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TREZE TRUQUES DE MAGIA

A ORIGEM VERBAL DOS MITOS EM PSICOLOGIA


EXPLICAÇÕES FICTÍCIAS OU PSEUDO-EXPLICAÇÕES SOBRE O COMPORTAMENTO
HUMANO

(Tradução livre de Thomas Pierre Castegnaro)


Dedicamos este livro aos estudantes de psicologia de qualquer lugar do mundo,
convidando-os a terminar esta carreira como cientistas do comportamento e não como
mágicos.
INTRODUÇÃO

Este livro se refere às descrições e explicações fictícias (pseudo-explicações) sobre


o comportamento humano. Infelizmente, esta classe de "descrições" e "explicações"
persistem atualmente no campo da psicologia e impedem o progresso desta disciplina como
ciência, obstaculizando a compreensão genuína (efetiva) do comportamento humano, de
nosso comportamento.

Por meio de um espetáculo que inclui treze truques de magia, um mágico tão comum
quanto surpreendente executa alguns dos truques que a maioria da gente, incluindo
psicólogos, realizam ao trata de explicar o comportamento humano. Estes truques
consistem em meras práticas verbais, as quais, infelizmente, são tão estendidas quanto
inapropriadas e prejudiciais.

Este livro, como qualquer outro, é produto de muitas pessoas, por isso usarei o
pronome nós e não o eu.

Escrevemos este livro pensando no público em geral, não apenas naqueles que
conhecem sobre psicologia, por isso tratamos de escrever o mais claro possível, utilizando
palavras simples.

Claro, nosso objetivo não é esgotar o tema sobre as explicações do comportamento.


Está claro que outros psicólogos, lingüistas e filósofos poderão decidir muito mais sobre
este tópico. Também eles poderiam nos criticar pelo que dizemos, mas nosso interesse é
promover a reflexão, mais que tentar apresentar a "Verdade Completa".

Se a leitura deste livro lhe é útil para refletir sobre o tema que aqui se trata,
independentemente de que esteja ou não de acordo com ele, nós sentiremos ter conseguido
nosso objetivo.

Também esperamos que o conteúdo do mesmo lhe ajude a compreender o


comportamento humano, de maneira que esta compreensão lhe permita viver melhor e
ajudar a outros a fazê-lo.

Talvez o comportamento humano não seja tão complexo como o consideramos;


fazemo-lo complexo com nossa maneira de descrevê-lo e tratar de explicá-lo.
OS TREZE TRUQUES DE MAGIA
PREÂMBULO

O espetáculo que descreveremos em seguida se desenvolve em um teatro, e o ator


principal é um talentoso mágico. Participam também dois atores mais, João e Pedro, que
permanecerão no cenário durante toda a apresentação, ainda que seus papéis ativos
terminarão muito rapidamente.

Muitos são os espectadores no teatro, poderíamos dizer milhares; entre eles,


estamos você e eu. Viemos juntos para desfrutar da apresentação.
I

INÍCIO

Levanta-se a cortina e no centro do cenário aparece um mágico. Veste-se como


tradicionalmente o fazem os mágicos: traje negro de gala, camisa branca engomada, gravata
borboleta, cartola e uma varinha em sua mão. Um momento depois aparecem em cena duas
pessoas mais e apresentam-se ao público com os nomes de João e Pedro.

Todos nós aplaudimos, uns de nós ficamos em pé.

Enquanto o mágico saúda e agradece nossa presença, João se aproxima de Pedro e


golpeia-lhe fortemente na face. Todos nos surpreendemos. O mágico se dirige até nós, e com
voz tranqüila e cerimoniosa, diz:

- Acabamos de observar uma ação, comportamento ou comportamento1 que


chamamos golpear2. Peço-lhes, por favor, que não se angustiem pelo ocorrido; asseguro-
lhes que João não voltará a golpear Pedro. Esta vez o golpeou a pedido meu para poder
realizar os treze truques de magia deste espetáculo3.

Todos os expectadores, inclusive você e eu, relaxamos. Certamente nos pareceu


muito estranho que uma pessoa golpeasse a outra como parte de uma apresentação de
magia.

- Seria interessante – acrescenta o mágico – conhecer por que os seres humanos


nomeiam este comportamento ou ação com a palavra "golpear"4; mas esta é uma
apresentação de magia e não uma conferência sobre a origem das palavras. Portanto, basta
com que todos nós estejamos de acordo que João golpeou a Pedro. A propósito, estão de
acordo? – pergunta o mágico.

- Sim, estamos de acordo! – responde a maioria dos espectadores.

Você e eu permanecemos calados. Talvez emocionados pela grandeza do teatro e a


grande quantidade de pessoas que vieram desfrutar a apresentação.

- Perfeito – diz o mágico sorrindo e movendo graciosamente sua cabeça para os


lados. – Sempre busco que meus atos de magia sejam interativos, gosto que o público
participe como vocês o fazem agora: interagindo é como aprendemos.

Sorrio e volto a olhar para você. Você também sorri. Para ambos é muito agradável
conhecer a um mágico que leva em consideração seu público.

- Como todos sabemos – continua dizendo o mágico com firmeza –, as ações ou


comportamentos se nomeiam ou descrevem5 com palavras que chamamos "verbos"6. Não
descrevemos ações com substantivos7 nem adjetivos, muito menos com artigos. Um verbo
se conjuga porque todos nós atuamos: tu, ele, ela, vocês, eles e eu: todos!, incluindo aos
organismos não humanos, como os ratos e as pombas. Todos, como seres vivos que somos,
nos comportamos. Estão de acordo com essa afirmação?
- Sim! – gritamos. O teatro retumba, o mágico assente com a cabeça e coloca a
varinha mágica sob o braço.

- Pelo tanto, tudo o que as pessoas fazem como golpear, falar, brincar, caminhar, ler,
pensar8, bater, beijar, sentir, acreditar, imaginar, escrever, se nomeia ou descreve com
verbos. Estão de acordo? – volta a perguntar o mágico.

- Sim! – respondemos aplaudindo efusivamente, não porque seja admirável o que


ele fez até agora, mas porque já queremos que iniciem os atos de magia.

Nesse momento o mágico caminha até o centro do cenário e anuncia o que


esperávamos:

- Agora, amável público, não há tempo a perder. Executarei o primeiro truque.

As ações ou comportamentos se nomeiam e descrevem com palavras que chamamos


"verbos".
II

PRIMEIRO TRUQUE

O mágico dá uns passos até a frente do cenário, colocando ao mesmo tempo umas
luvas brancas que pega do bolso de seu casaco.

