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Revista Pensamento Jurídico – São Paulo – Vol. 10, Nº 2, jul./dez.

2016

Data de recebimento: 13/03/2016


Data de aceitação: 01/12/2016

INTEPRETAÇÃO DO DEBATE CONTINENTAL ENTRE


JUSNATURALISMO E JUSPOSITIVISMO: AS REFUTAÇÕES DE
MICHEL VILLEY ÀS CRÍTICAS DE HANS KELSEN AO DIREITO
NATURAL

Ricardo Evandro Santos Martins1


Paulo Sérgio A. C. Weyl2

RESUMO: O presente artigo interpreta as refutações de Michel Villey às críticas de Hans


Kelsen ao Direito Natural. O objetivo é, primeiramente, apresentar as críticas de Kelsen às
teses jusnaturalistas para, em seguida, apresentar as refutações de Villey, defendendo o
Direito Natural. Por fim, o artigo pretende, a partir de Kelsen e Villey, realizar um balanço
dentro do debate da Filosofia do Direito continental sobre críticas e refutações em torno do
tema do Direito Natural.

PALAVRAS-CHAVE: Hans Kelsen; Michel Villey; Direito Natural.

1
Doutorando e Mestre em Direito pela Universidade Federal do Pará – UFPA. Professor de História do Direito
do Centro Universitário do Pará – CESUPA. Membro do Grupo de Pesquisa (CNPq) Direitos Humanos, Ética e
Hermenêutica. ricardo-evandro@hotmail.com
2
Doutor em Direito pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro – PUC-RJ. Professor Adjunto da
Universidade Federal do Pará – UFPA. Coordenador do Grupo de Pesquisa (CNPq) Direitos Humanos, Ética e
Hermenêutica. psweyl@hotmail.com

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INTERPRETATION OF THE CONTINENTAL DEBATE BETWEEN


JUSNATURALISM AND JUSOSITIVISM: MICHEL VILLEY'S
REFUTATIONS TO HANS KELSEN'S CRITICS TO NATURAL LAW

ABSTRACT: The article interprets the refutations of Michel Villey to Hans Kelsen‟s critics
to Natural Law. The goal is, firstly, to show the Kelsen‟s critics to the Natural Law thesis and,
them, to show the refutations of Villey defending the Natural Law. In the end, the paper
intent, since Kelsen and Villey, realize a balance in the continental Philosophy of Law debate
about critics and refutations around the Natural Law them.

KEYWORDS: Hans Kelsen; Michel Villey; Direito Natural.

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INTRODUÇÃO

O artigo trata da refutação realizada pelo jus-filósofo e jus-historiador francês Michel


Villey à leitura crítica de Hans Kelsen sobre a tradição jusnaturalista. A exposição da
refutação de Villey será antecedida pela apresentação da própria critica de Kelsen ao
Jusnaturalismo. O objetivo deste trabalho é o de poder por a prova as críticas kelsenianas ao
Jusnaturalismo com a confrontação das refutações de Villey em defesa do Direito Natural.
Trata-se de elaborar um “debate” – ainda que nunca tenha ocorrido diretamente entre os
autores – acerca do jusnaturalismo. E para o desenvolvimento do tema e para a devida
concretização dos objetivos apresentados na Introdução, duas obras terão destaque ao longo
deste artigo: uma é a de Villey, Questões de Tomás de Aquino sobre direito e política, obra
em que o jus-filósofo expõe e refuta o pensamento de Kelsen sobre o Direito Natural, e a
outra é a de Kelsen, Justiça e o direito natural, obra em que o Mestre de Viena conceitua e
argumenta em desfavor da validade do Direito Natural a partir dos pressupostos
juspositivistas de matiz científico-normativista sobre o Direito. Assim, ao final, enfrentaremos
a difícil tarefa de interpretar os fundamentos das argumentações e das contra argumentações
sobre o tema do Direito Natural a partir da teoria do direito de Kelsen e do pensamento de
Villey acerca da “natureza” e do “direito”, para elaborar um balaço final interpretativo nas
considerações finais.

1. APRESENTAÇÃO GERAL DAS TESES DE HANS KSLEN E DE MICHEL


VILLEY: JUSPOSITIVISMO VERUS JUSNATURALISMO NO DEBATE
CONTEMPORÂENO CONTINENTAL

1.1 HANS KELSEN E A CRÍTICA AO DIREITO NATURAL

No seu Justiça e o direito natural, que foi publicado como um apêndice da 2ª edição
da Teoria pura do direito, em 1960, Hans Kelsen estabelece como indubitável o fato de que o
Direito Natural foi dominante nos século XVII e XVIII. E que, apesar do recuo da Doutrina
jusnaturalista no século XIX, o interesse pelo Direito Natural retornou ao primeiro plano das
preocupações dos filósofos sociais e jurídicos no século XX, junto ainda com especulações

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metafísico-religiosas. Kelsen nos diz que esta “retomada” é sequela fruto das experiências das
duas Guerras Mundiais e é também uma reação contra as doutrinas políticas nazi-fascistas e
comunistas.3

Ainda nessa obra de maturidade, o Mestre de Viena, como de costume, é muito claro
ao definir os pressupostos do Jusnaturalismo. Kelsen nos diz que a Doutrina do Direito
Natural é uma doutrina de caráter idealista. Tal Idealismo se expressa no Direito de modo
dualista, pois distingue, por um lado, o chamado Direito Positivo, aquele “posto” pelos
homens e que, por isto, possui caráter mutável, e, por outro, o Direito Natural, aquele “ideal”,
imutável e que pode ser identificado com a “justiça”. Vale ressaltar que, de acordo Kelsen, o
Jusnaturalismo não pode ser considerado como “a” Doutrina jurídica idealista, e sim apenas
como uma das doutrinas de caráter idealista-dualista, distinguindo-se das demais apenas pelo
de fato de considerar a “natureza” como a fonte do Direito.4

Kelsen afirma que a “natureza” é a concreta realidade do acontecer fático que se


encontra em perpétua mutação, logo, as normas que pretendem ser “naturais” somente
poderiam ser extraídas pela observação da regularidade presente neste acontecer fático que é a
“natureza”. Sendo assim, Kelsen sustenta que as normas que podem ser observadas no mundo
natural são apenas as “leis da natureza”. E quando a Doutrina do Jusnaturalismo pretende
deduzir da “natureza” normas de caráter imutável sobre a reta e justa conduta, Kelsen afirma
que tal Doutrina apenas está transformando as regras do mundo do ser (Sein), que é o mundo
natural, em normas de dever-ser (Sollen), extraindo um valor imanente à realidade, o que seria
ilusório do ponto de vista científico-normativo.5

