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UNIVERSIDADE FEDERAL DO PIAUÍ

CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS E LETRAS – CCHL


DEPARTAMENTO DE CIÊNCIAS JURÍDICAS
CURSO DE BACHARELADO EM DIREITO

LUCAS MONTEIRO OLIVEIRA

O MUNDO DO DEVER SER: UMA ANÁLISE DA TEORIA DOS VALORES E DAS


NORMAS EM KELSEN

TERESINA, PI
2022
LUCAS MONTEIRO OLIVEIRA

O MUNDO DO DEVER SER:


Uma análise da teoria dos valores e das normas em Kelsen

Trabalho de Conclusão de Curso apresentado ao


curso de Bacharelado em Direito, Universidade
Federal do Piauí, campus Petrônio Portella como
requisito à obtenção do grau de Bacharelando em
Direito.

ORIENTADOR: Profº Drº Nelson Juliano Cardoso


Matos

Teresina – PI

2022
Á memória do professor Olavo de
Carvalho, mestre que tanto nos ensinou
sobre o saber e a vida.
AGRADECIMENTOS

Agradeço, em primeiro lugar, a Deus, Pai e senhor todo-poderoso, por sua


imensa misericórdia e amparo em todos os momentos e também à Virgem Maria,
mãe celestial, por sua intercessão e constante amparo, com vocês sei que nunca
estive só.

Aos meus pais e a minha irmã pelo imenso amor, carinho e suporte que me
deram por todos esses anos, vocês são a minha força, meu tudo.

A Maria do Livramento por seus cuidados para com todos, eles dão alegria ao
lar.

A Vanessa, minha cunhada, pela paciência e encorajamento, você já é uma


nova luz em nossa casa.

Ao grande amigo Victor Bruno por ter pacientemente escutado todas minhas
divagações e muito me ajudado a compreender meus próprios pensamentos.

A boa amiga Isabela, cozinheira e companheira preferida, cuja casa e família


me acolheram como a um dos seus.

Aos irmãos Matheus e Samuel Linhares que nunca me negaram abrigo e


amizade; vê-los crescer foi um privilégio.

Aos meus bons amigos do Orange, vocês muito aliviaram o fardo das horas
pesadas.

Aos membros do Círculo da Letras que tanto me ensinaram nesses anos e


que me inspiram sempre a galgar a verdade e o conhecimento.

Ao meu orientador, Nelson Juliano Cardoso Matos, cuja sabedoria e


ensinamentos possibilitaram este trabalho.

A todos que participaram da minha formação, direta ou indiretamente e às


setas e pedras da fortuna, que tanto ensinam, sem as dores de nada valeriam os
louros. Por fim, agradeço a todos que tiveram fé em mim, que me apoiaram
acreditaram quando eu mesmo já havia desistido, que Deus guarde todos vocês.
RESUMO

Este trabalho monográfico procura compreender as relações entre a teoria das


normas de Kelsen com os valores e juízos de valores, conforme formulados e
entendidos também por Kelsen. Tem-se como fim demonstrar a relação entre os
conceitos de valor e a asserções gerais de norma jurídica dentro da obra de Kelsen,
em um esforço de compreensão das bases do pensamento do autor e da função de
sua teoria no panorama das ciências jurídicas. Entender Kelsen ainda é um assunto
de importância no século XXI, as suas perspectivas positivistas, o desenvolvimento
de uma ciência, e toda a importância da extensa obra do autor, fazem com que a
jurisprudência não possa prescindir do autor, relegá-lo por obsoleto. É dentro deste
panorama que pretende-se contribuir com a compreensão do referido autor. A
pesquisa realizada foi de natureza qualitativa, fundamentada na pesquisa
bibliográfica tanto da obra direta de Kelsen, como nos seus comentadores, críticos e
fontes. Resultou a presente pesquisa em compreender de forma mais aprofundada o
sentido do valor, dos juízos e das normas dentro da perspectiva de Kelsen do tema,
isso se deu através da construção de um quebra-cabeça com peças pinçadas de
diferentes fontes.

Palavras-chave: juízos de valor; Kelsen; norma; teoria pura do direito; valor.


ABSTRACT

This monographic work seeks to understand the relationships between Kelsen's


theory of norms and values and value judgments, as formulated and understood by
Kelsen. The aim is to demonstrate the relationship between the concepts of value
and the general assertions of legal norms within Kelsen's work, in an effort to
understand the bases of the author's thought and the role of his theory in the
panorama of legal sciences. Understanding Kelsen is still a matter of importance in
the 21st century, its positivist perspectives, the development of a science, and all the
importance of the author's extensive work, makes him a very important author for the
jurisprudence, impossible is relegating him as obsolete. It is within this panorama that
we intend to contribute to the understanding of the aforementioned author. The
research carried out was of a qualitative nature, based on the bibliographic research
of Kelsen's direct work, as well as on his commentators, critics and sources. The
present research resulted in a deeper understanding of the meaning of value,
judgments and norms within Kelsen's perspective of the theme, this was done
through the construction of a puzzle with pieces picked from different sources.

Keywords: Kelsen; norms; pure theory of law; value; value judgments.


SUMÁRIO
INTRODUÇAO.......................................................................................................................2
CAPÍTULO 1 – DA TEORIA DA NORMA.............................................................................5
1.1. Das questões preliminares.................................................................................5
1.2. Da Norma.........................................................................................................15
1.3 As normas como regulação da conduta............................................................19
1.4 Das normas conforme a dinâmica jurídica........................................................27
CAPÍTULO 2 – DO PAPEL DOS VALORES NA TEORIA DAS NORMAS DE HANS
KELSEN...............................................................................................................................38
2.1. A norma enquanto juízo de valor.....................................................................38
CONCLUSÃO......................................................................................................................54
REFERÊNCIA......................................................................................................................56
2

INTRODUÇÃO

O direito é uma, se não a mais antiga e consolidada ciência social 1. Desde


tempos imemoriáveis os homens procuram entender e explicar o fenômeno jurídico,
compreender suas implicações, desvendar sua essência e tudo mais que o circunda.
Não houve grande filósofo ou pensador da antiguidade clássica, de Sócrates a
Cícero, de Platão a Sêneca, que não tenha apresentado opiniões e asserções
acerca das leis, do direito ou da justiça. Todo esse complexo de conceitos que foram
sendo formandos, em associação com as mais variadas formas que o direito positivo
assumiu (e assume) no tempo e no espaço, tornam o fenômeno jurídico ainda mais
interessante – ele não cessou, assim, de ser alvo dos pensamentos e especulações
dos homens das mais diversas eras e lugares.
Como é natural, um objeto de tão grande envergadura e tamanha prevalência
no pensamento acaba aderindo a si um conjunto de assuntos circundantes, de
satélites que, por vezes, são tomados como sendo o próprio astro e atrapalham a
visão e compreensão clara do mesmo (Cf. KELSEN, 2009, p. 1). É uma confusão
entre a essência e acidente, confusão esta que é tanto pior quando o objeto de
investigação é um fenômeno social, ou, como diria Kelsen, uma conduta humana 2,
que possui dificuldades de definição mesmo.

Existe, portanto, um problema a ser enfrentado para poder-se, finalmente,


adentrar ao estudo do direito em si. É o problema da definição do objeto de estudo,
da cognição do direito, que pode ser propostos segundo os seguintes
questionamentos: o que constitui o Direito? Qual sua essência? Como conhecer o
direito? É para tentar resolver essas questões que, já no século XX, entra em cena
Hans Kelsen.

Kelsen dispensa introduções, ainda sim, deve-se ousar tecer algumas poucas
e pobres palavras sobre sua vida e obra. Nascido em Praga no ano de 1881, Kelsen
foi um dos mais aclamados juristas do século XX; sua prolífica obra, fruto de mais de
sessenta anos dedicados ao exercício da ciência jurídica, e, em especial, sua
concepção de ciência jurídica, ajudaram a moldar o Direito contemporâneo. Amado

1 KELSEN, Hans. O que é justiça?: A justiça o direito e a política no espelho da ciência. São Paulo:
Martins Fontes, 2001. p. 324.
2 Cf. Ibid., p. 323.
3

por uns, odiado por outros, mas jamais ignorado; este é o resultado de seu trabalho,
da relevância do esforço intelectual na busca da verdade e da precisão.

A teoria de Kelsen identifica o direito positivo3, aquele que pode ser


conhecido, como sendo a norma, mais precisamente, um conjunto ordenado de
normas (KELSEN, 2016, p. 6). Ou seja, só é possível conhecer o direito a partir da
norma4 e o direito é um fenômeno normativo e a jurisprudência (a ciência do direito)
é, consequentemente, uma ciência normativa. O ser científico na definição
kelseniana é a adesão a um método específico, é um mandamento de pureza que
procura definir o objeto e a perspectiva da dada ciência. Kelsen, nesse sentido,
procura conceber uma epistemologia jurídica 5 para consolidar à ciência jurídica no
pódio das ciências.

Kelsen termina não somente por consolidar as bases do que se chama de


ciência jurídica, mas introduz no panorama jurídico interessantes problemas
filosóficos. O mandamento de pureza, a norma fundamental e sua natureza, a
possibilidade do conhecimento jurídico, os valores e as proposições, a natureza da
norma, estas e outras questões demonstram a profundidade do pensamento
jusfilosófico de Kelsen. É na junção entre ciência e filosofia que encontra-se o
problema fundamental ao presente estudo: o problema dos valores perante a teoria
das normas.

Os valores e os juízos de valor se relacionam diretamente com as normas,


isto fica claro em diversos momentos, mas a medida em que um e outro se
complementam e se opõe depende de um processo de reconstrução. Na busca pela
correta dimensão do problema, em sintetizar a relação entre normas, valores e
juízos, é que surge o estudo que se segue.

Para enfrentar a questão, primeiramente, deve-se explanar os aspectos


fundamentais do pensamento kelseniano e expor, pelo menos, uma versão
compreensível e acessível da teoria do direito em geral (e das normas em
específico). Esta é a tarefa do primeiro capítulo. Já no segundo e último capítulo,
enfrenta-se o problema dos valores e das normas propriamente dito, agora uma
possibilidade, uma vez que se armou o leitor com as ferramentas básicas para

3 Cf. KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2009. p. 1.
4 Cf. ibid., p. 5.
5 Cf. COELHO, Fábio Ulhoa. Para entender Kelsen. São Paulo: Saraiva, 2001. p. 1.
4

compreender Kelsen. A relevância de tal esforço reconstrutivo e explicativo é dada


pela relevância, ainda atual, do pensamento de Kelsen e seus alunos no debate
jurídico. Todo grande autor vive para a posteridade; mantêm-se vivo e discursando
na ágora com quem com ele ouse travar um diálogo e buscar a verdade.
5

CAPÍTULO 1 – DA TEORIA DA NORMA

1.1. Das questões preliminares

A posição dos valores dentro da perspectiva kelseniana é dependente da


teoria das normas do autor, estando em íntima ligação com a mesma. Para
compreender esta teoria, em primeiro lugar, é necessário que sejam abordados e
apresentados uma série de assuntos preliminares, anexos à parte essencial da
teoria em si.

O primeiro destes assuntos, dos pontos iniciais, em um sonoro anglicismo, é o


da relação entre Teoria Pura do Direito, Teoria das Normas e do Direito e o que no
presente trabalho se denomina como teoria das normas. Este, por sinal, é um “não
assunto”, pois, apesar de dois dos termos (Teoria Pura do Direito e Teoria Geral das
Normas) serem títulos de livros do autor, tratam-se na verdade de três nomes para
designar uma mesma teoria; de uma só e total perspectiva que perpassa as obras
individuais e pode ser abarcada por um mesmo título, da sorte que nascem do
mesmo esforço intelectual, direcionado ao mesmo objeto 6 e dentro de uma única
ciência. Os termos apresentam, portanto, certa equivalência, – quando estamos
tratando da teoria das normas trata-se da teoria geral do direito, pelo menos em
parte, e o que é a Teoria pura do direito, se não uma teoria geral do direito que tem
como base a perspectiva normativa do direito7?

A liga, o fator comum que conecta toda produção intelectual jusfilosófica de


Kelsen é a utilização de um único método, de modo que a firmação anterior de
equivalência parcial dos termos pode ser feita sem embaraço. Este método é
denominado de transcendental method8 e tem como base a interpretação da teoria

6 Assim nos informa logo nas primeiras páginas da Teoria Pura do Direito: “Ora, o conhecimento
jurídico dirige-se a estas normas que possuem o caráter jurídico e conferem a determinados fatos o
caráter de atos jurídicos (ou antijurídicos).” (KELSEN, 2009, p. 5).
7 Inclusive, a obra Teoria geral do direito e do Estado (1945) foi inicialmente pensada como uma
reformulação da edição inicial da Teoria Pura do Direito (primeira publicação em 1934). (COHEN, p.
147, 1981)
8 Kelsen esclarece as bases filosóficas e, em certo aspecto, metodológicas se sua obra em uma carta
para seu tradutor e comentador italiano, Renato Treves, textualmente: “Uma questão de especial
significado é que Cohen precisamente entendeu a Crítica da Razão Pura de Kant como uma teoria da
experiência, então eu procuro aplicar o método transcendental a uma teoria positiva do direito.”
(KELSEN,1998, p. 171.).
6

do conhecimento de Kant9 pelos neokantianos da escola de Marburg, em especial


por Hermann Cohen – um dos principais nomes do movimento em geral e desta
escola10. Kelsen, apesar de não apresentar uma explicação extensiva e
pormenorizada do método, demonstra a necessidade do mesmo em sua teoria no
seguinte trecho:

Na medida em que só através da pressuposição da norma fundamental se


torna possível interpretar o sentido subjetivo do fato constituinte e dos fatos
postos de acordo com a Constituição como seu sentido objetivo, quer dizer,
como norma objetivamente válida, pode a norma fundamental, na sua
descrição pela ciência jurídica – e se é lícito aplicar per analogiam um
conceito da teoria do conhecimento de Kant —, ser designada como a
condição lógico-transcendental desta interpretação (KELSEN, 2009, p. 225).

Por partes. O autor procura explicar como o sentido subjetivo de certos atos
(o sentido que os indivíduos que agem dão as suas próprias ações e livremente
interpretados pelos outros sujeitos 11) podem, sem nenhum retorno a uma autoridade
metafísica superior, ser interpretados como normas válidas, como um sistema
normativo objetivamente válido descritível pela ciência jurídica 12. Assim, deve-se
partir de um conhecimento a priori, de uma categoria necessária13 do pensamento e
reconhecida como um conhecimento confiável, para, com a reflexão embasada
neste a priori, alcançar outras fontes do conhecimento que, por sua vez, validarão
tanto a categoria apriorística como desvelarão uma série de outros conhecimentos
advindos da mesma fonte14. Para explicar a experiência jurídica, portanto, é
necessário a existência de uma norma fundamental 15 que se refira tanto a uma
9 “Kelsen salienta com uma força e uma precisão raras a necessidade de recorrer, na ciência do
direito, à reflexividade de tipo kantiano, e explica que conhecer o direito é re-construí-lo segundo as
exigências puras da razão crítica. Seu método analítico-crítico parte do direito positivo como de um
dado e procura determinar o a priori transcendental sem o qual a ciência do direito seria
inconcebível.” (GOYARD-FABRE, 2006, p. 227).
10 Cf. COPLESTON, Frederick Charles. A history of philososophy. Nova York: Image Book, 1994.
Vol. VII. p. 362.
11 “Na verdade, o indivíduo que, atuando racionalmente, põe o ato, liga a este um determinado
sentido que se exprime de qualquer modo e é entendido pelos outros.” (KELSEN, 2009, p. 3).
12 Cf. KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. Tradução João Baptista Machado. São Paulo: Editora
WMF Martins Fontes, 2009. p. 225.
13 The categories of understanding which constitute cognition qua experience of objects in nature, are
now, to be juxtaposed with the “ought” qua transcendental category – a category different in kind from
the Kantian categories but, like them, originating in reason – for constituting legal norms as objects of
cognition.” (HAMMER, 1998, p. 1998).
14 Cf. PRINGE, Hernán. Critique of the Quantum Power of Judgment: A Transcendental
Foundation of Quantum Objectivity. Berlin: Nova York: Walter de Gruyter: 2007. p. 3.
15 Em verdade, Kelsen modifica sua compreensão acerca da natureza da norma fundamental, num
momento ela é considera uma hipótese e depois, pelo menos em sua obra póstuma – Teoria Geral
das Normas –, ela é pensada como um Als-Ob, uma ficção (Cf. KELSEN, 1986, p. 328). O fato de ser
uma hipótese ou ficção não muda, entretanto, que toda a teoria é baseada no método transcendental.
Corrobora tal interpretação o fato de Hans Vaihinger, um dos eminentes teóricos do Als-Ob,
pertencer, ele mesmo, ao movimento Neo Kantiano (Cf. COPLESTON, 1994, p. 366). Ainda que a
7

constituição historicamente determinada, quanto à ordem por ela criada 16. Kelsen é
bastante claro sobre a função gnosiológica da norma fundamental, sendo ela
derivada diretamente do método transcendental e estando conforme a filosofia de
Cohen, in verbis:

O essencial é que a teoria da norma fundamental surge completamente do


Método das Hipóteses desenvolvido por Cohen. A norma fundamental é a
resposta para a questão: Qual a pressuposição subjacente à própria
possibilidade de interpretar fatos materiais qualificados como atos legais,
isto é, aqueles atos por meio dos quais as normas são emitidas ou
aplicadas? Esta é uma questão proposta no mais verdadeiro espírito da
lógica transcendental. (Cf. Carta de Kelsen a Renato Tavares, tradução
nossa, p. 174)17.