- Apresentar-lhes-ei o primeiro ato de magia. A Associação Internacional de Mágicos


o chama Re-verbalização Redutiva1. – anuncia ajeitando cuidadosamente a gravata. – Há
uns momentos dissemos que utilizamos verbos para nomear nossas ações; agora diremos
também que é possível utilizar verbos para nomear a um grupo de ações ou
comportamentos.

O mágico introduz dentro de sua cartola os verbos "golpear", "bater", "empurrar",


"beliscar", e agita-a, misturando todas estas palavras. Imediatamente depois tira da cartola
o verbo agredir2.

Todos nós aplaudimos.

- Agredir é um verbo que acabou de aparecer e chamo-o "genérico"3 – diz o mágico,


mostrando-nos o verbo como se fosse uma pomba.

Todos nós concordamos e o mágico continua:

- Notem que agredir é um verbo; não um substantivo, nem um adjetivo, muito menos
um artigo. Agredir é um verbo genérico, ou seja, um verbo que nomeia uma classe de ações
ou comportamentos que, por sua vez, são nomeadas por outros verbos4 esclarece o mágico.

Todos nós aplaudimos.

- Então, podemos dizer que – continua o mágico – o que faz João não só se poder
nomear com o verbo golpear, mas também com o verbo agredir. Fica claro: agredir nomeia
o comportamento de João.

Até aqui o espetáculo me parece bastante interessante, excetuando a importância


que o mágico confere às palavras.

"Não vim ao teatro para ter uma classe de gramática", penso. Olho para você e você
me diz:

- Simples, não é?

Afirmo sorrindo.

- Antes de continuar – adverte-nos o mágico –, quero informar-lhes que este truque


como todos os que executarei em seguida parecem simples, mas na verdade não o são. Não
é fácil transformar vários verbos em um. Precisou-se de milhares de anos para que a
humanidade o fizesse, assim como tomou muitíssimo tempo nomear uma ação ou
comportamento com uma palavra que se pudesse aplicar, com pequenas modificações, ao
que todos fazemos; ao que vocês, nós, ele, ela e eu fazemos, fizemos e faremos.
- É verdade – você diz afirmando com a cabeça – a, aprender a falar nos tomou
milhares de anos.

- Por isso – acrescenta o mágico –, antes de continuar, quero confirmar que todos
estamos de acordo em que com o verbo agredir podemos nomear5 uma grande variedade
de atos ou comportamentos, como golpear, bater, beliscar, empurrar, e não apenas um
comportamento em particular.

Todos os espectadores aplaudem como mostra de aceitação.

Nesse momento sobe ao estrado apressadamente uma bonita jovem; coloca na parte
de trás uma mesinha com uma jarra de água e um vaso. O mágico unicamente diz "obrigado".
A jovem sorri, desce e senta-se entre o público.

Também é possível utilizar verbos para nomear a um grupo de ações ou


comportamentos.
III

SEGUNDO TRUQUE

- Até aqui, com os verbos golpear ou agredir só nomeamos o que fez João1 - explica
o mágico ajeitando delicadamente a cartola. – Agora, ensinar-lhes-ei como descrever o
comportamento de João, de maneira que a descrição em si mesma seja útil para explicar seu
comportamento2 ou, ao menos, para iniciar uma explicação adequada do mesmo.

Todos aplaudimos e, sem esperar que deixemos de fazê-lo, o mágico continua.

- Vocês sabem que quando queremos compreender o comportamento, não nos


interessa apenas nomeá-lo ou descrevê-lo, mas o fazer de tal forma que facilite explicá-lo.
Não apenas queremos saber como se comporta uma pessoa; mas por que se comporta como
o faz3. Claro, tudo o que nos conduz a sabê-lo é bem-vindo.

Todos assentimos. É surpreendente a clareza e a precisão com que o mágico se


expressa. Lembra-me do professor que tive sorte de ter na faculdade. Falava pouco, mas
muito bem.

- A este truque se lhe conhece com o nome de Descrição Fictícia I4 – diz o mágico,
retrocedendo e girando sua varinha. – Por favor, prestem muita atenção e respondam esta
pergunta: O que vocês acreditam que fez João quando golpeou Pedro?... Seguramente
responderão que simplesmente lhe golpeou. Mas não, olhem bem o que farei com o verbo
agredir, mesmo verbo que utilizei para nomear o comportamento de João. Tocá-lo-ei com a
varinha, e o que fez João, ele golpeou, converter-se-á em agrediu. Portanto, João não somente
golpeou Pedro, como também o agrediu5.

Aplaudimos de novo, surpreendidos de que já em seu segundo ato, o mágico nos


revelou o que João realmente fez.

- Golpear é uma ação ou comportamento que não somente consiste em tocar


bruscamente alguém. A um nível mais profundo, quando João golpeia Pedro, agride-o; ou
seja, o que na realidade faz João é agredir Pedro. Em poucas palavras: João agrediu Pedro,
compreendem? - pergunta o mágico.

- Sim – respondemos, ainda que não saibamos a razão de todas as diferenças


assinaladas pelo mágico.

Volto a olhar para você e você me diz em voz baixa:

- Para mim, o que fez João foi golpear Pedro, e ainda que utilizemos outras palavras
para descrever o que fez João, como agredir, estas sempre se referirão a golpear6.

- Assim é – respondo gaguejando. – Mas, temos que aceitar que o mágico teve êxito
em convencer o resto do público que a melhor maneira de descrever um comportamento é
dar-lhe um nome que ignore as comportamentos particulares. Pelo tanto, dizer que João
agrediu Pedro descrever melhor o que fez João, que dizer que João golpeou Pedro 7 -
acrescento.
- Bom – você responde –, provavelmente é assim, mas...

Nesse momento, a pessoa que está sentada ao nosso lado volta-se e pede-nos
silêncio:

- "Não viemos aqui para conversar, muito menos em voz alta, mas para desfrutar dos
truques do mágico. Ademais, não há por que duvidar de sua sabedoria". Pedimos-lhe
desculpas e continuamos esperando em silêncio.

- Fixe-se bem, neste ato de magia não só descrevi o comportamento de João, como
também comecei a explicá-la – informa-nos o mágico tirando e pondo a cartola. – O fato é
que se descrevemos o que realmente João fez a Pedro, começaremos a explicar por que o
fez, ou seja, as razoes ou causas de seu comportamento – acrescenta.

Eu me pergunto: Como é possível que uma palavra que utilizamos para nomear o
comportamento de golpear possa-nos conduzir à explicação desse comportamento?

Todos aplaudem, inclusive você. Sinto-me confuso; não sei se é o mágico, o que ele
diz e faz, ou a multidão no teatro. Respiro profundamente duas ou três vezes e tranqüilizo-
me um pouco.