Confundir os dois mundos, o do “ser” e o dos “valores” (“dever-ser”), é proibido


pelos limites metodológicos já presentes na primeira obra de relevância do Mestre de Viena, o
seu Problema fundamental da doutrina do direito público, publicada em 1911. Nesta obra,
Kelsen estabeleceu dois limites metodológicos para a Ciência do Direito: 1º) o estudo
científico do Direito tem que ser normativo, isto é, descritivo de normas; 2º) e também
teorético-formal, em que tal descrição tem que se dar apenas por juízos de fato sobre as

3
KELSEN, 2009, 105
4
KELSEN, 2009, p. 102
5
KELSEN, 2009, p. 104

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normas de dever-ser, e nunca por juízos de valor. Deste modo, a Ciência do Direito somente
pode descrever o Direito como ele é, e nunca como deve ser.6 E esta tese de que a Ciência do
Direito faz mera descrição da norma jurídica é defendida por Kelsen porque sua Doutrina
pura do direito segue o postulado do Relativismo axiológico, que, de acordo com a Teoria
pura do direito, de 1934/1960, estabelece que nós vivemos em um mundo de pluralidade de
perspectivas, portanto, não seria permitido à Ciência jurídica dizer com que valor o Direito
deve se pautar, pois, conforme o postulado, não há valor ou moral absolutos.7

1.2 AS REFUTAÇÕES DE MICHEL VILLEY EM FAVOR DO DIREITO NATURAL

Expostos de modo geral a doutrina pura do Direito de Kelsen, passemos para as


refutações de Michel Villey às teses anti-jusnaturalistas do Juspositivismo kelseniano. Villey
identifica e depois refuta três argumentos destacados por ele na doutrina jurídica anti-
jusnaturalista de Kelsen: 1) a Falácia naturalista; 2) o Relativismo; e 3) o Dualismo (ou Tese
dos mundos). De acordo com o jus-filósofo francês, estes argumentos podem ser refutados a
partir das Filosofias de Aristóteles de São Tomás de Aquino, conforme o desenvolvimento
logo a seguir.

Iniciando com a discussão sobre o argumento da “falácia naturalista” (1), Villey


alega que é possível inferir uma norma jurídica da observação da “natureza” quando se parte
de outra concepção sobre o mundo natural, que não a kelseniana. Villey afirma que o tema era
central em Aristóteles, especialmente nas obras, Metafísica e Física, assim como na Suma
teológica de São Tomás de Aquino. A despeito de Kelsen, as concepções de natureza nestas
filosofias entendiam o mundo natural como um mundo harmônico, ordenado e dotado de
finalidade (por causa da esquecida “causa final”). Deste modo, seguindo a finalidade natural
dos entes criados por Deus, as normas jurídicas poderiam, sim, ser extraídas da natureza pela
“arte do justo”.8

6
KELSEN, 1997, p. 8-10
7
KELSEN, 2006, p. 72-74
8
VILLEY, 2014, p. 144; 147

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Em relação ao argumento do Relativismo (2) invocado por Kelsen, Villey o refuta,


alegando que não é válida a tese da inexistência do Direito Natural pela constatação de que o
Direito muda no tempo e de que há, inclusive, discordâncias entre as próprias concepções de
Direito Natural na história. Pois, de acordo com Villey, Kelsen confunde o Direito Natural
com a noção de Lei Natural. E tal confusão, diz Villey, não pode prosperar porque o Direito
Natural não corresponde às observações feitas pelos cientistas sobre os padrões imutáveis na
natureza.9 Aristóteles e São Tomás de Aquino já faziam a distinção entre Lei Natural e Direito
Natural. Assim, enquanto as Leis Naturais, como a que diz que devemos buscar o bem, e
nunca o mal, são realmente imutáveis, há de se levar em consideração as normas de Direito
Natural que, diferentemente das Leis Naturais, não correspondem a princípios imutáveis. O
Direito Natural é multiforme, mudando com as situações em que as relações jurídicas
implicam.10

Por último, quanto ao argumento de que os mundos da natureza e das normas não se
misturam e que o Direito Natural impediria a constituição homogênea de normas positivas
(3), Villey o refuta, alegando que o próprio Direito Positivo não constitui um sistema acabado
e fechado. O Direito era visto como relações jurídicas concretas, apropriadas às necessidades
prático-circunstanciais, podendo o ser complementado com o Direito Positivo.11 Para
Aristóteles, a legislação era inteligência sem paixão. As normas “postas” não podem ser
objeto do raciocínio discursivo (teorético), já que o estudo do Direito não é a rigor uma
„ciência‟ (epistéme). O estudo do Direito se dá pela dialética, pela observação e pela
racionalidade prática da prudência, chegando sempre a resultados provisórios.12

2 INTERPRETAÇÃO DOS FUNDAMENTOS FILOSÓFICOS DO “DEBATE”


ENTRE HANS KELSEN E MICHEL VILLEY

2.1 OS LIMITES METODOLÓGICOS DA CIÊNCIA DO DIREITO E A CONCEPÇÃO DE


NATUREZA COMO HETEROGENEOUS CONTINNUM POR HANS KELSEN

9
VILLEY, 2014, p. 147
10
VILLEY, 2014, p. 148
11
VILLEY, 2014, p. 148; 151
12
VILLEY, 2005, p. 55-56; 58

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2.1.1 Os dois limites metodológicos da Ciência do Direito e as críticas ao jusnaturalismo

Uma vez apresentadas, ainda no primeiro tópico deste artigo, as críticas de Kelsen ao
Direito Natural, passemos agora a fazer explicitação dos fundamentos filosóficos da crítica de
Kelsen ao jusnaturalismo. E começamos esta tarefa interpretativa com a defesa da tese de que
foi a partir daquele pressuposto mais básico, o da proibição de se confundir o mundo do ser
com o do dever-ser na Teoria do Direito, que Kelsen construiu não apenas a sua doutrina pura
do Direito, mas também, por óbvio, suas críticas ao Direito Natural. O ato de extrair normas
de dever-ser dos fatos naturais é inaceitável para os limites metodológicos formalistas e
normativistas da Doutrina pura do direito. É importantíssimo desenvolver melhor estes dois
limites para que haja uma melhor compreensão das críticas kelsenianas ao Direito Natural,
pois é pelo respeito aos limites metodológicos que é possível identificar as teses as quais
Villey elencou como sendo os argumentos centrais contrários ao Jusnaturalismo – a lembrar, a
Falácia naturalista, o Dualismo insuperável entre ser e dever-ser e o Relativismo moral.

