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Manoel de Barros Entrevistas
Manoel de Barros Entrevistas
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MANOEL DE BARROS
Coleção Encontros
Antonio Risério
Capoeira
Cildo Meireles
Darcy Ribeiro
Eduardo Coutinho
Eduardo Viveiros de Castro
Fernando Gabeira
Florestan Fernandes
Gilberto Gil
Hélio Oiticica
Ismail Xavier
Jorge Luis Borges
Jorge Mautner
Maio de 68
Manoel de Barros
Milton Santos
Nise da Silveira
Roberto Piva
Rogério Duarte
Rogério Sganzerla
Silviano Santiago
Tropicália
Vinicius de Moraes
Zé Celso Martinez Corrêa
PRÓXIMOS LANÇAMENTOS
Aloísio Magalhães
Boris Schnaiderman
Carlos Drummond de Andrade
Gilberto Freyre
Mario Pedrosa
Newton da Costa
Silviano Santiago
Tom Zé
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ENCONTROS
Manoel de Barros
Organização
Adalberto Müller
Apresentação
Egberto Gismonti
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Encontros
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ENCONTROS
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Abertura
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ENCONTROS
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Apresentação
Egberto Gismonti é
músico.
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Conversa de poesia,
exercício de prosa
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ENCONTROS
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Conversa de poesia,
exercício de prosa
Adalberto Múller é
professor de cinema
na UFF-RJ
I
Da entrevista como arte do disfarce.
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II
Retrato do poeta, no escuro.
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ENCONTROS
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III
O pantanal da linguagem
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IV
O transfazedor em sua oficina
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Não oblitero moscas com palavras.
Uma espécie de canto me ocasiona.
Respeito as oralidades.
Eu escrevo o rumor das palavras(...)
(O livro das ignorãças)
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A sensatez me absurda.
(Livro sobre nada)
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V
O poeta no mundo.
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Minha infância é marcada por gestos de peixes, por entes que al-
çam tipo borboletas e bem-te-vis, por entes que rastejam tipo les-
ma, lagarto. Meu olho é marcado por árvores, por rios e mais cinco
pessoas: meu pai, minha mãe, meu irmão e três vaqueiros. Apren-
di até sete anos só coisas que analfabetam. Vi cartilha com oito.
Aprendi a soletrar somar e dividir com nove. Nunca li livros com
histórias infantis. Tive que fazer eu mesmo as artices da infância.
Até hoje as histórias e estórias não me atraem. O que alimenta meu
espírito não é ler. É inventar. Fui criado no mato isolado. Acho que
isso me obrigava a ampliar o meu mundo com o imaginário. Inven-
tei meus brinquedos e meu vocabulário. Quando eu não achava a
palavra para nomear a coisa eu modelava ela com as mãos. Meu
pai entendia. Minha mãe entendia. Depois fomos desenvolven-
do. Em 1931, com 14 anos, um padre no Colégio São José me deu
um livro de Antônio Vieira pra ler. Só daí em diante eu gostei de ler.
Mas não pelas histórias ou pregações do Vieira, mas pelas frases
dele. Depois comecei a ler todos os poetas daqui e de outros luga-
res. Minha curiosidade intelectual nunca foi por histórias nem por
indague sobre a vida e a morte – essas metafísicas. Eu gostava das
frases, de preferência as insólitas.
Acho que foi minha inaptidão para o diálogo que gerou o poeta.
Sujeito complicado, se vou falar, uma coisa me bloqueia, me inibe,
e eu corto a conversa no meio, como quem é pego defecando e o faz
pela metade. Do que eu poderia dizer, resta sempre um déficit de
oitenta por cento. E os vinte por cento que consigo falar não
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Quanto às funções da
poesia...Creio que a principal é a
de promover o arejamento das
palavras, inventando para elas
novos relacionamentos, para que
os idiomas não morram a morte
por fórmulas, por lugares
comuns. Os governos mais sábios
deveriam contratar os poetas
para esse trabalho de restituir a
virgindade a certas palavras ou
expressões, que estão morrendo
cariadas, corroídas pelo uso em
clichês. Só os poetas podem
salvar o idioma da esclerose.
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coisas gratuitas. Vendem-se hoje até vista para o mar, sapos com
esquadrias de alumínio, luar com freio automático, estrelas em alta
rotação, laminação de sabiás, etc. Há que ter umas coisas gratuitas
pra alimentar os loucos de água e de estandarte. Quanto às fun-
ções da poesia...Creio que a principal é a de promover o arejamen-
to das palavras, inventando para elas novos relacionamentos, para
que os idiomas não morram a morte por fórmulas, por lugares co-
muns. Os governos mais sábios deveriam contratar os poetas para
esse trabalho de restituir a virgindade a certas palavras ou expres-
sões, que estão morrendo cariadas, corroídas pelo uso em clichês.
Só os poetas podem salvar o idioma da esclerose. Além disso a
poesia tem a função de pregar a prática da infância entre os ho-
mens. A prática do desnecessário e da cambalhota, desenvolven-
do em cada um de nós o senso do lúdico. Se a poesia desaparecesse
do mundo, todos os homens se transformariam em máquinas,
monstros, robôs.
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Tudo creio já foi pensado e dito por tantos e tontos. Ou quase tudo.
Ou quase tontos. De modo que não há novidade debaixo do sol –
e isso também já foi dito. “Os temas do mundo são pouco numero-
sos e os arranjos são infinitos.” – falou Barthes. Então, o que se
pode fazer de melhor é dizer de outra forma. Se for para tirar gosto
poético, vai bem perverter a linguagem. Não bastam as licenças
poéticas. Há que se ir às licenciosidades. Temos de molecar o idio-
ma para que ele não morra de clichês. Subverter a sintaxe até a
castidade: isto quer dizer: até obter um texto casto. Um texto vir-
gem que o tempo e o homem ainda não tenham espolegado. O
nosso paladar de ler anda com tédio. É preciso propor novos enla-
ces para as palavras. Injetar insanidade nos verbos para que trans-
mitam aos nomes seus delírios. Em Nunes Peres Sandeu, nas Can-
tigas dos Trovadores Medievais selecionadas por Clarice
Berardinelli, encontro estes versos:
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Não tenho certeza mesmo quase nunca do que faço. Porque o faço
com o corpo. E a sensibilidade é traideira. Às vezes tapa a visão. Eu
sou demais coalescente às coisas. Não dá pra tomar distância de
julgador. Os versos vêm de escuros. Eu só tenho meus versos e a
incerteza.
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Não sou alheio a nada. Não é preciso falar de amor para se transmi-
tir amor. Nem é preciso falar de dor para transmitir o seu grito. O
que escrevo resulta de meus armazenamentos ancestrais e de
meus envolvimentos com a vida. Sou filho e neto de bugres
andarejos e portugueses melancólicos. Minha infância levei com
árvores e bichos do chão. Essa mistura jogada depois na grande
cidade deu borá: um mel sujo e amargo. Se alguma palavra minha
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Não me atrai o chão da lua. Não sou capaz de pensar nele. O que
haveria lá? Teria mamoeiro no quintal? Eu gosto de alguma coisa
que na infância eu tenha mijado nela. Uma parede de barrotes.