- Agora, simplesmente com o propósito de confirmar se me entenderam, farei um


par de perguntas que eu mesmo responderei. Espero que estejam de acordo com minhas
respostas – diz o mágico movendo-se com rapidez de um lado a outro pelo cenário. – Se lhes
pergunto, o que fez João?, em vez de dizer "golpeou Pedro" vocês podem responder "agrediu
Pedro". Mas se lhes pergunto: como o fez?, vocês responderão "dando-lhe um golpe na face",
não é?

- Sim – contestamos em uníssono.

- Muito bem, esperava o seu acordo, não poderia ser de outra maneira – conclui o
mágico atirando a varinha para cima e pegando-a com a outra mão por trás das costas com
uma velocidade surpreendente.

Volto a olhar para você e você sorri.

O mágico diz: João não apenas golpeou Pedro, mas também o agrediu.
IV

TERCEIRO TRUQUE

- Agora – anuncia o mágico – dou início ao terceiro truque de magia. A Real Academia
de Mágicos conhece-o com três nomes, Substantivação1, Nominação do Verbo2 ou
Reificação3.

Ele tira a cartola e coloca dentro o verbo agredir que apareceu no ato anterior.
Pronuncia as palavras mágicas e tira da cartola o substantivo agressão.

Todos nós ovacionamos o mágico. Isto é precisamente o que esperávamos. É


maravilhoso ver como, baseando-se unicamente no comportamento de golpear, o mágico
foi capaz de fazer aparecer o verbo agredir e, depois de introduzi-lo em sua cartola,
transformou-o no substantivo agressão. Então penso: "o que fez o mágico foi ir do golpe ao
golpear, do golpear ao agredir, e do agredir à agressão. Ou seja, de algo que se faz e nomeia-
se com um verbo, a algo que é e que se nomeia com um substantivo".

- Surpreendente! – exclama você e eu me estremeço. – Como pode converter algo


dinâmico, que ocorre como ação ou comportamento de agredir, em algo estático, em uma
coisa: a agressão4?

Concordo com a cabeça sentindo-me menos confuso e recuperado do susto.

O mágico faz uma pausa e dirige-se à pequena mesa que a jovem colocou no fundo
do cenário ao final do primeiro ato. Serve-se de água e bebe apressadamente para depois
voltar para frente.

O que fez o mágico foi ir do golpe ao golpear, do golpear ao agredir, e do agredir à


agressão. Ou seja, de algo que se faz e nomeia-se com um verbo, a algo que é e que se nomeia
com um substantivo.
V

QUATRO TRUQUE

- Em continuação – anuncia orgulhosamente o mágico –, vou apresentar o quarto


truque. Conhece-se-lhe pelo nome de Descrição Fictícia II1. Prestem muita atenção porque
o que farei é tão delicado como colocar algo dentro de uma pessoa sem a ferir. Sim,
acreditem-me, colocarei algo dentro de João, e ele não sentirá a mínima dor!

Então, o mágico toma o substantivo agressão que apareceu no truque anterior e com
muito cuidado coloca-o justamente sobre a cabeça de João. Depois pronuncia umas palavras
mágicas que não consegui escutar. Ato seguido, a agressão desaparece.

Todos nos espantamos ao observar que João não sentiu dor, pelo menos não o
mostrou em seu rosto.

- Por isso, de hoje em diante, quando observarmos João golpear Pedro,


descreveremos seu comportamento referindo-nos ao que tem e não ao que faz; diremos:
"João tem agressão nele: e não apenas "João golpeia ou agride Pedro"2. Ao dizê-lo assim
conseguiremos descrever com mais precisão o comportamento de João e além disso
começaremos a explicá-la referindo-nos ao que João tem dentro, ou seja, a agressão3, como
o indica nosso senso comum.

Todos nós estamos felizes por termos descoberto, graças ao mágico, a existência da
agressão. É indubitável que unicamente um mágico possa ajudar-nos a descobrir o que há
dentro de cada um de nós. Observo para os lados e vejo todos os espectadores
completamente absortos; alguns desfrutam do espetáculo com a boca aberta.

- A agressão é uma emoção; negativa, mas ao fim e ao cabo uma emoção – afirma o
mágico – e todas as emoções, todas, estão localizadas dentro de nós4. É claro que uma
emoção não pode existir fora de alguém. Ou por acaso algum de vocês viu uma emoção
voando?

Todos nós rimos. Volto a olhar para você e pergunto-me, em que lugar dentro dele
estará localizada a agressão? Deve estar aí – penso – escondida em alguma parte do seu
corpo esperando o momento preciso para converter-se em um golpe5 ou em um grito
violento ou, por que não?, em uma careta agressiva.

Durante quase um minuto, o mágico permanece em silêncio e todos nós com ele.
Sinto-me incomodado, só escuto algumas pessoas tossirem. Acomodo-me várias vezes na
poltrona e olho de novo para trás. O teatro está completamente cheio e agora em silêncio.
Pergunto-me qual será a intenção do mágico ao interromper a apresentação. Talvez deseje
que suas revelações se aprofundem, que todos nos convençamos de que o que ele mostrou
realmente existe.

Nesse momento você se volta e diz-me em voz muito baixa:


- É óbvio, João não apenas golpeou Pedro, mas como também o agrediu; e não apenas
o agrediu, mas como também tem agressão dentro dele. Ninguém pode negá-lo, não é? Seria
estúpido dizer que é mentira, não é?

Afirmo com a cabeça sentindo que aceito uma explicação que na realidade não me
convence. Analisando o que aconteceu até o momento, advirto que do comportamento de
golpear, o mágico fez aparecer o agredir; logo afirmou que uma pessoa que golpeia outra,
agride-a; e finalmente concluiu que se uma pessoa agride, deve ter algo dentro dela que se
chama agressão. Mas, apesar de que eu me dê conta de todos estes truques verbais, prefiro
acreditar que não o são, que são realidades e não meras palavras que se derivam umas de
outras. Ademais, ninguém quer ser um estúpido. Como dizia o meu avô: "Há um prazer nos
mitos que é difícil refutar, como há uma atração na multidão da qual é difícil escapar".

Sem me dar conta, repito o que pensei em voz alta: "Há um prazer nos mitos que é
difícil refutar..."

Neste momento você se volta para mim e pergunta:

- O que disse?

- Nada, só estava pensando.

- Pois pensa em volume muito alto – comenta você, rindo-se de sua piada.

- Agora, como complemento deste truque lhes apresentarei um que chamo Sentir
Fictício I6 - diz o mágico enquanto se dirige para onde se encontram João e Pedro. De pé em
frente a Pedro, pergunta-nos com sua voz ressoante:

- O que vocês acreditam que sentiu Pedro quando João o golpeou?

- Sentiu dor! – respondemos rapidamente.

- Estão certos de que unicamente sentiu dor? Não acham que sentiu o golpe e
também a agressão?