Sobre os dois limites metodológicos à Ciência do Direito, podemos começar


afirmando que Kelsen estava preocupado com a pureza epistemológica no estudo científico da
norma jurídica. Portanto, podemos começar com o primeiro limite metodológico. Como já
adiantado em tópico anterior, o primeiro limite refere-se à restrição quanto ao estudo que o
cientista do Direito deve fazer. O objeto de estudo da Ciência do Direito é a norma jurídica.
Por isto é que Kelsen dizia que a Ciência do Direito é uma Ciência Normativa. “Normativa”,
aqui, quando atribuída à Ciência do Direito, somente pode significar que tem a norma
jurídica, e a conduta quando relacionada a ela, como único objeto de descrição. A Ciência do
Direito jamais pode produzir ou “positivar” normas. A prescrição de normas jurídicas é tarefa
das autoridades competentes, isto é, autoridades que possuem permissão e poder jus-genético,
conforme autorização normativa de um dispositivo superior.

Na Teoria pura do direito, seguindo a mesma tese formulada no Problemas


fundamentais da teoria do direito público, de 1911, Kelsen, logo no Capítulo III, faz a
distinção entre ciência causal e ciência normativa. Enquanto a causal explica seu objeto de
estudo, produzindo leis a partir da descrição das relações de causa e de efeito, a ciência

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normativa, como a Ciência do Direito, descreve um objeto de ordem normativa.13 O que isto
significa? No âmbito da Ciência do Direito enquanto Ciência Normativa, o Direito é visto
essencialmente como norma. É verdade que na Teoria pura do direito Kelsen acaba por
confundir algumas vezes o objeto da Ciência do Direito, ora designando-o como ordenamento
jurídico, ora chamando-o de “sociedade”. Sobre isto, diz Kelsen: “Somente quando a
sociedade é entendida como uma ordem normativa da conduta dos homens entre si é que ela
pode ser concebida como um objeto diferente da ordem causal da natureza, só então é que a
ciência social pode ser contraposta à ciência natural”.14

Conforme a citação destacada no parágrafo anterior, podemos aproveitar para


esclarecer melhor alguns pontos antes de partirmos para a exposição sobre o que seria o
segundo limite metodológico à Ciência do Direito. A Ciência do Direito, por ser Normativa,
não poderá jamais ter um ente pertencente ao mundo do ser como objeto de estudo. Ainda que
Kelsen se refira às normas e posteriormente à sociedade como “objeto” de estudo da Ciência
do Direito, “sociedade”, aqui, somente pode ser entendida como algo em referência à norma
jurídica, que está no mundo do dever-ser. E o queremos mostrar é que o primeiro limite
metodológico à Ciência do Direito demarca uma tese epistemológica neokantiana que Kelsen
adotou para si: a chamada Tese dos mundos. Para sermos mais específicos, tal tese em Kelsen
foi herdada da Filosofia neokantiana de W. Windelband e de H. Rickert (Escola de Baden). É
claro que a separação insolúvel entre ser e dever-ser é algo que remete às formulações de D.
Hume e I. Kant, mas, aqui, entendemos que a tese da separação entre o mundo do ser e do
dever-ser está estritamente relacionada com a tentativa de fundamentação filosófica das
Ciências Culturais (Rickert).

Assim, o ordenamento, como conjunto de normas jurídicas, está no mundo do valor


jurídico, um mundo de dever-ser, enquanto que os entes naturais são vistos como
acontecimentos com existência ontológica propriamente dita, estando no mundo do ser,
portanto. Assim, influenciada pelo Neokantismo da Escola de Baden, que herdou de Hume e
de Kant esta perspectiva dualista, e também influenciada pelas Teorias dos seguidores
posteriores desta mesma Escola, como G. Simmel, R. Stummler e M. Weber, a Teoria do
Direito kelseniana, ainda em fase de formulação, interpretou este dualismo metodológico,

13
KELSEN, 2006, p. 84
14
KELSEN, 2006, p. 86

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fazendo a distinção rígida entre Leis naturais e Leis jurídicas.15 “Leis jurídicas”, aqui, não
podem ser identificadas com as normas jurídicas (leis infraconstitucionais, etc.), pois a norma
jurídica é o objeto de estudo das Ciências do Direito e as Leis jurídicas é o resultado da
descrição científica realizada pelo cientista do Direito.

Sobre a atividade do cientista, podemos afirmar que do mesmo modo que um físico
descreve a dilatação dos metais quando aquecidos, formulando, com tal ato descritivo, uma
Lei natural (“Se aquecer o metal, será dilatado”), o cientista do Direito descreve as
prescrições das normas jurídicas, formulando uma Lei jurídica (“Se cometer A, deve-ser
punido com B”). Deste modo, podemos ver que a Ciência do Direito, além de não produzir
norma jurídica, também não prescreve nenhum enunciado prático, e isto é a essência do que
se chamou de segundo limite metodológico à Ciência do Direito. A Ciência do Direito, do
mesmo modo com as Naturais, apenas descreve seu objeto de estudo, e nunca prescreve como
tal objeto deve ser. A atividade do cientista do Direito neste ponto se aproxima da atividade
do físico porque, assim como este, nunca se diz como a Natureza deve ser, e sim como ele é.
A tarefa científica é estritamente teorética, e nunca prática.

