,
trinta segundos mágicos de entretenimento no rádio ou na televisão. Além do desafio de, em
poucas palavras expressar, definir e registrar um conceito na mente e no coração do consumidor,
o “slogan”.
O segundo motivo, o amor à natureza, pelo direito e liberdade dos animais humanos e
não-humanos e pela “Pachamama”. “Pachamama” é uma palavra de origem quíchua e quer
dizer “Madre Tierra”. Divindade máxima das regiões centrais andinas, representa o sentido da
vida, o nascimento, a maternidade e a proteção da Terra e de seus filhos que nela habitam. Mãe
cuidadora, que não deixa faltar algo aos seus filhos. Considerando esse momento de crise, onde
a população do planeta está sendo assolada por um vírus (coronavírus), Aílton Krenak, líder

1
LIMA, Juliana. Aquecimento global pode chegar a 2,7 graus no século, alerta ONU. Observatorio do Terceiro
Setor, 2021 <www.observatorio3setor.org.br> acesso: Inserir nesta página a Ficha Catalográfica.2022
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indígena, ambientalista, filósofo, poeta e escritor brasileiro da etnia indígena crenaque, em sua
cosmovisão frisa o que a situação ambiental que estamos vivendo pode ser obra de uma mãe
amorosa que decidiu fazer o filho calar a boca pelo menos por um instante. Não porque não
goste dele, mas por querer lhe ensinar alguma coisa. “Filho, silêncio”. A Terra está falando isso
para a humanidade. E ela é tão maravilhosa que não dá uma ordem. Ela simplesmente está
pedindo: “silêncio”. Esse é também o significado do recolhimento.

Fomos, durante muito tempo, embalados com a história de que somos a


humanidade e nos alienamos desse organismo de que somos parte, a Terra,
passando a pensar que ele é uma coisa e nós, outra: a Terra e a humanidade.
Eu não percebo que exista algo que não seja natureza. Tudo é natureza. O
cosmos é natureza. Tudo em que eu consigo pensar é natureza. Nós, a
humanidade, vamos viver em ambientes artificiais produzidos pelas grandes
corporações, que são os donos da grana. Agora esse organismo, o vírus, parece
ter se cansado da gente, parece querer se divorciar da gente como a
humanidade quis se divorciar da natureza. (KRENAK, 2020, pp. 5-6)

Esse momento histórico nos convida a repensarmos os pilares de nossas vidas


estabelecidos pela modernidade. Repensar hábitos, costumes, sistemas de produção, o fetiche
das mercadorias, presente no regime capitalista na contemporânea cultura do consumo. Há
urgência de debater, reverter ou pelo menos mitigar os problemas climáticos, dizimar a
insegurança alimentar, isolar o risco iminente de novas pandemias, a pluralidade
comunicacional diante das novas tecnologias e a cultura contemporânea do consumo inseridos
nas lógicas da globalização.

Nessa pesquisa propomos seguir na perspectiva decolonial e trabalharemos com autores


inseridos no eixo Sul global. Entretanto, autores como Boaventura Souza Santos podem
contribuir com seus estudos. Souza Santos por meio das Epistemologias do Sul, termo cunhado
por ele, abarca os conceitos de pensamento abissal, pensamento pós-abissal, ecologia de
saberes, pragmatismo epistemológico, que juntos permitem uma compreensão integral da
proposta. As Epistemologias do Sul buscam responder aos seguintes questionamentos:

Por que razão, nos dois últimos séculos, dominou uma epistemologia que
eliminou da reflexão epistemológica o contexto cultural e político da produção
e reprodução do conhecimento? Quais foram as consequências de uma tal
descontextualização? São hoje possíveis outras epistemologias? (SANTOS;
MENESES, 2010, p. 7)

Souza Santos (2020) escreveu durante a pandemia o ensaio “A cruel pedagogia


do vírus”, no qual reflete sobre as súbitas mudanças de hábitos impostas em todo o planeta, e
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os problemas imbricados com o sistema capitalista. Por essas argumentações trazemos aqui
outras reflexões elaboradas pelo sociólogo português em outra obra com relação ao nosso
futuro.

Não existirá alternativa para um mundo em que 500 dos indivíduos mais ricos
detêm um rendimento semelhante ao rendimento somado dos 40 países mais
pobres, com uma população de 416 milhões de pessoas, (PNUD, 2005: 30) e
onde a catástrofe ecológica é uma possibilidade cada vez menos remota?
Devemos assumir como um facto inevitável que os problemas causados pelo
capitalismo só poderão ser resolvidos por mais capitalismo, que a economia
da reciprocidade não é uma alternativa credível à economia do egoísmo, e que
a natureza não merece outra racionalidade que não seja a irracionalidade com
que é tratada pelo capitalismo? A perplexidade causada por estas perguntas é
tanto maior quanto se sabe que sem a concepção de uma sociedade alternativa
e sem uma luta politicamente organizada que a possibilite, o presente, por mais
violento e injusto, tende a ser despolitizado — a discussão das questões
políticas dá lugar à discussão do caráter dos políticos — e, como
consequência, deixa de ser uma fonte de mobilização para a revolta, o
inconformismo e a oposição. (SOUZA SANTOS, 2013, p. 529)

Nessa direção, avancemos com o conceito do “Bem Viver” proposto por Alberto
Acosta em seu livro “O Bem Viver”. Uma oportunidade para imaginarmos outros mundos”, no
qual o autor apresenta o conceito e possíveis alternativas para a crise estabelecida no planeta.
Nessa perspectiva, Acosta diz o seguinte:

O Bem Viver questiona o conceito eurocêntrico de bem-estar. É uma proposta


de luta que enfrenta a colonialidade do poder. Sem minimizar a contribuição
indígena, temos de aceitar que as visões andinas e amazônicas não são a única
fonte inspiradora do Bem Viver. Em diversos espaços no mundo — e inclusive
em círculos da cultura ocidental — há muito tempo têm se levantado diversas
vozes que poderiam estar de alguma maneira em sintonia com essa visão,
como os ecologistas, as feministas, os cooperativistas, os marxistas e os
humanistas. (ACOSTA, 2019, p. 28)

Acosta (2019, p. 25-26) esclarece que o “Bem Viver” — enquanto filosofia de vida —
é um projeto libertador e tolerante, sem preconceitos nem dogmas. Um projeto que, ao haver
somado inúmeras histórias de luta, resistência e propostas de mudança, e ao nutrir-se de
experiências existentes em muitas partes do planeta, coloca-se como ponto de partida para
construir democraticamente sociedades democráticas. Nessa direção, apresentamos um diálogo
entre as ideias de Souza Santos e Acosta:

O Bem Viver aposta em um futuro diferente, que não se conquistará com


discursos radicais carentes de propostas. É necessário construir relações de
produção, de intercâmbio e de cooperação que propiciem suficiência — mais
que apenas eficiência — sustentada na solidariedade. A superação das
desigualdades é inescapável. A descolonização e a despatriarcalização são
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tarefas fundamentais, tanto quanto a superação do racismo, profundamente


enraizado em nossas sociedades. As questões territoriais requerem urgente
atenção. (ACOSTA, 2019, p. 24)

E assim como Souza Santos, Acosta também nos deixa mais uma questão a ser
refletida.

Será possível que, a partir da atual crise do capitalismo — chegue-se a uma


nova organização civilizatória que permita reconstruir outros tipos de Estados
e renovados espaços locais e regionais, para, então, construir
democraticamente espaços globais democráticos, enfim, outros mapas
territoriais e conceituais? Tentar resolver este enigma não será fácil. Para
começar, devemos nos reencontrar com “a dimensão utópica”, tal como
propunha o ensaísta peruano Alberto Flores Galindo, o que implica fortalecer
os valores básicos da democracia: liberdade, igualdade e solidariedade,
incorporando conceitos da vida em comunidade. (ACOSTA, 2019, pp. 32-33)

A partir do exposto, observamos a intensificação da crise global do meio-ambiente,


relatórios divulgados pela (WWF – Brasil) World Wide Fund for Nature, apresentam dados
alarmantes que apontam para o risco de extinção do ser humano. O aquecimento global
provocado pela emissão de gases como CO₂ e metano.
A pandemia prejudicou a economia de milhares de famílias, cidadãos que residem nas
periferias do Brasil sendolançados à mais profunda miséria de todos os tempos. Dificuldades
de acesso ao trabalho, retorno ao mapa da fome, agravando o problema de insegurança
alimentar no país. Pessoas excluídas da condição de cidadão, sem participar verdadeiramente
do Estado democrático. Por outro lado, sob os efeitos do coronavírus, do capitalismo e das
políticas neoliberais, os 20 indivíduos mais ricos do mundo acumularam 1,77 trilhão de dólares
no final 2020, 24% a mais que no ano anterior. Entre os bilionários o primeiro brasileiro a
figurar na lista é Jorge Paulo Lemann segundo o matéria do jornal EL País2.
Assim, elegemos como tema para esta pesquisa os aspectos biopolíticos do
Veganismo Interseccional, notadamente os discursos políticos presentes nas práticas
comunicacionais e de consumo do coletivo “Vegano Periférico” nas suas inter-relações com
os discursos disciplinares, com a saúde no período de janeiro /2018 a janeiro/2021. O escopo
desse projeto de pesquisa são os discursos e práticas comunicacionais do Veganismo, em
especial aquele denominado Interseccional, um movimento social e político de resistência que

2
PÉREZ, Gorka R.; ARANDA, José Luis. Pandemia faz as maiores fortunas do planeta dispararem. El País.
<https://brasil.elpais.com/economia/2021-01-01/pandemia-faz-as-maiores-fortunas-palneta-dispararem.html>
Acesso: 09/01/2022
19

surge da necessidade de trazer, ao debate, novas práticas de consumo, novas maneiras de se


alimentar e cuidar da saúde, elementos que interferem e contribuem para mitigar os problemas
globais.
Segundo o ativista vegano Robson F. de Souza, o Veganismo Interseccional seria uma
espécie de versão amadurecida do veganismo “abolicionista” que

reconhece os inquebráveis elos entre o modo de vida vegano, a luta pelos


direitos dos animais não humanos e as lutas pela libertação dos seres humanos,
em especial das minorias políticas (mulheres, pessoas negras, pessoas pobres,
LGBTQIA+, pessoas com deficiência e neurodiversas, imigrantes e pessoas
refugiadas, minorias religiosas e irreligiosas, etc.).

O veganismo apresenta duas vertentes, o Veganismo Interseccional e o Veganismo


Liberal ou — Veganismo Estratégico —, mas todas com origem no Veganismo Abolicionista
que, segundo definição da “Vegan Society”, primeira instituição vegana criada por Donald
Watson em 1944 no Reino Unido. Ainda segundo a “Vegan Society”, o veganismo é filosofia
e modo de vida que procura excluir — na medida do possível e do praticável — todas as formas
de exploração e crueldade de animais para alimentação, vestuário ou qualquer outro propósito;
e por extensão, promove o desenvolvimento e uso de alternativas livres de animais para o
benefício de seres humanos, animais e do meio ambiente.
Vanessa Negrini (2019) defendeu a primeira tese de doutorado em comunicação
abordando o veganismo, veganismo criou a seguinte definição, “movimento de concepção
filosófica e práxis social em busca de libertar os animais de qualquer espécie de todas as formas
de opressão, preconceito, exploração e crueldade”. O veganismo pode ser interpretado como
uma dieta alimentar e também como um movimento que atende a várias causas: o bem-estar
animal, a ética, a filosofia de vida, a preservação do meio ambiente, a alimentação saudável, a
espiritualidade, um novo estilo de vida entre outras questões. A partir deste entendimento,
evidencia-se o posicionamento ético e engajado do veganismo com relação ao abolicionismo
animal não humano.
Acima, apresentamos uma breve descrição das vertentes interseccional e liberal do
veganismo, mas para que não escapem outras definições e variantes do movimento que circulam
nos espaços midiáticos apresentaremos uma descrição completa de cada vertente e uma breve
história do movimento vegano no capítulo dois dessa dissertação.
Nosso objeto de pesquisa delimita-se ao Veganismo Interseccional e nosso corpus é
constituído de materiais do coletivo “Vegano Periférico”, que defende um veganismo inclusivo
20

das comunidades periféricas e contra a exploração animal. O coletivo está situado na periferia
da cidade de Campinas e representa a vertente conceitual “Veganismo Interseccional”.
Surgiu da iniciativa e da necessidade financeira de dois irmãos, os gêmeos Eduardo e
Leonardo e Luvizetto, moradores do Parque Itajaí, periferia de Campinas, interior de São Paulo,
que propõem uma desconstrução do senso comum estabelecido sobre o veganismo como um
movimento de pessoas ricas e a ideia de que só é possível consumir produtos industrializados e
de grandes marcas.
Segundo números aferidos no Instagram, dia 26 de novembro de 2020, o perfil coletivo
Vegano Periférico atingiu a marca de 344 mil seguidores e a comunidade cresce mais a cada
semana. Os irmãos publicaram o seguinte na descrição do perfil: “Acreditamos em uma causa
acessível para todos. Não importa onde você mora, importa como você pensa. Temos uma
enorme vontade de contribuir para um veganismo realmente popular, revolucionário que
dialogue com todas as classes e as diversas causas”.
O veganismo tem se tornado um excelente nicho de mercado e atrai o interesse de
grandes marcas. Conforme consulta feita ao site da (SVB) — Sociedade Vegetariana Brasileira
em 2011, o IBOPE fez sua primeira pesquisa para entender quantos brasileiros se declaram
vegetarianos, e o resultado mostrou que 9% da população, cerca de 17,5 milhões. Já em 2012,
o IBOPE repetiu a pesquisa, e os resultados apresentaram uma queda: 8% da população, cerca
de 15,2 milhões de brasileiros, se declara vegetariana.
No ano de 2018, o IBOPE repetiu a mesma pesquisa e os resultados foram bem
diferentes. Atualmente 14% da população é vegetariana, cerca de 29,2 milhões de pessoas.
Além disso, o IBOPE trouxe dados importantes para o mercado:
• 55% dos entrevistados disseram que poderiam consumir mais produtos veganos se
houvesse uma melhor sinalização nas embalagens.
• 61% daria preferência para alimentos veganos se esses produtos tivessem preços
semelhantes aos produtos de animais.
O debate sobre o tema é de grande relevância política e em “O que é Política?” Arendt
(2002) responde que “a política se baseia na pluralidade dos homens. A política trata da
convivência entre diferentes. Os homens se organizam politicamente para certas coisas em
comum, essenciais num caos absoluto, ou a partir do caos absoluto das diferenças”.
Para Aristóteles na antiguidade a política é a ciência que tem por objetivo a felicidade
humana e divide-se em ética (que se preocupa com a felicidade individual do homem na pólis)
e na política propriamente dita (que se preocupa com a felicidade coletiva da pólis). O objetivo
21

de Aristóteles com sua Política é justamente investigar as formas de governo e as instituições


capazes de assegurar uma vida feliz ao cidadão. Enrique Dussel define que:

Um sistema político é um sistema institucional, isto é, um todo estruturado


por partes que cumprem ofícios ou profissões, responsabilidades
compartilhadas em várias formas de produção, alguns são pastores, outros
fazendeiros, ourives, militares, padres, mercadores, governantes, etc. A
função é o ofício ligado organicamente aos demais e forma entre eles um todo
orgânico funcional. Esta funcionalidade nasce há séculos, é experimentada
desde o nascimento do sistema e aos poucos, se possível, atinge a sua era
clássica. Seu declínio, precisamente, ocorre quando o todo funcional não
responde mais às novas demandas de uma nova era histórica. (DUSSEL, 2013,
p. 90)

Assim, o veganismo é tema que se insere no debate político e social, está presente nos
espaços midiáticos (notícias e publicidade), redes sociais e nas rodas de conversas, de modo
que se torna objeto da comunicação e do consumo. Além do coletivo Vegano Periférico,
localizamos outros coletivos como o Xepa Ativismo, Vegano Pobre, Coletivo Vegano Popular
entre muitos outros que exercem uma política de resistência através do alimento e do “ato de
comer”.
Peter Singer (2010) em sua obra “Libertação Animal” demonstra como “destacados
pensadores ocidentais, em diferentes períodos, formularam e defenderam atitudes especistas
incorporadas em nossa cultura. Singer aponta que nos últimos dois ou três séculos, estes hábitos
espalharam-se a partir da Europa, estabelecendo o modo de pensar das sociedades humanas
modernas, capitalistas e comunistas. E que as raízes destas atitudes especistas são provenientes
de duas tradições: o judaísmo e a antiguidade grega. Essas raízes confluem para o cristianismo
e é por meio dele que prevaleceram na Europa”.
Retomando a política Aristotélica, na Grécia antiga havia tendências conflitantes. O
pensamento grego não era uniforme. Pitágoras, era vegetariano e estimulava seus seguidores a
tratar os animais com respeito, porque acreditava que a alma dos mortos migrava para os
animais, mas Aristóteles, discípulo de Platão, representava a Escola filosófica mais importante
e apoiava a escravidão. Aristóteles pensava que alguns homens são escravos por natureza, por
isso, a escravidão era correta e vantajosa para eles. Singer (2010) menciona “esse relato não é
para desacreditar Aristóteles, mas, porque é fundamental para compreendermos sua atitude para
com os animais”. Na concepção de Aristóteles,

As plantas existem em benefício dos animais, as bestas brutas em benefício


do homem – os animais domésticos para seu uso e alimentação, os selvagens
(ou, de qualquer maneira, a maioria deles) para servir de alimento e outras
necessidades da vida, tais como roupas e vários instrumentos. Como a
22

natureza nada faz sem propósito ou em vão, é indubitavelmente verdade que


ela fez todos os animais em benefício do homem. (apud Politics, p.16)

Desta forma, o veganismo estabelece um confronto político, ético e moral aos preceitos
filosóficos aristotélicos, pois é um modo de vida que procura excluir — na medida do possível
e do praticável — as formas de exploração e crueldade de animais para alimentação, vestuário
ou qualquer outro propósito; e por extensão, promove o desenvolvimento e uso de alternativas
livres de animais para o benefício de seres humanos, animais e do meio ambiente.
Para o coletivo Vegano Periférico, conforme foi abordado anteriormente, comer é,
antes de tudo, um ato político, pois traz para o debate o sistema de sociedade vigente e propõe
um modelo alternativo de resistência e combate ao especismo animal.
Em 15 de setembro de 2006, foi sancionada a Lei 11.346, pelo então Presidente da
República, Luiz Inácio Lula da Silva e pelo ex-ministro Patrus Ananias, que estabelece a criação
do (SISAN) — Sistema Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional com vistas em
assegurar o direito humano à alimentação adequada e dá outras providências. Em seu artigo 1.º,
esta lei estabelece as definições, princípios, diretrizes, objetivos e composição do SISAN, por
meio do qual o poder público, com a participação da sociedade civil organizada, formulará e
implementará políticas, planos, programas e ações com vistas em assegurar o direito humano à
alimentação adequada. Integrado ao SISAN, foi criado o (CONSEA) — Conselho Nacional de
Segurança Alimentar, um órgão de assessoramento imediato à Presidência da República, e que
garantia a participação da sociedade civil, na formulação, monitoramento e avaliação de
políticas públicas de segurança alimentar e nutricional com vistas a promover a realização
progressiva dos Direitos Humanos à alimentação, mas com a eleição do militar reformado Jair
Messias Bolsonaro à Presidente da República, em 28 de outubro de 2018, há mudanças radicais
nas políticas públicas do país.
Entretanto, em seu governo, passa a circular em seus discursos o termo ideologia para
marcar sua oposição às políticas de esquerda. Em seu governo de direita conservador, têm
adotado políticas neoliberais e com decisões autocráticas. Proporcionando um desmanche das
políticas públicas e inclusivas estabelecidas nos governos anteriores.
Em janeiro de 2019, através da Medida Provisória (MP-870), o Presidente extinguiu o
CONSEA, passando sua atribuição ao Ministério da Cidadania, a pasta ministerial é comandada
pelo atual ministro João Roma, assim, essas são as diretrizes políticas vigentes que fragilizam,
e acarretam perdas sociais as comunidades periféricas, representante da FAO no Brasil — a
Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura, Rafael Zavala destaca que
23

o CONSEA teve papel essencial nas políticas de combate à fome promovidas pelo Brasil nos
últimos 15 anos e poderia auxiliar também no enfrentamento da obesidade.
Segundo Zavala, hoje menos de 5% da população brasileira sofre de insegurança
alimentar, mas mais de 18% são ou estão obesos. Essas declarações são de 25 de abril de 2019,
em audiência pública na Comissão de Direitos Humanos e Minorias da Câmara dos Deputados.
Essas decisões políticas interferem profundamente nas políticas públicas de alimentação e
impactam as políticas públicas de saúde das populações periféricas do país conforme
abordaremos em nossa pesquisa.
O capitalismo promove a exploração animal, considera a natureza algo disponível, um
recurso que o homem pode dispor. A crise ambiental, as mudanças climáticas, o consumismo,
a produção em larga escala, são alguns dos aspectos implicados no debate da causa vegana.
Fisher (2020) traz as seguintes ponderações com as quais concordamos,

a catástrofe ambiental ainda figura no capitalismo tardio apenas como um tipo


de simulacro e suas reais implicações são traumáticas demais para serem
assimiladas pelo sistema político-econômico viável, o capitalismo, está, na
verdade, destinado a destruir as condições ecológicas das quais dependem o
ser humano. A relação entre capitalismo e o desastre ecológico não é acidental,
e nem uma coincidência: “a necessidade constante de um mercado em
expansão” por parte do capital, seu “fetiche pelo crescimento” mostra que o
capitalismo, por sua própria natureza, se opões a qualquer noção de
sustentabilidade. (FISHER, 2020, p. 19)

O Veganismo Interseccional constrói um espaço específico de atitude de resistência e


reivindicação política de ordem socioeconômica. Combate a desvalorização de certos grupos
marginalizados na sociedade (mulheres negras, LGBTQIA+, por exemplo) e expõe outras
formas de imperialismo e patriarcados perpetuados por discursos disciplinares na alimentação
e na saúde. Nesta perspectiva, nossa pesquisa enseja um debate biopolítico, na medida que as
questões presentes nas discussões sobre o veganismo periférico são questões políticas que
incidem sobre a vida, não apenas a qualidade de vida, mas a vida de grupos populacionais
periféricos, sua saúde, qualidade alimentar e modo de produção dos alimentos no contexto do
capitalismo.
Desta forma, o Veganismo Interseccional busca tensionar e contribuir para haver
avanços nas políticas públicas e mitigar problemas sociais, endêmicos no Brasil. A
desigualdade social, sistema de saúde precário, problemas de desertos alimentares – locais onde
o acesso a alimentos in natura ou minimamente processados é escasso –, ou impossível,
obrigando as pessoas a se locomover para outras regiões para obter esses itens, essenciais a uma
24

alimentação saudável. Estes são alguns dos problemas que atingem de maneira incisiva as
camadas mais pobres e periféricas da sociedade brasileira.
O Veganismo Interseccional e especificamente o coletivo Vegano Periférico se filiam
à ideologia marxista que tem no seu horizonte a exclusão de toda e qualquer alienação com
relação à produção e ao consumo dos bens, fatores que impactam politicamente alimentação e
a saúde.
Segundo Marx e Engels (1998), à medida que os trabalhadores vão se organizando em
associações, sindicatos e em partidos políticos, sua luta contra os capitalistas vai se
fortalecendo; eles vão adquirindo consciência de sua força e, deste modo, vão se formando
como classe antagônica ao capital. Aqui há uma das dimensões daquilo que Gramsci chamou
de processo catártico: “A estrutura da força exterior que esmaga o homem, que o assimila e o
torna passivo, se transforma em meio de liberdade, em instrumento para criar uma nova
iniciativa” (1975).
Nesta introdução, propomos uma visão panorâmica sobre o veganismo. Delimitamos
o objeto de pesquisa dessa dissertação, o Veganismo Interseccional. Apresentamos um cenário
que nos permite problematizar questões biopolíticas – políticas, éticas e morais no que concerne
ao consumo da proteína animal como principal fonte de alimentação e a libertação animal no
que concerne aos modos de produção de carne para abate que implicam procedimentos
cruéisaos animais, como confinamento, medicamentos para crescimento rápido, dentre outros.
Assim, pesquisamos os processos comunicacionais, analisando os aspectos
biopolíticos presentes nos discursos políticos, por meio da linguagem, da historicidade e da
ideologia. A seguir, apresentamos a questão problema, o objetivo geral e os específicos que
nortearão esta pesquisa.

PROBLEMA E OBJETIVOS DA PESQUISA

PROBLEMA

Como se dá a dimensão biopolítica do Veganismo Interseccional, na perspectiva da


construção de cidadania (notadamente os discursos disciplinares no que se refere ao alimento e
à saúde), considerando sua apropriação pelas lógicas capitalistas no contexto das
contemporâneas culturas do consumo?
25

OBJETIVO GERAL

Problematizar os aspectos biopolíticos, a partir dos discursos políticos nas suas inter-
relações com os discursos disciplinares presentes no ativismo e no consumo vegano,
considerando os discursos disciplinares relativos à saúde, bem como de sua apropriação pelas
lógicas capitalistas no contexto das contemporâneas culturas do consumo.

OBJETIVOS ESPECÍFICOS

• Identificar as inter-relações dos discursos políticos presentes nas práticas


comunicacionais do coletivo “Vegano Periférico” com os discursos disciplinares;
• discutir o consumo vegano diante das lógicas capitalistas de mercado e o consumo de
mercadoria animais (não humanos);
• analisar os “discursos disciplinares” manifestos no discurso político vegano, com foco
na comida e na saúde.
• refletir sobre a interseccionalidade como construção política/social através dos
marcadores sociais, raça, gênero, classe, com foco nos aspectos biopolíticos.

PROCEDIMENTOS TEÓRICO-METODOLÓGICOS

Nosso objetivo geral é problematizar os aspectos biopolíticos presentes no ativismo e


no consumo vegano, a partir dos discursos políticos. Discutiremos o consumo vegano diante
das lógicas capitalistas de mercado e apontaremos em que medida há uma “discursividade
negociada” que está relacionada às apropriações das lógicas capitalistas de mercado.
Pretendemos identificar e analisar as produções de sentido no discurso político vegano, e as
inter-relações com a saúde.
Nesta perspectiva, como conduta geral, propomos utilizar o aporte teórico-
metodológico da ADF, com uma visada nos Estudos Decoloniais, nos três principais eixos de
estudos desta pesquisa – A) Comunicação e Consumo, B) Veganismo e Decolonialidade e C)
Política e Biopolítica. Segundo definição da Eni P. Orlandi, “a Análise de discurso visa
compreender como os objetos simbólicos produzem sentidos, assim os próprios gestos de
interpretação que ela considera como atos no domínio simbólico, pois ele intervém no real do
26

sentido” (2020, p. 24). Assim, identificamos os discursos políticos presentes nas práticas
comunicacionais do coletivo Vegano Periférico, que atua em conformidade ao Veganismo
Interseccional, inter-relacionando três conceitos da Análise de Discurso de Linha Francesa
(ADF), sujeito, discurso e ideologia, para problematizar os aspectos biopolíticos implicados na
produção de sentidos na comunicação do referido Coletivo. Para tanto, nossa análise busca a
identificação do (1) interdiscurso (memória discursiva); (2) do lugar de fala e dos
silenciamentos, para se refletir sobre a produção dos sujeitos e seus assujeitamentos no
contexto do capitalismo neoliberal. Detalhamos a seguir os procedimentos da análise dos dois
corpora desta pesquisa: um documentário e postagens nas mídias sociais, como o Instagram e
Facebook.
Os pressupostos da ADF, serão embasados pelos trabalhos de Eni P. Orlandi,
Dominique Maingueneau e Maria Aparecida Baccega; e os dos estudos Decoloniais, por
Maldonado-Torres, Grosfoguel e Enrique Dussel. Assim, investigaremos as práticas
comunicacionais do coletivo, os debates sobre o sistema vigente e o combate ao especismo
animal.
No eixo Comunicação e Consumo, é de suma importância ressaltar a necessidade de
trabalharmos com outras bibliografias que combinadas à análise de discurso nos apoiarão a
reunir subsídios teóricos, para adensar a análise dos aspectos biopolíticos presentes nos
discursos políticos. Autores basilares deste eixo serão mobilizados ao longo do trabalho como
Jürgen Habermas, Stuart Hall, Muniz Sodré, Maria Aparecida Baccega, Jesús Martin-Barbero,
Mary Douglas, Baron Isherwood, Zygmunt Bauman e Isleide Fontenelle.
No eixo Veganismo e Decolonialidade, investigaremos as inter-relações veganismo
interseccional, saúde e estudos decoloniais. Estes estudos apontam para uma desobediência
epistêmica, insurgência sobre os conhecimentos hegemônicos e um resgate dos saberes
silenciados, inquerindo a branquitude como lugar de privilégio. Leva-nos a questionar, a
necessidade da decolonialidade, e olhar para outras pedagogias (exúlicas das casas de
candomblé, por exemplo), subvertendo as práticas hegemônicas de se alimentar e de cuidar da
saúde dos sujeitos. Autores fundamentais dos estudos decoloniais serão mobilizados para
tensionar a empiria na construção de conhecimento do objeto, entre eles Maldonado-Torres,
Grosfoguel e Dussel.
Nosso enfoque de análise consiste na reflexão sobre os processos de desconstrução
colonial dos patriarcados e especismo, efeitos emocionais, afetivos e psicológicos produzidos
sobre os corpos dos sujeitos periféricos. Concomitantemente, a partir dos processos de
desconstrução colonial, olharemos para as diretrizes políticas públicas estabelecidas pela FAO
27

e os efeitos ocasionados por leis como a Medida Provisória (MP-870), por exemplo, que
oprimem, invisibilizam, silenciam e excluem o sujeito, lançando-o a condição de subcidadania.
No eixo Políticas e Biopolíticas, refletiremos sobre as políticas de governos neoliberais
e conservadores através de ferramentas conceituais de biopoder, mecanismos de produção de
subjetividades (selfs) e disciplinas de opressão. Conforme citamos anteriormente, estudaremos
os aspectos políticos sensíveis ao alimento e à saúde, mobilizando autores como Chantal
Mouffe (2015), Mark Fisher (2019) e Achille Mbembe (2018). Assim, embasados em estudos
desenvolvidos pela (FAO) — Organização das Nações unidas, pela (Rede PENSSAN) – Rede
Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar, analisamos os sistemas que
atendem aos interesses particulares de grupos hegemônicos — elite e classe média — sendo
privilegiados por políticas que permitem a liberação de agrotóxicos, abandonam a produção de
hortas comunitárias, suspendem incentivos à produção de produtos orgânicos, estabelecendo
desertos alimentares e perpetuando um sistema nutricional hegemônico, opressor e colonizado,
causando efeitos devastadores sobre a saúde da comunidade preta e periférica.

SELEÇÃO/FORMAÇÃO DO CORPUS

O corpus a ser analisado na pesquisa é composto por material de comunicação do


Coletivo “Vegano Periférico”, que defende um veganismo acessível para todos, para todas as
comunidades periféricas e contra a exploração animal.
Selecionamos o coletivo Vegano Periférico após a observação minuciosa de diversos
coletivos – por exemplo, Xepa Ativismo, Movimento Afro Vegano, Vegano Pobre –, e para
esta pesquisa identificamos características importantes que nos levaram a optar por estudar o
coletivo Vegano Periférico; dentre elas, destacamos:

1. Críticas contundentes ao Veganismo Liberal “estratégico”, sendo hegemonicamente


representado por pessoas brancas, com poder aquisitivo “pessoas ricas”, reforçado por
celebridades, artistas e esportistas;
2. Críticas à publicidade, notícias veiculadas com relação ao veganismo, sendo sempre
focada em produtos caros e industrializados. Ausência de imagens de pessoas negras, nas
campanhas e em sites de busca;
28

3. Críticas aos meios de produção, aos frigoríficos que não são transparentes ao produzir
suas mercadorias. Não demonstram a violência contra os animais não humanos, nem as
condições e o não cumprimento das leis trabalhistas vigentes para com os animais humanos;
4. Críticas ao setor agropecuário e as políticas públicas, em detrimento das hortas
comunitárias e ao cultivo de produtos orgânicos.
5. Trabalham com o conceito de interseccionalidade, trazendo para o debate as questões
das comunidades periféricas (pobres), LGBTQIA+, o Afro Veganismo Feminino dando voz aos
que teoricamente não tem voz no movimento. Defendem o mesmo que os veganos
(abolicionistas) tradicionais, a exclusão da exploração animal, mas defendem pelo viés político;
A estratégia de comunicação do coletivo Vegano Periférico é realizada por meios
digitais e contempla uma variedade de canais de interação com o seu público, sendo as mídias
sociais o principal canal e também o site institucional. No site, estão ancorados um
documentário, uma loja virtual (e-commerce) e uma plataforma de captação de recursos
(crowdfunding) para que o coletivo se viabilize comercialmente.
O corpus selecionado é formado pelos seguintes materiais:
• 1 documentário (audiovisual);
• 64 postagens do Instagram/Facebook que foram selecionadas de uma amostragem
com 476 publicações. O recorte temporal do corpus está balizado entre janeiro de 2018 a janeiro
de 2021.
Os materiais referentes ao corpus estão divididos em duas partes: o documentário
“Vegano Periférico”; e as postagens do Instagram do coletivo.
No documentário Vegano Periférico, é possível observar:
a) Os pilares conceituais do coletivo;
b) as dimensões sociais e políticas do movimento vegano;
c) aspectos discursivos – uso da linguagem,a historicidade e ideologia.
Nessa primeira etapa, buscaremos ter o contato com o texto para observar a
discursividade e empreender um primeiro lance de análise de natureza linguístico enunciativa
– para considerar o esquecimento “desfazendo assim a ilusão de que aquilo que foi dito só
poderia sê-lo daquela maneira”. Desnaturalizar a relação “palavra coisa” (ORLANDI, 2020, p.
76).
Assim, empreendemos a análise, relacionando as formações discursivas, identificadas
na interpretação de sentidos observado na sinonímia e com a formação ideológica que regem
essas nas relações. Dessa maneira, atingir “a constituição dos processos discursivos
responsáveis pelos efeitos de sentidos” (ORLANDI, 2020, p. 76), produzidos nesse material
29

simbólico. Paralelamente observaremos os efeitos metafóricos permitindo a relação entre


discurso e língua, objetivando na análise a leitura da articulação entre estrutura e acontecimento.
As redes sociais observadas são o Instagram e Facebook que apresentam os seguintes
dados estatísticos: Instagram – vegano-periférico - Página criada em 8 de outubro de 2017, 476
publicações, 356 mil seguidores e 0 Seguindo. Facebook – vegano periférico –
@VeganoPeriferico - Causa, Página criada em 11 de novembro de 2017. Origem: Conjunto
Habitacional Parque Itajaí I - Campinas – SP.
Tendo em vista que o conteúdo encontrado em ambas as redes são similares e
replicados entre elas, para a análise, trabalhamos apenas com o Instagram, notadamente porque
encontramos diversos elementos discursivos, imagens, vídeos, textos, emojis, etc.
Quanto ao documentário, desenvolvemos uma análise focada nos discursos políticos e
disciplinares da alimentação observando que o “ato de comer” é um ato político. DaMatta
(2011) diferencia alimentação de comida,

Alimento é tudo aquilo que pode ser ingerido para manter uma pessoa viva;
comida é tudo que se come com prazer, de acordo com as regras mais sagradas
de comunhão e comensalidade. Em outras palavras, o alimento é como uma
grande moldura; mas a comida é o quadro, aquilo que foi valorizado e
escolhido dentre os alimentos; aquilo que deve ser visto e saboreado com os
olhos e depois com a boca, o nariz, a boa companhia e, finalmente, a barriga...
O alimento é algo universal e geral. Algo que diz respeito a todos os seres
humanos: amigos ou inimigos, gente de perto ou de longe, da rua ou de casa,
do céu ou da terra. Mas a comida é algo que define um domínio e põe as coisas
em foco. Assim, a comida é correspondente ao famoso e antigo “de-comer”,
expressão equivalente a refeição, como de resto é a palavra comida. Por outro
lado, comida se refere a algo costumeiro e sadio, alguma coisa que ajuda a
estabelecer uma identidade, definindo, por isso mesmo, um grupo, classe ou
pessoa. (DAMATTA, 2011, pp. 46-47)

De modo que a comida estaria para a dimensão cultural da alimentação permitindo um


olhar dos estudos de Biopolítica sobre a alimentação. Seguindo com os mesmos procedimentos
e metodologia da primeira parte, olharemos para os elementos discursivos citados,
estabelecendo a inter-relação com a saúde, os discursos disciplinares e aos efeitos hedônicos do
consumo da comida. Já no que se refere ao Instagram, analisaremos as postagens do período
estipulado, com vistas nos Estudos Decolonial, identificando o interdiscurso (memória
discursiva), silenciamentos discursivos, a produção de sentidos, tensionados pela historicidade
e ideologia.

JUSTIFICATIVAS
30

O debate sobre o movimento vegano é de grande relevância política e está presente


nos espaços midiáticos (notícias e publicidade), redes sociais e nas rodas de conversas. Na
perspectiva da construção da cidadania e considerando apontamentos relativos à apropriação
pelas lógicas capitalistas no contexto das contemporâneas culturas do consumo. O veganismo
tornou-se um excelente nicho de mercado e atrai o interesse de grandes marcas. Produzindo
enunciados, novas formas de consumo e novas categorias de consumidor. Estas asserções
contribuem com os estudos aplicados ao consumo político e consciente. A perspectiva política
envolve outros assuntos que circulam na esfera pública, sendo de grande relevância para a
preservação e manutenção da humanidade. A preservação do meio ambiente, as mudanças
climáticas, o risco iminente de pandemias motivados pelo consumo de proteína animal.
Situando esses debates no Brasil, os problemas ganham outros contornos e outras proporções.
A desigualdade social, o racismo institucional, problemas endêmicos que necessitam e
demandam diálogo, debates em toda a sociedade A originalidade desse trabalho está em abordar
o objeto de pesquisa pelo viés político e decolonial. Em seu escopo tensiona a origem dos
problemas políticos/sociais do país. A pesquisa sobre o veganismo é muito presente nas
disciplinas das ciências sociais, mas na comunicação e nos estudos de consumo, ainda é
incipiente com pouquíssima produção de dissertações e teses nos repositórios acadêmicos. Na
pesquisa da pesquisa, consultamos o Catálogo de Teses e Dissertações do CAPES e o
Repositório da ESPM e a última atualização dessa pesquisa foi no dia 26 de junho de 2021,
localizamos 8 teses de doutorado, 29 dissertações de mestrado e 5 de mestrado profissional,
totalizando 34 trabalhos. Refinamos a busca, definindo parâmetros específicos considerando
como “Grande Área de Conhecimento” — Ciências Sociais Aplicada e “Área de
Conhecimento” Comunicação o resultado encontrado foram: 1 tese de doutorado e 3
dissertações de mestrado com aportes teóricos/metodológicos diferentes da proposta de nossa
pesquisa. No repositório ESPM, encontramos outros trabalhos que abordam o veganismo,
porém não como objeto da pesquisa, e sim como tema paralelo aos objetos pesquisados. Um
exemplo é a pesquisa da Denise de Paiva Costa Tangerino, cujo tema era CONTESTAÇÃO,
COMUNICAÇÃO E CONSUMO: a cena straight edge brasileira onde o movimento vegano
estava imbricado.
Ampliando a perspectiva colaborativa, essa pesquisa finalizada poderá ser utilizada
como uma fonte de pesquisa para desenvolvimento de produtos de literacias na comunicação,
consumo político e consciente, no controle de pandemias e em questões referentes à
alimentação, ao meio-ambiente envolvendo questões referentes ao desmatamento, mudanças
climáticas e uso de recursos hídricos.
31

No capítulo um abordaremos as inter-relações entre comunicação e consumo e o


conceito de consumo consciente. Apresentaremos apontamentos conceituais e estudos sobre
democracia, capitalismo, cidadania e neoliberalismo. Estabeleceremos distinções entre política
e o “político” que nos auxiliaram no percurso da nossa pesquisa.
O objeto de nossa pesquisa é o Veganismo interseccional, no capítulo dois
apresentaremos a história do veganismo e suas perspectivas na contemporaneidade.
Apresentaremos suas vertentes, suas ideologias contextualizados na historicidade.
Abordaremos a forma dos jovens se manifestarem e participarem da vida política na sociedade,
por meio das redes sociais, fundando coletivos que atuam independentemente ou se associam a
outros movimentos sociais. Apresentaremos o coletivo Vegano Periférico, representante do
Veganismo Interseccional, o qual, estabelecemos como nosso corpus de análise.
Nos capítulos três e quatro, delimitamos nossos procedimentos teóricos-metodológicos
e protocolos de análises. Trabalharemos com nosso corpus, analisaremos o documentário
Vegano Periférico e o Instagram do coletivo. Após a apresentação do corpus e análises,
apresentamos uma síntese dos resultados e os discursos encontrados, a saber, discursos
políticos, disciplinares, além dos interdiscursos (memória discursiva) e os silenciamentos
segundo conceitos trabalhados por Orlandi.
No capítulo cinco avançamos apoiados nos resultados encontrados na análise dos dois
corpora, debateremos e exploraremos os conceitos de biopolítica e a partir de autores que
efetuam leitura da obra foucaultiana, exploraremos conceitos relacionados ao biopoder, sempre
voltados para linguagem e discursividade. Conceitos desenvolvidos por Mbembe
(necropolítica) e Afrika (nutricídio) que estão na perspectiva das biopolíticas.
Por fim, no capítulo seis, nas considerações finais retomaremos o percurso e os
resultados alcançados com nossa pesquisa. Demonstramos as contribuições, limitações e
sugerimos possíveis desdobramentos sobre o tema ou outros relacionados ao objeto da nossa
pesquisa.
32

1 - COMUNICAÇÃO, CONSUMO E POLÍTICA NO VEGANISMO


INTERSECCIONAL

Nesse capítulo abordaremos os estudos da comunicação, consumo e suas inter-


relações. O consumo “consciente” e “político” de maneira distinta. Contextualizaremos eventos
histórico e sociopolítico brasileiro e debateremos sobre o capitalismo e o neoliberalismo. E
como as políticas de governo, dentro desse contexto neoliberal, produzem na sociedade sujeitos
apartados da cidadania, comprometendo os fundamentos da democracia de liberdade e
solidariedade.
Para tanto, identificamos os discursos políticos do “Veganismo Interseccional” que
estão sendo produzidos na sociedade em espaços midiáticos e na publicidade. Com um olhar
crítico sobre a comunicação e no uso da linguagem.
Observaremos a produção de sentido, por meio dos textos e imagens produzidas, por
sujeitos da modernidade, assujeitados pelo capitalismo neoliberal pelas lentes
teóricas/metodológicas da ADF. Os autores mobilizados serão SOUZA (2008), BACCEGA
(2015), ORLANDI (2020), HOFF (2017) e BRAGA (2011) entre outros da comunicação e
consumo, dos Estudos Culturais, da ADF e dos Estudos Decoloniais.

1.1 CONCEITOS TEÓRICOS: POLÍTICA, COMUNICAÇÃO E CONSUMO

1.1.1 Comunicação e Consumo


Os produtos do campo comunicacional emergem da produção do movimento da vida
em sociedade. No contexto do consumo, a comunicação pode ser observada em nosso cotidiano.
Para Braga,

o fenômeno comunicacional se realiza em episódios de interação entre pessoas


e/ou grupos, presencialmente e/ou midiatizada. Essa é uma premissa
relacionada à decisão de desenvolver conhecimentos comunicacionais não a
partir de uma ontologia do fenômeno — como busca de sua essência
conceitual — e sim da observação de características esquadrinhadas na prática
cotidiana do processo, assim como por heurísticas investigativas promissoras
sobre o empírico. Assumindo não haver comunicação sem interação, podemos
estipular que as interações sociais correspondem ao lugar em que podemos
tentar nos aproximar do fenômeno comunicacional em sua ocorrência. As
interações envolvem uma grande variedade de circunstâncias, processos,
participantes, objetivos e encaminhamentos. De certo modo, cada episódio
pode ser considerado singular, na sua existência histórica. (BRAGA, 2017, p.
17)
33

Para Baccega (2015, p. 11), “o conhecimento da realidade não se dá sem o diálogo


com a intrincada rede de intercâmbio de significados entre comunicação e o consumo,
interdependentes, sustentáculos da contemporaneidade”. Nessa direção, Baccega também
destacará a importância de compreender as práticas sociais e culturais dos sujeitos para poder
pesquisar e refletir sobre comunicação.

Fica difícil pesquisar e refletir sobre comunicação, chegar a conhecer o


processo de constituição/ desconstituição e reconstituição da hegemonia
presente nos valores sociais, sem o conhecimento das práticas sociais e
culturais do sujeito, lugar de nascimento dos sentidos sociais. (BACCEGA,
2015, p. 11)

Nesse sentido, o objeto dessa pesquisa o Veganismo Interseccional, notadamente o


corpus observado do coletivo Vegano Periférico, permite que analisemos a comunicação e o
consumo na práxis. O coletivo através das suas práticas comunicacionais nos permite inúmeras
oportunidades de observação. A pluralidade se estende às redes sociais, por meio de postagens
e interações com o público externo. O documentário, como produto cultural midiático,
midiatizado, consumido pela rede social YouTube visibiliza protestos produzidos em favor da
libertação dos animais nos espaços públicos, praças, shoppings e parques da cidade. Nas
interações comunicacionais entre grupos do movimento vegano, é possível perceber processos
sociais que caracterizam distintamente um fenômeno comunicacional, Braga ele destaca o que
há de relevante no processo.

Como me parece claro, hoje, que o objeto da Comunicação não pode ser
apreendido enquanto “coisas” nem “temas”, mas sim como um certo tipo de
processos epistemicamente caracterizados por uma perspectiva
comunicacional – nosso esforço é o de perceber processos sociais, em geral,
pela ótica que neles busca a distinção do fenômeno. Que se busque capturar
tais processos e suas características nas mídias, na atualidade, nos signos, em
episódios interacionais – não faz tanta diferença. O relevante é que nossas
conjeturas sejam postas a teste por sua capacidade para desvelar e explicitar
os processos que, de um modo ou de outro, resultem em distinção
crescentemente clara sobre o que se pretenda caracterizar como “fenômeno
comunicacional” relacionado aos temas e questões de nossa preferência.
(BRAGA, 201, p. 62-77)

Contemplando os produtos midiáticos produzidos pelo Coletivo Periférico, podemos


identificar os discursos presentes no Veganismo Interseccional dada a relação linguagem/
cultura/ pensamento/ ideologia/ conhecimento (BACCEGA, 2015, p. 8), que nos permite o
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conhecimento dos discursos disseminados na sociedade do consumo e a compreender na


totalidade os processos comunicacionais do coletivo.
“O discurso é lugar de encontro entre o linguístico e as condições sócio-históricas
constitutivas das significações e a Análise do Discurso se constrói nesse encontro”
(BACCEGA, 2015, p. 10). “Tanto a ADF quanto os estudos de comunicação e consumo
permitem vislumbrar o funcionamento do discurso acionado pela dinâmica midiática e/ou pelas
lógicas do capitalismo contemporâneo” (HOFF, 2017, p. 113).
Assim, chegamos a uma das proposições da ADF, trabalhar com a linguagem
constituinte da comunicação como produção de sentido no mundo. Interpelados pela história,
linguagem e a ideologia, os indivíduos são constituídos em sujeitos. Sujeitos que por meio da
política são subjetivados sendo enquadrados em formações sociais, por exemplo, ricos/ pobres,
elite/ralé, brancos/negros. Nessas relações constituem-se relações de poder, originando
“posições sujeitos”, importantes para determinarmos a produção de sentidos. No que lhe
concerne, a ADF trabalha com a simbolização do político. Importante para as práticas
simbólicas complexas, porque o político se constitui em cada um de nós. A ADF nos auxilia a
significar os discursos. Quando dizemos algo, enquanto significamos, somos significados pelo
que dizemos. O aporte teórico-metodológico da ADF irá se colocar no entremeio da
comunicação e do consumo, nos auxiliando a desvendar essa intricada rede de significados que
envolvem a comunicação e o consumo.
Sodré (2015) nos auxilia com uma proposição de contextualização do campo
comunicacional dizendo:

é esse ‘certo ponto’ que nos parece sobrevir agora ao campo


comunicacional, no qual os signos, os discursos, os instrumentos e os
dispositivos técnicos são os pressupostos do processo de formação de uma
forma nova de socializar, de um novo ecossistema existencial em que a
comunicação equivale a um modo geral de organização. Instalada como
um mundo de sistemas interligados de produção, circulação e consumo, a
nova ordem sociotécnica fixa-se no ponto histórico do aqui e agora, não
como índice de um novo modo de produção econômico, mas como a
continuidade, com dominância financeira e tecnológica, da
mercantilização iniciada pelo capitalismo no início da Modernidade
ocidental. (SODRÉ, 2015, p. 58-59)

Retomando a política Aristotélica, na Grécia antiga havia tendências conflitantes. O


pensamento grego não era uniforme. Pitágoras, era vegetariano e estimulava seus seguidores a
tratar os animais com respeito, porque acreditava que a alma dos mortos migrava para os
animais, mas Aristóteles, discípulo de Platão, representava a Escola filosófica mais importante
e apoiava a escravidão. Aristóteles pensava que alguns homens são escravos por natureza, por
35

isso, a escravidão era correta e vantajosa para eles. Peter Singer (2010) menciona esse relato
não para desacreditar Aristóteles, mas, porque é fundamental para compreendermos sua atitude
para com os animais. Na concepção de Aristóteles,

as plantas existem em benefício dos animais, as bestas brutas em benefício do


homem – os animais domésticos para seu uso e alimentação, os selvagens (ou,
de qualquer maneira, a maioria deles) para servir de alimento e outras
necessidades da vida, tais como roupas e vários instrumentos. Como a
natureza nada faz sem propósito ou em vão, é indubitavelmente verdade que
ela fez todos os animais em benefício do homem. (apud Politics, p.16)

Desta forma, o veganismo estabelece um confronto político, ético e moral aos preceitos
filosóficos aristotélicos, pois é um modo de vida que procura excluir — na medida do possível
e do praticável — todas as formas de exploração e crueldade de animais para alimentação,
vestuário ou qualquer outro propósito; e por extensão, promove o desenvolvimento e uso de
alternativas livres de animais para o benefício de seres humanos, animais e do meio ambiente.
Em outra perspectiva de interpretação temos a ativista e feminista Carol Adams. Em sua
análise defende a teoria de que o consumo da carne está diretamente relacionado com a
sexualidade. Sua teoria defende a ideia de que o consumo da carne tem uma relação estreita
com o consumo da pornografia e que neste consumo estabelecemos o que ela chama “política
sexual” da carne. Carol Adams diz que

essas questões estão “na nossa cara” o tempo todo. Não as percebemos como
problemática porque estamos muito acostumados a ter a nossa cultura
dominadora refletindo essas atitudes. Somos moldados pela estrutura do
referente ausente e nos tornamos participantes dela. A política sexual da carne
também atua em outro nível: a superstição permanente de que a carne fortalece
e de que os homens precisam de carne. Do mesmo modo como nos últimos
dez anos ocorreu uma proliferação das imagens em que mulheres e animais
são referentes ausentes, houve um ressurgimento da “mania da carne bovina”,
com a carne associada à masculinidade. (ADAMS, 2018)

Da mesma forma que os homens consomem a imagem das mulheres na forma de


bundas, bocas, pernas, peitos. Essa lógica seria estendida ao consumo da carne, as pessoas
comem picanhas, baby-beefs, chuleta, costelas, maminhas… Adams (2018) defende que
desconstruímos as imagens da mulher e do animal, num processo violento estabelecido por
meio da linguagem.
Para explicar esse fenômeno de consumo, Carol Adams cunhou o conceito de
“referente-ausente”. Através de um processo de alienação haveria uma ruptura. Os indivíduos,
no momento do consumo, não estabeleceriam uma ligação entre a parte com o todo. As partes
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do corpo de uma mulher não representam a mulher, bem como os produtos expostos nas vitrines
dos açougues ou em embalagens cuidadosamente elaboradas em cortes diferenciados não
representam os corpos de animais.