A finalidade de Kelsen é aplicar, até a últimas consequências, a filosofia e o


método transcendental em uma negação total da lei natural (jusnaturalismo)
correspondente, no mundo jurídico, a especulação metafísica das ciências naturais.
Estes seria um feito até então inédito18.

Consequentemente, Kelsen almeja, fato tanto expresso como subjacente a


escolha da aplicação do método transcendental ao problema do Direito, criar uma
ciência jurídica independente, consolidando-a como autônoma dentro do ruidoso e
ameaçador panorama científico do fim do século XIX e início do século XX (que não
poucas vezes ameaçou a independência da mesma 19). Um exemplo deste
complicado panorama foi a ameaça sofrida pela ciência jurídica (enquanto ciência da
norma) que adveio por parte da sociologia jurídica, ou melhor dizendo, de uma certa
concepção de sociologia jurídica. Kelsen, respondendo a um dos proponentes desta
confusão, Ehrlich, chega a negar o status de ciência desta concepção sociológica,
assevera:

Pelo aspecto puramente sociológico não haverá nenhuma diferença


essencial entre estas normas, isto é, entre os fatos psíquicos, as

norma fundamental não seja uma hipótese ela continua sendo pressuposta, ainda que como ficção, e
necessária ao reconhecimento da experiência jurídica – nunca devemos esquecer que os termos da
questão estão inseridos profundamente dentro da discussão neokantiana da teoria do conhecimento,
assim nos informa Stefan Hammer (1998, p. 178). Há ainda a possibilidade do autor ter feito o
caminho da hipótese a ficção (Cf. CONSANI, 2016, p. 146).
16 Cf. KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. Tradução João Baptista Machado. São Paulo: Editora
WMF Martins Fontes, 2009. p. 225.
17 No original: What is essential is that the theory of the basic norm arises completely from the Method
of Hypothesis developed by Cohen. The basic norm is the answer to the question: What is the
presupposition underlying the very possibility of interpreting material facts that are qualified as legal
acts, that is, the acts by means of which norms are issued or applied? This is a question posed in
truest spirit of transcendental logic.
18 Cf. Carta de Kelsen a Renato Tavares, p. 173.
19 Cf. COELHO, Fábio Ulhoa. Para entender Kelsen. São Paulo: Saraiva, 2001. p. XV.
8

representações que têm por conteúdo estas normas. Somente a errônea


concepção segundo a qual a sociologia pode abranger o mesmo objeto da
jurisprudência normativa, o direito, conduza uma representação de uma
sociologia do direito que seja autônoma. Na realidade, a norma jurídica, este
objeto específico da ciência do direito, não existe para uma sociologia
orientada ao ser. (KELSEN, 2019, p. 2019)

Sobre o tema, Tércio Sampaio Ferraz Jr. (2001, p. XV, apud COELHO, 2001,
p. XV) comenta: “Nesta discussão, o pensamento de Kelsen seria marcado pela
tentativa de conferir à ciência jurídica um método e um objeto próprios, capazes de
superar as confusões metodológicas e de dar ao jurista uma autonomia científica”.

Para tanto, ele cria sua teoria pura. Definida pelo próprio, ela é: “… uma teoria
do Direito positivo – do Direito positivo em geral, não de uma ordem jurídica
especial. É teoria geral do Direito, não interpretação de particulares normas
jurídicas, nacionais ou internacionais.” (KELSEN, 2009, p.1). Demonstra-se que, em
princípio, trata-se de uma teoria geral ciosa por abranger a unidade do fenômeno do
Direito em geral, excluindo-se os múltiplos direitos particulares e somente do Direito
positivado. Depois, ela é um mandamento de pureza que visa “… excluir deste
conhecimento tudo quanto não pertença ao seu objeto, tudo quanto não se possa,
rigorosamente, determinar como Direito.” (KELSEN, 2009, p.1), obtendo-se, por esta
via, uma ciência estritamente jurídica (portanto, independente) que exclui de suas
análises, pois podem confundir e atrapalhar o conhecimento preciso do objeto,
elementos como justiça20, ética, teoria política, psicologia e sociologia 21. Tem-se,
portanto, um trabalho de epistemologia jurídica 22 que busca conhecer o objeto de
seu saber (a norma jurídica) de forma descritiva, abstendo-se de prescrições e
conselhos, da construção de um direito ideal. É uma tentativa de produzir um
conhecimento neutro, separando-se a ciência jurídica de outras espécies científicas
que podem, tangencialmente, tocar o mesmo fenômeno (mas dificilmente o mesmo
objeto).

20 A questão da justiça será abordada mais profundamente em um momento seguinte, contudo,


ressalva-se ao afirmar que Kelsen exclui a questão da justiça da análise científica do direito trata-se
da justiça absoluta (de natureza transcendental ou valorativa absoluta). Cf. Kelsen (2001, p. 11).
21 KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. Tradução João Baptista Machado. São Paulo: Editora
WMF Martins Fontes, 2009. p. 1.
22 Cf. COELHO, Fábio Ulhoa. Para entender Kelsen. São Paulo: Saraiva, 2001. p. 1.
9

O objeto investigado é a norma23, não toda e qualquer norma, nem uma


norma isolada, mas ela enquanto participante de um ordenamento 24 positivo. A
própria definição de Direito na obra do autor é uma definição normativa: “Na
verdade, o Direito, que constitui o objeto deste conhecimento, é uma ordem
normativa da conduta humana, ou seja, um sistema de normas que regulam o
comportamento humano.” (KELSEN, 2009, p. 5). Mais especificamente, Kelsen faz
uma teoria da norma posta, da norma positiva e até certo grau, da norma empírica 25.
Portanto, a ciência jurídica (jurisprudência) é uma ciência normativa.

É de grande importância esclarecer o que o autor quis dizer com o termo


norma positiva. A norma positiva pode-se inferir que a mesma não é nada mais do
que a norma, individual ou geral, posta em um sistema jurídico válido através de um
ato de vontade, neste sentido uma norma existente; nas palavras de Kelsen:

Uma norma posta na realidade do ser por um realizante ato de vontade é


uma norma positiva. Do ponto de vista de um positivismo moral ou jurídico
interessam como objeto apenas normas positivas fixadas, ou seja,
estabelecidas por atos de vontade, e precisamente por ato de vontade
humanos. (KELSEN, 1986, p. 6).

Mais do que referência às normas positivas, a teoria kelseniana do Direito


está enquadrada no panorama do positivismo jurídico. De um modo sintético, o
positivismo jurídico pode ser classificado como “… a doutrina que reduz a justiça à
validade.” (BOBBIO, 2016, p. 58). Logo, ela se coloca como teoria diametralmente
oposta ao direito natural (seja ele de vertente racionalista ou transcendental) e que,
de forma alguma, conecta a questão da validade (existência) da norma com o
problema da justiça, fato que necessariamente agregaria ao Direito e à ciência
jurídica elementos além de sua alçada fenomenológica, além do retorno das

23 Cf. KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. Tradução João Baptista Machado. São Paulo: Editora
WMF Martins Fontes, 2009. p. 79.
24 A unidade de normas que forma um ordenamento jurídico é reconhecida através da análise da
validade destas normas perante uma mesma norma fundamental justificadora, assim: “Uma “ordem” é
um sistema de normas cuja unidade é constituída pelo fato de todas elas terem o mesmo fundamento
de validade. E o fundamento de validade de uma ordem normativa é – como veremos – uma norma
fundamental” (KELSEN, 2009, p. 33). A ideia de ordenamento será mais a frente retomada e é de
relevância ímpar para toda ciência jurídica de Kelsen, conforme (KELSEN, 2009, p. 51).
25 “Caso se entenda o direito ‘positivo’ como direito ‘empírico’, direito na experiência, ou ‘experiência
legal’, como Sander denominou, a Teoria Pura do Direito é de fato empiricista – mas empiricista no
mesmo sentido que a filosofia transcendental de Kant.” (KELSEN, 1998, p. 169 – 175).
10

especulações metafísicas26. Coelho estabelece o positivismo27 de Kelsen em dois


aspectos, quais sejam:

Mas, de modo geral, positivista tem sido considerado tanto aquele autor que
nega qualquer direito além da ordem jurídica posta pelo estado, em
contraposição às formulações jusnaturalistas e outras não formais, como o
defensor da possibilidade de construção de um conhecimento científico
acerca do conteúdo das normas jurídicas. Kelsen é positivista em ambos os
sentidos. (COELHO, 2001, p. 18)

Finalizada esta breve interpolação acerca da posição da teoria kelseniana no


quadro histórico da jusfilosofia, retorna-se as questões preliminares.

Clarificado o objetivo e o objeto da ciência jurídica, o passo seguinte é


investigar se há uma efetiva diferença entre ela e as demais espécies científicas. O
autor estabelece a divisão das ciências em duas espécies: as naturais e as sociais.
Contudo, não seria sem razão que algum leitor questionasse se os fatos da
sociedade não poderiam ser considerados fatos naturais, reflexão que leva Kelsen a
estabelecer que, em verdade, a grande cisão ocorre entre as ciências naturais e as
normativas28. Por conseguinte, uma ciência que estuda os fatos sociais sob a
mesma óptica das ciências naturais – percebendo os fatos da sociedade como
pertencentes ao mundo do ser– é, ela mesma, uma ciência desta espécie 29 e por
esta razão, diametralmente oposta aos lumes que investigam as normas. Dentro da
classe dos conhecimentos normativos estão, a jurisprudência e a ética (ciência da
moral). Para os fins, basta que seja explicitada a diferença entre os dois grupos.

Antes de adentrar nas diferenças entre as classes científicas faz-se uma


breve digressão para explicar uma outra distinção entre categorias necessárias,
tanto para a presente questão como para outras que por ventura surjam. Esta
diferença consiste entre as normas e os dizeres sobre a norma produzidos pelas

26 Cf. KELSEN, Hans. O que é justiça?: A justiça, o direito e a política no espelho da ciência.
Tradução Luís Carlos Borges. São Paulo: Martins Fontes, 2001. p. 22.
27 Termo que o autor acredita conter profundos problemas, mas ao qual remete, ainda sim, por ele
apresentar certa utilidade pedagógica.
28 “A diferença entre elas e as ciências naturais que não se ocupam da conduta humana é apenas
uma diferença de grau de precisão. Tal diferença [de princípios] existe apenas entre ciências naturais
e ciências que interpretam as relações humanas não segundo o princípio da causalidade, mas
segundo o princípio da imputação – ciências que se ocupam da conduta humana não como
efetivamente ocorrem, mas como deve correr, determinada por normas (KELSEN, 2001, p. 330).
29 “A sociedade é uma ordem da conduta humana. Mas não há razão suficiente para não considerar
a conduta humana como um elemento da natureza, isto é, como determinada pela lei da causalidade;
e, na medida em que a conduta humana é concebida como determinada por leis causais, uma ciência
que lida com a conduta mútua dos homens e que, por esse motivo, é classificada como ciência social,
não difere essencialmente da física ou da biologia.” (KELSEN, 2001, p. 323).
11

ciências normativas. As normas se dirigem as condutas humanas, para regulá-las a


norma é dotada de diversas funções, segundo Kelsen: “Uma norma não pode
apenas impor uma conduta fixada, ela pode também autorizar uma certa conduta; e
finalmente revogar a validade de uma norma, i.e., pode derrogar uma outra norma.”
(KELSEN, 1986, p. 121). Observa-se claramente, que as funções normativas não
visam a instruir ou a julgar 30. As descrições das relações estabelecidas pela norma,
por sua vez, pretendem informar, dar a conhecer algo e são chamadas de
proposições jurídicas, sendo:

(…) juízos hipotéticos que enunciam ou traduzem que, de conformidade


com o sentido de uma ordem jurídica – nacional ou internacional – dada ao
conhecimento jurídico, sob certas condições ou pressupostos fixados por
esse ordenamento, devem intervir certas consequências pelo mesmo
ordenamento determinadas (KELSEN, 2009, p. 80).

O fato é que a ciência jurídica possui uma função gnosiológica, descritiva, e


não tem pretensões de justificar a ordem positiva, função que por vezes foi atribuída
à ciência jurídica por alguns autores jusnaturalistas 31. Por sua vez, as normas, e os
órgãos da comunidade jurídica que as produzem, tem como atribuição produzir o
Direito (que só então poderá ser conhecido) e são o sentido de atos de vontade.
Esta diferença explicita novamente utilização do método transcendental e a relação
entre o pensamento de Kelsen e a teoria do conhecimento de Kant 32; adiciona-se
que não são poucas as vezes em que é necessário distinguir se o autor está se
referindo a proposições jurídicas ou a normas. Em resumo, as normas prescrevem e
as proposições descrevem (e, em certo sentido, criam o ordenamento).

Outra forma de observar a distinção entre as proposições jurídicas e normas é


através de um paralelismo entre os fatos do ser e do dever ser, entre os fatos do
mundo natural e do mundo normativo. Não se pode fazer um juízo de veracidade
com relação as normas, assim como não é admissível fazer tal juízo em relação aos
fatos do ser, sobre estes pode-se apenas verificar sua existência ou não, e no caso

30 Cf. KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. Tradução João Baptista Machado. São Paulo: Editora
WMF Martins Fontes, 2009. p. 81.
31 “Ora, ao dissertar sobre a justiça da ordem jurídica e concluir por entendê-la justa, a ciência passa
a exercer a função, que não lhe cabe, de legitimar a mesma ordem.” (COELHO, 2001, p. 18).
32 “Também é verdade que, no sentido da teoria do conhecimento de Kant, a ciência jurídica como
conhecimento do Direito, assim como todo conhecimento, tem caráter constitutivo e, por conseguinte,
“produz” o seu objeto na medida em que o apreende como um todo com sentido […] assim também a
pluralidade das normas jurídicas gerais e individuais postas pelos órgãos jurídicos, isto é, o material
dado à ciência do Direito, só através do conhecimento da ciência jurídica se transforma num sistema
unitário isento de contradições, ou seja, numa ordem jurídica.” (KELSEN, 2009, p. 82).
12

das normas analisar sua validade33. As proposições jurídicas, bem como os


enunciados da ciência natural, podem ser valoradas segundo juízos de verdade e
falsidade e são distintas ainda das proposições sobre os atos cujo o sentido é a
norma (aqueles que dão “existência” a ela), estes atos são fato do ser.

Isso posto, resta a questão da forma de expressão da norma e da proposição.


Os atos legiferantes, aqueles cujo o sentido é a norma, podem ser executados por
muitas e diferentes formas, de gestos à palavra escrita (KELSEN, 1986, p. 188).
Kelsen não considera, porém, as normas como enunciados (dado que elas não são
descrições e sim o objeto a ser descrito34) mas diz que elas são manifestas em “…
palavras faladas e escritas.” (KELSEN, 2009, p. 83), ou seja, tanto as prescrições
quanto as normas podem ser expressas através dos mesmos símbolos 35, mais ainda,
elas por vezes são dadas em expressões com o mesmo teor, com a mesma
expressão linguística. Segundo Kelsen (1986, p. 195): “A norma da autoridade do
Direito eu Enunciado da Ciência do Direito sobre esta norma podem ter, por
conseguinte, o mesmo teor”.

A semelhança de expressão, todavia, não implica que ambas expressões


possuem o mesmo significado. A fórmula linguística descritiva dessas formulações
consiste em: se é A, deve ser B. Percebe-se que norma possuí um sentido de
prescrição, enquanto a proposição de dever ser, é descritiva 36. O embaraço entre o
sentido das duas, que deve ser evitada a todo custo, origina-se pela dupla
significação do dever ser (conforme a fórmula anteriormente apresentada); quando o
dever ser é expresso na formulação da norma, possui o sentido de uma prescrição e
exprime um ato de vontade, já nas proposições jurídicas têm o sentido de uma
descrição e exprime um ato do pensamento37.

33 Cf. KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. Tradução João Baptista Machado. São Paulo: Editora
WMF Martins Fontes, 2009. p. 82.
34 Cf. ibid. p. 83
35 O leitor pode indagar-se sobre a real necessidade de uma ciência jurídica já que as normas podem
ser expressas pelos mesmos meios que as prescrições, o próprio Kelsen propõe esta indagação e a
responde mais a frente, no seguinte trecho: “A possibilidade e a necessidade de uma tal disciplina,
endereçada ao Direito como teor de sentido normativo, são demonstradas pelo fato secular da ciência
do Direito que, como jurisprudência dogmática, e enquanto houver Direito, servirá as necessidades
intelectuais dos que deste de ocupam” (KELSEN, 2009, p. 117).
36 Cf. KELSEN, Hans. Teoria geral das normas. Tradução José Florentino Duarte. Porto Alegre:
Fabris, 1986. p. 190.
37 Cf. ibid. p. 195.
13

A importância desta distinção surge quando é proposto o problema da


aplicação dos princípios lógicos às normas. É sabido que as normas são o sentido
objetivo de atos da vontade e tem como objetivo regular a conduta de outrem,
portanto, não podem ser o sentido de atos do pensamento cuja função é conhecer
um dado objeto38. Por sua vez, um enunciado sobre a validade da norma, uma
proposição jurídica, é o sentido de um ato de conhecimento 39. Levando em
consideração que as normas pela maneira como são conceituadas, não podem ser
verdadeiras ou falsas, mas apenas válidas ou não 40, os postulados da lógica,
perfeitamente aplicáveis às proposições jurídicas, essas, sim, verdadeiras ou falsas,
apenas podem ser aplicadas as normas mediante a intervenção das referidas
proposições, nas palavras do autor: “… os princípios da lógica podem ser, se não
direta, indiretamente, aplicados às normas jurídicas, na medida em que podem ser
aplicadas às proposições jurídicas que descrevem estas normas e que, por sua vez,
podem ser verdadeiras ou falsas.” (KELSEN, 2009, p. 84) 41.