Diferentemente da antiga concepção sobre o Direito, enquanto arte do justo, a


Ciência do Direito desenvolvida por Kelsen não é uma atividade prática. Trata-se de uma
atividade que produz um conhecimento científico a partir da descrição do objeto-norma vista
como um dado posto, isto é, positivado por uma autoridade competente, a qual será
reconstruída por um juízo hipotético. Acreditamos que este tema na doutrina pura de Kelsen
causa muita confusão e entendemos que muitas destas más-compreensões nascem da confusão
entre o “dever-ser” que constituem a norma jurídica e o “dever-ser” que serve como verbo de
cópula nas proposições jurídicas “Se A, deve-ser B”. As proposições construídas pelos
cientistas do Direito são juízos de fato do mesmo modo que as proposições da Física, isto é,
trata-se de juízos que dizem como seus objetos de estudo são, e nunca como devem ser. Nada
prescrevem, apenas descrevem, portanto. A polêmica, contudo, pode surgir na questão que
envolve o verbo de cópula da descrição judicativa produzida pela Ciência do Direito, uma vez
que esta se utiliza do “deve-ser”, e não do “será” ou “é”, como fazem as Ciências Naturais.
Deste jeito, o que precisa estar claro, aqui, é que o “deve-ser” das proposições jurídicas é
descritivo, e não prescritivo. E isto é assim porque o cientista do Direito, quando descreve a
norma jurídica, conclui que a um fato, ou a um ato, uma sanção não “será” imputada, mas tão

15
PAULSON, 2009, p. 13-14; 17-18

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somente “deverá-ser”, já que é assim que o enunciado normativo prescreve e é assim que o
Princípio epistemológico da Imputabilidade opera nas Ciências Normativas Sociais como é a
Ciência do Direito. O que queremos dizer com isto é que não “será” imputada uma sanção por
causalidade a um ato ou a um fato, mas sim que isto “deverá” ocorrer, conforme diz a norma
jurídica descrita pelo cientista do Direito. Mas ainda fica um importantíssimo questionamento
restando sobre este tema: por que a atividade do cientista do Direito deve ser descritiva, e não
prescritiva?

O século XIX foi o período em que a antiga Ciência do Direito, enquanto


jurisprudentia, somente deixou de ser um saber “prático”, ou ainda, “ético” (“prudencial”),
quando ganhou ares “teorético-científicos” com a sua inserção pelo Positivismo Filosófico no
rol das Ciências produtoras de conhecimento rigorosamente científico. Com isto, queremos
destacar que, em tese, o Positivismo Filosófico deu o caráter teórico para a Ciência do Direito,
excluindo, desta maneira, qualquer aproximação de suas atividades investigativas com as
atividades de “prudência”, isto é, ético-práticas, que caracterizavam a arte do justo dos
antigos. É óbvio que Kelsen não pode ser considerado um positivista no sentido do
pensamento de A. Comte e de J. S. Mill, já que Kelsen, como vimos, elabora, sobre bases
neokantianas, uma Ciência do Direito enquanto Ciência Humana. Mas também não se pode
negar que a perspectiva científica do Direito, ao menos no sentido de conhecimento metódico
rigoroso, sistemático e descritivo, é um resquício da visão de mundo oitocentista em Kelsen.

O importante a ser destacado, entretanto, é outro ponto. Queremos chamar a atenção


para o fato de Kelsen não poder aceitar que a Ciência do Direito diga como “deve ser” as
normas jurídicas porque, ao fazer isto, o jus-cientista teria que partir de uma visão moral
objetiva sobre o Direito. Teria o cientista que pressupor a existência de uma moral absoluta e
objetiva para poder julgar, não como o direito “é”, mas sim como ele “deve-ser”. Não estamos
falando de outra coisa aqui senão do Postulado do Relativismo axiológico sobre o qual a
doutrina pura do Direito foi construída por Kelsen. Devido a este postulado do Relativismo,
Gabriel Nogueira Dias nos ensina que Kelsen pode ser considerado como um “relativista
moral subjetivo”, ou seja, como um teórico que não é cético quanto à possibilidade de se
conhecer os valores morais, mas que tão somente não aceitava a possibilidade de haver uma
“moral absoluta” – a “Moral” –, atemporal e independente de um povo e de uma cultura. Dias

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completa sua lição afirmando que Kelsen era um “relativista moral subjetivo” porque
acreditava em diversas Visões de mundo subjetivas.16

No texto A ciência do direito como ciência normativa ou cultural, de 1916, Kelsen


afirma que seria um erro lógico assumir o conhecimento de um “dever” que pressuponha um
determinado conteúdo. O que isto quer dizer? Conforme o “segundo limite metodológico” da
Teoria kelseniana, não é necessário que a Ciência do Direito estude os conteúdos das normas
jurídicas – já que a Ciência Jurídica está limitada ao seu um caráter formalista (teorético) de
investigação. Assim, como a abordagem é puramente formal, é irrelevante para as
investigações jus-científicas “conhecer” a substancialidade da norma. Kelsen defendia que a
produção de conceitos formais de “dever-ser” já pressupõe a renúncia da possibilidade de
haver um “valor absoluto” (o “Valor”). E este entendimento estritamente formal sobre o
“dever-ser” jurídico acaba revelando a essência da abordagem jus-científica sobre o Direito
Positivo na doutrina pura do Direito: as proposições jurídicas construídas pelos cientistas do
Direito independem do conteúdo substantivo das normas, já que estas continuarão sendo
“Direito” (válido) ainda que fossem consideradas por uma determinada visão de mundo como
sendo de conteúdo “injusto” ou “imoral”.17

Como se pode ver, pela nossa interpretação dos fundamentos epistemológicos da


Ciência do Direito de Kelsen, a ideia de uma moral objetiva que seria o reflexo de uma ordem
natural jamais poderia ser aceita pela doutrina pura do Direito. Mas, para podermos mesmo
compreender melhor a polêmica travada por Villey na defesa do jusnaturalismo contra os
ataques de Kelsen, veremos, antes, no subtópico que se segue, a nossa interpretação sobre o
conceito de natureza que fundamenta a perspectiva anti-jusnaturalista de Kelsen.

2.1.2 Hans Kelsen e sua visão da natureza como heterogeneous continnum

Em A Justiça e o direito natural, Hans Kelsen estabelece a “primeira noção do


jusnaturalismo”, quando afirma que seria a doutrina do direito natural uma “doutrina idealista
do direito”. Segundo Kelsen, é idealista a doutrina do direito natural porque ela distingue, de
um lado, o direito real, que seria aquele positivado pelo homem e, portanto, mutável, e, de

16
DIAS, 2010, p. 145
17
KELSEN, 1989, p. 138-139

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outro lado, um direito ideal, que seria o natural, identificado com a “justiça” e também
compreendido como sendo imutável. Kelsen ainda complementa, afirmando que o
jusnaturalismo – idealista, segundo ele – entende que a “natureza” funciona como “autoridade
normativa”, em outros termos, como uma “autoridade legiferante”. “Legiferente” seria a
natureza porque ela teria preceitos normativos imanentes. Tais normas imanentes à natureza
seriam “dadas”, e não criadas como as normas “positivas”, fruto da vontade humana. Por esta
concepção idealista do direito, as normas encontradas na natureza nos foram “dadas” no
mundo natural antes mesmo de qualquer fixação de normas advindas da vontade humana. As
normas imanentes à natureza, portanto, poderiam ser descobertas na natureza, pois são
invariáveis, imutáveis e anteriores à vontade legiferante dos homens.18