Um morrinho de formigas. “Chão da lua”! Fica tão longe e tão
cerebrino pensar nisso. Bugre não desprega da terra pra isso. Nem
sequer fareja esse lugar tão distante. Nossos pés se molhariam no
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orvalho da lua? Vai ter orvalho lá? Vai se chamar rocio ou orvalho?
E como será o falar? Vai ter água na boca? Córregos por perto? Ár-
vores carregadas de passarinhos? Assunto que não me preocupa
há de ser esse de chão da lua. Eu perco os meus contornos. Deixo
de saber.
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vai no campo buscar um bicho pra comer. Buscar uma folha pra
fazer remédio, etc. Mas existem animais, como a onça pintada, que
não amam o barulho do homem, nem o pisoteio do gado, nem cor-
rerias ou vozes de peão. Por isso a onça muda de querência. Vai
procurar matas mais calmas e espessas. Há o cervo também, um
veado galhudo, – esse tem minguado e está quase extinto por ser
modesto como reprodutor, e os poucos que ainda restavam, com a
entrada do gado, foram morrendo de aftosa, que é uma ferida que
dá nos cascos bifurcados dos animais. Árvores que no meu obser-
var de 50 anos estão rareando nos cerrados e até desaparecendo,
posso citar algumas: o barbatimão (que é uma leguminosa), o
tarumeiro, o chico-magro, a água-pomba, a coroa-de-frade, o ciputá
(que é um caqui selvagem) e o araticum de campo – que seria a ata
do mato. Não estão extintos todos, mas observo que rareiam pelos
campos. Eles hão de completar a eternidade deles como nós. Em
algum tempo. E sobra disso uma pequena melancolia em mim
também...
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raízes não serão arte sem os fervores e sem o sopro do artista. Isso
é tão velho como andar a pé.
O povo ensina o poeta. Sim, pois que a fonte é ele! Primeiros passos
nas palavras é ele quem dá. É no povo que as primeiras palavras
dão seus primeiros vagidos, seu primeiro estremecer. É no povo
que os vocábulos se iniciam. E isso é velho como o orvalho. Na boca
de povo a palavra está viva e turgescente. Vem com todos os dese-
jos, com todos os ardumes, com todos os murmúrios. Tenho ami-
gos do povo que me ensinam de terra, que me ensinam de águas,
que me ensinam restolhos. Suas palavras se inclinam de folhas, de
água, de chão.
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outro sentido. Tem a riqueza de você poder ver essa parede a pon-
to de sê-la. Depende só do tempo que você ficou de frente para ela.
Aos poucos a parede vai transferindo para você a sua (dela) mu-
dez. Então, se a gente adquire a mudez transferida por uma pare-
de, é certo que essa mudez aparecerá nos olhos e na boca. Uma
coisa que ensinará para sempre sua boca a desertos. E isso não é
uma parábola, é o princípio das contradições humanas. Adquire-
se pois um dom de percepção de ínfimos. Vou citar aqui apenas
duas percepções que eu tive hoje por estar de frente para uma
parede. Primeira: “Lagarto espuma verde antes de foder”. Segun-
da: “Agosto estava por um Trevo!” Então muita coisa se pode ver
desse ângulo, inclusive quando as frondes se noturnam...
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boca. Boca é uma greta que tem a raiz no chão. No chão do corpo
onde estão a lascívia, o desejo, a luxúria, o erótico. Mas o que existe
de mim nessas palavras é um bater de asas – e o não escapar. Esse
bater de asas deixa umas nódoas na parede, umas pequenas man-
chas rotas de nós. Poeta em mim é pois um sujeito que se quer
remendar. Ele quer remendar-se, ele quer redimir-se através des-
sas pobres coisas do chão. Escrevemos portanto comandados por
forças atávicas, crípticas, arquetípicas ou genéticas. Assim, Kafka
viu surgir sua arte de um sentimento de desamparo e, em toda a
sua obra, tentou redimir a beleza do fracasso, para redimir-se. Para
remendar-se. Só Beckett não quer redimir nada. Beckett expõe,
com crueldade, seus vermes de chapéu, seus pedaços de gente.
Seu efeito é a pungência em nós. Ele ri de ser pedaços. Gogol foi o
primeiro que tentou redimir o pobre-diabo, esse pobre Akáki
Akakievitch, dando-lhe um lugar na literatura e um secreto amor
por baixo do capote. Charles Chaplin redimiu os vagabundos fa-
zendo do seu Carlitos um deus contemporâneo. O que eu descu-
bro ao fim da minha Estética da Ordinariedade é que eu gostaria
de redimir as pobres coisas do chão. Me parece que olhando pelos
cacos pelos destroços e pela escória eu estaria tentando juntar frag-
mentos de mim mesmo espalhados por aí. Estaria me dando a
unidade perdida. E que obtendo a redenção das pobres coisas eu
estaria obtendo a minha redenção. (Só os fragmentos nos unem?).
Mas o que eu gostaria de dizer é que o chão do Pantanal, o meu
chão, fui encontrar também em Nova York, em Paris, na Itália, etc.
Contarei adiante umas historinhas sobre essas passagens pelas
estranjas, que comprovam de certa forma o gosto por nadeiras. Em
Nova York, onde vivi quase um ano, a maior coisa que vi foi “una
gota de sangre de pato bajo las multiplicaciones”. No ano que es-
tive lá saíra o livro de Lorca Poeta en Nueva York. Comprei o livro e
lá encontrei esse verso da gota de sangue de pato. Madrugada de
boemia o poeta, sob arranha-céus, vira, no asfalto, a gota. Era uma
coisa ínfima, ordinária, mas que cresceu em sua emoção aquela
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Não fujo da glória. Só não sei pegar ela. Para um amigo meu, Carlito
Preto, certo marreteiro daqui propôs: “Carlito, vamos pro Norte do
Estado, lá é que o dinheiro corre...” Carlito não tendo jeito para pegar
no dinheiro, respondeu: “Quá! pois aqui que o dinheiro está para-
do eu não pego nele, quanto mais lá que ele corre...” Ao Carlito, lhe
falta jeito para pegar na gaita. A mim me falta jeito para pegar na
glória. Ela corre muito e fica no alto. Eu trato com trastes. E contras-
tes. Pra mim, ardentes são as coisas desimportantes. Mas gosto
quando falam sobre minha poesia. Incho de orgulho. Igual aquele
sapo que estava no brejo, veio um boi e lhe pôs a pata por cima.
