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2016
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Doutorando e Mestre em Direito pela Universidade Federal do Pará – UFPA. Professor de História do Direito
do Centro Universitário do Pará – CESUPA. Membro do Grupo de Pesquisa (CNPq) Direitos Humanos, Ética e
Hermenêutica. ricardo-evandro@hotmail.com
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Doutor em Direito pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro – PUC-RJ. Professor Adjunto da
Universidade Federal do Pará – UFPA. Coordenador do Grupo de Pesquisa (CNPq) Direitos Humanos, Ética e
Hermenêutica. psweyl@hotmail.com
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Revista Pensamento Jurídico – São Paulo – Vol. 10, Nº 2, jul./dez. 2016
ABSTRACT: The article interprets the refutations of Michel Villey to Hans Kelsen‟s critics
to Natural Law. The goal is, firstly, to show the Kelsen‟s critics to the Natural Law thesis and,
them, to show the refutations of Villey defending the Natural Law. In the end, the paper
intent, since Kelsen and Villey, realize a balance in the continental Philosophy of Law debate
about critics and refutations around the Natural Law them.
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Revista Pensamento Jurídico – São Paulo – Vol. 10, Nº 2, jul./dez. 2016
INTRODUÇÃO
No seu Justiça e o direito natural, que foi publicado como um apêndice da 2ª edição
da Teoria pura do direito, em 1960, Hans Kelsen estabelece como indubitável o fato de que o
Direito Natural foi dominante nos século XVII e XVIII. E que, apesar do recuo da Doutrina
jusnaturalista no século XIX, o interesse pelo Direito Natural retornou ao primeiro plano das
preocupações dos filósofos sociais e jurídicos no século XX, junto ainda com especulações
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metafísico-religiosas. Kelsen nos diz que esta “retomada” é sequela fruto das experiências das
duas Guerras Mundiais e é também uma reação contra as doutrinas políticas nazi-fascistas e
comunistas.3
Ainda nessa obra de maturidade, o Mestre de Viena, como de costume, é muito claro
ao definir os pressupostos do Jusnaturalismo. Kelsen nos diz que a Doutrina do Direito
Natural é uma doutrina de caráter idealista. Tal Idealismo se expressa no Direito de modo
dualista, pois distingue, por um lado, o chamado Direito Positivo, aquele “posto” pelos
homens e que, por isto, possui caráter mutável, e, por outro, o Direito Natural, aquele “ideal”,
imutável e que pode ser identificado com a “justiça”. Vale ressaltar que, de acordo Kelsen, o
Jusnaturalismo não pode ser considerado como “a” Doutrina jurídica idealista, e sim apenas
como uma das doutrinas de caráter idealista-dualista, distinguindo-se das demais apenas pelo
de fato de considerar a “natureza” como a fonte do Direito.4
3
KELSEN, 2009, 105
4
KELSEN, 2009, p. 102
5
KELSEN, 2009, p. 104
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normas de dever-ser, e nunca por juízos de valor. Deste modo, a Ciência do Direito somente
pode descrever o Direito como ele é, e nunca como deve ser.6 E esta tese de que a Ciência do
Direito faz mera descrição da norma jurídica é defendida por Kelsen porque sua Doutrina
pura do direito segue o postulado do Relativismo axiológico, que, de acordo com a Teoria
pura do direito, de 1934/1960, estabelece que nós vivemos em um mundo de pluralidade de
perspectivas, portanto, não seria permitido à Ciência jurídica dizer com que valor o Direito
deve se pautar, pois, conforme o postulado, não há valor ou moral absolutos.7
6
KELSEN, 1997, p. 8-10
7
KELSEN, 2006, p. 72-74
8
VILLEY, 2014, p. 144; 147
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Por último, quanto ao argumento de que os mundos da natureza e das normas não se
misturam e que o Direito Natural impediria a constituição homogênea de normas positivas
