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ENCONTROS

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MANOEL DE BARROS

Coleção Encontros

Antonio Risério
Capoeira
Cildo Meireles
Darcy Ribeiro
Eduardo Coutinho
Eduardo Viveiros de Castro
Fernando Gabeira
Florestan Fernandes
Gilberto Gil
Hélio Oiticica
Ismail Xavier
Jorge Luis Borges
Jorge Mautner
Maio de 68
Manoel de Barros
Milton Santos
Nise da Silveira
Roberto Piva
Rogério Duarte
Rogério Sganzerla
Silviano Santiago
Tropicália
Vinicius de Moraes
Zé Celso Martinez Corrêa

PRÓXIMOS LANÇAMENTOS
Aloísio Magalhães
Boris Schnaiderman
Carlos Drummond de Andrade
Gilberto Freyre
Mario Pedrosa
Newton da Costa
Silviano Santiago
Tom Zé

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ENCONTROS

Manoel de Barros

Organização
Adalberto Müller

Apresentação
Egberto Gismonti

3
MANOEL DE BARROS

Encontros

4
ENCONTROS

6 Abertura, por Egberto Gismonti


12 Conversa de poesia, exercício de prosa Adalberto Müller
16 Eu sou o rascunho de um sonho
42 Cronologia do autor

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MANOEL DE BARROS

Abertura

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ENCONTROS

POR EGBERTO GISMONTI

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MANOEL DE BARROS

Apresentação

Egberto Gismonti é
músico.

Conheci a poesia do Manoel quando meu grupo de amigos


parecia suficiente à compensação dos meus quase 40 anos. Na
apresentação do Arranjos para assobio, Antonio Houaiss escreveu:
“Acompanho esta poesia humildemente: recebo-a como se em es-
tado de graça, me comprazo com ela e – por instantes, graças a ela
– me comprazo com o mundo e até comigo mesmo”. Na dedicató-
ria, minha amiga Dulce anotou: “alguém disse que é como compo-
sitor que ele escreve”.
Daí pra diante foram anos percebendo o despropósito da im-
portância; a desnecessidade da biografia pessoal; a alegria que não
cabe no sorriso; a simplicidade do ciclo de vida do tema folclórico;
a necessidade da insistência discreta e silenciosa do contraponto;
a voz ou a segunda voz que transcende a tonalidade; o rascunho,

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ENCONTROS

a correção, a borracha, o vazio da voz que a melodia desperta para


encompridar os rios.

O Concerto a céu aberto para solos de ave pareceu-me suficiente


à compensação dos meus quarenta e poucos anos. Nas orelhas,
reencontrei Ênio Silveira: “...Manoel é cada vez mais plural em sua
singularidade criativa, temperada por agudo sentimento do mun-
do, dos seres e das coisas”; na dedicatória, os amigos Rita e Daniel
escreveram “...do Manoel do Pantanal ao Egberto do Carmo”. Fi-
quei pra lá de feliz por ser morador provisório do mesmo espaço
que Manoel. O verso “sapo de noite arregala o olho pra desmentir
a saudade” me lembrou da foto do Stravinsky sorrindo; “isto é so-
mente uma música folclórica” – comentou ante a reação da platéia
francesa após a estréia da Sagração da Primavera em Paris. Que
alegria quando o sapo de olho arregalado transcreveu o “meu”
Stravinsky em “Strawa no Sertão”, suíte que imagina Stravinsky
residindo no nosso nordeste, gostando tanto que chega a permitir
que os amigos lhe tratem de Strawa, quando na intimidade.
A essa altura, eu já não achava nada suficiente à compensação
da alma sonorizada pelos livros Compêndio para uso dos pássaros, O
guardador de águas, Poemas rupestres, Retrato do artista quando coisa
que a Cássia me presenteara musicando sua benevolência em
palavras contraditórias como aquelas dos 6 livros de madrigais de
Carlo Gesualdo. Depois foi só me encorajar de Brasileiro,
Fluminense e Carmense. O encorajamento tem sido custoso, con-
tinua, devagar e firme, felizmente.
Cheguei ao Música de sobrevivência e não resisti pedir ao Poeta
um texto que qualificasse a música que pretendi – ele topou, eu
renasci.
O Gramática expositiva do chão (Poesia quase toda) tornou-se
irmão do Melodias registradas por meios não mecânicos – casei
Manoel com Mário de Andrade, com as graças do solo Brasileiro. Já
estavam casados há séculos, mas não na minha casa de percepção

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MANOEL DE BARROS

atrás da árvore embaixo da pedra. Viveram felizes pra sempre,


enquanto eu, versando minha alma – “solidão tem um rosto de
antro”; “Vento? Só subindo no alto da árvore que a gente pega ele
pelo rabo...” –, segui curioso e aprendiz.
O Livro sobre nada apontou pra lembranças do futuro nas refle-
xões do Atahualpa Yupanki: “...antes de morrer desejo alcançar o
anonimato...”; e do João do Pife: “Liberdade a gente não conquis-
ta, a gente ganha...” O encorajamento seguiu no “Fazedor de Ama-
nhecer”: “Bernardo já estava uma árvore quando o conheci”. O
contraponto foi intensificado e as vozes despertavam com
polirritmia transbordada de boas intenções – A Cássia renovou-
me no Memórias inventadas: a infância, com a dedicatória: “...esta
é a mais recente publicação do Maneco...as crianças estão felizes.
O Car(m)inho é o de sempre”.

Nesta altura a minha desconfiança florescia feito um pedaço


do amor de Ana Madalena Bach por seu marido João Sebastião
Bach. Era incontrolável e sem direção, parecia assim.
As vozes multiplicavam-se como numa “Introdução a um ca-
derno de apontamentos”. Acordei abraçado aos Sermões do Padre
Vieira. Todos os caminhos me levaram ao Manoel que me levou à
permanente compensação da vida.
As músicas foram ganhando as incertezas da alegria e da tris-
teza e perdendo a solidez da importância.
A dádiva virou o exercício de observação e complemento.
A dívida, a solidão da paz cedida pela palavra do Poeta.
A reverência ao tempo das palavras, das notas, das frases, dos
acordes, da intensidade da pontuação, da expressão da ligadura
dos pensamentos, das idéias solitárias que solam, das consonân-
cias e dissonâncias: “Eternidade é uma palavra muito encostada
em Deus, e pouco encostada nos homens... Sou ínfimo para
entendê-la”.

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ENCONTROS

Se ainda não sei quem é o Manoel, melhor já sei quem eu não


sou.

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MANOEL DE BARROS

Conversa de poesia,
exercício de prosa

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ENCONTROS

POR ADALBERTO MÜLLER

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MANOEL DE BARROS

Conversa de poesia,
exercício de prosa

Adalberto Múller é
professor de cinema
na UFF-RJ

I
Da entrevista como arte do disfarce.

Quando publicou pela primeira vez o conjunto de sua obra


poética, pela editora Civilização Brasileira, em 1990, Manoel de
Barros incluiu naquele livro um conjunto de entrevistas a que deu
o curioso título de “Conversas por escrito”, uma vez que o poeta
sempre fez questão de responder por escrito as perguntas dos
entrevistadores. Se o conjunto daquelas entrevistas era parcial,
no sentido em que não eram as únicas entrevistas concedidas pelo
poeta, o que ali se apresentava era significativo para se perceber
que, se estavam incluídas na “poesia quase toda” do autor (esse
era o subtítulo do livro), havia para isso uma razão de ser. Pois o seu
valor não era apenas informacional ou biográfico, era também ar-

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ENCONTROS

tístico, pressupondo a conciliação da consciência crítica com a ela-


boração estética.
Por mais óbvia que pareça essa afirmação, o certo é que Manoel
usa a entrevista como pretexto para fazer poesia. E também como
pré-texto. Ou seja: a “conversa por escrito” é ao mesmo tempo gê-
nero literário e laboratório de criação. Na verdade, o ao mesmo tem-
po aqui quer dizer que as duas coisas se confundem.
Claro que a leveza da “alfombra”1 que é o poema não se com-
para ao peso da prosa densa de um texto escrito para ser lido pelo
leitor do jornal ou da revista semanal. Um leitor de atenção mais
flutuante, sim, mas nem por isso menos sensível à beleza. Talvez
seja bom recordar que o fato de responder as perguntas que lhe
são feitas por escrito também se deve a uma incapacidade confes-
sa de gerir a palavra falada. Para o poeta, a escrita recolhe, e acolhe,
ao contrário da palavra falada, lugar de dispersão e de timidez.
Numa entrevista concedida a Martha Barros, Manoel explica essa
necessidade:

O senhor não fala em público. Por quê?


Porque eu gosto de ser recolhido pelas pa-
lavras. E a palavra falada não me recolhe.
Antes até me deixa ao relento. O jeito que
eu tenho de me ser não é falando; mas es-
crevendo.

Mas a desculpa da timidez não cola. Se o cidadão Manoel de


Barros afirma várias vezes que não gosta de falar “com ferros”, o
poeta confessa que gosta de exercer nas entrevistas o gosto que
tem pela escrita, preferindo falar de si da mesma forma que fala de
Bernardo da Mata ou de Rômulo Quiroga em seus poemas. Por isso,
certas vezes, a argúcia do entrevistador o desmascara, ou melhor,
mostra-o sem fazer pose (coisa que o poeta aprecia):

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MANOEL DE BARROS

Seria ao mesmo tempo timidez e tática para


me ocultar no texto, quer dizer: fazer uma
pose de poeta. Minha palavra só dispara se
estou sozinho, falando a mim mesmo, ou
escrevendo. Aí posso arrumar inventos.
Posso polir as palavras. E posso fazer igual
àquele personagem de João Ribeiro – se-
mear uns estilos na escrita… Não creio de
bom o só fornecer dados. Creio de melhor
inventar. Posso dessa forma melhorar até a
vida de um passarinho. Espargir meus es-
curos. Gostaria que uma entrevista fosse
também um texto poético.

Este livro resulta de uma seleção de algumas dessas entrevis-


tas, as quais foram submetidas a alguns cortes e à reelaboração de
algumas frases iniciais, de modo que pudessem ser lidas como frag-
mentos ensaísticos.

II
Retrato do poeta, no escuro.

A timidez que tem para falar “com ferros” se desfaz quando


solicitam a Manoel de Barros que tire fotos. “Sou como bugre”, ele
afirma várias vezes, e “bugre gosta de bater chapa”. Em outro mo-
mento, Manoel de Barros explica o que significa ser bugre. No sex-
to poema “Mundo pequeno” de O livro das ignorãças, o poeta nos
conta uma descoberta que teria marcado o jovem aluno do inter-
nato: a descoberta do prazer que sentia com a “doença” das frases.
Incomodado, o jovem confessa o “gosto esquisito” ao Padre
Ezequiel, que não lhe recrimina, mas, antes, vê nesse gosto a ma-
nifestação do seu modo de ser: “Você não é de bugre?”, lhe pergun-
ta o Padre, e completa: “Veja que bugre só pega por desvios...” A

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ENCONTROS

anedota me parece ser uma das chaves para se entrar na poesia de


Manoel de Barros, por um caminho pouco percorrido. Digamos
logo: ser “de bugre” é bem mais do que ser descendente de índios.
Explico. Por estranho que pareça, a palavra bugre, assim como
índio, não tem nada a ver com a cultura dos povos nativos da Amé-
rica. Pelo menos no que diz respeito à história dessa palavra, em
cujos caminhos se cruzam muitos conceitos e preconceitos, que
mais tarde viriam a ser atribuídos a certas culturas ameríndias e,
no resgate efetuado pela poesia de Barros, a um modo de ser.
Em português a palavra foi empregada para denominar indí-
genas de diversos grupos do Brasil, por serem considerados
sodomitas pelos europeus, ou ainda para caracterizar o indivíduo
rude, primário, incivilizado, e, por derivação de sentido, o indiví-
duo desconfiado, arredio (Houaiss). Emprestamos a palavra do
francês bougre, que deriva de bulgare, e que hoje é empregada
nessa língua num sentido que ninguém associaria aos búlgaros: é
termo de xingamento, de baixo calão, que designa mais especifi-
camente, segundo a linguagem polida de Littré, aquele que prati-
ca libertinagens “contra a natureza” (para não dizer sodomia), ou
então interjeição grosseira, que as regras de decoro mandavam
abreviar, na linguagem escrita, por b…O termo francês, por sua
vez, se enraíza no baixo latim bulgarus, usada para designar algu-
mas correntes heréticas que se formaram entre a Itália e a Bulgária.
Tratava-se, ainda segundo Littré, de uma denominação decorren-
te da ira popular, que levava a acusar os hereges de “desordens
infames”, evidentemente ligadas aos pecados carnais (o que faci-
litava os processos da Inquisição contra os hereges).
Não bastasse toda a injustiça que a palavra fez aos búlgaros
(que, diga-se, hoje passa despercebida ao falante francês, e aos
próprios búlgaros), os emboabas e bandeirantes, caçadores de
mão-de-obra indígena, teriam adotado maliciosamente a palavra,
em algum subcapítulo da nossa nada romântica História Colonial,
assim para difamar os povos que fugiam do cativeiro, e se homizi-

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MANOEL DE BARROS

avam mata adentro (e Mato Grosso adentro). Desse modo guaranis,


guanás, kadiuéus e tantos outros povos viriam receber a (al)cunha
pejorativa.
Essa longa digressão em torno de uma palavra tem por propó-
sito demonstrar que a anedota contada por Manoel dá pano para
largas mangas interpretativas. Primeiro, se levarmos em conside-
ração o contexto em que ela surge (casual ou não): um padre (que
é, na verdade, um eclesiástico nada simpático a qualquer tipo de
inquisição) explica ao menino que a sua doença é na verdade sau-
dável, defende os desvios, e ensina o jovem poeta a “errar bem o
seu idioma”. Além disso, o “Preceptor” (assim o poeta o chama),
está a revalorizar o “ser de bugre”, contra toda a tradição de precon-
ceitos que pesa sobre o bugre. E, acima de tudo, a voz do poeta se
coloca como a de quem organiza uma defesa. A tática, em termos
globais, consiste em revalorizar o erro, o desvio, e sobretudo o do-
entio. A linguagem “de bugre” – a poesia – não poderá ser a “das
estradas”, dos caminhos retos e usuais, mas a “dos desvios”; não
terá “nem rei, nem regências”2 , terá que ser uma “agramática”. Em
suma, uma linguagem herética (que, segundo o étimo, quer dizer:
uma linguagem de opinião).
Como vimos também, e casualmente, o bugre está em sua ori-
gem, e de forma perversa, relacionada ao mesmo tempo com o
herético e com o erótico. Pode-se pensar que na poesia de Manoel
de Barros, pelo viés do erro e do desvio, o herético e o erótico tam-
bém entram em conluio, perfazendo aquilo que é mais interes-
sante em sua poesia. O elemento erótico vem a ser justamente um
dos “minadouros” da poesia para Manoel de Barros, conforme se
depreende por este segmento:

A palavra poética vem, por antes, de um


minadouro sensual. De um desejo de co-
munhão. Nasce bem mais dos sentidos que
da mente. É o ser primário em nós que pre-

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ENCONTROS

cisa reter-se nela. Não é o ser intelectual, o


ser estudado, o ser culto que se expressa
em poesia, mas o índio nele. A razão não
está com nada em poesia. Lá onde tudo
ainda não tem voz o mundo é erótico. A raiz
da poesia é o desejo.

Dois anos antes, o poeta assim se manifestava:

O mundo de um poeta é quase sempre con-


taminado de sua inocência animal. Seu
olhar é verde para as coisas. Verde de beijar
as folhas, de beijar as fêmeas, de tocar as
águas. O sentir do poeta é penetroso. É
sensual. Penso que esse possuir pelos
sentidos há de causar uma excitação nas
palavras. Acho que é sempre uma coisa ex-
citante olhar as formas. Isso pra mim che-
ga até de molhar as palavras.

O “minadouro sensual” que quer “possuir pelos sentidos” até


“molhar as palavras” nos faz pensar em como a poesia de Manoel
de Barros se relaciona com questões levantadas pela psicanálise,
particularmente com o que diz respeito ao inconsciente. Em suas
entrevistas, Manoel de Barros menciona algumas vezes o nome de
Lacan, e, de forma mais clara, explicita a relação de dependência
de sua poesia em relação ao inconsciente:

Você pode procurar: nos versos mais famo-


sos tem qualquer coisa de ilógico. A poesia
vem do inconsciente, a imagem é feita pelo
inconsciente. O poeta é um sujeito que de
um modo geral caiu no mundo das imagens.

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MANOEL DE BARROS

Em outros momentos, o poeta explica seu processo de “apaga-


mento”, ou como se mostra escondendo e se esconde mostrando:

Mas o meu apagamento me exibe antes que


me apaga. Me exibo através de ficar sob as
cinzas. Sou sempre uma pose falsa tirada
no escuro. Me exibo de costas. Pretendo
que o escuro me ilumine. Isso não é um
apagamento. É um requinte. Eu faço o
nada aparecer. Uma frase antitética igual
a essa me afaga, alivia meus conflitos. Ai
que tanta impudência! Um narcisismo do
avesso.

Enfim, revela que seu processo de criação deve menos a um


controle consciente e racional da coisa criada que um processo
marcado pelo signo da incerteza e do erro:

Eu sou analfabeto para certezas. A coisa é


toda: como a gente pegar água no escuro:
psiumente. O acerto começa no fim dos er-
ros. E a gente não sabe adonde é o fim dos
erros. Nem o começo do acerto. Aleluia.

III
O pantanal da linguagem

Uma das afirmações mais recorrentes de Manoel de Barros,


contra aqueles que querem rotular sua poesia, é a de que ele não
é o “poeta do Pantanal”, como a mídia costuma afirmar. “Meu ne-
gócio é com a linguagem”, ele costuma responder. De fato, muitos
de seus leitores se desapontam ao descobrir que ele não é um ve-
lhinho sábio que escreve sentado à beira das lagoas do Pantanal,

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ENCONTROS

olhando passarinhos e besouros. Pelo contrário, ele escreve tran-


cado em seu escritório, rodeado por inúmeros dicionários e livros
(lembro-me de certa vez ter visto obras de Adorno e Benjamin em
sua escrivaninha, e não posso deixar de mencionar o precioso
dicionário de Frei Domingos de Oliveira, em cinco grossos tomos,
seu tesouro). Descobrimos também nas entrevistas o homem cos-
mopolita, que viveu mais de 40 anos no Rio (cidade para onde vai
com frequência), que viajou pela Europa e viveu algum tempo em
Nova York, onde estudou cinema e artes visuais.
Manoel de Barros não nega, porém, a origem pantaneira. Numa
entrevista a uma revista de Ecologia ele deixa claro que sua poesia
não se interessa pela tematização pitoresco que há no Pantanal,
mas sim pela comunhão desse Pantanal que está dentro dele com
a sua linguagem:

Gosto do Pantanal ao ponto de eu precisar


inventar uma tarde a partir de um tordo.
Gosto do Pantanal ao ponto que eu possa
ficar livre para o silêncio das árvores. Gosto
do Pantanal ao ponto que meu idioma não
sirva mais para comunicar, senão que ape-
nas para comungar. Temática sugere tese,
sugere idéia para ser desenvolvida. Suge-
re comunicação. Sugere descrição de algu-
ma coisa. Para mim, quem descreve não é
dono do assunto: quem inventa, é. Que eu
possa dizer, estando em fusão com a nature-
za, coisas como esta:“Eu queria crescer pra
passarinho…” Eu possa dizer com serieda-
de: Uma pedra me rã. Minha linguagem
será sempre de comunhão. É dessa forma
que em mim o Pantanal se expõe. Tenho
dentro de mim um lastro de brejos e de

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MANOEL DE BARROS

pássaros que inevitavelmente aparecem


na minha poesia.

Em outro momento, de forma mais categórica, Manoel e Barros


afirma que o tema de sua poesia é ele mesmo, e a manifestação
desse eu na linguagem :

Penso que para trouver la langue não é pre-


ciso abrir mão de temas. O tema de um po-
eta é ele mesmo. Até que seria bom estar
no mundo só fazendo parte da paisagem,
que nem uma pedra no morro. Mas a gente
não é apenas aspecto. Não somos uma coi-
sa com ninguém dentro. Nossa essência
precisa de ser exercida. E a gente exerce a
essência como quando cria a solidão, como
quando abre o amor. Se através da lingua-
gem de nossa poesia a gente conseguir se
expor, o mundo se refletirá em nossas pala-
vras.

Estamos longe, portanto, de uma imagem do poeta bucólico,


que até encanta, mas não corresponde aos fatos. Isso fica ainda
mais claro quando o poeta fala de seu cotidiano:

Leio pouco e estudo menos. Mariposeio


sobre livros. Só paro de vez nalgum livro
quando levo um susto. Quando encontro
uma palavra fértil. (Fértil para aquele mo-
mento meu). Fico sonhando sobre essa
palavra, em cima dela. E de repente encon-
tro para ela uma sintaxe inconexa. Um en-
caminhamento de mim. Em geral minhas

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ENCONTROS

leituras acompanham meu faro, meu ins-


tinto de criar. No meu cotidiano, afora va-
diar, tomo nota de expressões inusuais que
escuto nas ruas ou que leio nos livros. Em-
brulho e misturo tudo para compor algum
verso. Porém se encontro uma expressão
muito enfeitosa – desconfio. Preciso me
dizer de um modo magro. Pra responder ao
fim: nunca escrevi uma só linha no mato.
Quero estar junto dos meus dicionários,
para escrever.

Outro mito que se desmancha quando se lê mais detidamente


a sua poesia e as entrevistas é o do “poeta das coisas simples”. Sim-
plesmente porque não há coisas simples. É ingênua a ideia de que
a Natureza é expressão da simplicidade, da beleza, do sublime,
pois o feio e o monstruoso também fazem parte do mundo natural,
tanto quanto do mundo humano. Tudo na natureza é complexo,
desde que a vejamos de olhos bem abertos. Se elege coisas consi-
deradas menores, ou sem valor, é para elevá-las à categoria do
Sublime, tarefa que está longe de ser modesta:

Insisto em falar sobre a linguagem. Quem


nos tira, aos artistas em geral, do nosso
quintal e nos leva para novos altares é a
linguagem. Não entra aí o falar de coisas
maiores ou menores, o que conta é o modo
de falar. ... não sou modesto com relação ao
meu fazer poético. Quero dar grandeza às
pobres coisas. Quero monumentar o cisco
e o pobre-diabo. Isso não é ser modesto.
Acho até que seja coisa soberba.

23
MANOEL DE BARROS

Esse olhar para o ínfimo, diga-se de passagem, é herança do


bugre que há em Manoel de Barros, conforme ele explicita:

O índio, o bugre, vê o desimportante pri-


meiro (até porque ele não sabe o que é im-
portante). Vê o miúdo primeiro, vê o ínfimo
primeiro. Não tem noção de grandezas. Ali-
ás, a sua inocência vem de não ter noção.
Bugre não sabe a floresta; ele sabe a folha.
Enxerga o movimento das formigas e tem
devaneios. Uma formiga puxou um pouco
do rio para ela e tomou banho em cima...
Ele sorri.

Enfim, há o pitoresco de ser poeta e fazendeiro, o que para


muitos parece coisa inconciliável, embora haja uma certa tradição
de poetas ligados às atividades agropastoris, ou que as exaltaram,
da qual o nome mais ilustre talvez seja Virgílio, autor das Bucólicas
e das Geórgicas (estas últimas, um tratado poético do cultivo da
terra e dos rebanhos). Embora ambos lidem com a “criação”, as vida
do criador de gado e do poeta se separam. Manoel de Barros gosta de
deixar clara a separação entre o cidadão-fazendeiro (de quem ele
não gosta de falar) e o poeta, como nesse belo trecho borgesiano:

Somos diferentes. Eu mexo com palavras.


O outro é fazendeiro de gado. Enquanto o
cidadão mantém a casa em ordem, o poeta
cultiva irresponsabilidades. Eu sou rascu-
nho de um sonho. Ele é pessoa da terra. Eu
tenho um entardecer de angústias. E o ou-
tro vai pro bar se esquecer. Recebo no meu
olho beijamento de águas. Me sinto um ralo
de sabedoria. E o outro zomba de mim. Gos-

24
ENCONTROS

to de me multiplicar todos os dias lendo fra-


ses do Gênesis. Ele se compadece de mim.
A inércia é meu ato principal. Ele mexe com
boi.

Essa capacidade para se desdobrar é, aliás, uma das marcas do


poeta, que já se definiu como “um minhocal de pessoas, deserto
de muitos eus”3 . Desde o Mário-pega-sapo do primeiro livro,
Manoel de Barros criou e descreveu uma galeria de personagens,
de duplos, de personae, cujo exemplo mais famoso é Bernardo da
Mata. Há nesse processo um pouco de Pessoa e um pouco de
Proust. Por um lado, esses personagens são espécies de
heterônimos, mas quase todos bastante próximos espiritualmen-
te e estilisticamente de Manoel de Barros. Por outro lado, esses
outros eus são pessoas reais que o poeta se apraz em transformar
em personagens, emprestando-lhes uma voz poética, que é a do
próprio poeta, na maioria dos casos, mas que vem carregada da
característica pessoal de cada alter ego, conforme a explicação (se
se pode chamar assim) que Manoel de Barros deu:

Deixo aos meus alter ego a terefa de reali-


zar os sonhos meus frustrados. Coisas que
não fui capaz de fazer realizo através deles.
Por exemplo: eu quis muito ser andarilho
no Pantanal. Mas nunca agi no sentido de
ser um andarilho. Então inventei alguns
que fizeram isso por mim. Que dormiam
debaixo de árvores, que usavam ornamen-
to de trapos e eram aceitos pelos pássaros
nas estradas. Eu nunca pude fazer essas
coisas porque minha inércia remove mon-
tanhas. E porque acho que o andarilho é
um ser humano que faz comunhão comple-

25
MANOEL DE BARROS

ta com os orvalhos da manhã, com a tarde e


suas garças, com as cores do sol, e com o
chão, e com as águas, e com as chuvas, ár-
vores e ventos. Durante as viagens sem
rumo dos andarilhos eles são instalados na
natureza igual se fossem uma aurora, uma
pedra, um rio.

IV
O transfazedor em sua oficina

As entrevistas de Manoel de Barros dão testemunho de que a


sua arte passa por um delicado, mas rigoroso, processo de elabora-
ção e de reelaboração. Quem já viu os “cadernos de caos”, que ele
fabrica e onde escreve fartamente, a lápis, com letrinha miúda,
sabe que cada um de seus livros é o resultado de uma escolha
criteriosa e mentada. Sua prosa registra de forma notável seu pro-
cesso de escrever:

Anoto tropos. Palavras que normalmente


se rejeitam, eu caso, eu himeneio. Conti-
güidades anômalas, seguro com letras
marcadas em meu caderno. De repente
uma palavra me reconhece, me chama, me
oferece. Eu babo nela. Me alimento. Come-
ço a sentir que todos aqueles apontamen-
tos têm a ver comigo. Que saíram dos meus
estratos míticos. As palavras querem me
ser. Dou-lhes à boca o áspero. Tiro-lhes o
verniz e os vôos metafísicos.

É o princípio da contiguidade que rege assim a sua escritura, o


que a leva, em termos jakobsonianos, mais para o domínio da

26
ENCONTROS

metonímia do que para o da metáfora, o que pode ser um dos


motivos que fazem a sua poesia tender mais para a prosa rítmica
do que para o verso. Da seleção do vocábulo exato, o poeta passa a
trabalhar o ritmo da frase, que comanda tanto o verso quanto a
prosa:

Corto o desejo de se exibirem às minhas


custas. As palavras compridas se devem
cortar como nós de lacraia. O verso balança
melhor com palavras curtas. Os ritmos são
mais variados se você trabalhar com
dissílabos, com monossílabos. Exemplo:
“Parou bem de frente pra tarde um tordo
torto.”

Mas o trabalho requer um permanente ir e vir da palavra à fra-


se, da frase ao livro, do livro sonhado ao material ainda sujo e frag-
mentário dos cadernos:

São 30, são 50 cadernos de caos. Preciso


administrar esse caos. Preciso imprimir
vontade estética sobre esse material. Não
acho a clave, o tom de entrada. Não acho o
tempero que me apraz. O ritmo não entra.
Há um primeiro desânimo. Aparecem coi-
sas faltando. Um nariz sem venta. Um olho
sem lua. Uma frase, sem lado. Procuro as
partes em outros cadernos. Dou com aque-
le caracol subindo na escada. Era aquele
mesmo, do primeiro caderno, que então
passeava uma parede. Percebo que existe
uma unidade existencial nos apontamen-
tos. Uma experiência humana que se ex-

27
MANOEL DE BARROS

põe aos pedaços. Preciso compor os peda-


ços. Meus cadernos começam a criar nódo-
as, cabelos. As ervas sobem neles.

Enfim, todo o esforço de se recompor, de se alinhar, a partir das


palavras que latejam no caos do caderno, o poeta encontra o seu
estilo (o seu restilo, seria melhor dizer):

Certas palavras estão doentes de mim.


Minhas rupturas estão expostas. Quem
pode responder pelas rupturas de um poe-
ta senão a sua linguagem? Tenho que do-
mar a matéria. O assunto não pode subir
no poema como erva. Desprezo o real por-
que ele exclui a fantasia. O erotismo do chão
se enraíza na boca. Aproveito do povo sin-
taxes tortas. Guardo sugestões de leituras.
Estruturo os versos. E só dou por acabado
um poema, se a linguagem conteve o assun-
to nas suas devidas encolhas. As nossas par-
ticularidades só podem ser universais se
comandadas pela linguagem. Subjugadas
por um estilo.

Se Bossuet considerava que o estilo é o homem mesmo, para


Manoel de Barros ele é antes a doença do homem. Isso implica
crer que a noção barriana de estilo se origina de um reconheci-
mento dos defeitos que compõem o ser. Por isso o estilo também
é estigma:

Do meu estilo não posso fugir. Ele não é só


uma elaboração verbal. É uma força que
deságua. A gente aceita um vocábulo no

28
ENCONTROS

texto não porque o procuramos, mas porque


ele deságua das nossas ancestralidades. O
trabalho do poeta é dar ressonância artísti-
ca a esse material. Penso que combinar o
sentido com os sons é que produz o estilo.
O barrismo há de acontecer nos meus tex-
tos porque vem de eu ser, de eu estar, de eu
ter sido. Não há fugir. Estilo é estigma. É
marca. Todo estilo contém as nossas
ancestralidades. Ninguém consegue fugir
do erro que é, do acerto que é. Vou ser sem-
pre o que me falta. De forma que vou cair
sempre no barrismo porque a gente é sem-
pre uma falta de nós. Papel do poeta seja
sempre o de obter o que falta nele. E falta
tudo. Papel de poeta é o de obter uma lin-
guagem que o complete. Esse objeto de lin-
guagem que me completa há de ser meu
estilo. O barrismo será sempre uma expres-
são de mim. Sou fiel ao erro que sou.

Assim, jogando com a frase de Bossuet, pode-se afirmar que,


para Manoel de Barros, o estilo não é o homem, mas o que nele
falta.
O estilo é a falha.
Caberia ao poeta mesmo encontrar a palavra que cubra, que
“complete” essa falha.
Há na definição de estilo como estigma um paradoxo interes-
sante: etimologicamente, se o estigma é a marca, o sinal (em ter-
mos saussurianos, o significado), o estilo pode ser tomado como o
agente dessa marca (stylus era justamente o ferro potudo com que
os romanos escreviam nas tabuinhas de cera), correspondendo ao
significante saussuriano. O estilo tem portanto um caráter passivo

29
MANOEL DE BARROS

(significado) e ativo (significante): por um lado, representa as


“ancestralidades”, o “erro de que se veio”, o estigma, o significado;
por outro lado, é a o trabalho de “obter uma linguagem” que comple-
te o poeta, o stylus-bisturi que opera a cirurgia, significante. A poe-
sia surge dessa operação: ela pode ser considerada então como a
cirurgia plástica na linguagem. Essa imagem, posto que banal, me
faz lembrar aqui da bela definição que João Cabral cria para a arte da
poeta norte-americana Marianne Moore. Segundo Cabral, Marianne
Moore disseca o anverso das coisas em busca do seu “lado claro”, e

Com a mão direita as penetra,


com lápis bisturi,
e com eles compõe,
de volta, o verso cicatriz.
(Serial, “O sim contra o sim”)

Mas se o “verso cicatriz” que Cabral admira em Moore é o da


cicatriz “limpa...econômica, reta”, o estigma de Manoel de Barros é
marcado pelo sujo, pelo abundante, pelo torto, e sobretudo pelo
doentio, tudo aquilo que se contrapõe à economia da razão poéti-
ca de um certo João Cabral:

Estilo é um fenômeno patológico da lingua-


gem. Estilo que se preza é coisa que escan-
daliza o entendimento.