Lendo Bearing the Word [Promover a palavra], de Margaret Homans, descobri


nas primeiras páginas o conceito de referente ausente. Parei de ler e fiquei
segurando o livro no meu colo enquanto pensava nessa ideia. Os animais
comidos como carne eram exatamente isto: o referente ausente! No dia
seguinte percebi que o referente ausente era o que possibilitava o
entrelaçamento da opressão das mulheres e dos animais. Por trás de toda
refeição com carne há uma ausência: a morte do animal cujo lugar é ocupado
pela carne. O “referente ausente” é o que separa o carnívoro do animal e o
animal do produto final. A função do referente ausente é manter a nossa
“carne” separada de qualquer ideia de que ela ou ele já foi um animal, manter
longe da refeição o “múuu” ou o “báaa”, evitar que algo seja visto como tendo
sido um ser. Uma vez que a existência da carne é desligada da existência de
um animal que foi morto para se tornar “carne”, esta fica desancorada do seu
referente original (o animal), tornando-se, em vez disso, uma imagem que não
está ligada a nada, imagem esta usada frequentemente para refletir o status
feminino, assim como o dos animais. Os animais são o referente ausente no
ato de comer carne; torna-se também o referente ausente nas imagens de
mulheres subjugadas, fragmentadas ou consumíveis. (ADAMS, 2018)

Estes corpos passaram por diversos processos na produção, que não são visibilizados
no momento do ato de comer. Desde do seu confinamento até finalizar com suas vidas através
de um processo de abate. Estes animais são submetidos a um processo violento e desumano.
Em alguns casos são amenizados, como se fosse o suficiente para ignorar uma lei
específica de regulamentação do tratamento destes corpos. Seguindo essa linha de raciocínio é
possível abrir-se uma discussão a partir do contexto europeu. Na Europa, já é possível
identificar políticas e leis que se preocupam com as técnicas de criação e abate sendo aplicadas
no tratamento dos animais que serão sacrificados para o consumo. Na França, a lei contempla
diretrizes e boas práticas, que preservem e considerem o abate de animais sencientes. Animais
que manifestam algum tipo de reação psicológica ou fisiológica com relação à dor. Por
exemplo, as galinhas precisam ter um espaço mínimo de locomoção no confinamento, para
evitar estresses e sejam pisoteadas umas pelas outras.
Uma terceira forma de pensar o consumo da carne, além do pensamento de Aristóteles
e Adams, estaria associada às construções de identidades envolvidas no consumo. Para Stuart
Hall, a identidade é realmente algo formado, ao longo do tempo, por meio de processos
inconscientes, e não algo inato, existente na consciência no momento do nascimento. Existe
sempre algo ‘imaginário' ou fantasiado sobre sua unidade. Ela permanece sempre incompleta,
esta sempre em “processo, sempre sendo formada” (2006, p. 38).
37

A identidade não pode ser vista como uma constante imutável, já dada, mas
como algo que se transforma e pode assumir múltiplos sentidos. A
alimentação, quando constituída como uma cozinha organizada, torna-se um
símbolo de uma identidade, atribuída e reivindicada, por meio da qual os
homens podem se orientar e se distinguir. Mais do que hábitos e
comportamentos alimentares, as cozinhas implicam formas de perceber e
expressar um determinado modo ou estilo de vida que se quer particular a um
determinado grupo. (MACIEL, 2005, pp. 65-66)

O consumo de carne é associado a virilidade, uma alimentação para homens, para


“machos”. Essa construção de identidade pode ser analisada em diversas formas de
comportamento. Em um churrasco a função de comprar, temperar e preparar a carne sempre
fica a cargo do homem. O churrasco, sempre é o homem quem prepara o prato principal. O
ritual envolve o corte do animal, o tempero da carne. O acendimento da churrasqueira, as
técnicas para assar, o ponto certo da carne. A tábua de corte, o avental, as facas corretas, e quase
sempre o debate sobre quem tem a melhor técnica ou a mais adequada para cada tipo de corte.
Se fossemos descrever a quantidade de processos e técnicas desenvolvidas, precisaríamos um
espaço para escrever um livro. “Os rituais concedem autoridade e legitimidade quando
estruturam e organizam as posições de certas pessoas, os papéis mais ou menos claros, os
valores morais, éticos e as visões de mundo” (TRINDADE; PEREZ, 2014, p. 159). Os ritos
exprimem o aspecto intangível das relações. Por meio da vivência repetida, a ritualização
oferece segurança e tranquilidade emocional a um grupo. A formalidade e a repetição são
características que definem a experiência do ritual, conhecemos a sequência das ações, suas
etapas e encadeamentos, o que desenvolve um senso de pertencimento à nossa coletividade. A
ordem e a tradição inspiram a perpetuação daqueles valores grupais”. (ROCHA, 2017, p. 7)

Analisando a lógica da comensalidade brasileira, DaMatta (1987) enfatizou


que no ato de comer estão implícitas duas situações: ‘eu como para viver’ e
‘eu vivo para comer’. No primeiro caso é considerada apenas a
instrumentalidade da ingestão de alimentos, ou seja, levam-se em conta os
aspectos universais da alimentação (sustentar o corpo, obter energias e
proteínas). Quando, no entanto, o ato de comer e a própria comida se revestem
de aspectos morais e simbólicos, tem-se a situação ‘do viver para comer’.
(DANIEL E CRAVO, 2005, p. 80).

No entanto, na comensalidade, as produções dos acompanhamentos ficam a cargo das


mulheres, que contribuem com as saladas, arroz, molhos e outras amenidades, como cuidar da
louça e dos utensílios domésticos. Aqui não tem espaço para a cereja do bolo, a estrela é o
“churrasco”! Douglas e Isherwood (2009) afirmam “é evidente que os bens têm outro uso
importante estabelecem e mantêm relações sociais”. É muito comum ouvirmos o seguinte
38

comentário quando as pessoas vão preparar uma refeição e não veem um pedaço de carne: “Não
vai ter nada para comer?” À mesa tem saladas, massas, arroz, feijão, mas se não tem um bife,
não é uma refeição. O consumo de carne atribui status, poder financeiro. É muito comum
classificar a carne por categoria de “segunda”, carne de “primeira”, pois está diretamente
relacionada ao poder aquisitivo e um apontamento para a construção de nobreza relacionando
com as partes que serão consumidas do animal. Segundo Canesqui e Garcia e Canesqui (2005,
p. 17) “O prato serve para nutrir o corpo, mas também sinaliza um pertencimento, servido como
um código de reconhecimento social”. Quanto mais cara a carne, quanto mais sofisticado o
corte, maior o seu o status e maior seu capital social. “O indivíduo usa o consumo para dizer
alguma coisa sobre si mesmo. Sua família, sua localidade, seja na cidade ou no campo, nas
férias ou em casa” (DOUGLAS E ISHERWOOD, 2009). O consumo permite que os indivíduos
construam a sua identidade que surge não tanto da plenitude da identidade que já está dentro de
nós como indivíduos, mas de uma falta de inteireza que é “preenchida” a partir do exterior,
pelas formas através das quais nós imaginamos ser vistos por outros.” (HALL, 2006, p.39)
O ator e ex-governador do Estado da Califórnia dos EUA, Arnold Schuwarzenegger e
o diretor de cinema James Cameron, produziram o documentário “Dieta de Gladiadores” e
abordam a dieta a base de proteína vegetal para atletas de alto desempenho ou para pessoas que
querem perder peso. Schuwarzenegger sempre consumiu muita carne e ovos, mas quando
mudou sua dieta para o veganismo, diziam que a dieta adotada não era dieta de homem.

Imagem 1: The Game Changers


Fonte: Netflix

O documentário apresenta discursos científicos citando 54 pesquisas e realizam


também dois experimentos para provar a eficácia da dieta. Porém, a produção sofreu diversas
críticas, descobriu-se que James Cameron é dono da Verdient Foods, uma empresa que produz
proteína vegetal, fragilizando as críticas feitas ao consumo de proteína animal. Outras
contradições também contribuíram nesse sentido, conforme matéria publicada o site de notícias
Metrópoles. Este portal de notícias é o maior da região centro-oeste e um dos cinco maiores
grupos de comunicação digital do país conforme os relatórios divulgados pela ComScore.
Averiguou-se por cinco casos selecionados, que os estudos científicos citados não foram
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concluídos, outros estavam incompletos, contendo apenas partes da pesquisa. Os testes que
envolviam pessoas, a amostragem era muito pequena, não podendo obter resultados expressivos
para serem analisados.
Ainda na linha de estereótipos construídos a partir da sexualidade que envolve o
consumo da carne, os irmãos Leonardo e Eduardo debatem no documentário do coletivo o
preconceito sofrido por parte dos amigos que na visão deles são alienados, “os moleques não
têm consciência do discurso que produzem, o consumo de carne envolve muito machismo”. No
início dos comentários, encontra-se a seguinte fala:

se eu não como carne, eu sou gay. Aí entra duas coisas, tanto a homofobia,
porque vê a homofobia como um problema, quanto machista. Os caras têm
que desapegar desse bagulho. Não é o que você põe no seu prato que define o
que você é, entendeu? Isso é um ponto que a gente tem que bater. Eu vejo que
bloqueia muito. Uma vez um moleque falou: Nem vou trocar ideia com você
porque você é vegano. Vai comer uma picanha, depois a gente troca uma ideia.
Eu falei: Na moral você tá viajando. O que tem a ver comer carne com ser
homem? Dá onde vem isso? Você vê que é inconsciente. E de como é
importante bater nessa tecla. O cara se acha menos homem ou mais homem
por consumir arroz integral. Olha o grau da ignorância que a gente vive. Cara,
eu acho o seguinte, os moleques olham pra quem tem qualquer coisa fora desse
padrão, que é um condicionamento do cara, ele tem que ser barbudo, comer
carne, tem que ser machão, tem que dominar a mulher. Aí eles olham um
vegano, um vegetariano, Ah, o cara não come carne, o cara é o que? Viadinho?
Mulherzinha? Tá ligado? Isso não existe. Tá tudo na cabeça do maluco. A
gente não está falando de feminismo, porque a gente não é mulher para falar
de feminismo, a gente tá falando de machismo, que é o que nós somos, que
nós praticamos. Como homem, nós olhamos o mundo dessa forma, então a
gente pode falar. Não tô falando “o fulano olha desse jeito! Não! Eu enxerguei
desse jeito. Eu treino minha visão para não cair nessa armadilha. Eu treino
minha visão, eu Eduardo, o Leo treina a visão dele pra quando tiver no meio
dessa rapaziada, não sabotar, falar “ é verdade, mano, esse bagulho é de
mulherzinha, num sei o que... Dá uma picanha... Então, assim, a gente treina
nossa visão e a nossa mente como homem, sendo, extremamente machista,
tentando desconstruir isso dentro da gente mesmo. Não tem a ver com
esquerda, direita ou feminismo. Tem a ver com uma coisa séria, que é o
machismo” (VEGANO PERIFÉRICO).

O movimento vegano em sua origem é um movimento que se opõe à cultura do


consumismo. O consumismo moderno tem mais a ver com sentimentos e emoções (na forma
de desejos) do que com razão e calculismo, na medida em que é claramente individualista, em
vez de público, em sua natureza (CAMPBELL, BARBOSA, 2018, p. 52). A “síndrome
consumista” envolve velocidade, excesso e desperdício. (BAUMAN, 2008, pp. 106:107). Onde
Flusser enxerga consumo, nós enxergamos o consumismo que corresponde à ordem das
adições. (ROCHA, 2012, p. 33)
40

Os adeptos do movimento vegano excluem alimentos e produtos de origem animal, que


gerem exploração e sofrimento animal, e atuam no combate de práticas que estimulem ou
promovam a exploração ambiental, entre essas atividades, a agropecuária, que causa impactos
ao meio ambiente. A derrubada de áreas de mata para a geração de pastos, por exemplo, é
responsável pelo despejo de resíduos em mares, rios e lençóis freáticos. O epicentro das
discussões do veganismo é a libertação animal e têm o vegetarianismo como prática alimentar
da população humana, o vegetarianismo serviria como prática/política de resistência. O ato de
comer transformado em “ato político de resistência”.
O consumo é prática sociocultural que envolve a todos nas sociedades capitalistas, de
tal modo que vivemos numa cultura do consumo, em que o consumo faz parte das práticas
sociais, das construções simbólicas e imaginadas. Numa sociedade de intensificação das
práticas de consumo, movimentos como o veganismo funcionam como vetores de crítica ao
modus operandi da sociedade. Canclini (2010), antropólogo argentino, apresenta a seguinte
reflexão sobre o consumo: “O consumo serve para pensar, partimos da hipótese de que, quando
selecionamos os bens e nos apropriamos deles, definimos o que consideramos publicamente
valioso, bem como os modos de nos integrarmos e nos distinguirmos na sociedade, de
combinarmos o pragmático e o aprazível”. (2010, p. 35). Assim, “a atividade de consumo é a
produção conjunta, com os outros consumidores, de universo de valores. O consumo usa os
bens para tornar firme e visível um conjunto particular de julgamentos de processos fluídos de
classificar pessoas e eventos”. (DOUGLAS; ISHERWOOD, 2009)
O movimento vegano é de grande relevância política e na contemporaneidade está
presente nos espaços midiáticos (notícias e publicidade), redes sociais e nas rodas de conversas.
Na perspectiva da construção da cidadania e considerando apontamentos relativos à cooptação
pelas lógicas capitalistas no contexto das contemporâneas culturas do consumo, o veganismo
tornou-se um excelente nicho de mercado e atrai o interesse de grandes marcas.
Segundo pesquisa feita pelo IBOPE Inteligência (abril 2018) e contratada pela SVB, o
mercado está em franco crescimento e a demanda por produtos veganos e vegetarianos, é uma
tendência. Assim, dentre a população brasileira, 14% se declararam vegetarianos; 55%
consumiram mais produtos veganos, quando encontravam indicações na embalagem. A referida
pesquisa revela 75% de crescimento da população vegetariana nas regiões metropolitanas, em
dados comparados com a mesma pesquisa feita pelo IBOPE em 2012. Os produtos baseados
em proteína vegetal chegaram ao mercado em 2019 com grande pujança. Além dos frigoríficos,
processadores de proteína animal ou vegetal, vieram nessa onda, os fast-foods que se destacam
na mídia como templos do consumo dessa categoria de produtos. Visando a atender ao público
41

vegano, esses players de mercado têm direcionado suas estratégias de comunicação também a
outros públicos (não veganos), com outros tipos de desejos, afetos, preocupações e
necessidades, tais como: carnívoros que desejam diminuir o consumo da carne, veganos que
gostam do sabor da carne, ou vegetarianos, que não defendem as mesmas causas associadas ao
ativismo vegano. Nessa dinâmica, a publicidade tem educado e construído a identidade de um
novo grupo de consumidores para esse sendo os “flexitárianos”. Flexitárianos ou
semivegetarianos, na definição do dicionário de inglês Oxford, que incluiu o verbete em 2014,
é aquele que segue dieta vegetariana na maior parte do tempo, mas que, ocasionalmente, come
algum tipo de carne. “O consumo é um processo ativo em que todas as categorias sociais e está
sendo continuamente redefinidas” (DOUGLAS; ISHERWOOD, 2009). Para Barbosa e
Campbell (2006), “a atividade de consumir pode ser considerada um caminho vital e necessário
para o autoconhecimento, enquanto o mercado começa a se tornar indispensável para o processo
de descoberta de quem realmente somos”.

Devemos supor que a função essencial do consumo é a sua capacidade de dar


sentido. Esqueçamos que as mercadorias são boas para comer, vestir e abrigar;
esqueçamos sua utilidade e tentemos em seu lugar a ideia de que as
mercadorias são boas para pensar: tratemo-las como um meio não verbal para
a faculdade humana de criar. (DOUGLAS; ISHERWOOD, 2009)

Tais denominações para o consumo são fruto do atual estágio do capitalismo neoliberal,
de modo que a criação publicitária deles se apropria e os divulga, associando-os a marcas, cujo
está voltado a corrigir ou amenizar os problemas advindos do consumo. Assim, há marcas que
buscam engajamento com aquilo que os consumidores reclamam e outras que buscam apenas
uma oportunidade criativa e de venda. Barbosa e Campbell (2006) avançam na concepção da
construção da identidade de consumidores dizendo que: “é evidente que o que compramos diz
algo sobre quem somos. Não poderia ser de outra forma. Mas o que estou sugerindo é que o
verdadeiro local onde reside a nossa identidade deve ser encontrado em nossas reações aos
produtos e não nos produtos em si”.
Isto pode ser observado pela quantidade de grandes frigoríficos que adotaram a
fabricação destes produtos em suas linhas de produção e têm estabelecido parcerias com as
redes de fast-foods, para a implantação de hambúrgueres plant-based em seus cardápios.
Assim, fornecendo produtos que atendam a uma demanda e estabeleçam novas formas
de consumo, novas categorias de consumidor com discursos de engajamento ao consumo
consciente.
42

[...] o branding das grandes marcas coloca a questão ambiental no core de sua
política corporativa. A questão de fundo, portanto, é a de construir o discurso
e a imagem de um campo mais atento a um consumo mais sustentável, menos
predatório, ou seja, um consumo de produtos, serviços e experiências, de
organizações que estão sensibilizadas a responder a esse novo cenário.
(FONTENELLE, 2017, p.149-150)

Estas asserções contribuem com os estudos aplicados ao consumo político e consciente


que abordaremos no subcapítulo a seguir. A perspectiva política envolve outros assuntos que
circulam na esfera pública, sendo de grande relevância para a preservação e manutenção da
humanidade. A preservação do meio ambiente, as mudanças climáticas, o risco iminente de
pandemias motivados pelo consumo de proteína animal. Situando esses debates no Brasil, os
problemas ganham outros contornos e outras proporções. A desigualdade social, o racismo
institucional, governos autocráticos, problemas endêmicos que demandam diálogo, debates
envolvendo toda a sociedade.

O debate acerca do consumo responsável é amplo e complexo. Condensa


questões que dizem respeito ao meio ambiente, ao mundo social, ao equilíbrio
do corpo humano e da psique. Engloba outras denominações atribuídas ao
consumo, como o verde, ecológico, ambiental, ético, ativista, eficiente-
racional, consciente, saudável, sustentável, entre outros. (FONTENELLE,
2017, p. 141)

Nesta perspectiva, o consumo consciente emerge como uma crítica ao consumo, para
além do consumismo, condição doentia do sujeito na relação com as mercadorias. Consumo
consciente envolve a crítica à sociedade de consumo, no sentido de preservar a natureza e o
meio ambiente, preservar as reservas de água; enfim, uma atitude mais consciente em relação
às práticas de consumo.
Apesar de haver um objetivo central no movimento vegano que é a libertação animal,
não existe um consenso na circulação de discursos. Veganos Interseccionais divergem dos
Veganos Liberais no discurso político criticam as lógicas de mercado, a publicidade, a produção
de produtos caros e industrializados, denunciam a exploração, as condições de sofrimento que
os animais são submetidos nas fazendas industriais e para além da libertação animal, estão
preocupados com a libertação dos humanos. Preocupam-se com as condições de trabalho nos
frigoríficos. Funcionários explorados, com jornadas de trabalhos exaustivas, sem equipamentos
adequados de EPI, sem direitos e vínculos empregatício estabelecidos por lei. Enquanto
Veganos Liberais enxergam nas lógicas de mercado a oportunidade de terem seu consumo
atendido através da industrialização e processamento de produtos veganos.
43

Defendem a produção industrial de produtos à base plantas (plant-based) por empresas


ligadas a produção de proteína animal. Acreditam que a causa vegana estaria avançando e
ganhando visibilidade nos espaços midiáticos. E, que em um futuro próximo, empresas
processadoras de proteína animal podem diminuir a produção beneficiando e aderindo ao
objetivo central da causa: libertação dos animais.

1.1.2 Comunicação e Consumo político

Nesse subcapítulo ampliaremos nossa visão sobre outros discursos que circulam na
sociedade do consumo, são discursos enunciados no consumo político e no ativismo alimentar.
Discursos em circulação relevantes para a preservação e manutenção da humanidade e estão
diretamente ligados ao ato de consumir. No ato de consumir também devemos considerar a
conexão com a cidadania, dessa forma elevando o também o consumo a uma dimensão política.
Se olharmos para a experiência dos movimentos sociais perceberemos que caminhamos para
uma redefinição do que entendemos por cidadania, segundo Canclini (2005, p.36) “não apenas
em relação aos direitos à igualdade mas também em relação aos direitos à diferença” e o
consumo é uma forma de estabelecer essa identidade.

Repensar cidadania como “estratégia política” serve para abranger as práticas


emergente não consagradas pela ordem jurídica, o papel das subjetividades na
renovação da sociedade, e, ao mesmo tempo, para entender o lugar relativo
dessas práticas dentro da ordem democrática e procurar novas formas de
legitimidade estruturadas de maneira duradoura em outro tipo de Estado.
CANCLINI, 2005, p. 36)

No Brasil, a preservação do meio ambiente, as mudanças climáticas, o risco iminente


de pandemias motivados pelo consumo de proteína animal estão associados à desigualdade
social, o “racismo institucional”3, problemas endêmicos demandam soluções. Por isso,
devemos encarar como um desafio analisar e compreender o consumo para além do
consumismo, para isso, exploraremos os estudos realizados pela Fontenelle (2017) que
desenvolveu reflexões em torno do consumo consciente e de Portilho (2020) que vislumbra um

3
“A principal tese dos que afirmam a existência de racismo institucional é que os conflitos raciais também são
parte das instituições. Assim, a desigualdade racial é uma característica da sociedade não apenas por causa da ação
isolada de grupos ou de indivíduos racistas, mas fundamentalmente porque as instituições são hegemonizadas por
determinados grupos raciais que utilizam mecanismos institucionais para impor seus interesses políticos e
econômicos”. (ALMEIDA, 2019, l. 325)
44

enorme campo de pesquisa a ser explorado e ressalta a demanda pela construção de uma
epistemologia em torno desse objeto. As principais pesquisas se concentram no Norte Global,
há poucos estudos realizados no Brasil, segundo pesquisas feitas por Halkier (2019) em
periódicos acadêmicos da área. Portilho (2020) conclui em seu artigo que

analisar como o consumo político alimentar se operacionaliza nas práticas


cotidianas é, portanto, um campo de pesquisa aberto e necessário. Faz-se
necessário, ainda, realizar estudos que analisem o que acontece com o
consumo político alimentar em momentos de predomínio de políticas de
austeridade, de decrescimento econômico e de governos ditatoriais. Outro
ponto importante é examinar as transformações no consumo alimentar e no
uso político do mesmo, em momentos de crise sanitária, como a enfrentada
globalmente desde o fim de 2019 (PORTILHO, 2020, p. 426).

Fontenelle (2017, p. 141) assevera que o debate acerca do consumo responsável é amplo
e complexo. “Condensa questões que dizem respeito ao meio ambiente, ao mundo social, ao
equilíbrio do corpo humano e da psique. E que coloca em questão termos que englobam o
consumo verde, ecológico, ambiental, ético, ativista, eficiente-racional, consciente, saudável,
sustentável, entre outros”.
Estas denominações para o consumo são frutos do atual estágio de capitalismo, de modo
que a criação publicitária deles se apropria e os divulga, associando-os a marcas, cujos discursos
estão voltados a corrigir ou amenizar os problemas advindos do consumo. Assim, há marcas
que buscam engajamento com temas que os consumidores reclamam e outras buscam apenas
uma oportunidade criativa e de venda. Isto pode ser observado pela quantidade de grandes de
frigoríficos que adotaram a fabricação destes produtos em suas linhas de produção e têm
estabelecido parcerias com as redes de fast foods, para a implantação de hambúrgueres plant-
based em seus cardápios.
Para tanto, o consumo consciente, o ativismo alimentar e o consumo político, segundo
Portilho a definição usual relaciona-se “à percepção e uso efetivo do consumo (poder de compra
no mercado) para pressão política para promover mudanças sociais. Embora o consumo político
também possa ter governos como alvo, trata-se, na maior parte das vezes, de uma forma de
engajamento político na esfera do mercado (market-oriented engagements), que se manifesta
na escolha de marcas, produtos, produtores e/ou varejistas baseada em considerações políticas,
éticas e/ou ambientais”.
Portilho (2020) faz algumas reflexões sobre o ativismo alimentar e o consumo político
no contexto brasileiro. Para a autora, a definição usual de consumo político relaciona-se à
percepção e uso efetivo do consumo (poder de compra no mercado) como forma de pressão
45

política para promover mudanças sociais. Embora o consumo político também possa ter
governos como alvo, trata-se, na maior parte das vezes, de uma forma de engajamento político
na esfera do mercado (market-oriented engagements), que se manifesta na escolha de marcas,
produtos, produtores e/ou varejistas baseada em considerações políticas, éticas e/ou ambientais.
Nessa dimensão, a comunicação e consumo demandam outras abordagens e análises específicas
como Portilho (2020) pontua:

já é consenso entre os pesquisadores da área que o consumo político se


manifesta de quatro formas básicas. 1) O boicote, considerado “consumo
político negativo”, é a recusa da compra motivada por preocupações políticas,
éticas e/ou ambientais. 2) O buycott, por sua vez, é uma forma de “consumo
político positivo”, por referir-se a compras efetivas como forma de favorecer
ou premiar marcas, produtos, produtores e/ou varejistas por seus
compromissos políticos, éticos e/ou ambientais. 3) As ações discursivas ou
comunicativas, que envolvem protestos, críticas e manifestações públicas
(incluindo “falar bem” ou “falar mal”) pelas mesmas razões. 4) A última
forma de consumo político são as chamadas políticas de estilos de vida, que
envolvem mudanças mais profundas em práticas cotidianas e tendem a incluir
às três anteriores. Além disso, as ações de consumo político variam das formas
mais confrontacionais às mais cooperativas. Se boicotes e ações discursivas
são considerados mais confrontacionais, os buycotts dependem de estratégias
cooperativas com produtores e com esquemas de regulação e rotulagem,
muitas vezes comandados por governos. As políticas de estilos de vida
conjugariam as duas formas, envolvendo revisões de práticas da vida diária,
que podem se desenvolver em compromissos profundos e mudanças radicais,
como no caso do veganismo. (apud BOSTRÖM; MICHELETTI;
OOSTERVEER, 2019).

Em suas análises, Portilho argumenta que o ativismo alimentar no Brasil pode ser
divido em duas fases. A primeira fase teria como embrião algumas iniciativas por volta dos
anos de 1940, através de reflexões pioneira de Josué de Castro “mostrando que a fome e a
pobreza são uma questão política, e não apenas de saúde pública ou de assistência social”
(PORTILHO, 2020, p. 414). Mas trazendo para um momento mais recente da história e para
ficar na contextualização da nossa pesquisa Portilho ressalta naprimeira fase a campanha
liderada por Betinho, irmão do Henfil que criou e dedicou-se ao projeto “Ação da Cidadania
contra a Fome, a Miséria e pela Vida”.
Essa primeira fase descrita foi fundamental para o avanço nas políticas públicas. Por
meio desse trabalho realizado pelo Betinho, outras frentes foram abertas, outras iniciativas
foram desenvolvidas. Aconteceram outros movimentos seguindo a mesma pauta. Eclodiu
movimentos agrários, e tendo como o divisor de águas como foi citado anteriormente a Lei
11.346, sancionada em 2006, pelo então Presidente da República, Luiz Inácio Lula da Silva e
pelo ex-ministro Patrus Ananias, que estabelece a criação do SISAN com vistas em assegurar
46

o direito humano à alimentação adequada e dá outras providências. “Um dos resultados de tais
lutas, o SISAN, pode ser considerado um exemplo bem-sucedido de politização da
alimentação.” (PORTILHO, 2020, p. 414).
No momento, segundo Portilho, estaríamos vivendo a segunda fase desse ativismo
alimentar e consumo político, entretanto, ressaltamos que devido às políticas adotadas pelo
atual governo, o Brasil regrediu ao estágio embrionário, voltando a figurar novamente no mapa
da fome e da miséria do globo. A segunda fase se caracteriza por diversos atores sociais. Parte
deles se concentra na sociedade civil, representada por associações, movimentos políticos,
sindicatos, (ONGs) — Organização Não Governamental e mais recentemente os coletivos que
estão namoda. Outros se encontram nos governos institucionais, são partidos políticos que têm
em sua proposta de governo trabalhar em função dessas lutas e causas; vereadores, deputados
estaduais e federais que, eleitos pelo povo, trabalham em conjunto com a sociedade civil para
aprovações de leis e projetos que atendam a essa demanda. Para diversos autores, parte desse
movimento se explica pelo trabalho realizado por ambientalistas e outros movimentos que
aconteciam nas décadas de 60 e 70 que geraram esses resultados.
A primeira grande reunião de chefes de estado organizada pela (ONU) — Organização
das Nações Unidas, para tratar das questões relacionadas à degradação do meio ambiente
aconteceu em 1972, na capital da Suécia, Estocolmo foi a Conferência das Nações Unidas sobre
o Meio Ambiente Humano que ficou conhecida como Conferência de Estocolmo. Reconhecida
como um marco nas tentativas de melhorar as relações do homem com o Meio Ambiente
(ambientalismo), e também por inaugurar a busca por equilíbrio entre desenvolvimento
econômico e redução da degradação ambiental que evolui para a noção de desenvolvimento
sustentável.
Os estudos de Fontenelle ressaltam uma virada de chave na compreensão do consumo
consciente, que, ao nosso ver, dialogam com as interpretações da Portilho e serão importantes
para nossas reflexões sobre os discursos que estão em disputa na arena “discursiva vegana”.
Fontenelle ressalta outro evento histórico importante e comenta que: “Esse deslocamento
discursivo da produção para o consumo foi a ECO-92. A Conferência das Nações Unidas sobre
o Meio Ambiente e o Desenvolvimento realizada no Rio de Janeiro, 1992” (FONTENELLE,
2017, p.149). Fontenelle credita esse deslocamento por uma mudança estrutural de produção
dos países desenvolvidos que pelo processo de globalização terceirizaram sua produção para
outros países que eram considerados emergentes ou não desenvolvidos. E destaca que esse
movimento produziu novas questões imbricadas:
47

1. “O fato dos países desenvolvidos terem desindustrializados não significou


que seu consumo deixou de ser suportado pela mesma matriz energética
causadora da crise ambiental e, desse modo, era o consumo que deveria ser
diretamente questionado; 2. Sendo as sociedades ricas, denominadas “de
consumo”, deslocar a crítica para esse contexto também passa a ter um
impacto muito maior do que insistir na critica às formas industriais mais
precárias, que, agora, estavam no terreno “dos pobres”. (FONTENELLE,
2017, p. 145)

Como apontamos, veganos interseccionais e liberais (estratégicos), partem de


propósitos semelhantes, mas com diferentes ideologias, “modo de vida que procura excluir —
na medida do possível e do praticável — todas as formas de exploração e crueldade de animais
para alimentação, vestuário ou qualquer outro propósito; e por extensão, promove o
desenvolvimento e uso de alternativas livres de animais para o benefício de seres humanos,
animais e do meio ambiente”. Porém, produzem discursos diferentes, disputam sentidos e
permite analisarmos relações de poder, divergências e cisão nas disputas discursivas, resultando
em relações de dissenso. Podemos analisar e compreender como os discursos são articulados
em cada uma das fases e os interdiscursos que estão em circulação nesta segunda fase.
Para concluirmos esse capítulo, reflitamos sobre a adoção do vegetarianismo como
forma de protesto, argumento defendido por Singer (2010):

Para tornar o boicote do vegetarianismo mais eficaz, não temos de nos


envergonhar quanto a nossa recusa some comer carne. Numa sociedade
onívora, muitas vezes perguntam aos vegetarianos o porquê de uma dieta tão
estranha. Pode ser irritante, ou até mesmo constrangedor, mas também é uma
oportunidade de informar as pessoas de crueldades das quais elas nem sempre
estão conscientes. Tomei conhecimento da existência de fazendas de pecuária
industrial com um vegetariano que se deu ao trabalho de me explicar porque
não comia carne. Se o boicote é a única maneira de deter a crueldade, então
precisamos estimular o maior número de pessoas a se juntar ao boicote. Só
podemos ser eficazes nisso se dermos o exemplo. (SINGER, 2010, p. 238)

O vegetarianismo praticado como dieta alimentar contribui com a libertação animal e


pode ser considerado uma forma de protesto e ativismo alimentar, pois é um ato político, de
resistência a partir da comida. As articulações do movimento vegano conseguem movimentar
a indústria da carne, criando uma fissura no sistema produtivo da proteína animal, atingindo
resultados concretos com relação à libertação dos animais não humanos e a libertação dos
humanos de trabalhos em condições insalubres nas fazendas industriais e frigoríficos. E,
principalmente, mitigando os problemas de degradação do meio ambiente, bem como reduzindo
as queimadas, o desmatamento das florestas com extração ilegal de madeira, redução da
poluição das águas ocasionado pelo descarte de restos e excrementos de animais, diminuição
48

significativa da exploração dos recursos hídricos, elementos que impactam profundamente as


condições climáticas do planeta.
Portilho, olhando para o cenário dessa segunda fase, ensaia um possível desenho
teórico dos possíveis atores na cena social dividido em quatro grupos além dos apresentados
relacionado à primeira fase.

“(1) os ativistas sociais e ambientais em torno da agroecologia e outras formas


de produção alternativa e sustentável; (2) o consumidor e suas organizações
(defesa dos direitos do consumidor, cooperativas e grupos de compras), (3) os
chefs de cozinha e (4) os movimentos sociais do campo. (PORTILHO, 2020,
p. 417)

De nossa parte, sugerimos acrescentar um quinto grupo, os coletivos. São organizados


por jovens que, por meio das redes sociais, articulam manifestações, debates, lives e juntam a
outros movimentos sociais relacionados a agroecologia, hortas comunitárias e de reforma
agrária.
Para cada um desses atores, Portilho faz uma descrição da atuação e do seus perfis de
cada ator. Aqui pretendemos demonstrar três exemplos que servem para representar esses
indivíduos e suas formas de ativismo alimentar e político de consumo.
Os exemplos que serão apresentados são ações atos políticos realizadas pelo
veganismo abolicionista, neste incluem-se os interseccionais. Apresentamos um relato de um
boicote ao consumo de carne. Nosso segundo exemplo, o enfoque será relacionado ao
veganismo liberal ou “estratégico”, representado pela SVB, caracterizado um protesto
“positivo”, o “Buycott”. E nosso último exemplo será de ativismo alimentar, protagonizado
pela chef de cozinha Paola Carosella, que tem grande projeção midiática e tece críticas
contundentes à produção de hambúrgueres a base planta (plant-based).
Veganos abolicionistas costumam ser atuantes em relação às manifestações em favor
a causa animal, a fazer protestos, irem para situações e zonas de conflitos. Casos emblemáticos,
foram a libertação de cachorros no Canil Céu Azul, na zona rural de Piedade no bairro de
Goiabas. Animais que estavam sendo maltratados e comercializados pelo petshop Petz. Os
animais estavam em condições precárias e com problemas sérios de saúde. Os animais foram
retirados pela polícia ambiental e transferidos para o Instituto da ativista Luísa Mell, conforme
matéria do G1 do dia 20/02/2019 publicada às 12h22.
Outro caso de grande repercussão para o movimento foi o tombamento de uma carreta
que transportava 110 porcos no km 14 do Rodoanel, na praça do pedágio. Os porcos ficaram
feridos, no meio de muito sangue e sujeira, sem água, sem alimentação e num cenário caótico.
49

Sem previsão de remoção da carga viva e precisando liberar o tráfego rodoviário, um grupo de
ativistas do movimento se organizaram e se deslocaram até o local para protestar contra a forma
com que esses animais estavam sendo transportados, mas principalmente para ajudar e prestar
solidariedade aos animais, fornecendo água, comida e garantindo que a remoção dos animais
fosse com humanidade. Quando ocorrem esses acidentes, é comum ocorrer saques às
mercadorias, quando a população costuma atacar na tentativa de furtar as “mercadorias”.

Imagem 2: foto da manifestação no Dom Pedro Shopping.


Fonte: site vista-se

No dia 4/11/20 às 10h41 foi publicado no portal vegano www.vista-se.com.br, a


notícia que no final de semana anterior, houve uma manifestação no maior shopping de
Campinas. Um grupo de veganos se reuniu no “Dom Pedro Shopping” e o manifesto aconteceu
na praça de alimentação. Na praça todos os restaurantes e fast-foods comercializam produtos à
base de proteína animal. A objetivo principal foi conscientizar as pessoas que estavam
almoçando e na sua grande maioria comendo carne, a importância do movimento e a se
sensibilizarem com a causa, temos que ressaltar “o político” envolvido. Os manifestantes
conduziram a manifestação de maneira civilizada, a direção do shopping acatou o movimento,
e o seguranças se portaram de maneira cordial com os manifestantes, não havendo nenhum
tumulto. Inclusive respeitando o direito das pessoas ali presentes de comerem carne. Conforme
relato descrito no site vista-se, portal especializado no veganismo. Uma cena inusitada durante
o protesto, foi a de um adolescente que passou comendo entre os manifestantes uma asinha de
frango frita, comprada no KFC. É muito comum os relatos de adeptos do consumo de carne,
nessas manifestações, reclamem o seu direito de escolha, porque enxergam nos ativistas
veganos pessoas intolerantes. Fontenelle (2017) cita em seu livro que ativistas são vistos como
“eco chatos”.
50

Na linha de engajamento dos veganos liberais descreveremos uma forma de protesto


que leva o nome de “buycott” o termo tem uma sonoridade com a palavra boicote e seria uma
espécie de protesto “positivo”. Os consumidores são convocados a consumirem produtos de
empresas veganas. Uma forma como essas empresas encontraram para destacar seus produtos,
é a inclusão de um selo ou uma informação visível, demonstrando que aquele produto foi
fabricado sem a apropriação da vida de um animal. Seguindo esse princípio, a SVB desenvolveu
um selo e convoca através do site que as empresas que produzem produtos veganos e utilize o
selo desenvolvidos pela sociedade.

Imagem 3: foto de alguns produtos certificados e selo da SVB.


Fonte: SVB

Algumas empresas buscam o “Selo Vegano” da SVB, um programa que analisa e


certifica produtos de qualquer empresa. Nos últimos anos, o número de produtos certificados
aumentou consideravelmente, acompanhando a tendência do mercado. Atualmente, esse selo é
o maior e mais antigo programa de certificação vegana no Brasil. São mais de 2.300 (dois mil
e trezentos) produtos certificados de mais de 140 empresas diferentes.
O fato dos veganos liberais apoiarem empresas que produzem produtos veganos, mas
tem como fonte principal fonte de renda a produção de produtos com proteína animal, é um
contrassenso, mas, esse é somente um dos pontos de divergência entre os discursos no
movimento que procuraremos analisar nos próximos capítulos. E a seguir nosso último
exemplo.
Em 2019, para uma breve contextualização, percebemos uma grande movimentação
no mercado publicitário com o lançamento de hambúrgueres à base de proteína vegetal,
51

conhecidos como (plant-based). Frigoríficos veganos, como “Fazenda do Futuro”, entraram no


mercado apresentando hambúrgueres e outras categorias de produtos como: salsichas, linguiças
entre outros produtos ultra processados. Nessa mesma direção, frigoríficos não veganos,
também incluíram produtos similares em sua linha de produção. Estas empresas usaram como
estratégia lançar seus produtos em parceria com redes de fast-foods e depois chegando aos
mercados do país. A produto visava atender veganos, vegetarianos e carnívoros que buscam
diminuir o consumo de carne, gerando uma nova categoria de consumidor, segundo pesquisas
de mercado reconhecidos e nomeados como “flexitárianos”.
Nesse período, aconteceu um fato que causou polêmica nas redes sociais. A chef de
cozinha Paola Carosella, proprietária do restaurante Arturito, e na ocasião uma das juradas do
Reality gastronômico “Master Chef”, experimentou estes novos produtos e manifestou sua
opinião em sua rede social:

“Experimentei por curiosidade o ‘hambúrguer’ de plantas ‘sabor’ carne. Não


é hambúrguer, não tem gosto de carne e nem textura de carne, o que é óbvio,
pois não é carne. Gorduroso, pastoso, desagradável. Uma bosta ultra
processada oportunista no momento de mais confusão alimentar da história”.
(Paola Carosella)

A postagem gerou muita repercussão e a chef acabou discutindo com diversos


internautas. Como sempre acontece, Carosella recebeu muito apoio, mas houve também muita
discordância e ataques. Consumidores ficaram revoltados por ela criticar a “qualidade” e por
colocar em questão a alternativa proposta pelos fabricantes. Carosella encarou o debate
deixando a seguinte opinião:

“Sugiro o seguinte: se você quer coisas sabor carne, coma carne. Se quer
comer plantas, coma plantas com gosto de plantas. E se quer parar ou diminuir
o consumo de carne, o universo vegetal é gigantes...” (Paola Carosella)
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Imagem 4: Paola Carosella.


Fonte: Veja São Paulo (Vejinha)

Imagem 5: postagens feitas por Paola Carosella em sua rede Social (Twitter).
Fonte: redação VEJA São Paulo. Matéria publicada em 26 set. 2019, 17h13, na seção Comida & Bebida Saúde e
atualizado em 14 fev. 2020, 15h57.

Uma outra iniciativa mundial nessa direção é a Campanha Mundial “Segunda sem
Carne”. Presente em mais de 40 países, como nos Estados Unidos e no Reino Unido, apoiada
por líderes e personalidades internacionais. A SVB, lançou essa campanha no Brasil em outubro
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de 2009, e conta com apoio do poder público e empresas. A “Segunda Sem Carne” brasileira é
considerada a maior do mundo.

Imagem 6: gráfico desenvolvidos pela SVB.


Fonte: SVB

No ano de 2018 foram 67 milhões de refeições comercializadas, aferido nos parceiros


da sociedade. Os resultados gerados em um dia sem consumo de carne podem ser observados
no gráfico acima. As informações e dados coletados foram retirados no site da SVB no link
https://www.svb.org.br/pages/segundasemcarne/

1.1.3 Comunicação, Consumo e Política

O enxadão da obra bateu onze hora


Vam s'embora, joão!
Vam s'embora, joão!
O enxadão da obra bateu onze hora
Vam s'embora, joão!
Vam s'embora, joão!

Que é que você trouxe na marmita, Dito?


Truxe ovo frito, truxe ovo frito
E você Beleza, o que é que você troxe?
Arroz com feijão e um torresmo à milanesa,
Da minha Tereza!

Vamos almoçar
Sentados na calçada
Conversar sobre isso e aquilo
Coisas que nóis não entende nada
Depois, puxá uma páia
Andar um pouco
Pra fazer o quilo
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É dureza joão!
É dureza joão!
É dureza joão!
É dureza joão!

O mestre falou
Que hoje não tem vale não
Ele se esqueceu
Que lá em casa não sou só eu

Compositores: Carlinhos Vergueiro/Adoniran Barbosa

Adoniran Barbosa, compôs em 1980 a música “Torresmo à milanesa” que era uma
belíssima crítica ao abuso sofrido pelos operários, que não recebiam nem ao menos o vale-
refeição. Para além dessa crítica, podemos extrair outros elementos de análise a partir da letra
da canção, a política e o consumo que estavam postos nesta época no Brasil. Podemos
conjecturar que as leis trabalhistas não eram respeitadas. A alimentação dos trabalhadores era
precária, a jornada de trabalho exaustiva e o patrão, representando a figura do burguês, detentor
do capital, demostra o descaso pelo proletariado, esquecendo-se de pagar o “vale”, quantia que
representa uma parte dos proventos que deveriam ser pagos ao fim da jornada semanal.
A proteína que eles consumiam eram torresmos, ovos fritos acompanhado de arroz e
feijão, na marmita, panela de lata que servia de recipiente, para os trabalhadores levarem a
comida ao trabalho. Alimentação de baixo valor nutricional, acompanhada de arroz e
descrevendo um padrão de consumo possível e imposto à classe-baixa e periférica. Fica
evidente como determinados indivíduos e grupos sociais participam da política e da vida em
sociedade.

