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UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA

FACULDADE DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS


DEPARTAMENTO DE FILOSOFIA

TÂNIA REGINA OLIVEIRA CAMPOS

A classificação das normas jurídicas segundo


Kelsen e Hart

Salvador
2015
TÂNIA REGINA OLIVEIRA CAMPOS

A classificação das normas jurídicas segundo


Kelsen e Hart

Monografia apresentada ao curso de Filosofia da


Universidade Federal da Bahia, como requisito
parcial para obtenção do grau de Bacharelado em
Filosofia.

Orientador: Prof. Dr. Abel Lassalle Casanave.

Salvador
2015
TÂNIA REGINA OLIVEIRA CAMPOS

A classificação das normas jurídicas segundo


Kelsen e Hart

Monografia apresentada a Universidade Federal da


Bahia, como requisito parcial para obtenção do grau
de Bacharel em Filosofia.

Orientador: Prof. Dr. Abel Lassalle Casanave.

Comissão Examinadora

_________________________________________________________
Orientador: Prof. Dr. Abel Lassalle Casanave

__________________________________________________________
Examinador: Prof. Dr. José Crisóstomo de Souza

__________________________________________________________
Examinador: Prof. Dr. Pedro Lino de Carvalho Júnior

Salvador, ____de____________2015.
RECONHECIMENTOS

Agradeço ao Professor Abel Lassalle Casanave as várias reuniões para estudo da


obra O conceito de direito, de Herbert Hart, onde, com destacado desvelo, deu-me
ricas lições de filosofia e de teoria do Direito.

Guardarei com muito carinho as lembranças desses encontros, expressão da sua


devoção extraordinária ao ensino.

Agradeço aos colegas Carlos Alberto Rodrigues de Almeida e Jaqueline Santos


Pimentel a companhia agradável e estimulante nas reuniões de trabalho.
“Ler fornece ao espírito materiais
para o conhecimento, mas só o
pensar faz nosso o que lemos.”

John Locke
RESUMO

Esta monografia apresenta um breve estudo das teorias classificatórias das


normas jurídicas de Herbert Hart e de Hans Kelsen. Estes autores são expoentes da
corrente juspositivista e suas ideias são extremamente fecundas, seja em razão do
fato de abrangerem uma enormidade de temas relevantes para o Direito, seja em
decorrência da profundidade de suas análises, de modo que eles influenciaram e
continuam influenciando, em muito, o pensamento jurídico. Inicialmente, teremos uma
sucinta explanação das doutrinas de Kelsen e de Hart objetivando apresentar noções
de alguns dos seus principais conceitos. Em sequência, veremos a classificação das
normas jurídicas de cada autor, em separado. Por fim, serão feitas considerações
sobre essas teorias classificatórias buscando mostrar divergências e defender que a
divisão hartiana oferece uma melhor compreensão do Direito e da estrutura de um
sistema jurídico moderno.

Palavras-chave: Normas jurídicas. Sanção. Normas autônomas e não autônomas.


Normas primárias e secundárias.
SUMÁRIO

1. INTRODUÇÃO ........................................................................................................ 07
2. TEORIA DA NORMA JURÍDICA SEGUNDO KELSEN E HART ........................... 09
2.1. Teoria da norma jurídica segundo Hans Kelsen ................................................... 10
2.1.1 “Ser” e “Dever-ser” ............................................................................................. 11
2.1.2 Sanção .............................................................................................................. 13
2.1.3 Validade e norma fundamental .......................................................................... 15
2.2. Teoria da norma jurídica segundo Herbert Hart .................................................. 16
2.2.1 Obrigação: diferença entre os enunciados “foi obrigado” e “tinha uma obrigação”... 17
2.2.2 Para além da sanção ......................................................................................... 19
2.2.3 Ponto de vista interno e ponto de vista externo ................................................. 21
3. CLASSIFICAÇÃO DAS NORMAS JURÍDICAS EM KELSEN E HART ................ 24
3.1. O entendimento de Hans Kelsen ......................................................................... 24
3.1.1 Normas autônomas ........................................................................................... 26
3.1.2 Normas não autônomas .................................................................................... 26
3.2. O pensamento de Herbert Hart ........................................................................... 29
3.2.1 Normas de reconhecimento .............................................................................. 32
3.2.2 Normas de modificação ..................................................................................... 34
3.2.3 Normas de julgamento ...................................................................................... 36
4. CONCLUSÃO ......................................................................................................... 37
REFERÊNCIAS .......................................................................................................... 41
7