Quando se observa de perto o estilo de Manoel de Barros, per-


cebe-se uma certa oscilação entre a prosa e o verso. Em certos livros
como O livro de pré coisas e o recente Memórias inventadas, Manoel
de Barros dá preferência à prosa, ao passo que, em um livro como
O livro das ignorãças o poeta burila o verso (especialmente na gran-
diosa seção “Os deslimites da palavra” dando preferência ao verso
decassílabo:

30
ENCONTROS

2.1
Não oblitero moscas com palavras.
Uma espécie de canto me ocasiona.
Respeito as oralidades.
Eu escrevo o rumor das palavras(...)
(O livro das ignorãças)

Mas, em geral, o poeta joga intencionalmente com medidas


menos tensas do ponto de vista métrico, preferindo trabalhar o
verso por dentro: no colorido das assonâncias e aliterações,
conjugadas com a paronomásia,

Sou referente pra ferrugem


mais do que referente pra fulgor
(Livro sobre nada)

Isso para não falar no uso de uso frequente de assíndetos, de


anáforas, rimas internas e outras figuras de intensificação e repe-
tição. Dois procedimentos retóricos, a silepse e o zeugma semânti-
co4 , estão entre os mais importantes no âmbito dessa poesia. A
silepse é aquela forma de ambiguidade sintática que não raro pro-
voca um efeito de mistura contraditória entre uma ideia e uma
sensação, dando abertura para a polissemia de uma palavra ou
termo da oração:

Besouros não trepam no abstrato


(Livro sobre nada)

Tanto o verbo “trepar” quanto a locução “no abstrato” podem


ser lidos com mais de um sentido: subir/praticar o ato sexual, no
primeiro caso; no segundo, a locução pode ser tomada como ad-
vérbio de modo ou lugar, a própria palavra “abstrato” passando a
ser o lugar onde hipoteticamente os besouros não “trepam”. Já o

31
MANOEL DE BARROS

zeugma semântico resulta de uma combinação sintática de dois


termos de diferentes planos semânticos, o que resulta não raro num
efeito de sinestesia:

Sou puxado por ventos e palavras.


(O livro das ignorãças)

Mas o domínio em que Manoel de Barros se sente, por assim


dizer, mais à vontade, é o da criação vocabular, ou do neologismo.
Ao contrário porém de um Carrol ou de um Joyce, não é o
portmanteau-word a via régia de Manoel de Barros, e sim os pro-
cessos de derivação: nomes que se transformam em verbos, ver-
bos que se transformam em advérbios, adjetivos que se transfor-
mam em advérbios. Esses procedimentos, levados à exaustão,
apontam para uma visão da língua como objeto movente,
metamorfoseante:

O vento se harpava em minhas lapelas de-


satadas.
(Arranjos para assobio)

Tem dia o sapo anda estrelamente.


(Idem)

Há uma força bugral de indigência em mim


que só agüenta espiar de cócoras
(nestes Fragmentos)

A sensatez me absurda.
(Livro sobre nada)

Nem mesmo as interjeições escapam do bisturi:

32
ENCONTROS

A coisa é toda: como a gente pegar água no


escuro: psiumente.
(nestes Fragmentos)

A língua, para Manoel de Barros, é líquida, sua escritura está im-


buída do caráter instável das águas, que se traduz figurativamente
numa linguagem marcada por uma série de descontinuidades e ins-
tabilidades: sintáticas, lexicais, semânticas. Nisso, sim, ele é o
poeta do Pantanal, ou seja, quando inventa para a língua uma
retórica de pantanal, aquática, em que esta passa a obedecer um
regime de constantes modificações. Em O livro de pré-coisas, o po-
eta afirma que “o Pantanal não tem limites”. Isso porque o seu re-
gime de secas e enchentes o torna uma região ambígüa e movente.
Assim é a língua de Manoel de Barros, dotada daquilo que Francis
Ponge chamaria de “uma anfibigüidade”.5
Com a mesma facilidade com que cria palavras, Manoel inven-
ta regências e regimes pouco usuais para verbos, substantivos e
adjetivos, ora calcando-se nos exemplos do português antigo (ou
dos clássicos como Vieira e Bernardes), ou mesmo da fala popular
do Pantanal. No belo verso-poema

O menino de ontem me plange.


(Livro sobre nada),

O verbo planger sofre uma alteração de regência: como verbo


transitivo, o verbo significa soar (planger um sino), e, como
intransitivo, derramar lágrimas, chorar. Ao atribuir um objeto pro-
nominal ao verbo (me), Manoel de Barros resgata o sentido poten-
cialmente transitivo do verbo latino plangere, produzindo um efei-
to similar a uma silepse. Já em

Uma folha me planeja.

33
MANOEL DE BARROS

A surpresa vem não da regência, correta, mas da atribuição do


pronome pessoal como objeto a um verbo que normalmente rege
coisas, objetos, e não pessoas. Em outros casos, a regência surpre-
ende pelo sabor (e pelo saber) que tem de fala popular, de uma
fala guardada nos repositórios do idioma:

Bernardo está pronto a poema.


(Livro de pré-coisas)

O que eu ajo é tarefa desnobre...Amo des-


se trabalho...
(Idem)

Assim se compreende por que Manoel de Barros insiste tanto


na necessidade de “errar o idioma”. Não se trata de um “servicinho
à toa”, mas de uma atitude deliberada de artista e de artífice do
verbo. Por outro lado, figuras recorrentes como a silepse, o zeugma
semântico, e procedimentos de criação verbal e modificação de
estruturas sintáticas, de que acabamos de dar exemplo, apon-
tam para uma visão unificadora da poesia, que o poeta expressa
em vários momentos de suas entrevistas, e em alguns de seus
textos. Segundo essa visão, o artista não tem por tarefa a mera
representação da realidade, mas a sua recriação (ecos de Vicente
Huidobro?). O artista investe-se para Manoel de Barros de um
poder demiúrgico, ele molda, com a sua língua, usando o seu
estilo, uma realidade nova, que se coloca para o homem como
fonte de gozo estético.
Esse poder demiúrgico lembra aquele que o ficcionista polo-
nês Bruno Schulz descreve em Lojas de canela, livro que poderia ser
tomado como modelo para se pensar muita coisa a respeito da arte
de Manoel de Barros. O pai do narrador, meio louco, meio poeta,
explica em certa passagem que a tarefa do demiurgo é a da criação,
o que aliás, é um privilégio de todos os espíritos:

34
ENCONTROS

A matéria goza de uma fecundidade infini-


ta, uma força vital inesgotável e, ao mesmo
tempo, um poder de sedução, que nos leva
a moldá-la. Nas profundezas da matéria
desenham-se sorrisos imprecisos, germi-
nam conflitos, engrossam formas apenas
esboçadas. Toda a matéria ondula de pos-
sibilidades infinitas, que a perpassam com
arrepios insípidos. Esperando pelo sopro
vivificante do espírito, ela transborda de si
sem parar...

V
O poeta no mundo.

A leitura das entrevistas de Manoel de Barros revela um pro-


grama, ou uma arquitetura secreta, que sustenta o estilo manoelês
e o alcance gnosiológico de sua poesia. Elas mostram a figura de
um poeta preocupado com a sua linguagem, com o mundo, e com
o papel do poeta no mundo.
Com Manoel de Barros, estamos longe da ideia da revolta que
marcou tantos poetas desde o romantismo. Manoel de Barros, como
cidadão e como escritor, rejeita a poesia da revolta, porque acredi-
ta justamente que a poesia tenha uma funcão social (embora não
deixe de ser um “inutensílio”). Se há alguma forma de revolta em
sua poesia, será por certo a da revolta contra os dogmas, os
desmandos e as injustiças que se manifestam na linguagem (como
naquele poema sobre o venerável acadêmico que pretendia que
Mário-pega-sapo se chamasse Mário-captura-sapo8 ). Manoel de
Barros sonha com um mundo e uma língua em que não haja “nem
reis nem regências”, como ele admite em O guardador de águas. Para
tanto, a poesia cumpre um papel de vanguarda na sociedade,
porque ela lida com o repositório mais profundo desses mesmos

35
MANOEL DE BARROS

dogmas, desses mesmos desmandos, dessas mesmas injustiças: a


língua, um bem por certo universal, mas também desigualmente
dividido entre os homens. O também poeta e administrador chi-
nês Confúcio acreditava que não há reforma política possível em
um país sem a reforma da língua (para o que deveriam contribuir
os poetas, como interpretou Ezra Pound). Manoel de Barros pare-
ce compartilhar secretamente essa crença, ao definir o trabalho do
poeta, num de seus mais belos brinquedos verbais:

Minhocas arejam a terra; poetas, a linguagem.


(Livro de pré-coisas)

Traduzido para a prosa, o tão citado verso equivalerá a pensar


sobre a função social da poesia, nos seguintes termos:

Quanto às funções da poesia...Creio que a


principal é a de promover o arejamento das
palavras, inventando para elas novos rela-
cionamentos, para que os idiomas não
morram a morte por fórmulas, por lugares
comuns. Os governos mais sábios deveriam
contratar os poetas para esse trabalho de
restituir a virgindade a certas palavras ou
expressões, que estão morrendo cariadas,
corroídas pelo uso em clichês. Só os poetas
podem salvar o idioma da esclerose. Além
disso a poesia tem a função de pregar a prá-
tica da infância entre os homens. A prática
do desnecessário e da cambalhota, desen-
volvendo em cada um de nós o senso do
lúdico. Se a poesia desaparecesse do mun-
do, todos os homens se transformariam em
máquinas, monstros, robôs.

36
ENCONTROS

“A rosa é sem porquê./Ela flore, porque flore.” Jorge Luís Borges


tornou famosos esses versos do poeta barroco alemão Angelus
Silesius, para defender a inutilidade da poesia para a vida prática.
Mas será que depois de lermos a declaração acima podemos acre-
ditar ainda que a rosa da poesia, segundo Manoel de Barros, é sem
porquê?

***

Os fragmentos que o leitor lerá aqui foram recolhidas de inú-


meros jornais e revistas, e passaram por uma adaptação. Minha
intenção inicial era a de apresentar ao leitor e, sobretudo, ao estu-
dioso da obra de Manoel de Barros, uma edição crítica e completa
dessas entrevistas. Aos poucos, nas conversas com Manoel de Bar-
ros, fui vendo que essa proposta seria inaceitável para o poeta, que
preferiu submetê-las a uma nova triagem, a novos cortes, e à su-
pressão, sempre que possível, de referências pessoais e biográfi-
cas. Em suma, gostaria de ter apresentado ao púbico, diretamente
e sem cortes, a voz do poeta. Mas este, aconselhado por Bernardo
da Mata, preferiu refazer os rascunhos, transfazer os manuscritos,
e, por fim, apresentar não a voz em si, mas um “desenho da voz”.
Limitei-me a aceitar, pois sei que por trás do oco de seus desenhos,
de traço fino, “bugral” mesmo, escondem-se muitos desvios e
muitos arcanos.

37
MANOEL DE BARROS

Eu sou o rascunho de um sonho

38
ENCONTROS

ORGANIZAÇÃO ADALBERTO MÜLLER

39
MANOEL DE BARROS

Minha infância é marcada por gestos de peixes, por entes que al-
çam tipo borboletas e bem-te-vis, por entes que rastejam tipo les-
ma, lagarto. Meu olho é marcado por árvores, por rios e mais cinco
pessoas: meu pai, minha mãe, meu irmão e três vaqueiros. Apren-
di até sete anos só coisas que analfabetam. Vi cartilha com oito.
Aprendi a soletrar somar e dividir com nove. Nunca li livros com
histórias infantis. Tive que fazer eu mesmo as artices da infância.
Até hoje as histórias e estórias não me atraem. O que alimenta meu
espírito não é ler. É inventar. Fui criado no mato isolado. Acho que
isso me obrigava a ampliar o meu mundo com o imaginário. Inven-
tei meus brinquedos e meu vocabulário. Quando eu não achava a
palavra para nomear a coisa eu modelava ela com as mãos. Meu
pai entendia. Minha mãe entendia. Depois fomos desenvolven-
do. Em 1931, com 14 anos, um padre no Colégio São José me deu
um livro de Antônio Vieira pra ler. Só daí em diante eu gostei de ler.
Mas não pelas histórias ou pregações do Vieira, mas pelas frases
dele. Depois comecei a ler todos os poetas daqui e de outros luga-
res. Minha curiosidade intelectual nunca foi por histórias nem por
indague sobre a vida e a morte – essas metafísicas. Eu gostava das
frases, de preferência as insólitas.

O menino isolado criou sozinho seu alimento espiritual. O que era


lido por mim não era livro, era a natureza, eram gestos de peixes,
etc. Até hoje tenho esse armazenamento de infância que uso para
transfazer a natureza. Deus deu a forma e a gente desforma.

Acho que foi minha inaptidão para o diálogo que gerou o poeta.
Sujeito complicado, se vou falar, uma coisa me bloqueia, me inibe,
e eu corto a conversa no meio, como quem é pego defecando e o faz
pela metade. Do que eu poderia dizer, resta sempre um déficit de
oitenta por cento. E os vinte por cento que consigo falar não

40
ENCONTROS

Em 1931, com 14 anos,


um padre no Colégio São José
me deu um livro de Antônio
Vieira pra ler. Só daí em diante
eu gostei de ler. Mas não pelas
histórias ou pregações do
Vieira, mas pelas frases dele.
Depois comecei a ler todos os
poetas daqui e de outros lugares.
Minha curiosidade intelectual
nunca foi por histórias nem por
indague sobre a vida e a morte –
essas metafísicas. Eu gostava das
frases, de preferência as insólitas.

41
MANOEL DE BARROS

correspondem senão ao que eu não gostaria de ter dito, – o que me


deixa um saldo mortal de angústia. Mesmo desde guri, no colégio,
descobri essa barreira em mim, que não posso vencer. Sou um bom
escutador e um vedor melhor. Mas só trancado e sozinho é que
consigo me expressar. Assim mesmo sem linearidade, por trancos,
por sugestões, ambíguo – como requer a poesia.

Sobre elementos que influenciaram minha formação, afora essa


inaptidão para o diálogo, talvez um sentimento dentro de mim do
fragmentário, laços rompidos, o esboroo da crença ainda na ado-
lescência, saudade de Deus e de casa, ancestralidade bugra, nos-
talgia da selva, sei lá. Necesidade de reunir esses pedaços decerto
fez de mim um poeta. A incapacidade de agir também me mutila.
Sou pela metade sempre ou menos da metade. A outra metade
tenho que desforrar nas palavras. Ficar montando, em versos,
pedacinhos de mim, ressentidos, caídos por aí, para que tudo afi-
nal não se disperse. Um esforço para ficar inteiro é que é essa ati-
vidade poética. Minha poesia é, hoje, e foi sempre, uma catação de
eus perdidos e ofendidos. Sinto quase orgasmo nessa tarefa de
refazer-me. Pegar certas palavras já muito usadas, como certas
prostitutas, decaídas, sujas de sangue e esterco – pegar essas pa-
lavras e arrumá-las num poema, de forma que adquiram nova
virgindade. Salvá-las assim da morte por clichê. Não tenho outro
gosto maior do que descobrir para algumas palavras relações
dessuetas e até anômalas.

Acho que não pertenço à geração de 45 senão cronologicamente.


Não sofri aquelas reações de retesar os versos frouxos ou endirei-
tar sintaxes tortas. A mim não me beliscava a volta ao soneto. Acha-
va e acho ainda que não é hora de reconstrução. Sou mais a palavra
arrombada a ponto de escombro. Sou mais a palavra a ponto de

42
ENCONTROS

entulho ou traste. Li em Chestov que a partir de Dostoiévski os


escritores começam a luta por destruir a realidade. Agora a nossa
realidade se desmorona. Despecam-se deuses, valores, paredes...
Estamos entre ruínas. A nós, poetas destes tempos, cabe falar dos
morcegos que voam por dentro dessas ruínas. Dos restos huma-
nos fazendo discursos sozinhos nas ruas. A nós cabe falar do lixo
sobrado e dos rios podres que correm dentro de nós e das casas.
Aos poetas do futuro caberá a reconstrução – se houver reconstru-
ção. Porém a nós – a nós, sem dúvida – resta falar dos fragmentos,
do homem fragmentado que, perdendo suas crenças, perdeu sua
unidade interior. É dever dos poetas de hoje falar de tudo que so-
brou das ruínas e está cego. Cego e torto e nutrido de cinzas. Por-
tanto, não tenho nada em comum com a Geração de 45. E, se algu-
ma alteração tem sofrido a minha poesia, é a de tornar-se, em cada
livro, mais fragmentada. Mais obtida pelo escombro. Sendo assim,
cada vez mais, o aproveitamento de materiais e passarinhos de
uma demolição...

Enquanto o mundo parir uns tipos hipobúlicos feito, por exemplo,


Fernando Pessoa, resguardados pela timidez e incapazes de uma
ação – as palavras não morrerão. Essas criaturas não têm outra for-
ma de ação que em cima das palavras. Obsessiva e sadicamente as
trabalha, dobrando-as até seus pés, arrastando-as no caco de vi-
dro, até que elas sejam eles mesmos. Até que elas dêem testemu-
nho da presença deles no mundo. Quase sempre criaturas que
nascem repositórios de chão e de estrelas, só sabem fabricar poe-
sia com palavras. E ainda outras que moram ruínas viçosas por
dentro, se agarram nas palavras para sobreviver.

A mim me parece que é mais do que nunca necessária a poesia.


Para lembrar aos homens o valor das coisas desimportantes, das

43
MANOEL DE BARROS

Quanto às funções da
poesia...Creio que a principal é a
de promover o arejamento das
palavras, inventando para elas
novos relacionamentos, para que
os idiomas não morram a morte
por fórmulas, por lugares
comuns. Os governos mais sábios
deveriam contratar os poetas
para esse trabalho de restituir a
virgindade a certas palavras ou
expressões, que estão morrendo
cariadas, corroídas pelo uso em
clichês. Só os poetas podem
salvar o idioma da esclerose.

44
ENCONTROS

coisas gratuitas. Vendem-se hoje até vista para o mar, sapos com
esquadrias de alumínio, luar com freio automático, estrelas em alta
rotação, laminação de sabiás, etc. Há que ter umas coisas gratuitas
pra alimentar os loucos de água e de estandarte. Quanto às fun-
ções da poesia...Creio que a principal é a de promover o arejamen-
to das palavras, inventando para elas novos relacionamentos, para
que os idiomas não morram a morte por fórmulas, por lugares co-
muns. Os governos mais sábios deveriam contratar os poetas para
esse trabalho de restituir a virgindade a certas palavras ou expres-
sões, que estão morrendo cariadas, corroídas pelo uso em clichês.
Só os poetas podem salvar o idioma da esclerose. Além disso a
poesia tem a função de pregar a prática da infância entre os ho-
mens. A prática do desnecessário e da cambalhota, desenvolven-
do em cada um de nós o senso do lúdico. Se a poesia desaparecesse
do mundo, todos os homens se transformariam em máquinas,
monstros, robôs.

A matéria da minha poesia são “os nervos do entulho”, como disse


o poeta português José Gomes Ferreira. Tudo aquilo que a nossa
civilização rejeita, pisa e mija em cima, é também matéria de mi-
nha poesia, eu já disse. Só bato continência para árvore, pedra,
cisco. O cisco semovente e o propriamente cisco. Em estudo sobre
O processo, de Kafka, o humanista Günther Anders observa o amor
de Leni pelos processados. Leni acha que a miséria da culpa os torna
belos. Sua compaixão pelas vítimas é que a leva ao amor. De muita
dessa compaixão é feita a poesia de nosso século. Um fundo amor
pelos humilhados e ofendidos de nossa sociedade banha quase
toda a poesia de hoje. Esse vício de amar as coisas jogadas fora – eis
a minha competência. É por isso que eu sempre rogo pra Nossa
Senhora da Minha Escuridão que me perdoe por gostar dos
desheróis. Amém.

45
MANOEL DE BARROS

Tudo creio já foi pensado e dito por tantos e tontos. Ou quase tudo.
Ou quase tontos. De modo que não há novidade debaixo do sol –
e isso também já foi dito. “Os temas do mundo são pouco numero-
sos e os arranjos são infinitos.” – falou Barthes. Então, o que se
pode fazer de melhor é dizer de outra forma. Se for para tirar gosto
poético, vai bem perverter a linguagem. Não bastam as licenças
poéticas. Há que se ir às licenciosidades. Temos de molecar o idio-
ma para que ele não morra de clichês. Subverter a sintaxe até a
castidade: isto quer dizer: até obter um texto casto. Um texto vir-
gem que o tempo e o homem ainda não tenham espolegado. O
nosso paladar de ler anda com tédio. É preciso propor novos enla-
ces para as palavras. Injetar insanidade nos verbos para que trans-
mitam aos nomes seus delírios. Em Nunes Peres Sandeu, nas Can-
tigas dos Trovadores Medievais selecionadas por Clarice
Berardinelli, encontro estes versos:

e, poys aqueles olhos meus


Por el perderem o dormir

A beleza se abre no verso “Por el perderem o dormir”. Porque per-


der o dormir está no lugar de perder o sono, que é um lugar comum
e portanto se esgotou de expressar. Há que se encontrar a primeira
vez de uma frase para ser-se poeta nela. Mas tudo isso é tão antigo
como mijar na parede. Só que foi dito de outra maneira.

Com Buñuel, um perneta se esforça para tirar da lama sua perna


de pau. Com Charles Chaplin, Carlitos faz um cozido de sapatos, e
dos cadarços, uma boa macarronada. Leio agora de um Fermino,
em plena Idade Média, que carregava uma Igreja na cabeça para
fazer pedra. Isto são gags. São alegres sandices cometidas com
imagens. Eu faço gags com palavras. Assim: “Entrar na prática do
limo”; “O corgo ficava à beira / de um menino”; “Gramática

46
ENCONTROS

expositiva do chão”. Poesia é também um pouco ser pego de sur-


presa pelas palavras. Amigo meu, certa vez, Nelson Nassif, poeta
oral dito e ouvido, saiu-se com esta: “Hoje minha boca não está
idônea para o beijo”. Tomei uma surpresa poética. Aquele adjetivo
idônea saiu de seu habitual contexto de responsabilidade (cargo
idôneo, firma idônea, etc.) e veio se encostar em uma boca! Entrou
em contexto de volúpia. Molecou o idioma. Na verdade me prepa-
rei a vida inteira para fazer frases dementadas.

Penso que meus versos se sustentam no fio do ritmo. Quero que as


ressonâncias verbais dominem o semântico. Eu escrevo o rumor
das palavras. Não tenho proporção para episódios.

Não tenho certeza mesmo quase nunca do que faço. Porque o faço
com o corpo. E a sensibilidade é traideira. Às vezes tapa a visão. Eu
sou demais coalescente às coisas. Não dá pra tomar distância de
julgador. Os versos vêm de escuros. Eu só tenho meus versos e a
incerteza.

Escrevo como quem lava roupa no tanque, dando porrada nas


palavras. A espuma que restou no ralo vai ser boa para o começo.
Depois é ir imitando os camaleões sendo pedra sendo lata sendo
lesma. As palavras de nascer adubam-se de nós. Então no meio da
coisa pode saltar uma clave ou um rato. Daí a gente tem que traba-
lhar. O horizonte fica longe que nem se vê. Um horizonte pardo
como os curdos. Também faz parte desse processo desarrumar a
cartilha. Seduz-me reaprender a errar a língua. Eis um ledo obsídio
meu.

47
MANOEL DE BARROS

Poeta é sempre um ser escaleno. Poetas são seres desconstruídos


por suas palavras. Daí que as imaginações nutridas em suas obras
podem fazer retratos falsos deles. Alguns até são loucões mesmo.
E se dissipam por bares e prazeres. Porém no geral os poetas são
pessoas comuns que carregam embrulhinhos de pão às 6 horas da
tarde pra casa, se encostam em árvores, cortam unha, puxam vál-
vulas, etc. Mas tudo isso sem grandezas nem estandartes. Tal como
um bobo-alegre que às três da madrugada sai se arrastando nos
seus ruídos de relvas.

A julgar pelos rapazes da revista Mugido, logo teremos no Mato


Grosso do Sul uma excelente e renovadora poesia. Que se afastem
esses rapazes de dois perigos: a necroverbose dos acadêmicos e a
exuberância de nossa natureza. Da necroverbose, basta evitar
contactos. E da exuberância da natureza basta ter cuidado para
não se afogar em tanto natural. Quero dizer: é preciso evitar o grave
perigo de uma degustação contemplativa da natureza. Há o peri-
go de se cair no superficial fotográfico, na pura cópia, sem aquela
surda transfiguração epifânica. A simples enumeração de bichos
plantas (jacarés carandá sariema, etc.) não transmite a essência
da natureza, senão que apenas a sua aparência. Aos poetas é re-
servado transmitir a essência. Vem daí que é preciso humanizar as
coisas e depois transfazê-las em versos.

Não sou alheio a nada. Não é preciso falar de amor para se transmi-
tir amor. Nem é preciso falar de dor para transmitir o seu grito. O
que escrevo resulta de meus armazenamentos ancestrais e de
meus envolvimentos com a vida. Sou filho e neto de bugres
andarejos e portugueses melancólicos. Minha infância levei com
árvores e bichos do chão. Essa mistura jogada depois na grande
cidade deu borá: um mel sujo e amargo. Se alguma palavra minha

48
ENCONTROS

Não sou alheio a nada. Não é


preciso falar de amor para se
transmitir amor. Nem é preciso
falar de dor para transmitir o seu
grito. O que escrevo resulta de
meus armazenamentos ancestrais
e de meus envolvimentos com a
vida. Sou filho e neto de bugres
andarejos e portugueses
melancólicos. Minha infância
levei com árvores e bichos do
chão. Essa mistura jogada depois
na grande cidade deu borá: um
mel sujo e amargo.

49
MANOEL DE BARROS

não brotar desse substrato, morrerá seca. “As correntes subterrâ-


neas que atravessam o poeta transparecem no seu lirismo” – disse
Theodoro Adorno. E disse mais: “Baudelaire foi mais fiel ao apelo
das massas do que toda a poesia gente-pobre de nossos tempos”.
Falo descomparando.

Me agradam mais aqueles que se atrevem do que aqueles que se


atêm. Me encanto com os palhaços que se aproveitam das boba-
gens para pungir as verdades. Vou mais com o som áspero das ci-
garras do que com as melodias celestiais. Entre o ordinário e o in-
signe prefiro o ordinário. Gosto dos loucos de água e estandarte.
Aqueles que urram de indignação prefiro aos dobradiços. Os que
renovam a escrita prefiro aos que a repisam. Aqueles que mudam
os dados do jogo resgatam meus goros. Nesse sentido sou fan de
Cristo, Rimbaud, Klee, Pessoa, Chaplin, Clarice, Guimarães Rosa,
Woody Allen, Dalton Trevisan – entre outros.

Poesia é pra incorporar. Porque é nos sentidos que a poesia tem


fonte. Além do mais, esse é um verso não é uma sentença. Poeta
não tem compromisso com a verdade, senão que talvez com a ve-
rossimilhança. Não há de ser com a razão mas com a inocência
animal que se enfrenta um poema. A lascívia é vermelha, o desejo
arde, o perfume excita. Tem que se compreender isso? Ou apenas
sentir? Poeta não é necessariamente um intelectual; mas é neces-
sariamente um sensual. Pois não é ele quem diz eu-te-amo para
todas as coisas? E esta desexplicação pode não fazer média com os
estatísticos, mas faz com os tontos.

Não falo em público porque gosto de ser recolhido pelas palavras.


E a palavra falada não me recolhe. Antes até me deixa ao relento. O

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ENCONTROS

jeito que eu tenho de me ser não é falando; mas escrevendo. Pala-


vra falada não é capaz de perfeito. E eu tenho orgulho de querer
ser perfeito. Assim, o verso de Felipe de Oliveira – “A perfeição e o
orgulho de pecar” – me hipnotiza e me desvela. E essa dissimula-
ção me esconde como um pé de sapato na sarjeta. (Um pé de sapa-
to na sarjeta lembra mais o seu pobre dono).

51
MANOEL DE BARROS

Acho que todo poeta se encontra às vezes com os trastes. E na es-


cória às vezes passeia. Há um soneto de Jorge de Lima que trata de
trastes:

Estão aqui as pobres coisas: cestas


esfiapadas, botas carcomidas, bilhas
arrebentadas, abas corroídas,
com seus olhos virados para os que

as deixaram sozinhas, desprezadas,


esquecidas com outras coisas, sejam:
búzios, conchas, madeiras de naufrágio,
penas de ave e penas de caneta,

e as outras pobres coisas, pobres sons,


coitos findos, engulhos, dramas tristes,
repetidos, monótonos, exaustos,

visitados tão só pelo abandono,


tão só pela fadiga em que essas ditas
coisas goradas e órfãs se desgastam.

Isso está na Invenção de Orfeu, canto V, “Poemas da Vicissitude”.


Engrandecer as coisas menores através da linguagem é uma das
funções da poesia.

Não me atrai o chão da lua. Não sou capaz de pensar nele. O que
haveria lá? Teria mamoeiro no quintal? Eu gosto de alguma coisa
que na infância eu tenha mijado nela. Uma parede de barrotes.
Um morrinho de formigas. “Chão da lua”! Fica tão longe e tão
cerebrino pensar nisso. Bugre não desprega da terra pra isso. Nem
sequer fareja esse lugar tão distante. Nossos pés se molhariam no

52
ENCONTROS

orvalho da lua? Vai ter orvalho lá? Vai se chamar rocio ou orvalho?
E como será o falar? Vai ter água na boca? Córregos por perto? Ár-
vores carregadas de passarinhos? Assunto que não me preocupa
há de ser esse de chão da lua. Eu perco os meus contornos. Deixo
de saber.

Sou mais de monturo para a poesia. Monturo guarda no ventre a


semente das árvores e das palavras. Guarda nossos resíduos, nos-
sos mijos e ciscos de passarinhos. Gosto de ver as pequenas lagar-
tas, estranhas como um etrusco, atravessando os monturos. Uma
camélia blonda sobre ele assusta de beleza. Gosto de ver as formi-
gas vesúvias correndo nos monturos. E de ver sobre eles as larvas
túrgidas. Monturo é lugar dos urubus. E em que os pobres-diabos
fazem continências para moscas.

Inventei uma palavra seguindo as virtualidades linguísticas.


Inutensílio é um ente de linguagem que só serve pra poesia como
a palavra neverness inventada por Wilkins e que Borges não sabia
por que os poetas de língua inglesa a deixaram jogada por aí, como
um pedaço de pau, e nunca a usaram. Seria como a nossa palavra
nadeira. Ou terisco, que é encontro de cisco com terém (o trem
usado em Minas é qualquer traste). Uma nomeação inaugural é
uma fala de criança. Inutensílio é virginal, sendo por isso apto à
poesia.

Posso fazer uma lista de frutas e árvores que existiam no Pantanal


em abundância e que hoje não existem ou estão desaparecendo.
Posso afirmar que a extinção dessas espécies vegetais ou animais
não se deve à depredação dos pantaneiros. Pantaneiros são como
índios pregados à terra. Não fazem o esporte da caça. Pantaneiro

53
MANOEL DE BARROS

vai no campo buscar um bicho pra comer. Buscar uma folha pra
fazer remédio, etc. Mas existem animais, como a onça pintada, que
não amam o barulho do homem, nem o pisoteio do gado, nem cor-
rerias ou vozes de peão. Por isso a onça muda de querência. Vai
procurar matas mais calmas e espessas. Há o cervo também, um
veado galhudo, – esse tem minguado e está quase extinto por ser
modesto como reprodutor, e os poucos que ainda restavam, com a
entrada do gado, foram morrendo de aftosa, que é uma ferida que
dá nos cascos bifurcados dos animais. Árvores que no meu obser-
var de 50 anos estão rareando nos cerrados e até desaparecendo,
posso citar algumas: o barbatimão (que é uma leguminosa), o
tarumeiro, o chico-magro, a água-pomba, a coroa-de-frade, o ciputá
(que é um caqui selvagem) e o araticum de campo – que seria a ata
do mato. Não estão extintos todos, mas observo que rareiam pelos
campos. Eles hão de completar a eternidade deles como nós. Em
algum tempo. E sobra disso uma pequena melancolia em mim
também...

Ao poeta penso que cabe a função de arejar as palavras. E não deixar


que morram de clichês. Pegar as mais espolegadas, as mais prosti-
tuídas pelos lugares-comuns e lhes dar novas sintaxes, novas com-
panhias. Colocar, por exemplo, ao lado de uma palavra solene um
pedaço de esterco. O poeta precisa de reaprender a errar a língua.
Esse exercício poderá também nos devolver a inocência da fala. Se
for para tirar gosto poético é bom perverter a linguagem. Temos de
molecar o idioma, os idiomas. O nosso paladar de ler anda com té-
dio. É preciso injetar nos verbos insanidades, para que eles trans-
mitam aos nomes os seus delírios.

A pintura de Wega Nery me arrebata, me ilumina de poesia. Wega


tem muitas águas guardadas debaixo de suas paisagens. Cacim-

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ENCONTROS

bas azuis remansam em suas paisagens de sonho. Suas águas me


empoemam. Há um mineiro vivendo em Goiânia – Cleber Gouveia
– cujas cores de terra me atraem. Ele pinta os extratos da terra. Tem
umas coisas de runa, de pedras vegetais, de animais estratificados
que me encantam. Há uma busca de veios enterrados. Uns perfis
de solos, fósseis rupestres, caramujos incrustados em rochas, indí-
cios de cretáceos mezozóicos, etc. –coisas de arcanos engrandeci-
dos pelas cores do poeta-pintor. Por fim o mundo lúdico e estrábico
de Newton Rezende também me apaixona e levita.

Em Paris fui visitar também a Torre Eiffel. As pessoas estavam


subindo, sem asas, na Grande Torre. Ao lado reparei um banco e
um jardim. Me sentei no banco. Havia outro homem sentado e
roto. Estava com cheiro de remédio e um pano amarrado na cabe-
ça. Uma mosca se comportou no pano, como se comporta uma
dama na igreja. Se ateve ao culto. Perto um besouro entrava na
areia como se entrasse numa casa de chá. O homem de pano na
cabeça e com cheiro de remédio me disse que se criara à beira do
rio Ganges. Logo me veio à cabeça o batismo de São João Batista,
veio Cristo e toda a cristandade. Mas o homem estava com a mosca
no rosto. A mosca estava atracada quase no silêncio dele. As pes-
soas subiam na Grande Torre, sem asas. A tecnologia nunca po-
derá evitar que surjam momentos como esse. Véspera de uma
epifania.