Essas classes de desclassificados sociais são construídas por motivos


modernos e semelhantes em qualquer lugar. Afinal, é a ausência da
incorporação dos modernos capitais impessoais, tanto o capital econômico
quanto o capital cultural, que reduz os indivíduos dessa classe a corpos que
são vendidos enquanto corpos, a baixo preço, para serviços desvalorizados.
Esses serviços desvalorizados são, tipicamente, divididos em serviços sujos e
pesados para os homens reduzidos à energia muscular, e serviços domésticos
e sexuais para as mulheres também reduzidas a corpos que não incorporaram
conhecimento útil nos mercados competitivos. (SOUZA, 2018, p. 43-44)

Delineando a desigualdade presente no país, ausência de direitos e das condições


mínimas de acesso à cidadania, Jessé Souza aponta um problema que normalmente acontece, o
de percebemos as condições de pobreza e de não reconhecermos a realidade simbólica que a
legítima e a torna permanente e que esse fato explica a permanência no tempo da precariedade
55

material, existencial e política. “Essas duas realidades são inseparáveis. Ao mesmo tempo, elas
são analiticamente diferentes, o que significa que é necessário compreendê-las na sua
interdependência mútua, de modo a esclarecer esse fenômeno complexo” (SOUZA, 2018, p.
42).
A pobreza tem se perpetuado no Brasil, desde o final da escravidão. A história pode
explicar parte dos problemas de como se construiu a pobreza e a desigualdade no país. Os
negros foram abandonados a própria sorte pelos seus donos e pela sociedade. A ausência de
políticas que garantisse habitação, trabalho, saúde lançam esses indivíduos a margem da
sociedade. Assim, num processo precário passar a viver em condições subumana. Essas razões
dificultaram a adaptação as condições estabelecidas de um modo de vida burguês. As marcas
da escravidão deixariam sequelas, constatar esta preocupação implica, indiscutivelmente,
reconhecer a desumanização, não penas como viabilidade ontológica, mas como realidade
histórica. (FREIRE, 1987, p. 29-30). Essas relações com a sociedade burguesa contribuiriam
para a construção das imagens simbólicas desses indivíduos. Para Souza (2018),

a ânsia em libertar-se das condições humilhantes da vida anterior tornava-o,


inclusive, especialmente vulnerável a um tipo de comportamento reativo e
ressentido em relação às demandas da nova ordem. Assim, o liberto tendia a
confundir as obrigações do contrato de trabalho e não distinguia a venda da
força de trabalho da venda dos direitos substantivos à noção de pessoa jurídica
livre. Para o negro, sem a oportunidade de classificação social burguesa ou
proletária, restavam os interstícios e as franjas marginais do sistema como
forma de preservar a dignidade de homem livre: o mergulho na escória
proletária, no ócio dissimulado, ou ainda na vagabundagem sistemática e na
criminalidade fortuita ou permanente. (SOUZA, 2018, p. 193)

O caminho percorrido até aqui nos ajuda a construir e a explicar uma parte do problema
onde a sociedade brasileira está mergulhada. Mas para compreendermos a contemporaneidade
e como sujeitos periféricos vivem a cidadania, e como já foi dito, apartados das políticas de
Estado. Jessé Souza procura demonstrar como se construiu o que ele chama “a ralé” que é
precisamente, “a classe não apenas sem acesso aos capitais que propiciam a incorporação da
moderna ideia de alma, ou seja, dignidade e realização expressiva, mas sem acesso até mesmo
aos pressupostos dessa incorporação. (SOUZA, 2018, p. 42)
Segundo suas palavras, sua intenção não foi de ser pejorativo, mas sim, provocativo.
Valendo-se de conceitos teóricos do sociólogo Pierre Bourdieu de “capital” e de “habitus”
Souza (2018, p. 29) salienta que: “Bourdieu percebe os capitais econômico e cultural como os
elementos estruturantes de toda a hierarquia social moderna.” E que o “habitus”
56

representa a incorporação nos sujeitos de esquemas avaliativos e disposições


de comportamento a partir de uma situação socioeconômica estrutural, então
mudanças fundamentais na estrutura econômica e social que devem implicar,
consequentemente, mudanças qualitativas importantes no tipo de habitus para
todas as classes sociais envolvidas de algum modo nessas mudanças.
(SOUZA, 2018, p. 205)

A partir do conceito de “capital”, Souza constrói a ideia da “ralé” que constitui a maior
parte do povo brasileiro, atingindo algo em torno de 80%. Os 20% restantes seria a elite
brasileira que concentra a maior parte da renda do país. A construção simbólica da “ralé” se dá
através da discursividade produzida pela elite e pela classe média brasileira apoiada por
narrativas elaboradas por intelectuais brasileiros. Souza (2018) destaca a importância Gilberto
Freire que através da sua produção intelectual, principalmente pelo livro “Casa Grande”
Senzala, ajudou a disseminar a ideia de igualdade de raças no Brasil. O que foi extremante
relevante para o processo de silenciamento das questões relacionadas às desigualdades raciais
e para que ainda hoje continuássemos reproduzindo esse discurso que desumaniza e não repara
as desigualdades, ou seja, que não se materializa de maneira real e concreta. Para Paulo Freire
(1987) nos diz:

A desumanização, que não se verifica apenas nos que têm sua humanidade
roubada, mas também, ainda que de forma diferente, nos que a roubam, é
distorção da vocação do “ser mais”. É distorção possível na história, mas não
vocação histórica. Na verdade, se admitíssemos que a desumanização é
vocação histórica dos homens, nada mais teríamos que fazer, a não ser adotar
uma atitude cínica ou de total desespero. A luta pela humanização, pelo
trabalho livre, pela desalienação, pela afirmação dos homens como pessoas,
como “seres para si”, não teria significação. Esta somente é possível porque a
desumanização, mesmo que um fato concreto na história, não é, porém,
destino dado, mas resultado de uma “ordem” injusta que gera a violência dos
opressores a esta, o “ser menos”. (FREIRE, 1987, p. 30)

Outros pontos abordados por Souza dizem respeito ao uso do “capital econômico” pela
elite que forjou o conceito de patrimonialismo, que determina define que a corrupção seria um
problema inerente ao Estado, deslocando o foco do verdadeiro problema relacionado ao “poder”
do capitalismo e a intervenção do mercado financeiro e têm o “poder” de controlar a política
do país. Por outro lado, a classe média faz o uso do “capital social” para construir uma imagem
enviesada sobre o conceito de populismo. A classe média construiu o imaginário simbólico que
os pobres seriam fáceis de manipular. Devido à origem campesina, sem leitura e por serem
carentes de uma educação formal. Souza enxerga na junção desses fatores, uma combinação
determinante para o padrão avaliativo e as disposições de comportamento do povo.
57

Constituindo-se assim um padrão que ele vai conceituar como “habitus precário” com a
seguinte definição:
O habitus precário seria o limite do habitus primário para baixo, ou seja, seria
aquele tipo de personalidade e de disposições de comportamento que não
atendem às demandas objetivas para que um indivíduo ou um grupo social
possa ser considerado produtivo e útil numa sociedade de tipo moderno e
competitivo, podendo gozar de reconhecimento social com todas as suas
dramáticas consequências existenciais e políticas. O que estamos chamando
de habitus secundário tem a ver com o limite do habitus primário para cima,
ou seja, tem a ver com uma fonte de reconhecimento e respeito social que
pressupõe, no sentido forte do termo, a generalização do habitus primário para
amplas camadas da população de uma dada sociedade. Como a categoria de
habitus primário é a mais básica, na medida em que é a partir dela que se
tornam compreensíveis seus limites para baixo e para cima, devemos nos deter
ainda um pouco na sua determinação. (SOUZA, 2018, p. 207-208)

Dessa maneira, Souza encontrou uma forma de iluminar a origem das mazelas da
sociedade brasileira. E podemos concluir com essa contribuição da análise de um elemento de
discursividade:

a polissemia serve pouco à ciência e muito à ideologia, e acredito que a noção


de plasticidade está na base da operação de transvalorização ideológica que
animou o esforço de Freyre, tanto em Casa-grande e senzala quanto na sua
obra luso-tropicalista posterior. Gilberto Freyre almejava inverter o sinal
negativo da obra portuguesa aqui e alhures, talvez como meio de reverter a
baixa autoestima do brasileiro. Esse ponto é fundamental, na medida em que
essa é a ideologia brasileira por excelência, tendo se tornado o vínculo
simbólico e explícito entre os brasileiros de todas as classes, a partir da sua
transformação em doutrina oficial do Estado arregimentador a partir de 1930.
(SOUZA, 2018, p. 142)

O Brasil não atingiu o Estado democrático, que tem como pressuposto a igualdade para
todos e participação plena de direitos e deveres. Passamos pelos anos do milagre econômico,
pela ditadura, reestabeleceu-se a República democrática por meio das “Diretas já” e o discurso
proferido, sempre o mesmo. A necessidade de organizar a economia, a modernização do país,
a estratégia de acúmulo de capital para depois fazer a redistribuição de renda. Assim, tornar o
Brasil menos desigual e mais inclusivo.
Entretanto, esse discurso presente em todos os modelos de governo nunca se
concretizou. O sistema de acúmulo, beneficiou a indústria, e hoje é benéfico ao sistema
financeiro. O compromisso do Brasil é com o pensamento neoliberal, que dita as regras do jogo.
Mas, Canclini nos apresenta seguinte consideração:

a cidadania e os direitos não falam unicamente da estrutura formal de uma


sociedade; indicam, além disso, o estado da luta pelo reconhecimento dos
outros como sujeito de “interesses válidos”, valores pertinentes e demandas
58

“legitimas”. Os direitos são reconceitualizados como “princípios reguladores


das práticas sociais, definindo as regras das reciprocidades esperadas na vida
em sociedade através da atribuição mutuamente consentida (e negociada) das
obrigações e responsabilidades, garantias e prerrogativas de cada um”. Os
direitos são concebidos como expressão de uma ordem estatal e como uma
gramática civil. (CANCLINI, 2005, p. 36)

Michel Temer, ao assumir a presidência em 2018, redirecionou o Brasil ao


neoliberalismo e, com a eleição de Bolsonaro, o projeto continua em andamento, sob o comando
do Ministro Paulo Guedes, que apregoa o teto de gastos, o rigor fiscal, a diminuição maciça da
participação do Estado e a presença da inciativa privada para os projetos de desenvolvimento
do país, mas a distribuição de renda, a taxação das grandes fortunas é apontada por especialistas
como a principal estratégia econômica para diminuir a desigualdade no país.
Por isso, é importante debater e problematizar o liberalismo, sistema econômico e
político atrelado aos ideais da Revolução Francesa, que atualmente se apresenta sob a rubrica
de neoliberalismo, com conceitos opacos que nem sempre são claros ou bem definidos. As
principias definições e as principias diretrizes que se tem acesso são as que foram estabelecidas
no “Consenso de Washington”, que reúne um conjunto de medidas econômicas apresentadas
em 1989 no Internacional Institute for Economy, na capital dos Estados Unidos. O Consenso de
Washington apresentava algumas regras baseadas na abertura comercial com o afrouxamento
da economia e o desaparecimento de algumas restrições econômicas. O modelo propunha uma
reforma econômica e tributária ancorada na disciplina fiscal e ainda, na redução dos gastos
públicos, privatização das estatais, e com foco no mercado, o plano visava controlar a taxa de
juros e incentivar as importações entre os países.
Esta proposta garantia, dentre outras coisas, o crescimento econômico e o
desenvolvimento social dos países latino-americanos e os protagonistas era, (FMI) — Fundo
Monetário Internacional, o Banco Mundial, personalidades do governo e grande parte da elite
de economistas. O documento foi elaborado pelo economista inglês John Williamson e esse
modelo tornou a política oficial do FMI. Submetendo o Brasil e a América Latina a uma nova
ordem colonial imposta pelo Norte Global. A partir da situação latino-americana Aníbal
Quijano desenvolve a seguinte reflexão, “a destruição da colonialidade do poder, enquanto
relação de exploração, é um dos fatores determinantes da luta contra o padrão universal do
capitalismo eurocentrado”. Grosfoguel salienta que “a colonialidade permite-nos compreender
a continuidade das formas coloniais de dominação após o fim das administrações coloniais,
produzidas pelas culturas coloniais e pelas estruturas do sistema-mundo capitalista
moderno/colonial”. Grosfoguel observa que “o Estados-nação periféricos e os povos não-
59

europeus vivem hoje sob o regime da “colonialidade global” imposto pelos Estados Unidos,
através do FMI, do (BM) — Banco Mundial, do Pentágono e da (OTAN) — Organização do
Tratado do Atlântico Norte.
Na década 80, no cenário mundial, político e econômico era performado por duas
figuras públicas, Margaret Thatcher no Reino Unido e Ronald Reagan nos Estados Unidos,
ambos porta-vozes do neoliberalismo. Reproduzindo discursos que fazem parte da história e da
memória mundial. Os discursos liberais contra comunistas, “vermelhos versus azuis”, a defesa
conservadora da família e de uma menor regulação da esfera econômica por parte do Estado,
nesse ponto se distanciando do liberalismo que preconiza a separação econômica da esfera
política. Essas duas figuras públicas Thatcher e Reagan são responsáveis por assumir e
disseminar uma transformação da linguagem política que até aquele momento era reservada aos
“think tanks” privados e às reuniões de grupos de influência neoliberais.
Para Mouffe (2015) a principal deficiência do liberalismo no campo político é sua
negação do caráter inerradicável do antagonismo. “Apesar daquilo que muitos liberais nos
querem fazer acreditar, a especificidade da política democrática não é a superação da oposição
nós/eles, mas a forma diferente pela qual ela se estabelece.” (MOUFFE, 2015, l. 453) e assevera
que “a tendência predominante no pensamento liberal se caracteriza por uma abordagem
racionalista e individualista que impede o reconhecimento da natureza das identidades
coletivas”. (MOUFFE, 2015, l. 384).
Entretanto, é importante ressaltar que entre os anos de 1973 e 1990, o Chile esteve sob
o governo autoritário do General Augusto Pinochet, que adotara a ideologia da chamada Escola
de Chicago em um cenário de violação aos direitos civis, supressão de garantias individuais e
terrorismo de estado. O governo ditatorial de Pinochet foi o laboratório perfeito para um
conjunto de políticas macroeconômicas e processos sociais de retração da esfera pública.
Seguindo todas as dinâmicas impostas pelo neoliberalismo, desativou abruptamente a margem
decisória dos processos populares e, em consequência, impossibilitou a articulação dos
movimentos por justiça social. Enquanto no plano mundial, nos anos 80, estabeleciam-se as
bases do neoliberalismo, no Brasil (desde 1930), após cinquenta anos de investimentos na
política industrial, num processo de modernização em grande escala, esse novo modelo
industrial de desenvolvimento entra em crise e “vai perdurar até os anos 1980, quando entra em
crise, assegurando, nesses cinquenta anos, taxas contínuas de crescimento econômico capazes
de transformar um dos países mais atrasados do globo, em 1930, na oitava maior economia do
mundo, ao fim do processo, no limiar dos anos 1980.” (SOUZA, 2018, p. 189).
60

Para Fisher (2020, p.8), “os anos 1980 foram o período no qual o realismo capitalista
se estabeleceu, com muita luta, e criou raízes. Foi a época em que a doutrina de Margaret
Thatcher de que “não há alternativa” – um slogan tão sucinto para o realismo capitalista quanto
se poderia querer – se transformou em uma profecia autorrealizável brutal. Para Mouffe (2015),
“além das falhas da abordagem liberal, o principal obstáculo à implementação de uma política agonística
vem do fato de que, desde o colapso do modelo soviético, estamos assistindo à hegemonia inconteste do
neoliberalismo, com sua alegação de que não há alternativa à ordem existente” (MOUFFE, 2015, l. 742-
752).
O realismo capitalista, para Fisher (2020), pode ser visto tanto como uma crença
quanto como uma atitude. “É a crença de que o capitalismo é o único sistema econômico viável”
(FISHER, 2020, p. 88).

O realismo capitalista tem sido vendido para nós por gerentes (muitos dos
quais se veem como pessoas de esquerda) que nos dizem que os tempos agora
são outros. A era da classe trabalhadora organizada acabou; o poder sindical
está recuando; as empresas agora dão as cartas, e temos que entrar na linha. O
trabalho de autovigilância que se exige rotineiramente dos trabalhadores –
todas aquelas auto avaliações, revisões de performance, livros de registro –
seria, como nos é dito, um preço pequeno a pagar para manter nossos
empregos. (FISHER, 2020, p. 82)

Após governos democráticos e governos autoritários, nos anos 1980 o Brasil passou
por uma transição política da ditadura militar para a democracia e, nessa década, surge no
cenário político o Partido dos Trabalhadores (PT). Oficializado partido político em 10 de
fevereiro de 1980, pelo (TJSE) — Tribunal Superior de Justiça Eleitoral, o PT foi criado como
um partido promotor de mudanças na vida de trabalhadores da cidade e do campo. Defensor do
socialismo democrático, o PT foi fundamental, em 1984, na mobilização social conhecida como
“Diretas Já”, que reivindicou eleições presidenciais diretas no Brasil. Adquirida a experiência
de luta por diversas reivindicações sociais, foram o ponto de partida para muitas propostas
levadas à Constituinte de 1988, que culminou na aprovação da atual constituição brasileira.
A atuação do PT e de outros partidos de esquerda avançou em muitos pontos nos
direitos sociais e na democratização de diversas políticas públicas. Entretanto, demoraria duas
décadas para que o partido chegasse ao poder. Durante todo esse período construiu-se uma forte
oposição aos governos estabelecidos, mas sempre dentro de um regime democrático e se tornou
a principal e a mais importante organização da esquerda brasileira. Corroborando destes fatos
políticos e históricos, Saad e Morais comentam que

“em março de 1985, o PT mostrou a distância que mantinha da política


tradicional quando seus deputados se negaram a votar em Tancredo Neves no
61

Colégio Eleitoral. Em seguida, o partido iniciou oposição ao governo


“burguês” de José Sarney. Por razões semelhantes, a bancada de deputados
constituintes do partido, liderada pelo próprio Lula, recusou-se a assinar a
Constituição de 1988, apesar dos grandes avanços democráticos que ela trazia.
Nesse ínterim, o PT cresceu até se tornar hegemônico na esquerda brasileira.”
(SAAD, MORAIS, 2018, p.102).

Dando um salto na história, chegamos ao atual presidente do Brasil Jair Messias


Bolsonaro. Bolsonaro, até então, um deputado medíocre e desconhecido, assumi a candidatura
no pleito para campanha eleitoral. Sob a alcunha de “Mito”, vence o pleito e torna-se candidato
o 38º Presidente da República do Brasil, eleito com mais de 58 milhões de votos. Durante sua
campanha, ainda candidato, em uma de suas carreatas é esfaqueado na cidade de Juiz de Fora
em Mina Gerais. Bolsonaro se recusava a participar de debates, e com o ocorrido, não
compareceu aos debates das redes de televisão para expor sua candidatura e seu plano de
governo. Boa parte de sua campanha foi articulada por redes sociais utilizando Facebook e
Twitter administradas pelo “Gabinete do Ódio”. O Gabinete do Ódio seria uma rede de agentes
especializados em disseminar Fake News e combater qualquer manifestação contrária ao
governo. Existe provas concretas que esse gabinete exerça esse poder nas redes sociais sendo
alvo de investigações de uma (CPMI) — Comissão Parlamentar Mista de Inquérito. Instaurada
para avaliar questões relacionadas a esse gabinete de produção e disseminação de Fake News.
O “gabinete do Ódio” estaria envolvido também com as estratégias relacionadas ao
negacionismo à ciência, apoio ao desmanche de políticas públicas e a divulgação de notícias
falsas com relação à pandemia. Divulgando falsas notícias e relatórios. Tudo contribuindo para
o acirramento e a polarização ideológica entre direita contra esquerda.
Em janeiro de 2019, Jair Bolsonaro assumiu a presidência e seu governo tem flertado
com o autoritarismo e sob ameaças de um golpe militar. A sociedade brasileira através de
estratégias bem articuladas de comunicação dividiu o país em comunistas e patriotas -
(Petralhas versus Bolsomínios). Seu governo contemplado de perto, pode ser um novo
laboratório aos moldes do governo chileno de Pinochet, conforme citado anteriormente, onde
naquele momento representava a instauração do neoliberalismo.
No ministério da fazenda, o Economista Paulo Guedes “Chicago Boy”,
reconhecidamente um postulante da Escola de Chicago, adotando uma agenda econômica
comprometida com o neoliberalismo. Ajuste fiscais controlados por um teto de gastos,
desmanche de programas sociais, na saúde, na cultura, na educação. Universidades públicas
sofreram cortes nos investimentos nas áreas de pesquisas científicas, projetos culturais foram
acancelados, secretárias e órgãos culturais extinguidos.
62

O Presidente Bolsonaro alguns processos de leilão e licitação de empresas públicas,


todos insatisfatórios. O leilão das áreas onerosas do Pré-Sal foi um fracasso. Somente 2/3 foram
arrematados pela própria Petrobras com uma participação mínima de capital chinês. Por falta
de lances de capital estrangeiro, as áreas saíram em lance único, sem ágios.
Todas essas ortodoxias só beneficiam os sistemas de acúmulos de riqueza do país, sem nenhum
projeto de distribuição de renda abandonando todo “walfare state”. A atual agenda política
demonstra profundo descaso com as causas ambientais. Num caso emblemático, após firmar
um compromisso na Cúpula de líderes do Clima, se prontificou a controlar as queimadas e os
controlar os processos de desmatamentos ilegais. Matas devastadas para a exploração e
contrabando de madeiras nobres. Muitas destas áreas desmatadas são destinadas à pecuária.

Numa sociedade de risco, que se tornou consciente da possibilidade de uma


crise ecológica, uma série de assuntos que anteriormente eram considerados
de natureza privada – como os relacionados ao estilo de vida e à alimentação
– deixaram o campo do pessoal e do privado e se tornaram politizados. A
relação do indivíduo com a natureza é típica dessa transformação, uma vez
que ela agora se encontra inevitavelmente interligada a uma multiplicidade de
forças globais das quais é impossível escapar. (MOUFFE, 2015, l. 929-938)

Um dia depois dos compromissos firmados, com mais de 40 líderes, anunciou o corte
da ordem de 240 milhões nos projetos do (MMA) Ministério do Meio Ambiente. A pasta do
MMA foi comandada por Ricardo Aquino Salles que demonstrou estar à serviço da bancada
ruralista servindo a interesses espúrios. Em uma reunião ministerial, divulgado em rede
nacional, vazou o comentário que enquanto a sociedade e a mídia estão preocupadas com a
cobertura seria a momento adequado para passar a “boiada”. A “boiada” a qual ele se referia
era a assinatura de novas legislações mudando os regramentos e simplificar normas do IPHAN,
de ministério da Agricultura, de ministério de Meio Ambiente, de ministério disso, de ministério
daquilo”. Aílton Krenak, no “Roda Viva” do dia 19/04/2021, fez a seguinte afirmação com
relação ao ministro Ricardo Salles "é uma pessoa articulada não é a mesma coisa que uma
pessoa subserviente. Esse sujeito é medíocre e subserviente, ele está ali para executar um plano
danoso para a soberania ambiental no Brasil”.
O Brasil teve as relações diplomáticas abaladas com a China, após ser acusada pelo
então ministro da Educação Abraham Weintraub, de ter se beneficiado da pandemia do vírus
da Covid-19. Além de fazer comentários xenófobos em relação à dificuldade de chineses
falarem o português. Comparando a fala a um dos personagens da turma da Mônica, um símbolo
cultural do Brasil.
63

Sem sombras de dúvidas, a Covid-19 será um dos fatos mais importantes deste século
e o governo “Bolsonaro” também entrará para história com relação ao negacionismo científico
e à má condução da crise pandêmica no país.

1.1.4 - Democracia e os sentidos políticos para liberdade

Depois do Movimento “Diretas Já” que brigava pelo estabelecimento de eleições


diretas para presidente no Brasil anunciando o fim do período ditadura militar. O Brasil passou
por um processo de redemocratização. Processo esse que se deu na esfera política desta forma
somos hoje uma República Democrática. Entretanto, o Estado democrático nunca se consolidou
efetivamente, tendo em vista que por democracia todos os cidadãos deveriam ter direitos e
deveres equitativos.
Para Habermas (1998, p. 10) “o desenho institucional das democracias modernas reúne
três elementos. Primeiro, a autonomia privada dos cidadãos, sendo que cada um deles segue sua
própria vida. Segundo, a cidadania democrática, ou seja, a inclusão de cidadãos livres e iguais
na comunidade política. E, terceiro, a independência de uma esfera pública que opera como um
sistema intermediário entre o Estado e a sociedade”.

O desenho institucional deve garantir: (a) a igual proteção dos membros


individuais da sociedade civil através da regra do direito e de um sistema de
liberdades básicas que seja compatível com as mesmas liberdades concedidas
a todos. Deve também garantir um igual acesso a cortes independentes – sendo
que a proteção de todos deve ser igualmente assegurada por elas –, e uma
separação de poderes entre o Legislativo, o Judiciário e o Executivo, sendo
este último a ramificação que vincula a administração pública à lei. O desenho
deve também assegurar (b) a participação política da maior quantidade
possível de cidadãos interessados através de direitos iguais de comunicação e
participação. Deve assegurar ainda eleições periódicas (e referendos) com
base no sufrágio inclusivo; a competição entre diferentes partidos, plataformas
e programas, e a aplicação do princípio da maioria no processo político
decisório em instâncias representativas. O desenho institucional deve garantir
ainda (c) uma contribuição apropriada de uma esfera pública política para a
formação de opiniões públicas cuidadosamente consideradas por meio de uma
separação entre o Estado (baseado em taxas) e a sociedade (baseada no
mercado). Precisa também afirmar os direitos de comunicação e associação e
zelar por uma regulação da estrutura de poder da esfera pública, assegurando
a diversidade de meios de comunicação de massa independentes, assim como
um amplo acesso de audiências massivas inclusivas à esfera pública. Esse
desenho institucional incorpora ideias de diferentes filosofias políticas. Cada
uma dessas principais tradições confere uma importância diferenciada a
princípios tais como liberdades iguais para todos, participação democrática e
governo através da opinião pública. (HABERMAS, 1998, p. 239-252)
64

Para Mouffe (2015, l. 732) “uma sociedade democrática exige que se discuta a respeito
das alternativas possíveis; além disso, ela precisa oferecer formas políticas de identificação que
girem em torno de posições democráticas claramente diferenciadas”. A autora considera que:

A política democrática precisa ter uma ascendência real sobre os desejos e as


fantasias das pessoas e que, em vez de opor interesses a sentimentos e razão a
paixões, ela deve oferecer formas de identificação que contribuam para as
práticas democráticas. A política sempre teve uma dimensão “partidária”, e
para que as pessoas se interessem pela política elas precisam ter a
possibilidade de escolher entre partidos que ofereçam alternativas reais. É
exatamente isso que está faltando na atual exaltação da democracia “sem
partidos”. (MOUFFE, 2015, l. 695-704)

Mouffe (2015) conclui o seguinte: a especificidade da democracia moderna repousa


no reconhecimento e na legitimação do conflito e na recusa de suprimi-lo por meio da imposição
de uma ordem autoritária. (MOUFFE, 2015, l. 723). Para entendermos essa questão sobre a
legitimação do conflito, na concepção da Mouffe (2015), necessitamos compreender que “o
político” implica a dimensão de antagonismo constitutiva das sociedades humanas, enquanto
“a política” implica o conjunto de práticas e instituições por meio das quais uma ordem é criada,
organizando a coexistência humana no contexto conflituoso produzido pelo político.

O político está identificado com os atos da instituição da hegemonia. É nesse


sentido que temos de diferenciar o social do político. O social é a esfera das
práticas sedimentadas, ou seja, das práticas que encobrem os atos originais de
sua instituição política contingente e que são aceitas sem contestação, como
se fossem autojustificáveis. Práticas sociais sedimentadas são uma parte
constitutiva de qualquer sociedade viável; nem todos os laços sociais são
questionados ao mesmo tempo. Desse modo, o social e o político possuem o
status daquilo que Heidegger denominava existenciais, isto é, dimensões
indispensáveis de qualquer vida em sociedade. Se o político – entendido no
sentido hegemônico – implica a visibilidade dos atos da instituição social, é
impossível determinar a priori o que é social e o que é político
independentemente de qualquer referência contextual. (MOUFFE, 2015, l.
505-515)

Mouffe (2015), conclui que “teóricos liberais são incapazes de reconhecer o papel
integrativo que o conflito desempenha desempenha na democracia moderna”.
Uma das ideias que decorre da abordagem da nossa pesquisa são os sentidos do
conceito político e a noção de “liberdade”. São muitas as definições para a palavra “liberdade”.
E aqui apresentaremos algumas definições que contextualizam o nosso debate. De qualquer
maneira a palavra liberdade não escapa dos enquadramentos da linguagem e seja pela paráfrase
ou pela polissemia os sentidos serão definidos pelo embate travado na ação discursiva. Para
Orlandi,
65

São duas forças que trabalham continuamente o dizer, de tal modo que todo
discurso se faz nessa tensão: entre o mesmo e o diferente. E é nesse jogo entre
paráfrase e polissemia, entre o mesmo e o diferente, entre o já-dito e o, a se
dizer que os sujeitos e os sentidos se movimentam, fazem seus percursos, (se)
significam. A língua é sujeita ao equívoco e a ideologia é um ritual com falhas
que o sujeito, ao se significar, se significa. Por isso, dizemos que a
incompletude é a condição da linguagem: nem os sujeitos, nem os sentidos,
logo, nem o discurso, já estão prontos e acabados. Eles estão sempre se
fazendo, havendo um trabalho contínuo, um movimento constante do
simbólico e da história. É condição de existência dos sujeitos e dos sentidos:
constituírem-se na relação tensa entre a paráfrase e polissemia. (ORLANDI,
2020, p. 34)

No dicionário Houaiss, temos as seguintes definições para o termo “liberdade”:

1)   Grau de independência legítimo que um cidadão, um povo ou uma nação elege


como valor supremo, como ideal;
2)   Conjunto de direitos reconhecidos ao indivíduo, considerado isoladamente ou
em grupo, em face da autoridade política e perante o Estado; poder que tem o
cidadão de exercer a sua vontade dentro dos limites que lhe faculta a lei;
3)   Condição daquele que não se acha submetido a qualquer força constrangedora
física ou moral;
4)   Condição daquele que não é cativo ou que não é propriedade de outrem;
5)   Condição de um animal que não vive em cativeiro;
6)   Possibilidade que tem o indivíduo de exprimir-se de acordo com sua vontade,
sua consciência, sua natureza;
7)   No marxismo, a aptidão por meio da qual as coletividades ou classes,
compreendendo a necessidade das leis da natureza e os condicionamentos que
pesam sobre a história universal, transformam o real, com o objetivo de
satisfazer suas necessidades materiais e determinar a organização geral da
sociedade.

No entanto, os sentidos de “liberdade” foram constituídos ao decorrer da história,


produzindo efeitos de repetição e diferença. A palavra pode nos remeter a escravidão como à
democracia, significamos em relação a essa história, esses sentidos retomam, mas, ao mesmo
tempo, podem derivar para outros sítios de significação (ORLANDI, 1993), produzindo novos
sentidos, efeitos do jogo da língua inscrito na materialidade da história” (ORLANDI, 2020, p.
36).
66

É assim que suas palavras adquirem sentido, é assim que eles se significam
retomando palavras já existentes como se elas se originassem neles e é assim
que sentidos e sujeitos estão sempre em movimento, significando sempre de
muitas e variadas maneiras. Sempre as mesmas, mas, ao mesmo tempo,
sempre outras. (ORLANDI, 2020, p. 34)

No veganismo, a noção de liberdade é muito importante, pois, se preocupa com a


“libertação animal” e no Veganismo Interseccional o sentido de liberdade é ampliado, através
da interseccionalidade. O movimento vegano é fortalecido, e a libertação animal, recebe um
importante aporte teórico e metodológico à causa animal, através das experiências vivenciadas
por outros movimentos que anseiam pelo mesmo ideal de liberdade. O feminismo negro, os
pobres nas comunidades periféricas, os LGBTQIA+ e de outros indivíduos que muitas são
segregados pelas políticas hegemônicas do Estado e que vivem numa condição periférica.
Arendt (2018), em seus estudos políticos e filosóficos, explora com vigor o conceito
de liberdade e acentua que “a política surge não no homem, mas sim entre os homens, que a
liberdade e a espontaneidade dos diferentes homens são pressupostos necessários para o
surgimento de um espaço entre homens, onde só então se torna possível a política, a verdadeira
política”. “O sentido da política é a liberdade”. Ser livre, para Arendt, é isto: iniciar algo novo,
fazendo justiça ao fato de que cada um de nós veio ao mundo como um recém-chegado ao
nascer. Em suas palavras, “podemos iniciar alguma coisa porque somos inícios, portanto,
iniciantes”. Isso é precisamente a liberdade para ser livre. (ARENDT, 2018, p. 11).
Grupos, que se interseccionam à causa animal, têm em suas dimensões políticas, a
proposição de “iniciar algo novo”. São grupos que atuam na sociedade civil, através de
movimentos sociais e coletivos e trazem novas teorias, novas práticas que resultam numa nova
experiência na ordem pública. São formas políticas de serem visualizados e serem visibilizados
pela democracia que, por sua vez, têm como um dos princípios fundamentais o sistema político
comprometido com a igualdade ou com a distribuição equitativa de poder entre todos os
cidadãos.
É preciso, porém, enfatizar que muitas das políticas públicas em vigor não são políticas
que partiram dos pressupostos desse sistema democrático, nem das esferas políticas, mas, sim,
fruto da produção do ativismo político dos excluídos.
O programa de “Cotas Raciais” que visa inserir a população negra na universidade
pública e em cargos públicos, criando um sistema de equidade social. o “Bolsa Família” para
as famílias de baixa renda que garante o acesso a serviços essenciais, como alimentação, saúde
67

e educação. São exemplos de conquistas articuladas por coletivos e movimentos sociais e que
não faziam parte do “welfare state” do governo neoliberal brasileiro.
Para Arendt, “liberdades no sentido dos direitos civis resultam da libertação, mas não
são de umodo algum o conteúdo real da liberdade, cuja essência é a admissão no âmbito público
e a participação nos assuntos públicos”.
E para Habermas importância que cidadãos de nações distintas conferem aos direitos
e às liberdades, à inclusão e à igualdade, ou à deliberação pública e à resolução de problemas
determina como eles veem a si próprios como membros de sua comunidade política. (2008,
p.10).
Esses grupos marginalizados pelas políticas de Estado, são indivíduos que muitas
vezes, estão apartados da cidadania e em extrema desigualdade social. Para Souza (2018, p.
44) “a descrição do excluído abaixo da condição de dignidade sobre sua própria condição é
necessariamente reativa, ou seja, tende a negar subjetivamente a condição subumana que vive
objetivamente em seu cotidiano”.
Assim, o conceito de liberdade é solapado e Arendt (2018) diz ser: “desnecessário
acrescentar que, onde os homens vivem em condições verdadeiramente miseráveis, essa paixão
pela liberdade é desconhecida”. “Satisfazer a fome, solucionar a pobreza e garantir a saúde são
respostas a necessidades sociais. Dizem respeito ao labor e mantêm nossa sobrevivência
biológica, o que é fundamental. Porém, não garantem ação e discurso, condições da experiência
propriamente política da liberdade. Um povo pode estar bem alimentado, mas apartado das
decisões de sua polis. O autoritarismo pode resolver o problema da saúde sem dar o direito de
agir às pessoas”. (ARENDT, 2018, p. 9)
Anteriormente, nas considerações iniciais apontamos a ADF, como teoria-
metodológica a ser aplicada aos três eixos de estudos que compõem os capítulos desta
dissertação: 1. Comunicação e Consumo, 2. Veganismo e Interseccionalidade; 3. Política e
Biopolítica. Pretendemos analisar as condições e produções de sentido, nos discursos políticos
do Veganismo Interseccional.
O “político”, na análise de discurso, também goza de outros sentidos. Não se trata
exatamente da política no sentido estrito de formas de governo. E sim do “político”, constituído
das relações de poder, que envolvem a enunciação dos discursos e com relação às condições de
produção. Ou seja, quem pode, quem tem o direito ou não de enunciação. Sejam eles através
dos textos, imagens ou na oralidade.
Os discursos se materializam, na linguagem, na historicidade e na ideologia. Nessa
perspectiva, procuramos apresentar as motivações da nossa pesquisa. De maneira sucinta,
68

contextualizamos o momento ao qual o planeta e a humanidade estão condicionados. Um grave


problema pandêmico que coloca em risco a espécie humana. Problemas climáticos relacionados
às formas de produção e consumo estabelecidos na modernidade. No presente estágio, em que
o mundo está submetido a ideologia da globalização, destacamos o momento histórico-social e
político no qual o Brasil está inserido entre os anos 1980 e 2021, período em que se constituiu
o sistema político e econômico neoliberal no país.
No próximo capítulo, abordaremos as definições do veganismo, sua história, suas
vertentes e seus conceitos.
69

2 - DECOLONIALIDADE PARA UM VEGANISMO INTERSECCIONAL

Nesse subcapítulo apresentamos a história do movimento vegano e seus sujeitos, os


fundamentos e os preceitos estabelecidos pelos seus seguidores. Apresentaremos como o
movimento se estabeleceu e quais são as perspectivas e principais questões imbricadas entre
seus membros e no movimento. Para isso, apresentaremos a história do movimento, uma
descrição cada uma das vertentes e de que forma, os coletivos se organizam para representar o
movimento, e finalizamos o capítulo apresentando o coletivo Vegano Periférico, do qual,
selecionamos o corpus a ser identificado e analisado os discursos políticos e disciplinares.

2.1 - Simplesmente Veganismo

O veganismo surgiu em novembro de 1944, no Reino Unido. O movimento nasce atrelado a


um veículo de comunicação, quando Donald Watson, seu fundador, escreve um boletim
informativo com o nome de Vegan News, que seria enviado para a Sociedade Vegetariana do
Reino Unido, conhecida como vegetarianos não-lácteos.
Nesse primeiro boletim, Watson definiu o conceito e as diretrizes para o movimento.
Sua proposta inicial era que se adotasse uma dieta vegetariana que excluísse ovos, laticínios e
qualquer ingrediente que fosse origem animal. Donald Watson acreditava que a atitude do
veganismo era “encorajador” ao desistir de produtos derivados de animais não alimentares e
incentivar a criação de produtos alternativos, não animais.
Em 8 de abril de 1945, ocorreu o primeiro encontro para a concretizar e fundar
formalmente o movimento vegano. Esse encontro foi organizado por Watson e mais cinco
amigos e deram o nome de “A Sociedade Vegana”.
A criação do nome “VEGAN” segundo Donald Watson, seria a abreviação da palavra
“VEGETARIAN”. A fusão das três primeiras letras com as duas últimas. O verbete foi
incorporado ao dicionário ilustrado de Oxford em 1962 sendo definido como vegetarianos que
não consomem ovos, manteiga, leite e queijo. Donald Watson deu início ao movimento vegano
porque havia um ambiente fértil para que a sua ideia prosperasse. Uma das questões que
inquietavam Watson, que já era vegetariano, era o consumo. Ele estava incomodado com a
quantidade de ovos e leites que eram consumidos na Inglaterra.
Paul Singer (2010), autor citado no capítulo anterior, analisa o consumo da carne como
um hábito com raízes em duas tradições: no judaísmo e na antiguidade grega. Essas raízes
70

teriam confluência com o cristianismo e, no que lhe concerne, estabeleceu o hábito pela Europa.
Ele estabeleceu uma relação com a doutrina encontrada no velho testamento, onde o Homem
foi criado à imagem e a semelhança de Deus. Sendo assim, uma representação de Deus sobre a
terra e que por determinação de Deus teria domínio sobre a natureza e todas as feras. Apesar do
livro de Gêneses descrever o paraíso e os primeiros humanos se alimentando de frutas e
vegetais, haveria ocorrido uma mudança logo após o dilúvio, quando Deus passa a permitir o
consumo da carne de alguns animais. O antigo testamento é permeado de relatos do uso de
animais como oferendas e sacrifícios para a expiação de pecados.
Na antiguidade grega, como Singer descreve em seu livro “Libertação animal” (2010),
haviam escolas filosóficas importantes que eram conflitantes. Cada uma seguia os pensamentos
estabelecidos pelo seu fundador.
Pitágoras era vegetariano declarado e estimulava os seus seguidores a respeitarem a
vida dos animais, presume-se que na época, Pitágoras acreditasse que a alma dos homens,
migrasse para os animais. Mas a Escola mais importante foi a de Platão e de seus discípulos,
notadamente Aristóteles que, como já foi dito, era a favor da escravidão e afirmava que a
natureza era para servir aos desejos e necessidades do homem. As ideias de Aristóteles foram
os que prevaleceram no pensamento Ocidental. Apesar do estudo de Singer estar delimitado ao
Ocidente, nesse mesmo período no Oriente, Singer afirma em seus estudos que Sidarta
Gautama, o Buda, doutrinava seus seguidores sobre a importância da alimentação isenta de
ingredientes de origem animal.
Depois dessa fase pré-cristã e grega, Singer descreve um terceiro fato para confirmar
a sua tese. O cristianismo seria estabelecido durante o Império Romano e com tempo absorvido
das ideias judaicas e gregas. O Império Romano estava envolvido em suas conquistas em terras
distantes. Aos cidadãos comuns o entretenimento era os jogos no Coliseu, onde havia execução,
inclusive de cristãos lançados as feras. Havia um certo limite para o senso moral em Roma.
Para determinadas pessoas, suas vidas valiam menos. Criminosos, militares cativos e animais
que eram jogados na arena. A igreja cristã haveria de estabelecer a ideia da vida sagrada entre
os romanos, o que por fim, reforçaria o destino e a crueldade com relação aos animais.
Entretanto, somente a partir do século XV que a ideia de uma dieta à base de vegetais
ganharia força e expressividade. Diversos pensadores e artistas defenderiam essa alimentação
em favor das espécies animais. Entre os mais ilustres defensores do vegetarianismo seria
Leonardo da Vinci que em certo momento questionou em citação publicada na obra Quaderni
D’Anatomia, I-VI, preservada na Inglaterra pela Biblioteca Real de Windsor.
71

Além de ajudá-los, se aproxima deles para que eles possam gerar filhos que
saciem seu paladar, assim criando sepulturas para todos os animais. E devo
dizer mais, se me for permitido dizer toda a verdade: não acha que a natureza
já produz alimentos o suficiente para que se satisfaça? (DA VINCI)

Nesse período, o tema aparece nas obras de Jean-Jacques Rousseau (1712–1778),


filósofo social, teórico político e escritor suíço. Considerado um dos principais filósofos do
Iluminismo e um precursor do Romantismo e na obra do filósofo Francês humanista Montaigne
que publicou o livro “Ensaios”. Um livro escrito entre o poético e o didático, onde ele reserva
um espaço para explicar a propensão natural humana à crueldade através de uma atitude
sanguinária contra a vida dos animais. Dando um salto para o século XIX, registra-se o
surgimento das primeiras obras dedicadas a filosofia de vida vegetariana. Obras que teriam sido
escritas, sobre a influência do Romantismo. Movimento artístico, político e filosófico surgido
nas últimas décadas do século XVIII. Na Europa, durou parte do século XIX e fez oposição ao
Iluminismo e ao Racionalismo. O Romantismo era pautado pela natureza, exaltavam os animais
eram críticos à ideia de supremacia.
Entre os escritores britânicos, quatro dedicaram o seu talento em defesa dos animais.
Joseph Ritson lançou o livro “An Essay on Abstinence from Animal Food: as a Moral Duty”,
seguido por “The Return to Nature, or, a Defense for the Vegetable Regimen”, escrito por John
Frank Newton. Percy Bysshe Shelley publicou “A Vindication of Natural Diet” e William
Lambe endossou o discurso em favor do vegetarianismo com a obra “Water and Vegetable
Diet”. Esses escritores podem ser considerados os percursores e os grandes influenciadores do
veganismo, inspirados por Pitágoras e Plutarco.
O escritor Percy Bysshe Shelley era marido da escritora Mary Shelley que também era
vegetariana. Influenciada pelo marido e romantismo, escreveu o clássico romance
“Frankstein”. O monstro feito de pedaços de cadáveres, criado pelo Dr. Victor Frankstein é
vegetariano e detesta o hábito dos humanos se alimentarem de cadáveres. Conforme o trecho
do romance em que ele diz:

Não tenho que matar o cordeiro e a cabra para saciar o meu apetite. Bolotas e
bagas são o suficiente para a minha alimentação. Minha companheira vai ser
da mesma natureza que a minha, e vai se contentar com o mesmo que eu.
Faremos a nossa cama de folhas secas; o sol vai brilhar sobre nós da mesma
forma que brilha sobre os homens, e ele vai amadurecer a nossa comida. A
imagem que apresento a vocês é humana e pacífica. (MARY SHELLEY)

O Reino Unido foi o epicentro do vegetarianismo, em 1847 que surgiu formalmente a


primeira Sociedade Vegetariana, presidida por James Simpson e vinculada à Bible Christian
72

Church. Enquanto isso, em 1850, Sylvester Graham, inventor da popular indústria Graham
Cracker, fundou a Sociedade Vegetariana Americana. Em 1897, a pioneira Sociedade
Vegetariana, sediada na Inglaterra, que na ocasião já contava com cinco mil membros.
Nesse trecho dos nossos apontamentos é pertinente observar que na raiz do
vegetarianismo e do veganismo estão totalmente centrados no norte global e que o movimento
no Brasil não escapa das influências coloniais, imperialista e patriarcais da região. No Brasil,
um dos primeiros defensores do vegetarianismo foi o jornalista e poeta paraibano Carlos Dias
Fernandes, escritor do livro “Proteção dos Animais”, em 1914. Fernandes se envolveu em
discussões com profissionais da saúde que defendiam o consumo da carne, entretanto, tinha o
apoio do médico Flávio Maroja. Maroja era um médico higienista e publicou um artigo que
tratava dos benefícios do vegetarianismo. O material foi publicado no jornal “A União” de 30
de agosto de 1916 intitulado “Higiene Alimentar: Regimen Vegetariano e Regimen Carneo,
confronto de opiniões, como penso a respeito”, que falava dos benefícios do vegetarianismo.
Carlos Dias Fernandes comemorou a fundação da Sociedade Vegana Brasileira que aconteceu
no dia 26 de janeiro de 1917.
Retornando ao Reino Unido, em 1931 o comitê da Sociedade Vegetariana, integrou o
indiano Mahatma Gandhi. Gandhi que proferiu um discurso argumentando que uma dieta livre
de proteína animal, não era questão de saúde e sim de caráter ético e moral. A questão tomou
uma dimensão política e começou a surgir outros questionamentos. Debates e artigos
começaram a ser publicados no boletim informativo “Vegetarian Messenger”, a cerca do
tratamento dado as galinhas e as vacas-leiteiras. As opiniões eram divididas com relação ao
tema, e para acirrar esse cenário nesse ano eclodiu uma doença semelhante à vaca louca que
atacou os rebanhos de ovelhas britânicas. Os cientistas concluíram que a doença era provocada
por uma proteína infecciosa chamada “Príon”.
Esses fatos geraram uma certa apreensão nos vegetarianos, que começaram a escrever
cartas para a Sociedade Vegetariana. Entendendo que o que estava em debate, tornaria o
vegetarianismo muito radical. Argumentavam que seria uma dieta muito difícil de seguir,
devido à dificuldade de encontrar produtos para substituir os produtos de origem animal. As
cartas relatavam outras preocupações como a dificuldade de atrair novos adeptos e por fim, o
que poderia ser servidos nos eventos sociais da comunidade diante de tamanhas restrições.
Donald Watson, que nesse momento trabalhava como marceneiro e era integrante da
sociedade vegetariana de Leicester, começou a demonstrar a vontade e o desejo de lançar o
veganismo. Watson tentou publicar algumas ideias no boletim da Sociedade Leicester, mas não
foi autorizado. Nesse contexto, escreveu o primeiro boletim, marcou reunião com seus amigos
73

e lançou “A Sociedade Vegana”. O primeiro número do boletim Vegan News conseguiu


impactar 100 pessoas. Houve uma preocupação com a pronúncia do nome e pelo próprio
boletim ensinava a pronunciar a palavra de maneira correta. Watson encontrou muitas
dificuldades e resistência para levar em frente o seu trabalho, mas um ano depois a Sociedade
mudaria o nome do boletim para “The Vegan”. O informativo já contava com mais de 500
assinantes e no seu conteúdo encontravam-se receitas, dicas de saúde e uma lista de produtos
livres de ingrediente animal. O movimento viria a se consolidar cinco anos depois, e o vice-
presidente da “A Sociedade Vegana”, Leslie J. Cross, argumentou que a prioridade seria a luta
pelo fim da exploração animal — seja através de alimentos, commodities, trabalho, caça ou
vivissecção. Cross com a preocupação da falta de produtos para os veganos, fundou em 1956 a
empresa Plantmilk Society, dando origem à produção de leite de soja, orchata, maionese vegana
e barras de chocolate e de alfarroba sem ingredientes de origem animal. Mais tarde, sua indústria
se tornaria uma das maiores distribuidoras de leite de soja do Ocidente.
É interessante pensar que Donald Watson vislumbrou uma causa e identificou a
necessidade de uma luta liderando um movimento político que contestava o consumo excessivo
de ovos e laticínios. Criticou as condições precárias com que os animais estavam submetidos
para produção desses produtos. Um fator representativo para a sucesso da empreitada de
Watson, foi um surto de tuberculose que atingiu o rebanho de vacas do país.
Entretanto, Cross que defendia os mesmos ideais, enxergou uma oportunidade de
mercado e, doze anos depois da fundação da sociedade, montou uma indústria para atender as
necessidades de consumo do público vegano. Deixamos aqui as seguintes questões: nesse
momento nascia o embrião do capitalismo no movimento? Estaria aqui a centelha para que
surgisse a divisão em grupos do movimento? De um lado os interseccionais do outro, os
liberais? Estaria aqui o início da tensão no movimento vegano – veganismo (resistência) versus
veganismo (capitalista), cooptado pelo mercado?
O movimento se consolidou e hoje são milhares de adeptos ao redor do mundo. No
Brasil, não há números exatos, mas a SVB estima haver mais de 20 milhões de vegetarianos
espalhados pelo país.
74

2.2 Veganismo e seus cruzos: as vertentes do movimento

A seguir apresetaremos uma descrição de cada uma das vertentes do veganismo


identificados nossa pesquisa. A vertente liberal que compatirlha das lógicas de mercado e do
capitalismo neoliberal e os interseccionais que defendem um veganismo político preocupado
com as lutas de classe, influenciado por ideais marxista.

2.2.1 O Veganismo Liberal (V. L.)

Veganos liberais (estratégicos) tem como enunciação em seu discurso, que os avanços
em busca da “libertação animal” devam ser conquistados de maneira gradual. Eles avaliam que
a postura dos veganos abolicionistas interseccionais como radicalismo e acreditam que com
essa atitude torna muito difícil chegar a uma solução de curto prazo. Assim, os animais não
humanos continuariam sofrendo até que o objetivo seja concretizado. Nesse sentido, para os
veganos liberais a luta travada pelos veganos abolicionistas seria uma utopia.

Um abolicionista pragmático não afirma que o bem-estarismo é suficiente para


causar a abolição da escravidão animal no futuro. Ele está apenas dizendo que
as regulamentações bem-estaristas influenciam favoravelmente a causa
abolicionista. Leis bem-estaristas tendem a conduzir a leis abolicionistas, com
maior probabilidade, mas não com garantia de que isso ocorra. Leis bem-
estaristas, por si só, não assegurarão a implantação dos direitos dos animais,
mas criam condições geralmente favoráveis para isso. Uma lei que proíba a
criação industrial, de porcos, por exemplo, pode ser interpretada, nesse
sentido, como uma lei que dá um passo em direção à libertação dos porcos.
(NACONECY, 2009, p. 246)

Os veganos liberais, também são conhecidos como “pragmáticos”, “estratégicos”, “de


mercado”, “bem-estaristas” e “ativismo vegano eficaz”. Na concepção liberal o ativismo
político cede lugar ao mundo capitalista e especistas.
Os veganos liberais apoiam empresas veganas, mas também apoiam empresas que não
sejam veganas, mas, que estejam dispostas a produzir produtos veganos. Ou ainda, que estejam
dispostas apenas em `acatar alguns preceitos veganos.
Importa menos se empresa atua no mercado de produção da proteína animal, ou se ainda
aplica testes em animais. Veganos liberais estão dispostos sentar-se à mesa para negociar, por
melhores condições de criação dos animais visando o bem-estar destes animais. Galinhas
criadas fora de gaiolas, espaços maiores de circulação para o gado. Diminuição no número de
75

testes com animais, na indústria cosmética e farmacêutica. Essa ideia fica esclarecida nas
imagens retiradas na home da Organização Animal Equality e nas palavras de Naconecy (2009)
que diz que:

Para um abolicionista pragmático, em suma, a abolição é uma meta, um ideal


a ser alcançado e um critério para criticar o afastamento de uma determinada
sociedade real em relação a uma sociedade justa com os animais. A abolição,
neste sentido de ideia reguladora, não precisa ser entendida como uma ideia
utópica. Pelo contrário, se espera atingir esse ideal o quanto antes possível.
Mas se não for possível hoje, amanhã, na semana seguinte ou no mês que vem,
então deixemos as gaiolas maiores, mais limpas e mais confortáveis agora. (p.
254)

Imagem 7: chamadas de notícias na home da organização.


Fonte: Organização Animal Equality

Veganos liberais acreditam que é uma iniciativa promissora a produção de produtos a


base de plantas (plant-based). Empresas como Marfrig, Friboi, Nestlé apesar de não diminuírem
a produção de produtos a base de proteína animal, conseguem ter seus produtos a base de
proteínas vegetais bem aceitos e bem vistos pelo mercado vegano. Essa estratégia de
lançamento de produtos veganos por empresas que não são veganas recebe por vezes o nome
de “Vegan Washing”. Incorporam em suas embalagens um selo de produto vegano e assim
conseguem “maquiar” os seus verdadeiros interesses. O objetivo é passar a falsa impressão
preocupada com a causa animal, com as questões relacionadas ao meio ambiente, ao mesmo
tempo, em que conseguem tirar proveito das demandas de consumo do público vegano.
76

Enquanto os veganos liberais concordam com medidas paliativas, não atentando para
os direitos já constituídos dos animais, de certa forma contribuem com a ideologia dominante
e com as relações de poder estabelecidas por quem tem direito de dizer e de ser ouvido. São
empresas estabelecidas, que detém apoio econômico de governos hegemônicos e lançam
produtos para uma classe média com poder de compra. Essa ideologia em favor do mercado
pensando em resultados imediatos, ainda que se preocupe com bem-estar do animal, negligencia
o político e sentido ético e moral da causa, deixando de lado direitos que já estão constituídos
no campo jurídico.
O Veganismo Liberal tem sido representado por personalidades como artistas,
esportistas, atores e atrizes. Em sua grande maioria, pessoas ricas, brancas e cisgêneras. Nessa
perspectiva, o simbólico e imaginário constituído é que o veganismo seria um consumo possível
somente para pessoas ricas e que os melhores produtos são os industrializados e caros.
Para exemplificar como são construídos esses imaginários e de que maneira se
posicionam os veganos liberais, apresentamos a campanha publicitária produzida pela SVB.
Essa campanha, cujo tema era “Se você ama um por que come o outro?”, tinha o ator e roteirista
Emiliano d’Avila como embaixador da marca e foi veiculada em 2020. Ele, branco e cisgênero,
encontra-se ao lado de animais de raça sofisticadas e caras, um cachorro da raça “Golden
Retriever” e um porco da raça “Pietrain”. Os dois animais costumam ser criados como animais
domésticos e de estimação. Os animais representam um consumo simbólico de determinadas
classes sociais. São animais dificilmente encontrados nas comunidades periféricas.

Imagem 8: painel adesivado nas paredes no Metrô da linha Amarela.


Fonte: SVB

As peças publicitárias produzidas – painéis digitais, painéis adesivado e cartazes


sequenciais – foram veiculadas nas escadas rolantes das estações da linha amarela do Metrô. E
como material de apoio teve ainda ações online e offline, filtro no Instagram, camisetas para
77

venda no site da SVB e um vídeo institucional. A SVB produziu um segundo vídeo para
registrar o impacto da campanha e a circulação do público do Metrô.

Imagem 9: frames do público em circulação no Metrô.


Fonte: SVB

Nas imagens do vídeo acima, a circulação apresenta somente pessoas brancas e de bom
poder aquisitivo, o que corrobora com os dados apresentados no “mídia kit” do Metrô. A linha
4, amarela, é a mais moderna da América Latina e operada pela iniciativa privada. São dez
estações ativas, com circulação de 1,5 milhão de passageiros por dia. Com o seguinte perfil:
42% entre 16 e 25 anos, 50% de homens e de mulheres, 13% da Classe A e 57% da classe B.

Imagem 10: gráfico de Circulação da Linha amarela do Metrô.