- Sim, Pedro sentiu três coisas – respondemos em uníssono.

- Isso! Muito bem! – exclama o mágico emocionado, estendendo sua mão para frente
e contando com seus dedos. – Sentiu o golpe, a dor e a agressão.

Volto a olhar para você e pergunto-lhe intrigado:

- O que você acha? Concorda que Pedro sentiu isso tudo?

- Acho, quando nos golpeiam sentimos três coisas: o golpe, a dor e a agressão de
quem nos golpeou.

Sorrio e volto a sentir que, de uma maneira muito sutil, o mágico nos está
enganando. Mas na verdade não importa; de qualquer forma, estamos aprendendo a
descrever e a explicar o comportamento. Ademais, se todo o público parece de acordo, qual
é a razão para eu não estar?
Agora, para assegurar-se de que entendemos, o mágico pergunta:

- Como acreditam que se sentiu Pedro quando João o golpeou? Contente ou


agredido?

- Agredido – respondemos.

- Assim é, sentiu-se agredido, porque sentiu agressão.

Todos nós ficamos olhando fixamente o mágico. Ele sorri satisfeito e observo que
seus dentes são muito brancos e estão perfeitamente alinhados.

- Sentir dor, sentir agressão e sentir-se agredido são emoções distintas – acrescenta.

É surpreendente nos darmos conta como, de truque em truque, aumenta nosso


conhecimento acerca do comportamento. Ademais, sentimo-nos muito satisfeitos por vir ao
teatro e orgulhosos de responder corretamente todas as perguntas que nos punha o mágico.
Noto que minha confusão e mal-estar diminuíram ao longo do espetáculo.

Sinto-me melhor e concluo: "Não é normal duvidar do que é tão evidente, de algo
com o que estão de acordo todos os presentes. Não tenho por que sentir que me estão
enganando".

Há um prazer nos mitos que é difícil refutar, como há uma atração na multidão da
qual é difícil escapar.

O mágico diz: Quando observarmos João golpear Pedro, descreveremos seu


comportamento referindo-nos ao que tem e não ao que faz; diremos: "João tem agressão
nele: e não apenas "João golpeia ou agride Pedro".

O mágico diz: Quando nos golpeiam sentimos três coisas: o golpe, a dor e a agressão
de quem nos golpeou.
VI

QUINTO TRUQUE

- Estamos já no quinto truque se chama: "Colocar um traço"1. Ainda que este truque
seja simples, peço-lhes que prestem muita atenção porque o resultado é sumamente
importante par entender o comportamento humano – assinala o mágico com certa ironia.

- Simples? – você me pergunta. – Não creio que exista algo simples no


comportamento humano.

Passa um momento e esperamos em completo silêncio.

- Mas, esquecia-me de dizer-lhes – explica o mágico olhando-nos profundamente –,


que antes de colocar um traço, executarei rapidamente três truques, um que chamo Sentir
Fictício II, outro que chamo Re-substantivação, e outro que os mágicos conhecem como
Construtivação.

O mágico tira a cartola e arrumando seu cabelo, continua:

- Prestem muita atenção: dissemos que o que sentiu Pedro quando João o golpeou
foi agressão, não apenas o golpe e a dor2. Agora, por favor, sejam amáveis em me responder
a esta pergunta: o que acreditam que João sentiu ao golpear Pedro? Sim, olhem bem, refiro-
me ao que sentiu João, não ao que sentiu Pedro – esclarece.

- Agressão também – respondemos.

- Perfeito, sua resposta está correta, ambos sentiram a emoção que chamamos
agressão3. Pedro sentiu a agressão de João e este sentiu a agressão dentro de si mesmo.

Todos aplaudimos. Olho para você e você me diz: "Todos temos emoções em nosso
interior. Nem você nem eu, nem ninguém viu jamais uma emoção fora de nosso corpo".

Fora de nosso corpo – digo-me em silêncio.

- É evidente – afirma o mágico – que dentro de João está a emoção chamada agressão.

- Sim, dentro dele está essa emoção – respondemos todos e aplaudimos.

- Agora passo ao truque resubstantivação4 – diz o mágico. – Primeiro tomo o


substantivo agressão, que fiz aparecer anteriormente, e transformo-o no substantivo
agressividade5.

Outra mais das magníficas aparições do mágico – penso.

- Agora sim – anuncia esfregando as mãos em frente ao seu rosto e soprando –


executarei o ato que chamo "colocar um traço". Por favor, observem como, com a ajuda de
minha varinha mágica, colocarei a recém-aparecida agressividade em João. Mas primeiro
terei que fazer aparecer o que chamamos personalidade. Para isso, executarei outro truque
que denomino: Constructivação6.
O mágico pega as mãos de João e as introduz na cartola, depois põe suas mãos e tira
a personalidade7.

Todos aplaudimos, inclusive alguns gritam.

- Agora sim poderei colocar a agressividade em João.

O mágico pronuncia as palavras mágicas e ocorre a transferência.

- Como podem confirmá-lo, agora João não apenas tem dentro dele a emoção que
chamamos agressão, como também o traço de personalidade que chamamos agressividade
– diz e, ao terminar, inclina-se cerimoniosamente ante nós.

Surpreendidos, todos aplaudimos.

Eu deduzo o seguinte e digo-lho sem reserva:

- "É verdade que João não somente golpeou Pedro, mas o agrediu, como também o
é, que João tem agressão dentro dele ou, melhor dizendo, tem agressividade. Isso é tão óbvio
como estamos aqui sentados neste imenso teatro".

Você sorri e acrescenta:

- "Mas lembre-se de que João não só tem agressividade, também tem uma
personalidade, e é uma personalidade agressiva; isto é tão real como o que você acaba de
dizer".

- Sim, claro – respondo, corrigindo interiormente minha omissão.

O mágico diz: Pedro sentiu a "agressão" de João e este sentiu a "agressão" dentro de
si mesmo.

O mágico diz: Agora passo ao truque re-substantivação. Tomo o substantivo


"agressão", que fiz aparecer anteriormente, e transformo-o no substantivo "agressividade".

O mágico diz: Colocarei a recém aparecida "agressividade" em uma parte de João


que chamarei "personalidade".
VI

SEXTO TRUQUE

- A Real Academia de Mágicos chama ao seguinte truque Gerundização1. É tão


simples como o anterior, por isso raramente o incluo como parte do espetáculo. Não
obstante, nessa ocasião, e só desta vez, executá-lo-ei como resposta a seus amáveis e
calorosos aplausos – diz o mágico arrumando sua gravata borboleta e sua calça folgada.

- Estamos de acordo com que o que faz João é agredir; mas na realidade, enquanto
João golpeia Pedro, não faz precisamente isso – diz o mágico esfregando o verbo agredir
com suas mãos.