Podem crianças dizer coisas poéticas, pássaros podem cantar bo-


nito, néscios podem desenhar inocências e feridas, borboletas fa-
rão propostas de cores tortas. Mas para que essas manifestações
se tornem arte, têm que ganhar consciência artística. Krajcberg por
exemplo. Ele pode encontrar nos cerrados do Brasil certas raízes
que lhe indiquem formas e movimentos fantásticos – mas essas

55
MANOEL DE BARROS

raízes não serão arte sem os fervores e sem o sopro do artista. Isso
é tão velho como andar a pé.

Há umas falas em Cobra Norato de Raul Bopp que muito me reper-


cutem. Suas árvores prenhes. Os atoledos vesgos. A lama lívida dos
igarapés, etc. Houve uma aceitação apaixonada em mim de Serafim
Ponte Grande, de Oswald de Andrade. Aquela desordem lingüísti-
ca, aquela desarrumação estruturada. Foi um banquete. Depois
de uma degustação do Eu de Augusto dos Anjos que me deixou na
boca um sabor de gênio e de susto. Em Poesia Liberdade de Murilo
Mendes nado de braçadas e me inundo. Sou infinito gostador de
toda obra de Machado de Assis. Dos mágicos Guimarães Rosa,
Clarice Lispector, Dalton Trevisan. Do sábio Millôr Fernandes. E
mais os poetas Bandeira, Drummond, Cabral.

O povo ensina o poeta. Sim, pois que a fonte é ele! Primeiros passos
nas palavras é ele quem dá. É no povo que as primeiras palavras
dão seus primeiros vagidos, seu primeiro estremecer. É no povo
que os vocábulos se iniciam. E isso é velho como o orvalho. Na boca
de povo a palavra está viva e turgescente. Vem com todos os dese-
jos, com todos os ardumes, com todos os murmúrios. Tenho ami-
gos do povo que me ensinam de terra, que me ensinam de águas,
que me ensinam restolhos. Suas palavras se inclinam de folhas, de
água, de chão.

56
ENCONTROS

Não sei de quê nem de onde vem a minha agramaticalidade. Mas


posso inventar uma causa, uma versão que até poderá ficar chi-
que. Estudei 10 anos em colégio interno. Interno é preso. Se você
prende uma água, ela escapará pelas frinchas. Se você tirar de um
ser a liberdade, ele escapará por metáforas. Bom, mas isso já é lite-
ratura. Ponhamos que fosse o dão, como disse Antônio, meu ir-
mão, que é roceiro e ortógrafo. O dom há de um dia escapar pelas
frinchas. Longe de casa, no internato, eu não sabia o que fazer e fiz
um aparelho de ser inútil. Não estudava, abúlico, amorfo, vivia me
esgueirando. Um padre disse: – Não presta pra nada; há de ser
poeta! Mas o que havia é que eu não enxergava as coisas no quadro
negro, era míope. Depois me botaram óculos e eu virei um menino
alegre. O padre me dava livros. Eu não gostava de refletir, de filoso-
far; mas os desvios linguísticos, os volteios sintáticos, os erros pra-
ticados para enfeitar frases, os coices na gramática dados por
Camilo, Vieira, Camões, Bernardes – me empolgavam. Ah, eu pres-
tava era praquilo! Eu queria era aprender a desobedecer na escri-
ta. Esse desobedecer teria a ver com os 10 anos obedecendo a
bedéis, diretores, padres, muros que cercavam o colégio? Os psicó-
logos podem até achar isso. Entretanto estou com o meu irmão
Antônio, que é roceiro e ortógrafo – aquilo era um dão. Os textos
daqueles camilos, vieiras, etc., me davam prazer imenso. Descobri
que era o que se chama de prazer literário, prazer artístico. Entrei
na onda de ler, sondando as construções da frase. Veja uma contra-
dição: aprendi a rebeldia com os clássicos (ou isso não é contradi-
ção?). O professor de português ensinava, por exemplo, que
pleonasmo é uma redundância que devemos evitar para bem
escrever. Então eu lia no clássico Bernardes: “Ele é preciso que as
almas ardam”. Via que se não houvesse o ele pleonástico, a frase
não tinha beleza. “Ele é preciso que as almas ardam” – que lindo!
Mas “É preciso que as almas ardam”, contém a mesma verdade,
mas a frase não encanta. Essa era a manifestação de um gosto –
como andar de costas. Penso agora que aquele gosto teria sido a

57
MANOEL DE BARROS

primeira manifestação do ser poético em mim. Uma rebeldia? Uma


vontade de rupturas? Nos poetas há uma fonte que se alimenta de
escuros. Coisas se movendo ainda em larvas, antes de ser idéia ou
pensamento. É nessa área do instinto que o poeta está. A coisa ain-
da particular, corporal, ainda não generalizada e nem mentada.
Aquilo que mestre Aristóteles falou: “Todo conhecimento passa
antes pelos sentidos”. O poeta é o primeiro a tocar nos ínfimos. Nas
pré-coisas. Aí quando peguei o Oswald de Andrade para ler foi uma
delícia. Porque ele praticava aquelas rebeldias que eu sonhava
praticar. E aqueles encostamentos nos ínfimos, nos escuros – que
eram encostamentos de poetas. Foi Oswald de Andrade que me
segredou no ouvido: “Dá-lhe Manoel!” E eu vou errando como
posso. Muito mais tarde eu li em Spitzer que “todo desvio nas nor-
mas da linguagem produz poesia”. Seria o que eu procurava?

Só mais tarde, depois que me vi livre do internato, com 17 anos,


talvez, conheci Oswald de Andrade e Rimbaud. O primeiro me con-
firmou que o trabalho poético consiste em modificar a língua. E
Rimbaud me incentivou com o seu “immense dérèglement de tous
les sens”. Para um bicho do mato criado em quintal de casa, para
um ente arisco, medroso das gentes e dos relâmpagos, bolinador
de paredes pelas quais se esgueirava –, esse Rimbaud foi a revo-
lução. Eu podia me desnaturar, isto é: desreinar de natureza. Eu
seria desnaturado. Promíscuo das pedras e dos bichos. Eu era en-
tão cheio de arpejos e indícios de água. Não queria comunicar nada.
Não tinha nenhuma mensagem. Queria apenas me ser nas coisas.
Ser disfarçado. Isso que chamam de mimetismo. Talvez o que cha-
mam de animismo que me animava. E essa mistura gerava um
apodrecimento dentro de mim. Que por sua vez produz uma fer-
mentação. Essa fermentação exala uma poesia física que corrom-
pe os limites do homem. Então o poeta poderia transmitir o seu
adoecimento às coisas, ou às palavras que nomeiam essas coisas e

58
ENCONTROS

que as movimentam. Falo daquele desregramento a que se referiu


Rimbaud e que ilumina as nossas loucuras. E que perverte os tex-
tos até os limites mais fróidicos da palavra. Penso que os subtextos
e os intertextos resultam de uma perversão sensorial. A um poeta,
habitar certos antros, faz frutos. E produz uma fala protéica. Ou,
como em escritas se denomina, produz ambiguidades. Então,
quando se transfigura algum artista, ele se desnatura, desreina de
natureza, e consegue ser apenas uma pedra (que apenas consiste
e não existe) e aí o artista se coisificou. Mas isso tudo é tão antigo
como sombra de árvore. E o nosso Homero e nosso Virgílio já tinham
sido convidados para esse banquete. Pelo meu temperamento de
tímido, que é uma sem-graceira demais, nunca funcionou o diálo-
go pessoal entre mim e outros poetas. Senão que só o diálogo
livresco. Nunca tive nenhum poeta amigo pessoal de grandes con-
vivências. De amizade mesmo. Conheço-os assim meio de longe,
de apontar com o dedo na rua: – “Olha, aquele ali é o Drummond”.
Pois fico de mãos frias diante das pessoas que muito admiro. Por
isso, certa vez, voltei da porta do poeta Manuel Bandeira. Bati na
porta de seu apartamento na Esplanada do Castelo, no Rio – e
fiquei esperando trêmulo de emoção. E como o poeta se demoras-
se a abrir a porta, despenquei correndo pelas escadas, seis ou sete
andares, com o pulso a 120, de certo. Tremi quando me levaram a
Rosa. E tremo ainda hoje para falar com o Millôr. Em livro sou ínti-
mo deles e os converso e os aprovo ou desaprovo e rio com eles.
Essa timidez em mim é intransponível e deve vir de um orgulho
incurável e feio. Para acabar de informar esta parte: o que leio mais
agora são Machado de Assis, a Bíblia e os Dicionários. A mim me
parece, falando ainda do tímido que sou, que esse tipo de gente
tem sempre na frente uma parede. Uma parede que ele não con-
segue transpor. Eu tenho essa parede e desenvolvo uma espécie
de consolo para esse confinamento. Todo mundo pensa que ficar
de frente para uma parede é uma atitude mais pobre. Entretanto
não é. Ficar de frente para uma parede desenvolve no ente um

59
MANOEL DE BARROS

outro sentido. Tem a riqueza de você poder ver essa parede a pon-
to de sê-la. Depende só do tempo que você ficou de frente para ela.
Aos poucos a parede vai transferindo para você a sua (dela) mu-
dez. Então, se a gente adquire a mudez transferida por uma pare-
de, é certo que essa mudez aparecerá nos olhos e na boca. Uma
coisa que ensinará para sempre sua boca a desertos. E isso não é
uma parábola, é o princípio das contradições humanas. Adquire-
se pois um dom de percepção de ínfimos. Vou citar aqui apenas
duas percepções que eu tive hoje por estar de frente para uma
parede. Primeira: “Lagarto espuma verde antes de foder”. Segun-
da: “Agosto estava por um Trevo!” Então muita coisa se pode ver
desse ângulo, inclusive quando as frondes se noturnam...

Vivi em muitas cidades. Mas a única palavra citadina legítima que


consta de meus arquissemas é parede. Raiz de parede é uma coisa
forte em mim. Depois reparei que o cisco das enxurradas se ajun-
tava na raiz das paredes. Então parede há de ser responsável pela
guarda do cisco. Pedi para um amigo meu que é psicanalista para
não entrar de análise nesse negócio, porque tenho medo que apa-
reça um adenoma. Meu Deus, adenoma de alma! As outras dez ou
doze palavras que são meus arquissemas, vêm de minha infância.
São elas: árvore, sapo, lesma, antro, musgo, boca, rã, água, pedra,
caracol. Acho que são as palavras logradas dos nossos armaze-
namentos ancestrais, e que ao fim norteiam o sentido de nossa
escrita. Arqui, derivado do grego arkhós é aquele que comanda.
Essas palavras-chave, portanto, orientam nossos descaminhos.
Orientam nossa obra a fim de que não fujamos de nós mesmos no
escrever. Essas palavras procuram meus poemas, se oferecem no
maior cio, e entram por eles adentro. Tudo para que eu não me
afaste da minha “obscura verdade reprimida” – como já disse
Walter Benjamim. Esses meus arquissemas são da escória mais
pura, coisas mesmo ordinárias, até sem as peças de baixo. Exceto

60
ENCONTROS

boca. Boca é uma greta que tem a raiz no chão. No chão do corpo
onde estão a lascívia, o desejo, a luxúria, o erótico. Mas o que existe
de mim nessas palavras é um bater de asas – e o não escapar. Esse
bater de asas deixa umas nódoas na parede, umas pequenas man-
chas rotas de nós. Poeta em mim é pois um sujeito que se quer
remendar. Ele quer remendar-se, ele quer redimir-se através des-
sas pobres coisas do chão. Escrevemos portanto comandados por
forças atávicas, crípticas, arquetípicas ou genéticas. Assim, Kafka
viu surgir sua arte de um sentimento de desamparo e, em toda a
sua obra, tentou redimir a beleza do fracasso, para redimir-se. Para
remendar-se. Só Beckett não quer redimir nada. Beckett expõe,
com crueldade, seus vermes de chapéu, seus pedaços de gente.
Seu efeito é a pungência em nós. Ele ri de ser pedaços. Gogol foi o
primeiro que tentou redimir o pobre-diabo, esse pobre Akáki
Akakievitch, dando-lhe um lugar na literatura e um secreto amor
por baixo do capote. Charles Chaplin redimiu os vagabundos fa-
zendo do seu Carlitos um deus contemporâneo. O que eu descu-
bro ao fim da minha Estética da Ordinariedade é que eu gostaria
de redimir as pobres coisas do chão. Me parece que olhando pelos
cacos pelos destroços e pela escória eu estaria tentando juntar frag-
mentos de mim mesmo espalhados por aí. Estaria me dando a
unidade perdida. E que obtendo a redenção das pobres coisas eu
estaria obtendo a minha redenção. (Só os fragmentos nos unem?).
Mas o que eu gostaria de dizer é que o chão do Pantanal, o meu
chão, fui encontrar também em Nova York, em Paris, na Itália, etc.
Contarei adiante umas historinhas sobre essas passagens pelas
estranjas, que comprovam de certa forma o gosto por nadeiras. Em
Nova York, onde vivi quase um ano, a maior coisa que vi foi “una
gota de sangre de pato bajo las multiplicaciones”. No ano que es-
tive lá saíra o livro de Lorca Poeta en Nueva York. Comprei o livro e
lá encontrei esse verso da gota de sangue de pato. Madrugada de
boemia o poeta, sob arranha-céus, vira, no asfalto, a gota. Era uma
coisa ínfima, ordinária, mas que cresceu em sua emoção aquela

61
MANOEL DE BARROS

madrugada. Seria a coisa mais infinita para o poeta naquela hora.


Por toda a minha temporada naquela cidade, a mim me pareceu
também a coisa mais soberba. Dou pra moer lírios com o olho tem
dia. Me desculpem. Mas o que dá dimensão às coisas é primeiro a
alma, o olho da alma, e depois a metragem. Outra me aconteceu
em Lisboa. Por uma frincha, no Mosteiro dos Jerônimos, onde fui
conhecer o mausoléu do Frei Heitor Pinto, de quem lera os Comen-
tários aos Profetas Isaías, Ezequiel e Jeremias –, nesse Mosteiro,
uma ervinha crescia sobre as pedras da História. Pelas fendas
medievais a erva irrompia. (Abre-se a pedra para que o verde lha
entre ao dentro?) Aquela pequena planta a sair pelo ventre do
Mosteiro, me lembrou dos caminhos de uma palavra. Quanto tem
uma palavra de romper em consciência e sub-consciência, antes
de chegar ao papel! Pensei tudo isso e fiquei emocionado por toda
a poesia de Fernando Pessoa e de Cesário Verde e de Mário de Sá
Carneiro. Era um a coisinha aquela erva, e que fazia chão no abdô-
men do Mosteiro. Então quero dizer que os meus víveres citadi-
nos, ou civitantes, estão sempre cheios de um ver envesgado, cheio
de vozes de rios e de rãs em minha boca. Também na visita que fiz
à Igreja de São Francisco de Assis, na Úmbria, lá descobri um ca-
derno de rascunho onde o ainda jovem Francesco apontava coisi-
nhas da natureza. Guardei esta: “As estrias de sol que aparecem
nas borboletas demoram cerca de nove horas para desaparece-
rem. É porque, de tarde, as borboletas começam a se preparar para
receber o orvalho da noite, – e pois se escondem sob as frondes.”
São Francisco de Assis já a esse tempo gostava de reparar na natu-
reza. Essa foi a soberba façanha que recolhi na Itália. Em Paris tam-
bém descobri, na Notre Dame, que os gravadores de vitrais da
Idade Média, que eram homens do povo, usavam o silêncio con-
creto como recurso expressional. E, apenas com os reflexos do sol,
os vitrais contavam algumas epifanias e diziam poemas de São
Francisco. Sobre os vitrais da Catedral pude ainda ver uma lesma.
Confesso que eu não era versado em lesma de catedral. Mas ali

62
ENCONTROS

reparei que a gosma da lesma se incorporava bem aos vitrais, que


resplandeciam de uma cor ordinária. Houve um momento que me
pareceu que a lesma e a gosma que ela transportava na barriga
podiam acrescentar àquela obra de arte magnífica uma espessura
do ínfimo. E que isso engrandeceria a Catedral. Mas isso não teve
pertinência, eu creio, – como frondar é pertinência de ser árvore.

Não fujo da glória. Só não sei pegar ela. Para um amigo meu, Carlito
Preto, certo marreteiro daqui propôs: “Carlito, vamos pro Norte do
Estado, lá é que o dinheiro corre...” Carlito não tendo jeito para pegar
no dinheiro, respondeu: “Quá! pois aqui que o dinheiro está para-
do eu não pego nele, quanto mais lá que ele corre...” Ao Carlito, lhe
falta jeito para pegar na gaita. A mim me falta jeito para pegar na
glória. Ela corre muito e fica no alto. Eu trato com trastes. E contras-
tes. Pra mim, ardentes são as coisas desimportantes. Mas gosto
quando falam sobre minha poesia. Incho de orgulho. Igual aquele
sapo que estava no brejo, veio um boi e lhe pôs a pata por cima.
Outro amigo vendo esse sapo apertado pergunta: “Quê está fa-
zendo aí Seo Sapo?” “Tô peando esse boi”, respondeu. Penso que
sou qual o sapo. Estufo muito e disfarço. Orgulho estufa e desde-
nha honrarias. Está no Livro. E este esquivar-se de falcão, só que-
rendo estar livre para os vôos, – é o pior orgulho. Ele quer dizer
assim: eu sou esquivo porque posso ser esquivo; porque não que-
ro estar à mão de ninguém e não dependo de ninguém – sendo
esse o orgulhar-se mais refinado. Que se disfarça com a máscara da
virtude oposta, ou seja, da humildade. Então, em verdade, esse
negócio de dizer eu só aguento o esquecimento é maneira de se
exaltar. Esse desejo de apagar-se é, no fundo, um incêndio de or-
gulho. Preciso sempre de fazer essa catarse. Mas na verdade eu
não tenho uma ideia clara sobre isso. Aliás eu não tenho uma ideia
clara sobre nada. Sou uma coisa da natureza, como uma árvore. Me
guio pelo faro. Não serei nunca um poeta cerebral. Tenho um

63
MANOEL DE BARROS

substrato de ambiguidades e disfarces em mim. Uma semente


genética de desencontros que veio desaguar nessa esquisita coisa
de ter orgasmo com as palavras. Tudo que repercute em mim de
fora, faz alguma alquimia verbal onde me espojo. Acabo que sou
repetidor de mim por isso. Não tenho forças para desencostar-me.
E tudo que falo é sempre de mim que falo. Mas voltando à sua
pergunta se seria por medo ou por tática poética que me escondo,
digo que é por medo. Sempre publicava meus livros no Rio, me
sentia um pouco desonrado, e corria para o Pantanal, com medo
de não acontecer nada. O que acontecia. Isto é: não acontecer nada.
Aí eu ficava ferido, mal ferido, mal atirado, como um animal selva-
gem, e corria a fazer mais artes, agora com raiva, com despeito, res-
sentido. Esse ressentimento é que nutre meu tesão de escrever. É
um gosto adstringente e ardido. Um gosto de vez e de acme. Acho
que se eu pegasse a glória, ficaria envaidecido, inchado, e talvez
parasse para contemplar-me. Ou ficasse lendo o que fiz para o res-
to da vida. Não é assim que os que se sentem realizados fazem?
Daí, nunca mais que eu iria descobrir esta coisa que eu descobri
hoje, que as “lagartixas piscam para as moscas antes de havê-las”.
E nem nunca mais eu iria sentir que “andar perante corgos abre
arpejos”. Meu gozo e meu gemer é no fazer. Esse fazer que vem
mais de sânie do que de saúde. Que é um fazer solitário e
estercorário – onde entram harpas, sapos, trolhas e o ovo do sol.

Não tenho método nem métodos. Se estou em estado de ânimo,


vou enchendo uns cadernos com idioma escrito. Anoto tudo. Se
encontro um caracol passeando na parede, anoto. Uma coisa ve-
getal que nasce no abdômen de um muro anoto. Falas de bêbados
e de crianças. Resíduos arcaicos pregados na língua. Pedaços de
coisas penduradas no ralo. Os relevos do insignificante. A solidão
de Vivaldi. Corolas genitais. Estafermos com indícios de árvore.
Vespas com olho de lã. Homem na mesa interrompido por uma faca.

64
ENCONTROS

Pessoas afetadas de inúteis e de limos. Ovuras de larvas transpa-


rentes mas antes de serem ideias. Desvios fonéticos, semânticos,
estruturais, achados em leituras. Pessoas promíscuas de águas e
pedras. Uma frase encontrada em Guimarães Rosa: “A poesia nas-
ce de modificações das realidades linguísticas”. Para o poeta essa
frase é uma epifania. Anoto guardadores de teriscos (mistura de
teréns com cisco). Pessoas que têm gala em seu amanhecer. O osso
de uma fala minada de harpas. Ponho no caderno tudo que habita
à minha beira. Hesíodo. Lama gemente e ávida. Um útero de la-
nhos brancos. O próprio viveiro de ínfimos. Um canteiro de vermes
estrábicos. No meu caderno, a lua encosta uma casa no morro – e
a dorme. Existem muitas mágicas desse tipo. No começo era o ver-
bo. O verbo era sem sujeito. Depois vieram as borboletas, as pros-
titutas e as virtudes teologais. Pintavam coisas rupestres com
bisons. A esse tempo nem os Persas e nem os Medas conheciam
bem os despejos dos esgotos. Esperavam Homero. Homens entra-
vam e saiam dos crepúsculos carregando pedras para fazer pirâ-
mides. O verbo foi-se encarnando. Hoje o homem tem partes com
peixe. E estuda a perfeição de seus aniquilamentos. Também eu
ponho no caderno trastes, pregos enferrujados, formigas
carregadeiras. Se a arte é o homem acrescentado à Natureza –
como escrevia Van Gogh a seu irmão Théo –, eu preciso de desreinar
também. Preciso de ser de outros reinos: o da água, o das pedras,
o do sapo. Tudo isso botava névoas no meu caderno. Ali até se
enfecavam patos. Esse chão de poleiro perturba a ordem gramati-
cal e o entendimento entre os homens. Anoto tropos. Palavras que
normalmente se rejeitam, eu caso, eu himeneio. Contigüidades
anômalas, seguro com letras marcadas em meu caderno. De re-
pente uma palavra me reconhece, me chama, me oferece. Eu babo
nela. Me alimento. Começo a sentir que todos aqueles apontamen-
tos têm a ver comigo. Que saíram dos meus estratos míticos. As
palavras querem me ser. Dou-lhes à boca o áspero. Tiro-lhes o ver-
niz e os voos metafísicos. Corto o desejo de se exibirem às minhas

65
MANOEL DE BARROS

custas. As palavras compridas se devem cortar como nós de lacraia.


O verso balança melhor com palavras curtas. Os ritmos são mais
variados se você trabalhar com dissílabos, com monossílabos.
Exemplo: “Parou bem de frente pra tarde um tordo torto.” São 30,
são 50 cadernos de caos. Preciso administrar esse caos. Preciso
imprimir vontade estética sobre esse material. Não acho a clave, o
tom de entrada. Não acho o tempero que me apraz. O ritmo não
entra. Há um primeiro desânimo. Aparecem coisas faltando. Um
nariz sem venta. Um olho sem lua. Uma frase, sem lado. Procuro as
partes em outros cadernos. Dou com aquele caracol subindo na
escada. Era aquele mesmo, do primeiro caderno, que então pas-
seava uma parede. Percebo que existe uma unidade existencial
nos apontamentos. Uma experiência humana que se expõe aos
pedaços. Preciso compor os pedaços. Meus cadernos começam a
criar nódoas, cabelos. As ervas sobem neles. Certas palavras estão
doentes de mim. Minhas rupturas estão expostas. Quem pode res-
ponder pelas rupturas de um poeta senão a sua linguagem? Tenho
que domar a matéria. O assunto não pode subir no poema como
erva. Desprezo o real porque ele exclui a fantasia. O erotismo do
chão se enraíza na boca. Aproveito do povo sintaxes tortas. Guardo
sugestões de leituras. Estruturo os versos. E só dou por acabado
um poema, se a linguagem conteve o assunto nas suas devidas
encolhas. As nossas particularidades só podem ser universais se
comandadas pela linguagem. Subjugadas por um estilo. E isso é
tão velho como abrir janelas. Acho, por fim, que jamais alcançare-
mos o veio da criação. As palavras embromam em vez de aclarar. O
poço está cada vez mais escuro e mais fundo. Até a eternidade.
Amém.

A garça aguça o pescoço para ouvir os perfumes do arroio. Certos


adágios me dão ideia do arroio; outros me dão ideia de cristal –
conforme sejam escritos por Chopin ou Mozart. Há uns répteis que

66
ENCONTROS

não têm príncipe, segundo profeta Abacuc. Esses esfregarão a


barriga na terra. Tenho um amigo, andejo, nordestino da peste e
da gota, Chico Miranda, que um dia lendo coisas de minha veia,
exclamou: “Viva a ascensão do restolho!” A frase teve duas leitu-
ras. Uma delas marxista. O leitor ideológico pensou – Viva a ascen-
são do proletariado, dos humilhados e ofendidos, dos pobres-dia-
bos. A gente estava em tempos de repressão e os poetas saíam por
tropos. Mas a outra leitura era rasa e chã. Era mais poética do que
a política. Era inocente e sem mistura. Nela o restolho era mesmo
o cisco, o telho, o restolho. Vistas de um olho anômalo, que é o olho
com que os poetas enxergam as coisas, aquele restolho estaria es-
crito em pauta errada. E a pauta errada seria a única pauta confiável
de um poeta. Para o meu amigo, o nordestino da peste, o Chico
Miranda, aquela ascensão seria a ascensão da lesma. Da lesma
que anda esfregando na escória sua vagínula libidinosa. E tam-
bém a ascensão do réptil sem príncipe do profeta Abacuc. Pois
andarejo outro, esse de arrebol, esse do Pantanal, contou-me que
via albas em conchas. Ele era incorrido em conchas e via bem as
albas nelas. E ensinava aos meninos que o seguiam que bastava
encostar o rosto na terra que a gente escutava os cantos. Porque
todo chão é concha . E tudo que vem de fundo de uma concha,
quando nada, é alba. Porém o que a gente escutava eram formas
enfermas do escuro. Foi assim que Bashô pode ouvir a “voz do pato
vagamente branca.” Assim que Shakespeare pode ver um “homem
montado no cavalo do vento.” Assim que Maiakovski pode ver uma
“nuvem de calças”. Eles usaram o olho anômalo que os poetas usam.
E escreveram em pauta anormal. Esse olho anômalo verá uma lua
encravada na vespa. Verá um inseto seminal borrando seus ver-
bos. A pintura da voz nas pedras. Corolas genitais desenvolvidas
em monturos. Fendas carnívoras de moscas. Formigas carregando
pedaços de couro para o seu azedal. E por baixo do couro as
sevandijas fervilhando... O olho anômalo do poeta estará voltado
para as coisas que não alcandoram. Daqui o que eu vejo é a mosca.

67
MANOEL DE BARROS

E vejo os caracóis a passear sobre os muros cariados. “Subir com as


mãos vazias” é um satori Zen. Acho que vou subir com as mãos
vazias. Poesia pode ser que seja fazer outro mundo. “Eu sou a vi-
deira, vós outros a vara; o que permanecer em mim dará frutos.”
Cristo está falando de um mundo novo que ele concebeu. Seu
mundo poético, particular, de onde suas palavras nascem ungidas
dele, de seus desejos, de sua carga genética milenar, dos Moisés,
dos Abraãos, dos profetas. Nascerá de sua boca um texto místico,
um subtexto carregado de eflúvios. Suas palavras se elevarão até
o sagrado. Penso que as palavras, vindas de um olho anômalo de
poeta, podem sagrar também a lesma. Podem sagrar a palavra
caracóis. E o restolho terá ascensão. A boca estará ardente de chão.
E as albas serão ouvidas em conchas. Minha roupa é o musgo. Re-
vestir seres vivos é o sonho do musgo.

Encontrei Rosa no Pantanal. Andamos para ver a roça de mandio-


ca. Tatu estraga muito as roças por aqui. “Há muito tatu, Manoel?”
Eles fazem buraco por baixo do pau-a-pique, varam pra dentro da
roça, revolvem tudo e comem as raízes. Remédio contra tatu é
formicida. Fura-se o ovo, bota formicida dentro e esquece ele lar-
gado no solo da roça. Rolinha passa por cima e nem liga. Mas o tatu
espuga, vem e bebe o ovo. Sente a fisgada da morte num átimo e
sai de cabeça baixa, de trote para o cerrado, pensando na morte...
Homem é igual. Quando descobre sua precariedade, abaixa a ca-
beça. Já sabe que carrega sua morte dentro, seu formicida. “Essa é
nossa condição”, Rosa me disse. Falou: “eu escondo de mim a mor-
te, Manoel. Disfarço ela. Lembra o livro do nosso Álvaro Moreira? A
vida é de cabeça baixa... Deveria de não ser”, ele disse. Chegamos
perto da metafísica. E voltamos. Havia araras. Havia o caramujo
perto de uma árvore. Ele disse: “Habemos lesma, Manoel.” Eu dis-
se: “Caramujo é que ajuda árvore crescer.” Ele riu. Relvas cresciam
nas palavras e na terra. Rosa escutava as coisas. Escutava o luar

68
ENCONTROS

comendo árvores. “E, como é o homem aqui, Manoel?” Eu fui fa-


lando nervoso. Ele queria me especular. O homem se completa com
os bichos – eu disse – com os seus marandovás e com as suas águas.
Esse ermo cria motucas. Por aqui não existem ruínas de civiliza-
ções para o homem passear dentro delas. Só bichos e águas e árvo-
res para a gente ver. Não tem coisas de argamassa, ferragens
destripadas do deserto, essas coisas que aparecem nos relentos
da Europa. Aqui é brejo boi e cerrado. E anta que assobia sem bar-
ba e sem banheiro. Rosa me olhou de esguelha. “E árvore, Manoel?
O nome de algumas, você me dará?” Aqui o que sabemos é por ins-
tinto e por apalpos. Não é como o Sr. faz com as palavras. Ele me
olhou mais ao fundo. “Como sabe que eu mexo com as palavras?
Você é daqui, Manoel?” Sou pantaneiro de chapa e cruz. Sou puro
de corixo e de vazantes: Ele quis me descobrir. Me empedrei. Quer
saber qual o nome que tal árvore tem aqui. Quer saber o nome
daquele passarinho que pula no brejo, cor de café, e como é que
ele canta. A gente só sabe essas coisas por eflúvios, por ruídos, pelo
faro. Mas sempre se pode errar pelo faro. Pensa que vai dar na
gariroba e dá no guaviral. A gente não sabe o cultural desses entes
de folha ou de asa. Só se sabe o natural. O que se vê. A cor do ovo
que botam, o duro do voo, a casca, a resina, os excrementos. Aqui
toda árvore a gente chama pé-de-pau. Menos aquelas de fazer
cerca, madeira de lei, vinhático, aroeira, piqui, piúva. E mais aque-
las de onde se tira medicina: para-tudo, nó de cachorro, mangava-
brava. E mais as qualidades de mel que dá no pé-de-pau: jati,
manduri, borá, d’oropa, sanharão, mandaguari, arichiguana . “E
passarinho, Manoel?” Rosa me especulava por trás do couro, como
quem sonda urubu. Queria saber de um tudo. De avoador, eu dis-
se, só urubu, garça, carcará – esses pássaros grandes. O resto qua-
se é inominado. Passarinho pequeno é passarinho à-toa. Rosa sa-
bia essas coisas, só estava me sondando. Falei para ele. Isso é como
a gente não saber o nome de todas as pessoas que vão atravessan-
do o Viaduto do Chá. Rosa estrelou sua risada. “É isso mesmo,

69
MANOEL DE BARROS

Manoel. É tanta gente que não se sabe o nome. E passarinho é gente


daqui. E o tordo, qual é a letra do canto que ele canta? A música eu
sei de cor, mas a letras eu não sei”, ele disse. A letra é assim: primo
com prima não faz mal, finca, finca...“Oi tordo erótico, Manoel. Os
lá de Minas têm mais compostura”, ele disse. E sapo, lá tem de-
mais? eu perguntei. “Tem quase menos que por aqui”, ele disse,
“mas os poucos que tem lá cantam mais bonito.” Queria me desa-
fiar. Eu disse: mas, Rosa, pode reparar uma coisa: no canto do nos-
so sapo tem uma curva luminosa. Rosa gostou. Nossa conversa era
desse feitio. Ele inventava coisas de Cordisburgo, eu inventava
coisas do Pantanal. Rosa andou por aqui em junho de 1953. Já havia
publicado Sagarana e estava consagrado. Não tinha fim a sua cu-
riosidade. Dava ares de um Rei, às vezes. Mas o rosto merecia anjo.
Eu tinha informações de seu gosto por línguas, idiomas. Traçava
até línguas arrevezadas: checo, grego, aramaico, sei lá. Queria sa-
ber guarani. Foi no caderno , virou, virou, me perguntou. “Manoel,
que quer dizer não tem nhamonguetá nem bugerê?” Tentei tradu-
zir. Quer dizer: não tem conversa nem vira de lado. Isso é guaranês;
falei de orelhada. Mas Rosa quer saber a origem, quer saber a ex-
plicação. Rosa se aplica nas palavras com o fundo indagar. Fica
imaginando. Recorre a outras línguas de raízes tupi. Faz desenhos
de letras no caderno. Excogita. Disse pra ele que o Pantanal quase
teve um dialeto. Muitos anos os moradores ficaram isolados. Isto
se fez uma ilha linguística. Palavras sofriam erosões morfológicas
ou semânticas. Outras eram criadas. E algumas sumiam por serem
de cidade. “Por exemplo, Manoel, uma palavra que sofreu erosão?”
Aqui se mata uma capivara para comer e a primeira coisa que se faz
é tirar da capivara a misca. A misca é uma catinga, um cheiro forte
localizado no lombo da capivara. Muitos anos vivi com essa pala-
vra, e agora sei. Rosa disse: “vem de almíscar, né?” Sim, vem de
almíscar. Almíscar sofreu uma erosão nas duas margens e virou
misca. De palavra o Rosa sabe tudo. E me explicou: “almíscar é uma
substância odorífera...” etc. “E porque não se completou o dialeto,

70
ENCONTROS

Manoel?” A ilha não é mais ilha. Agora caminhão atravessa, fordeco,


avião. Mascate chega de carro, e o rádio desemboca músicas e falas
estranhas. “Pode me dizer alguma expressão que ficou do dialeto,
alguma invenção?” O verbo clarear, por exemplo. Aqui ele tomou um
outro significado. Assim: clarear de uma pessoa é fugir dela. A ex-
pressão vem de quando, nas corridas de cavalo, aquele que vai na
frente, avança mais de um corpo sobre o outro. Se avança mais de
um corpo, o cavalo faz luz dele para o outro. Quer dizer: clareia do
outro. Para dizer que deixou a namorada, se fala: clareei dela. Rosa
acha que se obedeceram as leis da formação de uma língua. Quis
saber, ele, ainda, de meus receios sobre as confusões com o exóti-
co. Falei, falei demais espichei. Um superficial para só se ver e ba-
ter chapa. Mesmo os que cantavam em prosa e verso ficavam enu-
merando bichos, carandás, jacarés, seriemas; e que essa enume-
ração não transmite a essência do Pantanal, porém só sua aparên-
cia. Havia o perigo de se afundar no puro natural, etc. precisamos
de um escritor como você, Rosa, para freiar com a sua estética, com
a sua linguagem calibrada, os excessos de natural. Temos que
enlouquecer o nosso verbo, adoece-lo de nós, a ponto que esse
verbo possa transfigurar a natureza. Humanizá-la. Rosa fez tudo
isso. Alguns anos depois deu a público o seu Com o Vaqueiro
Mariano, um livro intenso de poesia e de transfigurações. Dele
recebi um exemplar dedicado – “Olha aí, Manoel, sem folclore nem
exotismos – como você queria.” Só vi Guimarães Rosa outras vezes
na Divisão de Fronteiras do Itamarati e em sua posse na Academia,
três dias antes de morrer. A morte que levava no corpo. E que nem
pôde dessa vez esconder-se dela... Esse gênio eu conheci e tenho
orgulho disso.