Fonte: Elemidia

A ideologia desse grupo de veganos chegou ao Brasil representada por algumas


associações como Mercy For Animals, Animal Equality e People for the Ethical Treatment of
Animals e no Brasil a SVB. Estas organizações e outras ONGS são acusadas de receber
contribuições financeiras de empresas que não são veganas, fato que não pode ser comprovado
e que evidencia conflitos de interesses, pois empresas que deveriam lutar a favor dos direitos
dos animais recebem aportes financeiros de empresas que exploram a proteína animal.
78

2.2.2 O Veganismo Interseccional (V. I.)

O Veganismo Interseccional é um espaço específico de uma atitude de resistência e


reivindicação política de ordem socioeconômica. Combate a desvalorização de certos grupos
marginalizados na sociedade mulheres negras, LGBTQIA+, por exemplo, e expõe outras
formas de imperialismo e patriarcados perpetuados por discursos disciplinares na alimentação
e na saúde. Criticam as lógicas de mercado, a publicidade, a produção de produtos caros e
industrializados, denunciam a exploração, as condições de sofrimento que os animais são
submetidos, nas fazendas industriais e nos testes de laboratórios. Para além da “libertação”
animal, estão preocupados com a “libertação” dos humanos. Preocupam-se com as condições
de trabalho nos frigoríficos e com o conceito de “mais-valia”. Funcionários explorados,
jornadas de trabalhos exaustivas, falta de equipamentos adequados de EPI, ausência de direitos
e vínculos empregatício estabelecidos por lei.
Conforme já foi apresentado, segundo Souza, o Veganismo Interseccional pode ser
definido como:

uma espécie de versão amadurecida do veganismo “raiz” que reconhece os


inquebráveis elos entre o modo de vida vegano, a luta pelos direitos dos
animais não humanos e as lutas pela libertação dos seres humanos, em especial
das minorias políticas (mulheres, pessoas negras, pessoas pobres,
LGBTQIA+, pessoas com deficiência e neurodiversas, imigrantes e pessoas
refugiadas, minorias religiosas e irreligiosas etc.)

O Veganismo Interseccional contribui para haver avanços nas políticas públicas e a


mitigar problemas sociais, endêmicos no Brasil. Através da interseccionalidade, buscam a
abolição e libertação animal e mitigar a desigualdade social, sistema de saúde precário,
problemas de desertos alimentares, locais onde o acesso a alimentos in natura ou minimamente
processados é escasso, ou impossível, obrigando as pessoas a se locomover para outras regiões
para obter itens essenciais a uma alimentação saudável. Estes são alguns problemas que atingem
de maneira incisiva as camadas mais pobres e periféricas da sociedade brasileira.
O conceito de interseccionalidade foi cunhado por Kimberlé Crenshaw, defensora dos
direitos civil americano e uma das principais estudiosas da teoria crítica da raça e Professora
em tempo integral na Faculdade de Direito da UCLA e na Columbia Law School, especialista
em questões de raça e gênero. A interseccionalidade é uma conceituação do problema que busca
capturar as consequências estruturais e dinâmicas da interação entre dois ou mais eixos da
subordinação. Ela trata especificamente da forma pela qual o racismo, o patriarcalismo, a
79

opressão de classe e outros sistemas discriminatórios criam desigualdades básicas que


estruturam as possíveis relativas de mulheres, raças, etnias, classes e outras. A definição da
autora foi inicialmente utilizado, para compreender de que forma as opressões de gênero, raça
e classe se cruzam e afetam mulheres negras. “O feminismo negro teve importante papel na
sedimentação da interseccionalidade privilegiando as características de gênero e raça para
pensar a experiência da mulher negra” (LIBARDI, 2018, p. 12).
Além disso, a interseccionalidade, enquanto dispositivo teórico-metodólogico, contribui
com veganismo, a partir das experiências vividas por outros grupos submetidos à sistemas de
opressão, nessa direção Jacks e Libardi (2020) salientam que

“a interseccionalidade, originalmente concebido pelo feminismo negro e


incorporado academicamente via a disciplina dos women’s studies, vem se
espraiando em outros campos do saber. Este é um movimento esperado tendo
em vista que a proposta conceitual da interseccionalidade dá vazão a uma
ampla gama de problematizações contemporâneas de ordens epistemológicas,
teóricas, metodológicas e empíricas mobilizadas por perspectivas feministas
da sociologia, antropologia, história, comunicação etc.” (JACKS E LIBARDI,
2020, p. 8-9)

Patricia Hill Collins destaca que a interseccionalidade existe há trinta anos, mas reforça
o consenso de que muito antes de receber o nome de interseccionalidade e ser um conceito,
muitas ideias, ações e ideias já haviam sido realizados aos seus moldes. A interseccionalidade
consiste em olhar para os diversos “marcadores sociais da diferença” , raça, gênero, classe,
sexualidade, entre outros, mobilizando algumas ou entrelaçando todas ao mesmo tempo, com
o intuito de sempre avançar na direção necessária para haver liberdade, justiça social e equidade
para todos, desde as mulheres negras, os LGBTQIA+, os pobres nas comunidades periféricas e
outros indivíduos que se encontram segregados pelas políticas hegemônicas do Estado.
A interseccionalidade tem como um de seus princípios fundamentais o sistema político
comprometido com a igualdade ou com a distribuição equitativa de poder entre todos os
cidadãos. Segundo Collins (2020), se perguntassemos o que é interseccionalidade? As pessoas
responderiam de maneira genérica,

a interseccionalidade investiga como as relações interseccionais de poder


influenciam as relações sociais em sociedades marcadas pela diversidade, bem
como as experiências individuais na vida cotidiana. Como ferramenta
analítica, a interseccionalidade considera que as categorias de raça, classe,
gênero, orientação sexual, nacionalidade, capacidade, etnia e faixa etária –
entre outras – são inter-relacionadas e moldam-se mutuamente. A
interseccionalidade é uma forma de entender e explicar a complexidade do
mundo, das pessoas e das experiências humanas. Essa definição prática
descreve o principal entendimento da interseccionalidade, a saber, que, em
80

determinada sociedade, em determinado período, as relações de poder que


envolvem raça, classe e gênero, por exemplo, não se manifestam como
entidades distintas e mutuamente excludentes. De fato, essas categorias se
sobrepõem e funcionam de maneira unificada. Além disso, apesar de
geralmente invisíveis, essas relações interseccionais de poder afetam todos os
aspectos do convívio social. (COLLINS E BILGE, 2020, p. 20)

Veganistas interseccionais organizando-se dessa maneira fazem oposição as regras de


mercado e buscam pressionar os governos institucionais, representantes políticos por causas
ecológicas, ambientais e veganas. Incomodando grupos políticos expressivos como a Bancada
Ruralistas, as indústrias de alimentos processados, além de acompanharem de perto a aprovação
de leis que regulamentam e autorizam o uso de agrotóxicos. Segundo matéria publicada no
portal G1 do dia 14/01/2021, O Brasil aprovou o registro de 493 agrotóxicos em 2020, sendo a
maioria produtos genéricos, isto é, que se baseiam em outros existentes. É o maior número
documentado pelo Ministério da Agricultura, que compila esses dados desde 2000.
Veganistas interseccionais se filiam à ideologia marxista que tem no seu horizonte a
exclusão de toda e qualquer alienação com relação à produção e ao consumo dos bens, fatores
que impactam politicamente alimentação e a saúde. Esse grupo de veganos estão engajados em
lutas coletivas, na maioria são jovens que se organizam em coletivos ou se associam a outros
movimentos sociais, com o intuito de encontrar intersecções, como exemplo, com o movimento
feminista negro.
Segundo Marx e Engels (1998), à medida que os trabalhadores vão se organizando em
associações, sindicatos e em partidos políticos, sua luta contra os capitalistas vai se
fortalecendo; eles vão adquirindo consciência de sua força e, deste modo, vão se formando
como classe antagônica ao capital. Aqui há uma das dimensões daquilo que Gramsci chamou
de processo catártico: “A estrutura da força exterior que esmaga o homem, que o assimila e o
torna passivo, se transforma em meio de liberdade, em instrumento para criar uma nova
iniciativa” (1975). Os ativistas veganos interseccionais Mota e Santos (2020) defendem que
como revolucionários não devemos esquecer que o principal motor da história
é a classe trabalhadora, portanto, não vamos ter revolução a partir do consumo
ou pela classe média, que inclusive, a partir do consumo de alumínios,
plásticos e outros, não findam a degradação do meio ambiente. Devemos
impulsionar, criar e ajudar coletivos sindicais e de trabalhadores, ações
comunitárias, escolas e outras para que ganhem uma consciência sobre
plantar, colher, refletir sobre a sua própria alimentação e, com isso, podemos
inserir o antiespecismo na população (MOTA E SANTOS, 2020, p. 69)

A seguir apresentaremos, o coletivo Vegano Periférico, representantes da vertente


veganista interseccional. O Instagram do coletivo Vegano Periférico é um perfil inclusivo e
81

abre espaço em suas redes sociais para outros ativistas que representam o veganismo e outras
causas que demandam ações inclusivas, o que na prática acaba proporcionando a
interseccionalidade e o cruzamentos dos diversos marcadores sociais existentes que ilustram e
corroboram com as descrições ao longo desse subcapítulo.

2.3 - Coletivos e ações juvenis na contramão do individualismo neoliberal.

Há fronteiras difusas entre as ideias da organização coletiva e o neoliberalismo. O


coletivismo pensado nos termos, marxista, apagariam as marcas de construção da
individualidade para se integrar no agir e se representar através da coletividade. Porém, nas
convocações na modernidade do agir coletivo, a discursividade apresenta a enunciação da
importância da individualidade de cada participante numa movimentação a direção e da luta de
uma causa em comum. As políticas neoliberais convocam os indivíduos aos seus “selfs”, em se
auto gerir, entretanto, nas camadas mais pobres, estes indivíduos, não se sentem representados.
Percebem que sozinhos, estão amparados pelas políticas sociais do Estado. Assim sendo,
encontram nessa forma organizacional uma maneira de promover-se politicamente. Uma forma
de atuarem e serem representados. A constituição dos coletivos não são necessariamente iguais
a de um movimento social ou de uma ONG. Juridicamente não há uma diretriz para a instituição
de um coletivo, seja por contrato social ou estatuto social. Porém, através de uma pesquisa
empírica é possível perceber, que os coletivos, é uma forma das classes excluídas se
organizarem politicamente. Aguilera (2014) aponta que diversos autores se detêm ao tema que
trata de coletivos e movimentos sociais e nestes estudos ele ressalta duas razões para ocorrer
esses fenômenos nas sociedades,

uma que localiza comportamentos coletivos como resultado do descompasso


nas/com estruturas sociais (Smelser, 1999) e que tem uma orientação
funcionalista marcante e uma segunda orientação que enfatiza o papel dos
sujeitos e suas capacidades no que diz respeito ao contexto em que estão
inseridos, e que isso foi expresso fundamentalmente a partir de diferentes
"focos de análise” para analisar a ação coletiva; seja nos dispositivos “político-
institucionais”, nas capacidades inerentes aos grupos, seja nas mediações
simbólicas e quadros de significados. (2014, p. 13)

Os coletivos, por não serem constituídos juridicamente encontram dificuldades para


financiar os projetos defendidos. No caso do coletivo Vegano Periférico a alternativa
encontrada foi desenvolver um e-commerce vinculado ao site com venda de produtos que
divulgam e auxiliam a causa vegana. Através de uma instituição chamada APOIE-SE, o Vegano
82

Periférico utilizam-se do sistema de crowdfunding para geração de recursos. O crowdfunding é


conhecido popularmente como “vaquinha eletrônica”. Outra questão a ser debatida seria: em
que medida os coletivos com posicionamento anticapitalista, devam se valer de estratégias de
mercado para obtenção de recursos, quando em sua crítica, ideologicamente se posicionam
contra o sistema?
As ações dos coletivos podem ser mais pontuais, sem necessariamente partir de uma
ideologia ou em busca de um resultado de longo prazo. Um coletivo pode se organizar para
protestar contra uma decisão política. Por exemplo, se devemos “usar ou não usar máscaras”
durante a pandemia? Os coletivos podem dialogar com outros movimentos sociais. Quanto ao
coletivo Vegano Periférico, em sua pauta o principal objetivo é atuar e contribuir com o
movimento vegano. Lutam pela desconstrução de ideias enviesadas ou distorcidas do
movimento. Ideias que contribuem para tensionar e debater as práticas e atitudes adotadas pelo
movimento vegano.
O Brasil apesar de ainda não ter se consolidado como uma república efetivamente
democrática, devido às desigualdades sociais que atinge os indivíduos periféricos, obrigados a
viver sob o efeito de um “habitus precário” como foi conceituado por Jessé Souza, segundo
estudos que empreendeu a partir dos conceitos Bourdieausianos.
Assim, nosso objeto de estudo contempla uma sociedade de invisibilizados, oprimidos
nos bolsões da miséria. Entretanto, a demérito da desigualdade e da dificuldade de acesso a
todos os meios de divulgação sejam os hegemônicos ou alternativos, Dunker (2017) observa de
maneira precisa esses fenômenos dos coletivos em nossa sociedade quando salienta:

hoje não há escola que se preze em São Paulo que não conte um coletivo
feminista. Os movimentos LGBTQIA+, as organizações baseadas em
identidades de gênero, de etnia ou de raça tornaram-se uma espécie de
substituto da antiga vinculação sindical, que privilegiava a identidade de
classe. Não é que a classe desapareceu, mas agora ela se compõe com a
paisagem indeterminada de outras dimensões para as quais clamamos
reconhecimento (DUNKER, 2017, p. 16)

Entretanto, as condições políticas são fundamentais para haver espaço para que os
coletivos possam se organizar e manifestar suas reinvindicações. No Brasil havia um ambiente
político democrático onde era seguro e permitido protestos e manifestações sociais. A maioria
das manifestações inicia-se nas mídias sociais e muitas das ações coletivas ou sociais encontram
acolhida e ressonância no espaço midiático hegemônica. No entanto, na contramão desses
direitos outorgados pelas políticas democráticas. Nesse novo governo neoliberal, Bolsonarista,
as políticas de resistência, acabam se tornando de “risco” e de “sobrevivência”. Há muita
83

repressão, violência excessiva, por parte da segurança pública. Principalmente quando são
manifestações de sujeitos periféricos, negros, pobres, LGBTSQIA+ E excluídos, em geral.
Patricia Hill Collins em uma palestra no SESC, no lançamento de seu livro pela Boitempo diz
que em tempos de repressão é necessário fazer política de maneira a sobreviver.
O Vegano Periférico através da coletividade encontrou uma forma de protestar e
disseminar suas ideias. Atuando politicamente em favor dos animais-humanos e não humanos,
interfere, avança e ajudar o movimento vegano, democraticamente, para que novas pautas sejam
pensadas e agregadas ao movimento. Exemplos de conquistas e contribuições do coletivo que
podem ser destacadas, estão relacionadas as questões centrais da interseccionalidade que traz
para o debate as representações de raça, gênero, classe, sexualidades e pessoas em outras
situações de exclusão. Questionamentos e informação com relação à importância da
desconstrução da imagem enviesada do movimento em relação ao consumo vegano que seria
acessível somente para pessoas brancas e ricas. Problematizam a cooptação do movimento por
empresas produtoras de proteína animal, que apresentam em suas linhas de produção produtos
voltados a produção da proteína vegetal, somente para atender e ampliar sua participação no
mercado, sem trazer nenhuma contribuição ao movimento. Sem fazer mudanças estruturais em
suas linhas de produção. Por exemplo: nenhuma modificação nas estruturas para
acondicionamento dos animais, respeitando parâmetros mínimos de melhores condições de
saúde e bem-estar para os animais. Diminuição nas matrizes e fechamentos das fazendas
industriais utilizadas para a criação dos animais, caracterizando o que o mercado define como
“washing vegan”.
Outro ponto está relacionado com a produção das mercadorias nas fazendas industriais
e nos frigoríficos que demandam melhores condições de trabalhos para os funcionários e o
acolhimento das leis trabalhistas. Leis trabalhistas alteradas pelo governo interino do presidente
Michel Temer e diversos avanços que haviam sido conquistados com muito esforço e na última
reforma representaram perdas e um retrocesso para a classe trabalhadora.
Os coletivos juvenis não aderem às práticas de políticas tradicionais nem as
representações e mediações nas mídias hegemônicas, levantamos essa hipótese, talvez seja
devido a um descontentamento ideológico para com as instituições políticas e oprimidos por
uma verdadeira impossibilidade de agir. Desta forma, as redes sociais tornaram-se um caminho
de voz para que coletivo Vegano Periférico articulasse e fizesse política na política, através do
site do coletivo, na produção de conteúdos para o blog ou nas postagens no Instagram/Facebook
e documentário no canal do YouTube.
84

Os jovens da nova geração, por outro lado, parecem membros da primeira


geração nascidos em um novo país. Esta é uma geração cuja empatia com a
cultura tecnológica se faz não só pela facilidade de relacionamento com os
dispositivos audiovisuais e computacionais, mas também pela cumplicidade
cognitiva com suas linguagens, fragmentações e velocidades. E cujos sujeitos
não se constituem a partir de identificações com figuras, estilos e práticas de
antigas tradições que definem a cultura, mas sim de ligações-desconexões
(jogos de interface) com os aparelhos (apud Ramírez, 1995). O que se traduz
em uma elasticidade cultural camaleônica que lhes permite hibridizar e
coexistir com ingredientes de mundos culturais muito diversos. (MARTÍN-
BARBERO, 2017)

Os coletivos são lócus de construção identitária, subjetividades e cultura como aponta


Aguilera (2014). As redes sociais são espaços colaborativos e interseccionais, por observação
empírica é possível identificar nos perfis sociais a circulação de outros coletivos juvenis
veganos. Todos exercendo a coletividade em função de uma luta em comum a “libertação
animal” através do veganismo interseccional. São perfis de coletivos que incluem pautas do
movimento afrovegano, feminismo negro, grupos LGBTSQIA+, sujeitos periféricos de todas
as regiões do país, principalmente norte e nordeste. No coletivo Vegano Periférico a atuação
dos indivíduos está organizada de forma democrática e “horizontal”, onde os direitos e relações
são constituídas por direitos e deveres embasados na equidade. Em outros coletivos essa
administração pode ser estabelecida em um modelo “vertical” — comando centrado na figura
de um líder.

De certa forma, afirma-se que a ação social sempre será o resultado de um


conjunto de processos individuais e coletivos nos quais os sujeitos se tornam
atores sociais a partir de e em relação a outros sujeitos que dão sentido às suas
próprias ações e às dos outros. Essa perspectiva traz a ideia de considerar a
ação coletiva como uma construção que resulta de trocas e fluxos
comunicacionais, afetos e símbolos e significados em um determinado grupo
ou comunidade. (AGUILERA, 2014)

Nessa dimensão, o Vegano Periférico articulou um manifesto num final de semana


no “Bosque de Campinas”. Se reuniram para protestar em favor dos animais que viviam em
cativeiro, neste parque que seria desativado para uma construção imobiliária. O coletivo
protestou e exigiu um tratamento ético e moral com relação ao destino empreendido para os
animais que viviam em cativeiro. Essa retórica discursiva parte da premissa de que “os jovens
adquirem uma posição social, promovida e elogiada pelas instituições, quando se mostram
claramente intérpretes e porta-vozes de uma espécie de 'reserva moral' da sociedade”.
(CERBINO; RODRIGUEZ, 2005, p.114) e “é a partir daí que as contribuições dos jovens
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ganham legitimidade, quando podem ser vistos como "puros" em oposição aos gastos e
"corruptos" da cena social e política do país”. (CERBINO; RODRIGUEZ, 2005, p.114)
Com o advento da pandemia, o coletivo respeitou as regras impostas de distanciamento
social, mas criaram uma alternativa para esses encontros, realizando lives que envolviam
ativistas que aderiram ao coletivo, bem como ativistas de outros coletivos com perfil muito
parecido com o Vegano Periférico. Pessoas jovens agrupadas em função de uma causa,
mulheres negras, pessoas da região norte e nordeste do país, pessoas de regiões periféricas,
movimento pela emancipação de gênero. Enfatizando as observações feitas por Dunker a
respeito da confluência de interesses de grupos invisibilizados ele demonstra uma preocupação
com os avanços efetivos que os coletivos movimentos anseiam com o seguinte pensamento:
“quero crer que a grande novidade desse conjunto de movimentos está em pensar que em nossas
relações mais cotidianas e nossos hábitos mais simples replicam e atualizam relações de poder.”
(DUNKER, 2017, p. 16).
Esses sujeitos periféricos geralmente estão apartados do acesso a uma alimentação
saudável e de baixo custo. Isenta de produtos industrializados e processados muito comum
nessas regiões e de custo elevado para sua grande maioria. Essa constatação é o que chamamos
“deserto alimentar” que voltaremos abordar e explorar de forma aprofundada no capítulo 4
deste estudo.

2.4 - Coletivo Vegano Periférico: dois jovens insurgentes na encruzilhada

O Coletivo Vegano Periférico nasceu da insurgência de dois irmãos, jovens e gêmeos


(Ibejí), que se identificam como brancos e periféricos, que postos na encruzilhada estão
empenhados em produzir conhecimento, tornar a comunicação acessível a outros indivíduos e
alargar a visão sobre o movimento vegano e extender o olhar sobre a importância das hortas
comunitárias nas comunidades (egbé) periféricas.
A partir de um olhar disruptivo, inacabado, saliente e não ordenado sobre a
comunicação, o consumo e aprendizados relacionados ao veganismo. Explorando as
epistemologias de Exu e seus cruzos nas encruzilhadas centrados numa cosmovisão pedagogica
exúlica presentes nesta pesquisa.
Essa atitude articula o desejo de circular o axé e compartilhar os aprendizados. Seja para
respeitar os direitos dos animais não humanos, seja para adotar um consumo político e
consciente, seja para descolonizar e combater o patriarcado, o especismo e o sexismo. Como
86

apresentado, o veganismo tem as suas origens na Inglaterra, em 1944, com Donald Watson, por
isso, mantém fortes traços eurocêntricos e coloniais.
Reis Neto (2019) escreve, “Exu é o orixá da comunicação, da fala e o guardião dos
caminhos, o senhor das encruzilhadas. Para os nagôs, ele é o orixá central da trama da vida e
do sistema místico, pois é o princípio dinâmico do movimento. Exu é quem movimenta o axé
e a própria vida na terra (ayê). Sem Exu não há movimento, sem movimento não há orixá e nem
vida para os humanos” e para Nascimento (2016) afirma, “para as cosmologias iorubás, a
riqueza não pode ser pensada em termos de acúmulo de axé, uma vez que este é dinâmico e
expansivo, não podendo, sob a pena de danos à estrutura da comunidade e de tudo que dela faz
parte, ficar estagnado, o que implicaria em uma ruptura com o movimento, com o devir,
definidor do axé”.
O Vegano Periférico é um perfil vegano que surgiu da iniciativa e da necessidade
financeira de dois irmãos, os gêmeos Leonardo e Eduardo Santos. Moradores do Parque Itajaí,
periferia de Campinas, interior de São Paulo, que através da internet conquistaram milhares de
seguidores. Os irmãos propõem uma desconstrução simbólica e imaginada em torno do
veganismo, que apresenta como um movimento para pessoas ricas, e que só é possível consumir
produtos industrializados e de grandes marcas. Nas palavras de Leornado e Eduardo Luvizetto,
“o maior problema do veganismo é que as pessoas estão olhando pra sociedade de uma forma
industrializada… Na hora de desconstruir, ela não consegue olhar pro veganismo sem imaginar
o produto industrializado vegano, de modo que os produtos industrializados vegano sejam
caros, e as façam concluir que ‘veganismo é caro”. (VEGANO PERIFÉRICO)
Na descrição do perfil nas redes sociais, os irmãos afirmam: “Acreditamos em uma
causa acessível para todos. Não importa onde você mora, importa como você pensa.”

Temos uma enorme vontade de contribuir para um veganismo realmente


popular, revolucionário e que dialogue com todas as classes e as diversas
causas”, diz o texto. “Nós acreditamos num veganismo interseccional, tendo
em vista que tudo está interligado dentro de uma lógica perversa, que é a
principal responsável por toda exploração em nossa sociedade. A nossa luta
não é contra indivíduos, mas sim contra um sistema que é baseado na
exploração de animais não humanos, de animais humanos e do planeta como
um todo. (VEGANO PERIFÉRICO)

Rufino (2019) salienta que “o desafio nos demanda outros movimentos, mirando uma
virada linguística/epistemológica que seja implicada na luta por justiça cognitiva e pela
pluriversalização do mundo. Devemos credibilizar gramáticas produzidas por outras presenças
87

e enunciadas por outros movimentos para, então, praticarmos o que, inspirado em Exu e nas
suas encruzilhadas, eu chamo de cruzo”.
Nesse sentido, lançamos mão da figura de Exu, das narrativas míticas – os itãs e da
sabedoria ancestral do povo de santo para a discussão das possibilidades de construção de uma
pedagogia arteira que dança, ginga, que faz criar a novidade, o riso, o colorido, a arte e que, ao
mesmo tempo, emancipa, leva os sujeitos a serem protagonistas de suas próprias histórias como
nos ensina Freire (2011).
Com o intuito de dialogar com o seu público e facilitar o acesso e o entendimento do
que é o veganismo, os irmãos produziram o documentário “Vegano Periférico”, no dia 1.º de
novembro de 2020, Dia Mundial do Veganismo. Produzido pela Habitante Filmes e dirigido
por Rauany Farias e distribuído pela plataforma Mídia Ninja. A divulgação do lançamento do
filme aconteceu nas mídias sociais Instagram/Facebook e a veiculação na plataforma YouTube.
O documentário foi todo gravado e editado com câmera subjetiva e procura relatar o
dia-a-dia dos irmãos. Com depoimentos pessoais e de seus familiares (mãe, tia e a namorada de
um dos irmãos). Mostram suas compras nos hortifrutis, como economizar escolhendo frutas e
legumes da época, como preparam receitas veganas nas associações do bairro e apresentam uma
comunidade local engajada com o projeto de hortas comunitárias e como são impactadas pela
falta de políticas públicas. Em Campinas foi promulgada uma lei que garantiria o assentamento
de 1000 famílias. Estas famílias receberiam um lote de 500 m2 e R$ 3.300,00 por família para
produção de verduras e legumes orgânicos, mas, a lei não foi cumprida, apenas 12 famílias
foram assentadas e a verba destinada ao projeto foi corrompida.
Para nossos objetivos é importante demonstrar como as pessoas se organizam, e mesmo
sem ajuda técnica e financeira dos órgãos competentes (INCRA), e na fala dos personagens
envolvidos eles destacam os ganhos por este aquilombamento. Melhorou a saúde nutricional,
psicológica e mesmo sem ajuda do poder público, foram premiados pelo excelente trabalho
desenvolvido.
Nesse sentido, Reis Neto (2019) vai citar o pensamento de Beatriz Nascimento (1985),
por meio do conceito de quilombo, compreendendo-o como múltiplas formas de resistência do
povo negro e, assim, olhamos para a proposição de uma pedagogia exúlica como um signo de
luta e resistência. Por pedagogia exúlica, então, estamos tratando e nomeando outro modo de
aprender e ensinar. Nilma Lino Gomes aponta que a produção do conhecimento do Movimento
Negro, da negra e do negro sobre si mesmos e a realidade que os cercam não têm origem nos
bancos acadêmicos nem nos meios políticos. Isso surgiu na periferia, na experiência da pobreza,
na ação cotidiana, nas vivências sociais, na elaboração e reelaboração intelectual de sujeitos,
88

negros e negras, muitos dos quais nem sequer foram (e alguns ainda não são) reconhecidos
como pesquisadores, intelectuais e produtores de conhecimento. (GOMES, 2019)

Veganismo, veganismo mesmo, é um ato político antiexploração; um ato


político antiespecismo… Antes de qualquer coisa, ele é um posicionamento
político, mesmo. Não tem a ver só com alimentação, dieta, etc. Veganismo
tem a ver com exploração animal. Quando você olha pra exploração animal,
você vê que é o capitalismo que trata os animais como objetos, ensinam a
população que é assim que funciona e sempre foi assim, e nós nos opomos a
isso. Vai muito de jogo político não olhar pra produção orgânica, pra
agricultura familiar… Porque não dá tanto lucro. Tal como não dá tanto lucro
se preocupar com o planeta, com a floresta, com o que você tá plantando…
Vai muito de jogo político, também, não olhar pra essas produções orgânicas,
agricultura familiar, porque não dá tanto lucro. (VEGANO PERIFÉRICO)

Eles narram as dificuldades de acesso à informação e como essas informações chegam


às pessoas da periferia. Para Reis Neto (2019), “[...] a oralidade ultrapassa então a noção
clássica de interação do diálogo quando trazem à cena os ancestrais, os tempos imemoriais. É
o diálogo encarnado nos sujeitos vivendo sua experiência espaço-temporal coletivamente,
na/pela alteridade. Além disso, a convivência com outras linguagens, como a gráfica, plástica,
compõe a produção da visão de mundo e dos modos de vida dos povos afro-ameríndios”.
Como pontos fundamentais os irmãos destacam que seriam as lutas e as diferenças de
classe, eles buscam aproximar a leitura das ideias marxistas. Eles tecem uma série de críticas à
mídia, pela forma como abordam o tema veganismo. “As classes privilegiadas têm acesso às
informações sofisticadas e a mídia constrói uma ideia de veganismo a partir de produtos
industrializados, caros e que não atendem a demanda da periferia”.

Se você ligar a TV agora, você vai ver toda hora na sua cara: consuma carne,
consuma leite, consuma ovos, consuma isso, consuma aquilo. Se você desligar
a TV e pegar um jornal, vai tá no jornal: promoção de carne, filé, churrascaria;
Você desliga e pega o celular, vai tá publicidade lá: ‘melhor churrascaria de
Campinas’. Aí você vai para rua e pega o busão: atrás do busão tem o quê?
McDonald’s, Burguer King… Tá jogando na sua cara toda hora: carne, leite,
ovos, mel, consuma mais queijo, mais queijo… Em todo lugar se fala em
carne, leite e ovos. E ninguém fala nada… Aí quando o vegano questiona essa
indústria, que é massacrante e que fala 10.000 vezes mais do que um vegano
fala, que toda hora tá colocando na tua cara em todos os veículos de mídia, o
cara é tratado como chato. Por quê? Porque tá questionando o modelo social.
Quando você questiona, você se torna chato. Não por você ser chato, mas
porque as pessoas não querem pensar sobre isso, elas não querem pensar sobre
o que elas tão fazendo. Aí elas criticam e te julgam. (VEGANO
PERIFÉRICO)

Criticam a linguagem rebuscada, formal, que quase sempre não é decodificada por
pessoas mais simples, gerando uma incomunicabilidade com os indivíduos da periferia. Para os
89

irmãos, os ativistas do movimento vegano também deveriam ter o cuidado de facilitar a


acessibilidade da informação e serem menos violentos e complicados ao se comunicarem.
Criticam o uso de palavras em inglês, nas camisetas dos ativistas e as imagens
veiculadas de produtos industrializados, pelas grandes marcas, que por uma tendência de
mercado, tem lançados diversos produtos vegano, sem o menor comprometimento com a causa.
Como exemplo seriam os hambúrgueres, nuggets, salsichas e outros produtos a base de plantas
(plant-based), produzidos por grandes frigoríficos especializados em processar a proteína
animal.
Nesse contexto, decolonialidade como um conceito oferece dois lembretes-chave:
primeiro, mantém-se a colonização e suas várias dimensões claras no horizonte de luta;
segundo, serve como uma constante lembrança de que a lógica e os legados do colonialismo
podem continuar existindo mesmo depois do fim da colonização formal e da conquista da
independência econômica e política. (MALDONADO- TORRES, 2019).
Para Gomes (2019), só é possível descolonizar os currículos e o conhecimento se
descolonizarmos o olhar sobre os sujeitos, suas experiências, seus conhecimentos e como os
produzem. Portanto, a compreensão de que existe uma perspectiva negra decolonial brasileira
significa reconhecer que as negras e os negros como sujeitos e seus movimentos por
emancipação como produtores de conhecimentos válidos que não somente podem tensionar os
cânones, mas também o indagam e trazem outras perspectivas e interpretações.
Fora dos espaços acadêmicos e a partir de uma juventude preta ativista e engajada, das
periferias do Brasil, nascem espaços de fala e culturas insurgentes e o Veganismo Periférico é
um exemplo disso.
Corroborando com o que nos diz Nascimento (2016),

“Exu é um orixá de caminhos, mas, também do movimento de caminhar. Ele


não é apenas o mensageiro, mas também o movimento de comunicar a
mensagem. Ele não é apenas a figura da encruzilhada, mas também o
movimento que se faz diante da multiplicidade de caminhos que a
encruzilhada faz ver, nos possibilitando um deslocamento que pode nos
encaminhar para vários lugares e um movimentar que nos faz ser de outros
modos”.

A periferia é um nicho de invisibilizados, com muitas restrições de acesso a


informação. Muitos lares não têm computador e embora o smartphone seja o principal
dispositivo de acesso à internet, segundo a ONU, representada pelo Centro Regional de Estudos
para o Desenvolvimento da Sociedade da Informação (www.cetic.br) mostrou por meio da
pesquisa TIC Domicílios de 2017, que enquanto 99% da chamada classe A goza de acesso
90

irrestrito à internet, as classes C e D estacionam-nos 30%. Racismo institucional praticado por


instituições e comprovado por números, dados e estatísticas. Acontece em lugares que os negros
são marginalizados – trabalho, educação, economia. Para Torres-Maldonado (2019)
colonialidade é uma lógica que está embutida na modernidade, e decolonialidade é uma luta
que busca alcançar não uma diferente modernidade, mas alguma coisa maior do que a
modernidade.
Diante desta perspectiva, são muitas as dificuldades de acesso ao conhecimento de
como as mercadorias que consomem são produzidas. O que as tornam ignorantes com relação
ao sofrimento que os animais não humanos são submetidos. Regina Luvizetto, Mãe do irmãos,
diz o seguinte: “Se eu vejo matar animais, eu não como. Se eu começar a assistir aos vídeos eu
não vou mais comer carne. A informação pra nós é totalmente precária”. Nas narrativas da mãe
e da tia dos gêmeos trazem duas informações muito interessantes de serem observadas. Primeiro
o desinteresse delas de saberem como são produzidos os alimentos que elas consomem e o outro
muito óbvio o questionamento porque as empresas não mostram suas linhas de produção. Os
irmãos fazem a seguinte comparação: “porque as empresas de chocolates mostram como os
chocolates são produzidos e o mesmo não acontece com os frigoríficos”.
Por fim, colocaremos no cruzo outros assuntos para serem debatidos, onde as
epistemes exúlicas também possam ser aplicadas. Temas que precisam ser desconstruídos e
descolonizados, (bio)políticas, o agenciamento das instituições que, através da educação, da
medicina, da saúde e da nutrição, submetem corpos negros a uma disciplina, que promove
diversos prejuízos de ordem física, psicológica e cultural. Nos próximos capítulos,
trabalharemos com nosso corpora, o documentário Vegano Periférico e as postagens veiculadas
no Instagram do coletivo. a seguir apresentamos nossos procedimentos e protocolos de análises.
91

3 - OS DISCURSOS POLÍTICOS NO VEGANISMO INTERSECCIONAL

Este capítulo é dedicado aos procedimentos e análises dos discursos políticos do


veganismo Interseccional produzidos pelo coletivo Veganismo Periférico. Nesse sentido,
apresentaremos a dimensão protocolar, os corpora selecionado, as análises, por fim, relataremos
os resultados encontrados.

3.1 – Procedimentos e análises: observando os discursos políticos nas redes de


discursividades do coletivo Vegano Periférico.
A seleção dos corpora seguiu critérios teóricos/metodológicos da ADF, tendo em
perspectiva que a análise de discurso "se interessa por práticas discursivas de diferentes
naturezas: imagem, textos, som, letras, etc."(ORLANDI, 2020, p. 60). Assim, seguiremos o
seguinte protocolo em nossas análises dos corpora:

1. Na primeira etapa, buscaremos ter contato com as diferentes práticas discursivas


encontradas no documentário e nas postagens do Instagram, (textos, sons e imagens,
etc.) para ver a discursividade e empreender um primeiro lance de análise de natureza
linguístico enunciativa — para considerar o esquecimento “desfazendo assim a ilusão
de que aquilo que foi dito só poderia sê-lo daquela maneira”. Desnaturalizar a relação
“palavra coisa” (ORLANDI, 2020, p.76). E Orlandi complementa dizendo que

o objeto discursivo não é dado, ele supõe um trabalho do analista e para se


chegar a ele é preciso, numa primeira etapa de análise, converter a superfície
linguística (o corpus bruto), o dado empírico, de um discurso concreto, em um
objeto teórico, isto é, um objeto linguisticamente de-superficializado,
produzido por uma abordagem analítica que trata criticamente a impressão de
“realidade” do pensamento, ilusão que sobrepões palavras, ideias e coisas.
(ORLANDI, 2020, p. 64)

2. Na segunda etapa, partiremos para a análise relacionando as formações discursivas,


delineadas na interpretação de sentidos observados à formação ideológica que regem
essas nas relações com o objetivo principal problematizar os aspectos biopolíticos, a
partir dos discursos políticos presentes no ativismo e no consumo vegano,
considerando as inter-relações com os discursos disciplinares relativos ao alimento e
à saúde.
92

Quadro 1: gráfico de análise das inter-relações dos aspectos biopolíticos e discursivas.

Fonte: elaborado pelo autor

3. Na terceira e última etapa, observaremos o interdiscurso (a memória) discursiva, os


efeitos metafóricos estabelecendo a relação entre discurso e língua, objetivando na
análise a leitura da articulação entre estrutura e acontecimento.

Nas três etapas estabelecidas como procedimento de análise poderemos trabalhar e


observar os efeitos da língua na ideologia e a materialização desta na língua e apreender a
historicidade do texto, conforme nos orienta (ORLANDI, 2020, p. 66), porque

fatos vividos reclamam sentidos e os sujeitos se movem entre o real da língua


e o da história, entre o acaso e a necessidade, o jogo e a regra, produzindo
gestos de interpretação. De seu lado, o analista encontra, no texto, as pistas
dos gestos de interpretação, que se tecem na historicidade. Pelo seu trabalho
de análise, pelo dispositivo que constrói, considerando os processos
discursivos, ele pode explicitar o modo de constituição dos sujeitos e de
produção de sentidos. Passa da superfície linguística (corpus bruto, textos)
para o objeto discursivo e deste para o processo discursivo. Isto resulta, para
o analista com seu dispositivo, em mostrar o trabalho de ideologia.

Seguindo nessa direção, assistimos ao documentário lançado no “Dia Mundial do


Veganismo”, por diversas vezes, para familiarizarmos com o conteúdo do material. Depois,
partimos para a decupagem dos textos e das imagens do material. Através do software (Free
Video to JPG Converter), selecionamos os fotogramas para podermos analisar as imagens
individualmente, quadro a quadro, e depois reagrupadas, conforme as necessidades dos
93

movimentos da análise. Tivemos a preocupação durante as análises que no ordenamento das


imagens, não perdêssemos a construção da narrativa, produzida pelos autores. Em outra
investida sobre o material, decupamos os textos, transformando-os em extratos a serem
analisados. Extraímos falas dos irmãos Luvizetto, diálogos com os familiares, falas dos
entrevistados, locuções em off , entrevistas feitas com pessoas nas ONGs e associações em
defesa dos direitos dos animais.
Na observação das postagens do Instagram e do Facebook percebemos que a produção
textual e visual eram exatamente iguais, nessa perspectiva, reiteramos que decidimos trabalhar
exclusivamente com os posts do Instagram. Realizamos a leitura de 476 postagens, das quais,
após serem analisadas selecionamos 64 posts, que contemplavam a temporalidade — janeiro
de 2018 a janeiro de 2021— período suficiente para encontrarmos os elementos necessários
para nossos objetivos. Analisaremos textos, sons, imagens, emojis e hashtags, elementos
inerentes à plataforma. O que nos permitirá complementarmos as análises lançadas sobre o
documentário, ampliar e confrontar os resultados encontrados para os objetivos da nossa
pesquisa. A coleta das postagens foi feita manualmente, bem como a sistematização, importante
frisar porque, dependendo da metodologia a ser empregada, pesquisadores utilizam-se de
recursos eletrônicos (softwares e aplicativos) para a coleta de textos, imagens, tabulação dos
dados, bem como uma pré-avaliação qualitativa das interações discursivas. Nos posts que
selecionamos, o foco principal para analisar foram os textos e as imagens, entretanto,
apresentamos algumas interações realizadas na plataforma, a saber: os números de likes,
números de mensagens recebidas e o número de semanas da publicação. Apresentamos também
o nome de quem realizou a publicação, a maioria das publicações foi feita pelo Vegano
Periférico, entretanto os irmãos Luvizetto têm como proposta editorial disponibilizar o espaço
para outros ativistas veganos, transformando o perfil do coletivo um espaço colaborativo e de
ativismo para diversas pautas sociais.
Os extratos selecionados foram transcritos exatamente como redigidos pelos sujeitos,
o que nos permitiu observar as dinâmicas sociais, as relações de poder e sentidos estabelecidos,
na formação de redes discursivas que agrupamos por categorias:

1. Consumo político/consciente – postagens que trazem discursos políticos


relacionados às políticas públicas ou inerentes ao consumo consciente, mirando
cuidados com o meio ambiente e ao consumismo, por exemplo: “Pra gente é um tanto
incoerente comer um prato colorido, sem nada de origem animal, e concordar com
políticas de extermínio, com um político genocida, machista, autoritário, que apoia
94

rodeio, caça, exportação de animais vivos, apoia o genocídio da população indígena e


da população negra, promove grilagem e desmatamento, que está sendo extremamente
negligente em relação ao coronavírus, que está matando milhares de brasileiros.”

2. Critica social – postagens que se entrelaçam com os discursos políticos, entretanto,


na discursividade encontramos críticas dirigidas a problemas sociais e de
(sub)cidadania, por exemplo: “Cê tem que falar a língua do ignorante, porque ele foi
ignorantizado. Quando eu tô diante de um cara desdentado, analfabeto, eu não tô diante
de um inferior, eu tô diante de uma vítima de crime social, a sociedade é criminosa,
então se eu tive meus direitos respeitados, eu tenho uma dívida com essa galera, eu
não tenho superioridade.” Texto: Eduardo Marinho publicado no Instagram do
coletivo.

3. Interseccionalidade – postagens que apresentam o discurso interseccional do


movimento, que abre espaço para o cruzamento dos diversos marcadores sociais: raça,
classe, gênero. Com destaque para as mulheres e feminismo negro e os LGBTQIA+,
por exemplo: “Ensino veganismo popular, antirracista e acho que até anti-LGBTfóbico
já que faço questão de mostrar quem sou, o SAPAvegana”. Texto: Luciene do perfil,
@sapavegana publicado no Instagram do coletivo.

4. Saúde – postagem que apresentam discursos veganos em embate contra os discursos


alimentares “hegemônicos” e “disciplinares” proferidos na ordem discursiva por
médicos e nutricionistas, por exemplo: “Ela (médica) olhou o hemograma, e surpresa
com o resultado disse: "Aqui você não era vegano né?! (kk) Nossa, a sua B12 estava
excelente, nível de ferro e vitamina D também, excelentes". Ela pediu Ferro, Cálcio,
B12, VIT D, Potássio, Sódio, exames pro fígado e pros rins.”

Nessas redes discursivas analisaremos os diversos elementos, mirando o interdiscurso e


as produções da linguagem (paráfrase e polissemia, e os efeitos metafóricos).
Desse modo, estabelecemos categorias de observação e análise conforme os interesses
estabelecidos na constituição dos corporas e mostraremos que as decisões tomadas foram
adequadas aos pressupostos teóricos/metodológicos apontados a partir de perspectivas de
Orlandi (2018) e Maingueneau (2015) para o meio digital. Segundo Orlandi (2017, p. 69)
95

assevera que “as novas tecnologias, embora sejam tecnologias da escrita, atravessam a relação
do sujeito com a linguagem de maneira particular”.
Outro ponto a ressaltar é que no projeto de pesquisa, propusemos analisar os posts sob
uma perspectiva epistemológica decolonial, porque haveria elementos específicos a serem
contemplados. Assim, nos apoiamos dos estudos da (ADC) — Análise de Discurso Crítica, com
estudos desenvolvidos no livro organizado por Viviane de Melo Resende, “Decolonizar os
estudos críticos do discurso”. Nosso esforço se dirige à decolonialidade desse campo, assim se
direcionando a três caminhos convergentes:
decolonizar o saber, no sentido de lograr criticar teorias e métodos, e
compreender, como propõe o giro decolonial, que não há conhecimento
universal (isso inclui, obviamente, o conhecimento acadêmico sobre a
linguagem); decolonizar o poder da ação criativa no esforço de superação
desse conhecimento universalizante, isto é, assumir a potência de criação
teórica e metodológica local, especialmente por meio do constante questionar
da separação disciplinar e suas imposições; e decolonizar o ser, fazendo uso
estratégico desse espaço paradoxal, o que carrega a potencialidades da
comunhão de saberes, incluindo também o conhecimento comum.
(RESENDE, 2019, p. 20)

A seguir, analisaremos o documentário “Vegano Periférico”, apresentamos uma


descrição sobre o gênero documental, analisamos imagens e textos extraídos do material.

3.2 - Documentário Vegano Periférico: acontecimento discursivo, produção de sentido e


interpretações
O documentário Vegano Periférico foi lançado no “Dia Mundial do Veganismo”
(01/11/2020), às 20h, no canal Mídia Ninja, no YouTube, o material tem 45 minutos de duração.
Após o lançamento o documentário foi incorporado ao site institucional do coletivo, um dos
canais de comunicação do Coletivo “Vegano Periférico” com seu público e fragmentos do
material estão sendo divulgados nas redes sociais Facebook e Instagram. O coletivo se utiliza
dos meios digitais para interação com o seu público, tendo as mídias sociais como principal
canal de divulgação. Os irmãos Luvizetto, por meio do trabalho feito nas redes sociais e com a
produção do documentário, conseguiram dar visibilidade à causa vegana e circular o discurso
político vegano na mídia hegemônica (mídia impressa), com matérias e entrevistas publicadas
nas revistas TRIP (Brasil) e na mídia internacional WTLF — Where the Leaves Fall Magazine
(Inglaterra).
96

No projeto de pesquisa propusemos aplicar a análise ADF com uma mirada nos
Estudos Decoloniais, como conduta geral, aos três eixos de estudos definidos nesta pesquisa
que contemplam — A) Comunicação e Consumo, B) Veganismo e Decolonialidade e C)
Política e Biopolítica. E nesta perspectiva, identificaremos os discursos políticos no veganismo
interseccional, através das práticas comunicacionais do coletivo Vegano Periférico:
documentários e mídias sociais. E a partir de conceitos importantes da ADF: sujeito,
interdiscurso, linguagem e ideologia. Retomando a definição da Orlandi (2020), “a análise de
discurso visa compreender como os objetos simbólicos produzem sentidos, assim os próprios
gestos de interpretação que ela considera como atos no domínio simbólico, pois ele intervém
no real do sentido” (ORLANDI, 2020, p. 24).
Íniciarmos a nossa análise, compreendendo que há dois gêneros discursivos a serem
analisados – o gênero documental e o gênero ativista –, na enunciação dos irmãos Luvizetto.
O documentário, material artístico estético e cultural, assemelha-se à estética
cinematográfica. Entretanto, o documentário apresenta particularidades e têm “por função
revelar-nos (aos intervenientes e aos espectadores) o mundo em que vivemos” (PENAFRIA,
2001, p. 7) e possibilita um acontecimento discursivo. Para Penafria (2001), um documentário
pauta-se por uma estrutura dramática e narrativa, que caracteriza o cinema narrativo.

A estrutura dramática é constituída por personagens, espaço da ação, tempo


da ação e conflito. A estrutura narrativa implica saber contar uma história;
organizar a estrutura dramática em cenas e sequências, que se sucedem de
modo lógico. A suportar tudo isto deve estar uma ideia a transmitir. Essa ideia
a transmitir constitui a visão do realizador sobre determinado assunto.
Considerações acerca do presente ou do passado são comuns nos
documentários. (PENAFRIA, 200, p. 2)

Apoiando-se nas definições da Penafria (2001), que aproxima a produção de


documentários ao cinema, propomos usar o conceito de autorrepresentação trabalhado e criado
por Welket Bungué (2020), sendo que no documentário vegano periférico os irmãos Luvizetto
são os protagonistas na narrativa do material e se autorrepresentam, ainda que se utilizem de
outros recursos inerentes à linguagem documental, com a participação de entrevistados comuns,
entrevistados com autoridade sobre o tema abordado, nesse caso, o depoimento de um
nutricionista e ex-pesquisador do EMBRAPA, para abordar o tema relativo às hortas
comunitárias, e assim descreve Mombeli e Tomain (2014),
um documentário pode ser composto de várias vozes que se manifestam
através das entrevistas, das fotografias e imagens de arquivo, das imagens
contemporâneas, da voz over, no entanto, ele sempre irá constituir uma voz
própria, a partir da conjunção dessas vozes, que irão produzir um significado
97

que traduz o ponto de vista, apresentando o argumento ou defendendo uma


causa do cineasta. Segundo Nichols, trazer vozes de entrevistados é uma
forma de legitimar a voz do filme, uma espécie de estratégia para que a voz
do documentário não exerça um tom autoritário. (MOMBELLI; TOMAIM,
2014, p. 7)

Feitas essas considerações, voltemos às ideias de Welket Bungué, um multiartista


guineense-português, em cujo trabalho aborda as afrodiásporas, trânsitos, novos espaços de
poder, (neo)colonialismos, novas fronteiras físicas e culturais, corpos marginalizados e
políticos, escolhas estéticas, perspectivas globalizantes e o cinema. Bungué elaborou os
conceitos de autorrepresentação e corpos periféricos, relacionados com suas experiências nos
diversos lugares por onde passou e morou (Guiné-Bissau, Portugal, Brasil, Cabo Verde, França,
Alemanha). Bungué propõe a desconstrução da ideia de “periférico”, indicando que o sujeito
periférico consegue transitar por diversos espaços e perceber diferentes perspectivas em um
mesmo contexto. No capítulo cinco, exploraremos a ideia de desconstrução do sujeito
periférico, mas, a seguir, apresentamos a autorrepresentação como uma atitude cívica e artística
diante do mundo. E assim, Bungué (2020) conceitua:

a autorrepresentação, nesse sentido da atuação, vem justamente dizer: vamos


atuar, vamos participar dessas histórias contadas por nós, autores-performers.
Uma vez que a nossa imagem, o nosso corpo, a nossa voz e o nosso
conhecimento vão imbuir de vitalidade essas personagens, vamos capacitar o
personagem com um tipo de percepção e subjetividade que tenha, na sua
origem, esse sentimento de liberdade, de anti-colonialismo e de existência.
(BUNGUÉ, 2020, p. 310)

No documentário, os irmãos Luvizetto não estão construindo um personagem ficcional,


mas é possível entendermos como sujeitos se autorrepresentando e nessa perspectiva o conceito
de Bungué nos auxilia quando ele diz que

A autorrepresentação, enquanto conceito e atitude, é uma forma de


desconstruir preconceitos, de empoderar vozes vulnerabilizadas e de entender
o mundo sob uma perspectiva mais livre, onde nossa participação, onde quer
que seja, é feita a partir de um olhar com propriedade sobre as coisas nas quais
nós intervimos, sobre as temáticas, sobre a nossa agenda política comunitária
e que também afeta esta comunidade global da qual fazemos parte.
(BUNGUÉ, 2020, p. 310)

Após considerarmos as particularidades do gênero documental, Identificamos o gênero


discursivo ativista do coletivo tendo os irmãos como sujeitos do corpus a ser analisado, ora na
posição-sujeito-ativistas/periféricos, numa intricada inter-relação interseccional dos
marcadores sociais – raça, gênero, classe, sexualidade, etc.
98

O documentário enquanto objeto artístico, se torna materialidade e por sua vez um


registro de memória e também intervém numa rede sentidos e siginificados . O lançamento
estrategicamente planejado para a data comemorativa 1/11/2020 — Dia Mundial do
Veganismo, produz um efeito simbólico cercado de ritualidade, história e historicidade
(inscrição no moneto histórico), além documentar o acontecimento. (ORLANDI, 2017, p. 59).
Como assevera Penafria (2001),

A partir do momento em que se decide fazer um documentário, isso constitui


já uma intervenção na realidade. É pelo fato de selecionar e exercer o seu
ponto de vista sobre um determinado assunto que um filme nunca é uma mera
reprodução do mundo. É impossível ao documentarista apagar-se. Ele existe
no mundo e interage com os outros, inegavelmente. O fim último é apresentar
um ponto de vista sobre o mundo e, o mais das vezes, mostrar o que sempre
esteve presente naquilo para onde olhamos, mas que nunca vimos.
(PENAFRIA, 2001, p. 7)

O lançamento ficará registrado na memória do coletivo e de seus seguidores e


sendo uma intervenção no tecido social identificaremos os discursos políticos produzidos,
considerando as condições de produção, atentando-se para os interdiscursos, efeitos da
linguagem delineados pelas ideologias.