Uns segundos depois, ele abre suas mãos e mostra-nos o agredindo.

Todos aplaudimos. O agredir se transformou em agredindo.

- Por isso – interroga-nos o mágico –, o que me responderiam se eu lhes perguntasse


o que está fazendo João?

- Agredindo Pedro – respondemos, e assombro-me pela facilidade com que


entendemos.

- Perfeito, agredindo não é um substantivo, mas um modo do verbo agredir.


Agredindo descreve algo que está ocorrendo agora mesmo. Por isso, se queremos falar com
precisão, devemos dizer que no momento em que João golpeia Pedro não o agride, mas que
o está agredindo – diz o mágico enquanto ajeita com a varinha o engomado de sua camisa.
Todos rimos, pois o faz com muita graça e habilidade.

A apresentação não apenas se está tornando interessante, como também divertida.


É surpreendente a forma como o mágico manipula sua varinha e fala do comportamento,
utilizando palavras que tira de sua cartola.

É verdade, concluo, que uma coisa é que João golpeie a Pedro, outra que o agrida e
outra mais que o esteja agredindo nesse momento.

O mágico diz: Falando com precisão, devemos dizer que no momento em que João
golpeia Pedro não o agride, mas que o está agredindo.
VIII

SÉTIMO TRUQUE

- Pessoalmente, inventei e intitulei o seguinte truque – anuncia o mágico com


bastante arrogância. – Chamei-o Adverbialização1. Meses depois, a Real Academia de
Mágicos o fez seu. Devo confessar-lhes que o plágio também existe na comunidade de
mágicos – acrescenta sorrindo.

Então introduz com presteza o substantivo agressividade na cartola e golpeia-o três


vezes com a varinha mágica, convertendo-o no advérbio agressivamente.

- Observamos que João golpeou Pedro; vocês acreditam que o fez amavelmente? –
pergunta o mágico.

- Não, ele o fez agressivamente! – respondemos.

- Sua resposta é tão rápida quanto correta! – exclama o mágico inclinando sua
cartola para nós como mostra de aprovação.

- Agora entendemos perfeitamente que a ação de agredir, feita por uma pessoa que
tem o traço de agressividade em sua personalidade, é executada agressivamente2 -
acrescenta.

O público aplaude, também eu e você. O mágico nos corresponde aplaudindo. É claro


que todos estamos aprendendo coisas muito diferentes sobre a natureza humana, melhor
dizendo, sobre o comportamento humano.

O mágico introduz o substantivo "agressividade" na cartola e golpeia-o três vezes


com a varinha mágica, convertendo-o no advérbio "agressivamente".
IX

OITAVO TRUQUE

- Este truque se conhece com o nome de Adjetivação1 e o executarei rapidamente


porque tenho várias apresentações mais para frente – informa-nos o mágico. Então,
utilizando novamente a varinha mágica, com grande habilidade converte o nome agressão
no adjetivo agressivo. Sua execução é tão súbita quanto surpreendente.

- Agora, João não apenas tem agressão, mas também é agressivo – assinala o mágico
com sua voz potente.

Tão logo o disse, repito – " João não apenas tem agressão dentro dele, mas também
é agressivo".

Depois, tocando o seu ombro, eu digo-lhe: "É lógico que se uma pessoa tem agressão
dentro dela, seja agressiva2, não é?

"Certo" – respondes com firmeza –, "seria um estúpido se não estivesse de acordo


com isso. É tão claro, não é?"

Eu unicamente sorrio e espero com impaciência o ato seguinte.

O mágico converte o nome "agressão" no adjetivo "agressivo".


X

NONO TRUQUE

- Agora, por favor, observem com cuidado – pede-nos o mágico. – Executarei um


pequeno truque que se conhece como Etiquetar o ator1.

Então ele coloca os substantivos agressividade e agressão dentro da cartola e,


utilizando a varinha, converte-os no adjetivo agressor.

- Aqui está o adjetivo agressor, o qual utilizamos para dizer o que João é. Ele é um
agressor porque tem agressão ou agressividade nele – conclui o mágico ensinando o adjetivo
ao público.

Todos assentimos. Parece-nos uma conclusão correta. Então o mágico tira uma folha
do bolso de seu casaco.

Agora nos lerá algo – penso.

O mágico desdobra a folha com cuidado e diz-nos:

- Para que não se lhes esqueça o que aprenderam até agora, ensiná-los-ei uma
canção que compus há anos. Por favor, repitam junto comigo: "Tralalá; quando João golpeia,
João agride. Lalalá; quando João agride o faz agressivamente".

Todos tratamos de imitá-lo e o mágico continua:

- Tralalá; se João agride, então é agressivo. Lalalá; se João é agressivo, então tem
agressão. Tralalá; se tem agressão, então tem em sua personalidade um traço de
agressividade. Lalalá..."

A canção é ridiculamente monótona, mas ao fim deste truque todos a cantamos


divertidos.

O mágico diz: João é um agressor, porque tem agressividade nele.


XI

DÉCIMO TRUQUE

- Perfeito! – diz o mágico e aplaude-nos com entusiasmo. – Escutar esta canção é


muito inspirador, sua letra é fundamental para entender o comportamento humano.
Tenham-na sempre em sua memória.

Ter algo na memória, guardá-la sempre ali – penso.

- Sim – continua o mágico –, na verdade me sinto muito, mas muito satisfeito de


estar-lhes divertindo. Ademais, não achem que minto, se lhes digo que vocês são tão
afinados quanto eu.

Todos rimos e imediatamente depois ele dá alguns passos para frente e detém-se
justamente na borda do cenário. Um momento depois nos pede que fiquemos em silêncio
colocando o dedo indicador sobre seus lábios e inclinando-se um pouco para frente. Todos
obedecemos impressionados de sua maestria e autoridade.

- A este truque se lhe chama Explicação Fictícia I. Peço-lhes que prestem muita
atenção, porque o que vamos fazer é aprender a explicar o comportamento. Sim, nosso
comportamento! – exclama o mágico.

Aprenderei a explicar o comportamento, por fim saberei por que sou como sou – penso.

- Fiz aparecer a agressividade e a personalidade agressiva – continua o mágico –,


justamente o que necessitamos para saber por que nos comportamos como o fazemos.
Agora introduzo na cartola a pergunta: "Por que João golpeou Pedro?", e obtenho a resposta:
"Porque tem uma personalidade agressiva ou algo dentro dele que se chama agressividade".
Agora coloco a pergunta: "Como sabemos que ele tem uma personalidade agressiva ou
agressividade?", e obtenho a resposta: "Porque golpeou Pedro"1.

Muito simples, não há mais o que pensar.