O Pantanal está nas palavras. Palavras têm sedimentos. Têm boa


cópia de lodo, usos do povo, cheiros da infância, permanências por
antros, ancestralidades, bostas de morcegos, etc. Não vou encos-

71
MANOEL DE BARROS

tar as palavras lesma, sapo, águas, etc. Pois elas são meus espe-
lhos. Sou o narciso delas. A lesma que aparece repetidamente em
meus escritos é uma coisa voraz que tem sempre a carne pregada
em algum delírio meu. Águas são fêmeas de chão. E ambos, água
e chão, merecem o gosto de se entrarem. Também árvore tem atra-
ção por rios e por águas. Merecem o gosto de se darem. Meu olho
entra nas águas sem roupa. Há que se por ao pé da árvore, que é
um ser feminino, – o sapo, que é um ser masculino. Um sapo, uma
trolha ou um trem qualquer de pau. No texto, esse balanço macho
vs fêmea, segundo Bachelard, produz a melhor poesia. Sinto que
ainda sou capaz de fazer semânticas sobre o ordinário. Lagartas
cegas comem fezes. Pessoas apropriadas ao desprezo me sedu-
zem. Tive o cheiro de nascer entre árvores. O som de um lodo em
êxtase me persegue. Quem tem vocabulário parco tem que substi-
tuir uns termos por miúdas mágicas. Boto rios no bolso. Prendo si-
lêncios com fivela. Nascem cabelos em paredes, etc. Faço confiança
nesses fazeres de ir descascando as palavras. E, como chegar ao
caroço, ao lírio seminal de cada uma? Como encontrar as funções
todas de uma palavra? Assim é o homem neste desolo. Nunca se vê
completo. Há uma força bugral de indigência em mim que só
aguenta espiar de cócoras. Sem agir. Não gosto de aprender novi-
dades. Só quero repisar nos termos que me sejam. Resta sempre
uma verdez primal em cada palavra. Cada palavra pode ser o ger-
me de uma obscura existência. Fernando Pessoa deu à palavra
porradas uma espécie pungente que ficará enquanto existir a lín-
gua portuguesa. “Nunca conheci quem tivesse levado porrada /
Todos os meus amigos têm sido campeões em tudo(...) todos eles
príncipes....” Cada espessura de uma palavra pode conter um la-
nho, um exílio, uma vileza. Independente da verdade – e até con-
tra ela – o do que gosto mais é de fazer frase ao dente. Troco isso por
verdades científicas. E volto soma. Mistério tem mais camadas que
a ciência. Os arcanos florescem...

72
ENCONTROS

Não há, nunca existiu, em mim, deliberado afastamento dos gran-


des centros e dos círculos literários. Quando meu pai morreu, em
1949, ficaram-me de herança umas terras no Pantanal de
Corumbá. Meu primeiro impulso foi vender aquelas terras pra fi-
car no Rio. Mas minha mulher, que é filha de fazendeiros de Minas,
me convenceu do contrário, e propôs vir comigo enfrentar o Panta-
nal, e fundar nossa fazenda. Deixamos o grande centro e por aqui
ficamos. Não foi difícil para a raiz pregar-se de novo na terra de
origem. Ela, a raiz, no Rio estava plantada em vaso raso. Chegou
então em sua terra e se deu bem. Meu isolamento literário já exis-
tia, mesmo vivendo nos grandes centros. Ele é fruto das sem-
graceiras do meu temperamento. Urbanos ou não, estamos liga-
dos fisiologicamente à mãe-terra. Ao nosso quintal. Ao quintal da
nossa infância – com direito a árvores rios e passarinhos. O poeta
promana desses marulhos. Nossa infância, explicou mestre Gil-
berto Freyre, ainda vai dar canga-pés nos ribeiros por muitos sécu-
los. Nossos centros urbanos ainda não proíbem rios de correr e de
ter peixes. E nem irão proibir que relvas cresçam do chão. Água e
chão amorosamente entram-se. O poeta se escura em natureza. E
será um escravo da terra, fisiologicamente. Sendo essa uma escra-
vidão redentora.

Um desvio no verbo pode produzir um assombro poético. Enquan-


to existir a força da indulgência vegetal em alguém, – essa força
comandará a linguagem desse ente para uma poesia sem máqui-
na. Porque ele não saberá mexer com máquina. Seria uma coisa
primal, é claro, mas seria uma força da natureza. Buscar contigüida-
des anômalas. Enverbar as insânias. Derrubar talvez das frases um
pouco do insigne e lhes enfiar o ordinário dentro. Enfiar o idioma
nos mosquitos – me repetindo.

73
MANOEL DE BARROS

Entre o poeta e a natureza ocorre uma eucaristia. Uma transubs-


tanciação. Encostado no corpo da natureza o poeta perde sua li-
berdade de pensar e de julgar. Sua relação com a natureza é agora
de inocência e erotismo. Ele vira um apêndice. Restará preso ao
corpo, às lascívias, ao vulgar, ao comum, ao ordinário. É nesse sen-
tido transnominal que eu uso a palavra ordinário. Por daí que se
pode dizer que as palavras de um poeta vêm adoecidas dele, de
suas raízes, de suas tripas, de seus desejos. Ao leitor não resta que
se incorporar. “O ordinário é uma auto-renúncia a favor do natu-
ral.” (Li isso de Goethe, através de Thomas Mann).

Caracol é uma solidão que anda na parede. Aquele Erik Satie era
um ser de irreverências que andava com desertos. Depois que o
meu amigo Ênio Silveira escreveu sobre a música dele e minha
poesia, depois é que fui ouvir Satie. É sim meio moleca e meio Tre-
vo aquela música. Há uma peça de Satie que se chama Trechos em
forma de pêra, que eu cobicei tanto para título de um livro meu. Mas
ele achou primeiro... Sou mais chegado a Bach, Brahms, mas isso é
tão de momento! Tem hora sou Cartola, tem hora Lupicínio
Rodrigues, tem hora Bezerra da Silva. Sou um ouvidor sem nível.

Eu tenho nostalgia do aventureiro nômade, que eu nunca fui. Sou


isso só de livro. Esse aventureiro anda agarrado em minhas pala-
vras como craca. Quando uma palavra obtém um lado do poeta é
que essa palavra está suja dele, de seus abismos, de sua infância,
de seus escuros. Na infância eu conheci um Mário-pega-sapo, que
tinha uma voz brenhenta e só era entendido pelas crianças e as
putas de jardim. Eu era criança e o entendia. Esse ente me rendia
encantos e estranhezas. Nunca mais pude esquecê-lo. Em toda a
minha obra ele anda ainda com aqueles bolsos cheios de jias. Está
no louco de água e estandarte. Está naquele João que desenhava

74
ENCONTROS

Eu tenho nostalgia do
aventureiro nômade, que eu
nunca fui. Sou isso só de
livro. Esse aventureiro anda
agarrado em minhas palavras
como craca. Quando uma
palavra obtém um lado do
poeta é que essa palavra está
suja dele, de seus abismos, de
sua infância, de seus escuros.

75
MANOEL DE BARROS

no esconso e tinha o rosto trancado com dobradiças de ferro para


não entrar cachorro. Está no moço que criava peixes na mão. Está
no outro que não podia atravessar a rua sem apodrecer. Naquele
ainda outro que batia continências para mosca. Está nos meninos
ramificados de rios que me chama, etc. etc. Em todos os meus ver-
sos ele está, esse andarilho, sendo sempre um rascunho de pássa-
ro que não acabaram de fazer – como lembra Joel Pizzini no filme
Caramujo-flor.

Bernardo da Mata é um bandarra velho, andejo, fazedor de ama-


nhecer e benzedor de águas. Ele aduba os escuros do chão, con-
versa pelo olho e escuta pelas pernas como os grilos. Ele é o que
falta para árvore ser gente. Ele mora em minha fazenda, em cujo
quintal montou uma Oficina de Transfazer Natureza. Na Oficina,
Bernardo constrói objetos lúdicos, fivela de prender silêncio, apa-
relhos de ser inútil, beija-flor de rodas vermelhas, etc. Coisas que
estão expostas no livro. Agora ele está perdendo o contorno das
folhas. Outro dia me disse que encontrou canoas encalhadas em
avestruzes. Que benzeu a osga. Admito que ele seja uma mistura
de avena e urgo.

De jeito maneira que não me incomoda que me associem à ecolo-


gia. Com esta natureza exuberante que tem o Pantanal é que eu
luto. Luto para não ser engolido por essa exuberância. Às vezes a
linguagem se desbraga; então é abotoá-la. Fechá-la nas bragui-
lhas. Fazer que se componha. Difícil é compor a exuberância. Ela
escorre, é água. Escorrega, é lama. Apodrece, é brejo. Mas o artista
tem que podar essa exuberância, tem que contê-la nas bragas, com
vontade estética, numa linguagem com estacas. A expressão poe-
ta pantaneiro parece que me quer folclórico. Parece que não con-
templa meu esforço linguístico. A expressão me deixa circunstan-

76
ENCONTROS

ciado. Não tenho em mente trazer contribuição para o acervo fol-


clórico do Pantanal. Meu negócio é com a palavra. Meu negócio e
descascar as palavras, se possível, até a mais lírica semente delas.
Nem uma, porém, se me entregou de nudez ainda.

77
MANOEL DE BARROS

Penso que o poeta pode e


deve ser político. Mas a sua
poesia não. Poesia não
aguenta ideias. Verso não
precisa dar noção. Precisa
iluminar o silêncio das
coisas. Poesia não tem
cânone. É igual a açucena.

78
ENCONTROS

Penso que o poeta pode e deve ser político. Mas a sua poesia não.
Poesia não aguenta ideias. Verso não precisa dar noção. Precisa ilu-
minar o silêncio das coisas. Poesia não tem cânone. É igual a
açucena.

Sou homem crente, mas não frequentador de missa. Não há nada


que tenha mais densidade que o mistério. O mistério é que ali-
menta o poeta. O cientista é sempre um sujeito atrasado, porque
pensa que já descobriu tudo. O mistério tem camadas infinitas e a
ciência não. De repente “dá na pedra”, como se diz no Pantanal. E
o poeta não pode dar na pedra. O verdadeiro cientista, como
Einstein, conhece os limites. Os pseudo-cientistas, aqueles é que
são metidos a bestas. O homem despojado de mistérios vira um
cientificista desses. Deus é algo sem limite. Eu sou absolutamen-
te crente de que Jesus foi um grande poeta, da intuição divina. É
nesse sentido que eu formulo a religião. Jesus nunca teve biblio-
teca e teve uma compreensão da natureza humana que nem
Shakespeare teve.

Meus livros têm sempre uns 400 versos, ou em torno disso. Já cavei
para este novo uns 350 versos. O livro se chama Concerto a céu aber-
to para solos de ave. Acho esse título meio sideral demais para quem
vê êxtase no cisco. O livro seria a extasia de um ancião por coisas
desimportantes. Um ancião que por fastio vai morar numa árvore.
E depois de alguns anos vivendo na árvore começa a dizer coisas
sem tino. Assim: “Abelhas novembras murmuram meu olho / Eu vi
uma água viciada em mar / Colavam anêmonas no sol”. Etc. Nin-
guém sabia se era loucura das palavras ou se vareios de um ancião
que começava a cessar. Eu também não sei. Ele escutava perfu-
mes do rio na voz dos pássaros. E via a tarde correndo dos cachor-
ros... Coisas desse pendor. Ele morreu nu. Os pássaros levaram

79
MANOEL DE BARROS

pedaços esgarçados de suas roupas. Os versos foram escritos na


primeira pessoa. Beckett disse que escrever na primeira pessoa é
o primeiro passo na direção do silêncio. Penso que as metamorfo-
ses se tinham completado naquele ancião. Agora ele vai andar de
barriga na terra? Ou vai de avoar?

Assisti, ainda jovem, a uma exposição de Portinari, no prédio do


antigo Ministério da Educação, no Rio, quando o Rio era ainda Ca-
pital Federal. A exposição constava de esboços de um peixe, que o
artista, aos poucos, ia deformando. Eram cinquenta peixes, ao todo.
O primeiro peixe só faltava nadar. Seria uma cópia da natureza. Na
sequência, lá pelo 25º esboço, o artista alcançou o não-peixe.
Portinari então iniciaria sua obra de arte a partir do não-peixe.
Começava a propor seus caminhos até atingir não um peixe qual-
quer, mas o seu peixe. Uma outra coisa. Uma obra de arte. Um ente
de linguagem. De outro modo, em Miró, por exemplo, uma nódoa
de mosca na tela podia ser o início de um amanhecer. Acredito que
certos escultores costumam partir dos defeitos de uma pedra para
chegar ao seu ente de linguagem: um objeto onde ele, o artista,
esteja posto em sangue e emoções. Acho saudável ao poeta partir
do inominável, da primeira fala engrolada, dos mistérios iniciais
com que a ignorância nos brinda, – partir desse ponto para a cria-
ção do poema. Então, reaprender a errar a língua seria encostar-se
de novo nos germínios da fala. Começar do início da voz. E esse
privilégio de chegar no início da voz, ao seu primeiro balbucio, –
esse privilégio é dos poetas. Reaprender a errar a língua foi uma
expressão que me pareceu boa para dizer dessas natências. As
palavras que cheguem banhadas de nossas natências, é certo que
chegarão molhadas de nós, merejando.

80
ENCONTROS

Me perguntam sobre minha preferência por caracóis. E eu, deve-


ras, deveras mesmo, o que sei dos caracóis é que são enrolados. A
palavra é árabe, ou vem do árabe, e quer dizer mesmo enrolado.
Vem de karkara, que é voltear, tornear, em árabe. Sei também que
a espiral de sua concha é um símbolo de eterna renovação. Sendo
também coisa erótica. Espécie de um bicho contráctil, que se es-
conde ao primeiro toque, mas se alguém lhe acaricia os pêlos, a
lesma mija. Sempre inventei coisas para explicar o meu gosto por
esses bichinhos. Penso que as verdades que invento sobre eles
são mais verdadeiras que as da enciclopédia. Essas róseas conchas
na verdade me entregam às suas lesmas. E eu enfio nelas com unção
as minhas palavras. Eu também não sei por que tenho essa fixa-
ção. A lesma, ela tem uma luxúria do ínfimo. Ela bem poderia dizer:
eu dou às coisas do chão o meu orvalho, a minha vagina lenta. Eu
passeio sem calças sobre as coisas. Eu sou o sexo da borra. E posso
inventar outros volteios para explicar meu gosto por caracóis. Que
pois o caracol , com a sua casa às costas, divulgue meus hábitos de
andarilho. De andarilho estático. Esse ente que viaja para dentro,
e é capaz de viscosidades, pois. Até nas minhas frases a gosma se
prega. Um dia, como poeta, precisei de compor uma parede para
um caramujo. O caramujo me seguia em sonho e cantos. Fiz uma
parede ascética para ele; Mas ele queria uma parede suja. Queria
uma parede cariada. Descobri que é nas escórias que o caramujo
alimenta as suas fantasias. Custei muito para descobrir isso. Pre-
cisei quase até de usar fita métrica. A chuva e o tempo logo fizeram
aquela parede apodrecer. Então era o verbo desabrochar dos
caramujos nela. Sementavam de muda!

Eu escrevo com o corpo. Eu tiro a poesia do chão e do andrajo. Isso


trompa. Escrevo na contramão, como minha querida amiga Berta
Waldman disse. Ela sabe das coisas. Sabe de um sabor particular
que eu tenho de me encostar nas coisas do chão sem nome e sem

81
MANOEL DE BARROS

glória. Andar nessa contravia trompa mesmo e pode estragar a fes-


ta. Seria assim como o célebre episódio do estudante assírio, con-
tado por Buñuel. Tudo arrumado, na festa. Os vinhos, o bolo, as
frutas sobre a mesa, mulheres elegantes, senhores de fraque, an-
fitriões de gala, sorrisos, convidados de alamares, etc. Tudo cor-
rendo aos encantos, dentro do figurino. Nisso entra o estudante
assírio, se encosta na tábua da mesa, retira seus testículos e os cor-
ta com a faca de cortar bolo. Caminha com os testículos nas mãos e
vai oferecê-los à dona da festa. Inclusive pingava sangue do escroto
na sala. Não é muito comum oferecer testículos à dona da casa. O
gesto do estudante assustou a burguesia. Mas parece que foi sau-
dável depois.

O Antonio Houaiss é filólogo, mesmo. Eu não sou filólogo e nunca


me apliquei nessa ciência. Não sei de etnografia nem das raízes do
nosso idioma, sequer. Sou fraco de latim e não sei grego etc., que
seriam estudos básicos para um filólogo. O que eu tenho é um bom
instinto para a nossa língua, e um gosto especial em acompanhar
as viagens das palavras pelos tempos e pela criação dos escritores.
Gosto de acompanhar os desvios das palavras, algumas obscuras
modificações que sofrem, erosões morfológicas ou semânticas. Os
filólogos se aplicam cientificamente em descobrir a origem das
palavras. Eu, não. Eu já pego carona com eles. Toco de ouvido e a
pedradas. Nem sei a língua dos aranquãs. Nem sei a língua dos
aranquãs, quanto mais a dos povos. Gosto é de filologar. Quase
que filologar me sugere passear por sobre a filologia. Gostei de ler
esses dias o Dicionário de asneiras, do Padre Bacelar. Pois ele desco-
briu que:

Anágua – é saia de andar na água;


Derrear – é botar o lombo a ré;
Barboleta – é é inseto de barba.

82
ENCONTROS

Assim por diante. Gosto de esbarrar de susto ante uma palavra


alterada e ficar admirado com os seus vareios. Esse seria um prazer
torto? De repente acho em Camilo a palavra trolha, aplicada por
umas tripeiras do Minho, para designar pessoas vadias, estafer-
mos. Essa palavra teria designado antes, instrumento de pedrei-
ro, depois o próprio pedreiro e depois o meia-colher. E chega hoje,
ao Brasil. Leio essa palavra no Pasquim a designar o órgão sexual do
homem. Como foi isso? Seria pelo aspecto físico da palavra? Seria
efeito de uma contaminação toante de trolha com rolha? Seria por-
que ambas designam coisas que servem para tampar? Agora des-
cubro no Dicionário de palavrões de Mário Souto Maior que trolha já
vem a pênis, desde o Sul e no Rio de Janeiro. Que caminhos percor-
reu essa trolha para chegar a pênis! Guimarães Rosa tem uma frase
que faz entendimento disso: “Toda língua são rastros de velho
mistério”. Seduzem-me esses rastros de mistério. Mas a minha
amizade com Houaiss vem de outra fonte. Eu conto. Eu estava len-
do Ulisses, de Joyce, e o meu inglês macarrônico se dava mal,
empacava, não rompia o texto. Aquelas mágicas de juntar pala-
vras para fazer novas semânticas me emperravam. Eu não ia. Foi
quando eu peguei a tradução de Houaiss. Achei que sua recriação
do romance para nossa língua era tão genial quanto o texto original.
Então eu me arrumei e fiz uma carta agradecendo e alcandorando o
tradutor. Houaiss me respondeu com uma carta linda. E ficamos
amigos por escrito.

83
MANOEL DE BARROS

Comigo até prego farfalha. Uma folha me planeja. Um rio encosta


as margens na minha voz. É isso que a poesia faz comigo. Ocupo
novas partes de mim com as palavras.

A partir dos defeitos de uma pedra é que o escultor começa seu


trabalho. A partir de um visgo de borboleta na tela, Miró podia co-
meçar algum deslumbramento plástico. A partir de uma palavra
torpe, pode chegar-se ao balbucio dela, ao seu murmurio nupcial.
Isto é: quando ela esteja ainda na origem da fala e não saberia o
torpe. O lado torpe do lírio é um lado novo e apto à poesia. É preciso
que as palavras nelas mesmas se inaugurem. Essa é a melhor
maneira de dizer pouco sobre as palavras – ou menos. O puro da
palavra é sua primeira vez. Não é o liso das palavras que seduz o
poeta, mas as suas reentrâncias e doenças. Por isso que os defeitos
de uma pedra são mais importantes para um escultor. E é por isso
que um visgo de borboleta na tela branca de Miró pode trazer a ele
o seu melhor azul. As fontes que murmuram por dentro das letras
eu não sei. Mas sei as vertigens do subsolo. E sei que nenhuma flor
protege o dia como as avencas. Isso por escutar a voz das águas.

Acho que invento essas coisas a partir de um atavismo bugral que


existe em minhas latências. O índio, o bugre, vê o desimportante
primeiro (até porque ele não sabe o que é importante). Vê o miúdo
primeiro, vê o ínfimo primeiro. Não tem noção de grandezas. Aliás,
a sua inocência vem de não ter noção. Bugre não sabe a floresta; ele
sabe a folha. Enxerga o movimento das formigas e tem devaneios.
Uma formiga puxou um pouco do rio para ela e tomou banho em
cima... Ele sorri. Por atavismo vi aquele besouro com uma nódoa
de osga na voz…Botei na minha linguagem e estou sorrindo. O ente
que recebeu do bugre uma carga primal, ele quer um gosto casto.
Quer dar à palavra vileza um gosto de inocência. De resto, não

84
ENCONTROS

Acho que um poeta usa a palavra


para se inventar. E inventa para
encher sua ausência no Mundo. E
inventa quase tudo, sendo que só
falta o começo e o resto. Fala que
já foi agraço de musgo. Fala que a
palavra pode sair do lado
conspurcado de uma boca e
entretanto ser pura. Fala que
gosta da harpa e fêmea em pé.
Acho que o poeta escreve por
alguma deformação na alma.
Porque não é certo ficar pregando
moscas no espaço para ficar
dando banho nelas.

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MANOEL DE BARROS

haverá nos poetas uma aura de ralo? Olha, vai ali um besouro com
uma nódoa de osga na voz…

Acho que um poeta usa a palavra para se inventar. E inventa para


encher sua ausência no Mundo. E inventa quase tudo, sendo que
só falta o começo e o resto. Fala que já foi agraço de musgo. Fala que
a palavra pode sair do lado conspurcado de uma boca e entretanto
ser pura. Fala que gosta da harpa e fêmea em pé. Acho que o poeta
escreve por alguma deformação na alma. Porque não é certo ficar
pregando moscas no espaço para ficar dando banho nelas.

86
ENCONTROS

Ao que ouço, pelo que me dizem, provenho de bugres e portugue-


ses. Bugres do Norte do Mato Grosso. Portugueses de Trás-os-
Montes. Uns tais aventureiros vindos à cata do ouro de Cuiabá. E
acabaram à beira de um córrego aurífero onde se fez a Vila do Livra-
mento. Ali minha avó, filha de portugueses, deve ter se encontra-
do com meu avô descendente de índios e se filharam a valer. So-
mos Barros e mais Barros. Uns miúdos, outros grandalhões, uns
bêbados e loucos, outros ladinos e ganhadores de dinheiro. Sou
dos Barros miúdos e um pouco loucos. Por lá nasci. Passei dois anos,
e logo meu pai veio aventurar a vida no pantanal de Corumbá, onde
ajustou-se para fundar uma fazenda. Ali fui criado entre bichos do
chão e árvores. Brinquei de boi de sela, de cavalo de pau; arrumei
cangas pra sapo, fiz amizades com aves etc. Infância milionária para
meu temperamento. Tomei banho de rio até os oito anos. Só co-
nhecia casa coberta de palha e fogão de barro, até aí. Depois meu
pai me botou num internato em Campo Grande. Na viagem eu
vinha falando passarinho pelas janelas do trem.

Fui interno durante 10 anos. Episódio dramático era pular o muro


do Colégio. O muro tinha ofendículos. Do outro lado, a gente sabia,
era um guaviral e o encontro certo com as meninas. Ali se filhavam
também precocemente. Depois que aprendi a pular o muro des-
cobri que liberdade era aquilo. Um dia por trás do muro vi um ho-
mem interrompido por uma faca. Estava virado para o sol e cheio
de mosca na boca. As moscas banhavam o seu silêncio. Essa tam-
bém foi uma coisa dramática. Não sei como nasceu a vocação de
escrever. Penso que isso seja um mistério ôntico. Ou uma tara
ôntica. Percebi aquele gostinho raro, escondido, de mexer com as
palavras até que elas dessem uma resposta de mim. Era uma
aventurinha secreta como fazer atrás do muro. Um gostinho para
dentro, tão obscuro e tão redentor! Poemas concebidos sem pecado
pode ter sido um marco. Tanto que eu me convenci, a partir dele,

87
MANOEL DE BARROS

que só prestava praquilo. Que, pelo menos, se eu não sabia ganhar


dinheiro, ou fazer coisas práticas, aquilo deveria ser meu destino.
Eu tinha ainda vergonha de mostrar meus poemas e a partir do
livro comecei a ficar sem vergonha. Sempre me parceu contudo
que esse rumo era torto, que era como senda de índio. Mas eu pre-
cisava segui-la. E sigo perdido nele. Meu pai logo entendeu que eu
era torto. E sempre me amparou. Ele falava para minha mãe: “Dei-
xa o Nequinho, Alice, ele tem um negócio importante, que ele não
sabe explicar para nós e nem pra ele mesmo, mas deve ser um
negócio importante.” Meu pai e minha mãe morreram sem saber
que negócio era aquele. Eu também até hoje não sei. Eu caminho
cego e torto ainda. Até hoje não entendo nada com nitidez. Eu te-
nho medo da nitidez. Comecei a escrever ainda no Colégio dos
Maristas. Havia lá um jornalzinho dos alunos. Botei um poema nele.
Seria o primeiro talvez de minha sestrose. Depois mandei uns ver-
sos e uma crônica para meu pai botar no Boletin da Nhecolândia,
que era uma publicação dos fazendeiros. Fiz sucesso com a minha
família. Houve uma coisa sadia que foi meu casamento. Stella era
o outro amor. Não precisava mais zanzar. Era Stella e a Poesia. Pas-
sei a morar com ambas, na mesma casa. E até hoje moramos juntos
e nos amamos.

Escrevo meus poemas procurando o rumor das palavras mais que


o significado delas. Penso que rimo por dentro, e isso é coisa ínsita,
não dá em madeira. Meu processo de escrever é ir desbastando a
palavra até os seus murmúrios e ali encaixar o que tenho em mim
de desencontros. Isso produz uma coisa original como um dia ser
árvore. Trabalho às vezes dias inteiros para pescar um verso que
fique em pé. Minha relação com as palavras é orgástica. Escrevo
porque preciso ter relações com elas para viver em paz. Depois que
uso uma palavra nova, ela me beija. Quer dizer que gostou de mim.
Eu sou de bem com as palavras que uso porque elas me são. Há

88
ENCONTROS

crises, como em qualquer relação de amor. Eu rasgo. Eu escondo.


Eu amaldiçoo. De repente, invento uma roupa nova para a pala-
vra, e eis que ela baba, me aceita, me dorme em seus braços. Uma
palavra pode pegar explendor, às vezes, só de mudar de lugar. As
palavras são vaidosas e quando carregam nossos vareios apare-
cem mudadas.

Sou descontínuo. Um dia estou no fundo do poço e não consigo


uma só frase. De repente me torno hábil e núbil. Mas sempre repa-
ro mil vezes a peça para que cante. Meu desvelo é pelo canto das
palavras. Me encantam se geram encantamentos. Me desconjun-
tam se não cantam.

No que diz respeito ao escritor que faço, sempre me frustro depois


que publico um livro. Nenhum crítico profissional jamais falou
sobre um livro meu. Salvo poucos intelectuais como Antônio
Houaiss, Millôr Fernandes, Fausto Wolf, João Antônio, Ismael
Cardim – que me deram o gosto especial de reconhecer minha
poesia.

Encontro estímulos para escrever em mim mesmo. Na necessida-


de de ser. Poderia inventar que encontro estímulos no pôr-do-sol,
no beco, no amor das pessoas. Mas só encontro mesmo estímulos
para escrever nos meus armazenamentos ancestrais. São eles que
me impulsinam e me comandam. E pedem para sair de dentro de
mim. Escrevo lentamente, todos os dias, tentando ajuntar os pe-
daços de mim lançados por aí. Ajeito um arremedo do que sou.
Escrevo uma pose de mim.

89
MANOEL DE BARROS

Não sofro de imprevistos. Não tenho impulsos, mas compulsões.


Nas compulsões creio que entram matérias geradas em nossas
profundidades. Só uso palavras que já roçaram no meu corpo. A
mim me parece que os imprevistos não têm fundura. Penso que
há sim o prazer de escrever, mas vem misturado de angústias e
suores. Esse prazer se sofre. E se goza. Talvez haja um pouco de
masoquismo nisso.

Poemas concebidos sem pecado, meu primeiro livro, foi impresso em


máquina manual por dois amigos meus que tiraram 20 exempla-
res e mais um que ficou comigo. Acho o livro melhor, também do
ponto de vista da linguagem. Eu sabia a importância da palavra.
Sempre tive uma vigilâcia linguística. Face Imóvel, editado pela
Século XX, do Rio, é meio engajado na política. Eu não gosto desse
livro. Eu não penso que a poesia deva ser engajada. Poesias, de
1956, é um livro de experiências...me parece que estava procuran-
do a liberdade de expressão. Não desgosto dele. Compêndio para
uso dos pássaros publiquei em 1961. Depois vem Gramática
expositiva do chão, de 1969. O título é engraçado. Eu chamaria de
uma gag liguística...De repente me apareceu. Ele me escolhe, me
completa. Todo verso meu tem a ver comigo. Não tendo a ver comi-
go, não me satisfaz. Meus livros são pequeninos, mas muito apai-
xonados por mim. São uma antologia de onde não tem nada de
tirar. Faço 200 poemas e boto num livro. Eu escrevo para me dizer.
O verso é encantamento. E ressonância. O poeta gosta de ouvir a
ressonância dele nas palavras. Meu gozo e meu gemer estão no
fazer. Escrever com salário fixo para um editor? Eu não escreveria.
Se alguém espera alguma coisa de mim, faço mal. Até dedicatória.
Alguém ficar aguardando que eu escreva um poema não me deixa
à vontade. Seria como me masturbar espreitado por alguém. Nos-
so fazer é solitário e tem momentos sujos, tem truques e tem o ato
obscuro de esconder a máscara real. Nunca tive editor certo. Se

90
ENCONTROS

produzia um livro, mostrava aos 20 amigos, ou 10, ou 5. Estes leva-


vam ao editor o cujo. Eu fugia do livro com medo dele. O que eu
gostava e gosto mesmo é do fazer. Se meia dúzia de amigos aprova-
va ou louvava o novo ente de letras, estava louvado e aleluia! Era
preciso fazer outro.

Nunca penso nos críticos quando escrevo. Depois de dar por aca-
bado o livro, penso. Mas se o editor não sugere ou não exige nem
mesmo mando o livro aos críticos. Talvez seja por medo, por inse-
gurança, por burrice, etc. Entretanto, fico muito feliz quando me
descobrem e falam. Acho tão bom ser amado através de meus poe-
mas! Autocensuras, insegurança, etc.: isso é comigo. Acho que pelo
fato de escrever pelo corpo estou muito perto do poema e não te-
nho distância para julgá-lo. Mas quando não suporto mais mexer
no emplastro dou-o por acabado.

Acho que todo poeta tem um menino nele que fantasia com pala-
vras. O menino é irresponsável e só gosta de coisas gratuitas. Até
hoje eu tenho vergonha de não ser um ente sério. Não gosto de
perder tempo com trabalho. Só gosto de aproveitar o meu tempo
com nada. Igualzinho aos meus netos. Meus pais sempre susten-
taram esse menino com esperança. Achavam que eu tinha um dom.
Depois que meus pais morreram ficou-me de herança uma fazen-
da no Pantanal. Cuidei dessa fazenda mais como quem está fa-
zendo um exercício de voltar às origens. E consegui viver material-
mente bem criando gado na fazenda. Essa aproximação à nature-
za fez muito bem à minha poesia. Me renovou. Como pessoa social,
sou fazendeiro, tenho carteirinha de motorista. Mexo com brejo e
com palavras. São duas coisas escorregadias.