Outro amigo vendo esse sapo apertado pergunta: “Quê está fa-
zendo aí Seo Sapo?” “Tô peando esse boi”, respondeu. Penso que
sou qual o sapo. Estufo muito e disfarço. Orgulho estufa e desde-
nha honrarias. Está no Livro. E este esquivar-se de falcão, só que-
rendo estar livre para os vôos, – é o pior orgulho. Ele quer dizer
assim: eu sou esquivo porque posso ser esquivo; porque não que-
ro estar à mão de ninguém e não dependo de ninguém – sendo
esse o orgulhar-se mais refinado. Que se disfarça com a máscara da
virtude oposta, ou seja, da humildade. Então, em verdade, esse
negócio de dizer eu só aguento o esquecimento é maneira de se
exaltar. Esse desejo de apagar-se é, no fundo, um incêndio de or-
gulho. Preciso sempre de fazer essa catarse. Mas na verdade eu
não tenho uma ideia clara sobre isso. Aliás eu não tenho uma ideia
clara sobre nada. Sou uma coisa da natureza, como uma árvore. Me
guio pelo faro. Não serei nunca um poeta cerebral. Tenho um
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tar as palavras lesma, sapo, águas, etc. Pois elas são meus espe-
lhos. Sou o narciso delas. A lesma que aparece repetidamente em
meus escritos é uma coisa voraz que tem sempre a carne pregada
em algum delírio meu. Águas são fêmeas de chão. E ambos, água
e chão, merecem o gosto de se entrarem. Também árvore tem atra-
ção por rios e por águas. Merecem o gosto de se darem. Meu olho
entra nas águas sem roupa. Há que se por ao pé da árvore, que é
um ser feminino, – o sapo, que é um ser masculino. Um sapo, uma
trolha ou um trem qualquer de pau. No texto, esse balanço macho
vs fêmea, segundo Bachelard, produz a melhor poesia. Sinto que
ainda sou capaz de fazer semânticas sobre o ordinário. Lagartas
cegas comem fezes. Pessoas apropriadas ao desprezo me sedu-
zem. Tive o cheiro de nascer entre árvores. O som de um lodo em
êxtase me persegue. Quem tem vocabulário parco tem que substi-
tuir uns termos por miúdas mágicas. Boto rios no bolso. Prendo si-
lêncios com fivela. Nascem cabelos em paredes, etc. Faço confiança
nesses fazeres de ir descascando as palavras. E, como chegar ao
caroço, ao lírio seminal de cada uma? Como encontrar as funções
todas de uma palavra? Assim é o homem neste desolo. Nunca se vê
completo. Há uma força bugral de indigência em mim que só
aguenta espiar de cócoras. Sem agir. Não gosto de aprender novi-
dades. Só quero repisar nos termos que me sejam. Resta sempre
uma verdez primal em cada palavra. Cada palavra pode ser o ger-
me de uma obscura existência. Fernando Pessoa deu à palavra
porradas uma espécie pungente que ficará enquanto existir a lín-
gua portuguesa. “Nunca conheci quem tivesse levado porrada /
Todos os meus amigos têm sido campeões em tudo(...) todos eles
príncipes....” Cada espessura de uma palavra pode conter um la-
nho, um exílio, uma vileza. Independente da verdade – e até con-
tra ela – o do que gosto mais é de fazer frase ao dente. Troco isso por
verdades científicas. E volto soma. Mistério tem mais camadas que
a ciência. Os arcanos florescem...
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Caracol é uma solidão que anda na parede. Aquele Erik Satie era
um ser de irreverências que andava com desertos. Depois que o
meu amigo Ênio Silveira escreveu sobre a música dele e minha
poesia, depois é que fui ouvir Satie. É sim meio moleca e meio Tre-
vo aquela música. Há uma peça de Satie que se chama Trechos em
forma de pêra, que eu cobicei tanto para título de um livro meu. Mas
ele achou primeiro... Sou mais chegado a Bach, Brahms, mas isso é
tão de momento! Tem hora sou Cartola, tem hora Lupicínio
Rodrigues, tem hora Bezerra da Silva. Sou um ouvidor sem nível.
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Eu tenho nostalgia do
aventureiro nômade, que eu
nunca fui. Sou isso só de
livro. Esse aventureiro anda
agarrado em minhas palavras
como craca. Quando uma
palavra obtém um lado do
poeta é que essa palavra está
suja dele, de seus abismos, de
sua infância, de seus escuros.
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Penso que o poeta pode e deve ser político. Mas a sua poesia não.
Poesia não aguenta ideias. Verso não precisa dar noção. Precisa ilu-
minar o silêncio das coisas. Poesia não tem cânone. É igual a
açucena.
Meus livros têm sempre uns 400 versos, ou em torno disso. Já cavei
para este novo uns 350 versos. O livro se chama Concerto a céu aber-
to para solos de ave. Acho esse título meio sideral demais para quem
vê êxtase no cisco. O livro seria a extasia de um ancião por coisas
desimportantes. Um ancião que por fastio vai morar numa árvore.
E depois de alguns anos vivendo na árvore começa a dizer coisas
sem tino. Assim: “Abelhas novembras murmuram meu olho / Eu vi
uma água viciada em mar / Colavam anêmonas no sol”. Etc. Nin-
guém sabia se era loucura das palavras ou se vareios de um ancião
que começava a cessar. Eu também não sei. Ele escutava perfu-
mes do rio na voz dos pássaros. E via a tarde correndo dos cachor-
ros... Coisas desse pendor. Ele morreu nu. Os pássaros levaram
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haverá nos poetas uma aura de ralo? Olha, vai ali um besouro com
uma nódoa de osga na voz…
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Nunca penso nos críticos quando escrevo. Depois de dar por aca-
bado o livro, penso. Mas se o editor não sugere ou não exige nem
mesmo mando o livro aos críticos. Talvez seja por medo, por inse-
gurança, por burrice, etc. Entretanto, fico muito feliz quando me
descobrem e falam. Acho tão bom ser amado através de meus poe-
mas! Autocensuras, insegurança, etc.: isso é comigo. Acho que pelo
fato de escrever pelo corpo estou muito perto do poema e não te-
nho distância para julgá-lo. Mas quando não suporto mais mexer
no emplastro dou-o por acabado.
Acho que todo poeta tem um menino nele que fantasia com pala-
vras. O menino é irresponsável e só gosta de coisas gratuitas. Até
hoje eu tenho vergonha de não ser um ente sério. Não gosto de
perder tempo com trabalho. Só gosto de aproveitar o meu tempo
com nada. Igualzinho aos meus netos. Meus pais sempre susten-
taram esse menino com esperança. Achavam que eu tinha um dom.
Depois que meus pais morreram ficou-me de herança uma fazen-
da no Pantanal. Cuidei dessa fazenda mais como quem está fa-
zendo um exercício de voltar às origens. E consegui viver material-
mente bem criando gado na fazenda. Essa aproximação à nature-
za fez muito bem à minha poesia. Me renovou. Como pessoa social,
sou fazendeiro, tenho carteirinha de motorista. Mexo com brejo e
com palavras. São duas coisas escorregadias.
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Acho bonita e sóbria essa palavra, parede. Deve ter conteúdo sim-
bólico. Ela decerto se aproxima de mim por muitas razões. É uma
palavra de cidade que me acompanha no campo. Quem sabe eu
preciso que ela me equilibre? Sempre sinto que meu cisco esbarra
em suas raízes. Não me deixa rolar muito tempo para o amorfo. É
uma coisa construída e sólida. Dá uma ideia que protege meus
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angico (era seu vermelho), polpa de jatobá maduro (era seu ama-
relo). Não sei nem como ele dava liga nos seus pigmentos. Talvez
usasse pocas de piranhas, derretidas. Pintava sobre sacos de
aniagem. Um dia me mostrou um ancião de cara verde, que aca-
bara de pintar. Eu lhe disse “mas, Rômulo, o verde não é a cor da
esperança, da juventude?” Respondeu que para ele era a cor da
melancolia. Que os anciãos têm saudades dos verdes anos. E acres-
centou: a minha cor é psíquica e as minhas formas são
incorporantes: eu sempre estou nelas com os meus antepassados.