Imagem 11: fotogramas, documentário Vegano Periférico


Fonte: https://www.youtube.com/watch?v=kr98MSULN9g

O lançamento do documentário foi feito com um “post convite” a todos que integravam
a rede social do coletivo, com data, horário e local marcado. No dia 1/11/2020, às 20h no canal
Mídia Ninja no YouTube, Para além do momento histórico, Orlandi (2017) aponta que

o documentário busca a memória (dos sujeitos) que, ao mostrar/ dizer/


significar/ ele põe na história. Ele faz “acontecer” uma versão (trabalho do
efeito metafórico, deriva). O documentário é um acontecimento discursivo
que faz com que algo apareça como acontecimento. Ele constrói o
acontecimento de que se fala. E o que fala é um efeito de presentificação
(atualidade) produzido, como disse, pelo jogo do interdiscurso (memória
99

discursiva) e a memória institucional (a de arquivo) postas em contradição. E,


por este mesmo gesto, ele produz um passado. (ORLANDI, 2017, p. 59)

Apesar de não estarmos ainda, considerando nessas reflexões os discursos políticos, o


lançamento do documentário instaura “o político” para o movimento vegano interseccional,
articulado pelo coletivo Vegano Periférico. E recorrendo às palavras da Orlandi (2017) com
relação à definição do político que cita Pêcheux (1975) nos diz:

o político, ou melhor, o confronto do simbólico com o político como, diz M.


Pêcheux (1975), não está presente só no discurso político. O político, tal como
pensamos discursivamente está presente em todo discurso. Não há sujeito,
nem sentido, que não seja dividido, não há forma de estar no discurso sem
constituir-se em uma posição sujeito e, portanto, inscrever-se, em uma ou
outra formação discursiva que por sua vez é a projeção da ideologia no dizer.
As relações de poder são simbolizadas e isso é o político. (ORLANDI, 2017,
p. 55)

Partindo da compreensão de que o documentário é um acontecimento discursivo,


temos a materialidade da língua na discursividade do arquivo (apud J. GUILHAMOU E D;
MALDIDIER, 1994).
A memória discursiva, o interdiscurso, como não cansamos de repetir, é
irrepensável. E o documentário, quando recorta, sem o saber, essa memória
em algum ponto, produzindo um acontecimento, não “representa, produz um
efeito, inserido por seu gesto a memória em sua atualidade. E o que essa
atualidade assim produzida e sujeita a equívoco, como em todo
acontecimento? Um/esse efeito. Uma formulação. (ORLANDI, 2017, p. 57)

Extrato I
Movimentos sociais... Karl Marx. Para Marx o trabalho que enfrentamos todos os dias tem
como objetivo gerar luco ao capitalista. Toda a produção é organizada com base nesse
objetivo. Porém, os trabalhadores ficam apenas com uma parte da produção.a outra parte é
exatamente o lucro. Você já se perguntou o porquê desse tipo de produção? Quais são os
mecanismos de organização do trabalho para que a produção seja sempre maior? Como o
empregador controla o trabalho dos empregados? Já pensou na forma como os trabalhadores
produzem e no que eles produzem? Reflita sobre alguns aspectos da organização do seu
trabalho ou do trabalho de pessoas de sua família.

O documentário inicia com os irmãos, juntos, lendo um livro de ensino médio.


Entendemos que a contextualização marca a crítica ao ensino de baixa qualidade, para em
seguida explorar ao longo da narrativa os sentidos referentes a falta de informação e a falta de
preparo crítico e a alienação dos sujeitos. Realidade que produz sujeitos vítimas de um sistema
escolar e informações precárias, principalmente sem condições adequadas para tomar decisões
de consumo e participar das decisões políticas.
100

Imagem 12: fotogramas, documentário Vegano Periférico

Um segundo sentido atribuído seria contextualizar o veganismo e o ato de comer de


caráter político, precisamente envolveria a luta de classes, assim, enunciado pelos veganos
interseccionais. O conceito de alienação em Marx aponta para o caso em que o objeto produzido
pelo trabalhador aparece com estranho e independente a ele. Alheio a si mesmo.
Como sabemos, o sistema capitalista transforma o trabalhador em
mercadorias, ao privar o trabalhador daquilo que ele produz. Marx diz que a
alienação do trabalhador no seu produto significa só que o trabalho se
transforma em objeto, assume uma existência externa, mas que existe
independentemente, fora dele e a ele estranho, e se torna em poder autônomo
em oposição a ele. Ao criar algo fora de si, o sujeito se nega no objeto criado.
A alienação no trabalho é gerada na sociedade devido à mercadoria. Há
ruptura do indivíduo com seu próprio destino. O capitalismo é uma relação
social estabelecida historicamente, caracterizada pela compra e venda da força
de trabalho. Nesta relação, como se disse, já, em abundância, o homem torna-
se uma mercadoria. Assim, a alienação é uma relação contraditória do
trabalhador com o ato de produção, um processo de objetivação tornando o
homem estranho a si mesmo, aos outros homens e ao ambiente em que vive:
a apropriação surge como alienação e a alienação como apropriação diz J. C.
da Silva (2005), retomando Marx (2002). (ORLANDI, 2017, p. 216)

Na sequência, a cena corta para uma caminhada na rua, inserindo e contextualizando


seus corpos na lógica da cidade. A cena mostra, os irmãos de bermudas, chinelos de borracha
sem explicitar marcas e mostra uma visão panorâmica do local onde habitam, ao final do
documentário utilizam as mesmas iamgens, bermudas e chinelos de dedos caminhando pelas
101

ruas da “quebrada”. Pensando discursivamente o espaço citadino e a comunidade em sua


materialidade, temos o espaço como lócus de interpretação, onde esses corpos passam a
enquadrar fenômenos, e se transforma em espaço de interpretação, tem sua materialidade na
qual se confrontam o simbólico e o político. (ORLANDI, 2017, p. 200). O corpo dos sujeitos
está atado ao corpo da cidade, e são significados por essa ligação. (ORLANDI, 2017, p. 200).
Nessas reflexões e seguindo os estudos da Orlandi, descrevemos a cidade significada pelo
urbano. A cidade não representada pelo o seu estado real, mas uma cidade imaginada,
subjetivada pela interferência urbana administrada pela gestão pública. Caracterizando-se pela
carência, ausências e abandono, construíndo o sentido pejorativo para o “periférico”. “O urbano
se sobrepõe à cidade e esta é identificada com o social, isto é, as relações sociais são hoje, muito
frequentemente, consideradas como o mesmo que relações urbanas”. (ORLANDI, 2017, p.
201), daí para concluir que

este sujeito citadino o é nos termos em que se constitui como forma sujeito
histórica, ou seja, capitalista. Na perspectiva discursiva, isso significa que este
sujeito resulta da interpelação do indivíduo em sujeito pela ideologia. Este
sujeito, ou forma sujeito histórica, assim constituída, enquanto sujeito
capitalista, é en-formada, se sustenta pelo jurídico. Temos aí um sujeito de
direitos e deveres, um sujeito ao mesmo tempo, livre, dono da sua vontade, e
responsável. (ORLANDI, 2017, p. 201)

Ao longo do documentário, chamam o local onde moram de comunidade e por vezes


mais popularmente como “quebrada”. Casas enfileiradas, ruas de terra, becos, vielas, esgotos a
céu a aberto, cachorros circulando pelas ruas, abandono e destrato com animais, construções
não concluídas, muitas vezes com a alvenaria à vista. Em outros quadros do documentário,
percebemos que as casas possuem grandes nas janelas, portões que cobrem a fachada toda, para
proteger a casa das ruas. Um jeito seguro e garantir que as casas não estejam vulneráveis a
violência das ruas. Nota-se a lógica perpetuada, desassistência das regiões periféricas pelo
poder público – (o Estado brasileiro). Concordamos com a Orlandi que descreve a cidade como
um espaço significante, investido de sentidos e de sujeitos, produzidos em uma memória.
(ORLANDI, 2017, p. 205)
102

Imagem 13: fotogramas, documentário Vegano Periférico

Um recurso observado na narrativa do documentário foi que entre o corte de uma cena
e outra, era inserido a imagem de um avião cruzando o céu marcando a mudança de assuntos.
Nessa edição, presumimo que seja a representação de uma determinado a postura relativa às
políticas públicas. É de conhecimento público que empresas, do setor aeroviário, elaboram as
rotas aéreas com o traçado sobre as comunidades, tendo em vista que os aeroportos são
construídos em lugares distantes do centro das cidades. Especula-se que é uma crítica ao risco
de queda de aeronaves sobrevoando o tempo todas as casas e ao barulho intermitente produzido
ao logo do dia. Outro exemplo pertinente ao veganismo está relacionado ao setor de
frigoríficos, que instalam suas unidades fabris nas regiões periféricas, sem os devidos cuidados
necessários para o descarte dos dejetos produzidos pela produção das mercadorias animais. No
documentário “Carne Osso” dirigido por Caio Cavechini e Carlos Juliano Barros, durante 65
minutos apresentam e denunciam práticas presentes no cotidiano dos frigoríficos instalados na
cidade de Chapecó, na região oeste de Santa Catarina, marcado por condições precárias, riscos
e danos à saúde de seus trabalhadores.
103

Extrato II
O maior problema do veganismo é que as pessoas estão olhando pra sociedade de uma forma
industrializada… Na hora de desconstruir, ela não consegue olhar pro veganismo sem imaginar
o produto industrializado vegano, de modo que os produtos industrializados veganos sejam
caros, e as façam concluir que veganismo é caro.

Extrato III
Veganismo, veganismo MESMO, é um ato político anti-exploração; um ato político anti-
especismo… Antes de qualquer coisa, ele é um posicionamento político, mesmo. Não tem a ver
só com alimentação, dieta, etc. Veganismo tem a ver com exploração animal. Quando você olha
pra exploração animal, você vê que é o capitalismo que trata os animais como objetos. Ensinam
a população que é assim que funciona e sempre foi assim, e nós nos opomos a isso. Vai muito
do jogo político não olhar pra produção orgânica, pra agricultura familiar… Porque não dá tanto
lucro. Tal como não dá tanto lucro se preocupar com o planeta, com a floresta, com o que você
tá plantando…

Nos extratos II e III, percebemos a disputa e construção de sentidos. Os Luvizettos


dizem que as pessoas estão olhando para a sociedade e para o veganismo de forma
industrializada. Eles estão metaforizando uma vertente do veganismo, os veganos liberais. Num
embate na arena discursiva, lutam por estabelecer o sentido político do movimento em oposição
ao apresentado anteriormente, referente aos veganos liberais que apoiam a produção de
produtos processados. Dessa forma, o político se configura na formação discursiva produzida
pelo Vegano Periférico que responsabiliza indiretamente os Veganos Liberais pela construção
simbólica que o veganismo é para pessoas ricas brancas e famosas. E seguindo nessa direção,
eles estão na disputa pelo poder de construir os sentidos políticos ao movimento, marcando as
balizas que eles defendem, tensionando e transformando os discursos vegano e alimentar. Ao
longo do documentário encontramos uma provisão de imagens que mostram alimentos in
natura. Eles se esforçam para mostrar o preparo de alimentos e ressaltam a importância do
estudo e do conhecimento para obter benefícios na alimentação com relação à saúde e ao lado
financeiro, em nenhum momento, nm textualmente, nem visualmente, apresentam uma
enunciação propositiva de receitas ou culinária vegana. A mensagem é clara, o ato de comer é
político.
104

Imagem 14: fotogramas, documentário Vegano Periférico

Extrato IV
Eu comia, só que eu tinha essa consciência, só que eu não conseguia me deslocar do prato
de animal morto pro de vegetais, então eu ficava na minha cabeça de eu não vou conseguir.
Só que um dia eu falei: “eu vou estudar, vou me aprofundar, vou pesquisar, vou ver como
funciona a indústria, vou ler artigos, vou começar a ver vídeos, vou me encher de informação
sobre isso” porque eu não acho certo matar um animal pra gente comer. Ponto.

Extrato V
“O bacana é isso: Antes eu não sabia o que tava na época, agora eu sei… A bergamota pocã
tá na época”.
105

Imagem 15: Maloca Arte e Cultura – fotogramas, documentário Vegano Periférico

Avançando na direção dos discursos políticos e da política, o Vegano Periférico apoia


e participa de outras ações políticas que julgam ser necessárias para o sucesso do movimento.
Apoiam o centro comunitário “Maloca” instalado na comunidade, com o intuito produzir
conhecimento. O espaço comunitário viabiliza estudos, cursos, oficinas, preparam e distribuem
alimentações veganas, numa dimensão decolonial, se organizam num aquilombamento.
Preparam lives, debates e rodas de conversa com foco na alimentação saudável, libertação
animal, inclusão social e diversidade. O próprio nome do centro comunitário acalenta sentidos
e aciona uma rede de significados discursivos relacionados à diversidade e inclusão social.
Sendo maloca uma grande habitação coletiva indígena, que abriga diversas famílias.
O Vegano Periférico atua e questiona a participação do Estado junto as hortas
comunitárias. Nessa abordagem, exploram um dos recursos disponíveis do gênero documental,
convidaram pessoas reais que pudessem narrar como as políticas de Estado atendem ao
seguimento de produção comunitária. Foram convidados dois agricultores e um nutricionista/
ex-pesquisador do EMBRAPA.
106

Imagem 16: depoimentos de agricultores e nutricionista – fotogramas, documentário Vegano Periférico

Nos depoimentos gravados, Rosana Junqueira (agricultora) critica o governo


Bolsonaro e faz menções à falta de políticas voltadas para a agricultura comunitária e familiar.
João Novais Pereira também (agricultor) relata casos de desvio de verbas destinadas às hortas
comunitárias, e comemora o sucesso e resultados alcançados pelas famílias assentadas que
receberam o aporte financeiro prometido pela prefeitura de Campinas. Porém, a verba destinada
ao assentamento foi desviada pelos políticos, bloqueando o andamento e o assentamento das
outras famílias. Orlando Batista dos Santos (nutricionista) teve papel fundamental em relação
resultados da produção. Ex- pesquisador da EMBRAPA auxiliou com seus conhecimentos
técnicos no plantio e tratamento das hortas para poder ser mais produtivas e obtivesse um
melhor tratamento com relação ao solo.
Os depoimentos acionam uma rede de sentidos e significados por meio do
interdiscurso, resgatando textos ligados a memória de governos anteriores, e a memória política
do país, de corrupção, descaso com as políticas voltadas para assentamento de sem-terras e com
a agricultura familiar. E nesse momento histórico, os discursos produzem novos sentidos no
discurso agrário, relacionados a saúde, a preservação do meio ambiente e ao consumo
consciente. Os convidados para dar os depoimentos e os irmãos Luvizetto afirmam a
importância do MST na luta e afirmam que o movimento sem terra não é formado por
“bandidos”. Buscando desconstruir um sentido atribuído pelos políticos representados pelos
ruralistas, que desqualificam e desclassificam a luta por terras. Apoiados pelas políticas agrárias
desenvolvidas pelo governo Bolsonaro, sendo inclusive o governo que registra o maior índice
107

de autorização para o uso de agrotóxicos. Os irmãos voltam a fortalecer a crítica ao sistema


capitalista e neoliberal quando enunciam o descaso com a alimentação e com o meio ambiente,
características marcantes no governo Bolsonarista. Com está enunciado nessa formação
discursiva do Vegano Periférico “Vai muito do jogo político não olhar pra produção orgânica,
pra agricultura familiar… Porque não dá tanto lucro. Tal como não dá tanto lucro se preocupar
com o planeta, com a floresta, com o que você tá plantando…” e problematizando os sentidos
nas redes ideológicas, palavras como lucro, floresta e plantação têm significados
completamente distintos. A floresta para o índio não é a mesma floresta que significa para o
Estado, bem como para um produtor capitalista. Para o índio, a plantação é um modo de
subsistência, para o produtor agrário representa a produção de alimentação para uma
determinada quantidade de cabeças de gado para o abate. E para o Estado representa a balança
comercial e representa um número no PIB do país. Por fim, o foco principal do coletivo Vegano
Periférico está diretamente focado na causa vegana: a libertação dos animais, melhores
condições de tratamento e resgate de animais em situação de vulnerabilidade, maus tratos e
utilizações em pesquisas ou para entretenimento.
As ações ativistas envolvem a apropriação de lugares públicos e intervenção em orgãos
públicos, por exemplo, a Câmara de Vereadores de Campinas, exigindo a libertação e melhores
condições aos animais que estavam em situação de vulnerabilidade no Bosque dos Jequitibás.
No capítulo anterior relatamos uma ação desenvolvida dentro do shopping D. Pedro em
Campinas. No documentário há dois casos que o Vegano Periférico participaram ativamente da
libertação efetiva de animais. No Bosque dos Jequitibás em Campinas os animais se
encontravam em situações precárias de saúde, mal-acondicionados, as jaulas não estavam em
boas condições, em total estado de abandono. A situação tinha se agravado por conta da
desapropriação do parque, para a construção de um futuro empreendimento imobiliário. A ação
mobilizou diversos ativistas que entraram com um requerimento na Câmara Municipal de
Campinas com o pedido do fechamento do zoológico instalado no parque e a imediata
transferência dos animais. Organizaram passeata com diversas faixas e cartazes, com textos de
comando exigindo a libertação e cuidados com os animais. E o segundo exemplo apresentado
foi referente ao tombamento de uma carreta carrega com porcos que no Rodoanel de São Paulo,
ferindo muitos animais o resgate envolveu uma grande dificuldade de locomoção destes
animais. Os animais salvos foram transferidos para Santuário Terra dos Bichos, na cidade de
São Roque, onde foram acolhidos e receberam tratamento adequado.
108

Imagem 17: manifestação no Bosque Jequitibá – fotogramas, documentário Vegano Periférico

Estes animais foram libertados do destino de serem transformados em bacon,


lombo e picanha suína, segundo relato de um dos ativistas envolvidos no resgate. Os exemplos
apresentados no documentário, mobiliza discursos políticos envolvendo o poder público e a
sociedade. Concluímos que as formações discursivas destes enunciados também constroem
sentidos políticos para o movimento, pois evidenciam os discursos citadinos que mobilizam o
poder público e a sociedade civil.
109

Extrato VI
“Se você ligar a TV agora, você vai ver toda hora na sua cara: consuma carne, consuma leite,
consuma ovos, consuma isso, consuma aquilo. Se você desligar a TV e pegar um jornal, vai
tá no jornal: promoção de carne, filé, churrascaria; você desliga e pega o celular, vai tá
publicidade lá: ‘melhor churrascaria de Campinas’. Aí você vai pra rua e pega o busão: atrás
do busão tem o quê? McDonald’s, Burguer King… Tá jogando na sua cara toda hora: carne,
leite, ovos, mel, consuma mais queijo, mais queijo… Em todo lugar se fala em carne, leite e
ovos. E ninguém fala nada… Aí quando o vegano questiona essa indústria, que é massacrante
e que fala 10.000 vezes mais do que um vegano fala, que toda hora tá colocando na tua cara
em todos os veículos de mídia, o cara é tratado como chato. Por quê? Porque tá questionando
o modelo social. Quando você questiona, você se torna chato. Não por você ser chato, mas
porque as pessoas não querem pensar sobre isso, elas não querem pensar sobre o que elas
tão fazendo. Aí elas criticam e te julgam.”

Extrato VII
“Porque a publicidade não abre um matadouro e fala: ‘população, vocês querem consumir
isso? É isso que vocês gostam? Então vejam o que vocês tão consumindo.’ Esse é o ponto
mais crítico, né, de as pessoas não entenderem o que elas tão consumindo. Elas não têm essa
noção, entendeu? E a publicidade, criminosa, vem pra maquiar tudo isso e fazer da população
uma população ignorante sobre o sofrimento animal, matando milhões de animais, tudo pra
gerar renda, pra gerar grana, pra exportar animais e milhares de coisas, entendeu?”

Nos extratos VI e VII, percebe-se que há mais uma crítica pontual às empresas que
produzem proteína animal e uma crítica contundente ao discurso publicitário, bem como aos
discursos dos veganos liberais, que são os principais consumidores dos produtos processados e
industrializados, permitindo que as empresas produtoras de proteína animal adotem uma
postura “vegan washing”, introduzindo em suas linhas esses produtos, e não aderindo de forma
efetiva à causa. Quando eles dizem as "pessoas", não está explicitado quem seriam essas
pessoas. Novamente metaforizando os Veganos Liberais, que estão procurando outros
alimentos saudáveis, tensionando a sociedade, e as estruturas estabelecidas pelo movimento
vegano. Carrascoza, em um trabalho sobre retórica, paráfrase e memória, elabora reflexões
sobre o discurso publicitário e assevera que

Os discursos publicitários não apresentam exatamente a mesma configuração


dos discursos clássicos, dentre outras razões porque os antigos auditórios se
converteram em modernas audiências com outros prazeres e outras
necessidades; no entanto, as finalidades básicas dos atuais discursos
persuasivos são praticamente iguais. Os anúncios têm como objetivo principal
persuadir, contribuindo intencionalmente para ressaltar valores da marca, para
criar uma imagem, para vender um produto. Para isso, recorrem ao deleite,
utilizando recursos visuais com os quais cativam o grande público; essa
intenção faz aflorar, nos discursos publicitários, o gênero demonstrativo. No
entanto, os anúncios também têm clara intenção deliberativa, já que as marcas
precisam levar o público a se decidir por seus produtos; a finalidade essencial,
110

portanto, continua sendo a de persuadir o auditório, mostrando que seu


discurso é melhor que o da concorrência. Pois, bem: cada discurso publicitário
exige um certo grau de originalidade que capte a atenção do público; isso
significa que deve ser novo, diferente do resto. Mas toda ideia, na qual se
sustenta um discurso publicitário, vem de textos preexistentes que formam
parte de uma determinada cultura e contribuem para a construção de uma
semiótica publicitária. (CARRASCOZA, 2011, pp. 77-78)

E alargando nossas reflexões, analisando o conflito que se estabelece entre o discurso


publicitário, aqui notadamente referenciando aos textos produzidos pelas empresas que
produzem proteína animal e, em contrapartida, agora inseridas no mercado de proteína vegetal.
O discurso publicitário está em cisão com os discursos do movimento vegano,
especificamente em confronto com os veganos interseccionais, o que nos remete aos
apontamentos feitos por Orlandi (2017) que nos convida a refletir

nas condições de significação, o alcance da publicidade que também funciona


pela quantidade e concentração: repetidamente se encontram no espaço
urbano mensagens que cobrem todo o espaço visível, espaço desde então
transmudado em espaço lisível. Faz parte destas condições o fato de que os
dizeres transborda, da publicidade para a rua, dai para o próprio sujeito que
toma a si o gesto da autoria e passa ele mesmo a textualizar toda a superfície
do espaço em que vive, o espaço urbano. (ORLANDI, 2017, p.195)

Extrato VIII
Mano, a gente não abordou uma coisa que eu acho essencial abordar: machismo. Como o
bagulho tá ligado com a questão do consumo de carne. Como os moleques são... “Se eu não
como carne, eu sou gay”. Aí entra duas coisas, tanto a homofobia, porque vê o gay como um
problema, quanto machista. Porra, velho, os caras têm que desapegar desse bagulho. Mano,
não é o que você põe no seu prato que define o que você é. Isso é um ponto que a gente tem
que bater. Eu vejo que bloqueia muito. Uma vez um moleque falou: “nem vou trocar ideia
com você, porque você é vegano. Vai comer uma picanha e epois a gente troca uma ideia.”
Eu falei: “irmão, você tá viajando. O que tem a ver comer carne com ser homem? Então, se
ele respondesse de forma pensada, você perceberia que é uma coisa consciente, mas quando
você aborda, dá onde vem isso você vê que é inconsciente. E como é importante bater nessa
tecla. – O cara se acha menos homem ou mais homem por consumir arroz integral. Olha o
grau da ignorância que a gente vive.

Extrato IX
Eu acho o seguinte mano, os moleques olham pra quem tem qualquer coisa fora desse padrão,
que é um condicionamento do cara, ele tem que ser barbudo, tem que comer carne, tem que
ser machão, tem que dominar a mulher. Aí eles olham um vegano ou vegetariano. “Ah! O
cara não come carne, o cara é o quê? Viadinho? Mulherzinha?”. Isso não existe. Tá tudo na
cabeça do maluco. A gente não tá falando de feminismo, porque a gente não é mulher pra
falar de feminismo, a gente tá falando de machismo, que é o que nós somos, que nós
praticamos. Como homem, nós olhamos o mundo dessa forma, então a gente pode falar. Não
tô falando “o fulano olha desse jeito”. Não. Eu enxerguei desse jeito! Eu treino minha
111

visão pra não cair nessa armadilha. Eu treino minha visão, eu Eduardo, o Léo treina a visão
dele, pra quando tiver no meio dessa rapaziada não sabotar, falar “é verdade, mano, esse
bagulho é de mulherzinha mesmo. “Dá uma picanha, entendeu.” Então, assim, a gente treina
a nossa visão e a nossa mente como sendo, estruturalmente machista, tentando desconstruir
isso dentro da gente mesmo. Não tem a ver com esquerda, direita ou feminismo. Tem a ver
com uma parada séria que é o machismo.

Nos extratos VIII e IX, explicita-se o debate sobre as questões de gênero que circula entre
os veganos interseccionais. Entendemos que essas formações discursivas estão inter-relacionadas à
formações ideológicas e são acionadas por redes discursivas subjetivadas pela história e pelos
processos de subjetivação. Identificamos discursos feminismo negro, e a presença do conceito da
interseccionalidade que apresenta a combinação de marcadores sociais. A sexualidade, o corpo,
estão subjetivados a padrões sociais e a outras construções discursivas. Ao discurso machista,
feminista, religiosos, patriarcais, colonialistas, científicos da saúde e psicanálise, acionando uma
enorme rede de sentidos e significados. Chamou muito nossa atenção, problematizarem a questão
e não se preocuparem explicitamente contra as formas pejorativas, especistas e preconceituosas de
como as palavras são usadas. Os Luvizettos criticam a postura dos amigos, entretanto, afirmam que
falam de coisas de homem, afirmam e se reconhecem machistas, machistas em desconstrução.
Entretanto, neste extrato, evidenciam-se construções imagéticas e simbólicas consumidas,
numa breve descrição, seriam imagens do homem, macho, héterocisnomativo, o “macho alpha”.
Explorando o conceito dicursivo de intericonicidade, conceito desenvolvido por Jean-
Jacques Courtine, que aborda interdiscurso (memória das imagens) reproduzindo pelas imagens em
que numa rede discursiva, imagens falam outras imagens produzindo novos sentidos. Courtine
propõe um deslizamento da memória discursiva verbal, para evidenciar o caráter não verbal que
os enunciados, como dispositivo podem ser aplicados para analisar a produção de imagens

A noção de intericonicidade é assim uma noção complexa porque ela supõe a


relação entre imagens externas, mas também entre imagens internas, as
imagens da lembrança, as imagens da rememoração, as imagens das
impressões visuais armazenadas pelo indivíduo. Não há imagens que não
façam ressurgir em nós outras imagens, quer essas imagens tenham sido já
vistas ou simplesmente imaginadas (COURTINE, 2011)

O efeito de memória estaria posto na relação entre interdiscurso e intradiscurso, isto é,


na relação entre a formação de uma memória no fio do discurso – o interdiscurso – e a sua
formulação na atualidade – o intradiscurso. (COURTINE, [1981] 2009, p. 106).
Jean-Jacques Courtine, ao dedicar-se ao funcionamento discursivo da memória das
imagens, desenvolve o conceito de intericonicidade. Se não há texto, não há discursos que não
sejam interpretáveis, compreensíveis, sem referência a tal memória, podemos dizer mesma
112

coisa de uma imagem: toda imagem se inscreve em uma cultura visual, e essa cultura visual
supõe a existência, para o indivíduo, de uma memória visual, de uma memória das imagens,
toda imagem tem um eco. (COURTINE, 2005). MILANEZ (2015), estudioso do trabalho de
Courtine, diz que este tipo de movimento pode ser observado a partir da noção de
intericonicidade que pressupõe haver sempre um já dito no campo das imagens, de modo que
toda imagem tem intericonicidade com outras imagens que a antecedem. Assim, há traços de
repetição das imagens, seus domínios de antecipação/atualidade, para a repetição e atualização
dos discursos. (MILANEZ, 2015).
Assim, percebemos como as imagem dos irmãos Luvizetto, acionam essa memória
discursiva, as fotos comparativas em questão, referem-se aos termos “macho”, “macho alpha”,
“macho escroto”, palavras utilizadas para a busca das imagens, antigas e recentes. Dessa forma,
queremos demonstrar que o interdiscurso, se reproduz nos textos enunciados pelos irmãos, mas,
também em suas imagens e posturas visuais.

Imagem 18: fotogramas, documentário Vegano Periférico

Outra questão que podemos aventar são as questões a relação ao conceito de lugar de fala,
visualmente nas imagens do documentário eles se colocaram na posição de entrevistados, e o
cenário revela eles num cenário cinza sendo colocados “contra a parede”. E começam a abordar as
questões sobre o machismo. Discursivamente se enunciam como machos e não poderiam falar de
coisas do feminismo por que não são mulheres. Nessa construção percebe-se que ideologicamente,
113

apesar de questionarem as questões inerentes a masculinidade, eles afirmam que não poderiam falar
no lugar das mulheres, porque não são mulheres e vice-versa, e esclarecem, não ser o lugar de fala
deles. Produzindo o sentido de que o lugar de fala não seria transitório ou não possa ser apropriado
por outro sujeito que não seja representante de uma classe, gênero, sexualidade, outros. Observamos
que o conceito de lugar de fala, de certa forma, como aponta Djamila Ribeiro, teve seus sentidos
modificados, mal interpretados e mal utilizados.
Segundo Ribeiro, um dos motivos seria a urgência exigida pelos meios digitais e ao uso
indiscriminado que sujeitos tinham em se utilizar do conceito. Ribeiro em seu livro “Lugar de fala”,
traça um esforço para que se entenda a importância e a trajetória do conceito. Não é nossa intenção
fazer esse mesmo percurso, mas trazemos aqui a partir de um ponto sugerido por Ribeiro (2019),
que seria a partir do uso feito pelo feminismo negro. Ribeiro (2019, p. 40) diz que Patricia Hill
Collins é um nome importante para nos aprofundarmos na questão aqui proposta. Em 1990, na obra
“Pensamento do feminismo negro”, ela argumenta sobre o “feminist standpoint”. Segundo o
“Dossiê Mulheres negras: retrato das condições de vida das mulheres negras no Brasil”, publicado
pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA) em 2013,
O foco do feminismo negro é salientar a diversidade de experiências tanto de
mulheres quanto de homens e os diferentes pontos de vista possíveis de análise de
um fenômeno, bem como marcar o lugar de fala de quem a propõe. Patricia Hill
Collins é uma das principais autoras do que é denominado feminist standpoint.
Em sua análise, Collins (1990) lança mão do conceito de matriz de dominação
para pensar a intersecção das desigualdades, na qual a mesma pessoa pode se
encontrar em diferentes posições, a depender de suas características. Assim, o
elemento representativo das experiências das diferentes formas de ser mulher
estaria assentado no entrecruzamento entre gênero, raça, classe, geração, sem
predominância de algum elemento sobre outro. (apud SOTERO, 2013, p. 36)

Nessa perspectiva Ribeiro (2020, p.41) avança e apresenta a hipótese de que, a partir da
teoria do ponto de vista feminista, é possível falar de lugar de fala. Ao reivindicar os diferentes
pontos de análises e a afirmação de que um dos objetivos do feminismo negro é marcar o lugar de
fala de quem o propõe, percebemos que essa marcação se torna necessária para entendermos
realidades consideradas implícitas dentro da normatização hegemônica. Continuamos com Ribeiro
(2020, pp. 42-42) que apresenta as argumentações de Collins (1997),
Em primeiro lugar, o standpoint theory refere-se a experiências historicamente
compartilhadas e baseadas em grupos. Grupos têm um grau de continuidade ao
longo do tempo de tal modo que as realidades de grupo transcendem as
experiências individuais. Por exemplo, afro-americanos, como um grupo racial
estigmatizado existiu muito antes de eu nascer e irá, provavelmente, continuar
depois de minha morte. Embora minha experiência individual com o racismo
institucional seja única, os tipos de oportunidades e constrangimentos que me
atravessam diariamente serão semelhantes com os que afro-americanos
confrontam-se como um grupo. Argumentar que os negros, como grupo, irão se
114

transformar ou desaparecer baseada na minha participação soa narcisista,


egocêntrico e arquetipicamente pós-moderno. Em contraste, a teoria do ponto de
vista feminista enfatiza menos as experiências individuais dentro de grupos
socialmente construídos do que as condições sociais que constituem estes grupos.
(COLLINS, 1997, p. 9)

Assim, acreditamos que homens podem ocupar o lugar de fala de mulheres, mulheres
podem ocupar lugar de fala de homens, brancos o lugar de fala de negros, elaborando uma
“discursividade negociada”.
Na concepção de Collins. consideremos mais as condições do grupo vegano interseccional
do que as individualidades, nesse caso, consideremos que os veganos interseccionais, que se
utilizam das teorias/metodologias intersecionais, devemos manter em perspectiva a combinação dos
marcadores sociais também no conceito discursivo de “lugar de falar”. Portanto, apresentamos
outro fundamento da ADF proposto por Orlandi (2020, p. 32) “a análise de discurso se propõe
construir escutas que permitam levar em conta esses efeitos e explicitar a relação com esse
“saber” que não se aprende, não se ensina, mas que produz seus efeitos.

Extrato X
“Tem restaurantes que colocam segunda ou terça a 10 conto, isso viabiliza”. “Quando uma
pessoa abre um estabelecimento, a mentalidade dela, ao abrir esse estabelecimento, é o que vai
direcionar preços, é o que vai direcionar a linguagem… Se uma pessoa abre uma parada só pra
viver a vida dela e lucrar com isso, ela não vai estar preocupada com popularização de causa,
com recorte social… A preocupação dela vai ser só abrir o estabelecimento, abraçar o público
vegano e fazer a vidinha dela.”

Neste extrato, emerge a crítica à exclusão e ao capitalismo, o neoliberalismo produz


sujeitos incentivados a se auto gerenciarem e serem responsáveis pelos resultados na carreira,
na saúde, na educação e nessa lógica, inseridos esses sujeitos veganos liberais, que apoiam e
pensam nas lógicas de mercado. Colocam em questão o sujeito-capitalista, entendem que o
investidor vegano não deveria estar preocupado apenas com o lucro, que dessa forma inviabiliza
o consumo e a causa. Os sentidos produzidos são políticos e ideológicos, em nossa análise os
sentidos que estão sendo construídos no movimento e social/moral, ético e político visando
produzir efeitos sobre o social e sobre as políticas de Estado.
Abordando a linguagem adotada pelo Vegano Periférico, referem-se à classe média
reconhecendo que produzem informações importantes para o veganismo, assim criando uma
aproximação discursiva com os veganos liberais. Entretanto, apontam que as mensagens não
são compreensíveis, por que estão em inglês e reconhecem que a maior parte da periferia é
115

incapaz de compreender o que está escrito nas camisetas. Não entendemos o que a classe média
“traz estampada na peita!” (Vegano Periférico). Para Orlandi (2017, p.153), “há um princípio
que diz que não há discurso sem sujeito e não há sujeito sem ideologia. O discurso é o lugar
em que podemos observar a articulação entre língua e ideologia.” E na disputa por sentidos,
Gregolin (2017) apresenta a seguinte reflexão

Como os sujeitos são sociais e os sentidos são históricos, os discursos se


confrontam, se digladiam, envolvem-se em batalhas, expressando as lutas em
torno de dispositivos identitários. Michel Foucault (1978) enxerga, nesses
intensos movimentos, uma microfísica do poder: pulverizados em todo o
campo social, os micropoderes promovem uma contínua luta pelo
estabelecimento de verdades que, sendo históricas, são relativas, instáveis e
estão em permanente reconfiguração. Eles sintetizam e põem em circulação
as vontades de verdade de parcelas da sociedade, em um certo momento de
sua história. (GREGOLIN, 2007, p.17).

Por outro lado, a discursividade encontrada no documentário, os vocábulos utilizados


também não seriam compreensíveis a determinados seguimentos sociais. Palavras como rango,
quebrada, peita, mano, as minas, os caras, bagulho entre outras mais, configuram uma
linguagem do gueto, gírias. Estabelecendo um código somente compreensível a um
determinado grupo social, indo na mesma direção discursiva. São códigos que determinam
recorte social, afastam outros públicos da causa e se tornam incompreensível, e nas palavras
dos irmãos, não contribuindo com a causa. Não afirmando o caráter instrumental das palavras,
Orlandi ressalta que os sujeitos falam com palavras, destacando que esta é uma extensão do que
ela pensa sobre a metáfora compreendida como “uma palavra por outra” retomada de Lacan
por M. Pêcheux (1975), e estabelece que falamos com as palavras, uma se reportam a outras.

Palavras falam com palavras. E aí esta uma afirmação que se sustenta em uma
concepção (material) discursiva da palavra, na sua opacidade, em suas
relações umas com as outras e nossa com elas. Sempre plural. Sempre capaz
de ser outro o sentido. (ORLANDI, 2017, p. 134)

Extrato XI
Só isso que a gente tenta fazer até hoje: mostrar que é possível você ser trabalhador, você pegar
busão, você viver na periferia ou em outro lugar, mesmo sendo muito pobre, ser um funcionário
e ser vegano. É possível. A gente só quer mostrar que é possível. Só isso.

Nesse último extrato, aborda-se como é difícil escapar às lógicas capitalistas, o dito é que
não há esforço possível para encontrar uma solução para os problemas enfrentados. Existe sim,
formas de resistir e de ideologia que possam ser contemplada. O poder de resistir seria através do
116

“ato politico” de comer, comer bem e de maneira saudável. Firme no propósito que o veganismo
além de ser libertador, é uma luta de classes. De alguma forma, temos o sujeito histórico capitalista
bem representado. Subjetividades produzidas pelo capitalismo e pelo sistema neoliberal,
transparecem na construção discursiva desse fragmento. “Mesmo sendo muito pobre”, produz o
sentido da impossibilidade de sair dessa condição social imposta pelas regras de segregações
impostas pelo capitalismo e pelas políticas do Estado. “Ser um funcionário” enuncia a condição de
trabalho, do produzir e ser mercadoria no sistema imposto pelos produtores, donos o capital (os
burgueses), reafirmando o pensamento de Marx que aponta que o proletário, quantos mais
produzem, mais aumenta sua desvalorização perante a vida e as mercadorias, e se tornam também
mercadoria no sistema. A rede de significados acionada resgata sentidos para palavras como: pobre,
funcionário, trabalhador mas com memórias , historicidade e ideologias distintas. Podemos aventar
os diversos ignificados para os periféricos, para a elite e classe média e para o Estado. Ser
trabalhador, para o pobre está relacionado a ideia de ser honesto e ter uma ocupação, não ser um
inútil e sem utilidade para o sistema. Para a elite e para a classe média, é um sujeito fundamental à
produção, mas, lembrado a custos e a encargos para o sistema produtivo, e para o Estado é um
sujeito jurídico que produz encargos, representa custos para o Estado e futuramente fará parte do
passivo nas contas públicas. Esse sujeito, para o Estado, será impactado pelos discursos neoliberais
e pela ideia de se auto gerir e de ser responsável pelos seus resultados.

3.3 - Sintetizando nossas análises do documentário “Vegano Periférico”

O percurso analítico que adotamos foi observar a narrativa proposta no documentário


enquanto gênero discursivo, e buscamos identificar os sentidos que essa discursividade produz.
Analisamos a linguagem e identificamos posicionamentos ideológicos (marxista) — conceitos
relacionados a alienação, a falta de informação e a inter-relação consumo versus produção. A
formação discursiva aponta para a alienação dos sujeitos periféricos, enunciam as incompreensão
de mensagens e adificuldade de acesso à informação sobre métodos os métodos produtivos da
indústria da proteína animal. Encontramos enunciações referentes a visualização, visibilidade e
invisibilidade sujeitos periféricos.
Nessa dimensão aparecem os problemas muito comuns e decorrentes da falta de políticas
públicas lançando sujeitos periféricos à violência, ao tráfico de drogas, o não–dito, com reação à
violência perpetuada e produzidas pelas polícias nessas regiões que protegidos pelo aparelho de
Estado colocam à margem pobres por meio de muros invisíveis estabelecendo fronteiras por todas
117

as cidades. A falta de opções de lazer, escola, infra-estrutura precária, o caminhar pelas ruas e pela
comunidade se torna uma aventura de alto risco. Analisamos também os discursos de outros autores
— observando ações em comunidade que se tornam lugares de encontro, união e aquilombamento,
onde se discute e mobiliza-se para ações que a causa avance. Agricultores, nutricionista/ex-
pesquisador do EMBRAPA convidados a dar os depoimentos reais, problematizando questões
políticas, que tensionam as narrativas “da política” e “do político”, distinção essa que nos utilizamos
ao longo do trabalho nas concepções propostas pela Mouffe (2015) e a proposta do “político” no
discurso aplicada por Orlandi. A partir da insurgência desses sujeitos do Vegano Periférico,
percebemos a busca pela exposição das potências silenciadas na Periferia. Por meio dos discursos
produzem sentidos que buscam mudar imaginário simbólico, tanto de sujeitos periféricos, mas
principalmente com relação ao simbólico e imaginado construído do veganismo, e aqui trabalhamos
com a hipótese aventada de que a entende-se que o veganismo é uma dieta cara, para pessoas ricas
e famosas. Recordando os estudos desenvolvidos e apresentados por Jessé Souza, ele elabora que
os responsáveis pelos sentidos construídos com relação aos sujeitos periféricos precarizados,
inclusive como ele conceitua que vivem sobre a imagem de um “habitus precário” seriam os sujeitos
da elite e da classe média do país responsáveis por essa construção. Os discursos do vegano
periférico, numa perspectiva moderna e atualizada de posicionamento político, busca mitigar as
ausências produzidas pelos governos neoliberais. Os irmãos buscam se auto narrar e demonstrar a
possibilidade de um veganismo barato, possível nas periferias. Demonstrando engajamento
político, luta pela igualdade, diversidade e inclusão social. Palavras que na visão da Orlandi
torna-se ou perdem o sentido. Inclusive ela comenta a perda do sentido dessas palavras atingem
os dois lados, para os periféricos por que ficam de fora das políticas e do outro lado, pela falta
de políticas estabelecidas pelos governos, numa rede de palavras sem sentido. Analisamos a
exploração do corpo, o corpo periférico, o corpo negro ou não negro atravessados por
marcadores sociais, sempre focados na raça, gênero e classe, mas com vistas também à
sexualidade que abordam questões da masculinidade, o machismo e o feminismo. Abordamos
os sentidos do periférico em suas subjetivações e na construção da sua identidade que aparecem
ao longo do documentário: a roupa, o caminhar, a linguagem do gueto as gírias e os dialetos
como um marcador identitário que por horas é resistência, mas também é a forma de se
comunicar como os iguais: o eles, com eles e para eles.
A enunciação do documentário como objeto simbólico, enquanto discurso, produz um
acontecimento que é o que ele significa. Estabelece relações entre memória e o esquecimento,
mas produz a discursividade na historicidade, em outras palavras, no momento da apresentação
do documentário, estabeleceu-se um sentido subjetivado pelo momento histórico. O planeta
118

assolado pela Covid-19, o Brasil incluso no problema, entretanto acionando uma rede discursiva
e de memórias que estavam silenciadas inerentes a problemas específicos e particulares ao país.
No Brasil é importante ressaltar tinha em sua memória discursiva a historicidade da luta
pela erradicação da fome.O problema que havia sido dizimado, mas devido às políticas
implementadas durante a pandemia, o país voltou a figurar o mapa da fome, segundo estudos
produzidos pela FAO, ONU e OMS4. Problemas de insegurança alimentar (fome), dificuldade
das comunidades periféricas a ter acesso a produtos in natura. Ainda, por conta desses fatos
ocorridos, a mídia apresentando a mais dura realidade. Pessoas recolhendo ossos, carcaças de
animais para poder ter acesso ao consumo de carne e desfrutar dos sabores ao qual estão
condicionadas, cenas de um mundo distópico.
Nessa perspectiva, houve especulações porque não adotar uma dieta vegetariana ou
vegana, e nesse ponto, há uma resistência do movimento vegano que entende que a adoção da
dieta, nessas condições soluciona parte do problema, apesar de não ser a maneira correta e
inteligente para aderir ao movimento. Entendem que a adoção precisa vir acompanhada de
esclarecimento, entendimento da importância ética e moral da causa, e os benefícios concretos
para a saúde e para o meio ambiente. Assim, a partir das nossas reflexões conforme Orlandi
(2017) esclarece,

a memória discursiva, o interdiscurso, como não cansamos de repetir, é


irrepresentável. E o documentário quando recorta, sem o saber, essa memória
em algum ponto, produzindo um acontecimento, não o “representa” produz
um efeito, inserindo por seu gesto a memória em uma atualidade. E o que é
essa atualidade assim produzida e sujeita a equívoco, como em todo
acontecimento? Um/esse efeito. Uma formulação. (ORLANDI, 2017, P.57)

Ao longo do documentário do Vegano Periférico, constatamos a presença ideológica


que o veganismo é um movimento ético, político e moral, alimentação abarca a luta de classes,
e o ato de comer é um ato político. A produção e o consumo são abordados pelo viés social com
o discurso voltado à defesa do cidadão trabalhador e ao periférico explorando sempre a ideia
de alienação, sempre reafirmando um debate ideológico, ao lado no confronto discursivo, a elite
e da classe média discursivamente se articulam para dificultar o acesso à formação e a
informação. O assujeitando de sujeitos ao desconhecimento e alienados aos processos
produtivos e o acesso ao consumo sem uma educação adequada, assim permitindo a

4
GUIMARÃES, José. Com Bolsonaro, o Brasil voltou ao mapa da fome. Carta Capital
<https://www.cartacapital.com.br/opiniao/frente-ampla/com-bolsonaro-o-brasil-voltou-ao-mapa-da-fome/>
Acesso:10/01/2022
119

manipulação pelas estratégias marketing e pelos meios de comunicação. Repetimos um


apontamento que a Baccega faz com relação à comunicação, consumo e a educação em direção
à cidadania.

1. O sujeito ter consciência de que é sujeito de direitos; 2. Ter conhecimento


de seus direitos, ou seja, serem dadas a ele condições de acesso a esse
conhecimento; 3. Serem adjudicadas ao sujeito as garantias de que ele exerce
ou exercerá seus direitos sempre que lhe convier. (BACCEGA, 2012, p. 248)

A seguir, analisaremos o segundo corpus, os posts publicados no Instagram do


coletivo Vegano Periférico. Seguiremos os procedimentos e protocolos de análise descritos no
subcapítulo anterior.
120

4 - ANÁLISE DOS DISCURSOS POLÍTICOS NO INSTAGRAM DO COLETIVO VEGANO


PERIFÉRICO

Analisaremos a seguir, o nosso segundo corpus composto pelas postagens do


Instagram, selecionamos imagens das postagens e extratos dos textos publicados pelo coletivo.
Algumas postagens que foram analisadas, foram publicadas por outros ativistas do movimento,
que defendem o veganismo, mas também outras pautas. O Espaço do coletivo Vegano
Periférico no Instagram, tornou-se lócus de democracia, diversidade, inclusão, solidariedade e
cidadania. Os materiais extraídos e analisados, registrados a seguir contemplam os principais
temas da pauta do coletivo.

4.1 - De janeiro a janeiro: análises dos discursos políticos nas postagens do Instagram do
coletivo Vegano Periférico

Acreditamos ser oportuno iniciarmos apresentando uma compreensão do objeto internet


para pesquisa acadêmica, proposto por Recuero (2011), a seguir, avançarmos na compreensão
do que seria o midiativismo conforme Braighi e Câmara (2018) que fazem uma distinção entre
ação midiativista de outras maneiras de comunicação contra-hegemônica.
Recurero (2011) em seu livro “Métodos de pesquisa para internet” propõe observarmos
internet na perspectiva da inserção da tecnologia na vida cotidiana. Assim, favorece a percepção
da rede como um elemento da cultura e não como uma entidade à parte, em uma perspectiva
que se diferencia da anterior, entre outras coisas, pela integração dos âmbitos online e offline.
(RECUERO e etal, 2011, p. 14)

Os estudos cujas abordagens enfatizam o aspecto de artefato cultural tendem


a observar questões acerca dos discursos sobre a internet, como, por exemplo,
os discursos libertários acerca da natureza anárquica e da atitude
contracultural dos hackers e cyberpunks do início da rede, como em Lemos
(2002), Amaral (2006) ou Turner (2006) e os processos de produção e
consumo na construção do sentido dos seus usos sociais. A noção de internet
como artefato cultural oportuniza o entendimento do objeto como um local
intersticial no qual as fronteiras entre online e offline são fluidas e ambos
interatuam. ( RECUERO e etal, 2011, p. 42)

Para Recuero (2011), a ideia de artefato cultural compreende que existem diferentes
significados culturais em diferentes contextos de uso. O objeto internet não é único, mas sim
multifacetado e passível de apropriações. (RECUERO e etal, 2011, p. 14)
121

As postagens serão analisadas visando contemplar a memória discursiva (interdiscurso)


e outras carecterísticas inerentes à discursividade e sob uma perspectiva epistemológica
decolonial, que procuramos seguir ao longo do trabalho e que nos auxilia contemplar elementos
localizados e específicos da discursividade do Vegano Periférico. Compreendendo o que diz
Resende (2010),

Entendo que não é o caso de perdemos tempo negando o legado europeu ou


questionando a validade de teorias pelo simples fato de serem importadas —
não, ao contrário: devemos nos aproveitar dos recursos já existentes. O que
importa é mantermos a vigilância crítica não só da validade de teorias e
discursos poderosos a nossos contentos locais, mas também da própria
coerência interna dessas teorias. E assumimos a ousadia de propor novas e
diferentes reflexões (RESENDE, 2010, p. 194)

Refletindo sobre as questões decoloniais, há um debate sobre a internet e mídias sociais


que por meio dos algorítimos e a dataficação dos dados compartilhados, muitas vezes extraídos
nas interações digitais, o uso não transparente destes dados, representaria uma postura de
colonização dos sujeitos. Questão a ser considerada porque são práticas que se assemelham às
práticas das mídias tradicionais ditas hegemônicas. Entretanto, sujeitos invisibilizados ou
silenciados que não encontravam voz para suas demandas, através das mídias sociais,
encontraram uma forma de se autorrepresentarem e praticar o ativismo, o “midiativismo”.
Segundo definição de Braighi e Câmara (2018),

midiativismo só se faz com midiativistas, sujeitos portadores de uma vontade


solidária, que empreendem ações diretas transgressivas e intencionais, e veem
as próprias capacidades de intervenção social, antes localizadas, sendo
potencializadas. Isso, por meio de um registro midiático que visa
necessariamente amplificar conhecimento, espraiar informação, marcar
presença, empreender resistência e estabelecer estruturas de defesa. Sem o
intuito de esgotar o debate, que o contorno do que se entende por midiativismo
deve passar pela luta por melhorias sociais, a partir da utilização das TICs,
principalmente a internet e as plataformas de redes sociais digitais, como
elementos para divulgar e potencializar essas lutas.

