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Resenhas

VERDADE E METALINGUAGEM A fronteira epistemológica, na qual se


EM LACAN compara a estratégia de fundamentação,
derivada do positivismo-lógico (Carnap),
Estilo e verdade na perspectiva da do formalismo logicista (Frege) e do
crítica lacaniana à metalinguagem, estruturalismo “kantiano” (Lévi-Strauss)
de Gilson de Paulo Moreira Iannini, com o uso lacaniano das matemáticas.
Belo Horizonte, Autêntica, 2012, 374 p. Aqui a crítica da metalinguagem teria a
função de preservar e de manter aberta
Christian Ingo Lenz Dunker a problemática da cientificidade da psi-
canálise, vetando a possibilidade de um
Psicanalista, professor livre-docente do discurso primeiro, de natureza metafísica,
Instituto de Psicologia da USP, analista
científica, lógica ou poética.
membro de Escola dos Fóruns do Campo
Lacaniano, autor de Estrutura e constituição da A fronteira ético-estética ou “lingua-
clínica psicanalítica (AnnaBlume, 2011). geira”, na qual se estabelece uma atitude
geral diante da linguagem, de seus limites
O trabalho de Gilson Iannini, original- e de sua assunção por aquele que fala.
mente sua tese de doutorado no Departa- A fronteira aqui se opõe à normalização da
mento de Filosofia da USP, sob a orienta- linguagem exemplificada pelo programa
ção de Vladimir Safatle, realiza três tarefas de Ogden e Richards de estabelecer um
fundamentais para o que se pode chamar inglês simplificado (Basic English), com
de reabilitação do tema da verdade em base na aplicação de princípios de desam-
Lacan. Reabilitação, pois na maior parte biguação como mediadores sanitários do
dos comentadores e dos leitores de Lacan laço social. Neste caso a crítica da meta-
a conexão entre verdade e impossibilidade linguagem serve para nos separar deste
de metalinguagem aparece a serviço da es- potencial terrorismo semântico, do qual
tratégia de guarnição de três fronteiras. recolhemos efeitos quer na tradição prag-
A fronteira clínica na qual se discerne mática quer na tradição desconstrucionista
que a confiança na metalinguagem, car- e ainda no código de chavões retóricos
regada pela soberania do sentido e pelo que tão facilmente grassa em associações
poder discricionário da interpretação, psicanalíticas.
atribuída ao analista, definiria o exercício Mas além de refazer a crítica da me-
de um poder cujo efeito seria a violência talinguagem, apoiado no que de melhor
da interpretação. A crítica lacaniana da a tradição da filosofia analítica nos trouxe
metalinguagem, neste caso, tem a função como atitude advertida diante da lingua-
de guarnecer a interpretação liberadora gem, o texto reabilita o tema da verdade
de sentido, colhida do próprio texto e na em Lacan para além da estratégia negativa
preservação de sua ambiguidade, que se de guarnição de fronteiras com base na
apresentaria em boa clínica lacaniana. separação entre clínica, epistemológica

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e estética. Ele refaz a crítica lacaniana da voluntária da subjetividade em estado de


concepção positivista de ciência, do im- condomínio. Recusa (Verleugnung) da ver-
pulso à criação de linguagens artificiais e dade e normalização do Real.
da perspectiva política calcada no huma- A crença na metalinguagem é o cerne
nitarismo sem hierarquizar a formalização da atitude burocrática, do formalismo
e a linguagem natural. normativo, da vida “operacional metodo-
Por meio de pequenos “experimen- lógica” sugerida pelas disciplinas, da vida
tos”, reescreve-se a problemática lacaniana vivida por “alguém como você”. Lembre-
fora de seus próprios termos, mas sem mos que a expressão canalhice designa um
trair seu plano de inteligibilidade. São tipo de transferência, que Lacan hesita em
pequenos “casos” linguísticos, discursivos considerar beneficamente tratável pela
e narrativos que fornecem o equivalente psicanálise, uma vez que deste canalha
clínico e a leveza estilística que arejam se produzirá um débil. Ou seja, um ca-
o texto, substituindo a habitual prosa nalha é alguém apegado a um gozo débil
reverente pelo benéfico e raro estilo ar- defendido e encoberto pela convicção
gumentativo. metalinguística.
O trabalho de Gilson Iannini torna-se O canalha é o intérprete parasita,
assim uma contribuição essencial tanto o síndico da fala alheia, o gerente das
para o estudo temático do conceito de enunciações, especialista na gestão da
verdade em Lacan quanto para o questio- impostura e na arte de colocar sua própria
namento da função deste conceito para enunciação como Outro do Outro. O que
a clínica. O trabalho de reconstrução é Wittgenstein se recusa a admitir em psicanálise é
sumamente justo. Propositivo sem ser o mesmo que ele recusa à teoria dos conjuntos: sua
demasiadamente apologético; rigoroso ontologia. Não é possível dizer a verdade
sem ser excessivamente técnico. Mas, sobre o Real porque neste caso teríamos
poderíamos objetar: para que serve uma que estabelecer uma correspondência
verdade menor, deflacionada, impotente, biunívoca entre a linguagem (dizer) e o
parcial? Não seria melhor chamar tal mundo (real), bem como localizar um
verdade de experiência, ela mesma. Ou sujeito fora do mundo, lugar de onde ele
ainda, um processo (Hegel), um percur- poderia enunciar a verdade da relação
so (Badiou), uma operação (Lacan), um entre o que se diz e o que é.
caminho (Zizek)? A antinomia maior da noção de ver-
Uma verdade que ao final de seu pro- dade remonta o fato de que ela repele
cesso, permanece apenas como um lugar assintoticamente o Real, em sua não
não seria apenas uma forma tática de com- dialética com o gozo, assim como dele se
bater a mentira, o cinismo e a canalhice? aproxima em sua dialética com o saber.
Se pensamos que a metafísica é a tentativa A grande cisão do pensamento lacaniano
de tapar o furo da política e se admitimos, com é entre Real e verdade, duas categorias
Lacan, que cada qual tem sua metafísica tão inconciliáveis quanto inseparáveis.
ou sua ontologia, chegamos à ideia de Neste sentido o “realismo da verdade”
que a metalinguagem — seja ela tomada que Miller “diagnostica em Lacan, parece
como conceitografia constituída ou como “tirado da cartola” e contraria quase todo
linguagem impregnada de formas de vida o movimento da tese. Não há intersecção
cotidianas — é a resposta característica natural entre verdade e Real. Aqui está
da perversão ordinária, esta servidão todo o antipositivismo de Lacan. A relação