Estaria ele falando sobre uma possível imaginação arcaica? Depois
de ver as formas bisônticas na África, Picasso rompeu com as cores
fugidias, com os efeitos da luz natural, com os conceitos de espaço e
de perspectiva, etc. E, logo, ao lado de Braque quebrou planos,
propôs a simultaneidade das visões, a cor psíquica e as formas
incorporantes. Agora penso em Rômulo Quiroga. Talvez ele fosse,
apenas e só, uma paz na terra. É só isso. Mas eu vi latejar nas suas
pinturas, rudemente, alguns milagres de Klee. Talvez ele tenha, o
Rômulo, deixado mais influências para a minha poesia do que os
grandes pintores modernos. Salvo não seja.
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Poemas concebidos sem pecado é meu breviário. Rezo por ele ainda
hoje. Fala da minha infância que é fonte de minha poesia. Noto
que os pobres-diabos e as pobres coisas do chão comandam o li-
vro. A prevalência da linguagem sobre os episódios já está lá. Certa
tendência de achar a mosca mais importante que uma jóia pen-
dente também está no livro. Eu acho ainda hoje o cu de uma formi-
ga mais importante que uma Usina Nuclear. Contudo ao publicar
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Nos fins dos anos 40, no Rio, pensei de salvar o mundo da miséria
e da opressão. Todos os rapazes da minha faculdade estavam dis-
postos a dar a vida para salvar o mundo. Eu tinha lido em Fernando
Pessoa: “Amanhã é dos loucos de hoje.” Era preciso ser louco. Era
preciso ser amanhã. Entrei pra Juventude Comunista. Comecei a
ter chefes e chefetes. Recebia ordens que ninguém sabia de onde
vinham. Ordens de pixar estátuas, de soltar panfletos. Tarefas.
Tarefas. Me mandaram ler Marx, Engels, Lenine. Não passava das
10 primeiras páginas. Descobri que meu forte era a palavra. Me
ajeitei com Maiakovski. Meu gosto era mais literário que revoluci-
onário. Acho que iria fugir se me mandassem brigar. Eu seria se
tanto uma barata: se me pisassem a carcaça eu sairia pelos cantos
arrastando substâncias…
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cado. E penso que seja dever de quem escreve publicar. Ainda que
para 10 leitores ou dois. O de que não gosto é de dar entrevista oral.
Aquele ferro perto da minha boca, o microfone, me paralisa, me
inibe. Me perco de mim. Tenho de me procurar depois com ponta
de faca e não me acho. Como dizer ao ferro que estou perdido? O tal
do microfone é implacável. Quando tem gente me olhando, me
ouvindo, sou igual lesma, me enfio pra dentro. Eu sou meu indizí-
vel pessoal. Só com as letras me prefiguro.
Vê-se que a grande dor do poeta era perder as palavras. Que poeta,
meu Deus! Agora ele passarinha. Agora ele vai se encantar. O en-
canto se abriu para as suas palavras. Agora vai se abrir para o mor-
to. E Bruna Lombardi vai tanger os sinos para ele.
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Penso que trago em mim uma pobreza ancestal que me eleva para
as coisas rasteiras. Disse uma vez: “só as coisas rasteiras me
celestam.” Procede que a pobreza é bíblica, procede que o ordiná-
rio é sagrado – e a desgrandeza é de Deus. Com o canto do Sol e das
Aves nosso Francisco fertilizava sua fé. Agora, descomparando:
quero fertilizar os meus cantos com as pobres coisas do chão. Sen-
do que não sou eu que cristianizo as ordinariedades, mas a minha
linguagem.
Meu espírito é muito carnal. Meu corpo roça nas palavras. E isso é
tão literário! Não sei quase separar o poeta do homem. O criador da
criatura. Os dois fazem bagunça em minha vida. Até cometo erros
por isso. Minha concupiscência é quanto humana e retórica, ao
mesmo tempo.
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Poesia é um lugar aonde a gente ainda pode fazer com que o ab-
surdo seja uma sensatez. Sempre se falou da humanização das
coisas, e da coisificação dos homens. Quando escrevo: um muro
ancião, humanizei o muro. Aliás, quem humanizou o muro foi a
palavra ancião. Esse objeto é o meu sujeito pois. Falo de dentro
dele. Desloquei o foco. Desloquei o palanque. O artista é um erro
da natureza. Está sujeito a metamorfoses. Assim, não é absurdo
observar a importância de uma coisa pelas dimensões que ela não
tem. Não sei se consegui desexplicar-me com clareza.
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Sou absolutamente inútil, só sei fazer poesia. Digo sempre que sou
bom administrador do inútil. As coisas de tecnologia, as coisas
modernas, tudo que aconteceu de novo no mundo para mim não
têm nenhuma importância. Porque a poesia para mim é a do ho-
mem, é a da paixão humana e ela persegue uma linguagem. Poe-
sia é um fenômeno de linguagem, e não um negócio para se contar
histórias nem nada. Não tenho nenhuma ligação com o progresso
do mundo; tenho ligação com o progresso da minha linguagem.
Tenho obsessão pela linguagem. Sempre foi assim desde que co-
mecei aos 13 anos. O que sempre observei nos meus textos, que eu
li, que gosto de ler e observo não é o assunto, é a frase. O acerto do
som com o sentido das coisas. Esse acerto é que produz o verso.
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Acho que o estilo não provém do lugar onde se nasceu nem do cli-
ma em que se criou. Como também não depende dos nossos
estudamentos. Estilo é marca genesíaca. Promana de encontros
com antecedências adoecidas. Estilo é um fenômeno patológico
da linguagem. Estilo que se preza é coisa que escandaliza o enten-
dimento. Resulta ações imprevisíveis de um ser sobre o seu idio-
ma, ou a sua tela, ou às suas imagens, etc. Nove ou sete coisas dão
caráter ao estilo literário – do que sei. Uma: vocação do sujeito para
explorar os mistérios irracionais. Duas: percepções de contigüida-
des anômalas entre palavras. Três: ser repositório de coisas da in-
fância. Quatro: ter amor pelas coisas imprestáveis. Cinco: compa-
recer aos desencontros interiores. Seis: ser afásico no sentido que
Jakobson falava (caso de um ser que não pode nomear as coisas e
sai por símiles, por metonímias). Sete: o fato de algumas fibrilas
cerebrais que, conforme a espessura, podem provocar rupturas
abruptas nos textos. Seria o caso de um estilo por trancos. O estilo
é antes e por tudo que sei um adoecimento que ataca o verbo.