Regredindo ao questionamento acerca da diferença entre os tipos de ciência,


uma questão de princípios fundamentais. O princípio pelas quais se guiam as
ciências naturais é o da causalidade; esta que pode ser definida como uma ligação
entre dois elementos que ocorre necessariamente, ou pelo menos, é provável 42 e
que é “…independente de toda e qualquer intervenção.” (KELSEN, 1986, p. 32). Já
as ciências normativas são guiadas pelo princípio da imputação; este princípio
também conecta dois elementos, sendo um deles uma causa e outro um efeito,
contudo, o nexo funcional estabelecido não é uma necessidade, mas sim um dever
ser estabelecido através de atos de vontade43. Bobbio sobre o assunto nos diz:
38 Cf. ibid. p. 315.
39 Cf. ibid. p. 315.
40 Cf. KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. Tradução João Baptista Machado. São Paulo: Editora
WMF Martins Fontes, 2009. p. 13.
41 Optamos por seguir com a conclusão conforme postulada pelo autor Teoria Pura do Direito, p. 84
(KELSEN, 2009), já que a obra, em sua segunda edição da década de 1960, apresentou importantes
atualizações sobre o tema. A conclusão sobre o assunto na Teoria Geral das Normas, apesar de
muito próxima, apresenta termos que indicam uma formulação anterior (devido a problemas de
datação do texto base e levando-se em consideração ser uma obra póstuma) a revisão da Teoria
Pura do Direito (ver CONSANI, 2016, p. 146). Pela dúvida, mesmo que as diferenças pouco alterem
as conclusões explanadas, fica a formulação mais bem estabelecida na literatura.
42 “Portanto, as regras pelas quais a ciência natural descreve a realidade em conformidade com o
postulado epistemológico da causalidade, as chamadas leis da natureza, podem muito bem ter
exceções e, consequentemente, ser meras leis estatísticas de probabilidade. Essa transformação de
noção de causalidade é o último passo no processo da sua emancipação do princípio da retribuição.”
(KELSEN, 2001, p. 321).
43 “A diferença entre ambos subsiste na circunstância de que a imputação (isto significa a relação
entre uma conduta determinada como condição e a sanção como consequência descrita numa lei
14

Pode-se dizer que a distinção das duas relações está no fato de que a
primeira não é voluntária, depende de uma autoridade que coloque; e ainda,
a primeira reenvia a uma determinação necessária; a segunda, a uma
estatuição voluntária, e, portanto, a uma prescrição (BOBBIO, 2016, p. 137).

As dissimilitudes não cessam diante dos fatores apresentados anteriormente,


na causalidade as causas concretas precisam “… ser considerada como efeito de
uma outra causa, e todo efeito concreto como causa de um outro efeito, de maneira
que a cadeia de causa e efeito – correspondendo à natureza da causalidade – é
interminável para ambas as direções.” (KELSEN, 1986, p. 32); na imputação,
todavia, nem toda condição (comportamento que é pressuposto para uma sanção)
precisa, ou é consequência ou condição de outros atos; da mesma forma, as
consequências da imputação não são ao mesmo tempo, nem causa nem
consequência de outras ações44. Inclusive, a formulação correta do princípio causal,
para Kelsen, nem mesmo deve incluir a ideia de causa primeira ou de fim último,
apartando-se completamente de qualquer similitude com a imputação (conforme
princípio derivado de uma vontade) 45. Ambos os princípios, porém, podem ser
expressos através de proposições hipotéticas (julgamentos) de algo como causa e
outra coisa como efeito46, sendo dois modos de expressão de um nexo funcional 47
com sentidos diferentes.

Kelsen sumariza bem seus objetivos e a função da teoria pura do direito,


conforme:

Quer representar o Direito tal como ele é, e não como ele deve: pergunta
pelo Direito real e possível, não pelo Direito “ideal” ou “justo”. Neste sentido
é uma teoria do Direito radicalmente realista, isto é, uma teoria do
positivismo jurídico. Recusa-se a valorar o Direito positivo. Como ciência,
ela não se considera obrigada senão a conceber o Direito positivo de acordo
com a sua própria essência e a compreendê-lo através de uma análise da
sua estrutura (KELSEN, 2009, p. 118).

O presente trabalho demonstra primeiramente quatro questões preliminares


que devem ser consideradas e compreendidas, mesmo que de maneira simplificada,
para a correta apreensão do leitor das questões fundamentais deste trabalho. O

moral ou jurídica) é produzida por um ato de vontade, cujo sentido é uma norma …” (KELSEN, 1986,
p. 32).
44 Cf. KELSEN, Hans. Teoria geral das normas. Tradução José Florentino Duarte. Porto Alegre:
Fabris, 1986. p. 33.
45 Idem.
46 Cf. KELSEN, Hans. O que é justiça?: A justiça, o direito e a política no espelho da ciência.
Tradução Luís Carlos Borges. São Paulo: Martins Fontes, 2001. p. 331.
47 Cf. KELSEN, Hans. Teoria geral das normas. Tradução José Florentino Duarte. Porto Alegre:
Fabris, 1986. p. 32.
15

primeiro conteúdo abordado foi sobre a equivalência terminológica entre as


denominações da teoria jurídica de Kelsen, fato que exprime uma unidade
subjacente em sua obra; em seguida o leitor é apresentado a metodologia da teoria
aborda, o transcendental method, e ao panorama epistemológico basilar de Kelsen;
tendo um método, para conhecer uma ciência, ainda é preciso saber a qual objeto
ela se refere, esta é a terceira questão preliminar; a penúltima e quarta questão
consiste na classificação das ciências jurídicas e o que a torna única; a última
questão apresentada no decorrer do texto trata sobre a diferença entre as normas e
proposições jurídicas.

1.2. Da Norma

O Direito é a norma, não uma norma isolada, mas sim um conjunto de normas
cuja unidade derivam de uma mesma norma fundamental, mas afinal o que é uma
norma? E uma norma fundamental? Mais ainda, qual a diferença entre uma norma
qualquer, como por exemplo as regras de etiqueta e de uso das áreas comuns de
um condomínio, comparando-as com as que compõe o Direito? O ponto de partida
para a análise acerca dos questionamentos citados é fomentado pela seguinte
concepção:

O dever-ser – a norma – é o sentido de um querer, de um ato de vontade, e


– se a norma constitui uma prescrição, um mandamento – é o sentido de um
ato dirigido à conduta de outrem, de um ato, cujo sentido é que um outro (ou
outros) deve (ou devem) conduzir-se de determinado modo (KELSEN, 1986,
p. 3).

Então, as normas: (a) se referem aos comportamentos humanos e visam


modificá-los; (b) como sentidos de um querer, advém de um ato de vontade, ou seja,
surgem de alguém que deseja que outro alguém faça algo; por fim, (c) elas
pertencem a categoria do dever ser.

É claro que as regras estatuem que alguma coisa deve ou não acontecer ou
ser de uma determinada maneira48. Contudo, Kelsen aborda o dever ser como uma
categoria e não apenas como um simples conectivo linguístico, neste sentido, o
dever ser “… do mesmo modo que o ser, é uma “categoria original”, e como não se

48 Cf. KELSEN, Hans. Teoria geral das normas. Tradução José Florentino Duarte. Porto Alegre:
Fabris, 1986. p. 2.
16

pode descrever o que seja o ser, tão pouco há uma definição de dever-ser.”
(KELSEN, 1986, p. 3).

O dever ser é uma noção simples, não definível e nem analisável, sendo um
dado básico do pensamento, mas de conteúdo cognoscível 49. Isto implica que, depois
de posto na realidade o ato cujo sentido é um dever ser, é possível determinar qual
o teor daquele específico dever ser, já o processo de determinação de um ato como
jurídico ou antijurídico é um processo mental comparativo entre o fato que ocorreu e
as normas válidas do sistema 50, que Kelsen chama de juízo de valor. Infere-se que
nem o dever ser e nem a juridicidade de um ato, podem ser captadas através de
uma percepção especial, este depreende sua característica de uma operação
mental correlata a norma e o outro tem o seu conteúdo determinado (e, portanto,
cognoscível) pelo ato de vontade que dá sua existência.

Apesar da similitude entre termos, nem todo dever ser é uma norma. O
sentido subjetivo de todo ato de um sujeito que visa modificar o comportamento de
outrem é um dever ser, a norma é justamente o significado subjetivo de uma ação
desta natureza, porém ela tem um caráter objetivo 51. Kelsen, explicando a diferença
entre a ordem de um bando de salteadores e as normas (e entre eles e um Estado),
conforme o problema proposto por Sto. Agostinho no Civitas Dei52, fornece uma clara
distinção, segue:

Quanto à questão em debate isto significa: na medida em que apenas se


tome em linha de conta o sentido subjetivo do ato em questão, não existe
qualquer diferença entre a descrição de um comando de um salteador de
estradas e a descrição do comando de um órgão jurídico. A diferença
apenas ganha expressão quando se descreve, não o sentido subjetivo, mas
o sentido objetivo do comando que um indivíduo endereça a outro. Então,
atribuímos ao comando do órgão jurídico, e já não ao do salteador de
estradas, o sentido objetivo de uma norma vinculadora do destinatário. Quer

49 Cf. KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. Tradução João Baptista Machado. São Paulo: Editora
WMF Martins Fontes, 2009. p. 399.
50 “O que faz com que um fato constitua uma execução jurídica de uma sentença de condenação à
pena capital e não um homicídio, essa qualidade – que não pode ser captada pelos sentidos –
somente surge através desta operação mental: confronto com o código penal e com o código de
processo penal.” (KELSEN, 2009, p. 4).
51 “A objetividade de dever-ser (i.e., que o sentido de um autorizado ato de vontade dirigido à conduta
de outrem é uma norma) mostra-se no fato de que a norma vale, porque esse dever-ser é existente
como sentido, também se o ato de vontade, cujo sentido é o dever-ser, já há muito não mais existe,
enquanto dever-ser, que não é o sentido de uma ordem autorizada, não mais é existente
simultaneamente com a não mais existência do ato de vontade, cujo sentido é o dever-ser, quer dizer:
- como norma – não continua a valer.” (KELSEN, 1986, p. 36).
52 Cf. KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. Tradução João Baptista Machado. São Paulo: Editora
WMF Martins Fontes, 2009. p. 49.
17

dizer: interpretamos o comando de um, mas não o comando do outro, como


uma norma objetivamente válida (KELSEN, 2009, p. 49).

Ordens desta natureza, ou seja, que não são o sentido objetivo de um dever
ser, não podem, consequentemente, imputar ao comportamento nenhum valor
externo aos sentimentos do sujeito ordenador. O ato violador é apenas um ato
contra a vontade de um certo sujeito, “Apenas a ordem autorizada tem também o
sentido objetivo de dever-ser, e isto significa: somente a ordem autorizada é uma
norma obrigatória para o seu destinatário, e que o obriga à conduta nela prescrita;”
(KELSEN, 1986, p. 35-36).

Ainda sobre o dever ser, o abismo entre ele e o ser é intransponível 53. A
veracidade desta asserção contempla-se analisando o conteúdo de uma norma
qualquer, por exemplo, a de que alguém deve fechar uma janela – existe nessa ação
um desejo do emissor para que um sujeito haja segundo sua vontade (dever ser) – o
receptor da mensagem pode fechar ou não a janela (agindo conforme ou contra o
prescrito pela norma), não obstante, mesmo que o paciente haja de acordo com o
desejo expresso na regra seu ato do ser jamais se converterá em dever ser, apenas
o conteúdo dele corresponderá com o do dever ser 54.

Observa-se, contudo, na relação como o ato legiferante que apenas a norma


é um dever ser. O ato do querer que a coloca em existência (dá validade) é do
mundo do ser. Kelsen pontua a impossibilidade de derivação de um dever ser de um
ser sem a mediação de outro dever ser 55, assim estabelecendo o postulado da
necessidade das normas de advirem de outras normas. Joseph Raz clarifica bem o
pensamento kelseniano:

As normas jurídicas, por outro lado, passam a existir em consequência de


uma combinação de atos humanos e outras normas jurídicas: para Kelsen,
nenhuma norma pode ser criada somente por atos humanos. A existência
de cada norma positiva pressupõe a existência de outra norma que autorize
a sua criação (RAZ, 2012, p. 173).

53 O ser corresponde à coisa em si mesmo, um absoluto que não pode ser conhecido. As coisas,
portanto, só podem ser conhecidas enquanto relações, enquanto casualmente determinadas e não
em seu estado absoluto, sem relação com a experiência de quem pretende conhecê-la. O dever,
assim como o ser, é um absoluto (não determinado por causalidades) e, portanto, tão indefinível
quanto este, ambos, por consequência, estão excluídos do conhecimento científico. Para mais
informações, (HAMMER, 1998, p. 177-194).
54 Cf. KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. Tradução João Baptista Machado. São Paulo:
Editora WMF Martins Fontes, 2009. p. 7.
55 “…e que dá circunstância de algo ser não se segue que algo deva ser, assim como da
circunstância de que algo deve ser se não segue que algo é.” (KELSEN, 2009, p. 6).
18

Da necessidade de uma norma de outra que autorize sua criação não se


infere, todavia, a irrelevância do ato legiferante – pois, é preciso sempre uma
vontade expressa no mundo dos fatos para surgir uma norma; o ser, mesmo
dependente de uma norma que qualifique os atos legislativos como válidos, é
também uma necessidade da norma. Ainda sobre a necessidade de uma cadeia de
validação normativa, basta, por hora, afirmar que ela não é infinita, o último elo desta
corrente é a norma fundamental56.

1.3 As normas como regulação da conduta

Todas as normas fazem parte do dever ser, isto está claro, mas qual o quid
que torna a norma jurídica um objeto único? A resposta é: a coação. Kelsen
considera o direito ordem coativa e como tal:

[…] o Direito distingue-se de outras ordens sociais. O momento coação, isto


é, a circunstância de que o ato estatuído pela rodem como consequência de
uma situação de fato considerada socialmente prejudicial deve ser
executado mesmo contra a vontade da pessoa atingida e – em caso de
resistência – mediante o emprego de força física, é o critério decisivo
(KELSEN, 2009, p. 36).

As coações da ordem jurídica são socialmente organizadas e imanentes 57.A


imanência social indica que o ato coativo, a sanção, é aplicada pelos membros da
própria sociedade, em oposição às sanções transcendentes, advindas de uma
entidade superior que as aplica no mundo do ser ou do aquém 58. Os membros da
sociedade podem aplicar sanções que consistem apenas em aprovar ou desaprovar
o ato normado, ou, sendo a coação socialmente organizado, determinar os
indivíduos e as ações específicas a serem praticadas 59.

Os atos coativos das ordens jurídicas podem ser sanções ou atos coativos
diversos. As sanções dirigem-se especificamente contra as condutas humanas de
indivíduos específicos e são usualmente recebidas pelos pacientes como um mal.
Os atos sancionados, pressupostos da sanção, são de natureza antijurídica e podem

56 Cf. RAZ, Joseph. O conceito de sistema jurídico: uma introdução à teoria dos sistemas
jurídicos. Tradução de Maria Cecília Almeira. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2012 p. 173.
57 Cf. KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. Tradução João Baptista Machado. São Paulo: Editora
WMF Martins Fontes, 2009. p. 36.
58 Cf. ibid. p. 30-31.
59 Cf. ibid, p. 31.
19

ser considerados com ilícitos ou delitos, por consequente, a conduta oposta é lícita,
conforme o direito60. A consequência estabelecida é dirigida, por sua vez contra os
indivíduos que a praticam ou contra seus familiares e prescrevem, comumente, a “…
privação coercitiva da vida, da liberdade, de bens econômicos e outros, como
consequência dos pressupostos por ele estabelecidos.” (KELSEN, 2009, p. 38).

Não interfere e nem prejudica esta conceituação o fato, anômalo, de um


paciente considerar a sanção como merecida, como um bem, este é o caso de um
criminoso arrependido, cuja dor da consciência do crime não punido lhe prejudica
mais que a privação da liberdade ou de qualquer outro bem, neste caso, a sanção
pode, inclusive, ser um bem, uma expiação das culpas, um alívio 61. O fato de,
usualmente, até onde constata-se empiricamente, as sanções serem consideradas
como um mal, não infere que este aspecto seja determinado como fator de
caracterização científica necessário; a ciência jurídica é de natureza normativa e
seguindo os padrões de pureza estabelecidos pela teoria pura e do método
transcendental, só pode fazer julgamentos de valor relativo, baseados em uma
norma, portanto, um ato é bom ou mal conforme é prescrito ou punido por uma
norma e uma sanção só pode ser alvo de uma valoração normativa conforme seja o
conteúdo de uma outra norma, como, por exemplo, de uma lei que estabeleça como
devida a aplicação de uma sanção por uma certa autoridade. Esta outra norma que
tem por objeto a sanção (enquanto aplicação ou não da sanção é pressuposto de
outra sanção), por sua vez, pode ser também alvo de outra norma – não se pode,
contudo, regressar ad infinitum e isto implica que uma das normas desta cadeia de
sanções é apenas autorizada62.