No entanto, contra esta concepção de natureza, Kelsen elaborou uma dura refutação
que acabou chamando de “objeção de princípio a todo o jusnaturalismo”. Com base na
Filosofia (neo)kantiana, Kelsen entendia natureza como a “realidade empírica do acontecer
fático em geral ou a natureza particular do homem tal qual ela se revela na sua conduta
efetiva”.19 E, deste modo, sendo a natureza este acontecer fático em geral, Kelsen também
entendia que a “natureza é um conjunto de fatos que estão ligados uns aos outros segundo o
princípio da causalidade, isto é, como causa e efeito – é um ser; e de um ser não pode
concluir-se um dever-ser, de um fato não pode concluir-se uma norma.”.20 Trata-se, por
óbvio, do argumento já abordado em tópico anterior da chamada “falácia naturalista”. Kelsen
prosseguiu com a tradição humeana ao defender fortemente a insuperabilidade dos mundos do
ser e do dever-ser, pois, segundo o Mestre de Viena: “Ao ser não pode estar imanente
qualquer dever-ser, aos fatos não podem ser imanentes quaisquer normas, nenhum valor pode
ser imanente à realidade empírica”.21
O importante a ser destacado quanto ao recurso de Kelsen em usar a “falácia
naturalista” para objetar o jusnaturalismo é a sua concepção de natureza. Pois como veremos
logo mais, é neste que se encontra uma das refutações mais duras de Villey a Kelsen. Por
enquanto, destacamos que Kelsen entendia que por ser a natureza a “concreta realidade do
acontecer fático”, ela é um devir, um tornar-se constante. Por esta percepção, a natureza

18
KELSEN, 2009, p. 102
19
KELSEN, 2009, p. 103
20
KELSEN, 2009, p. 103
21
KELSEN, 2009, p. 103

20
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estaria sempre em mutabilidade, fato que impossibilitaria a imanência de normas imutáveis de


direito natural, salvo se estas normas consistirem na regularidade observável. Para sermos
mais simples na explicação, Kelsen afirmava que as normas de direito natural somente
poderiam ser possíveis se fosse encaradas como lei natural, isto é, como “regras gerais
segundo as quais, na permanente mutação dos fenômenos naturais concretos, sob iguais
condições surgem as mesmas consequências.”.22

Sobre tal concepção não-normativa da natureza por Kelsen, podemos afirmar que ela
tem fundamento epistemológico na noção neokantiana de que a natureza é um heterogeneous
continnum. O neokantismo da Escola de Baden na versão de Rickert entendia que na natureza
todo está em contínuo processo de fluência. Dois princípios embasam tal percepção
neokantiana do mundo natural: 1) o Princípio da continuidade do todo; e 2) Princípio da
heterogeneidade do todo do real. O primeiro princípio nos diz que toda a forma existente
espaço-temporalmente possui o caráter “contínuo”. Mas, segundo Rickert, a natureza como
“continuidade” fluente não permanece a mesma no seu fluxo que lhe é característico. Por isto,
Rickert falava de outro princípio. A realidade tem nada de homogêneo entre seus entes e
processos, logo, o Princípio da heterogeneidade do todo do real é aquele que nos diz que em
qualquer ponto de vista sobre a realidade se encontra uma “contínua diferença”, isto é, um
“contínuo heterogêneo”.23

Kelsen sabia desta concepção neokantiana de natureza. O Mestre de Viena endossava


também a conclusão rickertiana que constatava a “irracionalidade” deste mundo natural. Seria
justamente por causa da união entre as características da “heterogeneidade” e da
“continuidade” que se concluiria o caráter “irracional” da realidade natural. Tal
“irracionalidade” seria o motivo pelo qual seria impossível um conceito formado pela Ciência
apreender por “reprodução” esta a realidade heterogênea tal como ela é. A solução, deste
modo, para que o conhecimento científico da realidade natural pudesse ser possível seria não
a “reprodução” pura e simples da realidade, mas a “reconstrução conceitual” da mesma.24
Ainda sim, lembramos que Kelsen não entendia a Ciência do Direito como uma Ciência
Natural. Kelsen via a Ciência do Direito como uma ciência humana, a partir do pressuposto da

22
KELSEN, 2009, p. 103
23
RICKERT, 1922, p. 34
24
RICKERT, 1922, p. 35

21
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relatividade dos valores e da moral.25 Assim, quanto à Ciência do Direito de Kelsen,


destacamos que parecia muito com a concepção de Rickert sobre Ciência jurídica, pois,
segundo o neokantiano, seria o conhecimento jus-científico uma atividade intermediária entre
Ciência Natural e Humana (Cultural), já que se quer encontrar padrões no “mundo” irracional
da natureza via construção de conceitos, como faz a Física, mas, por potro lado, tal tarefa se
dá sobre um mundo não-natural, que é o do Direito positivo, fruto da cultura.

Aprofundados os pressupostos de Kelsen sobre a sua noção de natureza enquanto um


mundo de fatos que estão em um contínuo fluxo multiforme, visão que fundamenta a
impossibilidade de se extrair normas jurídicas, resta-nos seguir com nosso estudo, procurando
saber quais são os fundamentos das refutações de Villey contra o anti-jusnaturalismo
kelseniano, conforme nosso desenvolvimento a seguir.