(3), Villey o refuta, alegando que o próprio Direito Positivo não constitui um sistema acabado
e fechado. O Direito era visto como relações jurídicas concretas, apropriadas às necessidades
prático-circunstanciais, podendo o ser complementado com o Direito Positivo.11 Para
Aristóteles, a legislação era inteligência sem paixão. As normas “postas” não podem ser
objeto do raciocínio discursivo (teorético), já que o estudo do Direito não é a rigor uma
„ciência‟ (epistéme). O estudo do Direito se dá pela dialética, pela observação e pela
racionalidade prática da prudência, chegando sempre a resultados provisórios.12
9
VILLEY, 2014, p. 147
10
VILLEY, 2014, p. 148
11
VILLEY, 2014, p. 148; 151
12
VILLEY, 2005, p. 55-56; 58
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Uma vez apresentadas, ainda no primeiro tópico deste artigo, as críticas de Kelsen ao
Direito Natural, passemos agora a fazer explicitação dos fundamentos filosóficos da crítica de
Kelsen ao jusnaturalismo. E começamos esta tarefa interpretativa com a defesa da tese de que
foi a partir daquele pressuposto mais básico, o da proibição de se confundir o mundo do ser
com o do dever-ser na Teoria do Direito, que Kelsen construiu não apenas a sua doutrina pura
do Direito, mas também, por óbvio, suas críticas ao Direito Natural. O ato de extrair normas
de dever-ser dos fatos naturais é inaceitável para os limites metodológicos formalistas e
normativistas da Doutrina pura do direito. É importantíssimo desenvolver melhor estes dois
limites para que haja uma melhor compreensão das críticas kelsenianas ao Direito Natural,
pois é pelo respeito aos limites metodológicos que é possível identificar as teses as quais
Villey elencou como sendo os argumentos centrais contrários ao Jusnaturalismo – a lembrar, a
Falácia naturalista, o Dualismo insuperável entre ser e dever-ser e o Relativismo moral.
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normativa, como a Ciência do Direito, descreve um objeto de ordem normativa.13 O que isto
significa? No âmbito da Ciência do Direito enquanto Ciência Normativa, o Direito é visto
essencialmente como norma. É verdade que na Teoria pura do direito Kelsen acaba por
confundir algumas vezes o objeto da Ciência do Direito, ora designando-o como ordenamento
jurídico, ora chamando-o de “sociedade”. Sobre isto, diz Kelsen: “Somente quando a
sociedade é entendida como uma ordem normativa da conduta dos homens entre si é que ela
pode ser concebida como um objeto diferente da ordem causal da natureza, só então é que a
ciência social pode ser contraposta à ciência natural”.14
13
KELSEN, 2006, p. 84
14
KELSEN, 2006, p. 86
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fazendo a distinção rígida entre Leis naturais e Leis jurídicas.15 “Leis jurídicas”, aqui, não
podem ser identificadas com as normas jurídicas (leis infraconstitucionais, etc.), pois a norma
jurídica é o objeto de estudo das Ciências do Direito e as Leis jurídicas é o resultado da
descrição científica realizada pelo cientista do Direito.
Sobre a atividade do cientista, podemos afirmar que do mesmo modo que um físico
descreve a dilatação dos metais quando aquecidos, formulando, com tal ato descritivo, uma
Lei natural (“Se aquecer o metal, será dilatado”), o cientista do Direito descreve as
prescrições das normas jurídicas, formulando uma Lei jurídica (“Se cometer A, deve-ser
punido com B”). Deste modo, podemos ver que a Ciência do Direito, além de não produzir
norma jurídica, também não prescreve nenhum enunciado prático, e isto é a essência do que
se chamou de segundo limite metodológico à Ciência do Direito. A Ciência do Direito, do
mesmo modo com as Naturais, apenas descreve seu objeto de estudo, e nunca prescreve como
tal objeto deve ser. A atividade do cientista do Direito neste ponto se aproxima da atividade
do físico porque, assim como este, nunca se diz como a Natureza deve ser, e sim como ele é.