De fato, não cabe negar que um ordenamento jurídico como um todo e cada
norma individualmente considerada, buscam pela eficácia. Dado que eficácia é
condição mínima da vigência 63, naturalmente haverá uma tendência para a sanção
eficaz, um dos aspectos da eficácia é a representação da norma e o impacto que ela
pode ter na determinação das ações dos indivíduos, é a coação psíquica (KELSEN,
2009, p. 38), entretanto, a coação psíquica não é uma característica necessária à

60 Cf. ibid. p. 37.


61 Contudo, o sujeito que age fora dos padrões tem que agir de forma racional, estando na plena
posse de suas capacidades mentais, sem racionalidade não há conduta e nem sentido da conduta,
conforme Kelsen (2009, p. 3 e 45).
62 Cf. ibid. p. 27.
63 Cf. ibid. p. 12.
20

sanção, apesar de ter sua utilidade e razão de ser 64. A única necessidade de uma
sanção para ser tal é ter sido estabelecida por uma norma válida (inserida dentro de
um sistema globalmente eficaz)65.

Kelsen fala também acerca do tema do monopólio da coação. As ordens


jurídicas primitivas, descentralizadas segundo os termos da teoria kelseniana, não
trazem em si a proibição do uso da força como reação contra situações de fato, do
feitio que os indivíduos lesados podem verificar a existência do delito, do tipo deste
delito e ficam responsáveis pela execução da sanção normada (KELSEN, 2009, p.
43). As ordens modernas, centralizadas, estabelecem órgãos responsáveis pela
verificação do ilícito e aplicação da sanção (KELSEN, 2009, p. 43), limitando-se, até
onde possível, o princípio da autodefesa.

Os outros atos de coação existentes dentro dos ordenamentos jurídicos são


dirigidos contra demais fatos 66 considerados como socialmente indesejáveis e que
não sejam condutas determinadas67. Até agora tem-se a hipótese de que a sanção é
aplicada aos atos antijurídicos verificados, mesmo que de maneira descentralizada,
como ocorre nos sistemas descentralizados; o Estado, contudo, passa com sua
evolução a exercer coação (sanção lato sensu) contra atos que ainda não
verificados, como na prisão preventiva, e no sentido de prevenção, contra atos ainda
não cometidos, mas que são prováveis de ocorrer, como na internação compulsória
de doentes mentais68. Esta ampliação do conceito de sanção implica que: “Se o
conceito de sanção é alargado nestes termos, já não coincidirá com o de
consequência do ilícito. A sanção, neste sentido amplo, não tem necessariamente
de seguir-se ao ato ilícito: pode precedê-lo.” (KELSEN, 2009, p. 45).

64 “É preciso lembrar que quando afirmamos que uma desvantagem e uma razão convencional, isto
não quer dizer que o autor da norma pretenda ou queira que os sujeitos da norma a obedeçam por
esta razão, ou que façam isso habitualmente, ou que estejam justificados quando o fazem. O sentido
de tudo isso é que a desvantagem é uma razão para se conformar à norma.” (RAZ, 2012, p. 168).
65 Cf. RAZ, Joseph. O conceito de sistema jurídico: uma introdução à teoria dos sistemas jurídicos.
Tradução de Maria Cecília Almeira. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2012 p. 168.
66 “A formulação kelseniana admite, a partir dessa estrutura básica, duas alternativas: ou estabelece
a ligação deôntica entre condutas humanas (atos ou omissões) e sanção, ou entre fatos diversos de
conduta humanas e atos coativos diversos de sanção. Esta última possibilidade, no entanto, parece
ter significado marginal.” (COELHO, 2001, p. 22).
67 “Mas uma ordem jurídica pode, através dos atos de coação por ela estatuídos, reagir não só contra
uma determinada conduta humana, mas ainda, como melhor veremos, contra outros fatos
socialmente nocivos.” (KELSEN, 2009, p. 36).
68 Cf. KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. Tradução João Baptista Machado. São Paulo: Editora
WMF Martins Fontes, 2009. p. 45.
21

Seguindo o postulado, as normas jurídicas têm uma estrutura geral que


pressupõe o fato da sanção, de estrutura geral proibitiva 69. O que acontece, todavia,
quando a norma não parece proibir coisa alguma? Nota-se a ligação entre uma
sanção e uma norma quando esta proíbe algo, mas as normas podem também
prescrever, permitir e definir70. Quando manifestam essas outras funções, todavia,
elas ainda retêm o status normativo. Uma norma que prescreve um comportamento,
ação ou omissão, o torna obrigatório; uma obrigação pode ser facilmente convertida
em proibição. Segundo (Coelho, 2001): “De fato, proibir certa conduta equivale a
obrigar a omissão da mesma conduta, assim como obrigar determinado ato é igual a
proibir sua omissão.”, a obrigação nada mais é que a proibição da conduta oposta,
sancionada normalmente. Quanto ao fato de uma norma permitir, basta a lição da
Teoria Pura:

A definição do Direito como uma ordem coercitiva pode ainda manter-se em


face daquelas normas que conferem competência ou poder para uma
conduta que não tenha o caráter de um ato de coação, ou permitem
positivamente tal conduta, na medida em tais normas são normas não-
autônomas, por estarem em ligação essencial com normas estatuidoras de
atos de coerção (KELSEN, 2009, p. 57).

Assim, pelo fato de as normas não serem vistas enquanto todos individuais,
mas sim como partes de um sistema, e de as peças do sistema poderem ser
interligadas essencialmente, o ordenamento jurídico como um todo mantém um
caráter geral coercitivo71. A consideração de sistema é um fator-chave para
compreender Kelsen e toda a questão da validade e eficácia envolvida em sua
teoria.

A relação das normas com as sanções é especialmente relevante para o


estudo da estática jurídica. A perspectiva estática é aquela que apreende as normas
enquanto regulação das condutas humanas e procura “(…) relacionar as normas
entre si como elementos da ordem em vigor.” (COELHO, 2001, p. 3). É justamente
através de estática jurídica que Kelsen afirma que um ato, para ser jurídico, depende
não apenas da validade geral da ordem a qual está inserido (conforme uma norma
fundamental), mas de um certo conteúdo, ou seja, do fator coativo de cada norma –
seja ela norma autônoma (que tem em si mesma a sanção) ou dependente de outra
estatuidora de sanção. Desta forma Kelsen pontua:

69 Cf. COELHO, Fábio Ulhoa. Para entender Kelsen. São Paulo: Saraiva, 2001. p. 22.
70 Cf. ibid . p. 23.
71 Cf. ibid. p. 25.
22

Se o Direito não fosse definido como ordem de coação mas apenas como
ordem posta em conformidade com a norma fundamental e está fosse
formulada com o sentido de que as pessoas se devem conduzir, nas
condições ditadas pela primeira Constituição histórica, tal como esta mesma
Constituição determina, então poderiam existir normas jurídicas desprovidas
de sanção, isto é, normas que, sob determinados pressupostos,
prescrevessem uma determinada conduta humana, sem que uma outra
norma estatuísse uma sanção para a hipótese de a primeira não ser
respeitada. Nesta hipótese, o sentido subjetivo de um ato posto em
conformidade com a norma fundamental […] seria juridicamente irrelevante
(KELSEN, 2009, p. 59).

Já “Os temas abordados pela teoria estática do direito são, nesse contexto, a
sanção, o ilícito, o dever, a responsabilidade, direitos subjetivos, capacidade, pessoa
jurídica etc (…).” (COELHO, 2001, p. 4).

Kelsen vale-se do conceito de estática e de dinâmica jurídica para subdividir o


estudo do direito, neste se analisa a norma perante o regresso à norma fundante do
sistema, única característica que pode delimitar uma norma de outros fatos, é uma
análise da cadeia de autoridade e validação normativa; já naquele, as normas são
consideras, à primeira vista, como válidas e, doravante, se estuda seu conteúdo,
suas relações internas e a derivação intelectual que se faz entre elas e norma
fundamental72. Raz também se aproveita desta distinção, que ele chama de
justificação (dinâmica ou estática) para dar a conhecer a teoria do supracitado
autor73. Usufrutuemos da estrutura e da própria explicação de Raz com relação as
ideias principais segundo as normas enquanto reguladoras e justificadoras das
condutas e, mais a frente, das ideias mediante a dinâmica jurídica.

São quatro as ideias principais que formam o conceito de norma enquanto


imperativo (mandamentos ou comandos), a primeira é: as normas são padrões
avaliativos; a segunda: elas regulam uma conduta dos homens; em terceiro lugar
está a ideia de que as leis são apoiadas pela perspectiva de dano aplicado em caso
de desobediência (sanção, lato sensu); por fim, as normas são criadas por atos
humanos74. Sintetizando, as normas são fruto de atos de vontade que pretendem

72 Cf. KELSEN, Hans. Teoria geral do direito e do Estado. Tradução Luís Carlos Borges. São
Paulo: Martins Fontes, 2016. p. 164-165.
73 Cf. RAZ, Joseph. O conceito de sistema jurídico: uma introdução à teoria dos sistemas jurídicos.
Tradução de Maria Cecília Almeira. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2012 p. 179.
74 “Quatro ideias principais contribuem para o conceito de norma imperativa de Kelsen: as normas
são (1) padrões de avaliação (2) que regulam a conduta humana, (3) amparadas por razões
convencionais de obediência, sob a forma da perspectiva de que algum dano decorra da
desobediência, e (4) criadas por atos humanos que pretendem criar normas: isto é, estabelecer
padrões de conduta, regulando-a, amparados pela perspectiva de que algum dano decorra da
desobediência, a qual é a motivação convencional.” (RAZ, 2012, p. 163).
23

regular o comportamento humano através do estabelecimento de padrões de


comportamento amparados por sanções, motivos convencionais para obediência 75.
A primeira noção é a norma como padrão de avaliação, ela está logo nas
primeiras páginas da Teoria Pura do Direito e é o que permite a interpretação
normativa dos fatos. Como aponta Kelsen:

A norma funciona como esquema de interpretação. Por outras palavras: o


juízo em que se enuncia que um ato de conduta humana constitui um ato
jurídico (ou antijurídico) é o resultado de uma interpretação específica, a
saber, de uma interpretação normativa (KELSEN, 2009, p. 4).

Portanto, os fatos assim avaliados poderão ser legais ou ilegais, legítimos ou


não. A norma, neste sentido, possui alcance mediato ou imediato. Uma ação está no
alcance imediato de uma norma se o sujeito a pratica dentro das condições
particulares que a norma estabelece para regular a ação (sendo ela prescrita se
contrária a hipótese normada, pressuposto da sanção) 76. Apenas dentro do alcance
imediato é que as normas são padrões de avaliação diretos e podem valorar uma
ação77. Encaixa-se nesse contexto a explanação do caráter hipotético das ordens;
toda norma é uma norma hipotética, mesmo quando formulada de forma categórica,
ou seja, sem a menção de condições para seu cumprimento, pois no mínimo
existem necessidades materiais voltados a existência e possibilidade do
comportamento, assim, é necessário que o objeto normado seja válido; isto é válido
tanto para normas gerais como individuais, nas palavras de Kelsen:

A condição sob a qual toda norma vale – a individual como a geral – é a


síntese de todas as circunstâncias, sob as quais a norma pode ser
obedecida ou violada. Uma norma que estabelece como devido aquilo que
inevitavelmente deve acontecer […] que não pode ser violada, ou uma
norma que estabelece como devido aquilo que inevitavelmente não pode
acontecer […] é sem sentido e, portanto, não é considerada como válida
(KELSEN, 1986, p. 26-27).

A segunda ideia, onde as normas são entendidas como princípios de


regulação da conduta, é simplesmente a descrição do dever ser. Ou seja, a norma
estabelece que o sujeito A deve se portar da maneira B (conforme o conteúdo
normativo) perante as circunstâncias por ela pressupostas ou previstas, é a
informação do dever dos sujeitos78. Neste sentido “Todo guia para a conduta é
também um padrão de avaliação – os atos individuais podem ser avaliados segundo

75 Cf. ibid. p. 163.


76 Cf. ibid. p. 164
77 Cf. ibid. p. 165.
78 Cf. ibid. p. 165
24

estejam ou não de acordo com a conduta prescrita.” (RAZ, 2012, p. 165). Entretanto,
nem todo padrão avaliativo é um guia de ação 79.

O terceiro aspecto é o fato de que as normas são criadas por atos de


vontade, sendo sentido subjetivos. Como foi descrito anteriormente em algumas
passagens esta ideia, expõem-se o assunto segundo entende o próprio Raz, para
ele:

Uma norma derivada passa a existir no momento em que pelo menos um


conjunto adequado de condições de criação seja satisfeito. Todo conjunto
de condições derivadas de criação contém condições de dois gêneros:(a) a
existência de certa norma (a chamada “norma criadora de norma”); e (b) a
ocorrência de certos eventos (eventos criadores de normas) (RAZ, 2012, p.
83).

O item “a” é o preenchimento da condição de um dever ser nunca pode ser


implicado de um ato do ser, deve sempre ser apoiado por outro ato do dever, o que
leva, para Kelsen, a inevitável referência à norma fundamental. O item “b” é o ato
legiferante em si, o ato cujo sentido é a norma, derivado da vontade humana e
apoiado na norma, segundo o evento “a”. Derivada dessas duas condições, Raz
estabelece, conforme Kelsen, quatro condições necessárias para um ato ter como
significado uma norma: “Devem ser (1) atos humanos (2) voluntários (3) e realizados
como uma intenção especial (4) expressa de maneira convencional no próprio ato.”
(RAZ, 2012, p. 83). Nada novo no front, o tópico 1 indica que a norma é a
interpretação objetiva de uma ação humana; o tópico seguinte demonstra o fato
dessa ação específica ser um ato de vontade; e os itens 3 e 4 são indicativos de que
o ato criador da norma é um dever ser subjetivo (a qual é dada caráter objetivo pela
norma)80.

O quarto e último tópico de Raz é a questão da sustentação das normas pelas


razões convencionais, sanções. Novamente, anteriormente já abordou-se de
maneira relativamente extensiva o assunto da sanção, contudo, a descrição deste
fato pelo próprio Raz joga uma luz sobre certos aspectos da questão, ipsis litteris:
“Pode-se afirmar que, para que um padrão de valoração exista, ele deve ser
substanciado, isto é, deve haver uma razão convencional para que certas pessoas
apliquem o padrão” (RAZ, 2012, p. 167).

79 Cf. ibid. p. 166.


80 Cf. ibid. p. 83.
25

À primeira vista, o conceito de razão convencional chama atenção, não está


diretamente em Kelsen. Raz explica que a razão convencional é o motivo, sempre
presente quando as circunstâncias de existência do ato se dão e que ajudam a
determinar o curso de ação a ser tomado. Em outras palavras é um dos motivos que
auxilia sempre que a circunstâncias de existência do ato estejam presentes, a
determinar a escolha de uma ação X (prescrita pela norma), ao invés, de outras
ações (sancionadas ou, pelo menos, não recomendadas normativamente) 81. Raz
informa, ainda, que para Kelsen existem três espécies de razão convencionais: as
vantagens pela aderência a uma norma (ou a outra norma por ela referida), uma
desvantagem o uma referência direta a certo ato diretamente prescrito pela norma 82.
Neste sentido, apenas as desvantagens são utilizadas pelo direito. O conceito de
razão convencional é próximo do de sanção, com ele se confunde, mas em um só
termo traz também a ideia da eficácia global do sistema jurídico, portanto pode ser
dito, de forma simplificada, que a razão é a junção da chance de sofrer a sanção
(fator psicológico, medo) com afirmação de existência da sanção (reconhecimento
normativo) em um certo cálculo de probabilidade da punição 83.

Conclui-se assim, sem adentrar em questões mais específicas que esmiúçam


as relações das normas, com a sanção, entre si e com os conceitos da
jurisprudência tradicional, tais como, por exemplo, direito subjetivo, capacidade
jurídica, direito subjetivo, dentre outros, a análise da norma perante a estática
jurídica. Demonstrou-se que as normas do direito são padrões de avaliação da
conduta dos homens, criadas através de atos de vontade postuladores de um dever
ser objetivo e amparadas por sanções em sentido amplo; portanto, a norma
enquanto entidade abstrata, passa-se, finalmente, ao estudo da dinâmica jurídica,
das normas enquanto sistema.

1.4 Das normas conforme a dinâmica jurídica

Os sistemas normativos jurídicos são essencialmente dinâmicos, as normas


do direito derivam sua validade de outras normas, não através de um processo
81 Cf. ibid. p. 167.
82 Cf. ibid. p. 168.
83 “Deve-se notar também que a razão convencional de uma norma jurídica consiste na combinação
de duas coisas (1) uma sanção estabelecida por uma norma jurídica; (2) o fato de que o sistema
jurídico como um todo seja eficaz. Estes fatos criam certa probabilidade de que os sujeitos da norma
sofram certa desvantagem se violarem a lei, e essa probabilidade de sofrer a desvantagem é a razão
convencional.” (RAZ, 2012, p. 168).
26

lógico de dedução que parte de seu conteúdo e vai até o conteúdo da norma
fundamental, mas porque são criadas conforme a norma fundamental 84. Assim, toda
norma jurídica pertence, necessariamente, a uma ordem que só pode ser
reconhecida como tal por suas partes terem a mesma origem, referirem-se à mesma
norma fundamental pressuposta. A perspectiva dinâmica visa, justamente,
compreender a relação das normas e sistemas com o princípio de origem, a norma
básica (ou fundamental)85. A dinamicidade advém do princípio da não derivação de
um dever ser de um ser (nem do ser por um dever ser) 86.

Sobre a dinâmica, Raz formula que Kelsen define duas características


definidoras do método dinâmico: a primeira, é que uma norma justifica a outra; a
segunda característica é o fato da norma que justifica outra ser uma norma que
regula a criação de outras; justificar, nesse sentido, é demonstrar que a norma
criada é criada segundo o preceituado pela outra 87. Kelsen dirá: “As normas de uma
ordem jurídica têm de ser produzidas através de um ato especial de criação. São
normas postas, quer dizer, positivas, elementos de uma ordem positiva” (KELSEN,
2009, p. 221). Este processo de criação pode reconhecer tanto normas criadas
diretamente pelos atos legislativos, como em sistemas de Civil Law, ou através do
reconhecimento do costume fixado, como nas ordenações pertencentes à Common
Law88.