1. INTRODUÇÃO

Quando alguém se põe a pensar sobre o Direito, uma ideia que


geralmente surge é a de imposição de uma conduta humana, isto é, a de obrigação
a ser cumprida, seja por meio da prática de um ato, seja através de uma atitude
omissiva. A concepção que parece se ajustar ao Direito de modo prevalecente é a
de obrigação imposta à força, em que para o caso do descumprimento há a previsão
de uma punição, cuja finalidade é motivar que a conduta se ajuste às leis. Essa
representação, tão arraigada no nosso imaginário, conforma-se ao modelo das
normas penais, que, em regra, impõem ou proíbem determinadas condutas e
preveem uma sanção para o caso de serem descumpridas, a exemplo do art. 121 do
Código Penal, que proíbe o ato de “matar alguém” e fixa a pena de prisão entre
06(seis) e 20(vinte) anos. Mas não só as normas penais servem para ilustrar essa
forma de pensar o Direito. Podemos encontrar exemplos entre normas do Direito
Civil, como a que impõe o pagamento de juros e atualização monetária ao devedor
em mora, prevista no art. 395 do Código Civil.
Com efeito, a ideia de Direito como a de ordem fundada em ameaça de
sanção esteve no pano de fundo de importantes teorias jurídicas, como a doutrina
difundida no século XX por Hans Kelsen, na obra Teoria Pura do Direito, cuja
primeira edição foi publicada em 1934, e a segunda, em 1960, com algumas
modificações. Segundo Kelsen, a autêntica norma jurídica é a que impõe uma
sanção para o caso de descumprimento de uma conduta imposta, a qual denominou
de norma primária. A norma que apenas estipula a conduta a ser praticada ou
evitada, e não prevê sanção, chamou de secundária. Posteriormente, na segunda
edição de sua obra, classificou as normas jurídicas em autônomas e não
autônomas, com base no critério de determinação de atos de coerção, entendendo
por autônomas as que preveem uma sanção para o caso de haver a inobservância
de uma conduta prescrita, e por não autônomas, as que, embora desprovidas do
elemento da sanção em sua estrutura, estão necessariamente interligadas a uma
norma autônoma.
Enquanto Kelsen constrói a sua concepção de Direito assentada na ideia
de normas sancionadoras, Herbert Hart, autor da obra O Conceito de direito,
8

publicada em 1961, defende que essa forma de conceber o Direito, circunscrita a


uma noção de sanção, não é a melhor maneira de descrevê-lo. Hart acentua que
importantes normas de um sistema jurídico não apresentam a característica de
serem punitivas, como as do Direito Civil que disciplinam sobre os meios e as
condições para celebrar contratos, ou, entre as normas constitucionais, as que se
referem ao ato de criação de leis, ressaltando o fato de que elas não impõem uma
conduta a ser praticada ou evitada, contra a vontade do seu destinatário, nem fixam
sanção para o caso de serem violadas, sendo muito distintas das normas penais,
que encarnam o modelo clássico de normas coercitivas.
A partir de uma análise do fenômeno jurídico e de verificação de falhas de
teorias jurídicas fundamentadas no elemento da coerção, ele concluiu que é melhor
conceber o Direito tomando-se por base a noção de uma combinação de normas
jurídicas de dois tipos diferentes: as primárias, que exigem a prática ou a abstenção
de determinadas condutas, e as secundárias, que não impõem deveres e se
relacionam às primárias. De referência às secundárias, Hart apresenta uma
subclassificação, discriminando-as em normas de reconhecimento, de modificação e
de julgamento.
Kelsen e Hart influenciaram e continuam influenciando o pensamento
jurídico e filosófico contemporâneo. Kelsen, com uma concepção de Direito
amarrada à ideia de sanção, dissociado de elementos inerentes a outros ramos do
conhecimento (como a moral, a sociologia e a política, entre outros), pretendeu dar
ao estudo do Direito um rígido tratamento científico. Construiu uma teoria
sistemática cujos conceitos e fundamentos servem de base e se manifestam em
vários dos ordenamentos jurídicos modernos. Herbert Hart desenvolveu uma teoria
original que permite uma compreensão melhor de elementos e aspectos que
caracterizam um sistema jurídico.
A proposta deste trabalho é examinar as classificações das normas
jurídicas destes jusfilósofos. Numa primeira leitura pode parecer que inexiste alguma
diferença substancial entre elas, e que talvez o que as distinga seja um traço de
caráter estrutural ou simplesmente de nomenclatura. Pode-se pensar que a
classificação hartiana é tão somente mais sofisticada se comparada com a divisão
9