2.2 FUNDAMENTOS FILOSÓFICOS DO ARGUMENTO JUSNATURALISTA DA


MUTABILIDADE DA NATUREZA E DO DIREITO A PARTIR DO PENSAMENTO DE
MICHEL VILLEY

2.2.1 A influência de Aristóteles e de sua concepção de justo natural variável nas


refutações de Michel Villey

O entendimento de que a natureza é uma continuidade de elementos em


transformação não é invenção neokantiana, tampouco um tema tratado somente recentemente
na história da filosofia. Na verdade, o problema do devir natural e da possibilidade, ou não, de
se poder conhecer este mundo nos leva aos primórdios do pensamento ocidental, com os
gregos mais antigos, como, especialmente, Heráclito, no seu famoso aforismo 46, quando diz
que a “Natureza ama ocultar-se”.26 Sobre este “problema” da natureza, o próprio Aristóteles,
em sua Metafísica, comenta que – posteriormente a Heráclito e também aos eleáticos – Platão
aderiu ao posicionamento de Sócrates, quando deixou de lado o tema da natureza para se
concentrar nas “definições” na esfera do universal. Pois Platão já não acreditava na
possibilidade de haver definição geral das coisas sensíveis, que estão em contínua mutação,

25
MARTINS, 2014, p. 151
26
HERÁCLITO, 2012, p. 141

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mas sim nas entidades chamadas de Ideias, pelas quais as coisas sensíveis são nomeadas e
estão em função.27

Como se vê, o “problema” de se tentar conhecer este “mundo” misterioso, que é a


natureza, é tão antigo quanto desafiador na história do pensamento filosófico. E do mesmo
jeito, tão desafiadora quanto à tentativa de se extrair desta natureza leis naturais advindas da
observação da Física é a tarefa de se extrair leis jurídicas pela Ciência do Direito ou pela
antiga arte do justo, isto é, pela jurisprudentia. E tal desafio, conforme já tratamos no
primeiro tópico deste trabalho, é enfrentado por Michel Villey com base em Aristóteles e em
São Tomás de Aquino ao retomar um tema já esquecido pela história da filosofia do direito –
talvez porque o Nominalismo de Guilherme de Ockham teria marcado de modo definitivo a
tradição – 28, que é a visão do mundo natural não mais como mero mundo constituído de fatos
em contínua modificação.

No seu famoso tratado de história do direito, A formação do pensamento jurídico


moderno, Villey nos lembra de que nem sempre a noção de natureza se construía assim, como
mero heterogeneous continnum. O historiador francês levanta a hipótese de que, talvez por
causa da nossa formação na escola da filosofia kantiana, tornou-se muito difícil imaginar que
do estudo do mundo fático se pudesse tirar normatividade, isto é, que do mundo do ser (Sein)
se pudesse extrair dever-ser (Sollen). Mas o interessante deste comentário de Villey está na
sua lembrança de que, contrariamente a Kant, a noção aristotélica de natureza extrapola a
noção de que seria a natureza somente um “conjunto de fatos”. Villey nos ensina que
Aristóteles era respeitoso demais da linguagem espontânea do povo grego antigo para ignorar
que as palavras “natureza” (physis) e “direito” (díkaion) possuem vários sentidos. A natureza
para os antigos pode designar o mundo exterior em que nos foi dado viver, mas também como
um mundo feito por uma inteligência superior, que não é constituído apenas de “causas

27
ARISTÓTELES, 2012, Livro I, 987b10, p. 58
28
De acordo com Alfredo Culleton, Ockham, com o seu nominalismo, que modificou a noção tradicional da
metafísica aristotélico-tomista – transformando a “causa final” em mera metáfora –, é conhecido no mundo
jurídico-filosófico por ter inaugurado o que se conhece por via moderna. Ockham teria transportado para dentro
do mundo da linguagem e do pensamento (universo conceitual) aquilo que para os tomistas pertencia ao mundo
do ser. Assim, a partir do nominalismo, os universais e as relações não passariam de instrumentos do
pensamento, sem existência nem na realidade e nem na “natureza” real interna do indivíduo. (CULLETON,
2011, p. 27; 29).

23
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materiais” e “eficientes”. A natureza é um mundo que pode ser explicado por “causas
formais” e “finais”, em que sua forma está em função de sua finalidade.29

Essa noção de “mundo natural” por Aristóteles se deve a sua metafísica e o


entendimento de seu conhecimento se trata da busca pelas causas primeiras. Segundo
Giovanni Reale, Aristóteles determinou que as causas primeiras são quatro: 1) “causa
formal”, em que se busca a forma que causou o ente investigado; 2) “causa material”, quando
se quer saber a origem do conteúdo do ente estudado; 3) “causa eficiente”, ou sobre aquilo
que gerou, deu movimento ao ente investigado; e 4) “causa final”, ou sobre aquilo para a qual
o movimento fora iniciado, o objetivo, a finalidade da causa. E destas causas, duas são
necessárias, a eficiente, porque explica quem ou o que gerou o ente estudado, e a final, pois o
télos é o escopo para a qual tende o devir do ente.30

Desse modo, de acordo com Villey, cada ente particular tem a sua “natureza”, ou
seja, cada ente em particular tem um “fim” para vir a ser. E esta “natureza” é o que este ente
“deve ser”. Por exemplo, o homem não atinge imediatamente a plenitude de seu ser, pois sua
“natureza” não é o seu estado atual, mas antes aquilo que ele “tende a ser”, que é a sua
finalidade. Trata-se do seu fim: a felicidade (eudaimonía). Segundo Villey, porque Aristóteles
entendia que a noção de natureza implica referência aos “fins” inerentes a todos os entes
naturais é que se pode inferir dela conhecimentos normativos. (VILLEY, 2005, p. 49). Assim,
“observação da natureza é, portanto, mais que a observação dos fatos da ciência moderna.
Não é neutra e passivamente descritiva, implica o discernimento ativo dos valores.”.
(VILLEY, 2005, p. 49). Deste jeito, partindo da observação da natureza, o jurista poderia
extrair normas jurídicas por meio do conhecimento da “natureza final” das coisas, da “causa
final” dos entes, já que a natureza é um cosmos ordenado.

E foi neste sentido que Aristóteles, em outra famosa obra sua, mas agora não mais
preocupada com as causas primeiras, e sim com a causa final humana e sua conduta sócio-
política, a Ética a Nicômaco, pôde determinar que a palavra “justiça” (diké), que no grego se
expressa pelo mesmo termo para indicar “direito” (díkaion), poderia advir deste mundo
natural finalístico. “Justiça” na Ética a Nicômaco pode ser entendida como “aquela disposição
moral que torna os indivíduos aptos a realizar atos justos e que faz agir justamente e desejar o

29
VILLEY, 2005, p. 48
30
REALE, 2012, 55-56

24
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que é o justo (...)”.31 Mas este é o sentido chamado por Aristóteles de “universal” sobre o
termo “justiça”. Trata-se do sentido de justiça enquanto virtude. Há ainda um outro sentido,
que não o universal, ou como virtude. Referimo-nos ao sentido de justiça particular – que
pode ser dividida entre distributiva e corretiva. Mas o que nos interessa neste estudo é o
sentido “político” de justiça pelo qual Aristóteles aborda para falar do tema do “justo natural”.

Segundo Aristóteles, a “justiça política” é em parte natural e em parte convencional.