Um dos aspectos fundamentais das ordens normativas de justificação


dinâmica é a questão da validade. A validade, ou vigência, é a existência específica
da norma89, ela depende de outra norma (justificação) e de um ato de vontade, um
ato legiferante. Este ato, porém, só tem importância, no sentido de necessidade

84 “Uma norma jurídica não vale porque tem um determinado conteúdo, quer dizer, porque o seu
conteúdo pode ser deduzido pela vida de um raciocínio lógico do de uma norma fundamental
pressuposta, mas porque é criada por uma forma determinada – em última análise, por uma forma
fixada por uma norma fundamental pressuposta. Por isso, e somente por isso, pertence ela à ordem
jurídica cujas normas são criadas em conformidade com esta norma fundamental. (KELSEN, 2009, p.
221).
85 “A norma fundamental de um sistema dinâmico é a regra básica de acordo com a qual devem ser
criadas as normas do sistema. Uma norma faz parte de um sistema dinâmico se houver sido criada
de uma maneira que é – em última análise – determinada pela norma fundamental.” (KELSEN, 2016,
p. 165).
86 Cf. RAZ, Joseph. O conceito de sistema jurídico: uma introdução à teoria dos sistemas jurídicos.
Tradução de Maria Cecília Almeira. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2012, p. 173 -174.
87 Cf. ibid. p. 179.
88 Cf. KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. Tradução João Baptista Machado. São Paulo: Editora
WMF Martins Fontes, 2009. p. 221.
89 Cf. ibid. p. 11
27

ontológica, até a entrada da norma em vigor (que ocorre, no caso das normas
gerais, no momento de seu estabelecimento 90). A validade implica no dever, para os
pacientes diretos da norma, de se comportarem segundo o estabelecido e, para os
órgãos da comunidade jurídica, de aplicarem a medida coativa correlata. Portanto, a
validade da norma geral, que se inicia com seu estabelecimento, não se completa
plenamente através dos atos legiferantes e depende, ainda, de sua individualização
– i.e. da criação de normas individuais referentes às gerais (aplicação das normas)
para aplicação da sanção. Para Kelsen: “A ‘validade’ de uma norma geral, i.e. sua
existência específica, não é uma situação estática, mas um processo dinâmico.” 91
(KELSEN, 1991, p. 51, tradução nossa), portanto, a vigência completa da norma
geral depende do reconhecimento de sua validade pelos órgãos e indivíduos que
criam as normas individuais, das autoridades aplicadoras 92.

Além disso, a vigência relaciona-se também com a eficácia. Esta pode ser
definida como: “(…) isto é, do fato real de ela ser efetivamente aplicada e observada,
da circunstância de uma conduta humana conforme a norma se verificar na ordem
os fatos.” (KELSEN, 2009, p. 11). Coelho observa que a validade possui três
pressupostos:

Em resumo, a validade da norma jurídica está condicionada a três


pressupostos: a) competência da autoridade que a editou, derivada da
norma hipotética fundamental; b) mínimo de eficácia, sendo irrelevante a
sua inobservância episódica ou temporária; c) eficácia global da ordem de
que é componente (COELHO, 2001, p. 33).

Relação, no mais, não implica em confusão; dada a definição anterior a


eficácia é um fato do ser – ela é a real ocorrência de comportamentos conforme a
norma quando as hipóteses do comportamento se dão na realidade e a aplicação da
sanção dada a não é observância do devido 93 – que não pode converter-se em dever
ser e, a vigência, é justamente pertencente a ordem do dever ser 94. Clarificando, a
eficácia é o fato dos homens se conformarem a norma, seja conformação ao
comportamento prescrito, oposto ao sancionado, seja à aplicação da coação, no

90 “A norma geral, a hipotética, vale logo que é estabelecida. Ela “vale”, quer dizer, ela é existente
como o sentido de um real ato de vontade.” (KELSEN, 1986, p. 61-62).
91 The ‘validity’ of a general norm, i.e.., its specific existence, is not a static state of affairs, but a
dynamic process.”
92 Cf. KELSEN, Hans. Teoria geral das normas. Tradução José Florentino Duarte. Porto Alegre:
Fabris, 1986. p. 63.
93 Cf. ibid. p. 4.
94 Cf. KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. Tradução João Baptista Machado. São Paulo: Editora
WMF Martins Fontes, 2009. p. 11.
28

sentido de realmente sofrerem a punição 95. Vista dessa maneira, a eficácia é uma
análise do que acontece na realidade, portanto, um fato do ser e não uma qualidade
do dever ser. No entanto, este é o ponto de convergência entre ambas
características, uma norma só é válida se for, em certa medida, eficaz; a ineficácia
absoluta da norma implica na sua invalidade (não existência), e assim, a eficácia é
uma condição de vigência96.

A questão da eficácia da norma é relevante, consequentemente, tanto quanto


à norma considerada individualmente, quanto à ordem jurídica como um todo. Uma
norma jurídica jamais observada, plenamente ineficaz, é inválida; por exemplo, se
houvesse uma lei vigente que exigisse a manutenção de todos os telégrafos
municipais a cada seis meses, pela sua clara ineficácia, não seria mais válida. Uma
norma que propusesse um ato naturalmente impossível, como o dever de não
morrer, ou de voar apenas pelas forças do próprio corpo, seria absolutamente
ineficaz e não vigente97, independentemente de seu processo de criação conforme a
ordem. A ineficácia decorre da não aplicação reiterada e prolongada, casos pontuais
e isolados de ineficácia em nada interferem na vigência. 98

Do ponto de vista sistêmico, o que se faz é avaliar a eficácia global do


ordenamento, ou seja que ele seja obedecido e suas sanções aplicadas de maneira
geral. Uma ordem social é considerada como ordem jurídica caso seja a única
ordem coativa em seu território, assim, Kelsen demonstra:

Se esta ordem de coação é limitada no seu domínio territorial de validade a


um determinado território e, dentro desse território, é por tal forma eficaz
que exclui toda e qualquer outra ordem de coação, pode ela ser
considerada como ordem jurídica e a comunidade através dela constituída
como “Estado”, mesmo quando este desenvolva externamente – segundo o
Direito internacional positivo – uma atividade criminosa (KELSEN, 2009, p.
53).

95 Eficácia do Direito significa que os homens realmente se conduzem como, segundo as normas
jurídicas, devem se conduzir, significa que as normas são efetivamente aplicadas e obedecidas.
(KELSEN, 2016, p. 55).
96 “Porém uma norma jurídica deixará de ser considerada válida quando permanece duradouramente
ineficaz. A eficácia é, nesta medida, condição da vigência, visto ao estabelecimento de uma norma se
ter de seguir sua eficácia para que ela não perca a sua vigência (KELSEN, 2009, p.12).
97 “Uma norma que preceituasse um certo evento que de antemão se sabe que necessariamente se
tem de verificar, sempre e em toda parte, por força de uma lei natural, seria tão absurda como uma
norma que preceituasse um certo fato que de antemão se sabe que de forma alguma se poderá
verificar, igualmente por força de uma lei natural.”
98 Cf. COELHO, Fábio Ulhoa. Para entender Kelsen. São Paulo: Saraiva, 2001. p. 30.
29

O ordenamento assim concebido contém a eficácia necessária que valida


todas as demais normas. A medida de sua eficácia é realizada em termos gerais,
globais, portanto: “A validade da ordem jurídica, em suma, não depende da eficácia
de todas as normas que a compõem.” (COELHO, 2001, p. 32). Se se verifica,
contudo, a ineficácia geral da ordem, todas suas leis perdem a vigência e a ordem
que a substituir pode ou não recepcionar suas regras 99. A troca revolucionária de
uma ordem jurídica por outra, portanto, implica na desconsideração do princípio da
legitimidade, este é definido da seguinte maneira por Kelsen:

O princípio de que a norma de uma ordem jurídica é válida até sua validade
terminar por um modo determinado através desta mesma ordem jurídica, ou
até ser substituída pela validade de uma outra norma desta ordem jurídica,
é o princípio da legitimidade (KELSEN, 2009, p. 233).

Vigência e eficácia, destarte, apenas se convergem quanto a ineficácia


absoluta, seja do sistema ou da norma individual.

Outro aspecto da vigência das normas é o âmbito geográfico e temporal de


validade. Os ordenamentos, em última instância, se derivam de fatos humanos e
estes são realizados em determinados locais e em certo tempo. Uma norma que
vale, vale em algum lugar e para aquele momento, não se pode inferir que ela valha
em qualquer outro espaço e que valeu no passado, ou valerá no futuro. De acordo
com Kelsen:

A vigência de todas as normas em geral que regulam a conduta humana, e


em particular a das normas jurídicas, é uma vigência espaço-temporal na
medida em que as normas têm por conteúdo processos espaço-temporais.
Dizer que uma norma vale significa sempre dizer que ela vale para um
qualquer espaço ou para um qualquer período de tempo, isto é, que ela se
refere a uma conduta que somente se pode verificar em um certo lugar ou
em um certo momento (se bem que porventura não venha de fato a
verificar-se) (KELSEN, 2009, p. 13).

As normas jurídicas positivas são colocadas no mundo por atos de vontade e


visam conduzir as ações de homens, naturalmente, todos esses fatores se
encontram no mundo, no ser, mesmo como um dever ser, a positividade da norma a
concreta dentro destes dois conceitos limites: espaço e tempo. Contudo, não é
impossível que uma norma seja devida em todo lugar e sempre, nesta hipótese o
que ocorre é uma não limitação de seu espaço e tempo (não que ela valha
intemporalmente e de forma não-espacial) - delimitar o espaço e o tempo de
vigência da norma é uma função do conteúdo da norma, especialmente do conteúdo

99 Cf. COELHO, Fábio Ulhoa. Para entender Kelsen. São Paulo: Saraiva, 2001. p. 33.
30

da norma fundamental100. Quanto ao tempo, as normas podem conter seu próprio


tempo de validade limitado (por si ou por outra norma superior) 101, resta ainda dizer
que as normas apesar de, em geral, visarem condutas futuras, podem retroagir para
aplicar uma sanção a um ato praticado antes de sua entrada em vigor e retirar a
validade de outra norma retroativamente102, como resume Kelsen:

É verdade que aquilo que já aconteceu não pode ser transformado em não
acontecido; porém, o significado normativo daquilo que há um longo tempo
aconteceu pode ser posteriormente modificado através de normas que são
postas em vigor após o evento que se trata interpretar (KELSEN, 2009, p.
15).

A validade, dentro da perspectiva que interessa, pode ser ainda delimitada em


domínio pessoal e material de validade. O pessoal diz respeito a: “O domínio
pessoal de validade refere-se ao elemento pessoal da conduta fixada pela norma,
também esse domínio pode ser limitado ou ilimitado.” (KELSEN, 2009, p. 15), isto
corresponde a ideia de que uma ordem pode querer valer para todos os homens ou
apenas para os homens determinados, como é o caso geralmente das ordens
jurídicas positivas. O domínio material é a limitação do conteúdo a que as normas
podem versar, novamente tem-se o duo de ilimitado e limitado, assevera Kelsen:
“Pode falar-se ainda de um domínio material de validade tendo em conta os diversos
aspectos da conduta humana normada: aspecto econômico, religioso, político, etc.”
(KELSEN, 2009, p. 15-16).

Tantas referências já fizemos à norma fundamente sem, contudo, adentrar em


sua conceituação e natureza, é chegada a hora de enfrentarmos o assunto. A norma
fundamental (ou básica) é a chave de interpretação dos sistemas normativos, morais
ou legais103, e é essencial para a explicação dos sistemas estáticos e dinâmicos. A
primeira perspectiva da norma fundamental que explana-se é dela enquanto
fundamento de validade.

100 “Neste caso, ela não vale a-espacial e intemporalmente, mas apenas sucede que não vigora para
um espaço determinado e para um período de tempo determinado, isto é, os seus domínios de
vigência espacial e temporal não são limitados. O domínio de vigência de uma norma é um elemento
do seu conteúdo, e este conteúdo pode, como mais adiante veremos, ser predeterminado até certo
ponto por uma norma superior.” (KELSEN, 2009, p. 14).
101 “Como a outro propósito já foi referido, o domínio da validade de uma norma, especialmente o
seu domínio temporal de validade, pode ser limitado, quer dizer: o começo e o fim da sua validade
podem ser determinados, por ela própria ou por uma norma mais elevada que regula sua produção.”
(KELSEN, 2009, p. 232-233).
102 Cf. KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. Tradução João Baptista Machado. São Paulo:
Editora WMF Martins Fontes, 2009. p. 14.
103 “Kelsen regards the concept of the basic norm as essential to the explanation of all morative
systems, moral as well as legal.” (RAZ, 1998, p. 45).
31

Descreveu-se anteriormente que as normas, por participarem da categoria do


dever ser, só podem ser derivadas de outras normas, um fato do ser nunca se
converte em fato do dever ser pois há uma ponte intransponível entre ambos os
conceitos dá-se ênfase que a necessidade dos atos de vontade, do mundo do ser,
para a criação de normas. Desta forma, as normas são derivadas de outras normas
que regulam sua criação (seja das normas criadas por atos legiferantes ou o
reconhecimento do costume); caso se faça o questionamento acerca do porquê uma
determinada lei é válida, será inevitavel traçar uma corrente de normas, na qual
cada elo valida o elo anterior. Fazendo este exercício inevitavelmente se chegará
em uma constituição, que por sua vez pode ter sua origem em outra constituição
anterior, e assim por diante até o ponto de uma primeira constituição histórica, cuja
validade não é derivada de outra, mas posta através de um ato revolucionário, ou de
conquista, mas o retorno a esta primeira constituição, cujo os atos materiais de
criação são do mundo ser, não responde à exigência de validação por um dever ser,
por uma norma, para responder a esta questão deve haver uma norma que não seja
posta, não positiva, e que sirva como validade desta primeira ordem histórica, na
formulação de Kelsen:

Dado que o fundamento de validade de uma norma somente pode ser uma
outra norma, este pressuposto tem de ser uma norma: não uma norma
posta por uma autoridade jurídica, mas uma norma pressuposta, quer dizer,
uma norma que é pressuposta sempre que o sentido subjetivo dos fatos
geradores de normas postas de conformidade com a Constituição é
interpretado como o seu sentido objetivo. Como essa norma é a norma
fundamental de uma ordem jurídica, isto é, de uma ordem que estatui atos
coercitivos, a proposição que descreve tal norma, a proposição fundamental
da ordem jurídica estadual em questão, diz: devem ser postos atos de
coerção sob os pressupostos e pela forma que estatuem a primeira
Constituição histórica e as normas estabelecidas em conformidade com ela.
(Em forma abreviada: devemos conduzir-nos como a Constituição
prescreve.) (KELSEN, 2009, p. 224).

A norma fundamental, portanto, não possui um conteúdo definido, mas é uma


necessidade de todo e qualquer sistema normativo. Ela é o último elo da corrente de
validação e evita um regresso ao infinito 104. Em teorias metafísicas do direito este
princípio último de validação da ordem, ocupado pela norma fundamental, é papel
ou da natureza, ou de uma entidade superior ou, por fim, de uma realidade superior

104 “In the law the autonomy of the legal norms is secured by the fact that they are all links in what
may be called chains of validity. The term is not used by Kelsen, but the idea is essential to his
philosophy.” (RAZ, 1998, p. 50).
32

e verdadeira (como a qual se pode derivar da metafísica platônica) 105. Não somente
ela é princípio de validade, mas é a característica que permite reconhecer a unidade
dos sistemas normativos, i.e. o fator que torna um emaranhado de normas em um
conjunto unificado. Joseph Raz, 1998, comenta em um artigo que a teoria da norma
básica é derivada a partir de dois axiomas: o primeiro informa que uma norma que
autorize, direta ou indiretamente, a criação de outra e a assim criada são
necessariamente partes do mesmo ordenamento; o segundo axioma afirma que
todas as normas de um sistema derivam sua validade de uma única norma 106.

Outro aspecto da norma fundamental é a sua necessidade lógica do sistema,


ou seja, ela enquanto princípio de unidade. A unidade advém da necessidade dos
sistemas de uma norma não positiva 107 da qual podem derivar todas as normas
positivas (conforme a já referido postulado de que dever ser não deriva de um ser), é
uma necessidade lógica e informativa, só através dela se pode pensar em um
conhecimento fenomenológico108 condizente com o método transcendental.

É justamente o fato de terem a mesma origem que torna as normas partes de


um mesmo sistema partes de uma unidade, esta característica não auto evidente é o
princípio de origem e fornecedor de unidade e uma das mais importantes funções da
norma fundamental dentro da teoria kelseniana. Desta maneira, a norma básica,
segundo Raz: “Ela provem o ponto de partida não factual e essencial para a
explicação da normatividade, e garante que todas as leis de um sistema pertençam
à mesma corrente de validade.” (RAZ, 1998, p. 47-67) 109. Em resumo:

105105 RAZ, Joseph. Kelsen’s theory of the basic norm. In: PAULSON, S. L.; PAULSON, B. L.
Normativity and Norms. Clarendon Press Oxford – New York, 1998. p. 47-67.