de normas kelseniana1. Faremos, a seguir, uma exposição concisa dos principais


conceitos das teorias das normas jurídicas segundo Kelsen e Hart, a fim de preparar
a inserção no tema. Na seção 3, mostraremos as suas teorias classificatórias e
buscaremos descrevê-las. Na seção 4, tentaremos apontar aspectos que
particularizam essas doutrinas através de um breve estudo comparativo.
Utilizaremos as principais obras dos autores, aqui mencionadas.

2. A TEORIA DA NORMA JURÍDICA SEGUNDO KELSEN E HART

A noção de norma jurídica descortina importantes aspectos do


pensamento sobre o Direito. Conhecer a teoria das normas jurídicas, vislumbrar os
seus elementos principais, é um convite para compreendê-lo com mais clareza.
Afinal, o Direito é especialmente composto por normas, de modo que entender esse
objeto é uma tarefa necessária para quem queira desvendá-lo.
Além disso, o estudo desse tema tem a sua utilidade firmada na
evidente importância que a norma desempenha na vida de cada indivíduo e de toda
uma sociedade. É exatamente esse o aspecto que Norberto Bobbio, pensador
italiano do século XX, enfoca nas palavras seguintes:

A nossa vida se desenvolve em um mundo de normas. Acreditamos


ser livres, mas na realidade, estamos envoltos em uma rede muito
espessa de regras de conduta que, desde o nascimento até a morte,
dirigem nesta ou naquela direção as nossas ações. (BOBBIO, 2001,
p. 23-24)

Nessa esteira, manifesta-se Maria Helena Diniz: “a norma jurídica é uma


das realidades mais importantes da vida social e, assim sendo, a problemática de
seu conceito é um tema da atualidade” (DINIZ, 1999, p. 2). A norma jurídica é
apenas uma importante parte do universo de normas existente em toda sociedade.
Foram formuladas muitas noções sobre normas jurídicas, fundadas em
um ou alguns elementos específicos, como a vontade e a sanção, que marcaram
teorias construídas para explicar o Direito. O nosso propósito aqui é expor alguns

1
Sobre este ponto, vale aqui aclarar que não se pretende refutar uma teoria específica, senão demonstrar a
independência da teoria de classificação das normas hartiana em relação à teoria kelseniana de divisão das
normas.
10

dos principais conceitos das teorias de Hans Kelsen e Herbert Hart, seguindo esta
sequência, como que para oferecer uma noção geral desse tema amplo.