Imprimindo novos contornos ao ativismo social (ativismo em rede), a internet e as


mídias sociais possibilitam a produção e compartilhamento de conteúdos e a mobilização para
determinadas causas sociais, inclui-se aqui o veganismo. Estas contextualizações são
fundamentais para as nossas análises porque elas influenciam e são influenciadas pela práticas
discursivas. Segundo Orlandi (2017, p. 69) “as novas tecnologias, embora sejam tecnologias da
escrita, atravessam a relação do sujeito com a linguagem de maneira particular”. E Orlandi
(2017, p. 82) acrescenta que o sujeito “se entrega ao tempo do digital, do imediato, o da
122

urgência, e, no modo como seu corpo é afetado pela tecnologia da escrita”. Desta forma, os
processos comunicativos não escapam das nossas análises e Sodré (2002) nos apresenta uma
contribuição para pensarmos a comunicação no gênero-discursivo eletrônicos.

Nos ambientes digitais da nova mídia, o usuário pode “entrar” e mover-se,


graças à interface gráfica, trocando a representação clássica pela vivência
apresentativa. Assim, O “espelho” midiático não é simples cópia, reprodução
ou reflexo, porque implica uma forma nova de vida, com um novo espaço e
modo de interpelação coletiva dos indivíduos, portanto, outros parâmetros
para a constituição das identidades pessoais. (SODRÉ, 2002, p. 23)

O Instagram é uma rede social com forte apelo visual, os usuários podem postar fotos
e vídeos de curta duração, aplicar efeitos a eles e também interagir com publicações de outras
pessoas, por comentários e curtidas. A comunicação se dá basicamente por meio da publicação
de imagens, textos, vídeos, emojis, pelas curtidas e compartilhamentos da postagens e
recentemente pelas lives. Além disso, um usuário pode seguir o outro para acompanhar suas
postagens e suas atividades na rede. Nele também encontramos o recurso de uso das hashtags,
que servem como um mecanismo de busca das publicações, e ajuda na hora de segmentar
o público. A plataforma foi lançada em 2010 pelo norte-americano Kevin Systrom e pelo
brasileiro Mike Krieger, ambos engenheiros de software.
No mesmo dia do lançamento, o aplicativo tornou-se o mais baixado na Apple Store e,
já em dezembro do mesmo ano, contava com a marca de 1 milhão de usuários. Em 2011, a
empresa, que inicialmente tinha apenas 6 funcionários, já possuía 10 milhões de usuários na
rede, conforme pesquisa realizada recentemente pela companhia Statista, dados apuradsos no
site www abcreporter.com.br, dia 15 de dezembro de 2021.
Os principais recursos do Instagram que contribuem para a comunicação e interações
entre os usuários no aplicativo foram implementados ao longo de sua existência. Edição de
imagem, botão de curtidas, comentários, seguido e seguindo, explorar, marcação em fotos, troca
de mensagens diretas, marcador de localização, os canais de vídeo e recentemente as live.
123

Imagem 19: Kevin Systrom e Mike Krieger, os criadores do Instagram


Fonte: https://rockcontent.com/br/blog/instagram/

No que diz respeito ao impacto no processo comunicativo a plataforma “modifica a


materialidade do que se entende por ‘discurso’, com tudo que isso implica em termos de
relações sociais e de construção da subjetividade”. (MAINGUENEAU, 2015, p. 170)
Para Maingueneau (2015) estes atos perpetuados pelos internautas são elevados à
condição de enunciados corriqueiros dos internautas e apesar de estar comentando sobre as
mídias sociais, em geral, suas observações dialogam e são válidas com a descrição das
interações que acontecem no Instagram.

mais embaraçoso, no entanto, é o fato de vermos proliferarem tipos de


enunciados dos quais é difícil dizer que tenham algo a ver com troca verbal.
Basta pensar nos “tuítes”, nos “curtir”, nos “comentários” nos perfis no
Facebook, nas “reações” dos internautas às notícias nos sites de informação,
etc. Pode tratar-se também de mensagens não verbais (arquivos musicais,
vídeos ou fotos), acompanhadas muito frequentemente de falas, e que podem
ser “compartilhadas” sem contato físico. (MAINGUENEAU, 2015, p. 171)

E, prosseguindo em suas reflexões sobre as variedades de formatos encontrados para os


enunciados do tipo postagem em plataformas de redes sociais digitais, o pesquisador
Maingueneau (2015) salienta, “a própria identidade da obra se tornou problemática, na medida
124

em que a estabilidade dos textos se torna incerta e com ela própria a possibilidade de construir
uma memória”. (MAINGUENEAU, 2015, p. 78).

As postagens tendem, além disso, a se libertar das restrições usuais da


organização textual, das formas de textualidade orgânica. Não se trata, como
numa conversação ordinária, de intervenções de diversos interlocutores que
combinadas, vão formar uma totalidade composicional mais vasta. Podem
reduzir-se a um sinal de pontuação, um emoticon, uma palavra, um grupo de
palavras, uma ou várias frases... Estamos longe da correspondência epistolar,
que dificilmente pode dispensar os textos, ou da conversação, na qual os
interactantes cooperam para constituir uma sequência estruturada, com seus
ritos de abertura ou de fechamento, e uma necessidade de acabamento.
(MAINGUENEAU, 2015, p. 171)

Seguindo o mesmo protocolo e procedimentos da primeira parte, olharemos para os


elementos inerentes ao meio digital e as suas particularidades conforme descrito nessa
introdução. Imagens, vídeos, textos, e emojis, não analisaremos as hashtags, pois, o coletivo
Vegano Periférico faz um uso insipiente deste recurso comum à plataforma. A amostragem
de hashtags, seriam irrelevantes para nossas análises.
Analisaremos especificamente as discursividade e a sua materialidade com a língua, a
historicidade e ideologia. Identificando os discursos políticos com relação às políticas de
Estado, ao consumo consciente inter-relacionando à cidadania e ao direito a saúde, a inclusão
social, a diversidade. Analisaremos a discursividade relacionadas ao feminismo negro,
observando a interseccionalidade e os marcadores sociais (raça, classe e gênero). Apresentamos
nossas análise na seguinte ordem:

1. Discursos políticos e consumo consciente: um tributo à vida periférica;


2. discursos políticos e crítica social: diversidade, inclusão social e solidariedade
periférica;
3. discursos políticos e interseccionalidade: o aquilombamento na periferia ;
4. discursos políticos e saúde: um diagnóstico desfavorável para a periferia.

E por fim apontaremos alguns resultados encontrados, utilizando-se da técnica


proposta pela Maria Acosta (2019), combinando os eixos das ordens de discurso e de
significados discursivos, com base em Fairclough (2001) e Foucault (2010), como forma de
representar aspectos do mundo saber:

ao se associarem formas prototípicas a determinados significados não se trata


de mapeamento de regularidades, como em outras perspectivas funcionalistas
do estudo da linguagem, mas de assumir uma relativa sistematicidade como
125

característica dos usos da linguagem em sociedade (FAIRCLOUGH, 2001).


É dizer, determinados processos sociais são realizados por meio da linguagem,
de modo relativamente estável (BAKHTIN, 2010). Por isso, compreendo que
o tipo de análise que se propõe não deriva de um pensamento categórico e
engessado, mas de um movimento situado de produção de conhecimento que
não busca a generalização dos resultados das análises, mas o
compartilhamento de reflexões sobre processos discursivos e seus contextos
de produção (FOUCAULT, 2008). (ACOSTA, M. 2019, p. 161)

A seguir apresentamos um quadro com os eixos de discurso e significados


discursivos, localizado nos estudos de Maria Acosta (2019), com base em Fairclough (2001) e
Foucault (2010). Segundo Acosta (2019) para realizarmos investigações discursivas
textualmente orientadas, “Fairclough (2001) propõe a atualização do mapeamento da
multifuncionalidade da linguagem associada ao conceito ao conceito da ordem de discurso de
Foucault (2010)”. E complementa que

Cada significado do discurso se articula como realização de um dos eixos das


ordens de discurso: o eixo da ética está articulado ao significado
identificacional, relizando se prototipicamente por estilos como forma
deidentificar (-se) no mundo social; o eixo do poder, ao siginificado acional,
por gêneros discursivos como forma de agir, por meio do discurso, no mundo
social; e o eixo do conhecimento ao significado representacional, por
discursos como formas particulares de representar aspectos do mundo.
(ACOSTA, M. 2019, p.160)

Quadro 2: eixos das ordens de discursos e significados discursivos


EIXO DO SER EIXO DO PODER EIXO DO SABER
Significado Significado Significado representacional
identificacional Acional
• Formas de se identificar • Formas de agir no mundo • Formas de compreender
no mundo social; social; aspectos do mundo social;
• realizado no plano da • realizado no plano da • realizado no plano da
expressão, prototipicamente expressão, prototipicamente expressão, prototipicamente
por estilos. por estilos. por discursos.

Fonte: elaborado pelo autor com base em Acosta (2019), Fairclough (2001) e Foucault (2010).

A partir destes apontamentos apresentamos a seguir nossas análises do Instagram do


coletivo Vegano Periférico e utilizaremos os eixos das ordens de discursos e significados
discursivos para demonstrar os discursos que nos propomos identificar e interrelacionar: os
discursos políticos e disciplinares.
126

4.1.1 - Discursos políticos e consumo consciente: um tributo à vida periférica

As formações discursivas apresentadas a seguir, reforçam as posições e os sentidos


disputados pelo Veganismo interseccional. O Vegano Periférico, por meio do interdiscurso
(memória), aciona sentidos outros, que fazem parte da historicidade e se inter-relacionam com
os discursos marxistas e socialistas. Fica evidente a posição sujeito-ativista dos irmãos
Luvizetto, reafirmando não haver veganismo sem lutas e sem olhar para o recorte de classes.

“O veganismo sem recorte de classe, sem cultura popular, sem referências e sem um trampo de
base, nunca vai atingir a maior parte da população de forma concreta, sempre vai chegar pra
maioria de nós, como um movimento elitizado, classista e excludente. Por isso, é de suma
importância a propagação de um movimento político e popular”.

Problematizando o uso dos animais como objetos, transformados em mercadorias e


ressaltam a alienação da sociedade por ignorar os processos envolvidos na produção e criticam
o desinteresse por consumo sem consciência. Entre as palavras usadas, eles enunciam que a
atitude dos veganos liberais parece “revolucionário” quando apoiam as empresas que produzem
produtos planted-based (processados e industrializados), porém é uma crítica ao consumo de
produtos de empresas que exploram a proteína animal.

“A maioria vai por um caminho que até soa “revolucionário”, que é consumir produtos vegetais
de grandes redes de fast-food, comprar carnes vegetais de frigoríficos, financiando essas
grandes empresas exploradoras”.

A metaforização adotada faz uma referência irônica ao uso da palavra “revolucionário”


que, em outra interpretação ideológica nos remete aos discursos relacionada à Revolução
Russa, período de conflitos, iniciado em 1917, que derrubou a monarquia russa e levou ao poder
o Partido Bolchevique, de Vladimir Lênin. Recém-industrializada e sofrendo com a Primeira
Guerra Mundial, a Rússia tinha uma grande massa de operários e camponeses trabalhando
muito e ganhando pouco. Nesse sentido a disputa discursiva fica evidente que a questão passa
pelo social, e que é um confronto direto com a classe média (burguesia). Orlandi nos lembra
que
para a língua fazer sentido, a língua, sujeita a falhas (divisão), se inscreve na
história, produzindo a discursividade. A discursividade, por sua vez,
caracteriza-se pelo fato de que os sujeitos, em suas posições, e os sentidos,
constituem-se pela sua inserção em diferente formações discursivas. Estas se
definem como aquilo que o sujeito pode e deve dizer numa situação dada em
127

conjuntura dada, e refletem, no discurso, as formações ideológicas.


(ORLANDI, 2017, p. 152)

A discursividade analisada é um embate com a outra vertente do movimento, os veganos


liberais. Nos textos produzidos, por meio linguagem, o Vegano Periférico utilizou-se da
paráfrase usando o outro nome dos veganos liberais (veganos estratégicos).

“Esse veganismo "estratégico" que abraça as grandes empresas e acredita que o sistema
capitalista vai resolver os problemas que ele mesmo criou é atrasado, elitista, excludente e
totalmente fora da realidade. Estratégia não é se aliar ao inimigo, estratégia é se aliar ao povo.
Se opor a essas empresas é o mínimo que devemos fazer, jamais iremos apoiar ou incentivar
essas corporações só por causa de produtinho com selo "vegano". Nós temos vergonha de
consumir produtos dessas corporações. Ainda mais pra gente, que cresceu na periferia
consumindo ultraprocessados, industrializados, açúcar em excesso, produtos de origem animal
sem ter a noção do quanto tudo isso é prejudicial em todos os sentidos e o quanto a indústria
alimentícia condicionou o nosso consumo. Não se fala sobre o nutricídio que ocorre nas
periferias, poucos falam sobre isso no veganismo. A rapaziada tá preocupada com uma
maionese que contém 18 ingredientes, com hambúrgueres de empresas que exploram animais,
com redes de fast food exploradoras”.

E na metaforização da palavra questionaram se é uma atitude “estratégica”, consumir


produtos de empresas que não têm nenhum compromisso com causa animal. “Estratégia não é
se aliar ao inimigo, estratégia é se aliar ao povo.” Em algumas postagens encontramos um
discurso contra a produção dos frigoríficos.

“Pois a gente sabe muito bem qual é que é a intenção dessas empresas em se apropriar de uma
causa tão importante e nóis tá ligado que não é o fim da exploração animal e sim o lucro, a fatia
de mercado, a grana. Quando empresas como a JBS, a Seara, a BRF, a Marfrig, a Sadia, o KFC,
o Burger King, O Subway, o McDonald's, entre outras, lançam um produto vegetal no mercado,
elas não estão preocupadas de fato com a morte de bilhões de animais. Milhares de notícias em
grandes mídias confirmam o quanto elas estão preocupadas apenas com a “tal mania vegana”,
com o nicho de Mercado e com a moda dos hambúrgueres "à base de planta".

Percebemos a materialidade da linguagem fazendo a mediação entre os sujeitos, a


realidade natural e social. Orlandi (2017, p. 152) enfatiza que “a linguagem é nesse sentido, um
trabalho uma prática. O que ela tem de específico é que ela é um trabalho simbólico. E como
tal, ela exerce sua ação transformadora enquanto mediação entre o sujeito e a realidade.”
O Vegano Periférico enuncia que os veganos liberais produzem discursos
despolitizados, alienados que não agregam valor à causa. Umas das teorias da análise de
discurso é a produção do não-sentido, e entendemos que o Vegano Periférico produz um não-
128

sentido para os discursos dos veganos liberais. Quando excluem os veganos liberais “do
político” do movimento, e associam essaa vertente do movimento ao governo Bolsonaro, como
apoiadores de políticas neoliberais, em outras palavras, em nossa análise, os veganos liberais
apoiam o governo, logo seriam contra o meio-ambiente, contra políticas inclusivas, concordam
a liberação de agrotóxicos e apoiam agropecuária.
Empresas que produzem proteína animal buscam oportunidades pelo aumento da
produção e do lucro, seguindo os preceitos do mundo capitalista. A discursividade questiona s
a posição dos veganos liberais cooptados pelas lógicas do mercado.

“Qual o real sentido de aplaudir e se aliar a essas grandes marcas, como Unilever, Coca-Cola e
Nestlé? Essas megaempresas só querem lucro, lucro e mais lucro... acima de qualquer coisa,
seja explorando seres humanos, destruindo o planeta ou explorando animais inocentes. É muita
ingenuidade acreditar que estão preocupadas com veganismo ou qualquer outra causa”.

O Vegano Periférico fala da importância do posicionamento político para descontrução


do imaginário que movimento vegano é elitita, classista e excludente. Os discursos dos irmãos
Luvizetto são convocatórios, para que o povo faça parte da luta, que boicotem produtos
industrializados e processados, que consumam produtos in natura e que através da informação
avancem na luta e combatam o nutrícido ao qual são impostos. Orlandi (2017) , salienta que

a materialidade específica da ideologia é o discurso e a materialidade


específica do discurso é a língua. Por isto, ao observarmos como a língua
produz sentidos temos acesso ao modo como a ideologia está presente na
constituição dos sujeitos e dos sentidos. A ideologia, por sua vez, está em que
o sujeito, na ilusão da transparência e o sob o domínio de sua memória
discursiva — alguma coisa fala antes, em outro lugar independentemente —
pensa que o sentido só pode ser “aquele” quando, na verdade, ele pode ser
outro. (ORLANDI, 2017, p. 153)

A seguir apresentamos algumas imagens das postagens e os principais discursos


políticos e de consumo consciente encontrados no Instagram utilizando se dos eixos das ordens
de discursos e significados discursivos.
129

Imagem 20: posts do Instagram coletivo Vegano Periférico

Quadro 3: discursos na categoria político e consumo consciente

DISCURSOS

DISCURSOS DISCURSOS DISCURSOS DE


EIXOS POLÍTICOS DISCIPLINARES REEXISTÊNCIA
DECOLONIAL

“A maioria vai por um “É só uma reação “a maior parte da


caminho que até soa natural dessas empresas população precisa de
“revolucionário”, que de cooptar uma causa e rango de verdade,
é consumir produtos continuar explorando comida que não
EIXO DO SER vegetais de grandes milhares de animais, adoece, porque quem
(CONSCIÊNCIA) redes de fast-food, funcionários e a Terra.” mais morre e mais
comprar carnes sofre são os pobres e
Significado vegetais de negros... a classe
identificacional frigoríficos, média e a elitizinha
financiando essas consome orgânicos,
grandes empresas arroz, pão e farinha
exploradoras.” integral...”
130

“O veganismo sem “No movimento vegano “Precisamos falar de


recorte de classe, sem a maior parte das veganismo com
cultura popular, sem pessoas são totalmente comida de verdade,
EIXO DO PODER referências e sem um despolitizadas, vem de incentivando o
(CRIATIVIDADE) trampo de base, nunca uma elite que não pequeno produtor,
vai atingir a maior precisa se preocupar precisamos entender
Significado parte da população de com política e com suas que alimentação não
Acional forma concreta, consequências para a tem nada a ver com
sempre vai chegar pra maior parte da natureba ou dieta, se
maioria de nós, como população, e não alimentar bem é um
um movimento compreendem que o ato político e é de fato
elitizado, classista e sistema em si é o um ato de resistência”.
excludente.” principal responsável
pela morte de bilhões
de animais.”
“Esse veganismo “...a gente, que cresceu
"estratégico" que na periferia
abraça as grandes consumindo
empresas e acredita ultraprocessados,
que o sistema industrializados, açúcar
capitalista vai resolver em excesso, produtos
os problemas que ele de origem animal sem
EIXO DO SABER mesmo criou é ter a noção do quanto
(CRÍTICA) atrasado, elitista, tudo isso é prejudicial
excludente e em todos os sentidos e
Significado totalmente fora da o quanto a indústria
Apresentacional realidade. Estratégia alimentícia condicionou
não é se aliar ao o nosso consumo.”
inimigo, estratégia é se
aliar ao povo.”

Fonte: elaborado pelo autor

SÍNTESE

Discurso Políticos – Discursos políticos contra empresas alimentícias; convocatório com


ideologia marxista e contrário às estratégias dos veganos neoliberais;

Discursos Disciplinares – discursos para disciplinar consumidores de novos produtos;


ideológicos que aliena o consumidor, crítica aos discursos disciplinaesr de consumo da indústria
alimentícia;

Discursos de reexistência – resistência ao sistema alimentar hegemônico, por meio da comida,


como ato político.
131

4.1.2 - Discursos políticos e crítica social: diversidade, inclusão social e solidariedade


periférica

Os discursos do Vegano Periférico nessa categoria se entrelaçam com os outros


discursos analisados, no documentário e nas outras categorias de análises que construímos do
Instagram. Os irmãos procuram olhar para todas as camadas de problemas que assolam a vida
de sujeitos periféricos. A exclusão, a violência, a ausência de lazer e de políticas públicas, e na
alimentação relatam a dificuldade de acesso à informação, denunciam a agressividade da
publicidade e o alvo principal é a dificuldade de acesso a produtos in natura e o preço de
produtos processados e industrializados.

“Não é atoa que existem miséria, ignorância e alienação total na maior parte da população. Há
grandes corporações, banqueiros e magnatas se beneficiando com pessoas em situação de
vulnerabilidade extrema e não se sentem nenhum um pouco incomodados com isso. Quando
falamos de animais não humanos a compaixão chega a ser inimaginável. Abaixo dos poderes
estamos todos fudidos, mas agora alguns tem clareza. Nóis memo aqui da página tivemos que
trampar no Méquidonaldis por não ter onde morar, pra não ir pela décima vez morar de favor
na casa dos parentes. Tivemos e ainda temos uma vida com muitas dificuldades, porém temos
clareza da nossa situação e conseguimos enxergar todo esse sistema e sua podridão. Tem espaço
pra todo mundo, tem tecnologia, tem dinheiro e comida pra alimentar o mundo inteiro, só que
solidariedade não gera riqueza e sem competição não tem como gerar lucros”.

Nas análises que fizemos sobre o documentário, ressaltamos a importância da cidade na


significação dos sujeitos e apresentamos reflexões da Orlandi (2017) que diz que “há uma
geografia da violência, há uma lógica da violência, há uma economia da violência, própria ao
sistema capitalista e está presente no modo como o espaço urbano se organiza, é gerido pelo
Estado”. E continua,

Para fazer face a isso, temos de aprender novas formas de sociabilidade, novos
modos de pensar coletivamente, não reagindo pelo medo, reivindicando
condições de sociabilidade praticáveis, mobilizando instituições, mídia,
configurando programas que atendam as necessidades sociais. É preciso temos
presente e não desistirmos de nossa condição de seres simbólicos, que
significamos na sociedade e na história. (ORLANDI, 2017, p. 212)

No veganismo os Luvizettos encontraram uma forma de serem visibilizados e elaborar


um discurso inclusivo, de resistência e de ressignificação de sujeitos periféricos se
autorrepresentando.
132

“Sei que a causa vegana é uma causa política, muito importante ser abordada e difundida em
qualquer lugar, porém, depende muito de como isso é feito. Alguns nunca passaram fome,
nunca foram em uma periferia, nunca foram em um bairro muito carente e nem tem amigos
nessas condições, nunca vivenciaram situações de extrema falta de recursos. Não sabem como
é a cultura, o ambiente, a linguagem, as conversas, as motivações, etc... Com isso, quero colocar
a importância de tomarmos muito cuidado ao falar que todo mundo pode ser vegano, criticar
todo mundo e apontar o dedo, principalmente pra classe mais sabotada da sociedade, dizendo
que "esses são pior ainda". Temos que tomar cuidado ao usar palavras que o povo não entende.
Falar em uma linguagem complexa, mais acadêmica, pode nos trazer mais credibilidade e
confiança, mas não exatamente a fácil compreensão da nossa informação e isso vai dificultando
cada vez mais a mensagem que queremos passar”.

O princípio básico do neoliberalismo é produzir a individualidade, a auto-gestão, o


cuidar de si. Orlandi (2017, p.187) ressalta a produção do sujeito, “pelo Estado, estabelecidas
pelas instituições, resultam em um indivíduo ao mesmo tempo, responsável e dono de sua
vontade”. E Orlandi (2017), nos dá algumas pistas nas perspectivas de produção da sociedade
capitalista contemporânea e apresenta a seguinte reflexão:

uma sociedade que vai além da exclusão, ela funciona pela segregação (coloca
para fora da sociedade, e, quem está fora, não existe, não é levado em conta).
Estes seus valores, por sua vez, são praticados pela sociedade que, enquanto
sociedade de um sistema capitalista, é estruturalmente dividida, e
administrada pelo Estado, que como dissemos sustenta-se no aparato e
ideologia jurídicos. Assim, tanto as posições sujeito como os sentidos que eles
produzem são funções dessa divisão. (ORLANDI, 2017, p. 203

Entretanto, está na dimensão dos coletivos, o aquilombamento, a solidariedade e o


entendimento que ao agir juntos o movimento ganha força. Os discursos encontrados nessa
categoria enunciam que o “ato político” de comer e que o veganismo consegue transformar a
realidade de sujeitos periféricos. Para além da resistência, constrói-se uma (re)existência, as
lutas constituídas promovem a fala e a escuta, mesmo em um sistema desenhado para o seu
apagamento. (ACOSTA, 2019, p. 153) . Na perspectiva da solidariedade Acosta nos diz que

a solidariedade é uma condição inerente as formas de reexistentes de vir a ser


no mundo. Contudo, não é nos lugares sociais desenhados pela hegemonia,
nem, tampouco, usando as “ferramentas dos patrões” (LOEDE, 1978) que a
reexistência se realiza, ou mesmo pode ser estudada. É fundamental a
construção de espaços sociais em que a solidariedade possa instaurar-se.
(ACOSTA, 2019, p. 152)

A dieta vegetariana conseguiria abalar as estruturas de empresas que produzem


proteína animal. E é possível ser pobre, comer bem, com variedade e de forma barata. Apesar
da gourmetização do movimento vegano, mesmo produtos caros e difíceis de serem
133

encontrados na periferia, a alimentação vegana é mais barata que uma alimentação baseada em
proteína animal. É interessante perceber que ao longo das nossas análises, eles têm um discurso
coerente, articulado e politizado.

“Apesar de o arroz e o feijão estarem muito caros (mas já estamos tirando a Dilma e tudo vai
melhorar), sai muito mais barato comer produtos de origem vegetal. De fato, economizamos
muito mais hoje. Porque acreditamos que o único caminho é o veganismo simples, acessível e
popular, viável para a realidade da maioria das brasileiras e brasileiros”.

Entretanto, durante o governo da Dilma Rousseff,num exercício de futurologia, mal


sabiam o que estava por vir, e analisando a história recente, esta claro que a decisão pelo
impeachment não foi uma escolha determinada pelo povo, o que demonstra que foram
influenciados pela mídia e por uma ideologia materializada pelo discurso.
A questão da linguagem continua presente nas postagens a seguir, com destaque para o
post que publicaram o texto de autoria de Eduardo Marinho. O texto problematiza a relação da
academia, estar distante dos problemas sociais e por usar uma linguagem “academês”,
incompreensível para a periferia. O texto não faz nenhuma citação, mas apresenta uma relação
discursiva com textos produzidos por Lelia Gonzalez, militante do movimento negro,
professora universitária e ativista no movimento feminista negro. Gonzalez defendia o uso do
“pretuguês”, nessa perspectiva Eduardo Marinho publicou um post no espaço do Vegano
Periférico:

“Cê tem que falar a língua do ignorante, porque ele foi ignorantizado. Quando eu tô diante de
um cara desdentado, analfabeto, eu não tô diante de um inferior, eu tô diante de uma vítima de
crime social, a sociedade é criminosa, então se eu tive meus direitos respeitados, eu tenho uma
dívida com essa galera, eu não tenho superioridade.”

A partir do corpus formado pelo documentário e dos post do Instagram, selecionamos


as palavras que mais se repetiram nas postagens e num exercício de apurar a linguagem utilizada
pelos irmãos Luzivetto, selecionamos os vocábulos que possam ser entendidos como gírias,
dialetos ou linguagem do gueto, marcando a história e a ideologia do coletivo, apresentamos a
pesquisa em forma de nuvem de palavras.
134

Imagem 21: nuvem de palavras com gírias do VeganoPeriférico


Fonte: autor

Imagem 22: nuvem de palavras com as palavras mais usadas nos posts do VeganoPeriférico
Fonte: autor
135

O coletivo Vegano Periférico, não usa hashtags em suas postagem o que apresentou
uma certa dificuldade para selecionarmos e analisarmos o uso das palavras e os rastros
discursivos e de consumo presente nas redes sociais. A seguir apresentamos algumas imagens
das postagens e os principais discursos políticos e de consumo consciente encontrados no
Instagram utilizando se dos eixos das ordens de discursos e significados discursivos.

Imagem 23: posts do Instagram Vegano Periférico

Quadro: 4 discursos na categoria critica social

DISCURSOS

DISCURSOS DISCURSOS DISCURSOS DE


EIXOS POLÍTICOS DISCIPLINARES (RE) EXISTÊNCIA
DECOLONIAL

“Há grandes “Tudo é muito pensado “O pouco que


corporações, para tornar o mundo em podemos fazer é sair
banqueiros e magnatas uma arena, onde todo da teoria e ir pra
se beneficiando com mundo é inimigo de prática, contaminar
EIXO DO SER pessoas em situação de todo mundo”. mais e mais gente de
(CONSCIÊNCIA) vulnerabilidade forma clara e pacífica
extrema e não se contra todo tipo de
Significado sentem nenhum um opressão”.
identificacional pouco incomodados
com isso”.
136

“Apesar de o arroz e o “Não estamos falando “Temos que tomar


feijão estarem muito isso porque assistimos cuidado ao usar
EIXO DO PODER caros (mas já estamos um vídeo, vimos em palavras que o povo
(CRIATIVIDADE) tirando a Dilma e tudo um documentário ou não entende.”
Significado vai melhorar), sai em algum livro por aí,
acional muito mais barato nós vivemos isso.”
comer produtos de
origem vegetal.”
“É nítido que a “Não só seres humanos “O academês foi
maioria das pessoas sofrem com a ganância formulado pra servir
enxerga o veganismo e com a sabotagem, os de cerca de arame
como se fosse algo animais não humanos farpado pro
extremista e fora da sofrem horrores, tanto conhecimento não
realidade.” dor física quanto alcançar a maioria, pra
psicológica, são não dar acesso, é
EIXO DO SABER tratados como coisas, preciso pegar essa
(CRÍTICA) levando uma vida de cerca e derrubar, é
servidão e angústia.” preciso falar errado, é
Significado preciso engolir plural,
Apresentacional errar concordância, é
fácil falar.”
Fonte: elaborado pelo autor

SÍNTESE

Discurso Políticos – Discursos político crítico ao capitalismo, à economia neoliberal, ao


sistema alimentício que é defendido pelo governo;

Discursos Disciplinares – Discursos disciplinares crítico à alienação por meio de materiais


publicitários, ou pela educação. Crítica as disciplinas impostas ao humanos e aos não humanos;

Discursos de reexistência – Críticas políticas de resistência contra a língua e ao sistema


acadêmico que dificulta o acesso de pessoas comuns ao conhecimento.

4.1.3 - Discursos políticos e interseccionalidade: o aquilombamento na periferia

O Instagram do coletivo Vegano Periférico ganhou status de espaço de diálogo,


acolhimento e ativismo. Os irmãos veganos cedem o espaço para que outros sujeitos veganos
contribuam com a causa, mas que também visibilize outras pautas. Como já demonstramos a
interseccionalidade está na dimensão dessa vertente do veganismo e o cruzamento dos diversos
marcadores sociais contribuem para que sistemas opressivos sejam combatidos. Para a causa
animal é importante a participação desses sujeitos, porque a experiência deles, na luta contra
sistemas opressivos, patriarcais e heterocisnormativo ajuda entender e superar as dificuldades
137

na libertação dos animais não humanos, tratados como mercadorias, sem respeito, ética ou
moral.
Discursivamente percebemos que por meio do veganismo, esses sujeitos buscam
resgatar suas origens ancestrais, relacionada a uma alimentação saudável, mas não,
simplesmente, buscam ter contato com a cultura e os hábitos silenciados acessando lugares de
memória e, na prática da oralidade, através das lives ou extrapolando o espaço digital, nas rodas
de conversa que organizam para debater assuntos pertinentes a causa animal, questões de raça,
classe, gênero, sexualidade, cultura e educação.

“Não é atoa que existem miséria, ignorância e alienação total na maior parte da população. Há
grandes corporações, banqueiros e magnatas se beneficiando com pessoas em situação de
vulnerabilidade extrema e não se sentem nenhum um pouco incomodados com isso”.

“Ensino veganismo popular, antirracista e acho que até anti-LGBTfóbico já que faço questão
de mostrar quem sou, o SAPAvegana não é a toa e, acreditem, muitos veganos/vegetarianos
deixam de me acompanhar”.

“A partir dessas pesquisas tmb descobri que o modo como a maioria da população negra desse
país se alimenta hoje, em nada se assemelha a diversas tradições ancestrais de diferentes povos
africanos, Mas sim a uma herança da colonização alimentar que favorece um projeto nutricida
do nosso povo”.

Estão dispostos a aprender, ensinar e compartilhar informação e por meio da


comunicação instruir a comunidade como se autorrepresentar, valorando o acolhimento, a
diversidade, estabelecendo novos modos de vida. Santos (2019) destaca que “neste momento
histórico, no qual o Estado tem sido posto em xeque por diversos lados – sendo a internet e as
redes sociais centrais no novo contexto - , os discurso têm assumido um papel cada vez mais
protagonista nas relações sociais.” (SANTOS, 2019, p. 132).
Como apontado por veganistas interseccionais essa vertente é uma forma evoluída do
veganismo que abre espaço para pessoas negras, LGBTQIA+, pessoas com alguma
(a)normalidade. Os extratos retirados do corpus apresentam a enunciação discursiva por meio
da interseccionalidade. E apresentam discursos de resistência e reexistência. As narrativas
apresentadas demonstram a dificuldade de autorrepresentação desses sujeitos, que em suas
comunidades passam por opressões semelhantes.
“Sou[...] ativista ANTILGBTQIA+fobia, na luta ANTIracista e ANTIespecismo. Falando em
amor não tem como não notar o desAMOR que rola em todas essas estruturas que mantém
138

esse sistema capitalista que fomenta toda o genocídio ao nosso povo, inclusive principalmente
através do nosso prato e de todas as nossas práticas de consumo”.

É possível afirmar que todos tiveram dificuldades com a alimentação por seguir um
padrão normativo, imposto pelo Estado. A dificuldade de acesso à informação e ao consumo de
produtos in natura, sendo refém de produtos caros e industrializados. Entretanto, a partir da
causa vegana e o aquilombamento nesses espaços de diálogo se redescobrem se reinventam e
conseguem enxergar a possibilidade de uma alimentação saudável, inclusiva e a possibilidade
de fazer política pelo político que a alimentação representa. Por meio do veganismo
interseccional estes sujeitos ganham voz e discursivamente elaboram novos sentidos para o que
é ser periférico. Por isso, para Santos (2019, p. 122) resistir (e reexistir) por meio dos textos
pode ser entendido como um processo pontencial inerente a todo e qualquer indivíduo
socialmente oprimido diante de um processo contínuo de iniquidades. O sentido construído
pelos discursos do Estado, da elite e classe média são pessoas à margem do consumo, isoladas
pelos muros dos condomínios das cidades, sujeitos ao abandono e a violência perpetuado pelo
poder do Estado. Porém, nessa alternativa discursiva, reelaboram as dificuldades encontradas
transformando a periferia em um lugar de potencialidades, sublimando as ausências.

O discurso é central no mapeamento de como opressões se desenham nos


textos e como são operadas no mundo; incluindo a possibilidade de que o
caminho inverso corra: o texto como potencializador de novas práticas,
apoiadas em discursos de ruptura e de resistência, visto que todo uso da
palavra envolve ação humana em relação a alguém, em um contexto
interacional específico no qual ocorre a busca pela apropriação, a batalha pela
as palaras e seus sentidos, a disputa por identidades sociais. E onde também
se configuram as relações dialógicas de reexistiências inscritas em processo
que envolve negociação, reinvenção e subversão de relações assimetricas de
poder (SOUZA, 2009, p. 57)

Comunicam a existência de uma economia, querem consumir produtos de qualidade,


investem em empreendimentos próprios lutam educação, saúde por e principalmente pela
alimentação saudável. O veganismo é uma alternativa viável, ato político, uma (re)existência
através da alimentação e da luta pela libertação animal. Esses sujeitos usam o Instagram pessoal
e colaboraram com a propagação do discurso do Vegano Periférico: é possível ser pobre, ser
vegano e ter uma alimentação barata e de qualidade. A seguir apresentamos algumas imagens
das postagens e os principais discursos políticos e de consumo consciente encontrados no
Instagram utilizando se dos eixos das ordens de discursos e significados discursivos.
139

Imagem 24: posts do Instagram Vegano Periférico

Quadro 5: discursos na categoria interseccionalidade

DISCURSOS
DISCURSOS DISCURSOS DISCURSOS DE
POLÍTICOS DISCIPLINARES (RE)
EIXOS EXISTÊNCIA
DECOLONIAL
“Há grandes “Falando em amor não “Eu queria que as
corporações, tem como não notar o pessoas enxergassem
banqueiros e magnatas desAMOR que rola em que é sim possível ser
EIXO DO SER se beneficiando com todas essas estruturas vegano, gastando
pessoas em situação de que mantém esse pouco, comendo bem,
(CONSCIÊNCIA)
vulnerabilidade sistema capitalista que respeitando todos os
extrema e não se fomenta toda o seres, e mantendo a
Significado
sentem nenhum um genocídio ao nosso tradição alimentar
identificacional
pouco incomodados povo, inclusive regional.”
com isso.” principalmente através
do nosso prato e de
todas as nossas práticas
de consumo.”
“Sou Modelo, “O academês foi “Cresci sendo
influencer digital, formulado pra servir de ensinada a comer
Voguer, capoeirista e cerca de arame farpado animais e foi preciso
EIXO DO PODER ativista pro conhecimento não encontrar minhas
ANTILGBTQIA+ alcançar a maioria, pra maneiras de evitar
(CRIATIVIDADE)
fobia, na luta não dar acesso, é recaídas”.
ANTIracista e preciso pegar essa cerca
Significado
ANTIespecismo.” e derrubar, é preciso
140

acional falar errado, é preciso


engolir plural, errar
concordância, é fácil
falar.”

“E falando em amor “A partir dessas “Ensino veganismo


não tem como não pesquisas tmb descobri popular, antirracista e
notar o desAMOR que que o modo como a acho que até anti-
EIXO DO SABER rola em todas essas maioria da população LGBTfóbico já que
estruturas que mantém negra desse país se faço questão de
(CRÍTICA)
esse sistema capitalista alimenta hoje, em nada mostrar quem sou, o
que fomenta toda o se assemelha a diversas SAPAvegana não é a
Significado
genocídio ao nosso tradições ancestrais de toa e, acreditem,
Apresentacional
povo, inclusive diferentes povos muitos
principalmente através africanos.” veganos/vegetarianos
do nosso prato e de deixam de me
todas as nossas acompanhar”.
práticas de consumo”.
Fonte: elaborado pelo autor

SÍNTESE

Discurso Políticos – Discursos políticos contra o capitalismo, o patriarcado, ao colonialismo e


especismo;

Discursos Disciplinares – discursos críticos contra as disciplinas impostas por meio da


alimentação, crítica a comida imposta. Questão proposta pelo DaMatta” alimento versus
comida”;

Discursos de reexistência – discurso de resistência por meio da comida, da educação e do


aquilombamento.

4.1.4 - Discursos políticos e saúde: um diagnóstico desfavorável para a periferia

Os extratos das postagens apresentadas a seguir referem-se à saúde do Eduardo


Luvizetto, por ser vegano e não consumir proteína animal, segundo discursos médicos, deveria
apresentar problemas com a saúde, principalmente ao que se refere à deficiência de vitamina
B12, conforme é recomendado pela comunidade de médicos e nutricionistas.

“É nítido que a maioria das pessoas enxerga o veganismo como se fosse algo extremista e fora
da realidade. E infelizmente isso tem um motivo “a forma elitista que muita gente propaga a
causa”. Mas na real, sem essa gourmetização patrocinada pelo capitalismo a parada é mais
simples do que a gente pensa”.
141

“Os resultados estão bem de boa, principalmente a B12 que é a preocupação de todos
(suplemento desde o começo). A suplementação é bem em conta, e é a única vitamina que
precisamos suplementar. (Pesquise sobre a B12).”

Os discursos produzidos pelos veganos estão em embate com os discursos produzidos


à favor do sistema alimentar hegemônico. O discurso alimentar hegemônico na ordem
discursiva é produzido por médicos, nutricionistas, conselhos de medicina/saúde e pelo Estado.
Entretanto, o sistema é criticado e apresenta problemas em sua discursividade.

“Ela olhou o hemograma (nutricionista), e surpresa com o resultado disse: "Aqui você não era
vegano né?! (kk) Nossa, a sua B12 estava excelente, nível de ferro e vitamina D também,
excelentes". Ela pediu Ferro, Cálcio, B12, VIT D, Potássio, Sódio, exames pro fígado e pros
rins”.

Veganos acusam o sistema hegemônico de não fornecer com clareza todas as


informações necessárias sobre a alimentação e que o consumo excessivo de carne e de produtos
industrializados e processados estão entre os principais responsáveis por doenças cardíacas,
hipertensão e diabetes. Os estudos produzidos pela comunidade acadêmica, encomendados pelo
Estado, são questionados porque sofrem pressão de segmentos do governo, que não tem
interesse de divulgar os malefícios da dieta à base de proteína animal.
Setores do agronegócio, empresas do setor alimentício estão entre os principais
investidores (patrocinadores) destas pesquisas. Dessa forma, os resultados finais destas
pesquisas são sempre questionados pelos veganos, que alegam o conflito de interesses.
Outro discurso proferido pelos veganos é que médicos, nutricionistas e profissionais de
educação física, receberiam presentes, jantares, congressos, viagens com a família, o que de
certa maneira influenciam, apoiam e colaboram com empecilho restringindo uma alimentação
estritamente vegetariana.
Como apresentamos no primeiro capítulo, documentário como “Dieta de Gladiadores”,
é um esforço dos veganos nos sentidos produzidos de que uma dieta vegetariana, pode ser
prejudicial à saúde. Outro exemplo, na mesma direção é o uso de pessoas famosas e
celebridades, como o esportista Lewis Hamilton, automobilista britânico e um dos maiores
pilotos de todos os tempos, sempre que possível ele diz ser vegano. Recentemente sua imagem
foi usada em uma campanha no Instagram da SVB, os posts apresentam pessoas famosas que
adotam a dieta vegetariana. Lewis Hamilton e Arnold Schwarzenegger, ambos, afirmam ter
142

obtido benefícios com a dieta vegetariana, melhorando a saúde, a disposição e o desempenho


esportivo.
Os irmãos Luvizetto, discursivamente ressaltaram a dificuldade de acesso de sujeitos
periféricos à saúde. Eduardo Luvizetto, para fazer a consulta e realizar os exames precisou
encontrar uma clínica baratinha,

“Colei numa clínica popular e o preço foi suave”.

Durante a consulta ele ressalta a lista de exames que apresentou, nas conformidades
estabelecidas pela medicina. Inclusive ressaltando haver uma preocupação generalizada com a
vitamina B12. Luvizetto produziu o seguinte enunciado:

“É possível ser pobre e vegano sem prejudicar a saúde”, mas propomos a construção
discursiva que seria “É impossível ser pobre e vegano sem prejudicar a saúde”.

Considerando os efeitos metafórico, a segunda formação discursiva nos leva a reforçar


os preconceitos com relação a uma dieta ausente da proteína, reforçando os sentidos construídos
pelos discursos hegemônicos da alimentação. Assim, duas formações discursivas, com posições
sujeitos diferentes, bem como reforça posições ideológicas distintas. Entre as postagens que
compôs o corpus, tendo em vistas que nosso objeto é o veganismo interseccional, no conjunto
de postagens classificadas na categoria saúde não identificamos nenhuma formação discursiva
que apresentasse o tema que aparece sempre no debate, a problematização do consumo de
alimentos processados por pessoas negras. Com destaque para o consumo dos produtos
nomeados “inimigos brancos”, farinha, sal e o açúcar e ainda as doenças mais presentes entre a
população afrodescendente, hipertensão, infarto e diabetes. Reproduzindo a colonização e a
escravização pelo estômago, submetendo esses sujeitos ao sistema de saúde por meio do
nutricídio, segundo conceito do Dr. Lailla O. Afrika, que exploraremos no próximo capítulo.
143

Imagem 25: posts do Instagram Vegano Periférico

Quadro 6: discursos na categoria Saúde

DISCURSOS

DISCURSOS DISCURSOS DISCURSOS DE


EIXOS POLÍTICOS DISCIPLINARES (RE) EXISTÊNCIA
DECOLONIAL

“Nós viramos veganos “Não tem anemia, não Depois que decidimos
pelos animais e por tem nenhuma infecção não mais contribuir
uma questão política, e ou alergia. Sua B12 tá com a indústria da
pra gente, se alimentar normalíssima, nível de exploração animal a
EIXO DO SER de forma adequada é ferro excelente, cálcio nossa saúde (mesmo
(CONSCIÊNCIA) mais do que um ato está ótimo quase não sendo esse o
político, é uma ultrapassando os objetivo) melhorou
Significado necessidade. valores normais, sódio muito...”.
identificacional e potássio ótimo... seus
exames estão
excelentes e você não
tem nenhuma
deficiência nutricional.
“Nossa alimentação é “Os resultados estão “Podemos afirmar,
básica, simples e bem de boa, que tendo consciência,
acessível. Não é caro e principalmente a B12 informação e
EIXO DO PODER muito menos difícil que é a preocupação de disposição é super
(CRIATIVIDADE) deixar de colaborar todos (suplemento possível e acessível se
com a indústria da desde o começo alimentar sem bicho
Significado morte”. (Pesquise sobre a morto, sem restos de
acional B12).” animais, sem leite de
vaca/derivados e sem
ovos”.

“Mas na real, sem essa “Ela olhou o “É possível ser pobre


gourmetização hemograma, e surpresa e vegano sem
EIXO DO SABER patrocinada pelo com o resultado disse: prejudicar a saúde?
(CRÍTICA) capitalismo a parada é "Aqui você não era Acreditamos que os
mais simples do que a vegano né?! (kk) dois maiores receios
Significado gente pensa”. Nossa, a sua B12 estava da rapaziada em
Apresentacional excelente, nível de relação ao veganismo
ferro e vitamina D seja a saúde e a grana.
144

também, excelentes". E não é pra menos, há


Ela pediu Ferro, Cálcio, muita desinformação e
B12, VIT D, Potássio, muitos mitos sobre o
Sódio, exames pro assunto, e isso acaba
fígado e pros rins”. gerando muita
confusão e dúvidas”.
Fonte: elaborado pelo autor

SÍNTESE

Discurso Políticos – Discursos político crítico ao capitalismo, à economia neoliberal, ao


sistema alimentício que é defendido pelo governo e crítico aos veganos neoliberais;

Discursos Disciplinares – discursos disciplinares de saúde, com aspectos biopolíticos, que


controlam índices de nutrientes por meio de expertises e tecnologias;

Discursos de reexistência – Políticas de resistência por meio da comida, contra a alienação e


aos sistema imposto pela saúde.

Concluimos as análisse das quatro categorias propostas, discursos políticos e


consciente, crítica social, interseccionalidade e sintetizamos os resultados dos quadros de
nossas análises no item a seguir.

4.2 - Sintetizando nossas análises do Instagram do coletivo Vegano Periférico

Apresentamos alguns exemplos dos principais discursos decoloniais identificados


no Instagram do coletivo Vegano Periférico, enquadrados as redes sociais segundo a tabela dos
eixos discursivos proposta baseada em Maria Acosta (2019), Fairclough (2001) e Foucault
(2010).
Dessa forma, notamos que a libertação animal apresenta sentidos complexos e
diferentes para cada uma das vertentes do movimento vegano. Nas pesquisas exploratórias,
notamos que a discursividade política é democrática, mas muito distante de chegar a um
consenso. Considerando-se que ao longo da historicidade do veganismo, sempre houve relações
dissensuais e contradições no movimento. Em nossa opinião, os sentidos estão em disputa, mas
esse problema dificulta o fortalecimento (a coerência) do discurso do movimento vegano contra
os discursos hegemônicos da alimentação produzido nas intituições estabelecidas como
autoridades. Entendemos que as formações discursivas dos interseccionais, dos liberais e o
discurso do movimento vegano, transformou-se numa arena de embates discursivos, que podem
145

trazer prejuízos para a libertação dos animais que por motivos óbvios são incapazes de se
defender ou produzir algum discurso ou sentidos por falta da linguagem.
Avançando sobre os discursos que encontramos, podemos afirmar que em o nosso
corpus apresenta imagens, textos, palavras, ou seja, linguagem que apresenta atitude decolonial,
de sujeito periféricos. Os discursos produzem novas epistemologias e demonstra a
discursividade incorporada no tecido social. Com formações discursivas dos sujeitos que
sustentam os três eixos propostos discursivos decolonial, o do ser, do poder e do saber.
Retornando aos conceitos da autorrepresentação e de periférico proposto por Bungué,
identificamos que os discursos localizados na rede social do Vegano Periférico, estão de acordo
com a ideia de uma nova construção de sentidos simbólicos e imaginados dos sujeitos
periféricos. Bungué acredita que o sujeito periférico tem a capacidade de transitar por diversos
espaços e perceber diferentes perspectivas em um mesmo contexto e define como proposta a
(des)construção de histórias, (pré)conceitos e estéticas, buscando promover múltiplas
possibilidades de (re)interpretações artísticas, políticas, conceituais e culturais. Nas palavras de
Bunguê, “periférico” “significa que se está num lugar onde é possível observar, onde é possível
compreender e, a partir daí, agir subjetivamente.” (BUNGUÉ, 2020, p. 300). Bungué entende
que ao longo desses anos no Brasil, é que o “periférico é aquele que circula, que vai para todo
lugar”.