106 “Kelsen accepts two propositions which he considers too self-evident to require any detailed
justification. They can be regarded as axioms of his theory. The first says that two laws, one of which
directly or indirectly authorizes the creation of the other, necessarily belong to the same legal system
[…] The second axiom says that all the laws of a legal system are authorized, dire ctly or indirectly, by
one law (RAZ, 1998, p. 47-67).
107 “He overcomes this problem by postulating that there is in every system one non-positive law –
alaw which authorizes all the fundamental constitutional laws and the existence of which does not
depend on the chance action of any law-creating organ, but is a logical necessity.” (RAZ, 1998, p. 48).
108 Kelsen vale-se do argumento da unidade fornecida pela norma fundamental para abordar a
questão da epistemologia e da aplicação da lógica aos postulados da ciência jurídica (e
mediatamente aos ordenamentos). Ao falar do princípio da não contradição, por exemplo, ele aplica o
conceito de unidade sistemática das normas para explicar o fato da ciência jurídica ajudar na
construção de seu objeto a medida em que o conhece – o princípio da não contradição só é aplicado
aos postulados, mas como os postulados também constroem o direito, as contradições vão sendo
retiradas à medida que conhecidas e descritas (Cf KELSEN, 2009, p. 228-229).
109 No original: It provides the non factual starting-point essential to the explanation of normativity,
and it guarantees that all the law of one system belong to the same chain of validity.
33

A função desta norma fundamental é: fundamentar a validade objetiva de


uma ordem jurídica positiva, isto é, das normas, postas através de atos de
vontade humana, de uma ordem coerciva globalmente eficaz, quer dizer:
interpretar o sentido subjetivo destes atos como seu sentido objetivo
(KELSEN, 2009, p. 225-226).

O último aspecto que nos interessa, ainda que marginalmente, é a natureza


da norma fundamental. Kelsen apresenta, em momentos diferentes de sua carreira,
duas hipóteses sobre o tema: a primeira, e mais conhecida, é que a natureza da
norma básica é hipotética, ela é uma hipótese; já em outro momento, ela é uma
ficção, um als-ob110. Entretanto, existe um debate sobre a precedência delas, de
qualquer forma, neste trabalho serão explanadas ambas as formas, ainda que de
forma resumida.

Compreende-se que norma fundamental transforma o dever ser (sentido


subjetivo) de um ordenamento faticamente determinado e globalmente eficaz em
normas, ou seja, em sentido objetivo (ela confere validade ao sistema), mas como
se dá esse processo?

Uma norma é reconhecida como fundamental quando ela não pode ter sua
validade derivada através de um silogismo, ou seja, quando não se pode afirmar,
como a premissa menor desse silogismo, que ela é válida por ter sido posta através
de um ato de vontade de algum sujeito (a menos que este sujeito seja considerado
como em um patamar supremo, como Deus), consequentemente: para Kelsen: “Se a
validade de uma norma não pode ser fundamentada desta maneira, tem de ser
posta como premissa maior no topo de um silogismo, sem que ela própria possa ser
afirmada como conclusão de um silogismo que fundamente sua validade.” (KELSEN,
2009, p. 226). Não sendo o sentido de um ato de vontade, segue-se que esta norma
tem de ser o sentido de um ato do pensamento (i.e. um ato cujo o sentido é dar a
conhecer algo)111 e não é derivada de nenhuma outra.

110 Cf. DUXBURY, Neil. The Basic Norm: An Unsolved Murder Mystery. Londres: London School of
Economics and Political Science, 2007. p. 2-3.
111 “Se, porém, a norma fundamental não pode ser o sentido subjetivo de um ato de vontade, então
apenas pode ser o conteúdo de um ato do pensamento. Por outras palavras: se a norma fundamental
não pode ser uma norma querida, mas a sua afirmação na premissa maior de um silogismo é
logicamente indispensável para a fundamentação da validade objetiva das normas, ela apenas pode
ser uma norma pensada.” (KELSEN, 2009, p. 227).
34

Considerando o ponto de vista do direito positivo 112, e da jurisprudência


enquanto ciência da norma positivada, a autoridade última da corrente de validade é
a que estabelece a primeira constituição histórica 113; sobre a norma básica, que tem
o sentindo de um ato do pensamento, a ciência jurídica pode apenas,
primeiramente, constatar que a norma fundamental é pressuposta ao sistema
jurídico enquanto ordenamento positivo globalmente eficaz, e que ela é pressuposto
lógico indispensável para compreender as ordens como válidas 114, ou seja, sem ela
não é possível reconhecer o objeto da ciência jurídica 115, em resumo: ela é
pressuposta a todo pensamento jurídico.

A natureza hipotética se dá justamente para responder à questão subjacente


em toda nossa explicação: por que os atos reais, que ocorrem no tempo, espaço e
que são perceptíveis sensorialmente, podem ser considerados normas e não apenas
eventos? Respondendo a esta questão.

Para Kelsen:

Essa norma fundamental estabelece a validade do Direito positivo e


expressa o caráter hipotético-relativo de um sistema de normas investido
apenas da validade do Direito positivo. Ela não é apenas a hipótese de uma
teoria especial do Direito. Ela é simplesmente a formulação do pressuposto
necessário para qualquer compreensão positivista de materiais jurídicos
(KELSEN, 2016, p. 564).

Atrelado ao limite histórico máximo da primeira constituição histórica, o


pensamento jurídico-positivista necessita desta hipótese para justificar
materialmente e absolutamente a ordem assim estabelecida, para conferir

112 Mesmo dentro de vista de um sistema de normas morais religiosas a norma fundamental que
estabelece que devemos obedecer a Deus não é ela própria posta por Deus: “E se a norma: devemos
obedecer às ordens de Deus, é aceita como posta por Deus, não poderá ser fundamento de validade
das normas postas por Deus, pois também ela é uma norma posta por Deus.” (KELSEN, 2009, p.
227). Lembremos também que esta norma fundamental não pode ser estabelecida pela ciência
normativa respectiva, esta não tem autoridade legislativa e só pode dar a conhecer seu objeto.
113 Cf. KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. Tradução João Baptista Machado. São Paulo:
Editora WMF Martins Fontes, 2009. p. 227.
114 Cf. ibid. p. 227.
115 Cf. DUXBURY, Neil. The Basic Norm: An Unsolved Murder Mystery. Londres: London School of
Economics and Political Science, 2007. p. 3.
35

juridicidade ao evento histórico116 de forma formal, sem nunca ultrapassar os limites


materiais tão caros à ciência positiva do direito 117.

A outra formulação que se dá à norma fundamental é a de uma ficção, sendo


ela um mero ato de pensamento, conforme Kelsen:

A norma fundamental de uma ordem jurídica ou moral positiva – como


evidentemente precedeu – não é positiva, mas meramente pensada, e isto
significa uma norma fictícia, não o sentido de um real ato de vontade, mas
sim de um ato meramente pensado. Como tal, ela é uma pura ou
“verdadeira” ficção no sentido da vaihingeriana Filosofia do Como-se, que é
caracterizada pelo fato de que ela não semente contradiz a realidade, como
também é contraditória em si mesma (KELSEN, 1986, p. 328).

Neste sentido a norma fundamental é uma ficção por ela não ser o real
sentido de um ato de vontade e por conferir autoridade a uma outra autoridade, fato
que demandaria a existência de uma autoridade superior capaz de assim conferir
este atributo à outra (hipótese que levaria a um regresso ao infinito e que derrogaria
o limite último da primeira constituição histórica) 118. A função dela continua, contudo,
sendo epistemológica, e a natureza ficcional 119 é “(…) um recurso do pensamento,
do qual se serve se não se pode alcançar o fim do pensamento com o material
existente.” (Vaihinger apud Kelsen, 1986, p. 329).

116 “A norma fundamental é um pressuposto indispensável, porque, sem ela, o caráter normativo do
evento histórico fundamental não poderia ser estabelecido. Este ato último, ao qual recorre o jurista
positivamente e além do qual ele não prossegue, é interpretado com um ato de legiferação, já que é
expressado na norma fundamental, a qual, por sua vez, não é justificada por uma norma superior e,
portanto, transmite apenas validade hipotética.” (KELSEN, 2016, p. 566).
117 “Qualquer tentativa de ultrapassar os fundamentos relativo-hipotéticos do Direito positivo, isto é,
de abandonar uma norma fundamental hipotética por uma norma fundamental absolutamente válida,
que justifique a validade do Direito positivo (uma tentativa que, por óbvios motivos políticos, ocorre
regularmente), significa o abandono da distinção entre Direito positivo e Direito natural. Significa a
invasão do tratamento científico do Direito positivo pela teoria do Direito natural, e, na medida do
possível, uma analogia com as ciências naturais, uma intrusão da metafísica no domínio da ciência.”
(KELSEN, 2016, p. 565).
118 Cf. KELSEN, Hans. Teoria geral das normas. Tradução José Florentino Duarte. Porto Alegre:
Fabris, 1986. p. 329.
119 “Vaihinger regarded fictions as useful falsities, as does Kelsen here. The basic norm, he is
arguing, can still be presupposed as if it exists as the meaning of an actual act of will, even though it
does not.” (DUXBURY, 2007, p. 7).
36

CAPÍTULO 2 – DO PAPEL DOS VALORES NA TEORIA DAS NORMAS DE HANS


KELSEN

2.1. A norma enquanto juízo de valor

Adentramos na segunda parte da investigação onde será tratado o tema da


relação entre as normas e os valores. Ao início da Teoria Pura do Direito, Kelsen
afirma que: “O juízo segundo o qual uma conduta real é tal como deve ser, de
acordo com uma norma objetivamente válida, é um juízo de valor, e, neste caso, um
juízo de valor positivo.” (KELSEN, 2009, p. 19). Percebe-se, então, que as normas
podem ser concebidas como valores e que, portanto, existe uma íntima relação das
normas com os juízos valorativos. Entretanto, não são todos os tipos de juízos
comumente relacionados com o direito pertencentes ao âmbito da ciência jurídica
enquanto teoria pura, apenas os chamados juízos que lidam com os chamados
valores de Direito e não com valores de políticos 120.

Antes de prosseguir na específica questão dos juízos de valores na relação


com a teoria das normas, é preciso conceituar de maneira mais abrangente: (a)
juízos e (b) valores.

Kelsen define assim os juízos: “O juízo jurídico de valor de que uma conduta é
lícita ou ilícita é uma asserção de uma relação afirmativa ou negativa entre a
conduta e uma norma cuja existência ´pressuposta pela pessoa que faz o juízo.”
(KELSEN, 2001, p. 204-205). Desta afirmativa deriva-se o fato de os juízos serem
asseverações com alvo nas relações entre os comportamentos realizados no ser
(conforme as hipóteses de realização preestabelecidas) e o dever ser positivo, ou
seja, do comportamento enquanto prescrito ou proibido pela norma válida de um
sistema121. Os juízos em si, contudo, contém uma conceituação relevante nas
ciências lógicas e filosóficas.

A estrutura básica de um juízo é tripla, constitui-se de um sujeito, de um


predicado e de uma cópula, assim: A (sujeito) é (cópula) B (predicado). Nas palavras
de Mora:

120 Cf. KELSEN, Hans. O que é justiça?: A justiça, o direito e a política no espelho da ciência.
Tradução Luís Carlos Borges. São Paulo: Martins Fontes, 2001. p. 203-204.
121 Cf. ibid. p. 205.
37

Os juízos são compostos por três elementos. Um deles é o sujeito, que,


sendo um conceito, pode ser qualificado de conceito-sujeito. O conceito-
sujeito, simbolizado mediante a letra 'S', distingue-se do termo que
desempenha a função de sujeito na oração, assim como do JUÍZO objeto ao
qual se refere. Outro elemento é o predicado, que, sendo um conceito, pode
ser qualificado de conceito-predicado. O conceito-predicado, simbolizado
pela letra 'P', distingue-se do termo que desempenha a função de predicado
na oração, assim como do objeto ao qual se refere. Outro elemento, por fim,
é a cópula, que liga o conceito-sujeito com o conceito-predicado. A cópula
afirma ('é') ou nega ('não é') o predicado do sujeito (MORA, 1994, p. 1609).

A formulação admite, assim, a unificação de dois conceitos (um sujeito e outro


predicado) a partir de uma cópula. Na específica formulação kelseniana, para ser um
juízo de valor o julgador deve ligar, através desta mesma estrutura básica, um
comportamento (sujeito) com o comportamento devido ou proibido (pressuposto da
sanção) estabelecido por um dever ser, mais especificamente, com um dever ser
objetivo, uma norma122. O sujeito julgador, pressupondo a norma, avalia a ação do
fato perante o ordenamento jurídico, também pressuposto como válido. Do juízo,
concebido sempre como objetivo em relação a sua função gnoseológica 123, resulta
no valor bom (aquele que é conforme o dever jurídico) e no valor mau (aquele que
indica o comportamento pressuposto da sanção). Sobre o juízo é possível também
avaliar sua veracidade em relação ao ordenamento, por exemplo, a afirmação de
que o sujeito A que praticou delito B, punível segundo a norma X válida dentro do
ordenamento Y, deve receber punição Z é verdadeira na medida em que a sanção é
realmente Z naquele sistema de leis124.

O processo judicante, aplicando-se o método do juízo de valor objetivo (tanto


em relação aos valores quanto à sua função de ato do pensamento), é uma
avaliação praticado pelo julgador da relação entre um sujeito (conceito), aqui um ato
humano efetivamente realizado, e um dever ser, uma norma objetivamente válida,
que resulta em uma avaliação positiva ou negativa conforme o conteúdo da norma.
O julgador pressupões a validade da norma e exerce uma função de conhecimento,
não estabelece deveres através de atos de vontade e nem expressa seus desejos e
preferências pessoais – age, outrossim, como observador neutro. Esta é a definição
de juízos de valor próprio.

122 Cf. KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. Tradução João Baptista Machado. São Paulo:
Editora WMF Martins Fontes, 2009. p. 22.
123 “Como função do conhecimento tem um juízo de ser sempre objetivo, isto é, tem de formular-se
independentemente do desejo e da vontade do sujeito judicante.” (KELSEN, 2009, p. 22).
124 Cf. KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. Tradução João Baptista Machado. São Paulo:
Editora WMF Martins Fontes, 2009. p. 23.
38

Os juízos de valor impróprios contêm a mesma fórmula básica de sujeito,


predicado e cópula. Todavia, ao sujeito é ligado um dever ser não objetivo, um
desejo de um sujeito posto na realidade através de um ato de vontade sem o
embasamento de uma norma fundamental qualquer. Uma ação assim, correlata à
ação do salteador na estrada ou de um qualquer cujo desejo vise a mudança do
comportamento de outrem, é um dever ser, mas não uma norma 125 e exprime um
valor subjetivo que:

Devemos distinguir do valor constituído através de uma norma considerada


objetivamente válida do valor que consiste, não na relação com uma tal
norma, mas na relação de um objeto com o desejo ou a vontade de um ou
de vários indivíduos a tal objeto dirigida (KELSEN, 2009, p. 21).

Outra espécie de juízo de valor impróprio ocorre quando se concebem os


valores como relação entre um sujeito e seu interesse efetivo em um objeto 126. O
valor, nesta concepção, é um ato psicológico onde um indivíduo valora determinado
objeto como desejado, se o objeto corresponde ao desejo, é bom, a contradição, o
valor negativo. Assim sendo: “O juízo não é um enunciado de “dever ser”, mas de
“ser”.” (KELSEN, 2001, p. 205). Logo, valores e fatos, segundo o conceito dado, são
equivalentes e, portanto, confundem ser e dever ser de forma injustificável.

Os ‘valores’ dessa maneira descritos fazem parte do mundo do ser. Se


levarmos em consideração, como Kelsen 127, a teoria dos valores como relação 128 e
os juízos de valor assim derivados, perceber-se a que eles não diferem de juízos de
realidade, sendo apenas espécie destes129. Justamente nisso reside o quid essencial
do juízo de valor, nas palavras de Kelsen: “Apenas se concebermos o valor como
uma relação entre um objeto e uma norma faz sentido traçar uma distinção nítida
entre juízos de valor e juízos de fato.” (KELSEN, 2001, p. 206). A objetividade dos
julgamentos de valor impróprio é derivada unicamente do julgador não levar em
conta seus desejos e julgar como existente o desejo dos outros em relação ao
sujeito. A conformidade dos juízos à realidade, chamado de critério da verdade, é

125 Cf. ibid. p. 49.


126 O representante desta concepção de valor é Ralph B. Perry (KELSEN, 2001, p. 205) e é
conforme a formulação deste que Kelsen desenvolve todo seu embate, que resulta na refutação da
visão psicologizante dos valores em valor de um conceito mais alinhado com a teoria de Urban.
127 Cf. KELSEN, Hans. O que é justiça?: A justiça, o direito e a política no espelho da ciência.
Tradução Luís Carlos Borges. São Paulo: Martins Fontes, 2001. p. 205.
128 Urban, Wilbur M. Value and existence. The journal of philosophy, psychology and scientific
methods, Nova York, v. 13, n. 17, p. 449-465, ago. 1916. p. 451.
129 Cf. KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. Tradução João Baptista Machado. São Paulo:
Editora WMF Martins Fontes, 2009. p. 19.
39

uma análise da realidade de algo, não de sua conformidade a algum valor, esta é a
objetividade tanto alardeada aqui quanto aos valores 130.

Apesar da objetividade afirmada, Kelsen adverte a existência de uma


subjetividade inerente, ainda que de importância subsidiária, a todo juízo de valor,
pois, todo julgador é um humano. Assim Kelsen descreve: “Juízos de valor, porém,
têm caráter subjetivo porque são baseados, em última análise, na personalidade do
sujeito que julga, em geral, e no elemento emocional de sua consciência, em
particular.”(KELSEN, 2001, p. 350).