A tarefa científica é estritamente teorética, e nunca prática.
15
PAULSON, 2009, p. 13-14; 17-18
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somente “deverá-ser”, já que é assim que o enunciado normativo prescreve e é assim que o
Princípio epistemológico da Imputabilidade opera nas Ciências Normativas Sociais como é a
Ciência do Direito. O que queremos dizer com isto é que não “será” imputada uma sanção por
causalidade a um ato ou a um fato, mas sim que isto “deverá” ocorrer, conforme diz a norma
jurídica descrita pelo cientista do Direito. Mas ainda fica um importantíssimo questionamento
restando sobre este tema: por que a atividade do cientista do Direito deve ser descritiva, e não
prescritiva?
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completa sua lição afirmando que Kelsen era um “relativista moral subjetivo” porque
acreditava em diversas Visões de mundo subjetivas.16
16
DIAS, 2010, p. 145
17
KELSEN, 1989, p. 138-139
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outro lado, um direito ideal, que seria o natural, identificado com a “justiça” e também
compreendido como sendo imutável. Kelsen ainda complementa, afirmando que o
jusnaturalismo – idealista, segundo ele – entende que a “natureza” funciona como “autoridade
normativa”, em outros termos, como uma “autoridade legiferante”. “Legiferente” seria a
natureza porque ela teria preceitos normativos imanentes. Tais normas imanentes à natureza
seriam “dadas”, e não criadas como as normas “positivas”, fruto da vontade humana. Por esta
concepção idealista do direito, as normas encontradas na natureza nos foram “dadas” no
mundo natural antes mesmo de qualquer fixação de normas advindas da vontade humana. As
normas imanentes à natureza, portanto, poderiam ser descobertas na natureza, pois são
invariáveis, imutáveis e anteriores à vontade legiferante dos homens.18
No entanto, contra esta concepção de natureza, Kelsen elaborou uma dura refutação
que acabou chamando de “objeção de princípio a todo o jusnaturalismo”. Com base na
Filosofia (neo)kantiana, Kelsen entendia natureza como a “realidade empírica do acontecer
fático em geral ou a natureza particular do homem tal qual ela se revela na sua conduta
efetiva”.19 E, deste modo, sendo a natureza este acontecer fático em geral, Kelsen também
entendia que a “natureza é um conjunto de fatos que estão ligados uns aos outros segundo o
princípio da causalidade, isto é, como causa e efeito – é um ser; e de um ser não pode
concluir-se um dever-ser, de um fato não pode concluir-se uma norma.”.20 Trata-se, por
óbvio, do argumento já abordado em tópico anterior da chamada “falácia naturalista”. Kelsen
prosseguiu com a tradição humeana ao defender fortemente a insuperabilidade dos mundos do
ser e do dever-ser, pois, segundo o Mestre de Viena: “Ao ser não pode estar imanente
qualquer dever-ser, aos fatos não podem ser imanentes quaisquer normas, nenhum valor pode
ser imanente à realidade empírica”.21
O importante a ser destacado quanto ao recurso de Kelsen em usar a “falácia
naturalista” para objetar o jusnaturalismo é a sua concepção de natureza. Pois como veremos
logo mais, é neste que se encontra uma das refutações mais duras de Villey a Kelsen. Por
enquanto, destacamos que Kelsen entendia que por ser a natureza a “concreta realidade do
acontecer fático”, ela é um devir, um tornar-se constante. Por esta percepção, a natureza
18
KELSEN, 2009, p. 102
19
KELSEN, 2009, p. 103
20
KELSEN, 2009, p. 103
21
KELSEN, 2009, p. 103
20
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Sobre tal concepção não-normativa da natureza por Kelsen, podemos afirmar que ela
tem fundamento epistemológico na noção neokantiana de que a natureza é um heterogeneous
continnum. O neokantismo da Escola de Baden na versão de Rickert entendia que na natureza
todo está em contínuo processo de fluência. Dois princípios embasam tal percepção
neokantiana do mundo natural: 1) o Princípio da continuidade do todo; e 2) Princípio da