Se o periférico não chega na zona Sul [zona nobre do Rio de Janeiro] não é
porque ele não pode, é porque o impedem de entrar. Diferente do “impostor”,
aquele que vive nesse “corpo-centro impostor”, o lugar condicionado como
centro econômico, de privilégio, ideológico, comportamental, que seria, na
falta de um melhor termo, esta zona dos excessos – não quero levantar aqui
uma discussão classicizante. O que eu quero é ajudar a compreender por que
o termo “periférico” merece uma desconstrução, no sentido de empoderar os
corpos periferizados, uma noção diferente de se ser periférico. Você é
“periférico” quando se assume como tal. Você é “periferizado” quando há uma
força impostora que está, de alguma maneira, escorraçando você para esta
condição. É nesse sentido que eu vejo o “ser periférico” como alguém que
transita, e quando ele transita, significa que ele sabe de onde é, mas também
sabe para onde pode ir. Aquele que não tiver essa noção de “ser periférico”
poderá estar em um lugar, e é justamente esse lugar que ele vai imacular e
impedir que todos os outros tomem parte, tornando todos os outros corpos
como “periferizados”, impondo que esses tenham que ficar fora do lugar de
privilégio, lugar de ostracização do outro. (BUNGUÉ, 2020, p. 301)

Para complementar nossas análises, onde a palavra periférico apareceu por esse trabalho
integralmente, os sentidos produzidos numa rede discursos impactados pelo intradiscurso e pelo
interdiscurso apresentamos uma última reflexão de Bungué, referente ao vocábulo “periférico”.
146

Esse termo “periférico” é usado no Brasil dessa forma pejorativa porque é


convencionado por pessoas racistas, escravagistas, e que forjaram um sentido
de nacionalismo brasileiro que não representa grande parte da população que
corresponde a mais de 50%, onde se enquadram os cidadãos e cidadãs que se
consideram negros afro-brasileiros. Associou-se à ideia de periférico a esses
indivíduos que estão majoritariamente habitando zonas limítrofes da cidade,
zonas que sofrem de uma maior precariedade e negligência por parte daquilo
que é o aparelho público do Estado. Nesse sentido, o periférico [termo
discriminatório] deve ser pensado para que nós entendamos que o periférico é
aquele que tem a capacidade de ser a força motriz de um país, de sair da dita
periferia para chegar no centro, porque ele assim vai transitar. Aquele que não
é periférico não sai do centro para ir à periferia e, portanto, não sabe o que é
ser periférico, não sabe, ou evita ou esforça-se para não saber o que é um
“corpo periferizado”. Este [“ser periférico”] não é um termo que tem uma
aplicação sociológica, se trata de uma convenção e uma atitude perante o
mundo. (BUNGUÉ, 2020, p. 301)

E concluimos nossas análises enfatizando que

“o discurso é central no mapeamento de como opressões se desenham nos


textos e como são operadas no mundo; incluindo a possibilidade de que o
caminho inverso corra: o texto como potencializadpr de novas práticas,
apoiadas em discursos de ruptura e de resistência, visto que todo uso da
palavra envolve ação humana em relação a alguém, em um contexto
interacional específico no qual ocorre a busca pela apropriação, a batalha pelas
palavras e seus sentidos, a disputa por identidades sociais. E onde também se
configuram as relações dialógicas de reexistiências inscritas em processo que
envolve negociação, reinvenção e subversão de relações assimetricas de
poder. (SOUZA, 2009, p. 57)
147

5 – POLÍTICAS E BIOPOLÍTICAS NO VEGANISMO INTERSECCIONAL

Neste capítulo trabalharemos os conceitos de biopolítica, bem como os conceitos de


necropolítica de MBEMBE (2018) e nutricído de AFRIKA (2004), por meio da observação das
políticas de Estado que trabalham com sistemas hegemônicos de alimentação e, por outro lado,
submetem sujeitos periféricos à dificuldades de acesso aos alimentos in natura, produzindo
desertos alimentares. Abordaremos também questões relacionadas ao consumo excessivo de
produtos industrializados e a ocorrência de determinadas doenças entre a população negra e
periférica. Exploramos os conceitos de governamentalidade, tecnologias e expertises em
(MILLER E ROSE, 2019) que representam a forma pela, qual o Estado exerce o poder de
controle e agenciamento sobre os sujeitos. Debateremos o poder do discurso e da linguagem
como uma dessas tecnologias para a produção de sujeitos dosséis e controláveis.
Entretanto, observamos que as tecnologias pelas quais os sujeitos são interpelados, “as
pessoas são regidas ou passam a regular as suas próprias ações com base na governamentalidade
hegemônica” (TEIXEIRA E HOFF, 2021, p. 8). Maciel (2005, p. 59) diz que “além de sua dimensão
biológica, a alimentação humana como um ato social e cultural faz com que sejam produzidos
diversos sistemas alimentares” e que

na constituição desses sistemas, intervêm fatores de ordem ecológica,


histórica, cultural, social e econômica que implicam representações e
imaginários sociais envolvendo escolhas e classificações. Assim, estando a
alimentação humana impregnada pela cultura, é possível pensar os sistemas
alimentares como sistemas simbólicos em que códigos sociais estão presentes
atuando no estabelecimento de relações dos homens entre si e com a natureza.
(MACIEL, 2005, p. 59)

Assim governos por meio de expertises, disciplinam os sujeitos e conseguem


controlar todo um sistema alimentar que se estabelece como hegemônico, como podemos
refletir, ainda com apontamentos feitos por Daniel e Cravo que frisa

A sociedade recomenda às crianças e aos jovens uma alimentação à base de


vitaminas e proteínas, com a finalidade de compensá-las pelo desgaste de
energia. As crianças e os jovens, no entanto, têm suas próprias ideias a respeito
do que é mais agradável comer: balas, sanduíches, chocolate, sorvete,
refrigerantes, etc. Existe, nesse sentido, um processo de socialização que
procura mostrar a eles que tais alimentos podem ser gostosos, mas não
nutritivos e podem ser prejudiciais: tiram o apetite, engordam, estragam os
dentes. Entretanto, essas questões passam pelo poder aquisitivo dos segmentos
sociais, e esse tipo de alimento, considerado não nutritivo, tem um espaço
muito maior nas classes abastadas do que nas famílias de baixa renda.
(DANIEL; CRAVO, 2005, p. 76).
148

Estas asserções estão em consonância com os discursos políticos produzidos pelo


Vegano Periférico, que criticam os discursos disciplinares estabelecidos pelos governos e pelas
indústrias alimentícias. Em suas enunciações problematizamos valores simbólicos que cercam
o consumo da carne e dos vegetais, estabelecendo inclusive relações que envolvem a
sexualidade. Na perspectiva social explorando a ideologia de recorte de classe pensemos em
um veganismo político, barato e inclusivo. Assim, Daniel e Cravo (2005, p. 81) contribuem com
o seguinte pensamento,

numa sociedade como a nossa, na qual a maioria da população é considerada


de baixa renda, em que o poder aquisitivo é constantemente reduzido pelas
crises socioeconômicas, o acesso ao alimento se torna cada vez mais difícil,
fazendo crescer os problemas da subnutrição. É claro que problemas de
alimentação inadequada podem ocorrer não só por razões econômicas. Assim,
há o caso de mulheres que fazem regimes alimentares por questão de estética;
crianças inapetentes, por razões psicológicas; ou ainda o homem do campo
que, por fatores culturais, observa uma dieta pobre em verduras e legumes.

Perseguindo nossos objetivos em identificar (bio)políticas, por meio, da comida e


da alimentação, trabalhamos com conceitos do biopoder, problematizando uma análise
produzida por DaMatta (1987) sobre a lógica da comensalidade brasileira, ele enfatizou que
“no ato de comer estão implícitas duas situações: ‘eu como para viver’ e ‘eu vivo para comer’”.
Entretanto, quando observamos as políticas alimentares hegemônicas e confrontamos com os
discursos produzidos pelo Estado, concluímos que os maus resultados não atendem as
demandas da população, estabelecendo um poder soberano sobre os sujeitos periféricos.
Achille Mbembe (2018, p.20) nos lembra que a soberania é a capacidade de definir quem
importa e quem não importa, quem é “descartável” e quem não é.
Para isso, consideraremos a historicidade e o momento político mundial e do país,
que enfrenta o coronavírus, porém o Brasil retornou a figurar no mapa da fome, submetendo os
indivíduos à insegurança alimentar (fome), ao nutricídio e a possíveis necropolíticas do Estado.

5.1 - Entre vírus e jacarés: subcidadania, insegurança alimentar e ausência do Estado.

Desde o início da campanha e durante os anos de mandato, Jair Bolsonaro ocupou os


espaços midiáticos, como as redes sociais, para implantar a sua ideologia de direita. Seu
discurso é de ser um governo conservador, sem corrupção, de resgate do patriotismo, de valores
religiosos e em defesa dos valores da família brasileira. O seu governo, em perspectiva
comunicacional, tem sido recorrentemente caracterizado como espetáculo midiático, gerado
149

pelas polêmicas geradas e reverberadas a partir de suas falas homofóbicas, xenófobas,


misóginas e em desrespeito aos poderes e leis instituídas pela constituição de 1988. Fiorin
(1998) ressalta ser importante lembramos que "na análise discursiva não devemos focar o olhar
na fala do enunciador suporte, nem falar da sua posição ideológica. Porque seu discurso pode
revelar formações discursivas, mas não é função do analista e da análise, revelar as verdadeiras
ideologias do enunciador". Diz (FIORIN, 1998). Fiorin nos alerta que a análise não se concentra
no enunciador real do discurso e sim no enunciador inscrito no discurso. "Com aquele que no
interior do discurso diz 'eu'. A análise, em síntese, não se interessa pela 'verdadeira' posição
ideológica do enunciador real, mas pelas visões de mundo dos enunciadores (um ou vários)
inscritos no discurso". (FIORIN, 1998, p. 49-51). Foram escândalos de corrupção envolvendo
sua esposa e seus filhos em desvio de dinheiro e o seu envolvimento com o crime apontando
para ligações estreitas com as milícias do Rio de Janeiro5. O pior ainda estava por vir, em
dezembro de 2019, os primeiros relatos de casos da Covid-19, na China, na cidade de Wuhan.
Em janeiro de 2020, a OMS publica o primeiro comunicado oficial sobre o assunto, relatando
44 de infecção na China. Entre os meses de janeiro e março, foram monitorados pelo governo
brasileiro diversas suspeitas de casos. Foram repatriados brasileiros que estavam na China e
alguns casos que levantam suspeita de contaminação no país. Iniciava-se especulações e
construções de imaginários em torno da doença.
Começava a circular na mídia que a Covid-19 seria uma doença de rico6, pois estava
associada à pessoas que viajam de avião e trariam a doença do exterior. Especulação que logo
foi refutada, com a morte da vítima Rosana Aparecida Urbano, de 57 anos, diarista, moradora
da zona leste de São Paulo. E depois seria confirmado por pesquisas de diversos institutos, que
a doença atingiria com maior abrangência as pessoas pobres e de comunidades periféricas. Com
dificuldade de acesso à água, saneamento básico e aos itens do protocolo básico, máscaras e
álcool em gel. Outro agravante seria de ordem econômica, que sem recursos financeiros e com
a demora do Estado em elaborar uma política de auxílio emergencial, a periferia teria problemas
em cumprir o isolamento social, resultando num rápido alastramento do contágio nas
comunidades periféricas e com a morte de milhares de pessoas.

5
MANSO, P. BRUNO. El País. A ligação do clã Bolsonaro com paramilitares e milicianos se estreitou com a
eleição de Flávio https://brasil.elpais.com/brasil/2021-04-24/a-ligacao-do-cla-bolsonaro-com-paramilitares-e-
milicianos-se-estreitou-com-a-eleicao-de-flavio.html Acesso: 10/01/2021
6
MAGENTA, Matheus. BBC News – Brasil. Coronavírus: como desigualdade entre ricos e pobres ajuda a explicar
alta de casos de covid-19 em Manaus < https://www.bbc.com/portuguese/brasil-54472139> Acesso: 11/01/2022
150

O ministério da saúde comandado pelo médico Luiz Henrique Mandetta procurou


organizar uma força tarefa de combate à epidemia. Mas a condução do problema deixou de ser
um problema exclusivo de saúde, e passou a ser politizado pelo presidente Bolsonaro, que
durante o ano de 2020 adotou uma postura de negação da doença. Subestimando o perigo e a
letalidade do vírus. Sua produção discursiva sempre foi contra a ciência. Defendeu durante todo
o tempo o uso do tratamento precoce. Divulgando remédios com testes científicos comprovando
a ineficiência para o tratamento da doença. Defensor da Hidroxicloroquina e Ivermectina ,
comprou uma grande quantidade da medicação ignorando os alertas da comunidade científica
quanto aos riscos que o tratamento acarretaria, conduta que, durante as investigações da CPI da
vacina, foi associada a negociações ilícitas junto à indústria farmacêutica. O presidente
B|olsonaro também assumiu posição contrária as determinações da (OMS) — Organização
Mundial da Saúde, e compareceu a eventos públicos, estimulando aglomerações e refutando o
uso da máscara.
O Brasil foi um dos primeiros países a receber uma proposta de participação no
consórcio das vacinas. Entretanto, Bolsonaro brecou a assinatura do contrato de acordo,
deixando o Brasil em posição vulnerável com relação à compra de vacinas, o que atrasou o
processo de compra e produção de vacinas. Mais de uma vez, em função de motivos e atos
políticos, entrou em confronto com o governador da cidade de São Paulo que articulou a
compra e produção da vacina CoronaVac, produzida a partir de insumos fabricados na China.
Na ocasião do anúncio da criação e autorização da vacina, o presidente protagonizou um
espetáculo midiático quando colocou em questão a qualidade dos testes científicos e a eficácia
da vacina chinesa, dizendo que senão ficaria surpreso se as pessoas virassem jacarés. Sua fala
virou même e foi alvo de inúmeras produções de mensagens nas redes sociais, quando a
vacinação era definida como a única solução viável para o controle da epidemia. Suas falas
sobre a pandemia ressaltavam que a Covid-19 não passava de uma "gripezinha", que pessoas
saudáveis seriam acometidos apenas de um resfriado, e sua conduta junto ao Ministério da
Saúde foi pouco assertiva, na medida que não definiu uma política clara de combate ao vírus e
trocou diversas vezes o ministro responsável pela pasta.
A política fortemente marcada por valores neoliberais do governo Bolsonaro evidencia
valorização da economia em detrimento do bem social, abordagem e decisões econômicas para
a gestão de problemas sociais históricos como a desigualdade, desqualificação e
desmantelamento de programas sociais, desrespeito à constituição do país no que tange a
diversos aspectos, dentre outras condutas de total desqualificação do social e do humano.
Exemplos não nos faltam: o governo foi lento em atender a necessidade de recursos financeiros
151

aos cidadãos vulneráveis, bem como a necessidade dos estados em situação de emergência
como o ocorrido em Manaus com a insuficiência de oxigênio para o tratamento dos infectados.
Liberação tardia do Auxílio Emergencial, com posição contrária do ministro Paulo Guedes que
privilegiava o controle do teto de gastos, enquanto o Brasil caminhava para mais profunda
miséria sendo constatado que o país retornou para o mapa da fome.

O falante, suporte das formações discursi vas, ao construir seu discurso,


investe nas estruturas sintáticas abstratas temas e figuras, que materializam
valores, carências, desejos, explicações, justificativas e racionalizações
existentes em sua formação social. Esse enunciador não pode, pois, ser
considerado uma individualidade livre das coerções sociais, não pode ser visto
como agente do discurso. Por ser produto de relações sociais, assimila uma ou
várias formações discursivas, que existem em sua formação social, e as
reproduz em seu discurso. (FIORIN, 1998, p. 43)

Em consonância à conduta neoliberal que caracteriza o atual governo, um grupo de


empresários aumentou o preço de produtos de primeira necessidade que compõem a cesta
básica. Bancos como Bradesco, Santander com campanhas publicitárias maravilhosas,
oferecendo auxílio para pessoas físicas e jurídicas, porém, empréstimos somente possíveis de
serem aprovados, empenhando como garantia suas casas e carros, proposta pouco generosa em
tempos de completa incerteza financeira.
Nesse cenário caótico, a sociedade civil, representada por outros empresários
,movimentos sociais, ONGs e a mídia, construíram uma rede de solidariedade para amenizar o
sofrimento e as mazelas geradas pela doença e total ausência de uma política social.
Comunidades são auxiliadas por igrejas católicas, evangélicas, terreiros de candomblé, de
umbanda, associações de bairro, e ainda o que tem algo divide o pouco que tem com quem não
tem nada. Um exemplo da mobilização da mídia é a campanha “Band contra a fome”, articulada
pela TV Bandeirantes, articulada pelo diretor-executivo de jornalismo Rodolfo Schneider e
diretor Nacional Fernando Mitre. Arrecadaram dinheiro e alimentos, doando para a (CUFA) —
Central Única das Favelas, Gerando Falcões e Amigos do Bem. Responsáveis por fazer os
recursos chegarem aos necessitados de auxílio. O presidente Jair Messias Bolsonaro, seguindo
na direção de desmonte nas políticas públicas do país, conquistas alcançadas nos governos de
esquerda anteriormente, com seu governo de direita conservador, têm adotado políticas
neoliberais e tomado decisões autocráticas. Ao final do primeiro semestre de 2021, atingíamos
uma média de 17.500.000 de casos e meio milhão de mortos pela Covid-19. O Presidente seguiu
firme com sua política negacionista contra a ciência e contra os protocolos apresentados pela
OMS. Em aparições midiática, após passeios de motos, passeios a cavalo, proferiu um
152

pronunciamento em favor da abolição do uso das máscaras. Exatamente no momento anunciado


uma terceira onda de contaminação do vírus. Ao lado desses eventos expostos, retomou-se a
CPI que investiga a atuação do governo frente ao combate da Covid-19.
Diversas manifestações ecoaram o “Fora Bolsonaro”, “Genocida”, protestos em favor
do impeachment aconteceram debaixo de violência militar em alguns estados do nordeste7.
perpetuando o Estado de bifurcação instaurado no país, num contexto adversárial, colocando
em risco a manutenção das instituições democráticas do país. Mouffe (2015) considera que
“quando as instituições parlamentares são destruídas ou enfraquecidas, a possibilidade de um
confronto agonístico desaparece, e o espaço é ocupado por um nós/eles antagonístico.
(MOUFFE, 2015, l. 610) e avançando nessa reflexão sobre a formulação de um conflito entre
o nós/eles, aqui representado pelo confronto de Bolsonarista e Lulistas Mouffe complementa e
explica que

oponentes não podem ser simplesmente considerados como concorrentes


cujos interesses podem ser tratados por meio de uma simples negociação ou
acomodados por meio da discussão, porque, nesse caso, o elemento
antagonístico teria sido simplesmente eliminado. Se por um lado queremos
reconhecer a permanência da dimensão antagonística do conflito, e por outro
permitir a possibilidade de que ele seja “domesticado”, é necessário considerar
um terceiro tipo de relação. É esse tipo de relação que eu sugeri chamar de
“agonismo”. Enquanto o antagonismo é uma relação nós/eles em que os dois
lados são inimigos que não possuem nenhum ponto em comum, o agonismo é
uma relação nós/eles em que as partes conflitantes, embora reconhecendo que
não existe nenhuma solução racional para o conflito, ainda assim reconhecem
a legitimidade de seus oponentes. Eles são “adversários”, não inimigos. Isso
quer dizer que, embora em conflito, eles se consideram pertencentes ao
mesmo ente político, partilhando um mesmo espaço simbólico dentro do qual
tem lugar o conflito. Poderíamos dizer que a tarefa da democracia é
transformar antagonismo em agonismo. (MOUFFE, 2015, L. 553-562)

Mouffe (2015) ressalta em suas reflexões que o conceito de “adversário” adotado por
ela precisa ser claramente diferenciado da interpretação que o discurso liberal dá ao termo,
dizendo:

ao meu ver, a presença do antagonismo não é eliminada, mas “sublimada”,


por assim dizer. Para os liberais, o adversário é um simples competidor. Para
eles, o espaço da política é um terreno neutro no qual grupos diferentes
competem pelas posições de poder; seu objetivo é simplesmente desalojar os
outros para ocupar seu lugar. Eles não questionam a hegemonia dominante, e
não existe nenhuma tentativa de transformar profundamente as relações de

7
G1. Manifestantes fazem ato contra Bolsonaro, e PM atira balas de borracha e gás lacrimogêneo nos
participantes; veja vídeo https://g1.globo.com/pe/pernambuco/noticia/2021/05/29/manifestantes-fazem-ato-
contra-bolsonaro-e-a-favor-da-vacina-no-recife.ghtml> Acesso:ECA/USP)/01/2021
153

poder. Trata-se simplesmente de uma competição entre elites. (MOUFFE,


2015, l. 572)

5.2 - Órfãos da Terra: políticas, comunicação e consumo vegano nas comunidades


periféricas.

O coletivo Vegano Periférico critica, de modo contundente, o sistema hegenônico


alimentar, as polítca públicas , a publicidade e as notícias veiculadas sobre veganismo, as quais
focam no consumo de produtos caros e industrializados. E condena os hábitos de consumo e o
apoio dos veganos liberais às empresas que se utilizam da causa, para aumentar seus lucros
produzindo mercadorias para o segmento.
Durante a pandemia, é fato que as comunidades periféricas foram negligenciadas por
políticas públicas. Houve um aumento brutal da insegurança alimentar (fome), vítimas de uma
política de morte (necropolítica). Avançamos no debate problematizando a dificuldade de
acesso das populações periféricas a alimentos in natura, e o consumo de proteína animal diante
dos riscos de novas pandemias e as práticas de produção ao qual os animas estão submetidos.
Para tanto, partimos de um levantamento nos meios digitais, a procura de dados que
nos auxiliassem na compilação de dados que permitissem embasar o nosso estudo.
Contemplamos sites e redes sociais de veículos de comunicação, mainstream, como o El País
Brasil (https://brasil.elpais.com/) e veículos alternativos, como Joio e Trigo
(https://ojoioeotrigo.com.br/) e Bocado (https://bocado.lat/), estes especializados em sistemas
alimentares, que se definem como: projeto sobre comer como ato político, com profundas
implicações sociais, econômicas e ambientais. E encontramos um material de comunicação,
resultado da pesquisa desenvolvida pela (Rede PENSSAN) - Rede Brasileira de Pesquisa em
Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional (Rede PENSSAN), divulgado no site
http://pesquisassan.net.br/olheparaafome/.
A pesquisa intitulada como “Inquérito Nacional Sobre Insegurança Alimentar no contexto
da Pandemia da Covid-19 no Brasil”, com desdobramento para o seguinte tema: resultados do
Inquérito Nacional Sobre Insegurança Alimentar no contexto da Pandemia da Covid-19 no
Brasil, conduzido pela Rede PENSSAN, com apoio do Instituto Ibirapitanga e parceria de
Actionaid Brasil, Fes-Brasil e Oxfam Brasil. Na plataforma encontramos um link para uma
campanha publicitária composta de cards desenvolvidos para o Facebook, Instagram, Twitter
e WhatsApp. A proposta da campanha foi explorar e divulgar os principais resultados da
pesquisa produzida, buscando o engajamento da população.
154

As pessoas que tivessem interesse em divulgar a campanha, em suas contas pessoais,


as peças eram liberadas para a publicação e compartilhamento. Foram desenvolvidos, 24 cards
de Instagram, com imagens fixas e vídeos. Com sugestões de textos, legendas e hashtags. As
peças foram adaptadas para diversos formatos, sendo possível publicar nos feeds, heels e stories
das redes. Desta maneira a campanha ganharia cobertura, amplitude e cada cidadão se
transformaria em um canal de divulgação.

Imagem 26 : Campanha publicitária de cards para o Instragram divulgado no site


http://pesquisassan.net.br/olheparaafome/.

Apresentamos 9 cards selecionados entre os 24 cards que foram observados


empiricamente, o material apresenta textos que contribuem, ilustram e complementam nossas
reflexões apresentadas ao logo desse debate e aponta para uma política de morte, conforme
apontamentos conceituais Mbembe (2018). Para compreendermos a contemporaneidade e
155

como sujeitos periféricos vivem a cidadania, apartados das políticas de Estado. As peças
publicitárias trazem em síntese os seguintes dados alarmantes, resultado de ausência de medidas
efetivas e políticas públicas negacionistas em relação aos efeitos graves da pandemia.

1.   No final de 2020, 116, 8 milhões de pessoas estavam em insegurança alimentar;


2.   19 milhões estavam passando fome;
3.   Em 2020, 9% da população em situação grave de insegurança alimentar – maior
índice desde 2004;
4.   50% das famílias brasileiras foram obrigadas a cortar itens essenciais, em muitos
casos, inclusive alimentos.

Sujeitos periféricos lançados a uma condição de subcidadania (SOUZA, 2013) e


vítimas de uma política de morte (necropolítica). Conforme define uma das dimensões da noção
de necropolítica, a saber, aquela que se refere à (HILÁRIO, 2016) “destruição material dos
corpos e populações de humanos julgados como descartáveis e supérfluos” (apud MBEMBE,
2012, p. 135). Literalmente, “vida sem valor” (apud AGAMBEN, 2010, p. 134), uma vida
indigna de ser vivida.
Diante desta perspectiva, são muitas as dificuldades, inclusive de acesso ao
conhecimento de como as mercadorias que consumimos são produzidas o que torna as pessoas
ignorantes com relação ao sofrimento que os animais humanos e não humanos são submetidos
e a degradação do meio-ambiente. Animais criados em condições insalubres, quantidade
excessiva de animais em espaços reduzidos, sistemas de abate agressivo, ocasionando
sofrimento, dor e morte lenta. Sistema de descarte de sangue, fezes, urina e sobra dos restos
mortais fora dos protocolos definidos pela vigilância sanitária, prejudicando a água nos lençóis
freáticos. Assim, estudos desenvolvidos pela comunidade científica relatam o risco eminente
de novas pandemias em função da proliferação de novos patógenos.
A maioria dos frigoríficos está localizado em zonas rurais e periféricas, contaminando
a água e produzindo um mau cheiro nessas regiões. Acarretando doenças na população local,
outros relatos apresentam casos em que os funcionários dessa indústria apresentam problemas
neurológicos, quadros de depressão e desgastes físicos, devido as péssimas condições de
trabalho. O documentário “Carne e Osso” é um excelente trabalho que relata e denúncia esses
episódios situando o problema nos frigoríficos da cidade de Chapecó-SC.
156

O material foi lançado em 2011, dirigido por Caio Cavechini e Carlos Juliano Barros
sendo produzido a partir da inquietação de alguns procuradores e fiscais do trabalho, de algumas
regiões no Brasil. Um procurador do trabalho, procurou os diretores, com diversos de processos
relacionados aos frigoríficos. Partindo da denúncia de fiscais do trabalho, Caio comenta que

“como documentarista o principal desafio foi mostrar um setor


produtivo que o tempo todo provoca doenças em seus trabalhadores.
Mostrar essa realidade não para um público restrito, como da área da
saúde ou jurídica, e sim para a sociedade e para o consumidor ter
conhecimento da realidade que envolve a produção da carne e seus
derivados.”

Os frigoríficos em Chapecó, numa espécie de retrato metonímico do que acontece


em todo o país, os direitos trabalhistas não são respeitados. Os depoimentos denunciam
jornadas de trabalho exaustivas, estendidas para atender a demanda por produção, horas extras
não remuneradas, funcionários sofrendo todo tipo de assédio moral. Por vezes, a linha de
produção recebe visitas de clientes no frigorífico e os encarregados de seção, aos gritos,
ininterruptos, pedem para acelerarem a produção, colocando a segurança dos funcionários em
risco, já que lidam com ferramentas de trabalho muito perigosas. Distâncias mínimas não são
respeitadas, a exposição aos cortes de facas, depiladores e serras para corte. Os acidentes são
frequentes, segundo o depoimento de Juliana Varandas, terapeuta ocupacional do Instituto
Nacional de Seguro Social (INSS) de Chapecó, diz que “cerca de 80% do público atendido na
região são trabalhadores de frigoríficos”. Nessa perspectiva, Jessé Souza (2018, p. 23), ao
pensar os modos de produção característicos deste tipo de capitalismo, observa que “depois das
fábricas e do capitalismo instituído como sistema econômico dominante, todos nós temos de
ser disciplinados, senão morremos de fome.”
Assim, o Vegano Periférico critica o trabalho feito pela mídia, que segundo os irmãos
é sempre focado no consumo de produtos caros e industrializados, estabelecendo o imaginário
de que o veganismo é um movimento elitista, excludente e acessível para pessoas ricas.
Entretanto, Hoff e Teixeira (2021, p. 8) salienta que

a esfera do consumo alimentar é um palco em que esses efeitos de composição


e recomposição são visibilizados. Afinal, basta notar que não precisamos de
incentivos governamentais explícitos para buscar o que consideramos hábitos
saudáveis na nossa alimentação diária”.
157

Porém, a falta de políticas públicas dificultam a manutenção e a implantação de hortas


urbanas e comunitárias, o que impossibilita o acesso a produtos in natura. Além de destinar boa
parte da produção de grãos para a manutenção da produção agropecuária.
No documentário Vegano Periférico, temos o depoimento de agricultores de uma
comunidade local engajada com o projeto de hortas comunitárias e como elas são impactados
pela falta de políticas públicas. Em Campinas, foi promulgada uma lei que garantiria o
assentamento de 1000 famílias que receberiam um lote de 500m2 e R$ 3.300,00 por família
para produção de verduras e legumes orgânicos, mas, a lei não foi cumprida, apenas 12 famílias
foram assentes e a verba destinada ao projeto foi corrompida. Conforme nossas reflexões é
importante demonstrar como as pessoas se organizam, e mesmo sem ajuda técnica e financeira
dos órgãos competentes como o INCRA , na fala dos personagens envolvidos eles destacam os
ganhos por este aquilombamento e tipo de produção. Entre os benefícios citados, melhora na
saúde nutricional, psicológica da comunidade e valores acessíveis para compra e consumo dos
produtos. E ainda destacam que mesmo sem a concretização da ajuda do poder público, a
comunidade foi agraciada com um prêmio pelo excelente trabalho desenvolvido.

5.3 - Para descolonizar é preciso ter estômago

A partir da análise dos discursos políticos presentes no documentário Vegano


Periférico e nas postagens do Instagram, observamos que, por meio de um debate sobre as
práticas alimentares veganas, podemos refletir sobre os aspectos biopolíticos na alimentação da
população preta e periférica do Brasil, que tem diversos problemas alimentares e tiveram os
seus hábitos de consumo agenciados, através das disciplinas impostas pela educação (ensino
nas escolas e universidades) e pela medicina (médicos e nutricionistas). Para o do Dr. Lailla O.
Afrika a alimentação e a saúde dos negros deveriam ser descolonizadas. Partindo do conceito
cunhado por ele, os negros que foram retirados da África sofrem um verdadeiro nutricídio e
continuam num processo de colonização e escravidão pelo estômago.
Maldonado-Torres (2019) diz que a colonialidade é uma lógica que está embutida na
modernidade, e decolonialidade é uma luta que busca alcançar não uma diferente modernidade,
mas alguma coisa maior do que a modernidade. Assim, o consumo, fenômeno de ordem
sociocultural e econômica tende a disciplinar os imaginários e as práticas cotidianas. A
alimentação possibilita toda sorte de engendramento de ideias modernas,coloniais ou
decoloniais na medida que a comida e os alimentos estabelecem identidades por hábitos
158

culturais conforme asseveram Canesqui e Garcia (2005, p. 11) “cabe à cultura definir o que é
ou não comida, prescrever as permissões e interdições alimentares, o que é adequado ou não,
moldar o gosto, os modos de consumir e a própria comensalidade”.
A decolonialidade refere-se à luta contra a lógica da colonialidade e seus efeitos
materiais, epistêmicos e simbólicos. A teoria decolonial, abordada por Maldonado-Torres,
criticamente reflete sobre nosso senso comum e sobre pressuposições científicas referentes a
tempo, espaço, conhecimento e subjetividade, entre outras áreas-chave da experiência humana,
permitindo-nos identificar e explicar os modos pelos quais sujeitos colonizados experienciam
a colonização, ao mesmo tempo, em que fornece ferramentas conceituais para avançar a
descolonização.
Para Gomes (2019), não bastam apenas o reconhecimento e a vontade política para
descolonizar a mente, a política, a cultura, os currículos e o conhecimento. Essa descolonização
tem de ser acompanhada por uma ruptura epistemológica, política e social que se realiza
também pela presença negra nos espaços de poder e decisão; nas estruturas acadêmicas; na
cultura; na gestão da educação, da saúde e da justiça: ou seja, a descolonização, para ser
concretizada, precisa alcançar não somente o campo da produção do conhecimento, como
também as estruturas sociais e de poder.

Na perspectiva do projeto decolonial, as fronteiras não são somente este


espaço onde as diferenças são reeinventadas são também loci enunciativos de
onde são formulados conhecimentos a partir das perspectivas, cosmovisões ou
experiência dos sujeitos subalternos. O que está implícito nessa afrmação é
uma conexão entre o lugar e o pensamento. Todavia, é preciso distinguir o
lugar epistêmico e o lugar social. O fato de alguém se situar socialmente no
lado oprimido das relações de poder não significa automaticamente que pense
epistemicamente a partir lugar epstêmico subalterno. Justamente, o êxito do
sistema-mundo moderno/colonial reside em levar os sujeitos socialmente
epistemicamente como aqueles que se encontram em posições dominantes.
Em outras palavras, o que é decisivo para se pensar a partir da perspectiva
subalterna é o compromisso ético-político em elaborar um conhecimento
contra-hegemônico. (BERNARDINO-COSTA; GROSFOGUEL, 2016, p. 19)

Os negros, ao serem retirados (sequestrados) da África, num processo violento nomeado


de diáspora africana, foram obrigados a deixar os seus costumes, sua cultura e suas tradições.
Durante as viagens, nos navios negreiros, comiam milho e podiam beber um pouco de água. Já
no Brasil, durante todo período da escravidão (1535–1888), os pretos nas senzalas se
alimentavam dos restos do que era cozinhado na casa grande. Eram submetidos a uma
alimentação completamente diferente do que estavam acostumados.
159

Posteriormente, esses hábitos culturais foram incoporados em sua dieta, o pão, o queijo,
o arroz, as carnes, os doces e as bebidas alcoólicas (vinhos) que foram trazidos pelos
colonizadores portugueses , assim como a outras comidas que eram consumidas pelos povos
indígenas. Esse breve relato descreve como se formou a base da gastronômia brasileira. O
processo de escravidão não se deu simplesmente pelo uso da violência e da força, mas
caracterizou-se principalmente pela exaustão psicológica e o silenciamento dos saberes e
conhecimentos ancestrais de um povo – epistemicídio.
A colonialidade é resultado de uma imposição do poder e da dominação colonial que
consegue atingir as estruturas subjetivas de um povo, penetrando na sua concepção de sujeito e
se estendendo para a sociedade de tal maneira que, mesmo após o término do domínio colonial,
as suas amarras persistem. (GOMES, 2019, pp. 255–256).
Diante destes dados elementares, apresentados acima surge a importância de se pensar
novas epistemologias. Olhar para outros saberes, que possam confrontar com os modos
hegemônicos de se alimentar e cuidar da saúde. Nilma ressalta que essas noções consolidadas
pelo currículo escolar são reforçadas pelas relações de poder, pela pobreza, pela exploração
capitalista, pelo racismo e pelo sistema patriarcal e forjam subjetividades. Elas têm o potencial
de forjar subjetividades e práticas sociais e cotidianas que expressam valores coloniais e
colonizadores. Por isso, é preciso descolonizar o currículo escolar.
O Dr. Lailla O. Afrika, uma das maiores autoridades mundiais em saúde e nutrição, com
doutorado em Naturopatia pelo Anglo Saxon Institute da Inglaterra, é um Addictionalogist
certificado com um diploma do The American College of Addictionology And Compulsive
Disorders, enfermeiro certificado pelo Georgia Baptist Medical Center e também é
acupunturista. Metafísico, foi assistente social e psicoterapeuta do Exército dos EUA. Dedicou-
se ainda a estudar para se tornar um massagista, fitoterapeuta, historiador, escritor,
conferencista, professor, astrólogo e médico. O Dr. Afrika tem mais de 45 anos de experiência
e treinamento em etnomedicina, que consiste no uso de remédios para doenças e diagnósticos
baseados na bioquímica de uma raça. Por todas essas credenciais, ele é um dos palestrantes
mais requisitados do país. Estudioso da saúde holística africana, como citado anteriormente,
cunhou o conceito de nutricídio — (genocídio nutricional). Ele discute a degradação da saúde
de pessoas negras da mudança alimentar de suas culturas pela inserção de uma alimentação
colonialista, ditada por brancos e multinacionais. O nutricídio surge a partir do contexto
capitalista hegemônico de produção e distribuição dos alimentos, baseado no uso de agrotóxicos
(118 agrotóxicos foram aprovados no Brasil durante a pandemia), transgênicos, ultra
processados.
160

No incentivo do consumo dos mesmos em detrimento dos alimentos naturais e na


manutenção de localidades na condição de desertos alimentares, locais onde o acesso a
alimentos in natura ou minimamente processados é escasso, ou impossível, obrigando as
pessoas a se locomoverem para outras regiões para obter esses itens, essenciais a uma
alimentação saudável ou comprarem produtos alimentícios processados ou in natura a custos
elevados.

A Pesquisa de Saúde decorou o primitivismo Caucasiano com linguagem de


ciência e os seduziu em mais ignorância. Os Caucasianos buscam ou
pesquisam por algo que não está perdido ou eles estão sempre descobrindo
algo que já foi encontrado (descoberto), ou seja, os Caucasianos acreditam que
eles descobriram a América — uma terra já ocupada e encontrada pelos índios.
(AFRIKA, 2004)

O nutricídio vem acompanhado do apagamento de povos e culturas, da autonomia,


trazendo o adoecimento e a posterior dependência da indústria farmacêutica e afeta hoje
principalmente a população negra periférica, pessoas com pouco estudo e populações rurais.
Conforme o Dr. Afrika, uma dieta à base de alimentos processados é contra a vida e
contra a cultura africana “pretos que comem uma dieta moderna estão sendo oprimidos e
escravizados por caucasianos através de seus estômagos. Esta escravização alimentar (dietary
enslavement) resulta em doenças, constipação e destruição corporal.”
A farinha branca refinada é roubada de mais de vinte e duas vitaminas e
minerais. Açúcar branco não tem nenhuma fibra, nenhum nutriente e aumenta
o nível de açúcar no organismo para além do seu nível natural, o que resulta
em privação de nutrientes, diabetes, hipertensão arterial, danos nervosos e
cerebrais, insuficiência renal e deterioração dos olhos. Frituras são não
digestíveis, constipantes, e parcialmente utilizadas pelo organismo. A
combinação destes alimentos com drogas comestíveis, tais como
conservantes, aditivos e corantes resultam em controle de comportamento e
Guerra química sobre a saúde. (AFRIKA, 2004)

A produção do conhecimento do Movimento Negro, da negra e do negro sobre si


mesmos e a realidade que os cerca não têm origem nos bancos acadêmicos nem nos meios
políticos. Isso surgiu na periferia, na experiência da pobreza, na ação cotidiana, nas vivências
sociais, na elaboração e reelaboração intelectual de sujeitos negras e negros, muitos dos quais
nem sequer foram (e alguns ainda não são) reconhecidos como pesquisadores, intelectuais e
produtores de conhecimento.
Para Gomes (2019), só é possível descolonizar os currículos e o conhecimento se
descolonizarmos o olhar sobre os sujeitos, suas experiências, seus conhecimentos e como os
produzem. Portanto, a compreensão de que existe uma perspectiva negra decolonial brasileira
significa reconhecer negras e negros como sujeitos e seus movimentos por emancipação como
161

produtores de conhecimentos válidos que não somente podem tensionar o cânone, mas também
o indagam e trazem outras perspectivas e interpretações.

A perspectiva negra decolonial brasileira é a que busca e coloca outras


narrativas no campo do conhecimento e do currículo, que dá legitimidade aos
saberes acadêmicos, políticos, identitários e estético-corpóreos negros. É
aquela que dá relevância aos saberes e às práticas afro-brasileiros
emaranhados em todos nós, inclusive nas pessoas brancas, nos vários grupos
de imigrantes, seus descendentes e nos povos indígenas brasileiros (GOMES,
2019, pp. 277–278).

Gomes (2019) propõe retomar autores e autoras negros brasileiros e estrangeiros,


relembrar quais foram as lideranças negras que participaram das principais mudanças
emancipatórias do mundo, dar relevo às suas produções e conhecer as disputas acadêmicas de
negras e negros no mundo da produção do conhecimento brasileiro no contexto da literatura
decolonial latino-americana diz respeito a um percurso de ruptura epistemológica e política no
sentido de descolonizar os currículos e o próprio campo do conhecimento.
Na cultura africana, como em algumas sociedades, o sentido visual não é preponderante.
A oralidade, os relacionamentos interpessoais, o tato e o estar conectado com a natureza são as
fontes de gerar novos saberes e novos conhecimentos. É preciso retornar ao passado, resgatar
nossas memórias, recontar nossas histórias, rompendo com o que está posto. Para poderem
suscitar novas análises, novas conclusões, mas principalmente para que emerjam pesquisas e
questões sejam reelaboradas.
Assim, procuramos demonstrar que o ativismo periférico e de intelectuais negros é
atuante e o quanto de saber eclode da resistência dos movimentos culturais na própria
sociedade. E o quão relevantes são para a construção de um diálogo transversal com as
epistemologias do Norte Global. O simples fato de ignorar e desconsiderar as epistemologias
hegemônicas, poderiam acarretar um esvaziamento de saber, mas, quando são confrontadas,
põe-se em diálogo. A disputa por conhecimentos que serão reconhecidos e tidos como válidos
ou não, são essenciais para uma construção dialógica centro/periferia e vice-versa.

5.4 - Necropolítica e nutricídio instaurado nas comunidades periféricas

Segundo resultados da pesquisa feita pelo Ministério da Saúde, com o nome de


"Vigitel Brasil 2018. População Negra: vigilância de fatores de risco e proteção para doenças
crônicas por inquérito telefônico", ouviu mais de 52 mil brasileiros sobre a saúde da população
162

negra no Brasil, aferiu os seguintes resultados sobre as comparações entre as populações negra
e branca, com "cenário desfavorável" para os negros:

Quadro 7: pesquisa Vigitel Brasil_2018 População Negra

Alimento consumido Consumo por brancos (%) Consumo por negros (%)
Frutas e hortaliças 39,1 29,5
Bebidas alcoólicas 16,6 19,2
Avaliação negativa da saúde 4,0 5,2
Fonte: Ministério da Saúde

A pesquisa foi retirada do ar do do site do Ministério da Saúde8, segundo Givânia


Maria da Silva, co-fundadora da Conaq (Coordenação Nacional de Articulação das
Comunidades Negras Rurais Quilombolas) e integrante dos coletivos de mulheres e de
comunicação da entidade, a exclusão da pesquisa e a extinção do departamento é "mais uma
atitude racista do governo Bolsonaro". Assim, podemos especular que á um silenciamento de
determinados discursos. a pesquisa foi realizada e reitrada do ar. Prejudicando o debate e avanço
em políticas assertivas para correção de números políticas desfavoráveis a determinados
sujeitos.
Mbembe (2018) em suas reflexões aponta que o racismo desempenha a função de
regular a distribuição da morte e torna possíveis as funções assassinas do Estado, na economia
do biopoder e diz que,

Arendt localiza suas raízes na experiência demolidora da alteridade e sugere


que a política da raça, em última análise, está relacionada com a política da
morte. Com efeito, em termos foulcaultianos, racismo é acima de tudo uma
tecnologia destinada a permitir o exercício do biopoder, “este velho direito
soberano de matar” (MBEMBE, 2018, p. 10)

Delineando a desigualdade presente no país, ausência de direitos e sujeitos apartados


das condições mínimas de acesso à cidadania. Souza aponta para um problema que
normalmente acontece, o de percebemos as condições de pobreza e de não reconhecemos a
realidade simbólica que a legítima e a torna permanente e que esse fato explica a permanência

8
VALENTE, Rubens. Uol Notícias. Ministério da Saúde retira do ar estudo sobre saúde da população negra
<https://noticias.uol.com.br/colunas/rubens-valente/2020/06/10/censura-saude-populacao
negra.htm?cmpid=copiaecolahttps://noticias.uol.com.br/colunas/rubens-valente/2020/06/10/censura-saude-
populacao-negra.htm> Acesso: 10/01/2022
163

no tempo da precariedade material, existencial e política. “Essas duas realidades são


inseparáveis. Ao mesmo tempo, elas são analiticamente diferentes, o que significa ser
necessário compreendê-las na sua interdependência mútua, de modo a esclarecer esse fenômeno
complexo.” (SOUZA, 2018, p. 42).
Enfim, o vocabulário do governo Bolsonaro segue um percurso temático, que
desemboca num tema central o “patriotismo”. Um grande tema construído através da linguagem
de discursividade contra o conhecimento científico, contra toda ou qualquer ideologia contrária
ao governo, em favor da reorganização da política, adesão à constituição da família tradicional,
a luta contra ameaça comunista, os reajustes econômicos do país para haver uma redistribuição
de renda. Identificamos uma memória discursiva (interdiscurso) que cita textos e aciona uma
rede de sentidos vinculados ao governo militar instaurado no governo ditatorial de 1964, em
conjunto com as ideias neoliberais. Para Orlandi (2020, p. 30) a observação do interdiscurso
permite a observação de toda a uma “filiação de dizeres, a uma memória, e a identificá-lo em
sua historicidade, em suma significância, mostrando seus compromissos políticos e
ideológicos”.
O conceito de ideologia, introduzido, originalmente, por Destutt de Tracy, como um
rótulo para uma suposta ciência das ideias, o termo “ideologia, rapidamente, tornou-se uma
arma na batalha política, travada no terreno da linguagem. Imbuído, originalmente, de toda
confiança e do espírito afirmativo do Iluminismo europeu, para o qual, a ciência por ele descrita,
era aceita como que representando um estágio culminante, a 'ideologia', rapidamente, tornou-
se um termo abusivo que mostrava o vazio, a preguiça e a sofisticação de certas ideias”
(THOMPSON, 1990, p. 43). “Podemos começar por dizer que a ideologia faz parte, ou melhor,
é a condição para a constituição do sujeito e dos sentidos” (ORLANDI, 2020, p. 44).
Para Enrique Dussel a ideologia, “seja ela política, sexista-erótica ou pedagógica é um
discurso concreto que justifica a ação dominadora, ocultando-a. A massa alienada pode carregar
uma consciência ideológica ingênua, que aceita passivamente a dominação sofrida. Assim, o
signo não significa a realidade da opressão: ele a esconde, é falso” (2013, p. 147-148) e em Karl
Marx, a ideologia é um importante fator na perpetuação da dominação da classe capitalista.
Segundo ele, grupos poderosos conseguem controlar as ideias dominantes em circulação na
sociedade, legitimando sua própria posição privilegiada. Portanto, as ideias dominantes de cada
era são as ideias que dão suporte à classe dominante. A ideologia é um obstáculo à igualdade.
(GIDDENS, 2017, p. 266). “Na medida em que as formações discursivas materializam as
formações ideológicas e estas estão relacionadas às classes sociais, os agentes discursivos são
as classes e as frações de classe” (FIORIN 1998, p. 43).
164

Fiorin (1998) destaca a importância de observarmos que embora haja diferentes


formações discursivas numa sociedade, a formação discursiva dominante é sempre a da classe
dominante. “Uma formação ideológica deve ser entendida com a visão de mundo de uma
determinada classe social, isto é, um conjunto de representações, de ideias que revelam a
compreensão que uma dada classe tem do mundo” (FIORIN, 1998, p. 32). Como já foi abordado
nesse estudo citando anteriormente o sociólogo Jessé Souza as classes dominantes são a elite e
classe média, representada por segmentos do governo, representando o Estado, empresários e
grupos políticos que detém o poder no país, cada uma dessas forças influenciando o capital da
“ralé”. A elite representando o “capital econômico” e classe média o “capital social”.
Avançando através da lente de Fiorin, podemos afirmar que as formações discursivas
produzidas pelo governo demonstrariam na maioria das vezes, como os membros do seu grupo
social agem, pensam, reagem e falam. É relevante e pertinente trazer o pensamento de Paulo
Freire (1987) para que de forma crítica possamos compreender a ideologia das classes
dominantes para se manter na posição de opressor.

Mas o que ocorre, ainda quando a superação da contradição se faça em termos


autênticos, com a instalação de uma nova situação concreta, de uma nova
realidade inaugurada pelos oprimidos que se libertam, é que os opressores de
ontem não se reconheçam em libertação. Pelo contrário, vão sentir-se como se
realmente estivessem sendo oprimidos. É que, para eles, “formados” na
experiência de opressores, tudo o que não seja o seu direito antigo de oprimir
significa opressão a eles. Vão sentir-se, agora, na nova situação, como
oprimidos porque, se antes podiam comer, vestir, calçar, educar-se, passear,
ouvir Beethoven, enquanto milhões não comiam, não calçavam, não vestiam,
não estudavam, nem tampouco passeavam, quanto mais podiam ouvir
Beethoven, qualquer restrição a tudo isto, em nome do direito de todos, lhes
parece uma profunda violência a seu direito de pessoa. Direito de pessoa, que,
na situação anterior, não respeitava nos milhões de pessoas que sofriam e
morriam de fome, de dor, de tristeza, de desesperança. É que para eles, pessoas
humanas são apenas eles. Os outros, estes são “coisas”. Para eles, há um só
direito - o seu direito de viverem em paz, ante o direito de sobreviverem, que
talvez, nem sequer reconheçam, mas somente admitam aos oprimidos. E isto
ainda, porque, afinal, é preciso que os oprimidos existam, para que eles
existam e sejam generosos. (FREIRE, 1987, p. 45)

Essa situação torna-se flagrante quando o ministro Paulo Guedes reconhece que a elite
se alimenta de maneira abundante, porém, desperdiçam muitos alimentos e que estes
desperdícios “sobras”, “restos”, deveriam ser doados para as pessoas em situação de
insegurança alimentar. Na mesma direção o presidente Bolsonaro, sugere que produtos com
prazo de validade vencida, dos supermercados também deveriam ser doados para essa mesma
população. Num caso anterior, mas não menos relevante, o então prefeito de são João Dória
165

propôs como solução alimentar a implantação de um produto conhecido como ração humana
que deveria ser servida nas escolas municipais de São Paulo. Ou seja, um discurso materializado
e demonstra como os políticos de direita pensam e agem com relação à nutrição e alimentação
das populações carentes e periféricas.
Avançando com essas asserções, podemos explorar pelas lentes da biopolítica e do
biopoder, o caráter discursivo da governamentalidade. A partir de Miller e Rose (2012) que,
citando (Foucault, 1979, 20), definem governamentalidade como o “conjunto formado pelas
instituições, procedimentos, análises e reflexões, os cálculos e as táticas que permitem o
exercício desta bastante específica, se bem que complexa forma de poder” (MILLER; ROSE,
2012, p. 40)
Estabelecidos como autoridades, seus discursos, por meio da linguagem, estão
voltados para o controle dos processos inerentes à população, “as leis que modulam a riqueza,
saúde, longevidade, sua capacidade de declarar guerra e a capacidade de se ocupar-se de um
trabalho, etc. (MILLER; ROSE, 2012, p. 40), acrescentamos aqui, o controle do que comemos
e o modo como nos alimentamos e como cuidamos de nossa saúde.
A visão proposta por Miller e Rose (2012) destaca que o discurso pode ser analisado
como uma “tecnologia” do pensamento, e propõe como melhor conceituação a expressão
“tecnologia intelectual”, que exige atenção a específicos instrumentos técnicos para nós, nesse
trabalho, o elemento que nos interessa é a linguagem, principalmente a política e seus efeitos
sobre os sujeitos periféricos.
O termo “tecnologia”, nessa leitura entende-se por “mecanismos através dos quais
autoridades de vários matizes têm buscado modelar, normalizar e instrumentalizar a conduta, o
pensamento, as decisões e as aspirações dos outros, a fim de alcançar os objetivos que eles
consideram desejáveis, uma abordagem particular da análise da atividade de governar”.
(MILLER; ROSE, 2012, p. 46).