91
MANOEL DE BARROS

Depois que meus pais morreram


ficou-me de herança uma
fazenda no Pantanal. Cuidei
dessa fazenda mais como quem
está fazendo um exercício de
voltar às origens. E consegui
viver materialmente bem
criando gado na fazenda. Essa
aproximação à natureza fez
muito bem à minha poesia. Me
renovou. Como pessoa social,
sou fazendeiro, tenho
carteirinha de motorista. Mexo
com brejo e com palavras. São
duas coisas escorregadias.

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ENCONTROS

Nunca gostei de entrevistas. Só por escrito. Seria ao mesmo tempo


timidez e tática para me ocultar no texto, quer dizer: fazer uma pose
de poeta. Minha palavra só dispara se estou sozinho, falando a mim
mesmo, ou escrevendo. Aí posso arrumar inventos. Posso polir as
palavras. E posso fazer igual àquele personagem de João Ribeiro –
semear uns estilos na escrita… Não creio de bom o só fornecer
dados. Creio de melhor inventar. Posso dessa forma melhorar até
a vida de um passarinho. Espargir meus escuros. Gostaria que uma
entrevista fosse também um texto poético.

Não vi lagartos febris nos escombros de Roma. Não vi brenhas em


Nova York. Não vi sementes de caramujo andando em Paris. Se for
mantimentos do espírito prefiro os lugares decadentes para viajar.
Neles o silêncio não se avilta. E estão irremediavelmente atacados
por lagartos. Descobri durante os anos que vivi em Chiquitos que
há uma espécie de borboleta sem honra. Vigorosa indigência ve-
getal me sustentou naqueles vilarejos em ruínas. Partilhei com os
andarilhos o orvalho e o relento dos lagartos. Com os sapos fui
adquirindo chão e engordei, entre urtigas e pedras, minhas fanta-
sias. Conheci um Aristeu, meio filósofo e meio mendigo, que me
disse: “coisa que não acaba no mundo é gente besta e pau seco...”
– falou política – eu respondi pra ele. O ocaso ia em andor verme-
lho. Sempre encontro vestígios de mim em lugares assim! Precisa-
mos de haver costumagem com esses lugares.

Acho bonita e sóbria essa palavra, parede. Deve ter conteúdo sim-
bólico. Ela decerto se aproxima de mim por muitas razões. É uma
palavra de cidade que me acompanha no campo. Quem sabe eu
preciso que ela me equilibre? Sempre sinto que meu cisco esbarra
em suas raízes. Não me deixa rolar muito tempo para o amorfo. É
uma coisa construída e sólida. Dá uma ideia que protege meus

93
MANOEL DE BARROS

naturais derramamentos. Mas as paredes que eu prefiro são as


careadas. São as corrompidas pelo tempo e pelas chuvas. São as
paredes com verrugas, que são as paredes barrocas. Além disso
elas produzem um alimento estimulante para os caracóis. Às vezes
se enchem as paredes desses animaizinhos enrolados e mudos. E
até florescem deles. E se comem docemente. Eu, na verdade, não
recorro à palavra parede, nem a qualquer outra palavra. São as
palavras que me socorrem. Outras, e quantas!, ficam nos dicioná-
rios, em estado de dicionário, como disse o nosso Drummond. Eu
fico na boca de espera. Elas me comandam.

Função da poesia é encantar palavras. Poesia é a loucura das pala-


vras. Mesmo que pegar moscas no hospício para dar banho nelas.
O mesmo que conversar com paredes. O mesmo que descobrir que
peixe não tem honra. Porão que lua visita morcego não aluga. É
preciso ensinar que o cheiro do lírio também é branco. Fazer con-
ceito não é preciso, fazer verso é preciso. Penso que um besouro
que saiu do esgoto, e está secando em cima do ralo, é menos impor-
tante do que um homem que saiu da rua e está entrando para o
esgoto. São duas realidades cruéis e pungentes. Há sempre homens
à beira do esgoto em minha poesia. Há mendigos com andrajos de
jardim. E meninos à beira de rios. Penso que isso não chega de ser
um defeito armorial. Ademais, tudo é cotidiano e vai pro ralo.

A Academia não me atrai. Talvez se a minha mãe fosse viva, eu fi-


zesse algum empenho para entrar. Se entrasse, eu estaria falando:
olha, mãe, seu filho, como está cheio de glórias! Se eu desse essa
alegria pra minha mãe ela chorava de felicidade. Minha mãe curtia
sodalícios. Por muitos motivos, inclusive de temperamento, eu não
seria membro à altura. Não gosto de chá. Não sei conversar. Sou
avesso a reuniões. Sou um sujeito que gosta de palavra. Tenho um

94
ENCONTROS

gosto pra misturar na minha linguagem a minha verdez primal de


rios e árvores com um lado cansado da civilização. De certa forma,
com essa mistura, vivifico algumas palavras anemizadas pelo uso.
Dou nelas uma reverdose. Agora, se Manoel de Barros está na moda
eu deixo de saber. Não entendo de moda. Tentei a vida inteira me
ser, nunca usei palavra nenhuma que não houvesse roçado em mim.

O que informa a palavra poética são as nossas memórias fósseis.


Nós moramos nas nossas antecedências. De lá que a palavra nos
traz. E só a invenção nos retira de lá. Saímos sempre em lanhos.
Depois é preciso limpar as palavras. Dessa forma elas são auto-
biográficas. Trazem nossa feição, nossos conflitos, nossos
desencontros. Lá, nas nossas antecedências, estamos nus, estamos
verdadeiros. Li em John Ruskin, numa tradução de terceira mão,
que “a verdade do poeta só pode ser inventada.” E o nosso
Drummond, quando lhe perguntavam coisas sobre sua vida, di-
zia: “Eu estou todo em meus poemas.”

Arreveso as palavras. Fui confirmar no Aurélio: arrevesar é por em


revés, dar sentido contrário... Acontece que a gente, às vezes, é ao
contrário mesmo. Se não houvesse nenhum conflito ou desencontro
em nós, penso que nossa escrita sairia linear. Botamos no verso
uma palavra de costas ou arrevesada para obter uma repercussão
de nós. Ou para arrumar um descanto. O ritmo é coisa ínsita, que
não dá em madeira. Às vezes se arrevesa para dar no ritmo. Mas no
fundo, no fundo, é para ouvir as ressonâncias dos nossos
desencontros que arrevesamos.

95
MANOEL DE BARROS

Oswald de Andrade declarou num poema: “Aprendi com meu filho


de dez anos / Que a poesia é a descoberta / Das coisas que eu nun-
ca vi”. Esse pequeno grande poema de Oswald de Andrade é um
Catecismo de Poesia. Precisamos de aprender ignorâncias, nesse
sentido de ver as coisas pela primeira vez: com o mesmo assombro
das crianças e dos primitivos. Quando o meu filho, o João, tinha
cinco anos, ele falava nascimentos. Nenhuma norma atrapalhava
a sua fala. Fiz até um pensamento: o que estraga a linguagem po-
ética não é a ignorância, mas o gramático. E comecei a perseguir as
aventuras do João. Ele amoldava a sua voz às intimidades do coaxo
e dizia nascimentos loucos. A esse tempo eu lera as Anotações esté-
ticas de Paul Klee, nas quais ele contava das alegrias que teve quan-
do conseguiu readquirir os traços da inocência. Por essas coisas,
pelo Catecismo do poeta Oswald de Andrade, e pelas falas do João,
me animei a compor uns poemas de sintaxes tortas à moda dos
meninos. Ao fim, e publicado o Compêndio para uso dos pássaros,
me encabulou certo anedótico. Eu conto. É que a muitos aquele
Compêndio para uso dos pássaros soava como um tratado para cri-
adores de ave. Até recebi alguns telefonemas em que me per-
guntavam que tipo de alpiste se deveria dar para este ou aquele
Passarinho. Um moço até me contou que tinha um canário da
terra, pego nas matas da Tijuca, que não aceitava alpiste. Que
deveria fazer? Eu respondi, meu Deus, meu livro só queria ser de
poesia, eu não entendo de alpiste. O moço me chamou de incom-
petente. Isso eu era.

Um tempo antes de conhecer Picasso, eu tinha visto na aldeia


boliviana de Chiquitos, perto de Corumbá, uma pintura meio pri-
mitiva de Rômulo Quiroga. Esse Rômulo era um homem obscuro.
(O artista iluminado é quase sempre um homem obscuro.) Pois
esse Rômulo era isso. Ele mesmo inventava as suas tintas. Trazia
dos matos caldos de lagartas (era seu verde), seiva de casca de

96
ENCONTROS

angico (era seu vermelho), polpa de jatobá maduro (era seu ama-
relo). Não sei nem como ele dava liga nos seus pigmentos. Talvez
usasse pocas de piranhas, derretidas. Pintava sobre sacos de
aniagem. Um dia me mostrou um ancião de cara verde, que aca-
bara de pintar. Eu lhe disse “mas, Rômulo, o verde não é a cor da
esperança, da juventude?” Respondeu que para ele era a cor da
melancolia. Que os anciãos têm saudades dos verdes anos. E acres-
centou: a minha cor é psíquica e as minhas formas são
incorporantes: eu sempre estou nelas com os meus antepassados.
Estaria ele falando sobre uma possível imaginação arcaica? Depois
de ver as formas bisônticas na África, Picasso rompeu com as cores
fugidias, com os efeitos da luz natural, com os conceitos de espaço e
de perspectiva, etc. E, logo, ao lado de Braque quebrou planos,
propôs a simultaneidade das visões, a cor psíquica e as formas
incorporantes. Agora penso em Rômulo Quiroga. Talvez ele fosse,
apenas e só, uma paz na terra. É só isso. Mas eu vi latejar nas suas
pinturas, rudemente, alguns milagres de Klee. Talvez ele tenha, o
Rômulo, deixado mais influências para a minha poesia do que os
grandes pintores modernos. Salvo não seja.

No começo era tudo misturado. Homem planta bicho – tudo fala-


va. Narciso virou de anêmona. Urubu ficou gente – tem mãos. Não
havia distinção. (Promíscuo, pelo étimo, é indistinto.) Quando o la-
tim era do povo, quando era o Latim Vulgar, antes de ser Português,
expressar o promíscuo era mais fácil. Genitivos, dativos e outros
casos de regência se misturavam na boca do povo. A abrangência
de todos os reinos era mais fácil. Alcançar o indistinto era comum.
Tentei uma experiência de voltar a ser coisa planta bichos. Deixei-
me alguns anos pregado na terra vegetalmente. Andavam sempre
oportunos para mim os sapos e as moscas. Cheguei até onde se
iniciam as águas. Cheguei de ver peixes desenvolvendo inocências.
Cresceram junquilhos sobre meus verbos. Eu estava promíscuo

97
MANOEL DE BARROS

das coisas. Agora precisava de uma sintaxe que alcançasse as


abrangências do promíscuo. As falas incorporantes do bugre e das
crianças faziam essa abrangência. Penso que seja por isso que o
bugre pode emprenhar uma árvore. Penso que seja por isso que o
menino pode falar: eu vi um passarinho avoar fora da asa. Penso
que foi por isso que o poeta pode escrever: meu Deus, o branco me
corrompe! A palavra do poeta erudito vem eivada de seus
desencontros. De forma que turva. O índio não tem desencontros.
O índio fala de suas fontes. De forma inaugurante. Quando uma
pessoa readquire qualidade de coisa de ave de água, etc. – se diz
que voltou ao natural. Deixou de sofrer os desencontros do mun-
do. Então essa pessoa reencontrou o poético e o mítico. Ela pode
escrever coisas entre o primal e o erudito. Assim: bugre velho na
tarde toca a sua flauta para inverter o ocaso.

Quis falar de morte. Inventei aquele sandeu na árvore, em Concer-


to a céu aberto para solos de ave. Importante que ele fosse fenecen-
do com a ajuda do silêncio. O olho dele encolhia o azul. O velho
sandeu estava com toda a sua metamorfose exposta. Foi do coaxo
ao sexteto. As águas favoreciam seus pássaros. Gostava de dar às
palavras um desconforto ínsito. Havia nele certa insetidade. Che-
gou de ouvir o som na voz das águas. Isso o ajudava a cessar. Recla-
mou da velhez pro neto. Minha velhez não tem embrião. As partes
caem. Meus dentes caem. Cai o meu pau e não tem mais as suas
funções de entrar. Por fim a boca dobra-se. O aparelho de falar não
emite. E o de escutar não capta. Meus vazios não terão mais socor-
ro. Perpétuas vão nascer sobre meus ossos. Ah, o meu morrer há de
ficar perto da minha boca!

98
ENCONTROS

Havia na minha infância um Beco do Urubu. E no beco uma venda


de meu pai. Neco Caolho, um tio-avô, muito conceituado para
parvo, ia pra lá tocar viola e fazer trovas tortas. Ele tinha uma voz de
harpas destroçadas. De tarde, na Praça da Matriz, Seo Neco apre-
goava urinóis enferrujados. Os urinóis eram próprios para desuso.
Me lembro de um doido de Rabelais que apregoava ferros enferru-
jados nas ruas de Paris. Ambos, o Apregoador de Ferros Enferruja-
dos e o meu ancestral Neco Caolho, apregoavam inutensílios. Eles
tinham a noção exata do valor das coisas imprestáveis. Eram valo-
res poéticos, se muito. Penso que terá vindo desse meu ancestral
o meu gosto pelas coisas desimportantes. No fundo, o que se dese-
ja até hoje é musiquiar sem viola os versos tortos.

O poeta cabe dentro do cidadão Manoel de Barros, mas também


não cabe.Tem hora quando leio aves, não cabe. Tem hora quando
ouço aves, cabe. Somos diferentes. Eu mexo com palavras. O outro
é fazendeiro de gado. Enquanto o cidadão mantém a casa em or-
dem, o poeta cultiva irresponsabilidades. Eu sou rascunho de um
sonho. Ele é pessoa da terra. Eu tenho um entardecer de angústias.
E o outro vai pro bar se esquecer. Recebo no meu olho beijamento de
águas. Me sinto um ralo de sabedoria. E o outro zomba de mim. Gosto
de me multiplicar todos os dias lendo frases do Gênesis. Ele se com-
padece de mim. A inércia é meu ato principal. Ele mexe com boi.

Poemas concebidos sem pecado é meu breviário. Rezo por ele ainda
hoje. Fala da minha infância que é fonte de minha poesia. Noto
que os pobres-diabos e as pobres coisas do chão comandam o li-
vro. A prevalência da linguagem sobre os episódios já está lá. Certa
tendência de achar a mosca mais importante que uma jóia pen-
dente também está no livro. Eu acho ainda hoje o cu de uma formi-
ga mais importante que uma Usina Nuclear. Contudo ao publicar

99
MANOEL DE BARROS

a obra havia uma pretensão. Havia uma presunção, que é um pe-


cado venial. Eu conto. Andava eu por esse tempo lendo muito
Alencar e Mário de Andrade. Eu estava bem fornido dos ritmos de
Iracema e de Macunaíma. Iracema começa: “Além, muito além
daquela serra nasceu Iracema, virgem dos lábios de mel”.
Macunaíma começa: “No fundo do mato virgem nasceu
Macunaíma, herói da nossa gente”. “Cabeludinho” começa: “Sob o
canto do bate-num-quara nasceu Cabeludinho / bem diferente
de Iracema.” Pelos ritmos e pelas contaminações semânticas, os
começos se parecem. Pois eu achava, na ingenuidade dos meus 19
anos, que os críticos descobririam tais semelhanças e falariam do
meu Cabeludinho, do mesmo tamanho que falaram de
Macunaíma. Mas foi o maior silêncio. E o meu grande pecado de
presunção. Valeu.

O que me chateia é a velhice. Quem gosta de escombro é a solidão.


Nas minhas paredes começaram a nascer urtigas. Da própria pala-
vra velhice não gosto. É desarmônica e pornográfica. O fato de ter
passado 50 anos em quase absoluto anonimato não doeu. Passei
esse tempo tentando envergar a linguagem ao meu jeito. Fiz isso
com volúpia e quase não vi o tempo passar. Deixei que as palavras
me cuidassem. A voz da poesia tem que chegar ao nada para apare-
cer. Só fui reconhecido quando não tinha mais nada pra dizer – e
fiquei a brincar. O dia em que só faço nada é fecundo. Hoje sei que
os verbos deliram – e isso é uma coisa saudável para a poesia.

Traduzir poesia é sempre difícil, nós sabemos. Traduzir a minha


não será diferente. Penso que o tradutor tem que possuir a infância
da língua que vai verter. Será bom ter um adoecimento de criança.
No meu caso adoecer de rios e de rã e de planta e de caramujos.
Haver bem a promiscuidade da criança com os seus bichos, com

100
ENCONTROS

suas aves, com seus brinquedos. Porque o que escrevemos leva


sempre pela frente um terreno sujo de nossa infância. E “a infância
é o poço do ser”, como diz Bachelard. Queria dizer que possuir a in-
fância da língua seria conhecer bem o poço do poeta a ser traduzido.
Saber das misturas da criança que ficam nos sonhos do homem.

Nos fins dos anos 40, no Rio, pensei de salvar o mundo da miséria
e da opressão. Todos os rapazes da minha faculdade estavam dis-
postos a dar a vida para salvar o mundo. Eu tinha lido em Fernando
Pessoa: “Amanhã é dos loucos de hoje.” Era preciso ser louco. Era
preciso ser amanhã. Entrei pra Juventude Comunista. Comecei a
ter chefes e chefetes. Recebia ordens que ninguém sabia de onde
vinham. Ordens de pixar estátuas, de soltar panfletos. Tarefas.
Tarefas. Me mandaram ler Marx, Engels, Lenine. Não passava das
10 primeiras páginas. Descobri que meu forte era a palavra. Me
ajeitei com Maiakovski. Meu gosto era mais literário que revoluci-
onário. Acho que iria fugir se me mandassem brigar. Eu seria se
tanto uma barata: se me pisassem a carcaça eu sairia pelos cantos
arrastando substâncias…

Em Nova York fui estudar cinema e artes plásticas. Aproveitei pra


fazer coisa nenhuma. Andei à toa pelas ruas, roçando nas paredes,
me sentindo um verminho no meio de tantos arranha-céus. Essa
de sentir-se ínfimo é típica de pessoas sem rumo. E eu era sem
rumo. Flanei por ruas. Andei de mar, de rio e de a pé. Estava bem
protegido pelo abandono. Pude ver formas, cores e pentelhos.
Descobri que os passarinhos de Nova York têm duas pernas tam-
bém. A minha imaginação antes achava que os passarinhos de um
lugar civilizado devia ter até 16 pernas. Voltei para casa tranquilo.
E vi que tudo era vento e aflição de espírito – como está no Livro.
Não tenho aversão pela publicidade. Tudo que escrevi já foi publi-

101
MANOEL DE BARROS

cado. E penso que seja dever de quem escreve publicar. Ainda que
para 10 leitores ou dois. O de que não gosto é de dar entrevista oral.
Aquele ferro perto da minha boca, o microfone, me paralisa, me
inibe. Me perco de mim. Tenho de me procurar depois com ponta
de faca e não me acho. Como dizer ao ferro que estou perdido? O tal
do microfone é implacável. Quando tem gente me olhando, me
ouvindo, sou igual lesma, me enfio pra dentro. Eu sou meu indizí-
vel pessoal. Só com as letras me prefiguro.

Um dia lendo Trilce numa pequena cidade do Peru, descobri Cesar


Vallejo. Inventei que fomos amigos pessoais. Tudo o que eu não
invento é falso. Vallejo me ensinou a apalpar o azul usando pássa-
ros. Quanto a Apuleio, de O livro das ignorãcias, é outra história. Eu
queria experimentar os deslimites do ser. Precisava permanecer
onde os verbos deliram. Então preparei Apuleio para doido. Dei-
xei-o a jeito de poesia. Poesia é um lugar onde a gente pode falar
insensatez com a cara de sério. E vice-verso. As palavras de Apuleio
são enfermas de mim. Ele me disse um dia: “eu tenho um dom de
lata que aparece de tarde e ninguém vê.” Isso pode ser verdade.

Naquele dia que o Mário Quintana morreu, um meu amigo, o Wa-


shington Novaes, me mandou, por carta, o último verso de
Quintana:

Morrer é esquecer as palavras

Vê-se que a grande dor do poeta era perder as palavras. Que poeta,
meu Deus! Agora ele passarinha. Agora ele vai se encantar. O en-
canto se abriu para as suas palavras. Agora vai se abrir para o mor-
to. E Bruna Lombardi vai tanger os sinos para ele.

102
ENCONTROS

Penso que trago em mim uma pobreza ancestal que me eleva para
as coisas rasteiras. Disse uma vez: “só as coisas rasteiras me
celestam.” Procede que a pobreza é bíblica, procede que o ordiná-
rio é sagrado – e a desgrandeza é de Deus. Com o canto do Sol e das
Aves nosso Francisco fertilizava sua fé. Agora, descomparando:
quero fertilizar os meus cantos com as pobres coisas do chão. Sen-
do que não sou eu que cristianizo as ordinariedades, mas a minha
linguagem.

Um certo fastio da escrita mesmal penso que me empurra para o


oriundo. Sempre achei de importância a natência das palavras.
Penso que só com a desarrumação sintática se consegue atingir o
criançamento do idioma. Eu queria chegar ao borrão de cada pa-
lavra, aos primeiros vagidos delas. Chegar aos coaxos, aos primei-
ros sussurros da forma. Usei, por vezes, nesse intento, a sintaxe
torta das crianças, dos bêbedos e dos loucos. Isso poderia quem
sabe me levar a um texto adâmico. Também o encostamento meu
na natureza: as duas coisas. Ah, ter a voz de um lagarto escureci-
do!

Meu espírito é muito carnal. Meu corpo roça nas palavras. E isso é
tão literário! Não sei quase separar o poeta do homem. O criador da
criatura. Os dois fazem bagunça em minha vida. Até cometo erros
por isso. Minha concupiscência é quanto humana e retórica, ao
mesmo tempo.

É a palavra que vai me desvelando. Eu fico só a veire. De repente


estou mais perto de mim do que esta cadeira em que me sento. A
palavra me leva para as paixões e para os hospitais. Me deforma e
me refaz. A vida da gente se torna o texto. (Está cheirando a

103
MANOEL DE BARROS

Heidegger.) Verifico no meio de tudo que ela, a palavra, é mais eró-


tica do que eu. Tenho até um poema que começa assim:

Uma palavra abriu o roupão para mim


Vi tudo dela:
A escova alta, fofa e de pelos escuros
A doce pevide.
Etc. etc.

A palavra vai me revelando. Um dia me mostra conspícuo. No ou-


tro dia venéreo.

Poesia é um lugar aonde a gente ainda pode fazer com que o ab-
surdo seja uma sensatez. Sempre se falou da humanização das
coisas, e da coisificação dos homens. Quando escrevo: um muro
ancião, humanizei o muro. Aliás, quem humanizou o muro foi a
palavra ancião. Esse objeto é o meu sujeito pois. Falo de dentro
dele. Desloquei o foco. Desloquei o palanque. O artista é um erro
da natureza. Está sujeito a metamorfoses. Assim, não é absurdo
observar a importância de uma coisa pelas dimensões que ela não
tem. Não sei se consegui desexplicar-me com clareza.

O meu apagamento me exibe antes que me apaga. Me exibo atra-


vés de ficar sob as cinzas. Sou sempre uma pose falsa tirada no
escuro. Me exibo de costas. Pretendo que o escuro me ilumine. Isso
não é um apagamento. É um requinte. Eu faço o nada aparecer.
Uma frase antitética igual a essa me afaga, alivia meus conflitos. Ai
que tanta impudência! Um narcisismo do avesso.

104
ENCONTROS

Poesia para mim é a loucura das palavras, é o delírio verbal, a res-


sonância das letras e o ilogismo. Sempre achei que atrás da voz dos
poetas moram crianças, bêbedos, psicóticos. Sem eles a linguagem
seria mesmal. Pra ver o mundo com poesia boto meu olho torto.
Mas eu não entendo operar sem a consciência estética. Eu quero
desentender-me com clareza. Prefiro escrever o desanormal.

O que constrói a radiância de um verso nem é a presença do sol ou


da luz, nem é a presença de uma alma alegre – a radiância de um
verso vem das suas radiâncias letrais. Pode-se dar alegria ao esgo-
to. Escrevo não por ser loquente. É porque nasci com um instinto
linguístico apurado. Tenho manchas na alma de sofrimento e de
sol. Como todo mundo. Mas não são as ideias nem os sentimentos
que fazem uma obra de arte. Isso é sabido. Acho que os pingos de sol
em minha poesia vêm do guri que ainda brinca em mim. Sei de to-
das as espurcícias do mundo, mas do que gosto mesmo é de circo.

Falo em desaprender pra chegar ao degrau da infância. Lá onde os


sentidos se misturam e os reinos da natureza são promíscuos. Lá
onde se chega ao desregramento dos sentidos – como pedia
Rimbaud. Agora eu inventei um idioleto para expressar melhor
essas promiscuidades. Vou escrever em idioleto manoelês archaico
(idioleto é o idioma que os idiotas usam para falar com as paredes e
as moscas.) O próximo livro que eu estou a escrever vai sair com o
meu total dessaber. Das culturas e aprendimentos sedimentados
em mim, deve desabrochar o dessaber total. Eis um saber absurdo.

Reli toda a obra do Rosa e ela me anulou. Propunha-me a dizer


frases sobre o Pantanal e frases à maneira de Rosa sobre o sertão
mineiro. Mas a linguagem do Rosa tomou conta. Escrevi seis capí-

105
MANOEL DE BARROS

tulos e vi que era tudo Rosa. Fui anulado inteiramente. O homem


tem um feitiço…Em estado rosal eu não podia continuar. Rasguei
os 6 capítulos. Caspite! Assim não dá. Vai ser gênio pra lá. Se o tem-
po não me cassar queria escrever ainda outro livro naquele idioleto
manoelês archaico de que falei atrás. Seriam três poemas. Três
sujeitos. Eu sou Eles três. Um é o Catre-Velho, uma pessoa-traste.
Outro é Zarasteu, um andarilho escrevedor. Ele me disse: não pre-
ciso fim para chegar. E o terceiro é um vaqueiro metafísico. Esse
ainda não me disse nada, senão que: O sapo não tem valimento
animal nenhum: é apenas uma semelhança. Fiquei boiando.

106
ENCONTROS

Sou absolutamente inútil, só sei fazer poesia. Digo sempre que sou
bom administrador do inútil. As coisas de tecnologia, as coisas
modernas, tudo que aconteceu de novo no mundo para mim não
têm nenhuma importância. Porque a poesia para mim é a do ho-
mem, é a da paixão humana e ela persegue uma linguagem. Poe-
sia é um fenômeno de linguagem, e não um negócio para se contar
histórias nem nada. Não tenho nenhuma ligação com o progresso
do mundo; tenho ligação com o progresso da minha linguagem.
Tenho obsessão pela linguagem. Sempre foi assim desde que co-
mecei aos 13 anos. O que sempre observei nos meus textos, que eu
li, que gosto de ler e observo não é o assunto, é a frase. O acerto do
som com o sentido das coisas. Esse acerto é que produz o verso.

O meu maior exemplo no Brasil agora é João Cabral de Melo Neto.


A preocupação dele com a linguagem é um negócio muito grande,
um negócio impressionante. Ele é muito preocupado com a pala-
vra exata. Muito mais do que eu; ele é engenheiro da palavra.

Os casamentos das palavras é que produzem alguma coisa poéti-


ca. Não falo em comunicação. Eu falo em poesia, do corpo sônico
de duas palavras. Quando o corpo sônico de uma se encontra com
o corpo sônico de outra vai produzir um verso bom, uma frase boa.

Tenho uma disciplina: escrevo, leio, invento essas coisas, releio.


Vou ao meu escritório, que chamo de escritório de ser inútil, às esre
da manhã e saio às 11. Isto não é para me forçar, tenho prazer. Às
vezes passo do horário, fico lendo, pesquisando, lendo dicionário,
livros que eu gosto, lendo poetas. Escutando música. A música é
que alimenta muito minha imaginação. Gosto profundamente de
Beethoven, porque ele é o músico mais humano que existe no

107
MANOEL DE BARROS

mundo. Sujeito que conhece a dor do homem. Bach também co-


nheço, mas ele era um poeta isento da humanidade. Um sujeito
que era da técnica pela técnica, da música pela música. Beethoven
foi quem revelou a dor do homem na música.

Vou lançar outro livro. O livro se chamará Contemplação dos detri-


tos. A primeira parte se chama “Desejar ser”. Negócio do Vieira (Pa-
dre Vieira), que diz assim:“O maior apetite do homem é desejar
ser.” Aí vem outra frase que é assim:“Se os olhos vêm com amor, o
que não é tem ser.” Isso seria a epígrafe. Esse negócio de desejar ser
é uma coisa de paixão humana. A segunda parte do livro chama-se
“Os outros: o melhor de mim sou eles”. É assim mesmo. É um erro
bacana, né?

O melhor de mim são eles, eu disse. Porque afinal de contas aquilo


que está escrito que são os outros sou eu também. É aquele negó-
cio de Fernando Pessoa, você se transfere para melhor dizer as
coisas dos outros. Na voz dos outros você diz você melhor, se des-
nuda mais, se expõe mais. Faz de conta que é o outro. É a transfe-
rência da gente. Então melhor que eu são eles. É um artifício.
Fernando Pessoa não passou a vida fazendo isso. Os heterônimos
dele, aqueles negócios? Eu não uso pessoas cultas, os outros meus
são indivíduos, sujeitos que têm alguns desvios patológicos. Para
botar os meus desvios, os nossos desvios… O meu é de linguagem,
eu só gosto de escrever as coisas que rompem, que arrombam a
linguagem. Isso é uma coisa patológica. É o adoecimento do ser.

108
ENCONTROS

Nossa arte é feita de restos. São


aproveitamentos de materiais e
passarinhos de uma demolição.
Acho que quando escrevi isso
eu falava da realidade do
mundo. Me referia às injustiças
enquistadas no corpo do velho
mundo, que era preciso
destruir. Me referia às estruturas
podres da civilização. E penso
que é com os restos dessa
civilização que estamos
fazendo arte hoje.

109
MANOEL DE BARROS

Nossa arte é feita de restos. São aproveitamentos de materiais e


passarinhos de uma demolição. Acho que quando escrevi isso eu
falava da realidade do mundo. Me referia às injustiças enquistadas
no corpo do velho mundo, que era preciso destruir. Me referia às
estruturas podres da civilização. E penso que é com os restos dessa
civilização que estamos fazendo arte hoje. A minha poesia é cada
vez mais fragmentada porque as palavras me acham assim: mais
fragmentado. Penso que os meus conflitos cresceram tanto den-
tro de mim a ponto que me fizeram pedaços. Sou hoje pedaços de
mim. Sinto que minha palavra me pega dessa maneira: picotado.
E me põe assim no papel. Eu achava antes que a fragmentação do
mundo influía nas minhas fragmentações. Hoje sei que as minhas
fragmentações são produtos dos meus conflitos internos que cres-
ceram por dentro das minhas ruínas.

As coisas desimportantes, os inutensílios, são muito importantes


porque servem para poesia. Tocar violão num beco é muito mais
importante para a poesia do que uma jóia pendente. O cu de uma
formiga é muito mais importante para a poesia do que uma usina
nuclear. Não tenho nenhuma dúvida quanto a isso. Um caneco
furado que não carrega água é muito mais importante do que um
tanque de água. Isso, claro, pela inutilidade do caneco furado. As
coisas desprezadas pela civilização são objetos de poesia. Digo,
aliás, que os desobjetos só prestam para a poesia. E isso não é uma
brincadeira retórica. É uma brincadeira a sério.

Considero importante para a poesia arejar as palavras porque não


gosto de palavra acostumada. Aquela que se vicia no lugar de sem-
pre. Isso que chamamos de lugar comum. O mesmal me faz mal.
Temos de salvar as palavras da mesmice. Na poesia, os despropó-
sitos são muito mais acertados que os cabimentos. As nossas con-

110
ENCONTROS

tradições se aliviam mais com os absurdos, com os paradoxos. As


antíteses nos curam. Temos que atrapalhar as significâncias até o
arejamento total das palavras. Eis o que nos congraça.

Só a imaginação revela o nosso imo. Somos o que está mais no fun-


do. (Represente que o homem é um poço escuro. Aqui de cima não
se vê nada. Mas quando se chega ao fundo do poço já se pode ver
o nada.) Eu quero dizer: a gente vê a essência. Por isso que acho a
invenção mais verdadeira e autêntica. Mentira é outra coisa. Men-
tira é fazer pose.

No Rosa os substantivos enlouquecem mais que os verbos. Eu


penso que enlouqueço mais os verbos que os substantivos. Verbi
gratia: “o Trevo assumiu a tarde.” Ora, o Trevo não aguenta nem um
gato pelo rabo, como é que se mete a assumir a tarde! Está louco. “A
anhuma encurta o outono.” Ele achou muita graça da loucura da
anhuma. Ela então encurta o outono, Manoel? É baixo! E gostou.
Depois me disse: “A borboleta entrou no bolso da paisagem.” Isso
é poetar ou enlouquecer uma palavra.