heterogeneidade do todo do real. O primeiro princípio nos diz que toda a forma existente
espaço-temporalmente possui o caráter “contínuo”. Mas, segundo Rickert, a natureza como
“continuidade” fluente não permanece a mesma no seu fluxo que lhe é característico. Por isto,
Rickert falava de outro princípio. A realidade tem nada de homogêneo entre seus entes e
processos, logo, o Princípio da heterogeneidade do todo do real é aquele que nos diz que em
qualquer ponto de vista sobre a realidade se encontra uma “contínua diferença”, isto é, um
“contínuo heterogêneo”.23
22
KELSEN, 2009, p. 103
23
RICKERT, 1922, p. 34
24
RICKERT, 1922, p. 35
21
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25
MARTINS, 2014, p. 151
26
HERÁCLITO, 2012, p. 141
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mas sim nas entidades chamadas de Ideias, pelas quais as coisas sensíveis são nomeadas e
estão em função.27
27
ARISTÓTELES, 2012, Livro I, 987b10, p. 58
28
De acordo com Alfredo Culleton, Ockham, com o seu nominalismo, que modificou a noção tradicional da
metafísica aristotélico-tomista – transformando a “causa final” em mera metáfora –, é conhecido no mundo
jurídico-filosófico por ter inaugurado o que se conhece por via moderna. Ockham teria transportado para dentro
do mundo da linguagem e do pensamento (universo conceitual) aquilo que para os tomistas pertencia ao mundo
do ser. Assim, a partir do nominalismo, os universais e as relações não passariam de instrumentos do
pensamento, sem existência nem na realidade e nem na “natureza” real interna do indivíduo. (CULLETON,
2011, p. 27; 29).
23
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materiais” e “eficientes”. A natureza é um mundo que pode ser explicado por “causas
formais” e “finais”, em que sua forma está em função de sua finalidade.29
Desse modo, de acordo com Villey, cada ente particular tem a sua “natureza”, ou
seja, cada ente em particular tem um “fim” para vir a ser. E esta “natureza” é o que este ente
“deve ser”. Por exemplo, o homem não atinge imediatamente a plenitude de seu ser, pois sua
“natureza” não é o seu estado atual, mas antes aquilo que ele “tende a ser”, que é a sua
finalidade. Trata-se do seu fim: a felicidade (eudaimonía). Segundo Villey, porque Aristóteles
entendia que a noção de natureza implica referência aos “fins” inerentes a todos os entes
naturais é que se pode inferir dela conhecimentos normativos. (VILLEY, 2005, p. 49). Assim,
“observação da natureza é, portanto, mais que a observação dos fatos da ciência moderna.
Não é neutra e passivamente descritiva, implica o discernimento ativo dos valores.”.
(VILLEY, 2005, p. 49). Deste jeito, partindo da observação da natureza, o jurista poderia
extrair normas jurídicas por meio do conhecimento da “natureza final” das coisas, da “causa
final” dos entes, já que a natureza é um cosmos ordenado.
E foi neste sentido que Aristóteles, em outra famosa obra sua, mas agora não mais
preocupada com as causas primeiras, e sim com a causa final humana e sua conduta sócio-
política, a Ética a Nicômaco, pôde determinar que a palavra “justiça” (diké), que no grego se
expressa pelo mesmo termo para indicar “direito” (díkaion), poderia advir deste mundo
natural finalístico. “Justiça” na Ética a Nicômaco pode ser entendida como “aquela disposição
moral que torna os indivíduos aptos a realizar atos justos e que faz agir justamente e desejar o
29
VILLEY, 2005, p. 48
30
REALE, 2012, 55-56
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que é o justo (...)”.31 Mas este é o sentido chamado por Aristóteles de “universal” sobre o
termo “justiça”. Trata-se do sentido de justiça enquanto virtude. Há ainda um outro sentido,
que não o universal, ou como virtude. Referimo-nos ao sentido de justiça particular – que
pode ser dividida entre distributiva e corretiva. Mas o que nos interessa neste estudo é o
sentido “político” de justiça pelo qual Aristóteles aborda para falar do tema do “justo natural”.