O que eu vou contar é uma alegoria. Nem foi uma visão. Em 1943,
de tarde, eu estava na varanda de um sobrado em Corumbá. Um
sujeito que tinha sido trevo estava encostado a uma parede. Nes-
sa parede outra lagartixa. O sujeito que foi trevo portava um alica-
te. A lagartixa bem olhava para o trevo. Ponho que fosse um olhar
meio libidinoso. Havia primavera em nós. A Lua bateu sobre a la-
gartixa e o alicate. Salvo não seja. Penso que a Lua se gozou na la-
gartixa. Nada no sobrado se alterou. Depois a lagartixa comeu o
trevo que fôra gente. Hoje eu penso que o homem ainda não tinha
se transformado em trevo ao completo. Não se completara ainda a
presença daquele alicate nas mãos do trevo?
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gente é. “O verso tem que ser o véu e a capa de uma outra coisa”,
como queria Fernando Pessoa. O verso está sol quando seja ape-
nas linguagem.
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Bem que eu sou culpado de algum silêncio até. Por motivos igno-
tos sempre ando de prancha na vida. Eu escrevo com amor e
irresponsabilidade. Sou irresponsável de mim. A desfortuna críti-
ca me incomoda, sim. Eu seria hipócrita se dissesse que não. Temo
que por ser a minha poesia tão boca própria, ela não alcance mais
que a minha tribo. Temo que não ande além do meu quintal. Lem-
bra a vespa travada na beira do ralo: nem voa nem cai no esgoto. Eu
gostaria de ser mais reparado como inventor do que como poeta.
Eu inventei entre outros objetos cantantes, os seguintes: o alicate
cremoso, o abridor de amanhecer, o homem adequado a lata, a
mosca de tule sepiterna, uma fivela de prender silêncio, o hino da
borra, o canto em forma de asa, uma faluta de osso para inverter os
ocasos, etc, etc. Queria ser visto como um artesão menor. Um
fazedor de inutensílios. O olhar do poeta é sem princípios. A coisa
muito lógica o embaça. Assim é: e haverá de ser assim.
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Fujo de ser por mim pego morto de medo. Parece que eu pratiquei
um crime de ser preso quando publico um livro. Ver sujeito que
fabricasse um brinquedo inútil. Tão grande, tão amável e já truão!
Essa marca ficou-me por educação. Se dizia que a gente deve de
ser sério, trabalhador, etc. Passei muitos anos para descobrir o que
era ser sério. Há muitos atalhos. Mas o da poesia não leva ao cons-
pícuo. Não boto confiança no que faço. Penso que faço um brin-
quedo furado que nem serve pra o jogo. Penso que faço uma
enganação. O embrião de onde me cresço é o culpado. É o culpado
pela insegurança e tudo o mais que o medo de mim encerra. De
qualquer forma eu sei dosar isso com palavras. A tal ponto que
pensam que eu sou humilde. Mas não. Eu sou orgulhoso demais.
Eu tenho muito orgulho de meu texto. E gosto secretamente de ser
lido, e mais: gosto de ser amado através de minha poesia. Quanto
a buscar a matéria de poesia no Pantanal, isso não existe. A gente
estava na terra desde pequeno e ganhou o chão de lá. E tudo ficou
pregado na alma. O chão dava encosto para o menino, para um
osso de gado, para as formigas, um excremento de anta, umas plu-
mas de garça. Isso tudo ficou dentro da criança e está dentro do
homem. Tudo já está armazenado em mim. O olho vê, a lembrança
revê, a imaginação transvê. Eu esperava a manhã soltar formigas
para brincar com elas. Agora a lembrança revê. Mas só a transfigu-
ração dessas lembranças através da linguagem poderá me dar
poesia. Assim seja.
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Penso que para trouver la langue não é preciso abrir mão de temas.
O tema de um poeta é ele mesmo. Até que seria bom estar no mun-
do só fazendo parte da paisagem, que nem uma pedra no morro.
Mas a gente não é apenas aspecto. Não somos uma coisa com nin-
guém dentro. Nossa essência precisa de ser exercida. E a gente
exerce a essência como quando cria a solidão, como quando abre
o amor. Se através da linguagem de nossa poesia a gente conse-
guir se expor, o mundo se refletirá em nossas palavras. Sem pre-
cisar de sociologias nem metafísicas nem físicas quânticas. Salvo
não seja.
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Acho que o ritmo das cidades, sendo mais veloz, pode causar no
poeta algum tipo de pressa. Aqui, no ritmo do carro de boi, parece
que a maturação se obriga. O exercício da paciência é mais fácil por
aqui. Há palavras que aparecem com fomes de brilhar. Mas tam-
bém nas cidades aparecem palavras com fomes de brilhar. Des-
confio do verso que fulgura. Em poesia o opaco é mais luminoso
que o brilhante. O que contém fuligem é mais profundo. Mas pode
ser que não seja.
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Não creio que as pessoas estejam lendo mais poesia. Mas penso
que o mundo está precisando de mais poesia. A gente anda muito
enrolado com máquinas, com tecnologias. Está perdendo um pou-
co da inocência animal. Para alcançar os benefícios da ciência, o ser
humando está desprezando as fontes da vida. Acontece que nem
todo mundo gosta de mel. Poesia é a mais fina destilação da pala-
vra. Penso que se tem que levar, pela educação, os seres a provar o
mel da poesia. Vende-se menos a poesia porque ela é mesmo um
restilo. Apenas um restilo. Em poesia não há episódios, enredos,
anedotas que sirvam para prender os leitores. Ela só é uma gota de
essência do ser humano.
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quer livro de poesia. Não quer dizer nada. Com a morte de Bola-
Sete vou fazer o livro sozinho.
Os andarilhos são como Tirésias sem Sófocles. São sábios sem ins-
trução, sem Aristóteles. São poetas que não fazem versos, mas se
fazem videntes. Conheci um andarilho na minha infância. É nele
que penso quando uso esses seres de personagem. Era o Joaquim
Sapé. Andava pelo Pantanal. Nunca se sabia de onde chegava. Com
as pernas comia léguas. Certa vez pediu quatro pedaços de couro
cru a meu pai. Fez uma mala com alças. Jogava a mala nas costas e
ia pelas fazendas. Tinha panela, caneca, pratos, rede, coberta, fós-
foro, trouxa de mate e um pareio de roupa. Chamavam pra ir em-
bora: botava a casa nas costas e ia. Tinha 12 cachorros. Parava muito
na fazenda de meu pai. Eu teria cinco anos quando o conheci. Ouvia
a prosa dele no galpão até escurecer. Ele não tinha solidão por den-
tro. Só por fora. Na estrada os cachorros pegavam caça para ele.
Ouvi-lo era um deslumbramento para mim. Era um vidente. Era
um poeta. Era um facínio para os meus cinco anos. Conhecia a voz
das pedras e do sol. Se você é um homem, você sabe a dor do ho-
mem – ele dizia. E se você é uma árvore você sabe a dor da árvore.
Ele era a natureza.
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Ouvi contar assim: quando passava pelas ruas o Castro Alves, logo
as mães avisavam: recolham vossas ovelhas, que o lobo vai passar.