Quase sempre o primeiro livro é embrião dos outros. Eu estava ain-


da escondido na infância e a palavra me achou lá. A palavra até
hoje me encontra na infância. Do primeiro livro pra cá devo ter
evoluído no descaramento com que uso as palavras. Cada vez fico
mais descarado. Uma querida amiga falou para mim. Agora você
não tem mais vergonha. Você mete as palavras em lugares mais
estranhos, com toda a intimidade com o idioma. Assim como quem
diz para um verbo: Vai entrando, você é de casa. Então o que mu-
dou em mim do primeiro para os últimos livros foi que fiquei mais
íntimo das frases. Sendo que o tema sou eu mesmo e minhas

111
MANOEL DE BARROS

descomposições líricas. Tudo que invento dos outros é de mim que


falo. Pois sempre não foi assim desde os tempos de Flaubert?

O poeta que desenha o cheiro das árvores adorna o homem que


sente o cheiro das árvores. O que desenha o cheiro é ainda um ser
bocó, que confunde as palavras, não sabe direito a função dos
verbos. O bocó não sabe que o cheiro não pode ser desenhado,
assim como a criança não sabe que a cor de um passarinho não se
escuta. Os sentidos de um poeta são promíscuos. Estou trabalhan-
do uns fragmentos de mim que pretendo colar para compor um
livro. São pedaços de mim soltos por aí. Me lembra um mito dos
índios Guanás. Entre os índios Guanás a lacraia tem mito. Quando
o menino a vê no terreiro, rebolando os mil anéis, corta logo o corpo
dela. Separa os anéis e os mistura no chão. Com pouco, a pobre ca-
beça começa a procurar os anéis. Se encontram, se desencontram,
se encaixam às vezes certo e às vezes de retravés. Os índios falam
que a lacraia vai pro céu se conseguir se recompor no certo. Eu tam-
bém tenho versos se procurando no chão. Se eu conseguir encaixá-
los no certo, eu vou para o céu.

112
ENCONTROS

Passarinho que voa fora da asa é poesia. Girassol que de noite se


adorna de águas, também. Só desse jeito que ouso dizer o que seja
poesia. Acho que a gente escreve para se descobrir. Todo invento
meu é uma aproximação de mim. Nossas maiores verdades são
inventadas – alguém já disse. Escrevo para chegar mais perto da
minha fonte, das minhas antecedências.

Às vezes tenho vontade de confessar que a minha experiência de


vida é muito parca. Não sei o que se passou comigo desde ontem.
São as palavras que me inventam. O que eu vi, o que li, os lugares
por onde passei, as aldeias que frequentei (em Oropa, França e
Bahia) – foi tudo pro fundo de um poço escuro que eu sou. Estou
narcisado no fundo do poço escuro. As palavras que chegam ao
verso estão visguentas de mim. Às vezes penso que sei por um lado
vesgo do olho e por ouvido moco. Carrego tortidões de ver e tortidões
de ouvir. Tem hora o corpo fônico de uma palavra provoca em mim
correspondências remotas. Repetições constantes de letras
fricativas ou dentais, zoantes ou guturais me toldam. Ao ponto de
eu enxergar em alguma vileza: a pura inocência. Pra mim tudo isso
é sempre muito instintivo.

Literatura porrista me lembra literatura de inspiração, coisa que


me parece um rio urinário. O porre me deixa burro e com inclina-
ções ao preciosismo. De porre me acho brilhante. E isso é perigoso.
De repente a torrente que jorra são sandices.

Sou convencido que as lagartixas de parede, quase sempre


translúcidas e tensas, só apareceram no mundo depois que o ho-
mem saiu do relento e fez sua primeira casa. Então chegaram as
lagartixas para ocupar as paredes. E se tornaram súbitas e tensas

113
MANOEL DE BARROS

pelo entrar e sair das pessoas na casa. Depois se foram tornando


translúcidas, por defesa, afim que apareçam menos à luz. Lagarti-
xas de grotas, que são escuras na casca, aparecem mais. As que
moram debaixo de táboas são mórbidas por grilos e mosquitos. E
as de monturo detestam realeza. Entretanto, entre tantas!, sei de
uma (em guarani teyu’í) que alarga os espíritos.

Neto Botelho é meu amigo de infância e fé. Está vivinho e lerdo. É


a creatura mais parecida com Kirilov (do Irmãos Karamazov) que
conheci. Nega a existência de Deus e O blasfema o dia inteiro. Uma
noite falou: mas o que não existe não se nega! Portanto, ao negar
Deus eu estou confirmando Ele dentro de mim. Ficou espantado.
Eu sou é de Deus. E ficou sendo. Hoje esse Neto Botelho beiradeia
82 anos. E quer virar serepente. Disse que não vive. Que rola borra
abaixo como bosta de cobra, se ferindo nas pedras. Continuou. Eu
quis muito ter um filho com uma árvore – como os lagartos. Não
pude e então escrevi um livro de nome Andante putamente. É o
livro de minha indignação. Nele estão as tripas do meu espírito. Ali
estou cheio de lodo por dentro como os velhos navios naufraga-
dos. Até a solidão me abandonou. Só o tédio ainda se prega em
mim. Estou sem eternidades e sem editor. Também os editores não
são burros para editar Andante putamente, assim, à-toa. As pala-
vras do livro se criaram que nem filhotes de ema, nos campos,
emancipadas. Sou agora uma pessoa breve. E nem tenho grandes
preparações para defunto. Quer ver um poema do meu último li-
vro? (Quero) Chama-se O velho. “Ser velho é assim: Você quer cor-
rer, a perna te amarra / Você vai pular, quebra o braço / Você vai
comer, cai um dente / Você vai olhar, entra uma nuvem na frente /
Cai o cabelo / Cai o pau / Você é uma ruína concupiscente / Começa
a entrar gafanhoto, morcego e aranha na sua entidade / crescem
urtigas no seu abdômen / A última esperança: ser beijado por
moscas cintilantes”.

114
ENCONTROS

Repito o que disse uma vez: que os jovens se afastem da necro-


verbose dos acadêmicos. Essa gente já morreu e ainda anda por aí
enchendo as ruas de pernas. Não desconfiaram ainda que existiu
no começo do século uma revolução estética. É gente que já mor-
reu e está andando. Me lembra uma história da guerra do Chaco
que um paraguaio me contou. Estavam brigando de machete. Os
inimigos correram. Os paraguaios foram atrás perseguindo. Na
corrida iam decepando cabeças. Algumas cabeças decepadas ain-
da corriam 20 metros antes de cair... Ainda enchiam de sapatos 20
metros de charco. Há muitos acadêmicos morrentes que ainda
enchem as ruas de sapatos.

Pra meu gosto eu estaria preparando mais 2 ou 16 livros. Mas o que


consigo fazer num dia ou num mês – pode ser menos de um verso.
E pode ser que 16 versos. Caí na asneira de prometer ao meu Editor
um livro de prosa. Fico enxugando a prosa, cortando palavras, cas-
trando frases e quando assusto tenho nas mãos não mais que meio
verso. Guardo, aproveito esse resto e rasgo os demais. Acho que
vou dar um bolo no meu editor. A prosa me dissolve. Agora estou
compondo três poemas que pretendo seja um novo livro. Falo de
uma pessoa-traste que se chama Catre-Velho. Outro sobre um
vaqueiro metafísico que se chama Bugre Neto. E o terceiro sobre o
andarilho Zarasteu que me disse uma vez: “não preciso do fim para
chegar.” Ele anda e escreve. E escreve em idioleto manoelês
archaico. (Idioleto é um dialeto que os idiotas usam para falar às
paredes e às moscas). Zarasteu quer chegar ao borrão das pala-
vras, ao desperdício delas. E diz mais, com a sua mania de limpeza,
que: “para tirar das palavras o ranço das solenidades – usarei bos-
ta.” O idioleto usado por Zarasteu fica perto do coaxo.

115
MANOEL DE BARROS

Gosto de tirar matizes novos da mesmice. A linguagem do cinema,


por exemplo, me fascina por motivo que ela retira da natureza a
naturalidade. As mesmices da natureza se desmancham na lin-
guagem do cinema. Vi um filme onde havia uma rua deserta e um
bêbado lá longe capengando. Foi um fascínio para mim ver a rua
capengando. Podia ser Carlitos. Pois bem, o cineasta, aquele, fez
com arte e magia que a rua parecesse capengar mais do que o bê-
bado. Gosto de olhar de retravés: ver por dentro, ver por de viés,
por de condor. Acho, pensando hoje, que eu não queria fazer cine-
ma nenhum em Nova York. Eu só queria extasiar-me. O que apren-
di do cinema foi desfocar o universo.

Penso que não se aprende a encostar o verbo na natureza em lugar


nenhum, em livro nenhum. Se trata de coisa virtual. É o dom em
nós. É Dominus em nós. É o Senhor em nós. Vem de obscuros instin-
tos. Se você se procurar nas suas memórias fósseis há de encontrar
por lá algum tarado de quem você recebeu o dom. Bem, porque se
encostar na natureza é um ato erótico. Costumo pensar nesse
encostamento como um exercício de procreação. Seria uma atitu-
de germinal. O mesmo que encostar o falo na pevide. Quem se
encosta na natureza é mesmo o verbo e não eu. Se a primeira im-
portância de um texto for entregue ao verbo a arte aparece melhor.

Tenho um respeito especial pelos críticos. São pessoas disciplina-


das. São pessoas sensíveis para as artes, mas não lhes foi dado o
dom de crear. São pessoas cultas e estudiosas, capazes de destripar
nossos textos e pinchar as tripas para os urubus. Deixam-nos res-
secados de mistérios. Os urubus chupam tudo. Acho que o bom
crítico literário é aquele que desexplica com melhor clareza os nos-
sos textos.

116
ENCONTROS

Acho que o estilo não provém do lugar onde se nasceu nem do cli-
ma em que se criou. Como também não depende dos nossos
estudamentos. Estilo é marca genesíaca. Promana de encontros
com antecedências adoecidas. Estilo é um fenômeno patológico
da linguagem. Estilo que se preza é coisa que escandaliza o enten-
dimento. Resulta ações imprevisíveis de um ser sobre o seu idio-
ma, ou a sua tela, ou às suas imagens, etc. Nove ou sete coisas dão
caráter ao estilo literário – do que sei. Uma: vocação do sujeito para
explorar os mistérios irracionais. Duas: percepções de contigüida-
des anômalas entre palavras. Três: ser repositório de coisas da in-
fância. Quatro: ter amor pelas coisas imprestáveis. Cinco: compa-
recer aos desencontros interiores. Seis: ser afásico no sentido que
Jakobson falava (caso de um ser que não pode nomear as coisas e
sai por símiles, por metonímias). Sete: o fato de algumas fibrilas
cerebrais que, conforme a espessura, podem provocar rupturas
abruptas nos textos. Seria o caso de um estilo por trancos. O estilo
é antes e por tudo que sei um adoecimento que ataca o verbo.

O que eu vou contar é uma alegoria. Nem foi uma visão. Em 1943,
de tarde, eu estava na varanda de um sobrado em Corumbá. Um
sujeito que tinha sido trevo estava encostado a uma parede. Nes-
sa parede outra lagartixa. O sujeito que foi trevo portava um alica-
te. A lagartixa bem olhava para o trevo. Ponho que fosse um olhar
meio libidinoso. Havia primavera em nós. A Lua bateu sobre a la-
gartixa e o alicate. Salvo não seja. Penso que a Lua se gozou na la-
gartixa. Nada no sobrado se alterou. Depois a lagartixa comeu o
trevo que fôra gente. Hoje eu penso que o homem ainda não tinha
se transformado em trevo ao completo. Não se completara ainda a
presença daquele alicate nas mãos do trevo?

117
MANOEL DE BARROS

O mundo de um poeta é quase sempre contaminado de sua ino-


cência animal. Seu olhar é verde para as coisas. Verde de beijar as
folhas, de beijar as fêmeas, de tocar as águas. O sentir do poeta é
penetroso. É sensual. Penso que esse possuir pelos sentidos há de
causar uma excitação nas palavras. Acho que é sempre uma coisa
excitante olhar as formas. Isso pra mim chega até de molhar as
palavras.

Fiz um poema que consta no Catálogo sobre a mostra dos 50 anos


da pintura de Wega Nery, num museu de São Paulo. Não me lem-
bro do poema e não o tenho a mão. Mas eu disse mais ou menos
isto. Pedi que o mundo não abandonasse meus olhos para que
ainda eu veja as tardes dependuradas nos cinzentos de Wega. Que
eu pudesse ver ainda a dor da criação nos seus atormentados
amarelos. E que nos trapos vermelhos caídos sobre as águas de
Wega, eu visse a paixão dos homens. Pedi que nos verdes lumino-
sos que atravessam as paisagens imaginárias de Wega, que nos
seus verdes aborígenes, eu visse também as suas antecedências
pantaneiras. Foi essa mais ou menos a clave do meu poema. E ser-
ve de meu amor à poesia e à estética de Wega.

Leio pouco e estudo menos. Mariposeio sobre livros. Só paro de vez


nalgum livro quando levo um susto. Quando encontro uma pala-
vra fértil. (Fértil para aquele momento meu). Fico sonhando sobre
essa palavra, em cima dela. E de repente encontro para ela uma
sintaxe inconexa. Um encaminhamento de mim. Em geral minhas
leituras acompanham meu faro, meu instinto de criar. No meu
cotidiano, afora vadiar, tomo nota de expressões inusuais que es-
cuto nas ruas ou que leio nos livros. Embrulho e misturo tudo para
compor algum verso. Porém se encontro uma expressão muito
enfeitosa – desconfio. Preciso me dizer de um modo magro. Pra

118
ENCONTROS

No meu cotidiano, afora vadiar,


tomo nota de expressões
inusuais que escuto nas ruas
ou que leio nos livros.
Embrulho e misturo tudo para
compor algum verso. Porém se
encontro uma expressão muito
enfeitosa – desconfio. Preciso
me dizer de um modo magro.
Pra responder ao fim: nunca
escrevi uma só linha no mato.
Quero estar junto dos meu
dicionários, para escrever.

119
MANOEL DE BARROS

responder ao fim: nunca escrevi uma só linha no mato. Quero estar


junto dos meu dicionários, para escrever.

Preocupações de ordem financeira me paralisam para a criação.


Sei, sabemos de grandes artistas que criaram e criam no meio de
tempestades e até de fome. São tantos na conta do nosso querido
Lezama! Dostoiévski, um deles, escreveu seus livros apertado por
credores e necessidades massacrantes. Mas o mundo é sortido,
hélas! De minha parte preciso do ócio para trabalhar. Agradável
observar que as verdadeiras obras de arte ficam isentas do sofri-
mento físico do autor. Possuem existência própria. Não têm nada
a ver com as agruras de quem as inventa. As aperturas do nosso
Lezama Lima não aparecem nos seus poemas. Que são aliás bri-
lhantes de sabedoria.

Eu ando toda tarde em volta de um quarteirão que não tem casas.


Só muros. Só paredes sujas de idade e chuvas. De inseto e ventos.
Há paredes confortáveis para insetos. Sobremaneira moscas. São
moscas que negam estribo e não se deixam pegar. Gosto das man-
chas de musgo e de riscos nas paredes. Observo os caminhos lu-
minosos por onde os caracóis passeiam. Gosto de andar por ruas
desertas. Não sei se estou me esgueirando por paredes ou por
alguma solidão.

Seria quando a gente alimpa ele de algum verniz, de alguma


semostração, de brilhos falsos, de preciosismos, das dores de cor-
no e coisas que tantas. É preciso que o verso seja o indizível pessoal
de cada um. Que as nossas caras e as nossas verdades não sejam
expostas senão de costas. Que seja o verso um disfarce de nós, uma
pose ambígua. A despersonalização serve pra multiplicar o que a

120
ENCONTROS

gente é. “O verso tem que ser o véu e a capa de uma outra coisa”,
como queria Fernando Pessoa. O verso está sol quando seja ape-
nas linguagem.

Na porta da Bienal eu parei e troquei. Troquei de olho. Botei meu


Olho Parvo. Que é aquele olho com que eu vejo as coisas de arte.
Aquele olho que tem um pouco de criança e de idiota. O sentido da
idiotice ainda não é bem visto pelos mestres, mas ele ajuda no
desentendimento. Meu olho parvo, quero ressalvar, ele vê as coi-
sas desimportantes com melhor insensatez. Notei nos artistas mais
novos desta amostra internacional um gosto por restos. Uma ten-
dência de aproveitar o que não presta mais pra nada. A história é
esta: primeiro o artista (falo deste século) quis se afastar da natu-
reza por fastio dela. Então começou a deformar as coisas e todos os
seres. Deformou. Fez mulheres de 4 peitos. Fez cavalo verde. Fez
noivas avoando. Depois se afastou mais. Fez uma outra arte sem
referências com o mundo. Os nossos abstratos. Logo se enfastiou
dos cavaletes e foi fazer objetos. Objetos que não funcionam. Vi 9
latrinas em flor, encostadas a uma parede. As 9 em fila, pintadas de
um verde sujo e neutro. Todas sem saídas para esgoto ou varanda.
Estavam ali inúteis e em fila. Apropriadas para o desuso pessoal de
cada um. Gostei. Depois vi um prego enferrujado, preto, comido
pelo chão durante séculos. Ele estava pregado em uma parede de
8 metros. O dono da solidão. Que prego! Me lembro das obras de
Arthur Bispo do Rosário – 802 obras. Estandartes, roupas, objetos
mumificados, Miss Universo, tampinhas, pedaços de lençóis
encardidos, fardões da Academia e outros restos. Às vezes o Bispo
do Rosário, um artista negro que viveu 50 anos no manicômio, se
proclamava Jesus. Ele criou um novo mundo. Vi algumas seme-
lhanças nas obras desta Bienal com os inventos de Bispo. Acho que
pode ser culpa de eu ter colocado meu Olho Parvo para ver aquelas
obras. O resto é como diz o Millôr: “Novo mesmo só coisa antiga”.

121
MANOEL DE BARROS

Desaprender 8 horas por dia ensina os princípios. Antesmente o


verbo a ignorância estava. No penúltimo livro meu havia um an-
cião que morava na árvore. Dizia coisas malucas: “Eu vi o êxtase no
cisco / Cresce uma ascese no meu caderno”, etc. Os delírios do ho-
mem que está no alto da enchente agora, e só vê a a fronteira do
céu, se escoram mais nas vidências que no ver. Não sei se consegui,
mas neste caso do canoeiro, estou buscando os deslimites da pala-
vra. Penso que não desprezei as insignificâncias do chão.“Passa
um galho de pau movido a borboletas”. Esse não é um ver direto
mas um transver. Não soltei as palavras como pombas. Para o alto.
Fiz um imbróglio verbal. Eu só tinha as lembranças para ver. Eu
não sei exercitar o celeste. Celestes são como andrajos para mim.
Eu queria transver o chão. A inundação é o puro jogo à brinca. Eu
queria tirar do desolo de um canoeiro perdido as suas impurezas
de linguagem e alguns delírios frásicos.

Ninguém sabe muito do seu fazer poético. Eu sei muito menos.


Aliás, só o que sei que o meu fazer é fosco.Tudo se forma antes de
mim. Não sei como as palavras atravessam as ancestralidades fós-
seis para chegar ao hoje. Seus escuros iluminantes eu não vejo. Sei
que o poema vai se montando no papel. Eu monto e remonto as
palavras conforme o cheiro, o paladar e o som delas. As palavras
que se oferecem para o sacrifício do poema botam meu sangue
pela boca. (Ver sanguessuga entorpecida, gorda, na perna do ca-
valo. Vai um menino e fura ela de canivete. Escorre sangue preto do
cavalo.) Palavra do poeta tem que estar entorpecida, gorda. Para
escorrer substantivo verbal. As que não trazem sangue eu dispen-
so. Isto é: guardo na dispensa. As envernizadas eu desprezo. Tanto
quanto as solenes e as sublimes. Uso as que me são. Vou montan-
do e remontando até que me repercutam. Até conseguir a resso-
nância de mim nas sílabas. Até que os sons se combinem para o
canto. Mas nunca sei quando meu livro está nos trinques. Eu sou

122
ENCONTROS

analfabeto para certezas. A coisa é toda: como a gente pegar água


no escuro: psiumente. O acerto começa no fim dos erros. E a gente
não sabe adonde é o fim dos erros. Nem o começo do acerto. Aleluia.

O que me atrai para as coisas desimportantes é a importância de-


las. Fazer crescer o ínfimo não tem tamanho. Quero chegar até o
azul do nada. O caminho é sem rumo. Primeiro a gente se dana a
estudar. Quer obter informações, cultura. Chegamos a pensar que
Kant é mais importante que uma formiga. Eu fui um sujeito estu-
dado. Ia de Kant às formigas. Mas eu buscava o ouro do saber no
filósofo. Ele dizia: quem não tem razão de ideias caça com o gato.
Quer dizer: quem não pode entender com a razão, entenda-se com
as suas afeições. Um dia descobri o meu ninguém. Não me deixei
agarrar pelas ciências, pela quântica, pelos computadores. Eu pre-
firo a mosca. Eu sou a mosca da sopa – como na canção de Raul
Seixas. E comecei a produzir concupiscências e ignorâncias: eu vi
um lado da moça: era uma ladeza! Passei a inventar palavras. A
liberdade absoluta era não ser ninguém. E a verdade era mais
bonita inventada. Então comecei a achar que a formiga era mais
importante que Kant. Uma beatitude! As verdades antigas tanto
quanto as estultícias são marcas do ser humano. Gosto de usar as
duas.

Se a gente considera que cultura seja erudicão, instrução vasta e


variada – como lá diz o Aurélio – a coisa fica um pouco difícil por
aqui, em Campo Grande. Mas se a gente julga que cultura é o que
o homem percorre para se conhecer, como queria Kierkegaard, na
linha que vem de Sócrates – então, assim, a cultura fica mais fácil
por aqui. Pelo simples motivo de a gente estar mais encostado à
natureza. Penso que nessa linha Cristo, que não teve biblioteca,
foi um homem cultíssimo. Pois as suas palavras reviçam em todos

123
MANOEL DE BARROS

os seres a cada dia de todos os séculos. Aqui, ao fim de algum tem-


po, o homem também começa a adivinhar. Ontem eu adivinhei
esta coisa: “Quando chove nos braços de uma formiga, o horizonte
diminui”. Quem mora perto das fontes bebe água lustral.

Penso que devemos conhecer algumas coisas sobre a fisiologia dos


andarilhos. Avaliar até onde o isolamento tem o poder de influir
sobre a abertura ou o fechamento de sua voz ou sobre o volume de
silêncio que as paisagens lhes deixam no olho. Estudar talvez a
relação desse homem com as suas chuvas, suas pedras, suas árvo-
res. Saber mais ou menos quanto tempo esse homem leva para
encostar-se no chão ao modo de um lagarto. Quanto tempo ele gasta
para haver fungo no abdomem. Saber a hora em que sua boca imita
a de um armau e possa pregar-se na craca de uma canoa como se
fosse um armau. Medir a frequência de suas paranças a fim de
avaliar os anos que carrega. É preciso saber em que instante o
andarilho sofre o processo vegetal. Saber se ao dormir nos relentos
o andarilho aprende melhor de cisco ou de céu. Essa não é uma
indagação metafísica senão que a maneira de saber qual o mo-
mento em que o idiota de estrada se inicia em árvore. No fundo os
andarilhos só estão apalpando a liberdade. O olho de seu rosto
passa a ter só ermo. O caminho deserto deles é viver debaixo do
chapéu.

Não creio que a originalidade de um texto venha do lugar onde o


autor nasceu ou tenha vivido. A infância que passei no Pantanal
deixou em mim um lastro. É claro. Sou um depósito daquelas coi-
sinhas do meu quintal. E aquelas coisinhas do meu quintal mistu-
ravam-se ao mesmo tempo às outras coisinhas dos meus
armazenamentos ancestrais. Minha poesia há de ser um pouco o
resultado dessa mistura, e mais o instinto linguístico. E um certo

124
ENCONTROS

gosto de mexer com as palavras que adquiri no colégio. Sempre


acho que seja mais importante para um estilo o gene que gerou o
poeta do que o quintal em que brincou. No caso da originalidade
é ainda importante o gosto esquisito que tenho pelas doenças da
linguagem antes que pela saúde dela. A minha originalidade há
de ser fruto de um coito anormal com letras. Gosto mais das sinta-
xes de exceção, da fala dos tontos, dos erros anônimos, dos termos
espúrios. Sou um sujeito inconfiável: tem hora leio avencas, tem
hora Proust.

São Francisco só queria o apagamento. Eu, no fundo, quero a gló-


ria. Não tenho competência para ser Ninguém. Sentimento da
minha precariedade é que anula os meus voos. O que eu faço é
esconder-me por trás da humildade. E isso é o orgulho maior. Hu-
mildade de São Francisco de Assis quem tem é o nosso Betinho.
Que age, que faz, que se expõe. O que eu sou é quase um pratican-
te de charlatanismo, igual ao personagem de Dostoiévski, cuja ação
era derramar nada no vácuo. Quanto à minha Estética da
Ordinariedade, penso que ela acompanha o gosto do Século XX.
Estão aí os deseróis, os anti-heróis tomando conta das artes, de
toda a sensibilidade moderna. Estão aí os Carlitos, os Riobaldos, as
Etelvinas, a barata de Kafka. Fazer o desprezível ser prezado é coi-
sa do meu tempo. Os reis, os generais e os dandis são menos impor-
tantes para a arte hoje do que o Bola-Sete (Bola-Sete era um negro,
filósofo de rua, de minha cidade, que ensinava os meninos que o
rodeavam, assim dizia: Há pessoas que aparentam aquele
brilhantismo de quem excreta esterco de ouro. Achava mosca de
feira mais importante do que um ser varonil. Ele usava, esse Bola-
Sete, uma voz de harpas destroçadas.)

125
MANOEL DE BARROS

Bem que eu sou culpado de algum silêncio até. Por motivos igno-
tos sempre ando de prancha na vida. Eu escrevo com amor e
irresponsabilidade. Sou irresponsável de mim. A desfortuna críti-
ca me incomoda, sim. Eu seria hipócrita se dissesse que não. Temo
que por ser a minha poesia tão boca própria, ela não alcance mais
que a minha tribo. Temo que não ande além do meu quintal. Lem-
bra a vespa travada na beira do ralo: nem voa nem cai no esgoto. Eu
gostaria de ser mais reparado como inventor do que como poeta.
Eu inventei entre outros objetos cantantes, os seguintes: o alicate
cremoso, o abridor de amanhecer, o homem adequado a lata, a
mosca de tule sepiterna, uma fivela de prender silêncio, o hino da
borra, o canto em forma de asa, uma faluta de osso para inverter os
ocasos, etc, etc. Queria ser visto como um artesão menor. Um
fazedor de inutensílios. O olhar do poeta é sem princípios. A coisa
muito lógica o embaça. Assim é: e haverá de ser assim.

Tenho um prazer imenso de atrapalhar as insignificâncias. Uso


fazer-me promíscuo das folhas, das pedras, dos sapos, das águas,
do sol, das estrelas. É uma coisa meio primitiva: são misturamentos
de metamorfoses. Os povos primitivos adquirem tanta intimida-
de com a natureza que sabem chamar as coisas pelo cheiro, pelo
formato, pela boca dos sons, pelo som do olho, etc. Há entre eles
uma completa desordem dos sentidos. A gente precisa desconhe-
cer tudo de novo. Temos de botar um olho virgem nas coisas. Te-
mos que ver o mundo a partir de suas fontes. Preciso do auxílio de
uma criança para me desconhecer. Criar começa no desconhecer.
Eis porque posso escutar a voz dos peixes. Eis porque posso ouvir
o tamanho oblíquo dos peixes. Até cheguei a escutar na minha flau-
ta um aroma de violeta. A razão me descompleta. A algema seria a
estratificação sintática e semântica da linguagem. Para fugir da
algema preciso da sensatez do absurdo. É isso. A gente não marca
desencontros?

126
ENCONTROS

Poesia é a virtude do inútil. É um objeto sonhante. É igual a um


caneco furado que não segura água, mas serve para guardar be-
souros abstêmios, mosca frita, pichitos de insetos, lírios. Assim o
caneco furado vence o poder de não prestar. Vira um objeto
sonhante: um inutensílio. Um meu parente afastado, Neco Cao-
lho, se dizia ser um inútil, um traste, igual ao caneco furado. Den-
tro dele havia também besouros abstêmios, horas fragueiras, can-
ções. (Ah esse velho de ontem me plange!) Só operava as coisas
vãs. Andando devagar ele sempre atrasava o fim do dia. Talvez por
sua virtude de ser inútil prosperasse em sabedoria. Do jeito que as
rosas cuidam de um jardim, ele cuidava do beco. Perder o nada é
um empobrecimento, ele dizia. A voz de um cantador tem que
chegar ao nada para ter grandeza. Seo Neco esculpia em água de
cor. Ele esculpia na água Ruskin: Lembrai-vos de que as mais belas
coisas do mundo são inúteis. Por exemplo: o pavão, os lírios. Copia-
va e exercia Ruskin.

Por impulso de admiração, peguei em Porto Esperança o vapor


Fernandes Vieira que levaria o Rosa até Corumbá, pelo rio Paraguai.
Era de noite entre árvores. Águas paradas no escuro. Calor e mos-
quitos levavam os passageiros para os camarotes. Manhazinha,
outro dia, um vento macio e alvo soprava. Rosa saíra cedo do cama-
rote. Estava sentado no tombadilho tomando fresca. Do bolso da
paisagem, borboletas queriam escapar. Rosa abriu a paisagem e
as borboletas escaparam. O corpo do vapor quase tocava nas águas
do barranco. Andava essa lancha que nem um cágado lírico. Dava
pra ver nas lapas abertas lontras dormidas. Dava pra ver um ran-
cho amanhecendo. Talvez uma chácara amanhecendo. Dava pra
ver um curral de bezerros, um homem e um menino parados. O
menino mijava na cara de uma abelha. Dava pra ver até sem ócu-
los. Eu fabricava coragem para puxar uma prosa com aquele João.
Nessa hora as mariposas são dáveis. Uma anhuma rasou por cima

127
MANOEL DE BARROS

de nós tocando fagote. Eu disse para o Rosa ouvir: O canto desse


pássaro diminui a manhã. Rosa pôs tento. Ele tinha uma sede anor-
mal por frases com ave. Me olhou sentado na frase.

Fujo de ser por mim pego morto de medo. Parece que eu pratiquei
um crime de ser preso quando publico um livro. Ver sujeito que
fabricasse um brinquedo inútil. Tão grande, tão amável e já truão!
Essa marca ficou-me por educação. Se dizia que a gente deve de
ser sério, trabalhador, etc. Passei muitos anos para descobrir o que
era ser sério. Há muitos atalhos. Mas o da poesia não leva ao cons-
pícuo. Não boto confiança no que faço. Penso que faço um brin-
quedo furado que nem serve pra o jogo. Penso que faço uma
enganação. O embrião de onde me cresço é o culpado. É o culpado
pela insegurança e tudo o mais que o medo de mim encerra. De
qualquer forma eu sei dosar isso com palavras. A tal ponto que
pensam que eu sou humilde. Mas não. Eu sou orgulhoso demais.
Eu tenho muito orgulho de meu texto. E gosto secretamente de ser
lido, e mais: gosto de ser amado através de minha poesia. Quanto
a buscar a matéria de poesia no Pantanal, isso não existe. A gente
estava na terra desde pequeno e ganhou o chão de lá. E tudo ficou
pregado na alma. O chão dava encosto para o menino, para um
osso de gado, para as formigas, um excremento de anta, umas plu-
mas de garça. Isso tudo ficou dentro da criança e está dentro do
homem. Tudo já está armazenado em mim. O olho vê, a lembrança
revê, a imaginação transvê. Eu esperava a manhã soltar formigas
para brincar com elas. Agora a lembrança revê. Mas só a transfigu-
ração dessas lembranças através da linguagem poderá me dar
poesia. Assim seja.

O conhecimento de uma coisa me inclui nela. Acho que sou muito


particular no que faço. Isso tem a ver com a orgia dos sentidos, com

128
ENCONTROS

as metamorfoses. O feminino tem latências com metamorfoses. As


águas são femininas. Eu abro as águas; eu as desdobro. Não tenho
certeza, mas acho que a mulher gosta muito de desdobramentos.
Carrego também comigo muitos perfumes de uma voz de tordo. E
mais uma certa timidez incauta que pode ser tangida. Mulher gos-
ta muito de tanger mistérios encostados na natureza. Mas eu não
tenho certeza de nada disso, porque não consultei os tratados.

129
MANOEL DE BARROS

Eu sofro de frases. As frases me prefiguram. Depois de ter achado


um título, Contemplação dos detritos, li uma frase de Roland Barthes
que era mais ou menos assim: “Contemplar nossos próprios detri-
tos é narcisismo.” A frase me denunciava demais. Então mudei o
título do livro. Mas não mudei os poemas. Portanto, o livro conti-
nuou narcisista. Depois vi que tudo era nada mesmo, nada de coi-
sa nenhuma. Frases. Eu queria arrancar acordes das palavras. Ti-
rar novos matrizes delas. Não havia nada para revelar. Nem detri-
tos nem nada. Eu só queria me ser. Linguagem de poesia não é
para informar, mas para comungar. Que eu pendurasse em algu-
ma linha rítmica: o sol, o amargor, alguma estultice minha. Nada
para contar. Eu só queria fazer frases com ilogismos e ressonâncias
verbais. Acho que isso nem é um roteiro de simplicidade. Só se fos-
se de retravés.

Penso que para trouver la langue não é preciso abrir mão de temas.
O tema de um poeta é ele mesmo. Até que seria bom estar no mun-
do só fazendo parte da paisagem, que nem uma pedra no morro.
Mas a gente não é apenas aspecto. Não somos uma coisa com nin-
guém dentro. Nossa essência precisa de ser exercida. E a gente
exerce a essência como quando cria a solidão, como quando abre
o amor. Se através da linguagem de nossa poesia a gente conse-
guir se expor, o mundo se refletirá em nossas palavras. Sem pre-
cisar de sociologias nem metafísicas nem físicas quânticas. Salvo
não seja.