Para o Filósofo, uma regra de justiça natural, isto é, imanente à natureza, “é aquela que
apresenta idêntica validade em todos os lugares e não depende de nossa aceitação ou
inaceitação” e já uma regra de justiça convencional “é aquela que, em primeira instância,
pode ser estabelecida de uma forma ou de outra indiferentemente”.32 Contudo, ao contrário do
que se pode facilmente pensar – muito provavelmente devido aos nossos próprios
preconceitos modernos – a noção aristotélica de justo político que vem da natureza não se
trata de um catálogo de “leis naturais” expressas de modo imutável ou listadas por escrito em
uma declaração de direitos. Em determinada passagem de seu A formação do pensamento
jurídico moderno, Villey chega até elogiar Kelsen quando denuncia a concepção moderna de
direito natural, que estabeleceu o “justo natural” por meio de regras jurídicas cristalizadas em
textos declaratórios, como contraditória por acabar incorrendo em um “dualismo inoportuno”
entre regras jurídicas naturais e positivas. Villey faz o elogio ao Mestre de Viena porque nos
ensina que não é possível defender a noção de direito natural como regra imutável em forma
de lei expressa dentro da filosofia aristotélica. (VILLEY, 2005, p. 56).

Aristóteles jamais poderia ter defendido que o “justo por natureza” seria um conjunto
de regras jurídicas expressas em uma declaração, cristalizadas e abstraídas da realidade. Há
uma questão, aqui, que, segundo Villey, não foi problematizada por Kelsen. Trata-se do
esquecimento da defesa por Aristóteles da “variabilidade” das regras de justiça e da distinção
entre “direito natural” e “lei natural”. O tema da “mutabilidade” do justo natural já foi tratado
no primeiro tópico deste artigo, quando citamos a obra Questões de Tomás de Aquino sobre o
direito e política. Mas o que estamos procurando fazer aqui é uma interpretação mais
cuidadosa do tema a partir dos textos de Aristóteles e de São Tomás de Aquino. É bem
verdade que Aristóteles não deixa muito clara esta questão da variabilidade das regras de
direito natural. O que é possível extrair do famoso Livro V de Ética a Nicômaco, é que

31
ARISTÓTELES, 2013, Livro V, 112910, p. 145
32
ARISTÓTELES, 2013, Livro V, 1134b20, p. 163

25
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Aristóteles estabelece que “embora haja isso que chamamos de justiça natural, todas as regras
da justiça são variáveis”.33 Ou seja, ainda que o justo natural seja aquele direito que apresenta
validade idêntica em todos os lugares de modo independente da nossa vontade, é possível – e
até “fácil”, como diz Aristóteles –, embora de maneira não absoluta, saber quais regras
jurídicas seriam naturais e quais seriam frutos da convenção humana. O importante a ser
destacado é a passagem em que Aristóteles diz que “ambos esses tipos sendo [são] igualmente
mutáveis”.34

Villey possui uma interpretação a nós de extrema importância e relevância sobre as


passagens de Ética a Nicômaco citadas no parágrafo anterior. Segundo o filósofo e historiador
francês, é compreender mal as passagens da obra de Aristóteles já citadas como se, em
verdade, estivesse o estagirita defendendo um direito natural com leis definitivas e que
devessem valer como padrão para todos. O objetivo de Aristóteles, deste modo, seria apenas
distinguir as regras que advêm da vontade e do consenso humanos, das regras advindas “por
natureza”. Segundo Villey, o sentido de justo que vem da natureza em Aristóteles pode ser
compreendido do seguinte modo: pode-se entender que à cidade de Atenas, no século IV a.
C., “naturalmente” se convenha um regime democrático; e, tal conveniência “natural”, tem
validade universal.35 Em outras palavras, em Aristóteles, é “natural” que Atenas seja uma
cidade mais propensa à democracia e tal propensão “natural” é identicamente válida em todos
os lugares do mundo. É neste sentido que o “justo natural” possui idêntica validade, a despeito
das regras jurídicas positivas, que valem apenas para os limites da cidade que as
convencionou.

2.2.2 A influência de São Tomás de Aquino e de sua concepção de lei natural

No mesmo sentido, Villey nos diz que, seguindo Aristóteles, pode-se compreender
que “uma coisa é o direito natural „entre nós‟, e outra na Pérsia”. 36 Pois, para Aristóteles,
ensina-nos Villey, o que define o direito natural é não ser nomikon, isto é, não ser uma “lei”

33
ARISTÓTELES, 2013, Livro V, 1134b25
34
ARISTÓTELES, 2013, Livro V, 1134b30-35
35
VILLEY, 2014, p. 148
36
VILLEY, 2014, p. 148

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expressa, já que “ele [Aristóteles] constata apenas a existência de relações sociais que, não
sendo obra de um legislador, consideram-se precedentes da natureza, physei”.37 No entanto,
apesar da mutabilidade do direito natural em Aristóteles, Villey também é tomista ao seguir o
seguinte raciocínio: apesar da mutabilidade do direito que vem da natureza, por outro lado, de
fundo, em suas mudanças, existem “razões imutáveis”, pois há a “lei eterna” que rege todas as
coisas no mundo. Villey pensa assim porque, para ele, se o direito natural não se comportasse
assim, a partir de certa dose de constância, seria o “justo natural” impossível de se conhecer.38

O que podemos interpretar sobre essa passagem é que Villey também parte da
compreensão tomista do jusnaturalismo, mas ao mesmo tempo sem incorrer em uma defesa
do justo natural como um “imperativo” de moralidade universal, totalmente imutável em sua
expressão jurídica, como se máximas gerais abstratas fosse. Este posicionamento de Villey
fundamenta-se na filosofia do Doutor Angélico, quando também entendia que há uma certa
mutabilidade no justo natural, conforme já dizia Aristóteles, mas que também sempre haveria
de fundo algo fixo de onde se extrai uma regra natural. E como exemplo desta percepção
sobre o direito natural, que é mutável, mas de fundo imutável, podemos mencionar aqui duas
passagens em que em sua Suma teológica Aquino fala: 1) de uma banda, sobre a mutabilidade
do direito natural; e 2) de uma outra, a imutabilidade de uma determinada lei natural:

1) Aquino nos diz que um ser dotado de natureza imutável há de ser necessariamente
o mesmo, em toda parte e sempre, todavia, no caso do ser humano, que tem natureza mutável,
é-lhe natural que venha a falhar algumas vezes. Por exemplo: por exigência da igualdade
natural, um depósito feito por alguém deve ser sempre restituído a quem o confiou, porém,
por vezes, acontece que a vontade humana seja depravada, pois sua natureza nem sempre é
reta, assim, há casos em que não deve haver restituição a quem se confiou tomou emprestado
uma arma, por exemplo, pois pode usá-lo de modo pervertido, como no caso de quem
enlouqueceu e, por isto, teve sua natureza desvirtuada.39; 2) em uma outra determinada
passagem, respondendo à questão sobre se homens estariam ou não guardados pelos anjos,
Aquino nos diz que o conhecimento da “lei natural” o coloca naturalmente a caminho do bem.