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entre as categorias é de outro tipo, é uma e Richards, muito menos uma terapia
relação de produção, não de verificação. linguística.
Desde a tese lacaniana de juventude Contra a boa hipótese desenvolvida
da “psicanálise como método de verdade” até os por Richard Simanke, de que em Lacan
últimos desdobramentos sobre a varidade há uma concepção metafórica de teoria,
(combinação de verdade e variedade) e Iannini problematiza e separa a metáfora
desde o modelo elíptico das relações entre surrealista da metáfora lacaniana. Separan-
saber e verdade até a dialética fraturada do a metáfora como processo que vai do
da reabsorção da verdade ao saber até o simbólico ao Real da ficção como trajeto
sinthome como este laço entre heterogêneos que vai do real ao simbólico, a ficção se
(o traço sem fé da verdade) dizer que não há alinha com o impossível enquanto a me-
metalinguagem é dizer que não há lin- táfora se alinha ao contingente.
guagem objeto. Em suma, o leitor tem diante de si um
Em Lacan, não há conf iança em ótimo exemplo do que a tradição brasileira
categorias como tipos lógicos, classes de estudos lacanianos tem de melhor:
de linguagens, universos de discurso, cruzamento de perspectivas, combinação
estratos de linguagem, língua denotativa, de fontes, mistura entre exegese e crítica,
língua-objeto, linguagem semanticamente tensão entre clínica e política, presença e
fechada (Tarski). Todas elas correspon- disseminação da possibilidade de pensar
dem a decisões normativas infiltradas e para além da reprodução metodológica de
revestidas de formalismo. Ou seja, a crí- formas pré-constituídas.
tica da metalinguagem é um capítulo da
valorização psicanalítica dos paradoxos de Recebido em 20/8/2012.
autorreferência não apenas uma estratégia Aprovado em 30/8/2012.
de fundamentação. Aqui, o juízo de Ian-
Christian Ingo Lenz Dunker
nini aponta novamente para a ontologia chrisdunker@usp.br
negativa: o que engendra paradoxos não é qualquer
tipo de autorreferência, mas a tentativa de expressar
conceitos formais através de funções proposicionais.
Esta é a tradução conceitual de má- A PSICANÁLISE É CONTRA-HEGEMÔNICA
ximas tais como: a verdade não-toda,
o semi-dizer da verdade, a verdade em Leituras da clínica, escritas da
estrutura de ficção. Um princípio geral cultura, de Maria Cristina Poli,
se depreende deste extenso e detalhado Campinas, Mercado de Letras, 2012,
trabalho de pesquisa: o próprio discurso deve 192 p.
ser consistente, em sua maneira de dizer, com aquilo
que diz. Há sim, uma ligação inextricável Amadeu de Oliveira Weinmann
entre o que se diz, como se diz e sobre o que se
Professor do Departamento de Psicanálise
diz. Esta solidariedade entre concepção de
e Psicopatologia do Instituto de Psicologia/
linguagem teorizada e praticada por Lacan UFRGS.
não é nem a linguagem séria esperada do
honnête-homme, nem uma ética discursiva ao Há vários motivos para saudar o lança-
modo de Habermas, nem mesmo uma mento de Leituras da clínica, escritas da
moral terminológica como em Ogden cultura, de Maria Cristina Poli. A autora

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