Acho que as palavras de um poeta servem bem para inventar um
ser frágil, que pede colo. Que pede peito. Dessa forma as leitoras
podem se sentir atraídas por esse ser de letras. Qual moça que não
correria para os braços de Fernando Pessoa depois que dele ouvis-
se isso: “não ser é outro ser. Eu não sou”. Ele diz que não é? Que
frágil! Vou inteirá-lo – diz a moça.
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A inocência plena de um ser humano pode alçar ele para ave. Acho
que o primeiro vagido de uma criança tem, pelo menos, a assistên-
cia do mistério. Já notei que algumas palavras que emprego têm
raízes de conchas aturdidas. Acho que as crianças pronunciam seus
primeiros cantos, como de aves mesmo. Os erros da infância vêm
carregados de nossas ancestralidades enlouquecidas. Eles trazem
nossos mais puros defeitos. O tatibitate inventa sons novos, jogos
florais, brinquedos letrais. Agora, os erros instruídos pelo desejo
de estupramento da linguagem, esses não são puros. Esses con-
têm a orgulhosa pretensão de errar.
A primeira vez de uma frase é virgem. Mas acho muito difícil al-
guém escrever um livro inteiro em que as frases todas estejam
virgens. A virgindade é ainda para muitos um símbolo de pureza.
Quando a gente era adolescente e começava a contestar isso, cos-
tumava a dizer, de galhofa: mas a pureza está entre as pernas?
Isso de a virgindade ser pureza a gente recebeu de fanatismos
religiosos. Houve um tempo em que era romântico e objeto de
sonetos ser virgem. No tempo de eu rapaz as moças não entrega-
vam a virgindade. A gente só namorava de pegar na mão. Rara-
mente de pegar na coisa. Quase nunca de coisa na coisa. Ao tem-
po, a gente nem ficava nem coisava. Só às vezes, com as priminhas,
à sombra das bananeiras, debaixo dos laranjais – como em Casimiro
de Abreu.
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Não uso computador. Às vezes tenho medo dele. Parece que teria
que deixar ali o que ele já escreveu. Sou escravo do lápis com bor-
racha. Depois tem outra: sempre imagino que na ponta do meu
lapis tem um nascimento. Sei que isso é bobagem da minha parte.
Mas as bobagens também criam raízes.
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Minha obra tem um lastro de terra, mas não gosto de ser chamado
de poeta ecológico – não dou muita importância a isso. Poeta é um
sujeito que mexe com palavras. Tenho minha linguagem própria,
que descobri que não tem nada de ecológico. Fui criado no Panta-
nal, onde vivi até os oito anos. Se as palavras que me chegam mais
comumente são do brejo, é devido ao meu lastro existencial, que
reflete um pouco a terra. Nossa vivência, principalmente a nossa
infância, é o que a gente carrega para o resto da vida. Tenho um las-
tro de coisas ínfimas, mas sou principalmente criado pelas palavras.
Elas inventam a gente mais do que a gente a elas. Elas me ocorrem.
Costumo dizer que só tenho 81 anos e muita infância para trás. O
livro está dentro da gente. Tenho a convicção de que a poesia come-
ça no desconhecer, no subconsciente, e não a partir da sabedoria.
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Aqui não tem teatro, o que faz bastante falta. Já os cinemas geral-
mente exibem somente flmes de bangue-bangue. Vi todos os fil-
mes iranianos. Também gosto muito do cinema italiano, Fellini,
Antonioni, Vittorio de Sica (especialmente Ladrões de bicicleta), e
também do francês. Gostei muito daquela produção da Croácia,
Antes da chuva. Charles Chaplin para mim é o gênio do século. Jim
Jarmusch é outro grande diretor, mas parece que Hollywood pre-
fere deixar os independentes de lado.
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Confesso: nunca releio os meus livros. Nem para corrigir algum erro
de editoração. Peço aos próprios revisores das editoras que façam
isso por mim. As vezes me perguntam sobre alguma sintaxe torta
que lhes pareça um despropósito. Peço-lhes que deixem os des-
propósitos porque ali estão pra produzir melhores rumores silábi-
cos. Não acrescento nem suprimo nada às novas edições. Tô fora,
como se diz. Quando entrego um trabalho para ser editado, clareio
dele, não quero mais saber dele. Essa a razão, certamente, porque
me repito de um livro para outro. Repito muitas construções por-
que elas se tornaram sestros em mim.
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ENCONTROS
mundo é pequeno como já disse e não saio de dentro dele nem pra
pescar. Isso também eu já disse. Não saio do meu quintal. Meu
quintal é cheio de plantas e de latas. Latas que me enferrujam.
Me formei, de fato, mas não sou advogado, nunca fui. Nunca exer-
ci a profissão. Aliás, minto. Em tempo muito ruim da minha vida fui
advogado do Sindicato dos Peixeiros do Rio de Janeiro. Os peixei-
ros gostam de pesar os peixes botando na barriga deles um pedaço
de chumbo de 200 gramas. Não todos, é claro. Os infratores pegos
nesse ato feio eram presos e levados para a delegacia mais próxi-
ma. Meu papel era o de comparecer à delegacia, pagar uma fiança
e soltar o peixeiro. Fiz isso durante seis meses. Era no tempo da lei
da economia popular. Depois preferi carregar água na peneira, que
é o que fazem os poetas.
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Não tenho tempo certo para compor um livro. Aliás, acho que nin-
guém tem. Possuo letras, sílabas, palavras que ajunto, misturo,
faço frases, verso com elas, boto sangue e ritmo nelas – até que me
pareçam poema. Arranco tudo do nada. As minhas raízes, muitas
vezes andam empedradas e nada rendem. Preciso fazer com que
as palavras me sejam. Tem vez que não desejam me ser. Aí fica di-
fícil. E se elas não me forem falseiam a obra.De forma que é uma
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oìcio quatro horas por dia. Neste recanto, invento artices. Olho para
cima, leio e releio páginas de livros, respondo cartas, faço aviões de
papel, vou até a infância e volto, espanto moscas, ouço músicas,
consulto dicionários, etc. Faço tudo isso como exercício para que a
minha imaginação desabroche. De repente, quando me vejo en-
tre brejo e dicionários, cometo uns rabiscos. Depois de alguns
meses, cato uns rabiscos para compor um verso ou um poema.
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Acho que nasci com a doença de fazer poesia. Depois ela veio fa-
zendo um trabalho escondido dentro de mim, que nem semente
dentro do chão. Esse trabalho seria uma preparação para brotar. E
esse trabalho só é feito dentro de alguém que já tenha nele a doen-
ça. Quem não veio com essa doença, não aceitará o gosto das pala-
vras. Não aceitará que elas tenham sabor, sexo, reentrâncias, can-
to, cores, formas, etc. Quando cheguei aos 13 anos, brotei. Estava
lendo Vieira. Depois fui entortando pro lado da poesia e entortei.
Vivia fazendo piruetas com as palavras. Acho que a história é essa.
Não houve encontro súbito.
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Penso que dos quatro elementos, sou mais água. Água que pene-
tra a terra e que faz nascer do casamento árvores. Confesso que
tenho fascínio por árvore. Meu desejo mais forte é o de ser convida-
do por um pássaro para ser a árvore dele. E não nego que aprecio
muito o ar por motivo da competência dos pássaros. Agora com fogo
não brinco. Quando era menino (falando de fogo) eu pensava que
as rainhas não tinham fogo. Achava que as rainhas eram neutras.