Aristóteles jamais poderia ter defendido que o “justo por natureza” seria um conjunto
de regras jurídicas expressas em uma declaração, cristalizadas e abstraídas da realidade. Há
uma questão, aqui, que, segundo Villey, não foi problematizada por Kelsen. Trata-se do
esquecimento da defesa por Aristóteles da “variabilidade” das regras de justiça e da distinção
entre “direito natural” e “lei natural”. O tema da “mutabilidade” do justo natural já foi tratado
no primeiro tópico deste artigo, quando citamos a obra Questões de Tomás de Aquino sobre o
direito e política. Mas o que estamos procurando fazer aqui é uma interpretação mais
cuidadosa do tema a partir dos textos de Aristóteles e de São Tomás de Aquino. É bem
verdade que Aristóteles não deixa muito clara esta questão da variabilidade das regras de
direito natural. O que é possível extrair do famoso Livro V de Ética a Nicômaco, é que
31
ARISTÓTELES, 2013, Livro V, 112910, p. 145
32
ARISTÓTELES, 2013, Livro V, 1134b20, p. 163
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Aristóteles estabelece que “embora haja isso que chamamos de justiça natural, todas as regras
da justiça são variáveis”.33 Ou seja, ainda que o justo natural seja aquele direito que apresenta
validade idêntica em todos os lugares de modo independente da nossa vontade, é possível – e
até “fácil”, como diz Aristóteles –, embora de maneira não absoluta, saber quais regras
jurídicas seriam naturais e quais seriam frutos da convenção humana. O importante a ser
destacado é a passagem em que Aristóteles diz que “ambos esses tipos sendo [são] igualmente
mutáveis”.34
No mesmo sentido, Villey nos diz que, seguindo Aristóteles, pode-se compreender
que “uma coisa é o direito natural „entre nós‟, e outra na Pérsia”. 36 Pois, para Aristóteles,
ensina-nos Villey, o que define o direito natural é não ser nomikon, isto é, não ser uma “lei”
33
ARISTÓTELES, 2013, Livro V, 1134b25
34
ARISTÓTELES, 2013, Livro V, 1134b30-35
35
VILLEY, 2014, p. 148
36
VILLEY, 2014, p. 148
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expressa, já que “ele [Aristóteles] constata apenas a existência de relações sociais que, não
sendo obra de um legislador, consideram-se precedentes da natureza, physei”.37 No entanto,
apesar da mutabilidade do direito natural em Aristóteles, Villey também é tomista ao seguir o
seguinte raciocínio: apesar da mutabilidade do direito que vem da natureza, por outro lado, de
fundo, em suas mudanças, existem “razões imutáveis”, pois há a “lei eterna” que rege todas as
coisas no mundo. Villey pensa assim porque, para ele, se o direito natural não se comportasse
assim, a partir de certa dose de constância, seria o “justo natural” impossível de se conhecer.38
O que podemos interpretar sobre essa passagem é que Villey também parte da
compreensão tomista do jusnaturalismo, mas ao mesmo tempo sem incorrer em uma defesa
do justo natural como um “imperativo” de moralidade universal, totalmente imutável em sua
expressão jurídica, como se máximas gerais abstratas fosse. Este posicionamento de Villey
fundamenta-se na filosofia do Doutor Angélico, quando também entendia que há uma certa
mutabilidade no justo natural, conforme já dizia Aristóteles, mas que também sempre haveria
de fundo algo fixo de onde se extrai uma regra natural. E como exemplo desta percepção
sobre o direito natural, que é mutável, mas de fundo imutável, podemos mencionar aqui duas
passagens em que em sua Suma teológica Aquino fala: 1) de uma banda, sobre a mutabilidade
do direito natural; e 2) de uma outra, a imutabilidade de uma determinada lei natural:
1) Aquino nos diz que um ser dotado de natureza imutável há de ser necessariamente
o mesmo, em toda parte e sempre, todavia, no caso do ser humano, que tem natureza mutável,
é-lhe natural que venha a falhar algumas vezes. Por exemplo: por exigência da igualdade
natural, um depósito feito por alguém deve ser sempre restituído a quem o confiou, porém,
por vezes, acontece que a vontade humana seja depravada, pois sua natureza nem sempre é
reta, assim, há casos em que não deve haver restituição a quem se confiou tomou emprestado
uma arma, por exemplo, pois pode usá-lo de modo pervertido, como no caso de quem
enlouqueceu e, por isto, teve sua natureza desvirtuada.39; 2) em uma outra determinada
passagem, respondendo à questão sobre se homens estariam ou não guardados pelos anjos,
Aquino nos diz que o conhecimento da “lei natural” o coloca naturalmente a caminho do bem.