Outra distinção se faz necessária para a compreensão dos juízos. Kelsen diz
que os valores e os juízos podem ser usados para expressar relações de meio e fim,
de adequação de um meio para alcançar determinada finalidade. Neste sentido,
adequação a um fim constitui um valor positivo e não adequação, o valor negativo 131.
O fim e o meio de uma relação podem ser pensados enquanto relação do ser, como
descritas na lei natural, ou como causa e efeitos em sentido amplo, como
consideradas nas relações de imputação. Conforme já abordado, existe um
paralelismo inegável entre causa e efeito enquanto causalidade e imputação, onde
este meio e o fim são determinados através de um ato de vontade cujo significado é
uma norma. Portanto, Kelsen diz: “O valor que reside na correspondência-ao-fim é,
portanto, idêntico ao valor que consiste na correspondência-à-norma, ou ao valor
que consiste na correspondência-ao-desejo.” (KELSEN, 2009, p. 24-25). Juízos que
fazem referência à norma são objetivos, e essa é outra forma que eles podem
assumir.

Quanto ao encaixe dos juízos de valor kelsenianos na teoria geral dos juízos,
parte-se da descrição dada por Abbagnano (2007). No verbete sobre juízo de seu
dicionário filosófico, diz:

Este termo [Juízo], oriundo da linguagem jurídica, possui quatro significados


principais: 1a faculdade de distinguir e avaliar ou o produto ou o ato desta
faculdade, bem como sua expressão; 2° uma parte da lógica; 3 e em relação
a uma proposição, ato de assentir, discordar, afirmar ou negar; 4 e operação
intelectual de síntese que se expressa na proposição (ABBAGNANO, 2007,
p. 591).

130 Cf. KELSEN, Hans. O que é justiça?: A justiça, o direito e a política no espelho da ciência.
Tradução Luís Carlos Borges. São Paulo: Martins Fontes, 2001. p. 350.
131 “Adequação ao fim (Zweckmässigkeit) é o valor positivo, contradição com o fim (Zweckwidrigkeit),
o valor negativo.” (KELSEN, 2009, p. 24).
40

Com a descrição básica de Kelsen sobre o conceito de juízo de valor jurídico


em sua teoria é possível encaixá-la dentro de algum dos significados apresentados.

O primeiro dos significados é o mais comum uso do termo, classificando a


faculdade de escolha, de avaliação, inerente aos seres pensantes (lato sensu).
Neste sentido, julgar é avaliar as “…qualidades sensíveis com o sensório e a
substância das coisas com um meio diferente.” (ABBAGNANO, 2007, p. 591), a
natureza aristotélica desta forma de pensar o juízo, retêm sua importância até hoje e
manteve-se mais ou menos inalterada em sua essência. Porém, a formulação de
Kelsen não diz respeito a uma faculdade de escolha, ela informa, através dos atos
do pensar de um sujeito julgador, que comportamento A (do campo do ser) é
conforme ou não o dever ser B (uma norma positiva ou não); julgar é um ato de
conhecimento132 e não de escolha133.

A segunda possibilidade, é definir o juízo como parte da lógica, como método


e processo mental134. Nesta concepção, Abbagnano (2007, p. 591), coloca como
representante primeiro Cícero que chama de juízo o processo dialético postulado
pelos estoicos. Julgar é analisar as proposições, qualificando-as de verdadeiras ou
falsas através de um procedimento dialético. Para Kelsen, um julgamento baseado
em dois fatos do ser, como, por exemplos, dois desejos ou duas realidades, são
juízos de ser, não de valor; um juízo de valor tem de, enquanto juízo propriamente
dito, ligar um fato do ser e um do dever ser 135. Assim, também se exclui do âmbito
desta espécie de juízos as formulações que conectam dois atos de pensamento,
pois elas ou se referem a dois atos do ser descritos conforme a experiência do

132 Quando designamos os juízos de valor que exprimem um valor objetivo como objetivos, e os
juízos de valor que exprimem um valor subjetivo como subjetivos, devemos notar que os predicados
“objetivo” e “subjetivo” se referem aos valores expressos e não ao juízo como função do
conhecimento. Como função do conhecimento tem um juízo de ser sempre objetivo, isto é, tem de
formular-se independentemente do desejo e da vontade do sujeito judicante.” (KELSEN, 2009, p. 22).
133 “Nesse sentido, o J. é uma atividade valorativa, embora possa expressar-se (como de fato o fez
com freqüência) por fórmulas verbais diversas, como regras, normas, exortações, imperativos,
pareceres, conselhos, conclusões e, em geral, fórmulas que expressam uma escolha ou um critério
de escolha.” (ABBAGNANO, 2007, p. 591).
134 “2) Juízo é o processo mental mediante o qual decidimos conscientemente que algo é de um
modo ou de outro” (MORA, 1994, p. 1608).
135 “Se designarmos como juízo de valor o juízo através do qual determinamos a relação de um
objeto com o desejo ou vontade de um ou vários indivíduos dirigida a esse mesmo objeto e, desse
modo, considerarmos bom o objeto quando corresponde àquele desejo ou vontade, e mau, quando
contradiz aquele desejo ou vontade, este juízo de valor não se distingue de um juízo de realidade,
pois que estabelece apenas a relação entre dois fatos da ordem do ser e não a relação de um fato da
ordem do ser com uma norma da ordem do dever-ser objetivamente válida. Constitui apenas um
particular juízo de realidade.” (KELSEN, 2009, p. 21).
41

sujeito judicante, ou a dois desejos (também fatos do ser), ou ainda a dois deveres
ser (subjetivos)136 – em resumo, juízos de valor não podem pertencer, pelo menos
dentro da concepção metodológica da filosofia transcendental à luz de Kelsen, às
ciências e nem serem método de conhecimento 137.

A terceira definição de juízo é aquela em que o juízo é a afirmação ou


negação de uma proposição ou a manifestação mental da proposição 138. Semelhante
definição é utilizada por Mora (inclusive estando na mesma posição na listagem de
conceitos de seu verbete): “…a terceira é propriamente a definição de proposição,
mas também o é do juízo enquanto correlato mental da proposição.” (MORA, 1994,
p. 1608). Uma proposição, neste sentido, é uma oração enunciativa 139 composta de
elementos verbais com múltiplos significados que descrevem relações e objetos
(segundo a mesma fórmula de sujeito, cópula e predicado), passível de ser
verdadeira ou falsa. Apesar da aparente proximidade entre o juízo assim descrito e o
kelseniano, não é ainda o encaixe perfeito, pois, as proposições podem enunciar
qualquer relação do ser ou do dever e os juízos derivam sua validade de
conhecimentos adquiridos de qualquer outra forma, não valendo-se da função
cognitiva essencial ocupada pelas categorias e pelos próprios juízos, i.e. fora da
epistemologia de natureza kantiana.

A quarta e última concepção é de juízos como operações intelectuais, como o


conhecimento mediado de um objeto (MORA, 1994, p. 1608). Conhecer um objeto é
conhecê-lo enquanto fenômeno individual dado aos sentidos, casualmente
determinado, que então será apresentado aos elementos do entendimento, os a
priori, presumidos em todos os sujeitos, para ser conceituado, depurado das
intuições, e universalizado. Todo conhecimento, caso o simulacro de epistemologia

136 Apenas um fato da ordem do ser pode, quando comparado com uma norma, ser julgado valioso
ou desvalioso, ter um valor positivo ou negativo. É a realidade que se avalia.” (KELSEN, 2009, p. 19).
137 “É exatamente neste ponto que Kelsen afasta-se de Kant e aproxima-se do positivismo científico,
cuja principal reivindicação é a adoção, no âmbito das ciências sociais, da neutralidade e da
objetividade das ciências naturais justamente no intuito de evitar a interferência de juízos de valor na
atuação do cientista.” (CONSANI, 2016, p. 137-138).
138 “Nesse sentido, o ato judicativo é a aceitação ou a recusa de uma proposição (ou de uma
demonstração); em outros termos, é a crença.” (ABBAGNANO, 2007, p. 592).
139 “Observaremos que, como a terceira, a quarta, a quinta, a sexta e a oitava definições destacam
no juízo principalmente sua qualidade de produto mental ou de objeto ideal, o juízo se apresenta
como algo distinto da proposição (concebida como uma oração enunciativa) assim como do processo
psicológico correspondente, de tal modo que os autores que admitem a doutrina do juízo na lógica
costumam considerar infundada toda acusação de psicologismo.”(MORA, 1994, p. 1608).
42

kantiana anteriormente apresentado seja aceito como verdade, depende da intuição


e os juízos justamente a ela se interligam, segundo Meneses (2002, p. 211):

O juízo é um conhecimento da intuição que se dá na unidade da


consciência através de novas formas cognoscitivas. Num primeiro momento
o juízo vai à sensibilidade e nesta determina uma qualidade que é
reassumida no entendimento, permanecendo como elemento deste.
(MESESES, 2002, p. 211)

Assim, os juízos nos dão a conhecer outras formas, ligando a matéria a


consciência, à mente, numa função puramente do intelecto, que visa apenas o
saber140. O juízo em Kelsen não tem outra função a não ser dar a conhecer; em
termos jurídicos, a função da norma fundamental é servir como um a priori e os
juízos subsomem os objetos apercebidos através dela para conceber se
comportamento tal é conforme ou contra a norma, pressupondo-se a validade desta
através da norma básica. Os juízos, conforme entende Kant, caracterizam bem os
juízos apresentados na obra de Kelsen.

Resta, portanto, compreender os valores a que os juízos fazem referência.


Kelsen compreende que o passo último de uma ciência jurídica que aplique o
método transcendental é ser completamente neutra, passo que temerosos não
deram nem Kant nem Cohen. A exigência de uma jurisprudência que aplique tal rigor
metodológico é a negação da assunção de quaisquer valores absolutos 141, sejam
morais, pessoais ou políticos, de maneira que o jurista deve adotar (como faz
Kelsen) uma postura relativista. Os juízos, desta maneira, afirmam valores relativos
e são objetivos apenas na medida em que se referem a uma ordem normativa
positiva, sua verdade é a verdade de que algo (o objeto julgado) é conforme a
realidade142.

Estas questões ficam mais clara quando Kelsen declina-se sobre o problema
da justiça. O problema da justiça irrompe de maneira relevante apenas onde há um
conflito de interesses, quando dois valores se contrapõe e um deve,
necessariamente se sobrepor ao outro 143, perante um cenário desta natureza um
140 “O juízo é uma forma de conhecer e de pensar que informa outras formas. A forma liga a matéria,
originalmente, à mente.” (MENESES, 2002, p. 213).
141 Cf. OTA, Weinberger. Hans Kelsen as philosopher. In: HANS, Kelsen. Essays in legal and moral
philosophy. Boston: D.Reidel Publishing Company, 1973. p. XXV.
142 Cf. KELSEN, Hans. O que é justiça?: A justiça, o direito e a política no espelho da ciência.
Tradução Luís Carlos Borges. São Paulo: Martins Fontes, 2001. p. 350.
143 Onde não há conflito de interesses, nõa há necessidade de justiça. Um conflito de interesses se
apresenta, todavia, quando um interesse só pode ser satisfeito à custa de outro, ou seja, quando dois
valores se contrapõe e não é possível concretizá-los ao mesmo tempo se a concretização de um
43

deve julgar conforme valores escolhidos de maneira arbitrária (pessoais) pois não há
um critério último de valoração racional que exclua um valor em face de outro, a es te
oposto, mas, possivelmente, tão válido quanto. Para Kelsen (2001, p. 5): “É pura e
simplesmente impossível decidir de modo racional-científico entre os dois juízos de
valor em que se fundamentam essas concepções contraditórias.”.

Por princípio deve-se negar os valores absolutamente considerados nas


ciências. A realidade desses valores pode ser assumida somente com base em uma
autoridade de natureza transcendental, seja Deus, a natureza, a racionalidade ou
qualquer outra deidade, sem o transcendente é impossível estabelecer na
experiência um fator comum unificador dos sistemas morais e dos valores que
permita-nos excluir um como não válido, e apreciar outro como bom, portanto
válido144. Todos os sistemas de moralidade são válidos, basta que, enquanto normas
positivas, sejam identificáveis através de uma norma fundamental. Assim Kelsen diz:
“O valor moral relativo é constituído por uma norma social que postula como
obrigatória uma forma específica de comportamento humano. Norma e valor são
conceitos correlatos”145 (KELSEN, 1973, p. 89, tradução nossa). O direito é um
valor, todas as normas de um ordenamento constituem um valor relativo
determinado por atos de vontade arbitrários.

Contrários aos valores se encontram os juízos de realidade, que apresentam


proposições universalmente válidas se verdadeiras, por exemplo, caso a lei da
gravidade seja verdadeira, um juízo que a afirme é verdadeiro para todos e a
falsidade da lei a torna globalmente falsa. Porém, se em um certo ordenamento é
punido o furto com a amputação de um membro e em outro o mesmo crime é
punível com cerceamento de liberdade, um não exclui a validade do outro e um juízo
que analise um certo fato perante um é tão válido quanto juízo baseado nos critérios
daquele (contando que ambos sejam juízos que afirmem a verdadeira relação entre
o fato e o dever ser correspondente)146. Racionalmente falando, não há um critério

implicar a rejeição de outro; quando é inevitável, para dar prioridade à concretização de um dos dois,
decidir qua deles é mais importante, mais elevado, maior.” (KELSEN, 2001, p. 4).
144 Cf. HANS, Kelsen. Essays in legal and moral philosophy. Boston: D. Reidel Publishing
Company, 1973. p. 87.
145 No original: Relative moral value is constitued by social norm which posits as obligatory a specific
form of human behaviour. Norm and value are correlative concepts.
146 “A ela só é possível uma resposta subjetiva, válida apenas para o sujeito que julga, e não uma
constatação válida para todos, como por exemplo a de que metais se expandem com o calor. Este
último é um juízo de realidade, não um juízo de valor.” (KELSEN, 2001, p. 5).
44

que possa excluir a possibilidade de validade de uma norma concebida como seu
oposto, em outro sistema, portanto, a experiência só admite valores relativos e o
conflito entre os valores podem ser resolvidos apenas através da escolha arbitrária
entre um ou outro, ou o compromisso entre os mandamentos de ambos 147.

A ciência jurídica não pode eleger valores absolutos para julgar as ordens
válidas, os juízos e proposições jurídicas lidam conhecendo as ordens através dos
instrumentos da razão, sua função é descritiva. A política, por sua vez, é a ação dos
homens que criam as normas. Esta sim é baseada em valores pressupostos como
universalmente válidos e que o agente procura realizar no mundo do ser, portanto, é
uma ação da vontade148. A vontade dos sujeitos legiferantes só importa ao direito
enquanto criadora de normas e só até o momento em que a norma se realiza, passa
a existir; os valores motivadores da vontade só importam à jurisprudência na medida
em que se realizam nas normas e passam ao dever ser e podem ser considerados
valores objetivos e passíveis de estudo racional. Neste sentido é possível considerar
como científico um juízo de finalidade que enuncie um meio como adequado a um
fim, caso o fim seja aceito, na fórmula: se X é o fim, Y é o meio adequado; a
juridicidade de um juízo assim expresso depende de X é um comportamento
normado, por exemplo, se um sujeito deseja realizar um contrato deve, como
prescreve a legislação Z, valer-se de um escrivão com fé pública, caso o sujeito não
se valha do escrivão, o meio que escolheu é inadequado por ser contra a norma e,
portanto, tem um valor negativo – nesta medida se realiza um juízo de valor
objetivo149.

Uma das referências diretas de Kelsen em relação a natureza dos valores e


dos juízos é Wilbur M. Urban150. No artigo Value and Existence (URBAN, 1916),
Urban divide os valores em duas categorias maiores: os valores enquanto relação, a

147 Cf. KELSEN, Hans. O que é justiça?: A justiça, o direito e a política no espelho da ciência.
Tradução Luís Carlos Borges. São Paulo: Martins Fontes, 2001. p. 23.
148 Cf. ibid. p. 349.
149 “Só quando se sabe que entre A e B existe a relação de causa e efeito, que A é a causa de que B
é o efeito, se alcança o juízo de valor (subjetivo ou objetivo): se B é desejado como fim ou é estatuído
numa norma como devido (como devendo ser), A é adequado ao fim (é producente). O juízo relativo à
relação entre A e B é um juízo de valor – subjetivo ou objetivo – apenas na medida em que B é
pressuposto como fim subjetivo ou objetivo, isto é, como desejado, ou estatuído por uma norma.”
(KELSEN, 2009, p. 25).
150 Kelsen, no artigo Julgamento de Valor na Ciência Jurídica (KELSEN, 2001, p. 203-224), cita o
artigo Value and Existence como base de uma das concepções de valor utilizadas.
45

qual denomina de teoria estrita; e os valores como forma substantiva, a chamada


teoria ampla151.

Os valores da teoria estrita podem ser, por sua vez, descritos enquanto
ocupantes de duas funções: a primeira, chamada adjetiva, onde o objeto é bom – a
cópula ´é’ nos juízos derivados de valores assim conceituados informa a relação
sentimental do sujeito com o predicado –; já a segunda, qualitativa, o objeto valorad o
tem uma característica – ‘tem’ é cópula do juízo e indica uma característica do
predicado em relação com o sujeito. Na variedade relacional, o valor é subjetivo, não
determinado pela natureza do objeto, mas através da relação dos sujeitos com
estes, portanto os valores podem ser, teoricamente, subsumidos através de
categorias do ser. Contudo, Urban defende que nenhuma das duas conceituações
de valor relacional (como quale ou adjetivo) resistem ao escrutino profundo. Caem
por terra a função adjetiva dos valores, pois, tanto enquanto relação psicológica
como enquanto concepção ontológica, eles se relacionam com a ideia de realização,
naquela como realização de uma tendência, nesta como realização de um
interesse152, de forma a sempre presumirem outros valores que informam que a
realização de uma tendência é boa, caindo, assim, num exercício de lógica
circular153. A concepção qualitativa, é uma tautologia ou um absurdo lógico, as
qualidades são inerentes aos objetos, ou pertencem a eles enquanto fenômenos
casualmente entregues à razão. Portanto, um juízo de valor que atribua qualidades
ao objeto equivale a dizer que o objeto é como deve ser, se tem valor negativo, não
possui certa qualidade, é equiparado a dizer que o objeto é como não deveria ser.
Proposições formuladas desta forma enquanto descrevem a realidade de um objeto
são absurdidades154.