Que só gostavam de desfilar e não tinham fogo no corpo como as
outras senhoras têm. Isso me ensimesmava, no colégio. Por fim,
acho que os 4 elementos são importantes, mas a água é mais por-
que está nas nossas origens.
Meu fado é o de não saber de mim quase tudo. Por isso sobre o
nada eu tenho profundidades. E eu disse no Livro sobre nada que
“perder o nada é um empobrecimento”. De que eu iria falar então
se eu acho que o nada é tudo? Todas as palavras, inclusive pó, es-
tão emprenhadas de nada. Isto é: estão emprenhadas do que nos
tornaremos. Como posso acreditar que somos alguma coisa mais
que nada? Não tenho esse poder divino. Cresci nos desvãos de mim.
E não sei sair dele. Acho que poderoso não é o homem que desco-
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ENCONTROS
briu o ouro, mas o homem que descobriu o nada. Sei que isso é
negativo, mas eu não sei passar por cima de mim.
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descobre. Nossa sabedoria vem pelo ser, pelos cheiros, pelo tato,
etc. Depois ao poeta cabe arrumar as palavras no poema com o seu
sentido estético. A arrumação das palavras também tarefa do ou-
vir e do ver. Nosso primeiros conhecimentos vêm pelos sentidos.
Quem descobriu primeiro a torpeza humana não foi a razão inte-
lectual, mas os sentidos.
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Muitas vezes ouvi uma sentença popular que diz:o que se leva da
vida é a vida que a gente leva. Pra que ficar remoendo? Acho que o
importante é buscar o regozijo. No amor a dois ou no amor ao pró-
ximo. Fernando Pessoa, que sabia da vida com solidão e desespe-
ro, escreveu: “Há metafísica bastante em não pensar em nada”.
Mas isso é pra não dizer nada. Eu também não sei responder nada.
Peço indulgências.
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MANOEL DE BARROS
Bernardo fala sempre que: Aves sonham ser ele! Tenho que respei-
tar. Quem recebe das aves esse presente, essa homenagem de ser
sonhado por elas, tem que cantar desdobrado igual a elas. A cisão
dos versos vem de Bernardo ser tartamudo. Vem dele ter a voz abor-
tada. Fui recolhendo devagar suas solenidades de linguagem, mais
ou menos nessa forma entrecortada com que falava. Bernardo só
usa as palavras para compor seus silêncios. Pessoas como ele,
afásicas, quase sempre desarmam as frases. Bernardo desarma.
Se Bernardo fosse estudado, acho que ele escolheria essa mesma
forma de haikai para compor seus silêncios. Contudo, faria isso
dando aos versos metro e ritmo de haikai.
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ENCONTROS
das letras e das sílabas. E tudo como queria Mallarmé: em cima das
palavras e não das idéias. Em belíssimo estudo que Augusto de
Campos fez sobre Rimbaud, ele disse que o poeta corroeu os limi-
tes entre a prosa e o verso. Isso se vê mais em Une saison en enfer.
Acho que a poesia está mais no mexer com as palavras. O sentido
da palavra não importa para a poesia, o que importa é uma certa
música e um certo modo de dizer as coisas, disse Borges. E ficam os
limites corroídos.
Deixo aos meus alter ego a terefa de realizar os sonhos meus frus-
trados. Coisas que não fui capaz de fazer realizo através deles. Por
exemplo: eu quis muito ser andarilho no Pantanal. Mas nunca agi
no sentido de ser um andarilho. Então inventei alguns que fize-
ram isso por mim. Que dormiam debaixo de árvores, que usavam
ornamento de trapos e eram aceitos pelos pássaros nas estradas.
Eu nunca pude fazer essas coisas porque minha inércia remove
montanhas. E porque acho que o andarilho é um ser humano que
faz comunhão completa com os orvalhos da manhã, com a tarde e
suas garças, com as cores do sol, e com o chão, e com as águas, e com
as chuvas, árvores e ventos. Durante as viagens sem rumo dos
andarilhos eles são instalados na natureza igual se fossem uma
aurora, uma pedra, um rio.
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maior enchente do Pantanal. Ao fim dos três dias, sem comer e sem
dormir, o canoeiro delirou. Delirou e se pôs a escrever coisas, pala-
vras desencontradas, frases fragmentadas, desconstruídas. A par-
tir dessa história inventei o Apuleio. E tentei um poema com frases
desconjuntadas, desconstruídas. As lições que eu lera em Foucault
me ajudaram na tarefa.
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Do meu estilo não posso fugir. Ele não é só uma elaboração verbal.
É uma força que deságua. A gente aceita um vocábulo no texto não
porque o procuramos, mas porque ele deságua das nossas
ancestralidades. O trabalho do poeta é dar ressonância artística a
esse material. Penso que combinar o sentido com os sons é que
produz o estilo. O barrismo há de acontecer nos meus textos por-
que vem de eu ser, de eu estar, de eu ter sido. Não há fugir. Estilo é
estigma. É marca. Todo estilo contém as nossas ancestralidades.
Ninguém consegue fugir do erro que é, do acerto que é. Vou ser
sempre o que me falta. De forma que vou cair sempre no barrismo
porque a gente é sempre uma falta de nós. Papel do poeta seja
sempre o de obter o que falta nele. E falta tudo. Papel de poeta é o
de obter uma linguagem que o complete. Esse objeto de lingua-
gem que me completa há de ser meu estilo. O barrismo será sem-
pre uma expressão de mim. Sou fiel ao erro que sou.
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Esse olhar para baixo que tenho não sei de onde vem. Não sei ex-
plicar. Ainda porque o meu forte é desexplicar. Tem vez imagino
que esse olhar para baixo vem da infância. Fui criado no chão. Chão
mesmo, terreiro. No meio das lagartixas e das formigas. Brincava
com osso de arara, canzil de carretas, penas de pássaros. De outra
forma penso que esse olhar para baixo é atávico. Vem de bugre.
Posso um pouco imaginar que essa fascinação que tenho pelo pri-
mitivo é força que vê pra baixo. Quando jovem, fui até viver algum
tempo com os índios Chiquitanos, na Bolívia. Bebia chicha com eles
e me alimentava de bocaiúva com leite de cabra. Dormia entre pe-
dras e lagartos. Reparei que os filhos dos iìndios brincavam, como
eu, no terreiro, com osso de arara, sabugos e pedaços de pote. Não
sei se isso explica ou desexplica o gosto por insignificâncias. Acho
que o prazer de manobrar com palavras pobres explica melhor.
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Quem sou eu para saber a verdade, com letra maiúscula. Não sei
ela nem com letra minúscula. Sei que a poesia humaniza as coisas
e vice-versa. E sei que as máquinas desumanizam. As máquinas
só se humanizam quando não prestam mais pra funcionar. Quan-
do ficam jogadas num terreno baldio para as moscas e as crianças
brincarem. Tenho dois versos do meu próximo livro que podem
dar uma idéia do que seja para mim hoje a sabedoria. Eì assim:
“Sábio não é o homem que inventou a primeira bomba atômica.