37
VILLEY, 2014, p. 149
38
VILLEY, 2014, p. 149
39
TOMÁS DE AQUINO, 2014, IIa IIae 57, a.2, p. 49
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No entanto, por seu livre-arbítrio, pode o homem não conseguir evitar o mal devido ao
acometimento de muitas paixões.40
Assim, defendemos que: i) Villey, de uma banda, pôde atualizar a noção de que o
direito que vem da natureza pode modificar-se conforme as mudanças que podem, ou não,
ocorrer na “natureza das coisas” e nas “relações” jurídicas; ii) e, Kelsen, de outra, pôde dar
continuidade à tradição criticista, colocando a tradição jusnaturalista em xeque. Mas o mais
importante a ser dito é que as refutações de Villey, em verdade, são uma verdadeira retomada
da postura metafísica humana diante dos entes reais e da linguagem. Assim, muito
diferentemente de Kelsen, Villey define a natureza como um mundo organizado e finalístico,
“lugar” de onde normas jurídicas podem transcender. E, não apenas isto, trata-se de uma
filosofia do direito que entende o “justo natural” como Aristóteles, devido à tese da
mutabilidade do direito natural, e também como São Tomás de Aquino, quando fala de leis
naturais fundantes do direito natural. Logo, podemos ver na nossa tarefa de tentar interpretar o
“debate” entre estes autores duas posturas ontológicas e epistemológicas distintas. Resta-nos,
portanto, fazer um balanço final deste nosso trabalho de interpretação, como se segue nas
Considerações finais.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
40
TOMÁS DE AQUINO, 2001, Ia, 113, a.1, p 947
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REFERÊNCIAS
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Revista Pensamento Jurídico – São Paulo – Vol. 10, Nº 2, jul./dez. 2016
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______. Problemi fondamentali della dottrina del diritto publico. Napoli: Edzioni
Scientifiche Italiane, 1997.
MARTINS, Ricardo Evandro Santos. A ciência do direito como uma ciência humana:
estudo sobre o processo de autonomização epistemológica da ciência do direito de Hans
Kelsen. CDDir : 340.1. Monografia (Dissertação de Mestrado), Universidade Federal do Pará
- UFPA, 2014.
PAULSON, Stanley. La distinción entre hecho y valor: la doctrina de los dos mundos y el
sentido inmanente. Hans Kelsen como neokantiano”. Doxa. N. 26 (2003), p. 547-582.
TOMÁS DE AQUINO. Suma teológica: Parte VI. 3. ed. São Paulo: Loyola, 2014. v. 6.
VILLEY, Michel. Questões de Tomás de Aquino sobre Direito e Política. São Paulo:
Martins Fontes, 2014.
______. A formação do pensamento jurídico moderno. São Paulo: Martins Fontes, 2005.
30