Volto a olhar para você e você parece tão impressionado quanto eu e o resto do
público.

- Estão de acordo? – pergunta o mágico sorrindo.

- Sim, claro que sim – respondemos imediatamente.

Ainda que, pensando-o melhor, dou-me conta de que, com este truque, o mágico nos
faz acreditar que explicamos o comportamento de João, usando somente palavras que ele
fez aparecer anteriormente baseando-se no verbo golpear. Mas a pesar de dar-me conta
disso, estou muito surpreso com os poderes explicativos do mágico ou de sua grande
criatividade verbal.

- O que acha dessa magia – pergunto-lhe, confuso.


- Neste momento não sei o que lhe dizer – responde-me você –, de alguma maneira
que ainda não posso explicar o mágico nos está fazendo acreditar em alguma coisa que não
é muito certa.

- Provavelmente nos está enganando, mas, seja o que for, não podemos negar a
grandiosidade de cada um de seus truques – respondo-lhe e confirmo que, geralmente, os
bons amigos pensam o mesmo.

O mágico introduz na cartola a pergunta: "Por que João golpeou Pedro?", e obtém a
resposta: "Porque tem uma personalidade agressiva ou algo dentro dele que se chama
agressividade". Agora coloca a pergunta: "Como sabemos que ele tem uma personalidade
agressiva ou agressividade?", e obtém a resposta: "Porque golpeou Pedro".
XII

DÉCIMO PRIMEIRO TRUQUE

Ajustando as mangas de sua camisa e com voz rigorosa, o mágico anuncia:

- À seguinte execução se lhe nomeia Explicação Fictícia II. Introduzo na cartola a


pergunta: "Por que João golpeou Pedro?, e obtemos a resposta: "Porque é agressivo". Agora
coloco na cartola a pergunta: "Por que é agressivo?", e obtemos a resposta: "Porque golpeou
Pedro"1.

Passam alguns segundos e o mágico, olhando-nos misteriosamente, interroga-nos:

- Estão de acordo?

- Sim, claro, também com isto estamos de acordo – respondemos e escuto que você
acrescenta: "totalmente".

Não me explico por que nossas dúvidas desaparecem gradualmente. Talvez faça
parte da magia.

Repito para mim: "João golpeia porque é agressivo e é agressivo porque golpeia. Não
há dúvida, esta é uma boa explicação de seu comportamento".

O mágico introduz na cartola a pergunta: "Por que João golpeou Pedro?, e obtém a
resposta: "Porque é agressivo". Depois coloca na cartola a pergunta: "Por que é agressivo?",
e obtém a resposta: "Porque golpeou Pedro".
XII

DÉCIMO SEGUNDO TRUQUE

Considero que estes são os melhores truques de magia que já desfrutei em minha
vida. É surpreendente que a partir de um comportamento tão simples e pontual como João
golpeando Pedro, o mágico tenha feito aparecer coisas novas e interessantes.

Claro – concluo – deve existir uma ciência que se dedique a estudar cada um dos
truques e das coisas que o mágico fez aparecer. Seria uma lástima que tudo isso ficasse sem
análise, sem uma ciência que o considerasse como seu objeto de estudo1.

Agora o mágico, com uma expressão de completa confiança e satisfação, apresenta


o seguinte ato.

- O seguinte truque se intitula: Explicação Fictícia III. Introduzo na cartola a


pergunta: "Por que João é agressivo?", e obtenho a resposta: "Porque tem agressão". Agora
coloco a pergunta: "Por que tem agressão?", e obtenho a resposta: "Porque é agressivo"1.

Nessa ocasião o mágico não confirma se estamos de acordo com sua afirmação.
Talvez para ele seja óbvio que concordamos. E é verdade. Como poderíamos negar algo que
é tão claro e evidente?

"João agrediu porque tem agressão e tem agressão porque é agressivo", repito em
voz alta tratando de aprender esta admirável e completa explicação sobre o comportamento
humano.

O mágico introduz na cartola a pergunta: "Por que João é agressivo?", e obtém a


resposta: "Porque tem agressão". Depois coloca a pergunta: "Por que tem agressão?", e
obtém a resposta: "Porque é agressivo".
XIV

DÉCIMO TERCEIRO TRUQUE

- Agora, com o mágico número treze chegamos ao último truque. Espero que tenham
desfrutado da apresentação e aprendido a nomear, descrever e explicar o comportamento,
seja a de vocês ou a dos outros – anuncia o mágico com um sorriso de plena satisfação.

Eu penso que sim, então me volto para você e com curiosidade lhe pergunto:

- Você aprendeu algo?

- Sim, claro, aprendi muitíssimo sobre o comportamento humano – responde-me


convencido.

Sorrio como mostra de acordo e acomodo-me na poltrona. Então, o mágico tropeça


com o microfone, ouvindo-se um forte ruído no teatro.

- Perdão! – exclama o mágico inclinando-se imediatamente para levantá-lo –, neste


último ato sempre me sinto muito nervoso porque, ainda que pareça simples, é
extremamente difícil. Precisa-se de uma longa preparação para poder realizá-lo, por esta
razão sempre o deixo para o fim do espetáculo. Por favor, prestem muita atenção a tudo o
que faço e digo – adverte-nos.

O mágico caminha lentamente até a parte de trás do cenário. Apagam-se todas as


luzes exceto uma que permanece dirigida a ele. Seu traje negro brilha mais do que antes.
Todos estamos em completo silêncio.

- Amável público – diz –, tudo o que fiz aparecer tem que ocorrer e existir em alguma
parte1. Em algum lugar tem que estar a agressão, a agressividade, o agressivo, em algum
lugar do qual surja. Como poderia ser de outra maneira? – pergunta-nos.

Então, avança dois passos lentamente até a frente e a luz o segue. A cena se torna
estranha, um tanto mística.

- Agora lhes mostrarei de onde ocorreu tudo o que sucedeu ao longo da


apresentação; revelar-lhes-ei as misteriosas origens do comportamento ou comportamento
humano – exclama o mágico com uma voz forte e penetrante.

Pela primeira vez se escuta música de fundo, não identifico a melodia, mas é clássica.
Pode ser Beethoven ou Mozart. Então o mágico caminha até a frente pronunciando as
palavras mágicas e aparece: A Mente.

- Esta é A Mente! – exclama o mágico levantando os braços até o céu. – Ela explica
toda o comportamento e contém todas as causas de nosso comportamento. Sem ela
seríamos animais irracionais.

Muitos dos presentes se inclinam e sinto calafrios. Sem dúvida este foi o truque mais
impressionante que jamais presenciei em toda minha vida. Depois todos aplaudimos tão
efusivamente que chegamos a nos aturdir. Alguns de nós ficamos em pé e gritamos
emocionados: "Viva, viva o mágico! Viva, viva A Mente!".