Sábio é o menino que inventou a primeira lagartixa”.
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Acho que não sou planificado. Pode ser que siga uma voz incons-
ciente. Cumpro meus dias de trabalho, de leituras, de anotações,
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Acho certo afirmar que sue seja mais poeta do verso que do poema.
Acho que sofro de frases até mais que de versos. O que faço é o que
Cortázar chamou de jogo de armar. Faço versos por meses, por anos,
depois vou colando um embaixo do outro. Até completar uns 14
versos por aí. E boto o nome de poemas nessas colagens. Armo os
versos de muitas maneiras. Até achar a melhor maneira. E às vezes
a melhor maneira não é a que encontrei. Podem ser lidos de qual-
quer lado, moda os barrocos.
Aqui de longe tenho notícia que meus livros vendem bem. E que
estou nas montras. Mas fico em dúvida com os críticos. Ainda hoje
recebo do Ceará um suplemento literário onde leio: Grande poeta
ou fraude? Por mim chego a pensar que é fraude. Gosto do meu
primeiro livro igual que dos outros. Não renego nada. Certamente
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ENCONTROS
não renego porque não releio. Pelo fato de não me reler às vezes
me repito. Amigos meus reparam e me mostram as repetições.
Tento justificar. Pois não existe a anáfora, uma figura de retórica,
que permite repetições até no mesmo poema? Então por que não
posso repetir em outros livros?
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Na minha vida não acontece nada. Eu não viajo, não troco de mu-
lher, não disputo campeonato, não urino nos jardins. Essas coisas.
Fico sempre parado. O que vou contar são as coisas que não acon-
teceram. E essas são mais ifinitas. Eu invento as coisas que não
aconteceram. Por que se eu não inventar do quê que eu vou viver?
O quê que eu vou escrever? Entretanto eu não conto mentira. Tudo
que eu invento é verdadeiro. Isto seja: tudo que eu invento acon-
teceu no meu estar parado. Às vezes um desejo de viajar. Eu fanta-
sio ao ponto que tenha viajado mesmo. Depois eu fico a acreditar
na fantasia e até conto aos amigos com detalhes. As pessoas que
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Falo muito dos andarilhos por motivo que eles têm com a natureza
uma tal intimidade que é, em último caso, uma intimidade de Deus.
E porque se implanta neles, por esse motivo, uma sabedoria in-
fantil. A ponto que o amanhecer faz glória sobre eles quase todos
os dias, como faz aos passarinhos. Ao ponto que eles sabem que
para exercer a liberdade total eles precisam de ser maiores do que
os adultos como os insetos são maiores do que os firmamentos…E
porque eles carregam a liberdade deles nos passos que não têm
onde parar. Com as águas dos rios, com o sol, com as pedras, eles
dão a mim um exemplo de comunhão. As águas gostam deles, e os
dias passam sobre eles sem sobressaltos. Se a gente jogar uma
pedra neles só quebra o silêncio deles. O chão respeita seus pas-
sos. Eles conhecem a sedução das árvores pelo amanhecer. Eles
conhecem os caminhos que as garças percorrem de tarde. Eles
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sabem moda São Francisco de Assis o canto do sol. São essas intimi-
dades com a natureza que me seduzem nos andarilhos. Eu bem
quisera sê-los. Mas eu não tenho essa tanta força de amor.
As coisas que não prestam mais pra nada e estão jogadas fora por
inúteis são para mim objetos de estima. Sei que isso é um desagero
sem grau de estima para os outros. Sei que a maioria prefere coisas
úteis e as pessoas bem postas na sociedade. Mas eu não sou tantã,
juro. O meu gosto é apenas estético. O caso é que as coisas úteis são
muito queridas e as outras desprezadas. E eu tenho uma tendên-
cia para gostar das palavras desprezadas. As virgens e as quase
intocadas. Pelo andar se pode perceber que coisas úteis ou des-
prezadas são palavras. Palavras muito usadas e palavras quase
virgens. Todas as coisas para mim são palavras assim como todos
os atos, sentimentos, etc. Assim, a palavra porcaria, por exemplo, é
de minha estima. Para mim ela não é a porcaria mesmo, lavagem
de porco ou diarréia. Porcaria é uma palavra que pode ser alargada
para gente. Ela pode ser humanizada. Ela pode nomear um bêba-
do deitado na sarjeta. Aí, nesse contexto humano, a palavra é no-
bre. Porque eu acho mais nobre um ser porcaria do que um
ilustríssimo. Porque um ser porcaria é um ser excluído do amor. Por
isso ele é mais nobre. Charles Chaplin fez que um ser porcaria se
encaminhasse para herói. Os heróis de nosso tempo não são os
ilustríssimos nem os príncipes nem os poderosos. Nossos heróis
são vagabundos, porcarias, bêbados, e pessoas mais jogadas fora
pela sociedade. Os desimportantes. É por esse caminho que dou
grande importância aos desimportantes. Acho que a grande arte
do nosso tempo pratica esse gosto. Aqui no Brasil a partir dos mo-
leques Ricardo, dos negros Balduíno, das sinhá Vitória e dos
severinos em geral. E em todas as artes do mundo hoje o que vinga
é a palavra de Cristo: Amar ao próximo como a nós mesmos. E a
visão socialista de dar abrigo aos excluídos.
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MANOEL DE BARROS
Não escrevo por inspiração. E nem sei bem o que seja inspiração.
Eu escrevo por excitação. Se uma palavra me excita, eu vou nela.
Assim: estou lendo um dicionário à caça de palavras. Quando en-
contro alguma que me excita por seu corpo sônico ou por alguma
sabedoria de fonte, paro. Me exulto. Hoje uma palavra me exultou.
Me excitou. Foi a palavra pêssego. Ela é bela em seu corpo letral e
é rica pelo que sugere de raíz e fonte. Então logo me deito em cima
dela. Ela se humaniza de mim. Ela possui uns pelinhos no corpo. A
imaginação emprenha ela. Palavra é carne. Se estabelece o símile.
A palavra é fêmea. Nessa hora me lembrei de uma coisa do Proust.
Eis o poema:
O PÊSSEGO
Proust
só de ouvir a voz de Albertine
entrava em orgasmo. Se diz
que o olhar de um voyeur
tem condições de phalo (possui o que vê).
Mas é no tato
que a fonte do amor se abre.
Apalpar desabrocha o talo.
O tato é mais que o ver
É mais que o ouvir
É mais que o cheirar.
É pelo beijo que o amor se edifica.
É no calor da boca
que o alarme da carne grita.
E se abre docemente
como um pêssego de Deus.
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ENCONTROS
Está pois claro que o princípio gerador deste poema não se chama
inspiração, mas se chama excitação. Se a imaginação emprenha a
palavra, ela produz versos. Trabalho maior é dar equilíbrio sonoro
aos versos. Compor a harmonia. Mas a harmonia eu aprendi no
gorgeio dos pássaros.
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coordenação editorial
Amélia Cohn e Sergio Cohn
Equipe Azougue
Giselle Andrade, Karina Lopes, Luana Maria,
Rafael Loureiro e Vivian Cordeiro
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