37
VILLEY, 2014, p. 149
38
VILLEY, 2014, p. 149
39
TOMÁS DE AQUINO, 2014, IIa IIae 57, a.2, p. 49

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No entanto, por seu livre-arbítrio, pode o homem não conseguir evitar o mal devido ao
acometimento de muitas paixões.40

Como é possível constatar, Villey endossa a compreensão tomista de que a natureza


está em mutação e que, por isto mesmo, o justo natural também estaria, mas, ainda sim,
haveria um fundo imutável. Trata-se da lei natural, que se difere, portanto, como ficou bem
claro, da noção de direito natural. E esta diferença demarca muito bem a noção jusnaturalista
continental de Villey, que é a noção de que o direito natural é um objeto de investigação
jamais concluído, por um lado, mas que, por outro, possui estas razões imutáveis, como, por
exemplo, a lei natural que nos diz: “deve-se buscar o bem e evitar o mal”. Esta noção de lei
natural é fruto da propensão natural que todos nós seres humanos temos para o “bem”.
Todavia, Tomás de Aquino bem sabia que nossa natureza é mutável, assim, sempre haverá a
possibilidade da desvirtuação desta inclinação natural ao bem, fato que levaria a
circunstâncias que justificariam, conforme o exemplo que demos no parágrafo anterior, a não
restituição a quem, antes do adoecimento, merecia. Deste jeito, não restam dúvidas quanto aos
fundamentos aristotélico-tomistas do jusnaturalismo de Villey.

Assim, defendemos que: i) Villey, de uma banda, pôde atualizar a noção de que o
direito que vem da natureza pode modificar-se conforme as mudanças que podem, ou não,
ocorrer na “natureza das coisas” e nas “relações” jurídicas; ii) e, Kelsen, de outra, pôde dar
continuidade à tradição criticista, colocando a tradição jusnaturalista em xeque. Mas o mais
importante a ser dito é que as refutações de Villey, em verdade, são uma verdadeira retomada
da postura metafísica humana diante dos entes reais e da linguagem. Assim, muito
diferentemente de Kelsen, Villey define a natureza como um mundo organizado e finalístico,
“lugar” de onde normas jurídicas podem transcender. E, não apenas isto, trata-se de uma
filosofia do direito que entende o “justo natural” como Aristóteles, devido à tese da
mutabilidade do direito natural, e também como São Tomás de Aquino, quando fala de leis
naturais fundantes do direito natural. Logo, podemos ver na nossa tarefa de tentar interpretar o
“debate” entre estes autores duas posturas ontológicas e epistemológicas distintas. Resta-nos,
portanto, fazer um balanço final deste nosso trabalho de interpretação, como se segue nas
Considerações finais.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
40
TOMÁS DE AQUINO, 2001, Ia, 113, a.1, p 947

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A partir de tudo o que já interpretamos sobre as refutações de Michel Villey às


críticas de Hans Kelsen ao jusnaturalismo, podemos chegar ao fim deste artigo com o
entendimento sólido de que este “debate” se trata, em verdade, para além das questões
jurídicas, de um debate filosófico de fundo sobre o conceito de “natureza”, “ciência” e de
“método”. Entre Kelsen e Villey há um abismo filosófico que separa duas visões de mundo
distintas: A) de um lado é possível encontrar em Kelsen a herança de uma filosofia moderna,
legatária do primado do conhecimento científico e da separação insuperável entre mundo do
ser e mundo do dever ser, que remete aos pensamentos de David Hume e de Immanuel Kant;
e, B) do outro lado, é possível encontrar em Villey a herança da tradição metafísica realista
aristotélico-tomista, que vê as grandes questões filosóficas sobre a verdade, o conhecimento, o
método, a natureza e o justo, a partir das lentes metafísicas pré-modernas e pré-nominalistas.

Como considerações finais de uma investigação inesgotável, entendemos que, ao


menos por enquanto, são duas visões de mundo distintas e inconciliáveis. Cabe, então, aos
estudiosos do direito, que operam na linguagem da tradição da filosofia continental,
aprofundarem-se no tema do jusnaturalismo, levando a sério, como fonte de infinitas novas
possibilidade de interpretação, e não apenas como teses já superadas pelo idealismo moderno
ou pela filosofia contemporânea nas suas divisões. Propomos aqui, portanto, o desafio
hermenêutico de se sempre escutar a tradição e o que ela sempre tem a nos oferecer para o
“progresso” – que não pode ser confundido com qualquer tipo de evolução – na filosofia e na
filosofia do direito.

REFERÊNCIAS

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______. Ética a Nicômaco. 3. ed. Bauru-SP: Edipro, 2013.

CULLETON, Alfredo. Ockham e a lei natural. Florianópolis, SC: UFSC, 2011.

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KELSEN, Hans. Justiça e o Direito Natural. Coimbra: Almedina, 2009.

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Metodologia dela scienza giuridica. Napoli: Edizione Scientifiche Italiane,1989.

MARTINS, Ricardo Evandro Santos. A ciência do direito como uma ciência humana:
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Kelsen. CDDir : 340.1. Monografia (Dissertação de Mestrado), Universidade Federal do Pará
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PAULSON, Stanley. La distinción entre hecho y valor: la doctrina de los dos mundos y el
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REALE, Giovanni. Introdução a Aristóteles. Rio de Janeiro: Contraponto, 2012.

RICKERT, Heinrich. Ciencia cultural y ciência natural. Madrid: Calpe, 1922.

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______. Suma teológica: Parte I. Madrid: Biblioteca de autores cristianos, 2001.

VILLEY, Michel. Questões de Tomás de Aquino sobre Direito e Política. São Paulo:
Martins Fontes, 2014.

______. A formação do pensamento jurídico moderno. São Paulo: Martins Fontes, 2005.

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