- Na mente está a agressão que é a causa de que João agrida – acrescenta o mágico
em voz alta, aparentando não se importar com os aplausos. – Foi A Mente o que
primeiramente converteu João em agressivo e depois o fez com que golpeasse Pedro. É na
Mente que reside a agressão de João. Ela é a com que faz que alguém seja um agressor e que
atue agressivamente. Nela está tudo e a explicação de tudo, assim, milagrosamente simples.
Nossa personalidade, o que somos na realidade, está na Mente.

"Assim, milagrosamente simples", repito para mim.

Então, o mágico dá uns passos para trás e a luz continua sobre ele.

- Repito, a Mente contém tudo e é a causa e a origem de todo comportamento. Sem a


Mente nem vocês nem eu nos comportaríamos como o fazemos. Não há mais o que dizer.

Nesse momento alguém do público grita:

- João golpeou Pedro porque quis. Ele o fez porque sentiu vontade de fazê-lo, porque
era sua intenção ou propósito. Essa é a explicação verdadeira2!

O mágico caminha para frente, olha fixamente o indivíduo que o interrompeu e


admoesta-o apontando-lhe o dedo indicador.

- Escute bem; não quero que nem você nem todos os demais que estão aqui
abandonem o teatro sem entender que, ao referir-nos a um sentimento como a causa de um
comportamento, sem explicar de onde se origina esse sentimento, é um velho truque de
magia. Um truque passado de moda, verdadeiramente ridículo. Sim, ridículo – repete o
mágico em voz alta3.

O indivíduo admoestado se senta lentamente e eu concluo que a causa de seu


comportamento é que sente vergonha. Tão logo o penso dou-me conta que precisamente
estou explicando suo comportamento referindo-me a um sentimento, à vergonha. Volto a
olhar o mágico temendo que ele se tenha dado conta de meu erro. É certo que o criador da
mente também tem o poder de lê-la.

- É por isso que não incluo este ato em meu repertório – acrescenta o mágico
impaciente dando alguns passos para trás. – Não há dúvida, os sentimentos e intenções não
se auto-originam, mas que se originam na Mente4. Lembrem-se: a Mente sempre é primeira,
a Mente é primeira! – repete o mágico apontando para a cabeça.

A pessoa que interrompeu pede desculpas de seu lugar, mas o faz de uma maneira
tão infantil que todos nos rimos.

- Talvez – grita outro espectador – João golpeou Pedro porque tem pensamentos ou
crenças irracionais, porque pensa e acredita em algo que não é certo.

- Voltamos ao mesmo – responde incomodado o mágico. – Mas suponhamos que


assim fosse; em todo caso, não se explica como se originam os pensamentos irracionais ou
as falsas crenças5 – esclarece. – A origem é a Mente, lembrem-se: a origem é a Mente. Não é
necessário buscar outra resposta – insiste.

Nesse momento um jovem que está em frente a nós se põe em pé e grita com
frustração:

- Creio que João golpeou Pedro porque Pedro iria golpeá-lo.

O mágico se volta para ele e sinto que me olha a mim. Sorrio nervosamente.

- Sim, este pode ser outro truque, mas infelizmente, devido ao pouco tempo hoje não
o apresentarei. Conhece-se-lhe com o nome de Teleologia6 e consiste em lograr que algo
que ocorrerá no futuro, seja a causa de algo que ocorre no presente. Se houver tempo,
prometo-lhes executar esse truque na seguinte apresentação; confesso-lhes que é bastante
interessante.

O jovem se senta e eu me recupero de meu nervosismo. Nesse momento outra


pessoa do público objeta:

- Todos os seus truques são excelentes, mas opino que João golpeou Pedro porque
tem um gene agressivo ou alguma desordem orgânica7.

O mágico ri estrepitosamente, golpeando o piso várias vezes com o pé direito. Há


uma mudança de luzes, agora a luz que o ilumina é avermelhada.

- Devo admitir que os truques mais populares na atualidade são os genéticos ou


biológicos. Mas, pessoalmente, desagradam-me porque são muito simplistas; reducionistas,
diria eu – e continua rindo-se.

- Simplistas, reducionistas? – pergunta ainda perturbado o mesmo indivíduo que fez


a intervenção.

- Sim – responde o mágico com um gesto de indiferença. – Simplistas, porque se não


se sabe como explicar um comportamento, inventa-se um gene ou uma causa orgânica. E
reducionistas, porque se tenta explicar tudo fazendo referência ao organismo. Isto não tem
nada de profissional, não é?

Murmuramos com assombro. O mágico é grandioso, suas respostas são totalmente


convincentes.

Outro espectador, um ancião de barba branca que está sentado na parte mais escura
do teatro grita com dificuldade:

- Todos vocês estão equivocados, todos, inclusive o mágico! João golpeou Pedro
porque tem uma desordem mental e nada mais8!

O mágico sorri maliciosamente e, dirigindo-se ao ancião, declara:

- Com todo o respeito que o senhor e todos merecem, digo-lhes que inventar uma
desordem mental ou psicológica é mais fácil ainda que inventar uma orgânica. É assim,
porque não existe nenhuma possibilidade de determinar se uma desordem mental existe ou
não. Certamente que existe a Mente, mas nunca poderemos vê-la... Senhor, devo dizer que
esse é um truque de principiantes, ainda que eu admita que é muito atrativo.

Imediatamente ao terminar esse comentário o mágico faz uma caravana, indicando


com isso que sua apresentação havia terminado. A iluminação passa do vermelho a um azul
muito tênue. Aplaudimos pela última vez e vemo-lo retirar-se lentamente pelo lado direito
do cenário.

Tão logo desaparece sentimos um enorme apreço por ele. É claro que foi ele quem
nos brindou com a oportunidade de descobrir o que já existia, ainda que não nos déssemos
conta e, sobretudo, quem nos revelou o lugar onde ocorre e origina-se toda o
comportamento ou comportamento, onde sucede o que nos faz ser humanos.

Volto-me para ver você e você me diz:

- Continua me parecendo maravilhoso que o mágico tenha feito aparecer tantas


coisas, baseando-se em um comportamento tão simples como golpear9.

- É surpreendente, de fato – acrescento e, emocionado, esfrego as mãos.

Todas as pessoas se levantam; em contraste, nós ficamos sentados para esperar que
se descongestione a saída. Passam-se uns minutos e de novo se abre o telão. O mágico está
aí, outra vez, informando que apresentará outra apresentação. Algumas pessoas, incluindo
nós, permanecemos sentados para ver de novo sua demonstração. Minutos depois
descobrimos que são os mesmos truques e, ainda que sejam interessantes, não são o
suficiente para vê-los uma segunda vez. Finalmente decidimos nos ir. Caminhamos até o que
parece ser a saída principal do teatro e por sorte encontramos um lanterninha.