Com efeito, é a partir de tais elementos linguísticos que as racionalidades de


tais como o bem-estarismo ou o neoliberalismo são elaborados como conjunto
de doutrinas filosóficas, noções de realidades sociais e humanas, teorias de
poder, concepções de políticas e versões de justiça e muito mais. É na
linguagem que os programas de governo são elaborados, e é mediante elas que
se estabelece uma consonância entre os (descritos de maneira ampla) apelos
éticos, epistemológicos e ontológicos do discurso político – à nação, à virtude,
ao que é e ao que não é possível ou desejável – , e os planos, esquemas e
objetivos que buscam tratar de problematizações específicas dentro da
existência social, econômica e pessoal.
166

Ao final do primeiro semestre de 2021, ultrapassamos o total de mais de 20.108.000 de


casos e atingimos 561.807 milhões de mortos pelo coronavírus, conforme dados divulgados em
06/08/2021 pelo Jornal Nacional da rede Globo de Televisão.
Em suas últimas aparições midiática, após passeios de motos, passeios a cavalo, proferiu
um pronunciamento em favor da abolição do uso das máscaras. Exatamente no momento em
que era anunciado uma terceira onda de contaminação do vírus e novas variantes por vir. Ao
lado desses eventos expostos, estava em andamento uma CPI que investigava a má atuação do
governo frente ao combate da Covid-19.
Na esfera pública clamores de “Fora Bolsonaro”, “genocida”, manifestações em favor
do impeachment aconteceram debaixo de violência militar em alguns estados do nordeste.
Novas passeatas estão sendo programadas contra a necropolítica instituída pelo Estado.
Crise econômica, pandemia, contribui de maneira vertiginosa com os índices de aumento do
número de indivíduos segregados, e que não encontram condições de participarem das lógicas
de produção e de consumo. Como foi demonstrado, 116,8 milhões de pessoas em insegurança
alimentar e 19 milhões de pessoas com fome. Perez nos alerta com o seguinte afirmativa: “o
ressentimento com o consumo é apenas uma faceta e que a consequência para cada um dos
cidadãos é muito mais nefasta, principalmente entre os jovens desesperançados.” (PEREZ,
2020, p. 104).
No percurso debatemos a dificuldade de acesso das populações periféricas a alimentos in
natura - (não processados), e apontamos as possíveis causas para o surgimento de desertos
alimentares. Os resultados encontrados apontam para problemas endêmicos do país, com
vínculos com o período histórico colonial. Por outro lado, as políticas negacionistas à ciência e
os desmanches de políticas públicas produziram um ambiente polarizado no país, de disputas e
inimizades. Desvirtuando os sistemas e debates políticos, colocando em questão a soberania do
Estado e sempre sob ameaça de ser decretado um estado de exceção. Sistema jurídico pelo qual
se perdem os direitos através da legislação e como destaca Achille Mbembe (2018, p. 9) “o
estado de exceção e a relação de inimizade tornara-se a base normativa do direito de matar”.
Especulamos que este direito de matar (necropoder) aparece inscritos nos sentidos
produzidos na discursividade política do governo Bolsonaro, por meio de imagens, vocabulário,
e pela produção das expertises de governo quando por exemplo, entregavam números
desatualizados, da quantidade de casos e de mortos, vítimas da Covid-19. Assim, completando
o raciocínio de Mbembe, nesse cenário de emergência estabelece-se uma relação entre política
e morte. Mbembe (2018) propõe uma formulação foulcaultiana, “o biopoder parece funcionar
mediante a divisão entre as pessoas que devem viver e as que devem morrer”.
167

Percebemos por meio da discursividade que produção e o consumo de proteína animal


acarreta diversos problemas para a saúde e para o meio ambiente. Entretanto, os discursos
analisados ao longo dessa pesquisa, atravessados pela historicidade e pela ideologia produzem
mais dissenso do que consensso na sociabilidade dos sujeitos. E como aparece ao longo do
debate o poder é uma elemento constitutivo e chave para compreender como os actantes estão
dispostos nessa arena discursiva. Assim, partiremos para nossas considerações finais, no item
que se segue.
168

6 – CONSIDERAÇÕES FINAIS

6.1 - A gente não quer só comida, a gente quer comida de verdade, cidadania, inclusão
social e diversidade.

Esse trabalho de pesquisa nos permitiu reflexões sobre comunicação e o consumo.


Procuramos identificar a partir da inter-relação da tríade alimentação, política e cidadania.
Como se dá a dimensão política do veganismo interseccional, na perspectiva da construção de
cidadania (notadamente os discursos disciplinares que, expressos no âmbito do alimento e da
saúde, alienam o sujeito), considerando sua apropriação pelas lógicas capitalistas no contexto
das contemporâneas culturas do consumo.
No primeiro capítulo nos empenhamos em elaborar as dimensões e as inter-relações
entre a comunicação e o consumo. Em seguida adicionamos um terceiro vetor, o consumo
consciente. Procuramos estabelecer um diálogo com os principais autores das disciplinas,
relacionando com o nosso objeto de estudo. Autores da comunicação, Braga, Sodré e Baccega
e autores do consumo, Fontenelle, Douglas e Isherwood e Baumann e no consumo consciente
Portilho. Seguimos nessa direção, para depois abordamos o “político” e as relações
estabelecidas no capitalismo. Nesse caminho decidimos, aprofundar um debate vertical sobre o
capitalismo e abordar os problemas do sistema e debater sobre a crise em que o sistema se
encontra. Procuramos estabelecer diferenciações entre a “política” e o “político” desenvolvendo
um diálogo entre os autores, Fisher, Chantal e Arendt.
Procuramos discutir o consumo vegano diante das lógicas capitalistas de mercado e o
consumo de mercadoria animais (não humanos) e interpretar os efeitos culturais, as identidades
e discursos políticos envolvidos no consumo da carne. Estabelecendo uma contraposição entre
o consumo hegemônico e a possibilidade de adotar um novo padrão de consumo alimentar.
Assim, exploramos o conceito de comer comida como “um ato político”. Nossa comia nos
identifica, nos classifica e comunica quem somos. Em seguida, propomos fazer uma breve
contextualização através da história política do Brasil, tendo como percurso o capitalismo, o
liberalismo e a agressividade do sistema neoliberal.
No segundo capítulo procuramos apresentar um panorama sobre o movimento vegano.
Os conceitos fundantes do movimento, seus princípios éticos, moral e social. A sua
contextualização histórica, as questões ideológicas e a linguagem utilizada na época, para
divulgar e disseminar a causa em favor dos animais. Nesse contexto, percebe que a questão
envolvendo a alimentação remonta aos primórdios da humanidade. Nossa principal referência
169

não foi a antropologia como filiação para reconstruir essa trajetória. Seguimos o recorte,
proposto pelos estudos de Peter Singer em sua obra “Libertação Animal”, que insinuua que a
cultura de exploração da vida animal, está ligado ao judaísmo, ao cristianismo, aos gregos e
romanos. A dieta vegetariana e a defesa da vida dos animais são temas que já foram defendidos
por escritores, filósofos, espiritualistas, políticos, médicos, etc.
O movimento vegano eclodiu na modernidade, seu fundador Donald Watson, que
já era vegetariano, e estava preocupado com o consumo e com a produção excessiva de
laticínios no Reino Unido. Nessa época já se tinha informações de doenças atingindo o rebanho
de animais, um dessas doenças identificadas na época ficou conhecida pelo nome de “Príon”.
O veganismo em sua concepção tem a utopia de eliminar definitivamente todo e
qualquer produção ou consumo de animais não-humanos. Seja para fins de alimentação,
vestuário, entretenimento ou pesquisas de laboratório. E um dos pontos fundamentais do debate,
está associado as questões do imaginário estabelecido pleo o colonialismo, patriarcado,
capitalismo e da revolução industrial que enxergam os animais humanos, não-humanos e a
natureza como bens disponíveis para produção e consumo, bem como ao acúmulo. Animais e
objetos subjugados por sistema exploratórios e escravagistas.
A seguir, procuramos demonstrar como o movimento está constituído e
apresentamos duas vertentes que na atualidade integram o movimento. Os veganos liberais
(estratégicos) e os veganos interseccionais, o objeto da nossa pesquisa. Ambos com o mesmo
objetivo principal, a “libertação animal”, porém, com discursos completamente divergentes, em
dissenso. E que apesar de o debate ser democrático, está longe em haver um consenso nas ações
e na discursividade. Veganos liberais, estão representados por pessoas brancas, cisgêneras, com
poder de consumo e são à favor do bem-estarismo dos animais, e defendem que pequenas
conquistas são um caminho para que a vida animal tenha menos sofrimento, até chegar ao
objetivo principal que é a libertação animal. Assim, acreditam que uma das formas é participar
das lógicas do mercado capitalista e consumir produtos veganos processados e industrializados,
produzido por empresas veganas e não-veganas. Nessa condição começa aparecer as
divergências, tendo em vista que grandes empresas do setor alimentício, especializada em
produzir proteína animal, não estão preocupadas com a causa e atendem essa demanda do
consumo, por entender haver uma demanda crescente pelo consumo de produtos veganos,
visando o lucro e o acúmulo de capital. Por outro lado, veganos interseccionais compreendem
que essa forma de ativismo é despolitizado, alienado e ingênuo. Pois, grandes corporações não
contribuem em nada com a causa. Assim, acusam os veganos liberais de reproduzir um
movimento vegano classista, elitista e excludente. Produzindo o imaginário que para ser vegano
170

a alimentação precisa ser cara e industrializada. Veganos interseccionais entendem que não
existe veganismo, sem recorte de classe e que o veganismo é uma ação afirmativa, inclusiva, e
contribui com a proteção do planeta. A dieta é uma alternativa viável para os pobres e comer
tem que ser um ato político. Esclarecemos que os veganos interseccionais filiam-se ao conceito
da interseccionalidade, aporte teórico/metodológico ligado feminismo negro. Apresentamos os
fundamentos da interseccionalidade como ferramenta auxiliar à construção política/social
através de marcadores sociais, raça, gênero, classe, sexualidade, etc. Por fim, apresentamos os
coletivos juvenis como uma forma de organização política. Na contramão do neoliberalismo
que preconizam a individualidade, se organizam de forma coletiva para poder agir
politicamente e produzem o ativismo a partir dos meios digitais, utilizando as redes sociais
como a principal ferramenta de comunicação. Estes coletivos colaboram e se associam a outros
movimentos com o intuito de interferir nas políticas da esfera pública e privada.
Nos capítulos três e quatro procuramos desenvolver as análise e identificar os
discursos. Tendo como objeto o coletivo Vegano Periférico, um representante da vertente
interseccional do veganismo, decidimos pela formação de dois corpora. O primeiro, o
documentário “Vegano Periférico” e o segundo, postagens do perfil do Instagram do coletivo,
materiais que proporcionaram materialidades distintas. O documentário apresenta
características cultural e linguagem artística, por sua vez, continuando com nossas análises, no
capítulo quatro , o Instagram, mídia social com características e particularidades inerentes ao
meio digital, como manifestação de ideias em mensagens curtas, geralmente críticas e de
opinião. Assim entendido, consideramos ter dois corpora que apresentam elementos
discursivos, materialidades e desafios diferentes de análises.
As análises, por sua vez, são complementares e, ao desenvolvê-las, foi possível
fazer um cruzamento dos resulatdos alcançados. Quanto ao referencial teórico-metodológico,
temos os estudos da ADF como conduta geral da nossa pesquisa , sendo a Orlandi (2017 e 2020)
nosso principal referencial bibliográfico, além de nos apoiarmos também nos estudos de
Gregolin (2017), Fiorin (2017) e Maingueneau (2015). Entretanto, no percurso analítico,
percebemos que, devido às particularidades da proposta de trabalho e as singularidades do
objeto de pesquisa e do corpus selecionado, precisávamos ainda lançar mão da ADC por meio
dos estudos realizados por Viviane Resende, que propõe a decolonização dos estudos críticos
do discurso. Concordamos com Santos (2019) que é um processo em potencial inerente a todo
e qualquer sujeito socialmente oprimido, que, por meio da linguagem, uma oportunidade de
existência e reexistência. Um dos eixos da nossa pesquisa envolvia a decolonialidade,
trabalhamos com sujeitos periféricos, racializados e de gêneros diversos, que por diversas
171

razões tiveram seus saberes e discursos silenciados, esse aporte teórico-metodológico


complementou as análises.
Identificamos discursos políticos, disciplinares, mas também encontramos
discursos de resistência e de (re)existência, discursos de autorrepresentação que elaboram novos
sentidos no que é ser periférico, sentidos que estão em conformidade com os conceitos
desenvolvidos por Welket Bungué, artista multimídia — ator, cineasta, produtor que
desenvolveu o conceito de autorrepresentação e uma nova ordem discursiva do que é ser
periférico.
Nessa perspectiva, olhamos para os efeitos da ideologia e exploramos a importância da
língua como materialidade dos discursos. Identificamos um embate na arena discursiva, e
concluímos haver um dissenso entre os discursos dos veganos interseccionais e dos veganos
liberais, e encontramos uma terceira formação discursiva inerente ao movimento vegano.
Especulamos que esse embate discursivo traz prejuízos para produção de sentidos, na arena
discursiva, quando entram em embate outras discursividades. Os discursos produzidos por
médicos, nutricionistas, conselhos regionais e discursos do Estado relacionados aos sistemas
alimentares hegemônicos.
Esse trabalho de pesquisa nos permitiu reflexões sobre a política e cidadania, a qual nos
permite afirmar que sujeitos periféricos estão apartados das políticas de Estado e nem sempre
são contemplados como cidadãos dignos de uma vida para ser vivida. Exatamente como
observamos por meio dos estudos de Jessé Souza, que trabalha o conceito de subcidadania.
Comer é um ato político, porque nos identifica, classifica e comunica quem somos.
Deste modo, os veganos periféricos, quando excluem o consumo de proteína animal, estão se
posicionando em favor da libertação animal. É um posicionamento político contra a exploração
animal e um ato político e de resistência a um sistema alimentar hegemônico. Um sistema
especista e racista que explora os animais como mercadoria, e a população periférica fica refém
de uma alimentação elitizada, cara e deficiente sem acesso a produtos in natura ou obrigados a
comprar produtos processados e industrializados, que podem ser veganos, entretanto de custo
elevado.
Enquanto as políticas públicas não disponibilizam produtos in natura para as regiões
carentes e periféricas, e nem incentivam hortas comunitárias e agricultura familiar, atitude que
colabora para o deserto alimentar, aumentando as estatísticas referentes à insegurança
alimentar (fome). Assim, comprometendo a saúde dos sujeitos periféricos, principalmente dos
afrodescendentes, sujeitos que apresentam alta incidência de doenças cardíacas, diabetes,
hipertensão, devido ao excessivo consumo de proteína animal, produtos processados e
172

industrializados com destaque para os produtos “inimigo branco” apontados por Afrika (2004),
o açúcar, o sal e a farinha.
A maior parte da comunidade periférica é composta de pessoas negras, assim,
encontramos muitos coletivos de afrodescendentes veganos que defendem a causa, com as
mesmas ideologias. Em nossos estudos, propomos por meio da interseccionalidade observar os
marcadores sociais, raça, gênero, classe, considerando aspectos de biopolítica, de tal modo que
nosso trabalho não desenvolveu uma análise exaustiva de cada um dos marcadores sociais
mencionados e não pretendeu esgotar todas as possibilidades de assuntos e perspectivas
analíticas que o objeto vegano interseccional permite. Entretanto, essa pesquisa abre espaço
para um campo fértil de pesquisas e de análises de discurso, entre eles, para exemplificar, o
veganismo, veganismo liberal, alimentação hegemônica, alimentação de grupos étnicos,
ameríndios, afro veganos, feminismo negro vegano. São muitas as possibilidades de temas que
se apresentam relativos ao veganismo e ao veganismo periférico. Pesquisas sobre o fenômeno
comunicacional que são os coletivos, que se estruturam a partir das redes sociais e a forma
política como sujeitos que não tinham voz nos meios de comunicação hegemônicos, tomam seu
“lugar de fala” se autorrepresentndo e estabelecendo novos significados simbólico sobre suas
pessoas.
Avançando um pouco mais sobre os exemplos, um objeto instigante é o (MAV) —
Movimento Afro Vegano. O MAV defende a causa animal, mas nesse objeto aparece imbricado
com o debate religioso e as tradições da comunidade africana, os ritos do candomblé e da
umbanda que devem ser respeitados. O MAV não se omite e defende que a temática imposta
pela sociedade e por membros da outra vertente vegana, inclusive, — com críticas
preconceituosa e racistas — , as questões não são irrelevantes e devem ser debatidas, porém,
ressalta a complexidade do tema. A forma de haver mudanças é ouvindo o outro lado do
movimento, junto à comunidade negra trabalhar na conscientização da causa animal,
preservando o respeito, as tradições e a ancestralidade. Conforme podemos empreender na fala
da ativista Thalita Flor, fundadora do MAV:
pessoas praticantes de religiões de matriz africana podem através de material
sobre direitos animais questionar seus hábitos alimentares e culturais, e essas
pessoas que vão propor a diferença dentro dos espaços que elas convivem. Se
nós, que somos a voz dos animais, o único movimento social onde a vítima
não pode falar por si mesma (o que torna tudo mais difícil), agirmos
estrategicamente e tentarmos um diálogo, a mudança será mais eficaz.
Infelizmente veganismo é o único movimento social onde as coisas não vão
se resolver numa revolução (tiro, porrada e bomba). Não é um grupo social
sobre o outro, é a porra do mundo inteiro especista contra nós. O mundo inteiro
concorda em explorar animais pra fins que consideram justificáveis. Mas nós
vamos apontar racismo sim, se o for, e isso não vai nos impedir de fazer
173

ativismo, isso não vai nos impedir de conversar de pessoa pra pessoa. (FLOR,
2018)

Flauzina (2017) aponta talvez a maior capacidade do racismo que é a de


"conseguir naturalizar a dor negra como consenso que não implica as pessoas num dilema ético.
É a operação que tranquiliza o sono das elites, enquanto o genocídio abate um contingente
tomado como abjeto, menor, descartável. É a herança mais bem guardada dos escombros na
escravidão no Brasil e na Diáspora". Com isso, buscamos demonstrar atitudes decoloniais,
discursos insurgentes e a comunicação política antiespecista e antirracista do MAV.
Estabelecendo um diálogo com todas as camadas da sociedade e que por estratégias políticas,
possamos romper com as amarras do colonialismo e do racismo institucional.
Acreditamos ser oportuno repetir que a originalidade desse trabalho foi em
analisar discursivamente o objeto de pesquisa pelo viés político, biopolítico e decolonial. Nessa
perspectiva, tensionamos os problemas políticos/sociais do país e as biopolíticas relativas às
populações periféricas, e a análise de discurso permitiu observar os sujeitos, os sentidos e as
ideologias. Seguindo as palavras de Orlandi (2017), analisamos esse sujeito moderno na sua
forma-histórica capitalista, “caracterizada como sujeito jurídico, com seus direitos, deveres e
sua livre circulação social”.
A partir dos discursos políticos identificados, encontramos os rastros de diversas
ideologias, entre elas, podemos destacar: ideologias marxistas, ideologias neoliberais,
ideologias burguesas, ideologias que marcam distinções entre burgueses e proletários. Fica
evidente que os sentidos atribuídos ao “periférico”, ao “trabalhador”, à “cidadania” acionam
redes de sentidos, que remetem a uma memória discursiva marcada também pela historicidade.
Os temas em debate se encontram no corpus analisados, seja no documentário ou nas postagens
do Instagram, os Veganos Periféricos estão empenhados com a causa vegana buscando
mudanças políticas, usando o “político”, conforme estabelecemos conceitualmente. Os irmãos
Luvizetto em primeiro lugar estão preocupados com os animais, mas usam a alimentação e do
ato de comer como um ato político, inclusivo, solidário e representativo. Atuaram junto ao
poder público em defesa dos animais, pressionando a prefeitura de Campinas, defendem a
agricultura familiar e as hortas comunitárias. Por meio das redes sociais, emitem opiniões e
debatem os principais assuntos e temas em circulação nos espaços midiáticos, mas destacamos
o fato de cederem o espaço do coletivo para que outros veganos que defendem outras pautas,
possam se expressar no Instagram do coletivo. São mulheres negras, LGBTQIA+, sujeitos
periféricos que encontram no espaço acolhimento e, por outro lado, suas vivências na luta por
outros objetivos, acabam trazendo contribuições ao movimento vegano. Além de críticas
174

contundentes aos meios de produção, e forma como as indústria da proteína animal e a da


publicidade, silenciam em seus discursos, os sistemas produtivos envolvidos na produção das
mercadorias. Identificamos em seus discursos criticas severas ao capitalismo e ao sistema
neoliberal que para eles estão somente preocupados com a produção e os resultados com os
lucros.
Os irmãos Luvizetto estão atentos aos movimentos engendrados entre a indústria
e os veganos liberais cooptados pelas lógicas de mercado e são favoráveis a ter opções de
produtos veganos industrializados produzidos pelos principais processadores de proteína
animal. Não exploramos os conceitos da Orlandi no que tange a classificação dos discursos em
que sugeri em seu livro “Análises e procedimentos”, entretanto, podemos afirmar que
identificamos por meio da observação funcionamento discursivos autoritários e discursos
polêmicos que são respectivamente, segundo definições da Orlandi (1989):

a.   discurso autoritário: aquele em que a polissemia é contida, referente está


apagado pela relação de linguagem que se estabelece e o locutor se coloca
como agente exclusivo, apagando também sua relação com o interlocutor;
b.   discurso polêmico: aquele em que a polissemia é controlada, o referente é
disputado pelos interlocutores, e estes se mantêm em presença, numa
relação tensa de disputa pelos sentidos;

E seguindo por nossas análises, embasados por nossas referências bibliográficas,


acreditamos que os apontamentos feitos por Jessé Souza, José L. Fiorin e Nikolas Rose nos
esclarece como os sentidos, as subjetivações e como o Estado e a elite constrói os significados
sobre os sujeitos periféricos. Por meio da linguagem, discursos disciplinares e políticos
estabelecem biopolíticas sobre os sujeitos estabelecendo um poder sobre suas vidas. Esses
sujeitos são simbolicamente e imaginariamente constituídos por formas de assujeitamentos
sendo governados pelo Estado que segundo Achille Mbembe (2018) acrescenta que por meio
do poder, fazer viver e deixar morrer - ou definir que deve viver e quem deve morrer - faz parte
de um conjunto de políticas de controle social que passa ser através da morte: a chamada
necropolítica, como define o seu conceito.
Considerando que a pesquisa é coletiva, fruto do trabalho dos pesquisadores de um
determinado campo do saber, entendemos que o presente estudo poderá contribuir para o
desenvolvimento de alguns debates do campo da comunicação. Poderá também contribuir
com as reflexões concernetes à pesquisa e ao desenvolvimento de literacias para comunicação,
consumo e publicidade, notadamente o consumo político e consciente, no controle de
pandemias e ao meio-ambiente envolvendo questões referentes ao desmatamento, mudanças
175

climáticas e uso de recursos hídricos, temas contemporâneos que atingem a comunidade global.
Valendo-nos de apontamentos feitos por Portilho (2016, p. 426), concluímos que “faz-se
necessário, ainda, realizar estudos que analisem o que acontece com o consumo político
alimentar (étnicos ou não — grifo nosso) em momentos de predomínio de políticas de
austeridade, de decrescimento econômico e de governos ditatoriais”.
176

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53
180

APÊNDICE
A. POSTS COMPLETOS UTILIZADOS NAS ANÁLISES DISCURSIVAS*
* posts utilizados do corpus selecionado para a pesquisa em 17/12/2021.

1. POLÍTICOS E DE CONSUMO CONSCIENTE

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O veganismo sem recorte de classe, sem cultura popular, sem referências e sem um trampo
de base, nunca vai atingir a maior parte da população de forma concreta, sempre vai chegar
pra maioria de nós, como um movimento elitizado, classista e excludente. Por isso, é de suma
importância a propagação de um movimento político e popular.

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Muita gente hoje em dia está tendo contato com a exploração de animais e com os malefícios
do consumo de produtos de origem animal. E felizmente essas pessoas estão buscando
formas de parar de consumir esses produtos. Mas tem um porém, a maioria vai por um
caminho que até soa “revolucionário”, que é consumir produtos vegetais de grandes redes
de fast-food, comprar carnes vegetais de frigoríficos, financiando essas grandes empresas
exploradoras. Pois a gente sabe muito bem qual é que é a intenção dessas empresas em se
apropriar de uma causa tão importante e nóis tá ligado que não é o fim da exploração animal
e sim o lucro, a fatia de mercado, a grana. Quando empresas como a JBS, a Seara, a BRF, a
Marfrig, a Sadia, o KFC, o Burger King, O Subway, o McDonald's, entre outras, lançam um
produto vegetal no mercado, elas não estão preocupadas de fato com a morte de bilhões de
animais. Milhares de notícias em grandes mídias confirmam o quanto elas estão preocupadas
apenas com a “tal mania vegana”, com o nicho de Mercado e com a moda dos hambúrgueres
"à base de planta". A forma com que eles olham é única e exclusivamente com interesses na
parte do público que eles estão perdendo, e que estão deixando de consumir produtos de
origem animal, pois só no Brasil são 30 milhões de vegetarianos, um número maior do que
as populações de toda a Austrália e Nova Zelândia juntas. É só uma reação natural dessas
empresas de cooptar uma causa e continuar explorando milhares de animais, funcionários e
a Terra. Essas megaempresas não tem dois caixas, um que entra para a proteção animal e o
outro para o abate, tortura e exploração, é apenas um caixa, e esse dinheiro que entra só
fortalece mais o negócio animal no Brasil e no mundo. E nós, que deveríamos boicotar e
denunciar para dizer basta, estamos apoiando e financiando essas corporações. Será que
existe muita diferença entre passar uma manteiga de origem animal no pão e comprar um
hambúrguer vegetal da Seara? Onde entra o nosso posicionamento político, no consumo ou
no paladar?

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Salve, quebrada! Aí, temos perdido muitos seguidores por conta do nosso posicionamento
político na página. Mas isso não é novidade pra gente, devido ao fato de que no movimento
vegano a maior parte das pessoas são totalmente despolitizadas, vem de uma elite que não
precisa se preocupar com política e com suas consequências para a maior parte da população,
e não compreendem que o sistema em si é o principal responsável pela morte de bilhões de
animais. Além disso, é muito comum as pessoas associarem o veganismo com dieta, por isso
181

não entendem quando nos posicionamos, surgem comentários do tipo: "nossa, pensei que
era uma página de veganismo, pra falar de receita". Precisa ficar claro que o movimento
vegano é um movimento anti-opressão e amplo, a alimentação é uma parte da causa, e sim,
é uma das mais importantes, tendo em vista que nos alimentamos muitas vezes ao dia, e é a
parte mais difícil de mudar. Porém, não podemos nos limitar. Se faz necessário um
movimento politizado, com pessoas que compreendem que enquanto o sistema estiver
estruturado da forma que está, poucas coisas mudarão. Precisamos fazer a nossa parte, com
trampo de base, propagando informação na horizontal e de forma acessível, e sim, mudanças
pessoais são importantes e necessárias, mas não podemos ignorar que o sistema em que
vivemos é extremamente cruel e a política institucional tem interferência na nossa luta. Pra
gente é um tanto incoerente comer um prato colorido, sem nada de origem animal, e
concordar com políticas de extermínio, com um político genocida, machista, autoritário, que
apoia rodeio, caça, exportação de animais vivos, apoia o genocídio da população indígena e
da população negra, promove grilagem e desmatamento, que está sendo extremamente
negligente em relação ao coronavírus, que está matando milhares de brasileiros. Não faz o
menor sentido, é uma contradição sem tamanho. Só pra ter uma ideia, o Brasil é o maior
exportador de carne do mundo, é muita ingenuidade ficar aqui no Instagram apontando o
dedo na cara das pessoas sem falar da principal causa da exploração animal. O veganismo
despolitizado é tudo que o capitalismo quer, pois é frágil, maleável e vive de aparência.

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O veganismo vai muito além de produtos sem nada de origem animal. O veganismo não é
uma dieta da moda, um modismo passageiro ou qualquer coisa do tipo que esteja relacionado
a superficialidades ou um mundo encantado de seres iluminados. Muito pelo contrário. E
boicotar empresas e organizações que exploram animais, é uma tarefa básica e simples na
ação. Não precisávamos nem estar falando sobre isso. O veganismo elitista, excludente e
despolitizado não se importa com os problemas socioambientais, logo, aplaudem e vibram
quando uma multinacional irresponsável lança um produto sem ingredientes de origem
animal com um selinho vegano e um "V" com uma plantinha pra deixar o vegano sem
consciência de classe mais contente ainda, isso é um discurso incoerente. Além de que, os
produtos são caros e estão disponíveis apenas em grandes redes de supermercados nas
regiões mais privilegiadas das grandes metrópoles ou em mega redes de fast-food que
exploram animais humanos vulneráveis e não humanos, destruindo o planeta. O povo não
precisa de subprodutos da indústria e ultraprocessados cancerígenos pra sentir que está em
ascensão social... a maior parte da população precisa de rango de verdade, comida que não
adoece, porque quem mais morre e mais sofre são os pobres e negros... a classe média e a
elitizinha consome orgânicos, arroz, pão e farinha integral e raramente tem contato com a
base, por isso, temos que parar de falar para a classe média e falar com quem realmente
precisa. Vamos esquecer a classe média "vegan plant based" narcisista preocupada apenas
com cerveja artesanal e canudo de inox e atuar na base, porque esse veganismo estratégico
só tem uma estratégia e é a de enriquecer e financiar o capitalista com a ilusão de que eles
estão do nosso lado.

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Qual o real sentido de aplaudir e se aliar a essas grandes marcas, como Unilever, Coca-Cola
e Nestlé? Essas megaempresas só querem lucro, lucro e mais lucro... acima de qualquer
coisa, seja explorando seres humanos, destruindo o planeta ou explorando animais inocentes.
É muita ingenuidade acreditar que estão preocupadas com veganismo ou qualquer outra
182

causa. Esse veganismo "estratégico" que abraça as grandes empresas e acredita que o sistema
capitalista vai resolver os problemas que ele mesmo criou é atrasado, elitista, excludente e
totalmente fora da realidade. Estratégia não é se aliar ao inimigo, estratégia é se aliar ao
povo. Se opor a essas empresas é o mínimo que devemos fazer, jamais iremos apoiar ou
incentivar essas corporações só por causa de produtinho com selo "vegano". Nós temos
vergonha de consumir produtos dessas corporações. Ainda mais pra gente, que cresceu na
periferia consumindo ultraprocessados, industrializados, açúcar em excesso, produtos de
origem animal sem ter a noção do quanto tudo isso é prejudicial em todos os sentidos e o
quanto a indústria alimentícia condicionou o nosso consumo. Não se fala sobre o nutricídio
que ocorre nas periferias, poucos falam sobre isso no veganismo. A rapaziada tá preocupada
com uma maionese que contém 18 ingredientes, com hambúrgueres de empresas que
exploram animais, com redes de fast food exploradoras. Precisamos falar de veganismo com
comida de verdade, incentivando o pequeno produtor, precisamos entender que alimentação
não tem nada a ver com natureba ou dieta, se alimentar bem é um ato político e é de fato um
ato de resistência.

2. CRÍTICA SOCIAL
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Apesar de o arroz e o feijão estarem muito caros (mas já estamos tirando a Dilma e tudo vai
melhorar), sai muito mais barato comer produtos de origem vegetal. De fato, economizamos
muito mais hoje. Porque acreditamos que o único caminho é o veganismo simples, acessível
e popular, viável para a realidade da maioria das brasileiras e brasileiros. O resto é estética
moderninha. Outra coisa, não temos acesso fácil a cogumelos, tofus, grãos estranhos e caros,
por isso raramente consumimos e estamos firmão demais. E mesmo comprando esses
bagulhos é mais barato do que consumir produtos de origem animal. E sim, é possível
consumir uma variedade enorme de alimentos sem nada de origem animal e não gastar muita
grana.Não estamos falando isso porque assistimos um vídeo, vimos em um documentário ou
em algum livro por aí, nós vivemos isso. Podíamos fazer igual uma pá de gente, se acomodar
e falar que nada vai mudar, mas a nossa vida perderia totalmente o sentido.

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Não é atoa que existem miséria, ignorância e alienação total na maior parte da população.
Há grandes corporações, banqueiros e magnatas se beneficiando com pessoas em situação
de vulnerabilidade extrema e não se sentem nenhum um pouco incomodados com isso.
Quando falamos de animais não humanos a compaixão chega a ser inimaginável. Abaixo
dos poderes estamos todos fudidos, mas agora alguns tem clareza. Nóis memo aqui da página
tivemos que trampar no Méquidonaldis por não ter onde morar, pra não ir pela décima vez
morar de favor na casa dos parentes. Tivemos e ainda temos uma vida com muitas
dificuldades, porém temos clareza da nossa situação e conseguimos enxergar todo esse
sistema e sua podridão. Tem espaço pra todo mundo, tem tecnologia, tem dinheiro e comida
pra alimentar o mundo inteiro, só que solidariedade não gera riqueza e sem competição não
tem como gerar lucros. Tudo é muito pensado para tornar o mundo em uma arena, onde todo
mundo é inimigo de todo mundo. Não só seres humanos sofrem com a ganância e com a
sabotagem, os animais não humanos sofrem horrores, tanto dor física quanto psicológica,
são tratados como coisas, levando uma vida de servidão e angústia. O pouco que podemos
fazer é sair da teoria e ir pra prática, contaminar mais e mais gente de forma clara e pacífica
183

contra todo tipo de opressão. E que isso seja uma decisão pra vida inteira, não há soluções
exatas, há caminhos a serem seguidos e formas conscientes de tomar atitudes. As suas
escolhas diárias podem favorecer as opressões ou ir contra elas.

1.761 likes / 60 mensagens / 176 semanas


A parte mais importante da comunicação é o receptor, então, não adianta eu chegar lá e falar
em paradigma, sabe, não adiante eu falar academês. O academês foi formulado pra servir de
cerca de arame farpado pro conhecimento não alcançar a maioria, pra não dar acesso, é
preciso pegar essa cerca e derrubar, é preciso falar errado, é preciso engolir plural, errar
concordância, é fácil falar. Albert Einstein já dizia: se você não consegue falar pra tua vó o
que você acabou de aprender, então você não entendeu direito. Cê tem que falar a língua do
ignorante, porque ele foi ignorantizado. Quando eu tô diante de um cara desdentado,
analfabeto, eu não tô diante de um inferior, eu tô diante de uma vítima de crime social, a
sociedade é criminosa, então se eu tive meus direitos respeitados, eu tenho uma dívida com
essa galera, eu não tenho superioridade. Texto: Eduardo Marinho.

460 likes / 31 mensagens / 181 semanas


Sei que a causa vegana é uma causa política, muito importante ser abordada e difundida em
qualquer lugar, porém, depende muito de como isso é feito. Alguns nunca passaram fome,
nunca foram em uma periferia, nunca foram em um bairro muito carente e nem tem amigos
nessas condições, nunca vivenciaram situações de extrema falta de recursos. Não sabem
como é a cultura, o ambiente, a linguagem, as conversas, as motivações, etc... Com isso,
quero colocar a importância de tomarmos muito cuidado ao falar que todo mundo pode ser
vegano, criticar todo mundo e apontar o dedo, principalmente pra classe mais sabotada da
sociedade, dizendo que "esses são pior ainda". Temos que tomar cuidado ao usar palavras
que o povo não entende. Falar em uma linguagem complexa, mais acadêmica, pode nos
trazer mais credibilidade e confiança, mas não exatamente a fácil compreensão da nossa
informação e isso vai dificultando cada vez mais a mensagem que queremos passar. Pode
parecer simples dizer: os animais merecem o mesmo respeito que nós, e não temos o direito
de usá-los, mas existem milhares de condicionamentos, elementos mentais da cultura
enraizados, diversas distrações midiáticas, sociais e sem contar a desmotivação que as
pessoas têm em consumir produtos mais nutritivos, tudo isso e muito mais que impede uma
pessoa refletir sobre isso. Não devemos nos sentir superior, ou mais elevados que alguém.
Agora que temos informações, temos que ser mais responsáveis e tentar transmitir uma
mensagem mais simples e direta, sem parecer arrogante ou o dono da verdade. Somos meros
mortais, tentando passar o que sentimos, apenas.

3. INTERSECCIONALIDADE
Luciene / 25 anos / São Paulo – SP / @sapavegana
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Meu nome é Luciene, tenho 25 anos, nasci em Salvador, mas moro em São Paulo.
Durante a maior parte da minha infância morei na Zona Leste de São Paulo, na Cidade
Tiradentes. E cresci passando aquelas dificuldades que quem é pobre sabe bem. Então,
imaginem a quantidade de críticas que surgiram na minha mente quando ouvi falar de
184

veganismo. E meu posicionamento mudou apenas depois de assistir um vídeo sobre


exploração animal. Quando vi todo aquele sofrimento me senti uma pessoa horrível, por
saber que de alguma maneira eu fazia parte daquilo. E foi quando decidi me tornar vegana.
Não foi fácil, cresci sendo ensinada a comer animais e foi preciso encontrar minhas maneiras
de evitar recaídas. Já que estava adaptando o veganismo à minha realidade, criei o perfil
@sapavegana e desde então ensino veganismo popular, antirracista e acho que até anti-
LGBTfóbico já que faço questão de mostrar quem sou, o SAPAvegana não é a toa e,
acreditem, muitos veganos/vegetarianos deixam de me acompanhar por causa disso.

Carla Candance / 26 anos / Itacaré - BA / @carla.candace


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Eu me chamo Carla Candace, tenho 26 anos, moro em Itacaré Bahia, Sou formada em
Comunicação Social Rádio e Tv, e sou vegana há pouco mais de 2 anos. Comecei a minha
trajetória na militância a partir de coletivos antirracistas, e pela democratização da
comunicação. Foi buscando conhecimento a respeito da estrutura injusta na qual estamos
inseridos, que eu me deparei com um trecho do documentário Terráqueos, o que mudou
minha vida, e abriu minha mente para a existência do especismo. Começar a entender e
estudar como o especismo se utiliza do discurso de inferiorização animal para cometer todas
as atrocidades possíveis, me fez enxergar como a base de todas as opressões se parecem e se
interligam. Por isso que o veganismo que eu acredito é popular, antirracista e democrático.
Um movimento que busca empatia e respeito não pode existir sem recortes. O Veganismo,
assim como todos os movimentos sociais que buscam por libertação, precisa inserir grupos
historicamente oprimidos, para mostrar como a exploração precisa ser abolida de todas as
formas que ela existe. Foi então que eu resolvi criar @carla.candace pra falar da minha
vivência como mulher, lésbica, preta, e vegana do interior da Bahia. Eu queria que as pessoas
enxergassem que é sim possível ser vegano, gastando pouco, comendo bem, respeitando
todos os seres, e mantendo a tradição alimentar regional. Eu queria ver outros pontos de vista
do Veganismo que não viessem sempre do sudeste, fossem branco, e caro. O veganismo
político e acessível precisa chegar nas pessoas, e a melhor forma de fazer isso é sendo
exemplo. Agradece muito ao Du e ao Léo por serem o exemplo que eu tanto busquei.

Thallita Flor / 25 anos/ Niterói - RJ / @thallitaxavier


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Peço licença ao Leo e ao Du, por chegar aqui nesse espaço necessário de ativismo De e Para
a periferia. Me chamo Thallita Flor, tenho 25 anos e moro em Niterói, Rio de Janeiro. Sou
uma artista multifuncional que luta pela ascensão do povo preto, trabalhando como atriz,
palhaça e cozinheira. Sou vegana a 7 anos e no meu perfil @thallitaxavier falo sobre
veganismo acessível, autonomia alimentar, empoderamento da comunidade preta dentre
outras coisas. Em 2017 escrevi um texto no meu blog sobre como era a experiência de ser
vegana e favelada, e muitas pessoas passaram a conhecer o meu trabalho através daquelas
palavras. Comecei a cozinhar pela necessidade e sempre busquei me atualizar por estar em
constante desvantagem nesse mercado tão competitivo. Na gastronomia estudo as
influências e contribuições do continente africano para a cultura alimentar brasileira
valorizando os ingredientes que vem da terra. Sou dona e chef executiva do
@bananabuffetvegano o primeiro buffet vegano do Rio de Janeiro que criei a 6 anos atrás
por conta da minha paixão de trabalhar com o ramo de eventos. Sou uma das fundadoras do
@movimentoafrovegano que luta contra o racismo e o especismo e se fez necessário como
185

um espaço de aquilombamento da comunidade preta. Precisamos lutar pela libertação de


todos os animais humanos e não humanos através de um veganismo político, pra que todas
as espécies oprimidas pelo sistema tenham condições de vidas justas. Axé pra todos!

Silvio Louzada / 17 anos / (periferia do Rio) RJ / @periferia.preta.vegana


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E AI MEUS AMORES ✨❤. Hoje venho ocupar o maior e melhor perfil do mundo. Direto
da periferia do Rio, para o mundo. Para quem não me conhece sou Silvio Louzada, criador
do @periferia.preta.vegana . Tenho 17 anos. Sou vegano faz 2 dois anos e 5 meses. Minha
proposta com o perfil é trazer um veganismo popular através da minha realidade periférica,
preta e LGBTQI+. O perfil surgiu com um "puts, como esse brankkkelo quer que eu seja
vegano se é coisa de rico e gente brankkka?" - acho que todo preto se viu nessa. Então foi
quando tive a ideia de criar o perfil. Assim poderia fazer com que os meus entendesse a
importância que é a resistência de não consumir alimentos e derivados de animais. Me tornei
vegano após entender como nosso Estado genocida segue nos matando mais pela boca do
que a sua melícia de polícias, o famoso nutricídio da população negra. Aonde temos pessoas
pretas morrendo por diabetes, câncer, hipertensão... Todas devido ao consumo animal. No
veganismo aprendi ter uma relação melhor não só com os animais, mas também com a minha
ancestralidade africana, aonde veio aprendendo cada vez mais descolonizar e resgatar pratos
típicos do meu continente de direito. Por um veganismo anticapitalista e popular, por que só
assim vamos conseguir mudar o mundo. VIDAS NEGRAS IMPORTAM. VIDAS NEGRAS
TRANS IMPORTAM! ✊ 🌈✨

Luiz Otávio (Puma Camillê) / 26 anos / Campinas-SP / @mussumcapoeira


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Gostaria de expressar a minha felicidade e gratidão ao Léo e ao Du, pelo convite e pela
oportunidade de estar ocupado esse espaço político, que se faz cada vez mais necessário.
Meu nome é Luiz Otávio, sou conhecido como Puma Camillê dentro da Comunidade
Ballroom (comunidade criada por mulheres Trans e travestis pretas na qual o estilo vogue
pertence), tenho 26 anos e moro em Campinas/SP. Sou Modelo, influencer digital, Voguer,
capoeirista e ativista ANTILGBTQIA+fobia, na luta ANTIracista e ANTIespecismo. Sou
Vegano a 1 ano, nunca acreditei que uma pessoa que leva a vida em alta performance física
poderia ser vegana, pois cresci ouvindo e sendo bombardeado de informação que
legitimavam essa falsa crença. Além disso vendo como meus pais se orgulhavam de poder
colocar carne dentro de casa, visto que não era a realidade deles, nem da família deles num
passado não muito remoto. Me tornei vegano, pois comecei cada vez mais a me conectar
com os meus outros “EU’s”, através de práticas espirituais que o universo me trouxe, para
cada vez mais me conectar com a alta frequência de AMOR. E falando em amor não tem
como não notar o desAMOR que rola em todas essas estruturas que mantém esse sistema
capitalista que fomenta toda o genocídio ao nosso povo, inclusive principalmente através do
nosso prato e de todas as nossas práticas de consumo. Desejo que essa frequência de
consciência seja acessada por todas às minorias, e para aqueles que ainda não acessaram,
que o processo possa ser leve de entender que interconexão das lutas contra as opressões que
são mantidas através da inferiorização de seres humanas e não humanas, é mais do que
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necessária para um futuro mais pacífico. #vidasnegrasimportam #vidastransnegrasimportam


🏿✊ 🌈 @mussumcapoeira Música: Poetisas no Topo

Daiana Lima / 30 anos / Salvador – BA / @pretaveg


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Meu nome é Daiana Lima, sou filha de dona Célia e neta de Dona Rosa, baiana, moradora
da Cidade de Salvador, comunidade do Eng. V. de Brotas. Tenho 30 anos, sou
administradora e afroempreededora. Minha jornada em torno de uma alimentação de base
Vegetal começou aos 19 anos, até àquele momento nunca havia me dado conta da relação
existente entre a carne em meu prato e a morte de um animal. Em 2008, conheci o Rango
Vegan, empreendimento de alimentação vegana e forte atuação política, sendo este, o meu
primeiro contato com a ideologia proposta pelo Veganismo. Um pouco mais a frente, percebi
que, de fato, não querer mais compactuar com a morte para viver. Contudo, antes de ser
Vegana, sou uma mulher preta, moradora de periferia, oriunda de uma família que, assim
como eu, não fazia ideia sobre a possibilidade de um modo diferente de se alimentar. Para
mim foi tudo muito novo e desafiador. Ao mesmo tempo que entendi estar segura sobre
minhas escolhas, via no movimento Vegano tradicional um espaço ocupado pela branquitude
que em nada dialogava com pessoas iguais a mim. Foi a partir dessas inquietações que
comecei a pesquisar sobre o movimento Vegano liderado por pessoas negras. Inicialmente
conheci diversas iniciativa nos EUA e em seguida a Mav @movimentoafrovegano o qual hj
atuou como uma das administradoras. A partir dessas pesquisas tmb descobri que o modo
como a maioria da população negra desse país se alimenta hoje, em nada se assemelha a
diversas tradições ancestrais de diferentes povos africanos, Mas sim a uma herança da
colonização alimentar que favorece um projeto nutricida do nosso povo. Através da minha
pág @pretaveg tento mostrar uma forma acessível de se alimentar de plantas, resgatando
saberes ancestrais e descolonizando nossos pratos. Além disso, juntamente com a minha
maravilhosa mãe, que é baiana de acarajé, criarmos um empreendimento de culinária Baiana
o @dodenderosas onde apresentamos toda “baianidade” na versão vegana, com preço justo
e acessível. Acredito que as lutas precisam ser sistêmicas e, um veganismo que não consiga
dialogar com isso, em nada contribui para um sociedade mais equânime.

SAÚDE
17.804 likes / 441 mensagens / 105 semanas
É possível ser pobre e vegano sem prejudicar a saúde? Acreditamos que os dois maiores
receios da rapaziada em relação ao veganismo seja a saúde e a grana. E não é pra menos,
há muita desinformação e muitos mitos sobre o assunto, e isso acaba gerando muita confusão
e dúvidas. Em casa por exemplo, quando começamos no veganismo nossa família ficou um
pouco preocupada, achando que ficaríamos doentes e tals... Achando que iríamos ter que
gastar horrores comprando suplementos e alimentos caríssimos. É nítido que a maioria das
pessoas enxerga o veganismo como se fosse algo extremista e fora da realidade. E
infelizmente isso tem um motivo “a forma elitista que muita gente propaga a causa”. Mas na
real, sem essa gourmetização patrocinada pelo capitalismo a parada é mais simples do que a
gente pensa. E hoje, a nossa família e amigos sabem o quanto a gente economiza e o quanto
a nossa saúde está excelente. Meu irmão fez exames alguns meses atrás e eu fui fazer os
meus semana passada. Colei numa clínica popular e o preço foi suave. Os resultados estão
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bem de boa, principalmente a B12 que é a preocupação de todos (suplemento desde o


começo). A suplementação é bem em conta, e é a única vitamina que precisamos
suplementar. (Pesquise sobre a B12). Com isso, podemos afirmar, que tendo consciência,
informação e disposição é super possível e acessível se alimentar sem bicho morto, sem
restos de animais, sem leite de vaca/derivados e sem ovos. Nós viramos veganos pelos
animais e por uma questão política, e pra gente, se alimentar de forma adequada é mais do
que um ato político, é uma necessidade. Nos alimentamos praticamente de frutas, legumes,
sementes, leguminosas, grãos e vegetais. Depois que decidimos não mais contribuir com a
indústria da exploração animal a nossa saúde (mesmo não sendo esse o objetivo) melhorou
muito, a grana começou a sobrar e o medo que a nossa família tinha em relação aos gastos
com coisas caríssimas e com a nossa saúde passou. Hoje eles perceberam que essas coisas
caras são tudo bobagens e não passam de coisas direcionadas a uma classe que tem tempo e
dinheiro pra consumir, e que com pouca grana da pra fazer uns baita de uns rango e ficar
firmão.

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Colei numa clínica popular ali no centro. Sentei na frente da Dra. e disse que era vegano e
queria fazer uns exames pra ver como estão as coisas. A Dra. Débora perguntou há quanto
tempo eu era vegano, respondi há três anos. Aí dei pra ela um exame realizado há pouco
mais de um ano (nov/2017). Ela olhou o hemograma, e surpresa com o resultado disse:
"Aqui você não era vegano né?! (kk) Nossa, a sua B12 estava excelente, nível de ferro e
vitamina D também, excelentes". Ela pediu Ferro, Cálcio, B12, VIT D, Potássio, Sódio,
exames pro fígado e pros rins. Realizei os exames e retornei na clínica. Ela olhou um por
um e disse: “não tem anemia, não tem nenhuma infecção ou alergia. Sua B12 tá
normalíssima, nível de ferro excelente, cálcio está ótimo quase ultrapassando os valores
normais, sódio e potássio ótimo... seus exames estão excelentes e você não tem nenhuma
deficiência nutricional. Pode continuar suas atividades normalmente e a sua alimentação
está adequada". Por questões éticas, não consumimos carnes, leite, ovos, mel e nenhum
produto de origem animal. Nunca suplementei absolutamente nada além de vitamina B12.
Nunca passei com um nutricionista ou nutrólogo (por falta de grana). Dificilmente
compramos alimentos caros, difíceis de encontrar ou sofisticados gurmê. Nossa alimentação
é básica, simples e acessível. Não é caro e muito menos difícil deixar de colaborar com a
indústria da morte.

B. ACESSO AO CORPUS

https://drive.google.com/drive/folders/1C2FWiIIH2wdPBhiGTShIaK_104mRe2lH

b.1 ) 1 documentário

b.2) 64 postagens do Instagram

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