2.1 A TEORIA DA NORMA JURÍDICA SEGUNDO HANS KELSEN

Entender a ideia de normas jurídicas de Kelsen passa por conhecer


alguns conceitos-chave, desenvolvidos em sua obra Teoria Pura do Direito, como
“ser”, “dever-ser”, sanção, validade, norma fundamental, que serão aqui,
ligeiramente, abordados. Estes conceitos dizem respeito a noções fundamentais da
teoria kelseniana, referindo-se a aspectos concernentes à natureza, estrutura e
função da norma.
Kelsen afirma que o Direito é uma ordem social entre outras, como a
moral e a religião. Ele as define como ordens de normas reguladoras do
comportamento humano, explicando que as normas se voltam a outros indivíduos,
disciplinando as suas condutas (KELSEN, 2012, p. 25-26), e concebe o Direito como
“um imenso conjunto de normas”, nas palavras de Tércio Sampaio (2003, p. 99).
Assim, afirma que “o Direito é uma ordem normativa da conduta humana, ou seja,
um sistema de normas que regulam o comportamento humano” (KELSEN, 2012, p.
5).
Kelsen salienta que, em havendo resistência à conduta estabelecida na
norma, as ordens da moral e da religião reagem com a aprovação ou a
desaprovação dos indivíduos, exercendo desse modo uma compulsão psíquica no
meio social (KELSEN, 2005, p. 33). Já o Direito distingue-se dessas ordens
grandemente, uma vez que, em reação aos atos contrários às normas jurídicas, é
possível a aplicação de atos coativos por parte de indivíduos socialmente
organizados, podendo ser esses atos efetivados contra a vontade de quem violou a
norma, e, inclusive, com o meio de força física (KELSEN, 2005, p. 28).
O autor explica que as normas morais e religiosas também são coercitivas
tendo em vista o medo que a reação social à violação da norma provoca, pois,
observando-se o aspecto da conduta do sujeito, percebe-se que o medo da reação
social à conduta oposta à norma, motiva-o a ter o comportamento desejado, o que
11

vale para todas as ordens normativas, inclusive o Direito. Porém, como foi
ressaltado, há um caráter peculiar na coerção exercida pelo Direito, que é
especificamente a característica de o ato coativo ser aplicado por uma estrutura
social organizada, um órgão ou autoridade competente, quando alguém pratica um
ato contrário ao conteúdo da norma jurídica (KELSEN, 2005, p. 33).
Embora se possa dizer mais acerca desse assunto, uma abordagem séria
ultrapassa em muito a proposta deste trabalho, sendo bastante esse curto apanhado
para o objetivo de fornecer ligeiras noções da doutrina kelseniana, de modo que
passaremos a tratar dos conceitos selecionados, iniciando por “ser” e “dever-ser”,
tão relevantes para a compreensão dessa teoria.

2.1.1 “Ser” e “Dever-ser”

Ao se voltar para o estudo dos conceitos principais da noção de norma


jurídica em Kelsen, a porta de entrada é dada pela afirmação do autor segundo a
qual “a norma é um dever-ser” (KELSEN, 2012, p. 6). Pergunta-se: o que ele quer
dizer com “a norma é um dever-ser”? De antemão, vale dizer que Kelsen faz
distinção entre algo que é do âmbito do ser e algo que é da dimensão do dever-ser.
Quanto ao termo “dever”, registre-se que ele conferiu um significado mais amplo em
relação ao que costuma lhe ser aplicado, conforme veremos.
De volta à pergunta, Kelsen explica que a norma exprime que algo deve
ser ou acontecer e, de modo especial, exprime “que um homem se deve conduzir de
determinada maneira” (KELSEN, 2012, p. 5). A norma exprime a conduta que deve
ser, sendo este o seu conteúdo. O autor delimita o âmbito da norma como o do
dever ser, excluindo de sua dimensão o mundo das coisas reais, entendido como o
mundo de um ser, como algo que é parte da natureza, que ocupa um espaço e se
dá em um tempo. Assim, Kelsen separa o âmbito da norma, o do Direito, como
sendo a esfera do dever-ser, do outro, o da realidade natural, a esfera do ser
(KELSEN, 2012, p.4). Considera que esses termos não podem ser melhor definidos,
afirmando sobre a distinção entre “ser” e “dever-ser” que “é um dado imediato da
nossa consciência” (KELSEN, 2012, p. 6).
12