Quanto a concepção ampla, substantiva, Urban (1916, p. 460) a define em


relação com o ser, ou seja, não a define pois ela é em si indefinível, nas palavras do
próprio: “O predicado de valor, como o existencial, corresponde a uma noção que

151 Urban, Wilbur M. Value and existence. The journal of philosophy, psychology and scientific
methods, Nova York, v. 13, n. 17, p. 449-465, ago. 1916. p. 451.
152 Cf. ibid. p. 455.
153 Cf. ibid. p. 453.
154 Cf. ibid. p. 459-460.
46

podemos entender, mas não a um conceito que podemos definir.” 155 (URBAN, 1916,
p. 460, tradução nossa).

Os valores, porquanto, não são nenhuma relação com os objetos do ser, nisto
concordam Urban e Kelsen. Não podendo ser como manda a concepção
substantiva, resta, portanto, saber em qual categoria estariam os valores. Urban
afirma, para responder ao questionamento, uma terceira concepção de valor,
denominada de valor como uma objetividade 156. Nesta visão, valor não é se encontra
dentro do ser, da existência, mas numa categoria entre elas. É um dever ser, nas
palavras de Urban: “Para alguns, valor é o que deveria ser; para outros, o que deve
ser reconhecido.”157 (URBAN, 1916, p. 461, tradução nossa). Nos juízos de valor
desta concepção se apreende que um objeto é como deve ser, ou que não é como
deve ser, – como bem clarificar Urban (1916, p. 463), não se depreende desses
juízos a existência mesma do objeto –. Em resumo: “O sentimento de valor existe, a
relação entre o valor e o sujeito emocional subsiste, mas o valor em si, se é preciso
158
ter um termo, é meramente “válido.”.” (URBAN, 1916, p. 465, tradução nossa). O
conhecimento dos juízos é sobre uma específica objetividade, ou seja, se o objeto é
como deve ou não ser. Esta é a concepção que Urban adota como sendo a correta,
ou, pelo menos, a mais apropriada.

Não há como não perceber as similitudes entre o conceito de Urban e o de


Kelsen quanto aos valores e juíos. Kelsen depreende que um valor, propriamente
dito, se encontra no reino do dever ser, pois é uma norma; como Urban, ele também
concebe os juízos de valor como funções do conhecimento que dão a conhecer não
o ser do objeto, mas sim se ele é ou não conforme deve ser, referindo-se a um valor
que não é do reino do ser. Até mesmo a objetividade é relacionada à vontade (assim
como a norma advém de um ato de vontade) e é a vontade de um indivíduo, não de
um ser ou vontade transcendental159. Apesar de Urban não tratar especificamente da

155 No original: The value predicate, like the existential, corresponds to a notion that we can
understand, but not to a concept that we can define.
156 Urban, Wilbur M. Value and existence. The journal of philosophy, psychology and scientific
methods, Nova York, v. 13, n. 17, p. 449-465, ago. 1916. p. 461.
157 No original: For some, value is that which ought to be; for others, that which ought to be
acknowledged.
158 No original: The feeling of value exist, the relation between the value and the emotional subject
subsists, but value itself, if we must have a term, is merely “valid.
159 Por outro lado, parece igualmente fatal interpretar a objetividade do valor recorrendo a um sujeito
ou vontade supra-individual. Estamos então de volta às dificuldades da definição relacional.” (URBAN,
1916, p. 465, tradução nossa).
47

norma as linhas gerias das teorias se entrelaçam na enfática separação das


questões de fato com as questões do ser. Kelsen vale-se de Urban, por exemplo,
para dar para combatera diferença entre os juízos de valor impróprios e próprios 160.

Para encerrar a questão específica do significado dos valores, atentemos


ainda ao verbete de valor no dicionário filosófico de Abbagnano. A historicidade, pelo
menos filosófica, do termo valor começa com os estoicos que o situam no domínio
da ética, como escolha conforme a natureza (ABBAGNANO, 2007, p. 989), óbvia é a
natureza absoluta dos valores assim determinados. Os valores voltam a aparecer, já
na era moderna, em Hobbes e ganha relevância com Kant e os subsequentes
kantianos, a partir deste período a teoria dos valores adquire a divisão entre valores
como absolutos ou subjetivos (ABBAGNANO, 2007, p. 990). Sobre a escola, de
pensamento que parece aderir Kelsen em relação aos valores Abbagnano (2007, p.
990) comenta:

A primeira concepção deve, por um lado, insistir na ligação do V. com o


homem e por outro na independência do V. A primeira determinação é, de
fato, constitutiva do V. e marca a característica que o distingue do bem,
como é tradicionalmente entendido. A segunda determinação visa a conferir
caráter absoluto ao V. O conceito Kantiano do a priori parecia conter ambas
as determinações; por isso, com Windelband e Rickent o conceito de V. foi
elaborado em relação com o de a priori. Para Windelband, o V. é o dever-
ser de uma norma que também pode não se realizar de fato, mas que é a
única capaz de conferir verdade, bondade e beleza às coisas julgáveis
(Prãludien, 4.ã ed., 1911, II, pp. 69 ss.). Nesse sentido, os V. não são coisas
ou supra-coisas, não têm realidade ou ser, mas seu modo de ser é o dever-
ser (sollen). Rickert repete esse ponto de vista e reitera que o ser dos V. não
consiste na sua realidade, mas em seu dever-ser. […]. Teorias dos V. muito
semelhantes a esta foram elaboradas pelo teuto-americano Ugo
Münsterberg em Philosophie der Werte, de 1908, pelo americano W. M.
Urban ( Valuations: its Nature and Laws, 1919; The Intellegihle World, 1920),
pelo italiano Guido delia Valle (Teoria generale eformule dei V., 1916) e por
numerosos outros escritores.

Por fim resta diferenciar os valores jurídicos dos políticos. Os valores políticos
são do interesse de outras áreas do conhecimento social e se referem a normas de
outra natureza, como à moral. A moral é conceituada por Kelsen no seguinte
postulado:

Ao lado das normas jurídicas, porém, há outras normas que regulam a


conduta dos homens entre si, isto é, normas sociais […]. Essas outras
normas sociais podem ser abrangidas sob a designação de Moral e a
disciplina dirigida ao seu conhecimento e descrição pode ser designada
como Ética (KELSEN, 2009, p. 67).

160 Cf. KELSEN, Hans. O que é justiça?: A justiça, o direito e a política no espelho da ciência.
Tradução Luís Carlos Borges. São Paulo: Martins Fontes, 2001. p. 205.
48

A distinção entre a moral e o direito pode ser explicada pelo caráter


sancionador das normas jurídicas e pelo princípio de unidade que conecta ao
mesmo sistema apenas normas de mesma origem, i.e. fundamentadas, pela mesma
norma fundamental. Os sistemas morais positivos, constituintes de dever ser, são,
portanto, plenamente apartados dos sistemas jurídicos, mesmo dentro se ambos
pertencerem à mesma sociedade – da mesma maneira como os ordenamentos
nacionais se diferenciam – mas constituem também valores, valores de natureza
política.

O valor de justo, de conformidade a um sistema moral, pode, por vezes, não


somente pretender ser universal, mas querer ser a baliza dos ordenamentos do
direito. A justiça, significando conformidade aos mandamentos de uma ordem moral,
exerceria um papel de validade, acepção incompatível com o direito e com a ciência
jurídica161. A justiça enquanto justiça de uma ordem jurídica positiva é relativa, volta-
se para os valores por ela própria proposta e não fazem referência a valores
absolutos, derivados de entidades supra-conscientes; os valores políticos apena
adentram nesta questão de forma tangencial, enquanto motivadores da conduta dos
sujeitos legiferantes, fatos do ser alvo de outras ciências sociais, e realizados nas
normas que efetivamente virarem normas jurídicas e retiverem um mínimo de
eficácia. Kelsen belamente se expressa sobre o tem no seguinte trecho:

De fato, não sei e não posso dizer o que seja justiça, a justiça absoluta,
esse belo sonho da humanidade. Devo satisfazer-me com a justiça relativa,
e só posso declarar o que significa justiça para mim: uma vez que a ciência
é minha profissão e, portanto, a coisa mais importante em minha vida, trata-
se daquela justiça sob cuja proteção a ciência pode prosperar e, ao lado
dela, a verdade e a sinceridade. É a justiça da liberdade, da paz, da
democracia, da tolerância (KELSEN, 2009, p. 25).

Resta ainda investigar a relação entre os valores e as proposições jurídicas.


Posposições jurídicas são as afirmações da ciência jurídica sobre as normas e os
ordenamentos do direito. As normas alvo das proposições jurídicas são as regras
positivas pertencentes a um ordenamento válido e eficaz. As proposições descrevem
e conhecem o objeto, mas com ele não se confundem, assim, uma descrição da
ciência jurídica enuncia uma lei, e, portanto, um valor, porém não é ela mesma este
valor. O jurista, como um bom cientista, deve fornecer suas proposições abstendo-se
de quaisquer juízos subjetivos, ele aceita o direito como é, não propõe ou julga o

161 Cf. ibid. p. 364.


49

ordenamento investigado por suas preferências pessoais ou os mandamentos de


uma moral (ou mesmo de outro sistema jurídico) 162. A ciência jurídica age
organizando o todo caótico dos ordenamentos jurídicos em um ordenamento de fato,
em um todo compreensível e estruturado, ela faz isto tanto por conhecer o seu
objeto, e conhecer é de certa forma construir, e por aplicar mediante si própria os
mandamentos da lógica ao ordenamento (as normas não são passiveis de aplicação
de princípios lógicos).

Mesmo sobre a óptica da função construtiva, as ciências não estabelecem


nenhum valor, as proposições, assim como os juízos, são atos de conhecimento e
não de vontade163 – valores e normas apenas advém através da vontade dos
sujeitos. A interpretação científica das normas procura revelar todos os sentidos
possíveis atrelados as formulações verbais de uma norma, portanto, abstendo-se
dos julgamentos e da ficção da interpretação única 164. Aliás, a interpretação única é,
justamente, uma das vertentes da penetração dos valores políticos na
jurisprudência, através dela se estabelece como correto uma dada interpretação
possível (e desejável, por parte de alguns) como única, excluindo-se, caso existam,
quaisquer outras interpretações dos mandamentos linguístico que manifestam as
normas, se a ciência jurídica assim se comportasse assumiria um valor extra-jurídico
como definidor do direito e das normas, incompatível é tal visão com os
mandamentos da teoria pura165. É desejável que as normas apresentem-se da forma
mais inequívoca possível, mas se assim não o fazem os proponentes das normas,
nada pode fazer o jurista, este pode apenas desejar, se muito, que suas descrições
e demonstrações sirvam para revelar as falhas e defeitos técnicos das ordens e que
os legisladores possam, baseado nisso, buscar aperfeiçoar e corrigir o ordenamento.

Apesar de ambos serem atos da cognição, os juízos e as proposições não se


confundem, pelo menos não no sentido específico de juízos de valor próprios (os
juízos de valor impróprios que julgam algo como fim adequado não são inadequados
à ciência, mas também não são juízos de valor), enuncia a diferença Kelsen:

162 Cf. KELSEN, Hans. O que é justiça?: A justiça, o direito e a política no espelho da ciência.
Tradução Luís Carlos Borges. São Paulo: Martins Fontes, 2001. p. 364.
163 Cf. ibid. p. 362.
164 Cf. KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. Tradução João Baptista Machado. São Paulo:
Editora WMF Martins Fontes, 2009. p. 398.
165 Cf. ibid. p. 396.
50

Embora se possa considerar que as normas jurídicas emitidas pela


autoridade jurídica constituem valor específico, a saber, o valor jurídico, as
regras de Direito não são juízos de valor em nenhum sentido possível do
termo, assim como as leis da natureza por meio das quais a ciência natural
descreve seu objeto não são juízos de valor. Se o enunciado de que algo
está ou não em conformidade com uma norma jurídica pode ser classificado
como juízo de valor, ele o é apenas no sentido em que o é o juízo de que
algo é um meio adequado para um fim pressuposto [...] antes como um tipo
especial de juízo sobre a realidade (KELSEN, 2001, p.362-363).

Definido o que Kelsen quer dizer por valor e por juízo de valor, pode-se
sintetizar a relação dos valores com as normas. As normas jurídicas constituem
valores objetivos, os comportamentos por elas prescritos (devidos) são bons, valores
positivos, e os opostos ao devido, pressupostos de atos coercitivos, constituem os
valores negativos, são maus. As normas, sejam jurídicas ou não, são a única forma
de conceber valores objetivos, ainda que não valores absolutos – a aceitação de um
valor absoluto implicaria na derrogação de todos os sistemas que não a ele
aderissem, o que não se dá na realidade –, e os juízos que as tem como base são
objetivos, pois valem-se de um princípio de julgamento que pode ser reconhecido
por qualquer um desde que pressuponha a norma fundamental e eficácia global do
sistema. O dever ser é a categoria por excelência dos valores, sem o dever ser
qualquer pretenso juízo de valor apenas se refere à realidade factual, e, portanto,
são juízos de realidade. Norma, valor, e juízos de valor estão em circundante relação
de dependência. Kelsen, realmente toma o salto da fé e assume a posição relativista
para realizar até as últimas consequências sua compreensão do método
transcendental, indo, assim, onde nem Kant nem Cohen ousaram 166.

166165 KELSEN, Hans. The pure theory of law, ‘Labandism’, and Neo-Kantianism. A letter to Renato
Treves. In: PAULSON, S. L.; PAULSON, B. L. Normativity and Norms. Clarendon Press Oxford –
New York, 1998. p. 169-175.
51

CONCLUSÃO

Valores, juízos, normas, ordenamentos, direito, moral, método transcendental,


norma fundamental. O presente trabalho procurou enfrentar toda esta miríade de
conceitos derivados da obra de Kelsen para dar a conhecer, em uma pura função do
intelecto, como diria o mesmo, a relação entre os valores e teoria das normas em
geral.

O primeiro passo da jornada foi organizar em um conjunto sintético, mas


ainda sim profundo o suficiente, as questões básicas da teoria das normas de
Kelsen para tecer a rede conceitos necessária para a discussão posterior. Sintetizar
a teoria normativa, contudo, é uma arqueologia, depende da junção de muitas peças
espalhadas por obras diferentes e que, por vezes, são contraditórias. Como a função
da primeira parte do presente trabalho era introduzir ao leitor alguns conceitos e
discussões basilares, visou-se a generalidade e a pedagogia, formando, portanto,
um quadro teórico de Kelsen não final, acabado, mas apenas suficiente. Diz-se
suficiente pois, perscrutou-se apenas o necessário em vista do fim buscado; da
norma explicou-se a: função, o status perante a ciência, a sua posição dentro dos
ordenamentos, a correlação de norma jurídica com a sanção, a justificação estática
e dinâmica. Outros conceitos como: norma fundamental, validade e eficácia, sanção
e ato coercitivo, norma fundamental, proposição jurídica, também são descritos e ao
seu encalço estão o que foi chamado de conceitos preliminares, como: método
transcendental, sentido subjetivo e objetivo, ser e dever ser, pureza metodológica e
a função da ciência em Kelsen. Pinçando e condensando este todo foi que tornou-se
possível realizar este trabalho.

O segundo capítulo é onde se procura chegar ao cerne da pesquisa


pretendida. Valendo-se dos conceitos anteriormente pretendidos, essenciais em sua
função cognoscente, avançou-se na direção da conceituação de novos termos
essenciais também, quais sejam: valor e juízo de valor. Valor e juízo de valor são
termos comuns na teoria filosófica da modernidade, estão presente na maioria dos
dicionários filosóficos e foram pautadas por grandes mentes, assim, Kelsen se vale
destas discussões para formular a sua própria e autoral significação dos termos. O
esforço de entendimento e valor e juízo, conforme Kelsen, depende,
52

consequentemente, de uma inserção da teoria geral no debate. Kelsen, porém, é um


autor claro, que procura expor as bases de seu pensamento, fato que muito auxiliou
na pesquisa. Explanado juízo e valor, adentrou-se na relação entre estes e as
normas, ordenamento e proposições jurídicas.

Conclui-se que as normas são valores, participantes do dever ser, opostas ao


ser, e que estabelecem, de forma relativa a possibilidade de juízos valorativos
reconhecíveis pela ciência jurídica. Os juízos e os valores ocupam um papel
informativo dentro da teoria kelseniana, confirmado a postura relativista necessária
para a apreensão do direito enquanto fenômeno observado pela ciência jurídica de
matriz neokantiana, ou seja, que aplica o método transcendental conforme Kelsen
interpreta Cohen. Vê-se, pois, que as normas enquanto valores dão ao jurista a
possibilidade de ser jurista e de conhecer o Direito enquanto direito, não como parte
subsidiária de outra ciência. A neutralidade e independência, o vigor do direito por si
próprio e o papel do jurista como descobridor e orientador, tudo isso é reafirmado
pela relação dos valores e dos juízos com as normas.
53

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