Gosto do Pantanal ao ponto de eu precisar inventar uma tarde a


partir de um tordo. Gosto do Pantanal ao ponto que eu possa ficar
livre para o silêncio das árvores. Gosto do Pantanal ao ponto que
meu idioma não sirva mais para comunicar, senão que apenas para
comungar. Temática sugere tese, sugere ideia para ser desenvolvi-

130
ENCONTROS

da. Sugere comunicação. Sugere descrição de alguma coisa. Para


mim, quem descreve não é dono do assunto: quem inventa, é. Que
eu possa dizer, estando em fusão com a natureza, coisas como
esta:“Eu queria crescer pra passarinho…” Eu possa dizer com se-
riedade: “Uma pedra me rã.” Minha linguagem será sempre de
comunhão. É dessa forma que em mim o Pantanal se expõe. Tenho
dentro de mim um lastro de brejos e de pássaros que inevitavel-
mente aparecem na minha poesia.

Sou um sujeito envergonhado. A minha vergonhez é escancarada.


Tem alguma semente genética em mim de mudelo, de animal
desajeitado e bocó. Tenho medo de mais de três. Minha mãe era
assim: desviava de amigos na rua com medo de ter que falar. Eu
gaguejo. Eu ando lesmamente. Me esgueiro. Atravessar um salão
de barbeiro para mim é um martírio. Sempre acho que estão olhan-
do para mim. Sou pretensioso. Acho que vão caçoar de mim, que vão
botar rabo de papel em mim. O próprio homem ridículo de
Dostoievski. Se uma mulher em condições de boca arde em meus
sonhos eu não tenho coragem para o incêndio. Tenho medo de errar.
Eu sou orgulhoso demais. Sofro a dor do erro. Eu descompasso. Eu
gaguejo. Penso que sofro de afasia de condução, aquela que atinge
os centros cerebrais do controle verbal. Padeço de mil desencontros.

Vou raramente à fazenda agora. Quando me mudei para cá, em


1955, tive que morar no mato mesmo, no Pantanal. Tive que fundar
uma fazenda nos campos abertos que recebi de meu pai. Precisei
cercar os campos, comprar cavalos para costear o gado, construir uma
casa, um mangueiro, piquetes. Dei duro nos primeiros anos com a
ajuda de minha mulher até poder construir o meu ócio. Eu preciso
do ócio para criar. Quando a fazenda começou a produzir, voltei à
poesia.

131
MANOEL DE BARROS

Penso que os leitores desse fim de século têm sim, nostalgia do


simples, do ingênuo, talvez até da tolice, talvez até do ilogismo.
Antigamente, nas florestas, era preciso aumentar gente. Só tinha
bicho, plantas e passarinhos. Então os sonhadores primitivos fa-
ziam esse trabalho de aumentar gente. Os urubus falavam, tatus
falavam com moça, etc. Temos que ser bichos, temos que ser ven-
tos, temos que ser árvores. A razão nos descompleta.

Acho que o ritmo das cidades, sendo mais veloz, pode causar no
poeta algum tipo de pressa. Aqui, no ritmo do carro de boi, parece
que a maturação se obriga. O exercício da paciência é mais fácil por
aqui. Há palavras que aparecem com fomes de brilhar. Mas tam-
bém nas cidades aparecem palavras com fomes de brilhar. Des-
confio do verso que fulgura. Em poesia o opaco é mais luminoso
que o brilhante. O que contém fuligem é mais profundo. Mas pode
ser que não seja.

132
ENCONTROS

Não creio que as pessoas estejam lendo mais poesia. Mas penso
que o mundo está precisando de mais poesia. A gente anda muito
enrolado com máquinas, com tecnologias. Está perdendo um pou-
co da inocência animal. Para alcançar os benefícios da ciência, o ser
humando está desprezando as fontes da vida. Acontece que nem
todo mundo gosta de mel. Poesia é a mais fina destilação da pala-
vra. Penso que se tem que levar, pela educação, os seres a provar o
mel da poesia. Vende-se menos a poesia porque ela é mesmo um
restilo. Apenas um restilo. Em poesia não há episódios, enredos,
anedotas que sirvam para prender os leitores. Ela só é uma gota de
essência do ser humano.

O Livro sobre nada nasceu de um caderno de ter infância. Nele es-


crevo as minhas fantasias. Anoto coisas desgualepadas. Boto fra-
ses dementes. Depois de obter uma 300 frases ou versos, começo
a montar o poema. As frases no poema estão esparsas, solteiras;
mas fazem parte de uma experiência minha e de meus desenten-
dimentos daquele período. Então monto, remonto e desmonto as
frases. Depois que consigo ler o poema de baixo pra cima e de cima
pra baixo, dou por concluído o que não tentei explicar. Ao gosto
barroco. Cada verso há de ter uma unidade rítmica com idéias
desencontradas. O livro nasce quando sinto que fiquei pleno de
ovo. Pleno daqueles versos que escrevi no caderno de ter infância.
Sinto que não tem mais nada pra sair daquela fase de leituras da
vida. Sinto que meu imaginário não quer mais desabrochar. Daí
começo a pensar no livro. Agora, por exemplo, estou pensando em
escrever, de parceria com o Bola-Sete, um livro que se chamasse
Uma biografia do orvalho. Meu amigo Bola-Sete, filósofo de rua,
escritor de mictório, pensava escrever um livro com desfrases.
Imaginei que ele fizesse alguma coisa que fosse a sagração das
folhas, da haste de uma planta, a sagração da terra – de tudo onde
o orvalho pouse. Uma biografia do orvalho é um título para qual-

133
MANOEL DE BARROS

quer livro de poesia. Não quer dizer nada. Com a morte de Bola-
Sete vou fazer o livro sozinho.

Os andarilhos são como Tirésias sem Sófocles. São sábios sem ins-
trução, sem Aristóteles. São poetas que não fazem versos, mas se
fazem videntes. Conheci um andarilho na minha infância. É nele
que penso quando uso esses seres de personagem. Era o Joaquim
Sapé. Andava pelo Pantanal. Nunca se sabia de onde chegava. Com
as pernas comia léguas. Certa vez pediu quatro pedaços de couro
cru a meu pai. Fez uma mala com alças. Jogava a mala nas costas e
ia pelas fazendas. Tinha panela, caneca, pratos, rede, coberta, fós-
foro, trouxa de mate e um pareio de roupa. Chamavam pra ir em-
bora: botava a casa nas costas e ia. Tinha 12 cachorros. Parava muito
na fazenda de meu pai. Eu teria cinco anos quando o conheci. Ouvia
a prosa dele no galpão até escurecer. Ele não tinha solidão por den-
tro. Só por fora. Na estrada os cachorros pegavam caça para ele.
Ouvi-lo era um deslumbramento para mim. Era um vidente. Era
um poeta. Era um facínio para os meus cinco anos. Conhecia a voz
das pedras e do sol. Se você é um homem, você sabe a dor do ho-
mem – ele dizia. E se você é uma árvore você sabe a dor da árvore.
Ele era a natureza.

Sempre achei que minha inaptidão para a conversa gerou o poeta.


Eu não sei fazer as coisas práticas. Se vou bater um prego me ma-
chuco. Se vou falar tremuleio. As palavras se atropelam na minha
boca. As conversas se partem. Então eu acho: se não sei conversar
devo ter outras habilidades com as palavras. Melhor que conver-
sar era mexer com letras. Fazer ressonâncias letrais. Eu tinha 13
anos quando descobri isso: que a gente podia fazer miséria com as
palavras. Eu faço artices.

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ENCONTROS

A palavra poética vem, por antes, de um minadouro sensual. De


um desejo de comunhão. Nasce bem mais dos sentidos que da
mente. É o ser primário em nós que precisa reter-se nela. Não é o ser
intelectual, o ser estudado, o ser culto que se expressa em poesia,
mas o índio nele. A razão não está com nada em poesia. Lá onde
tudo ainda não tem voz o mundo é erótico. A raiz da poesia é o de-
sejo.

Ouvi contar assim: quando passava pelas ruas o Castro Alves, logo
as mães avisavam: recolham vossas ovelhas, que o lobo vai passar.
Acho que as palavras de um poeta servem bem para inventar um
ser frágil, que pede colo. Que pede peito. Dessa forma as leitoras
podem se sentir atraídas por esse ser de letras. Qual moça que não
correria para os braços de Fernando Pessoa depois que dele ouvis-
se isso: “não ser é outro ser. Eu não sou”. Ele diz que não é? Que
frágil! Vou inteirá-lo – diz a moça.

Há palavras com significações adormecidas. Outras com as for-


mas enterradas. Outras, para serem inventadas. Acho que o poe-
ta, que o escritor de um modo geral, tem que recuperar algumas
adormecências de certas palavras, ou mesmo algumas feiuras de-
las. E botá-las bonitas e acordadas. Tenho a impressão que as pa-
lavras trazem do fundo de seus esquecimentos riquezas que po-
dem reverdecer a linguagem. Talvez o tédio a que me refiro venha
de alguma falta. A falta de ir às origens, ao mais antigo de cada
termo. Quase sempre as invenções se fazem a partir de coisas ador-
mecidas e não de coisas inexistentes. Na casa da memória a gente
está quem foi antes. A gente está quando era pedra, quando era
chuva. Então se o poeta fala a partir das coisas adormecidas das
pedras, a partir das árvores, ele pode trazer para a sua expressão
poética coisas que não fazem tédio.

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MANOEL DE BARROS

A inocência plena de um ser humano pode alçar ele para ave. Acho
que o primeiro vagido de uma criança tem, pelo menos, a assistên-
cia do mistério. Já notei que algumas palavras que emprego têm
raízes de conchas aturdidas. Acho que as crianças pronunciam seus
primeiros cantos, como de aves mesmo. Os erros da infância vêm
carregados de nossas ancestralidades enlouquecidas. Eles trazem
nossos mais puros defeitos. O tatibitate inventa sons novos, jogos
florais, brinquedos letrais. Agora, os erros instruídos pelo desejo
de estupramento da linguagem, esses não são puros. Esses con-
têm a orgulhosa pretensão de errar.

A primeira vez de uma frase é virgem. Mas acho muito difícil al-
guém escrever um livro inteiro em que as frases todas estejam
virgens. A virgindade é ainda para muitos um símbolo de pureza.
Quando a gente era adolescente e começava a contestar isso, cos-
tumava a dizer, de galhofa: mas a pureza está entre as pernas?
Isso de a virgindade ser pureza a gente recebeu de fanatismos
religiosos. Houve um tempo em que era romântico e objeto de
sonetos ser virgem. No tempo de eu rapaz as moças não entrega-
vam a virgindade. A gente só namorava de pegar na mão. Rara-
mente de pegar na coisa. Quase nunca de coisa na coisa. Ao tem-
po, a gente nem ficava nem coisava. Só às vezes, com as priminhas,
à sombra das bananeiras, debaixo dos laranjais – como em Casimiro
de Abreu.

Nesse negócio de entortar a poesia estou inocente. Acho que uso


um radar com defeito. As minhas percepções sensoriais captam
melhor o ilógico. O sentido torto das palavras tem às vezes mais
pungência. Sempre vi nos filmes engraçados do Carlitos a maior
solidão. A grande solidão entortada pelo riso!

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ENCONTROS

Penso que não há formação para poeta. O fato de eu ser um caipira


de linguagem refinada há de ser coisa inata. O que posso adiantar
é que tenho uma fascinação irresistível pelo primitivo. Nasci e vivo
encostado à natureza. Depois viajei vendo coisas criadas pelo ho-
mem. Minha linguagem se equilibra nessas fontes. Sou por isso
Proust e sapo. Ou vice-versa.

Não sou simples, sou complicado, contraditório. O que faço são


truques com o idioma. Deixo um pouco falar o moleque, deixo um
pouco falar o vaqueiro, deixo um pouco falar o menino, deixo um
pouco falar o bocó. São todos minhas fontes.

O Livro sobre nada é cheio de tudo o que é nada.

Falo de molecar o idioma no sentido de desobedecer as regras da


gramática. Tenho medo do mesmal. Amo a sintaxe da insensatez.
Escrever por trancos me apraz mais que por trilhos. É como se eu
botasse rabo de papel nos príncipes.

Gosto mais da rima interna, a que faz ressonância no corpo inteiro


do verso. A rima que estala na última sílaba do verso, tenho im-
pressão que apaga um pouco o silêncio das entrelinhas.

Não uso computador. Às vezes tenho medo dele. Parece que teria
que deixar ali o que ele já escreveu. Sou escravo do lápis com bor-
racha. Depois tem outra: sempre imagino que na ponta do meu
lapis tem um nascimento. Sei que isso é bobagem da minha parte.
Mas as bobagens também criam raízes.

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MANOEL DE BARROS

Minha obra tem um lastro de terra, mas não gosto de ser chamado
de poeta ecológico – não dou muita importância a isso. Poeta é um
sujeito que mexe com palavras. Tenho minha linguagem própria,
que descobri que não tem nada de ecológico. Fui criado no Panta-
nal, onde vivi até os oito anos. Se as palavras que me chegam mais
comumente são do brejo, é devido ao meu lastro existencial, que
reflete um pouco a terra. Nossa vivência, principalmente a nossa
infância, é o que a gente carrega para o resto da vida. Tenho um las-
tro de coisas ínfimas, mas sou principalmente criado pelas palavras.
Elas inventam a gente mais do que a gente a elas. Elas me ocorrem.
Costumo dizer que só tenho 81 anos e muita infância para trás. O
livro está dentro da gente. Tenho a convicção de que a poesia come-
ça no desconhecer, no subconsciente, e não a partir da sabedoria.

O que faço é metalinguagem. Tenho a pretensão de que o meu


personagem principal seja a palavra. O poeta precisa descobrir a
linguagem para não imitar os outros. Em poesia, a razão não está
com nada, a insensatez funciona melhor. Por trás da criação não
está a teoria, mas a minha vivência. Expresso-me expecialmente
pela forma de dizer. Assunto é coisa banal. Roland Barthes dizia
que o que se sabe hoje do homem, Cristo já sabia e dizia melhor
que nós: suas palavras carregavam a eternidade. Não tenho ne-
nhuma intenção de ser um filósofo. Tenho muito gosto é pela ma-
neira de dizer. Meu gozar é no fazer verso. Sou um homem de ida-
de, tenho uma sabedoria que a idade me deu. Posso julgar de uma
maneira pessoal, e não pela leitura. O homem vai ficando velho e
sábio. Adivinhar vem do verbo latino divinare, que guarda seme-
lhança com o divino.

Lapido os poemas. Não acredito em inspiração. Primeiro anoto tudo


em meu pequeno caderninho, juntando minhas experiências exis-

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ENCONTROS

tenciais e linguísticas. Quando termina essa fase, que dura dois,


três, quatro anos, vou ao caderno para catar os poemas e dar-lhes
a forma definitiva. Escrevo a mão e a lápis. Jamais rabisco; uso
borracha e desmancho. Escrevo as coisas, junto durante algum
tempo, e depois cato os trechos e monto o poema. Para o novo livro,
por exemplo, criei o poema Jogo de amar em 12 partes. O trabalho do
poeta é esse.

Sou leitor de Guimarães Rosa. Gosto de João Cabral de Melo Neto,


Augusto dos Anjos, Manuel Bandeira, Fernando Pessoa e Camões.
Leio muito o Padre Vieira. Foi ele que me desvirginou para a lingua-
gem, foi meu iniciador. Dos estrangeiros, Rimbaud, Baudelaire,
Mallarmé, Pascal, Montesquieu, Rabelais e Proust estão entre os
autores de que mais gosto. Sou muito apegado à literatura de lín-
gua francesa. Morei um ano nos Estados Unidos, onde tomei gosto
pela literatura de língua inglesa, especialmente T.S. Eliot, Ezra
Pound e Stephen Spender.

Não sei se sou parte de uma tradição na Literatura Brasileira. Eu


criei um estilo próprio. Já me chamaram de poeta da geração de 45,
mas não aceito isso. Eles queriam tornar a linguagem uma coisa
imaculada. Sou um estuprador da gramática.

Eu não me sinto isolado. Tenho apartamento no Rio, leio jornal,


assisto as notícias e debates da TV, leio os jornais do Rio e São Paulo,
estou antenado. Assito até a novelas. Em Campo Grande a gente
tem de tudo. Só não tem livro que preste, mas pode-se encomendá-
lo rapidamente. Uma vez abri uma livraria junto com minha filha
e minha mulher. Os amigos me aconselharam a vender best-sellers,
mas encomendei apenas Machado, Joyce, Vieira, Euclides da Cu-

139
MANOEL DE BARROS

nha, coisas que enriquecem a sensibilidade. A obra completa de


Proust, por exemplo, passou um ano sem ninguém comprar. Enco-
mendei a obra de Joyce, ninguém comprou. Vendia dicionários,
algum José de Alencar, Machado, mas era só. Desisti. Considero
um privilégio ter em Campo Grande uma disponibilidade para a
leitura que o ritmo de outras cidades talvez não oferecesse. Mas
não tenho buscado nada novo, estou sempre relendo minhas prin-
cipais influências.

Aqui não tem teatro, o que faz bastante falta. Já os cinemas geral-
mente exibem somente flmes de bangue-bangue. Vi todos os fil-
mes iranianos. Também gosto muito do cinema italiano, Fellini,
Antonioni, Vittorio de Sica (especialmente Ladrões de bicicleta), e
também do francês. Gostei muito daquela produção da Croácia,
Antes da chuva. Charles Chaplin para mim é o gênio do século. Jim
Jarmusch é outro grande diretor, mas parece que Hollywood pre-
fere deixar os independentes de lado.

Minha poesia é muito intuitiva. Quisera que fosse mais primitiva!


Eu li livros de mitologia indígena e vivi muitos anos com os índios
chiquitos, da Bolívia. Gostava de tomar chicha – uma aguardente
de milho – e pescar. Eu tinha fascinação pelas línguas primitivas
indígenas. Eles, primeiro que a gente, fizeram árvore vivar tatu,
criança nascer de árvore. O poeta é um inocente que é ligado a es-
sas coisas primitivas, apesar dos estudamentos. Faço poesia sem
importância. Tenho esse jeito de cabeça baixa. Acho que nasci com
o olhar para baixo. Tenho uma revolta contra a injustiça social. São
os pobres seres que me fascinam. Sou uma pessoa que se liga muito
ao pobre ser humano – inclusive metaforicamente – como a pobre-
za de um milionário com dor de corno. Fascina-me explorar coisas
e seres desimportantes.

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ENCONTROS

Minha poesia é muito intuitiva.


Quisera que fosse mais primitiva!
Eu li livros de mitologia indígena
e vivi muitos anos com os índios
chiquitos, da Bolívia. Gostava de
tomar chicha – uma aguardente
de milho – e pescar. Eu tinha
fascinação pelas línguas primiti-
vas indígenas. Eles, primeiro que
a gente, fizeram árvore vivar
tatu, criança nascer de árvore. O
poeta é um inocente que é ligado
a essas coisas primitivas, apesar
dos estudamentos.

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MANOEL DE BARROS

Estou muito perto do silêncio. Quase dá pra lamber…Que bom seria


que as palavras que me ocorrem fossem revoadas, viessem do vôo
das aves. Mas elas me vêm, as palavras, do meu chão mesmo. Quase
que são as tripas do meu espírito. Ainda agora estou tentando novo
livro para o qual preciso de uma visão diferente. Estou farto de ver
as coisas do meu jeito. Quisera uma visão diferente. Então pensei
em transferir o ermo de meu olho para o ermo de um lagarto. O
lagarto se encolheria a ermitão e, com certeza, falaria uma lingua-
gem original. Meu livro teria uma visão nova do mundo, vez que o
ver seria do olho de um lagarto que tem o ermo de um homem
dentro. O nome do livro novo seria assim: O Homem que transferiu
o seu ermo para o olho de um lagarto.

Confesso: nunca releio os meus livros. Nem para corrigir algum erro
de editoração. Peço aos próprios revisores das editoras que façam
isso por mim. As vezes me perguntam sobre alguma sintaxe torta
que lhes pareça um despropósito. Peço-lhes que deixem os des-
propósitos porque ali estão pra produzir melhores rumores silábi-
cos. Não acrescento nem suprimo nada às novas edições. Tô fora,
como se diz. Quando entrego um trabalho para ser editado, clareio
dele, não quero mais saber dele. Essa a razão, certamente, porque
me repito de um livro para outro. Repito muitas construções por-
que elas se tornaram sestros em mim.

Não produzo em abundância. Todos os meus livros são magros.


400 versos, mais ou menos, cada um. Meus livros não ficam em pé
sozinhos. Sempre acho realmente que já escrevi tudo. Mas depois
que publico, outras palavras me aparecem, me tentam, me puxam
e até se oferecem para mim no cio. Como só sei fazer versos, ou
frases, como querem outros, acabo remendando, remendando
palavras ao ponto que semelham comigo e acabam me sendo. Meu

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ENCONTROS

mundo é pequeno como já disse e não saio de dentro dele nem pra
pescar. Isso também eu já disse. Não saio do meu quintal. Meu
quintal é cheio de plantas e de latas. Latas que me enferrujam.

Continuo escrevendo à mão em caderninhos que eu mesmo fabri-


co. Não sei escrever de computador, nem mesmo sei escrever dire-
tamente na minha Olivetti. Uso a máquina só para copiar os meus
rascunhos. Sou viciado em rascunhos. Não sei escrever nada de
primeira mão. Nem telegrama de pêsames nem bilhetinho pedin-
do um lápis emprestado. De tudo tenho que fazer rascunho. Mi-
nha borracha, aliás, é mais viciada do que eu. Ela acha que tem
que apagar pelo menos uma vírgula mal colocada. Eì um costume
que adquirimos no internato. Eu tinha um professor de português
chato, perfeccionista. Tirava nota da gente só por uma cedilha mal
posta. De forma que uso borracha até hoje só pra não ceder ponto.

Me formei, de fato, mas não sou advogado, nunca fui. Nunca exer-
ci a profissão. Aliás, minto. Em tempo muito ruim da minha vida fui
advogado do Sindicato dos Peixeiros do Rio de Janeiro. Os peixei-
ros gostam de pesar os peixes botando na barriga deles um pedaço
de chumbo de 200 gramas. Não todos, é claro. Os infratores pegos
nesse ato feio eram presos e levados para a delegacia mais próxi-
ma. Meu papel era o de comparecer à delegacia, pagar uma fiança
e soltar o peixeiro. Fiz isso durante seis meses. Era no tempo da lei
da economia popular. Depois preferi carregar água na peneira, que
é o que fazem os poetas.

Insisto em falar sobre a linguagem. Quem nos tira, aos artistas em


geral, do nosso quintal e nos leva para novos altares é a linguagem.
Não entra aí o falar de coisas maiores ou menores, o que conta é o

143
MANOEL DE BARROS

modo de falar. Dos prêmios penso que ajudam sobretudo quando


vêm acompanhados de grana. Ajudam no reconhecimento e no
bolso. Queria ainda acrescentar que não sou modesto com relação
ao meu fazer poético. Quero dar grandeza às pobres coisas. Quero
monumentar o cisco e o pobre-diabo. Isso não é ser modesto. Acho
até que seja coisa soberba.

Pode ninguém acreditar, mas sempre escrevi na moita e nunca


perdi a esperança de ser reconhecido. Penso que escrever na moi-
ta faz bem. Entre fogos cruzados não sou capaz de criar. Preciso de
uma grota. Qundo voltei para o interior (vivi 40 anos no Rio), me
senti mais solto e mais fértil. Me sinto bem na lonjura dos grandes
centros. Tenho uma sensação de estar extraviado, e isso me faz bem.
Aqui eu exerço o meu silêncio.

144
ENCONTROS

Penso que haja em cada um de nós um desejo secreto de


peraltagens, de ficar nu na praça, de fazer cambalhotas, de exercer
um pouco o menino que resta de nós. Bernardo é um ser de águas.
Eì um ser que não conhece ter. Um ser que, por fastio, nem fala.
Gosta mais de alisar passarinhos do que de trabalhar. Eì inexplicável
como ele pega até silêncio. Eì inexplicável como ele acaricia os ven-
tos e as chuvas. Isso tudo nem é literatura. Confesso que meu Re-
trato do artista quando coisa é um pouco meu desejo de sagrar as
ternuras com que Bernardo trata as moscas e os sapos. Seria o meu
ser chegar em estado de coisa, em estado de poesia.

Buscar esse estado de inocência há de ser uma fuga. Eì também


procura de essência. Busca de minadouros. Aventura humana atrás
de natências. Nossa palavra se dá bem quando acha suas
natências. Penso que arte, em todos os tempos, é busca do adâmico
em nós, do olhar que viu pela primeira vez o mundo. E o melhor ser
em nós é o que ainda não passou perto das vilanias, das traições,
etc. Parece que há no artista um profundo desejo de recuperar o
tatibitate, a forma ainda embrionária da palavra. Voltar ao estado de
árvore, por exemplo. Nenhum cientista conseguiu provar ainda que
o homem é mais sábio do que uma árvore. Tenho muito desejo de
alcançar a voz das árvores. O canto apenas.O que chamo de
despalavra. A despalavra é um enorme carregamento de gorjeios.

Não tenho tempo certo para compor um livro. Aliás, acho que nin-
guém tem. Possuo letras, sílabas, palavras que ajunto, misturo,
faço frases, verso com elas, boto sangue e ritmo nelas – até que me
pareçam poema. Arranco tudo do nada. As minhas raízes, muitas
vezes andam empedradas e nada rendem. Preciso fazer com que
as palavras me sejam. Tem vez que não desejam me ser. Aí fica di-
fícil. E se elas não me forem falseiam a obra.De forma que é uma

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MANOEL DE BARROS

briga. Uma briga às vezes vã – como diria o Drummond. Sei mais


que é insondável. Portanto, sendo assim, não posso prever o inter-
valo de um livro para outro. Ainda, ao fim, eu tenho que torcer
palavra por palavra como quem torce roupa até que fiquem à mi-
nha feição: tortas.

Tenho uma ignorância imensa para agruras. O verso de renovar o


homem usando borboletas, esta claro que é, no final, o desejo de
todo poeta. Claro que outros hão de querer renovar o homem à
base de clonagem e outras químicas. Não acho graça nisso. Sou
primário. Tenho visão de ave. Sou apenas um fazedor de amanhe-
cer. Apenas um entendedor de orvalhos, como as aranhas. Tenho
suficientes irresponsabilidades para dizer isso. Isso é uma coisa de
zoró. Ninguém renova o mundo usando borboletas, senão os poe-
tas e as crianças. Melhor.

Tenho de ficar prenhe primeiro. Depois vêm períodos dedesânimo,


vômitos – igual gestação para ter criança. Durante o período de
gestação a gente lê dicionário, espanta mosca, toma nota de sinta-
xes alheias, ouve música, escuta as formas e as cores das coisas,
arma arapuca no quintal, descobre o amor das baratas, etc. Tudo
isso vou anotando em caderninhos. Eì uma forma desnatural de
conseguir algum poema. Certas palavras se queimam às vezes.
Outras reverdecem. Depois é que vou escolher as mais doces para
o poema. Meu trabalho é pesado e sem data para nascer.

Não planejo meus livros. Eles aparecem. Trabalho diariamente das


7 às 11 horas da manhã no meu escritório de ser inútil. Procuro o
que não perdi. Eì um trabalho sem dor nem patrão. Seria como uma
tarefa de não fazer nada. Afinal, não é fácil a gente preencher o

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ENCONTROS

oìcio quatro horas por dia. Neste recanto, invento artices. Olho para
cima, leio e releio páginas de livros, respondo cartas, faço aviões de
papel, vou até a infância e volto, espanto moscas, ouço músicas,
consulto dicionários, etc. Faço tudo isso como exercício para que a
minha imaginação desabroche. De repente, quando me vejo en-
tre brejo e dicionários, cometo uns rabiscos. Depois de alguns
meses, cato uns rabiscos para compor um verso ou um poema.

147
MANOEL DE BARROS

Acho que nasci com a doença de fazer poesia. Depois ela veio fa-
zendo um trabalho escondido dentro de mim, que nem semente
dentro do chão. Esse trabalho seria uma preparação para brotar. E
esse trabalho só é feito dentro de alguém que já tenha nele a doen-
ça. Quem não veio com essa doença, não aceitará o gosto das pala-
vras. Não aceitará que elas tenham sabor, sexo, reentrâncias, can-
to, cores, formas, etc. Quando cheguei aos 13 anos, brotei. Estava
lendo Vieira. Depois fui entortando pro lado da poesia e entortei.
Vivia fazendo piruetas com as palavras. Acho que a história é essa.
Não houve encontro súbito.

Conheci o Evangelho de Cristo antes do evangelho de Marx. Cristo


deu a Utopia. Marx tentou realizá-la. Algum tempo briguei por
acabar a pobreza. Não acabou. Mas tenho uma semente genética
em mim de dar mais importância às coisas desimportantes. Tenho
um comportamento cristão-marxista. A minha solidariedade aos
humilhados e ofendidos vem da semente genética e do fato de eu
ter nascido no século XX, que foi o século em que o homem come-
çou a se preocupar de novo com a pobreza. Falei de novo porque
antesmente esse amor ao pobre era assunto de Cristo. Não há
nobreza em ser pobre, só há mais fome.

A natureza tem sua luxúria, sua sensualidade, sua exuberância.


Entendo que na arte é preciso podar a exuberância. A arte tem que
expurgar das palavras a luxúria. Tem que expurgar o demais. A
exuberância vegetal, mineral, hídrica, celestial ou gental, tem que
ser apagada. De minha parte, gosto mais das palavras pobres, que
moram nos fundos de uma cozinha – tipo cisco, borra ou lata - do
que das palavras luxuriosas – tipo excelência, conspícuo ou
sodalício. E peço desculpas pela delicadeza.

148
ENCONTROS

Acho que a língua da poesia é a da imagem. Li algures e não me


lembro de que autor que: Poeta é aquele que pensa com imagem.
Também a nossa querida Nize da Silveira me disse uma vez: os
poetas e os loucos são aqueles que caíram no mundo das imagens.
Essa é a minha opinião: poeta que ainda não caiu no mundo das
imagens, ainda não está poeta. O que não aprendeu ainda a re-
nunciar ao desejo de informar, ao desejo de narrar, não aprendeu
a cantar. Quem canta é músico, passarinho, pintor, vento, poeta,
chuva. Poeta não precisa de informar sobre o mundo. Poeta preci-
sa de inventar outro mundo. E o instrumento para inventar outro
mundo é a imagem, a metáfora e outros descomportamentos
lingüísticos.

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MANOEL DE BARROS

Penso que dos quatro elementos, sou mais água. Água que pene-
tra a terra e que faz nascer do casamento árvores. Confesso que
tenho fascínio por árvore. Meu desejo mais forte é o de ser convida-
do por um pássaro para ser a árvore dele. E não nego que aprecio
muito o ar por motivo da competência dos pássaros. Agora com fogo
não brinco. Quando era menino (falando de fogo) eu pensava que
as rainhas não tinham fogo. Achava que as rainhas eram neutras.
Que só gostavam de desfilar e não tinham fogo no corpo como as
outras senhoras têm. Isso me ensimesmava, no colégio. Por fim,
acho que os 4 elementos são importantes, mas a água é mais por-
que está nas nossas origens.

Todos os elementos são matéria de poesia, mas para mim o ser


humano é a grande matéria para poesia. Eì do ser humano que sai
o canto, que sai a dor, o amor, a dúvida, o ciúme, a morte. Não pre-
cisamos de terras nem águas nem paisagens para a poesia.
Shakespeare só se serviu do ser humano e de suas paixões. Cristo,
Marx e Freud só se ocuparam do ser humano. Proust era tão chega-
do que gozava só de ouvir a voz de Albertine. Nós, seres humanos,
carregamos o essencial dentro de nós: o sol, a água, o verbo, os
nomes e as limitações. Com as palavras nós somos onipotentes.
Chegamos até a lugares que não existem.

Meu fado é o de não saber de mim quase tudo. Por isso sobre o
nada eu tenho profundidades. E eu disse no Livro sobre nada que
“perder o nada é um empobrecimento”. De que eu iria falar então
se eu acho que o nada é tudo? Todas as palavras, inclusive pó, es-
tão emprenhadas de nada. Isto é: estão emprenhadas do que nos
tornaremos. Como posso acreditar que somos alguma coisa mais
que nada? Não tenho esse poder divino. Cresci nos desvãos de mim.
E não sei sair dele. Acho que poderoso não é o homem que desco-

150
ENCONTROS

briu o ouro, mas o homem que descobriu o nada. Sei que isso é
negativo, mas eu não sei passar por cima de mim.

Já declarei algures que sou um manobreiro de palavras. Não expo-


nho as verdades porque as verdades são muito relativas. Uso as
palavras mais para inventar e para mentir do que para dizer algu-
ma certeza. Posso voltar à criança que fui, ao moleque que gostaria
de ter sido e que não fui, posso chegar, manobrando palavras, onde
quiser. Posso voltar ate à infantice. Não tenho outra saída para
brincar senão fazendo peraltagens com palavras. Não posso mais
virar cambalhotas nem saltar obstáculos porque me arrisco a que-
brar os ossos, mas faço isso com palavras e nem saio ferido. Essa é
a maneira com que alcanço os meus tatibitatis. As palavras me
deixam soberano. Por isso que falei que o Retrato do artista é uma
volta à infantice.

Passei anos morando na Usina da Conceição, na beira do rio


Cuiabá. A usina fabricava cachaça. Havia cachaça de terceira, ca-
chaça de segunda, cachaça de primeira, e o restilo. Restilo é o resul-
tado mais fino da destilação. Acho que a poesia é a mais fina des-
tilação da palavra. Eì a essência do ser humano. Eì o mel da pala-
vra. Acho que eu estava pensando na usina do meu tio quando fiz
a afirmaçao. Agora eu estou a explicar a comparação. Para mim seria
a mais doce definição de poesia: poesia eì o mel da palavra.