- Por favor, poderia você nos indicar a saída? – perguntamos-lhe.

- Com gosto, ainda que vocês possam permanecer na sala o tempo que quiserem,
lembrem-se de que não se cobra nada por esta apresentação.

- Obrigado, você é muito amável, mas precisamos ir, temos coisas para fazer – você
o responde apressadamente.

- Não há de que, mas insisto que seria melhor que permanecessem na sala – insiste
o lanterninha. – Se ficarem, asseguro-lhes que cada vez entenderão melhor os truques e,
com sorte, terminarão fazendo-os vocês mesmos em suas casas frente a familiares ou
amigos, será muito divertido.

- Obrigado, mas por favor, mostre-nos a saída – você insiste, quase rogando.

- Se é isso o que querem, assim o farei; mas não entendo a sua pressa – responde
secamente o lanterninha.

Passamos entre centenas de pessoas que entram e saem do teatro, todos se vêem
emocionados. Finalmente chegamos a uma sala que está quase vazia e caminhamos
justamente pelo centro. O piso é de mármore, sente-se muito frio o ambiente e, ainda que a
sala tenha grandes janelas, está muito escura.
Ante o silêncio aproveito para pedir ao lanterninha que nos explique o que na
verdade está acontecendo no teatro.

- Quanto tempo se está exibindo essa apresentação?

- Mais de dois mil anos.

- Dois mil anos?! – perguntamos surpresos.

- Sim, desde os tempos da antiga Grécia, milhões de espectadores assistiram. Todos


eles foram e continuaram sendo enganados. Agora também vocês tiveram esse privilégio.

- Você diz que o mágico nos enganou e que ser enganado é um privilégio? – você
pergunta imediatamente, mostrando claramente o seu desacordo, para não dizer a sua
raiva.

- Claro. Vocês e toda a humanidade têm sido e continuam sendo enganados


diariamente em todas as apresentações. É um privilégio ser como todos, ou seja, ser normal,
não é?

- Bom, não necessariamente – você responde, perturbado.

O lanterninha sorri e convida-nos de novo para regressar ao teatro.

- Não poderia dizer, por favor, exatamente em que fomos enganados?

- Em muitas coisas que se resumem no seguinte: fazê-los acreditar que toda palavra
necessariamente tem um referente, algo que existe e que nomeia – prossegue o lanterninha
sem nos olhar nos olhos. – Palavras que se referem unicamente a outras palavras ou a nada,
esse foi o engano.

- Então, o mágico nos enganou intencionalmente? – você pergunta, aflito.

O lanterninha se detém rapidamente e olhando-nos nos olhos, responde:

- Acaso isso importa? De qualquer maneira o efeito é o mesmo. Os espectadores,


incluindo vocês, acabam acreditando que o comportamento ou o comportamento se podem
explicar por meio de truques ou artifícios verbais, com palavras que o mágico tira da cartola.

- Truques verbais – repito em voz baixa.

- Sim, truques lingüísticos – responde o lanterninha, dando mostra de sua


capacidade auditiva –, artifícios semânticos ou gramaticais que...

- Entendemos, entendemos perfeitamente – você interrompe e eu vejo em seu rosto


uma expressão de angústia –, mas ainda assim, não entendo o que na verdade está
acontecendo nesse teatro.

O lanterninha continua caminhando e nós o seguimos, perplexos.

- Olhem, vocês devem entender que os mágicos vivem de seus truques e fazem todo
o possível para manter o público enganado, ou dito elegantemente, entretido. Claro que
nenhum mágico deseja que o público descubra seus segredos. De que viveriam os mágicos
se não enganassem as pessoas?

Sinto-me enjoado. É difícil respirar. Olho para trás e a sala, que há poucos segundos
estava quase vazia, agora está completamente cheia. Você pede ao lanterninha que, por
favor, apresse-se e mostre-nos a saída. Pressuponho que você se sente como eu.

- Por aqui – diz o lanterninha saindo da sala –, não há necessidade para se


angustiarem, asseguro-lhes que nada mal acontecerá, ademais do que já passa há tantos
séculos.

Durante vários minutos continuamos por um corredor longo e estreito. Há quadros


colados em ambas as paredes. Ao início são imagens de filósofos gregos e orientais, e ao final
fotos de psicólogos modernos. O último quadro contém a foto de uma pessoa maior com
frente muito ampla. O quadro está inclinado e tem o cristal roto. Na parte inferior da foto se
diz com letras muito pequenas: "B. F. Skinner"10.

Nesse momento, o lanterninha se detém e olhamos intrigados para ele.

- Ali está a saída – diz-nos, assinalando-nos uma estreita porta ao final do corredor.
– Podem ir vocês sozinhos, eu fico aqui. Não encontraria trabalho fora do teatro – acrescenta
com voz entrecortada.

- Obrigado – dizemos e aceleramos o passo, deixando para trás o lanterninha. Sinto


pena por ele. Por seu tom de voz e sua maneira de caminhar que me dão a impressão de que
queria vir conosco e sair do teatro.

Passamos através da porta com muita dificuldade, como se uma lufada de vento nos
empurrasse para dentro.

Nesse momento tudo me parece um sonho, ou melhor dizendo, um pesadelo. O que


quero é estar fora do teatro o mais rápido possível.

Uma vez fora, busco por você, mas não lhe encontro em lugar algum, seguramente
você caminhou mais rápido do que eu ou talvez não conseguiu resistir ao vento.

Agora posso respirar sem dificuldade e sinto-me melhor. Antes de ir para casa olho
rapidamente para trás para procurar por você pela última vez, mas não você está. Sinto
tristeza, e entristeço ainda mais quando me dou conta de que poderias ficar vendo a
apresentação mil e uma vezes. Dou uns passos para frente, não sei se volto ou vou para casa.
Nesse momento descubro um enorme cartaz colocado em frente ao teatro, com letras
grandes e luminosas diz: "Psicologia". Sob elas, com letras menores, mas chamativas, diz:
"Bem-vindos ao teatro mais antigo do mundo", mais abaixo anuncia o nome do mágico:
"O Grande Psicólogo" e o nome da apresentação: "Treze truques de magia". Na parte
direita do cartaz diz com letras diferentes e cores muito brilhantes: "Apresentações
diárias e contínuas. Admissão grátis para crianças e adultos". Ao ler isso,
indubitavelmente decido ir para casa.

De alguma maneira, sinto que perdi você.


- Esta é A Mente! – exclama o mágico levantando os braços para o céu. – Ela explica
todo comportamento, ela contém todas as causas de nosso comportamento.

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