No assunto de índio, também vou de tropo. O índio é o ser primiti-


vo em mim. Eì o ser primário. Eì o que funciona pelos sentidos e não
pela razão. Porque somos nós, poetas, que percebemos as ima-
gens. Quem percebe as contigüidades verbais ou substantivas são
os sentidos. Não é com a razão que o poeta imagina, que o poeta

151
MANOEL DE BARROS

descobre. Nossa sabedoria vem pelo ser, pelos cheiros, pelo tato,
etc. Depois ao poeta cabe arrumar as palavras no poema com o seu
sentido estético. A arrumação das palavras também tarefa do ou-
vir e do ver. Nosso primeiros conhecimentos vêm pelos sentidos.
Quem descobriu primeiro a torpeza humana não foi a razão inte-
lectual, mas os sentidos.

O agreste em mim nunca domei. Nem seria bom que domasse. O


agreste deixa um sabor de brejo e dicionário em meus poemas. Um
sabor de rã e de Joyce. A mistura não empobrece. Eu gosto de ser
dominado pela natureza primitiva. Juro que tenho até medo da
libertação. O primitivo pensa com palavras. E eu não quero me li-
bertar da escravidão agreste, das agrestes palavras.

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ENCONTROS

Muitas vezes ouvi uma sentença popular que diz:o que se leva da
vida é a vida que a gente leva. Pra que ficar remoendo? Acho que o
importante é buscar o regozijo. No amor a dois ou no amor ao pró-
ximo. Fernando Pessoa, que sabia da vida com solidão e desespe-
ro, escreveu: “Há metafísica bastante em não pensar em nada”.
Mas isso é pra não dizer nada. Eu também não sei responder nada.
Peço indulgências.

O artista pode até ser um desgraçado, mas a sua arte há de sempre


ser uma graça. Pode ser que Rimbaud tenha sido um desgarrado,
mas ele pôs vertigem nas palavras. Produziu encantamentos. Não
acho que arte seja uma desgraça divina. Acho que arte é uma graça
humana.

Eu fui no dicionário de Littré em busca de uma definição para a


eternidade. Achei estas: eternidade pode ser a duração infinita do
tempo. Pode ser sinônimo de sempre. Pode ser sinônimo de nunca
mais. De para todas as horas. E de para nunca dos núncaras. Se a
eternidade está no presente, eu deixo de saber. As coisas abstratas
não podem ser fotografadas. Eternidade é uma palavra muito
encostada em Deus. E pouco encostada nos homens. Sou ínfimo
para entendê-la.

153
MANOEL DE BARROS

Acho que o mundo sempre esteve presente em minha poesia. So-


bretudo botando o Ser humano como a preocupação, agora e sem-
pre, em todo mundo, a mais atual. Sei que minha poesia é atraves-
sada, desde o primeiro livro, por seres humanos. Mais especial-
mente por aqueles que moram debaixo do chapéu: porque não
têm casa. Mais especialmente por andarilhos e por loucos de água
e estandarte. E ainda mais por pessoas que moram no abandono
da sociedade. Por isso eu acho que nunca andei fora deste mundo.
Eu nunca fui sideral. Lido mais com desperdícios, com sucatas
verbais e com insignificâncias. Mexer com gratuidades me enri-
quece.

Bernardo fala sempre que: Aves sonham ser ele! Tenho que respei-
tar. Quem recebe das aves esse presente, essa homenagem de ser
sonhado por elas, tem que cantar desdobrado igual a elas. A cisão
dos versos vem de Bernardo ser tartamudo. Vem dele ter a voz abor-
tada. Fui recolhendo devagar suas solenidades de linguagem, mais
ou menos nessa forma entrecortada com que falava. Bernardo só
usa as palavras para compor seus silêncios. Pessoas como ele,
afásicas, quase sempre desarmam as frases. Bernardo desarma.
Se Bernardo fosse estudado, acho que ele escolheria essa mesma
forma de haikai para compor seus silêncios. Contudo, faria isso
dando aos versos metro e ritmo de haikai.

Acho que cedo descobri o que mais tarde haveria de ler em


Mallarmé. Que poesia não se faz com idéias, mas com palavras.
Guimarães Rosa quando esteve entre nós descobriu como os índi-
os Terena nomeiam as cores. Eì assim: Vermelho, sangue de arara;
verde, sangue de folha; amarelo, sangue de sol; e azul, sangue de
céu. Eles fizeram metáforas com as cores. Tarefa do poeta há de ser
também encontrar o equilíbrio sonoro das palavras. Ouvir o som

154
ENCONTROS

das letras e das sílabas. E tudo como queria Mallarmé: em cima das
palavras e não das idéias. Em belíssimo estudo que Augusto de
Campos fez sobre Rimbaud, ele disse que o poeta corroeu os limi-
tes entre a prosa e o verso. Isso se vê mais em Une saison en enfer.
Acho que a poesia está mais no mexer com as palavras. O sentido
da palavra não importa para a poesia, o que importa é uma certa
música e um certo modo de dizer as coisas, disse Borges. E ficam os
limites corroídos.

Deixo aos meus alter ego a terefa de realizar os sonhos meus frus-
trados. Coisas que não fui capaz de fazer realizo através deles. Por
exemplo: eu quis muito ser andarilho no Pantanal. Mas nunca agi
no sentido de ser um andarilho. Então inventei alguns que fize-
ram isso por mim. Que dormiam debaixo de árvores, que usavam
ornamento de trapos e eram aceitos pelos pássaros nas estradas.
Eu nunca pude fazer essas coisas porque minha inércia remove
montanhas. E porque acho que o andarilho é um ser humano que
faz comunhão completa com os orvalhos da manhã, com a tarde e
suas garças, com as cores do sol, e com o chão, e com as águas, e com
as chuvas, árvores e ventos. Durante as viagens sem rumo dos
andarilhos eles são instalados na natureza igual se fossem uma
aurora, uma pedra, um rio.

Não tenho preferências sobre os personagens que criei. Gosto do


velho que morava na árvore, gosto do Bernardo que se tornou uma
árvore e gosto do Apuleio que se perdeu em águas. Suspeito que os
três podem dar teatro. Mas só suspeito. Quanto ao Apuleio, eu es-
tava lendo Michel Foucault ( Doença mental e psicológica ), quan-
do descobri que o delírio pode ser criador de desconstruções ver-
bais. A esse tempo me contaram a história de um sujeito que pas-
sara três dias e três noites sobre uma canoa, perdido nas águas da

155
MANOEL DE BARROS

maior enchente do Pantanal. Ao fim dos três dias, sem comer e sem
dormir, o canoeiro delirou. Delirou e se pôs a escrever coisas, pala-
vras desencontradas, frases fragmentadas, desconstruídas. A par-
tir dessa história inventei o Apuleio. E tentei um poema com frases
desconjuntadas, desconstruídas. As lições que eu lera em Foucault
me ajudaram na tarefa.

156
ENCONTROS

Do meu estilo não posso fugir. Ele não é só uma elaboração verbal.
É uma força que deságua. A gente aceita um vocábulo no texto não
porque o procuramos, mas porque ele deságua das nossas
ancestralidades. O trabalho do poeta é dar ressonância artística a
esse material. Penso que combinar o sentido com os sons é que
produz o estilo. O barrismo há de acontecer nos meus textos por-
que vem de eu ser, de eu estar, de eu ter sido. Não há fugir. Estilo é
estigma. É marca. Todo estilo contém as nossas ancestralidades.
Ninguém consegue fugir do erro que é, do acerto que é. Vou ser
sempre o que me falta. De forma que vou cair sempre no barrismo
porque a gente é sempre uma falta de nós. Papel do poeta seja
sempre o de obter o que falta nele. E falta tudo. Papel de poeta é o
de obter uma linguagem que o complete. Esse objeto de lingua-
gem que me completa há de ser meu estilo. O barrismo será sem-
pre uma expressão de mim. Sou fiel ao erro que sou.

O que progrediu no nosso milênio foi a informação. A poesia está


no lugar de quando Homero, de quando Shakespeare. Poesia não
depende de informação. Informação não aumenta nem diminui a
poesia. Aliás, pode diminuir se o poeta se meter a dar informações
através de seus versos ou de suas cores, ou através de sua música.
E os mistérios do homem não informam. A palavra poética não será
nunca um instrumento de informações senão que sempre um ins-
trumento de encantações de celebrações. Onde a palavra poética
chega a informação não alcança. Poesia é essência. Informação é
casca. O poeta cria. A informação divulga. Há um lado do homem
que precisa da informação para se cumprir. Há outro lado do ho-
mem que precisa da poesia para se completar. Porque a gente é
incompleta. Porque a gente é uma falta. Informação preenche a
necessidade de estar. Poesia preenche a necessidade de Ser. En-
quanto a gente não virar robô, a poesia é necessária. Precisamos
do feitiço das palavras e não da casca das palavras.

157
MANOEL DE BARROS

Escrevo meu avesso in-verso; por isso não sou de entendimento


linear. Sou um ser difícil, contraditório, inseguro. Sou um antro de
incertezas. Sou complicado. Por isso, em vez de dizer: Sou ávido de
seu beijo, eu digo: Estou com febre em sua boca. As duas frases
dizem a mesma coisa. Só que a primeira frase é reta, sem metáfora.
E a segunda é curva, com enleios. Meus leitores têm que ter enlei-
os, têm que ser enrolados por dentro para acompanhar as curvas
que os meus versos fazem. Que as metáforas fazem. Sou difícil
porque escrevo por de dentro. Acho que foi Millôr Fernandes quem
me mostrou primeiro ao grande público. Millôr, nos anos 70 e 80
tinha colunas respeitadas nas revistas Veja, Isto é e no Jornal do
Brasil. Ali sempre exaltava a minha poesia. Pedia que me lessem.
Recomendava. Sou grato ao Millôr e ao Antônio Houaiss, ao Ismael
Cardin, ao João Antônio, ao Fausto Wolf que também falavam bem
de minha poesia em suas colunas de jornais. Acho que foi nos co-
meços dos anos oitenta que começaram os intelectuais a me ler.
Depois fui contratado pela editora Civilização Brasileira que pu-
blicou minha obra quase toda em 1990. agora a Record, de quem
sou contratado, está reeditando todos os meus livros separada-
mente. Estou remetendo ainda este mês à Record meu novo livro
de poemas e que tem o título definitivo de Retrato do artista quan-
do coisa (uma alusão visível ao Portrait of the artist as a young man,
do Joyce). Só não serei jovem nos poemas ¾ serei Coisa.

Bernardo há de ser uma vontade em mim da inocência perdida.


Uma vontade em mim do primitivo. Uma vontade em mim da
despalavra. Uma vontade de conhecer o mundo só pelo rumor das
palavras. Bernardo é a palavra encostada à natureza. Encostada
aos mitos. Encostada à invenção. Talvez tudo que dentro de mim
quer ser natência, quer ser pré-coisa. Bernardo me lembra Tirésias,
o cego adivinho de Édipo. Tirésias podia prever através do vôo dos
pássaros os caminhos de Édipo. Ele tem a sabedoria das fontes.

158
ENCONTROS

Quero esclarecer que Bernardo não é um heterônimo, não é um


pseudônimo, não é ficção. Se trata de um ser humano aonde a
poesia mora. Ele existe e está pronto a traste e está pronto a poema.
Bernardo faz o papel de meu guieiro. Ele já me ensinou a conversar
com as águas, com as árvores, com as aves. E me ensinou a não
saber mais nada. (Agora eu já sei) Acho que tudo o que não tenho
coragem de falar usando as minhas palavras eu falo usando os si-
lêncios de Bernardo.

Para efeito de poesia: o que chamo de ignorância é assim; a gente


enterra tudo o que aprendeu nos livros debaixo de um pé de pau,
atrás de casa. Depois dá-se uma mijada em cima para produzir fru-
tos. Isso faz a gente chegar perto da ignorância. Faz a gente chegar
perto do menino que foi, do tonto que é, e do poeta que pensa ser.
Faz a gente chegar perto de ser pássaro. Isso faz a gente chegar
perto do início das águas, do início do mundo. Isso faz a gente che-
gar perto das desexplicações e mais longe dos conceitos. E mais
longe do saber abstrato. Melhor ser as coisas do que entendê-las.
A mais pura ignorância é saber explicar o caminho dos pássaros,
das águas, das pedras, dos sapos. É estar no início onde tudo ainda
não foi explicado, é estar no reino de poesia. Aqui a gente só sabe
pelos ventos, pelo sol, pelas chuvas, pelos sons, pelas formas, pe-
los cheiros. Quando a gente ainda está em estado de árvore é que
pode sentir os enleios dos cantos. E enxergar os perfumes do sol. A
ignorância que constrói a poesia não é um estado mental ¾ é um
ato de sensibilidade. Criar começa no desconhecer.

Aceito as gírias com alegria. São maneiras que o povo encontra de


brincar com o idioma. No falar cotidiano aceito todas, mas, no es-
crever, uso o mesmo cuidado que Mestre Aurélio usava. Antes de
registrá-la em seus léxicos, o Mestre esperava que o tempo

159
MANOEL DE BARROS

sedimentasse a gíria na alma do povo. Que o tempo provasse que


a gíria tinha mesmo que ver com as raízes do povo. Ou se eram gags
somente. Sei que, enquanto viveu, Mestre Aurélio dispunha de
equipes de lingüistas nos lugares mais distantes do país, encarre-
gadas de descobrir as gírias que houvessem criado raízes na alma
do povo. Só então as dicionarizava. As gírias, quando já
sedimentadas na alma do povo, podem servir à poesia como quais-
quer outros termos.

Estou certo de que Joel Pizzini, em Caramujo-flor, quis falar de


minha poesia antes que de mim. O filme quer expressar por ima-
gens uma escrita poética. Joel quis dar uma idéia de minha lingua-
gem e não de minha vida. Minha vida não tem nada com os jacarés
nos trilhos de uma estação; mas a minha linguagem tem. Um jaca-
ré andando sobre trilhos é tão insólito como renovar as mesmices.
Penso que Joel quis mostrar isso. Botou as lesmas lentas e gosmosas
dentro de casa. Mas o lugar das lesmas lentas e gosmosas é subin-
do pelos muros leprentos da casa. O filme tem muito de minha arte
e nada de minha vida. Ainda bem.

Eu estou no mundo como um ser de linguagem. O outro é um fa-


zendeiro. O fazendeiro produz carne. O poeta produz poemas. O
trabalho do fazendeiro é feito de a cavalo. O trabalho do poeta é
feito a lápis. Enquanto os touros fazem bezerros, os poetas fazem
coisas que se desmancham no ar. Sempre acho que na ponta de
meu lápis tem um nascimento.

160
ENCONTROS

Pra mim a poesia vem devagar devagarinho. Saco os versos da cas-


ca em que existo a torquês. Nunca entendi os arroubos da inspira-
ção. Pra mim inspiração é como dor-de-corno. Provoca arroubos
quase sempre subliterários.

Esse olhar para baixo que tenho não sei de onde vem. Não sei ex-
plicar. Ainda porque o meu forte é desexplicar. Tem vez imagino
que esse olhar para baixo vem da infância. Fui criado no chão. Chão
mesmo, terreiro. No meio das lagartixas e das formigas. Brincava
com osso de arara, canzil de carretas, penas de pássaros. De outra
forma penso que esse olhar para baixo é atávico. Vem de bugre.
Posso um pouco imaginar que essa fascinação que tenho pelo pri-
mitivo é força que vê pra baixo. Quando jovem, fui até viver algum
tempo com os índios Chiquitanos, na Bolívia. Bebia chicha com eles
e me alimentava de bocaiúva com leite de cabra. Dormia entre pe-
dras e lagartos. Reparei que os filhos dos iìndios brincavam, como
eu, no terreiro, com osso de arara, sabugos e pedaços de pote. Não
sei se isso explica ou desexplica o gosto por insignificâncias. Acho
que o prazer de manobrar com palavras pobres explica melhor.

Existem poetas de idéias também. Os que desejam exprssar por


versos seus ideais políticos, seus sentidos de justiça etc. De minha
parte do que gosto mesmo é de fazer versos insensatos, com idéias
desencontradas. Gosto de usar palavras para criar despropósitos.
Poesia para ser séria tem que alcançar o grau de brinquedo. A pa-
lavra poética tem que se desligar de informações. Que nem a mú-
sica. Que nem as formas. Que nem as cores.

Sofro com as desigualdades do homem. Até já fui militante de um


partido para ajudar a combater essas desigualdades. Mas a minha

161
MANOEL DE BARROS

poesia não entra nesse terreno de idéias. Eu sou apenas jogo de


palavras. Só queria inventar alguma beleza. A gente quer tirar
matizes novos das palavras. Pregadores podem ajudar o mundo a
ser mais justo. Poetas não têm esse privilégio. A gente mexe com
gratuidades.

Quem sou eu para saber a verdade, com letra maiúscula. Não sei
ela nem com letra minúscula. Sei que a poesia humaniza as coisas
e vice-versa. E sei que as máquinas desumanizam. As máquinas
só se humanizam quando não prestam mais pra funcionar. Quan-
do ficam jogadas num terreno baldio para as moscas e as crianças
brincarem. Tenho dois versos do meu próximo livro que podem
dar uma idéia do que seja para mim hoje a sabedoria. Eì assim:
“Sábio não é o homem que inventou a primeira bomba atômica.
Sábio é o menino que inventou a primeira lagartixa”.

Eu escrevi: “Poesia não é para compreender. Eì para incorporar.


Entender é parede”. Quis dizer que a poesia se absorve através de
percepções da sensibilidade. Que a razão não está com nada em
poesia. O que fiz foi um tropo. Mudei razão por parede. E um tropo
de truz, como diria Machado de Assis.

Sou disciplinado. Acordo às 5 da manhã, tomo o meu


guaranazinho. Depois tomo o meu café. Depois me tranco no meu
escritório de ser inútil. Vou ler, vou escrever, vou matar mosca, fo-
lheio dicionários, escrevo cartas, tomo nota de palavras. Essas coi-
sas. Me solto às 11h30. Tomo meus aperitivos antes do banho. Al-
moço e vou para o escritório de meu filho para fazer alguma coisa e
conversar fiado com pessoas. Minha poesia faz um avesso inverso
de mim. Por isso não me acham muito.

162
ENCONTROS

Nós somos pensantes mais que comungantes. Poesia é pra se co-


mungar. Fazer fusão com as nossas essências. Poesia é mais pura
destilação da palavra. Só presta pra nossa sensibilidade. Só presta
pra celebrar.

Conto um causo. Me separei da famiìlia desde os nove anos. Passei


cinqüenta anos escrevendo pra minha mãe pelo menos uma vez
por semana. E ela escrevia para mim. Um dia peguei as cartas da
mãe. Todas as frases tinham o mesmo fôlego dela. Cerca de 23 a 25
letras. A gente sabia onde parar pelo fôlego. Porque a mãe não bota-
va ponto nem vírgulas nas frases. Tenho o fôlego dela. Já até contei.

Penso que há um engano no dizer que me recuso a sair do Panta-


nal. Vivi a minha infância no Pantanal até os nove anos, quando fui
estudar no Colégio São José, dos padres Maristas, interno, até os
dezesseis anos. Vivi depois quarenta anos no Rio e algures por aí.
Me casei no Rio, me formei no Rio, e só voltei para cá em 1961. Mas
moro em Campo Grande e vou raramente ao Pantanal. Chego a
dizer, já disse, que gosto mais do Leblon. Quando às miudezas físi-
cas e metafísicas, são as palavras que extraem elas de mim.

Os meus desobjetos penso que sejam de difícil exportação. Quem


vai comprar um alicate cremoso, quem? Quem vai me traduzir para
ser exportado? Sou poeta mais adversativo que demonstrativo. Se
os outros idiomas cultos fossem tão transitivos como o nosso, como
a língua dos Guatós, por exemplo, aí eu seria mais exportável.

Acho que não sou planificado. Pode ser que siga uma voz incons-
ciente. Cumpro meus dias de trabalho, de leituras, de anotações,

163
MANOEL DE BARROS

de invenções de versos solteiros – tudo em meus pequenos cader-


nos de rascunho. Chega uma hora acho que devo começar a armar
os poemas. Cato os versos nos cadernos e vou fazendo as colagens.
Juro que tenho muita inocência nisso. Não procuro novos patama-
res. Só quero me ser nos poemas. Sou tão endógeno que dá pena.

Acho certo afirmar que sue seja mais poeta do verso que do poema.
Acho que sofro de frases até mais que de versos. O que faço é o que
Cortázar chamou de jogo de armar. Faço versos por meses, por anos,
depois vou colando um embaixo do outro. Até completar uns 14
versos por aí. E boto o nome de poemas nessas colagens. Armo os
versos de muitas maneiras. Até achar a melhor maneira. E às vezes
a melhor maneira não é a que encontrei. Podem ser lidos de qual-
quer lado, moda os barrocos.

A gente é rascunho mesmo. Falta acabar. Eu sei. O que enriquece o


artista é a sua incompletude. Poesia, qualquer arte, é um esforço
do artista pra chegar perto do divino. Caminho aos trancos feito
aquele mandorová que tem o apelido de midi-parmo. Eì um ser
que vai um palmo e volta outro. E de repente vai um palmo e não
volta outro. Decerto ele desconfia às vezes de algum fulgor e dá pra
trás. Eu tenho medo de cometer fulgor em poesia. Amo a palavra
magra sem verniz. Vou sempre lesmamente apalpando: obscura-
mente.

Aqui de longe tenho notícia que meus livros vendem bem. E que
estou nas montras. Mas fico em dúvida com os críticos. Ainda hoje
recebo do Ceará um suplemento literário onde leio: Grande poeta
ou fraude? Por mim chego a pensar que é fraude. Gosto do meu
primeiro livro igual que dos outros. Não renego nada. Certamente

164
ENCONTROS

não renego porque não releio. Pelo fato de não me reler às vezes
me repito. Amigos meus reparam e me mostram as repetições.
Tento justificar. Pois não existe a anáfora, uma figura de retórica,
que permite repetições até no mesmo poema? Então por que não
posso repetir em outros livros?

165
MANOEL DE BARROS

Eu não conheci nenhum avô meu. Minha mãe contava algumas


histórias do avô quando estava muito velho. Eles moravam num
sítio longe duas léguas de Cuiabá. No meio do caminho, ele des-
ceu do cavalo para urinar. O cavalo virou a cara para o Sítio. O avô
montou e voltou ao sítio. Desceu, entrou em casa e disse para mi-
nha mãe: - Ué, Cuiabá mudou muito, já tem até vaca na rua! Guar-
do algumas dessas histórias, me vejo nelas, e viro poema.

Há muitas maneiras de não dizer nada sobre nós. As memórias são


a melhor maneira. Pra dizer verdade, no meu caso, o que faço é
aumentar o que não que aconteceu. Acho que o inconsciente é o
lugar onde as palavras ainda estão se formando. Ali é o porão da
poesia. Depois que a palavra sai do porão, temos que limpá-las de
suas placentas. Dói mais enxugar o escuro das palavras.

Penso que qualquer arte, não só a poesia, há de carregar um dom


da eucaristia. Arte há de ser para sempre uma comunhão da Natu-
reza de Deus com a nossa naturezinha particular. Por isso que es-
tilo é particularidade.

Na minha vida não acontece nada. Eu não viajo, não troco de mu-
lher, não disputo campeonato, não urino nos jardins. Essas coisas.
Fico sempre parado. O que vou contar são as coisas que não acon-
teceram. E essas são mais ifinitas. Eu invento as coisas que não
aconteceram. Por que se eu não inventar do quê que eu vou viver?
O quê que eu vou escrever? Entretanto eu não conto mentira. Tudo
que eu invento é verdadeiro. Isto seja: tudo que eu invento acon-
teceu no meu estar parado. Às vezes um desejo de viajar. Eu fanta-
sio ao ponto que tenha viajado mesmo. Depois eu fico a acreditar
na fantasia e até conto aos amigos com detalhes. As pessoas que

166
ENCONTROS

têm uma vida parada precisam de usar esses recursos. Eu uso


muito. É uma coisa saudável pra não morrer de tédio. E é precioso
sempre aumentar o que não aconteceu. O que eu faço na vida é
aumentar o que não aconteceu. Eu e a minha inércia conseguimos
encher todos os vazios. A minha vida parada eu vou enchendo de
vento e versos. Com essa tarefa melhoro um pouco a minha
incompletude. Idéias nem pensamentos nem conceitos não tenho.
Só preciso contar nada para encher minha vida. Conviver com
inexistências é a raiz da poesia. Na razão de viver eu jogo pedra.

Não há em mim nem um propósito de ser regionalista. Nunca hou-


ve em mim o propósito de mostrar as particularidades de minha
região, de seu povo, de seus falares, de seus costumes. Sou
pantaneiro porque nasci, aprendi a falar e tenho meu umbigo
enterrado no Pantanal. Mas o meu negócio é com a palavra. Meu
gosto é desfazer os costumes das palavras. E não de mostrar os
costumes do meu lugar.

Bernardo é Outro eu. Quando o Bernardo fala, por exemplo, que


uma ave sonha de ser ele, ele está olhando o mundo com um olhar
de pássaro. Se a gente pudesse ver o mundo com olhar de pássaro,
não precisava do Outro para ter voz de poesia. É bom que uma voz
poética seja de um ser ainda meio ave, meio árvore, meio vento e
meio gente. E Bernardo é isso. Eu conheço ele desde mosca. Inver-
ter um Outro que esteja descobrindo o mundo, que esteja vendo
as coisas pela primeira vez, tudo sem rótulos e sem nome – isso é
muito salutar para a poesia. Alguém que alguma vez me tenha dito
que viu um lagarto na beira do rio a beber um copo de sol. Se en-
contro alguém que me diga isso tenho que adotá-lo para Outro. Os
Outros são sempre melhores que nós. Eles podem apalpar o som.
Eles podem pegar nos perfumes do sol. São creaturas ainda não

167
MANOEL DE BARROS

pertencidas de natureza, como são as águas, o vento, as pedras. Eu


adoto tais outros porque eles me ajudam na tarefa de entrar em
estado de poesia.

Depois que eu descobri a competência das palavras foi que eu vi


que elas podem levar a gente ao pernóstico, ao modismo, às afeta-
ções, às arrogâncias. Eu sempre tive medo dessas coisas. Eu sem-
pre tive medo da arrogância, do maneirismo, da soberbia. Daí que
eu comecei a botar as palavras no caco de vidro, para que elas
obedecessem as minhas particularidades. Eu domestiquei as pa-
lavras para que elas aprendessem a brincar umas com as outras.
Eu queria infantilizar as palavras. Até que elas descobrissem o meu
gosto de não falar nunca à vera. Até que chegassem ao ponto de
gurizada. E que fossem respeitadas até por tantãs. Até por passa-
rinhos. Palavra séria, para mim, é aquela que convida as outras
para brincar de poesia.

Falo muito dos andarilhos por motivo que eles têm com a natureza
uma tal intimidade que é, em último caso, uma intimidade de Deus.
E porque se implanta neles, por esse motivo, uma sabedoria in-
fantil. A ponto que o amanhecer faz glória sobre eles quase todos
os dias, como faz aos passarinhos. Ao ponto que eles sabem que
para exercer a liberdade total eles precisam de ser maiores do que
os adultos como os insetos são maiores do que os firmamentos…E
porque eles carregam a liberdade deles nos passos que não têm
onde parar. Com as águas dos rios, com o sol, com as pedras, eles
dão a mim um exemplo de comunhão. As águas gostam deles, e os
dias passam sobre eles sem sobressaltos. Se a gente jogar uma
pedra neles só quebra o silêncio deles. O chão respeita seus pas-
sos. Eles conhecem a sedução das árvores pelo amanhecer. Eles
conhecem os caminhos que as garças percorrem de tarde. Eles

168
ENCONTROS

sabem moda São Francisco de Assis o canto do sol. São essas intimi-
dades com a natureza que me seduzem nos andarilhos. Eu bem
quisera sê-los. Mas eu não tenho essa tanta força de amor.

As coisas que não prestam mais pra nada e estão jogadas fora por
inúteis são para mim objetos de estima. Sei que isso é um desagero
sem grau de estima para os outros. Sei que a maioria prefere coisas
úteis e as pessoas bem postas na sociedade. Mas eu não sou tantã,
juro. O meu gosto é apenas estético. O caso é que as coisas úteis são
muito queridas e as outras desprezadas. E eu tenho uma tendên-
cia para gostar das palavras desprezadas. As virgens e as quase
intocadas. Pelo andar se pode perceber que coisas úteis ou des-
prezadas são palavras. Palavras muito usadas e palavras quase
virgens. Todas as coisas para mim são palavras assim como todos
os atos, sentimentos, etc. Assim, a palavra porcaria, por exemplo, é
de minha estima. Para mim ela não é a porcaria mesmo, lavagem
de porco ou diarréia. Porcaria é uma palavra que pode ser alargada
para gente. Ela pode ser humanizada. Ela pode nomear um bêba-
do deitado na sarjeta. Aí, nesse contexto humano, a palavra é no-
bre. Porque eu acho mais nobre um ser porcaria do que um
ilustríssimo. Porque um ser porcaria é um ser excluído do amor. Por
isso ele é mais nobre. Charles Chaplin fez que um ser porcaria se
encaminhasse para herói. Os heróis de nosso tempo não são os
ilustríssimos nem os príncipes nem os poderosos. Nossos heróis
são vagabundos, porcarias, bêbados, e pessoas mais jogadas fora
pela sociedade. Os desimportantes. É por esse caminho que dou
grande importância aos desimportantes. Acho que a grande arte
do nosso tempo pratica esse gosto. Aqui no Brasil a partir dos mo-
leques Ricardo, dos negros Balduíno, das sinhá Vitória e dos
severinos em geral. E em todas as artes do mundo hoje o que vinga
é a palavra de Cristo: Amar ao próximo como a nós mesmos. E a
visão socialista de dar abrigo aos excluídos.

169
MANOEL DE BARROS

Não escrevo por inspiração. E nem sei bem o que seja inspiração.
Eu escrevo por excitação. Se uma palavra me excita, eu vou nela.
Assim: estou lendo um dicionário à caça de palavras. Quando en-
contro alguma que me excita por seu corpo sônico ou por alguma
sabedoria de fonte, paro. Me exulto. Hoje uma palavra me exultou.
Me excitou. Foi a palavra pêssego. Ela é bela em seu corpo letral e
é rica pelo que sugere de raíz e fonte. Então logo me deito em cima
dela. Ela se humaniza de mim. Ela possui uns pelinhos no corpo. A
imaginação emprenha ela. Palavra é carne. Se estabelece o símile.
A palavra é fêmea. Nessa hora me lembrei de uma coisa do Proust.
Eis o poema:

O PÊSSEGO

Proust
só de ouvir a voz de Albertine
entrava em orgasmo. Se diz
que o olhar de um voyeur
tem condições de phalo (possui o que vê).
Mas é no tato
que a fonte do amor se abre.
Apalpar desabrocha o talo.
O tato é mais que o ver
É mais que o ouvir
É mais que o cheirar.
É pelo beijo que o amor se edifica.
É no calor da boca
que o alarme da carne grita.
E se abre docemente
como um pêssego de Deus.

170
ENCONTROS

Está pois claro que o princípio gerador deste poema não se chama
inspiração, mas se chama excitação. Se a imaginação emprenha a
palavra, ela produz versos. Trabalho maior é dar equilíbrio sonoro
aos versos. Compor a harmonia. Mas a harmonia eu aprendi no
gorgeio dos pássaros.

171
MANOEL DE BARROS

Cronologia do autor

172
ENCONTROS

173
MANOEL DE BARROS

Coleção Encontros:
a arte da entrevista

A Coleção Encontros visa resgatar a entrevista como meio


privilegiado de comunicação: valendo-se de uma linguagem
informal e abordando questões imediatas, torna-se um espaço
estratégico para a atuação de intelectuais e artistas na criação de
um mundo múltiplo, solidário e sustentável.

Em cada volume da Coleção Encontros trazemos um olhar


abrangente sobre o entrevistado, com uma seleção criteriosa de
depoimentos de diversos momentos e contextos de sua trajetória.

Na elaboração do presente volume, agradecemos a generosa


colaboração de todos que particparam do processo. O organizador
gostaria de agradecer a Manoel de Barros, que desde o início se
mostrou interessado em colaborar com este projeto; a Martha
Barros, que colaborou com os trabalhos de pesquisa e nos ofereceu
uma entrevista ainda inédita, que fecha este livro; a Giancarlo Y.
Bardelli e Manuel Müller, pelo auxílio nos trabalhos de preparação
dos originais deste livro. Ao Egberto Gismonti, leitor atento e
apaixonado da poesia de Manoel de Barros, agradeço pela leitura
gentil dos originais e pelo texto de apresentação.

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ENCONTROS

coordenação editorial
Amélia Cohn e Sergio Cohn

projeto gráfico e capa


Elisa Cardoso

Equipe Azougue
Giselle Andrade, Karina Lopes, Luana Maria,
Rafael Loureiro e Vivian Cordeiro

Foto do autor
Arquivo pessoal

Revisão
Ingrid Vieira

2% da tiragem desse livro será doada para o Iepé – Instituto de Formação e


Pesquisa em Educação Indígena. O Iepé é uma entidade sem fins lucrativos criada
para prestar assessoria direta a demandas de formação e capacitação apresentadas
pelas comunidades indígenas do Amapá e do Norte do Pará, visando o fortalecimento
de suas formas de gestão comunitária e coletiva. Mais informações na página
www.institutoiepe.org.br.

[ 2010 ]
Beco do Azougue Editorial Ltda.
Rua Jardim Botânico, 674/605
Jardim Botânico - Rio de Janeiro - RJ
CEP 22461-000
Tel/fax 55_21_2259-7712

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MANOEL DE BARROS

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