Então, a norma jurídica regula a conduta humana, exprimindo o que deve


ser feito. Kelsen afirma que a norma regulariza a conduta através de prescrição
(comando), ou permissão de conduta, ou por meio de atribuição de poder ou
competência. A conduta que deve ser, expressa na norma, é o seu conteúdo, e essa
noção de dever-ser engloba as significações de prescrição ou ordem, proibição,
permissão ou concessão e atribuição. É esse o caráter do dever-ser da norma
jurídica, que se distingue do “dever-ser” descritivo das proposições elaboradas pelos
teóricos do direito para representar as normas2. Para o termo dever-ser há, assim,
insista-se, uma significação ampliada, porque a palavra dever costuma ser
relacionada ao ato de prescrever, e não tem correlação com essas acepções
(KELSEN, 2012, p. 5).
Kelsen vai dizer que o dever-ser confere sentido ao fato exterior,
explicando que a norma dá significado jurídico ao fato quando a ele se refere com o
seu conteúdo, exprimindo que algo deve ser. Atente-se a que a norma jurídica é
manifestação de ato de vontade humana que se dirige a outrem, para dizer como se
deverá conduzir (KELSEN, 2012, p. 5). O ato de vontade é da esfera do ser,
enquanto o significado que a norma confere ao ato é da esfera do dever-ser.
Imagine-se a situação em que um homem tira a vida de outro com o uso de uma
arma de fogo. O ato de matar em tese viola a norma jurídica prevista no Código
Penal, o artigo 121. Pode-se dizer que esta norma confere um significado jurídico ao
ato, ao proibir a sua prática e fixar uma sanção a ser aplicada ao transgressor. Mas
se em vez de tirar a vida de outro, aquele homem tivesse apenas o ultrapassado na
calçada com passos mais longos, não se poderia, puramente por esse fato, afora
qualquer outro contexto, imaginar algum significado jurídico ao ato, por ausência de
norma jurídica com conteúdo que lhe conferisse algum sentido.
Daí Kelsen sustentar que “a norma funciona como esquema de
interpretação” (KELSEN, 2012, p. 4), esclarecendo que “O sentido jurídico
específico, a sua particular significação jurídica, recebe-a o fato em questão por

2
Kelsen chama as proposições elaboradas pelos juristas de regras jurídicas. Ele explica que a regra
jurídica é um juízo hipotético que toma a forma Se A é, B deve ser, afirmando que a regra ou a
proposição de dever ser que o teórico do Direito usa para representar as normas tem um sentido
descritivo, ou seja, reproduzem de forma descritiva o “dever ser” das normas. Leitura indicada sobre o
tema é o ensaio de Hart, Una Visita a Kelsen, 1977, Universidad Nacional Autónoma de Mexico,
Ciudad Universitaria Mexico 20, D. F.
13

intermédio de uma norma que a ele se refere com o seu conteúdo” (KELSEN, 2012,
p. 4). Se uma norma jurídica estabelece os requisitos e as condições para um
contrato específico, como o contrato de compra e venda, por exemplo, ela possibilita
que se atribua a um determinado ato, efetivado em conformidade com as suas
descrições, o status contratual equivalente a esse tipo de negócio jurídico.
Então, o autor compreende que a norma, através do dever-ser, constitui
um juízo de valor, positivo ou negativo. A relação estabelecida entre o fato da ordem
do ser com a norma da ordem do dever-ser é constituinte de uma medida de valor.
Um dado comportamento humano pode ser realizado em conformidade com a
norma jurídica, caso em que o juízo de valor é positivo, visto que tem adequação
com o que preceitua a norma; ou pode ser realizado em desconformidade com a
norma jurídica, e por essa razão é negativo, por não corresponder ao que está nela
prescrito (KELSEN, 2012, p. 21).
Feita essa introdução na teoria kelseniana para se referir ao conceito de
dever-ser, onde foi apontada a significação do termo para além da ideia de
prescrição (comando), abrangendo ainda as de permissão, autorização e atribuição,
passaremos para o conceito mais proeminente da teoria de Kelsen: sanção.

2.1.2 Sanção

A teoria da norma jurídica kelseniana é centrada na ideia de sanção.


Vimos que a ordem social chamada Direito tem como característica especial a de ser
uma ordem coercitiva que resiste às condutas humanas contrárias à norma com uma
sanção socialmente organizada, aplicada ainda que seja contra a vontade do
destinatário pelo Estado e, inclusive, por meio de uso de força física.
Salientamos que, para Kelsen, a sanção é consequência de uma conduta
humana oposta àquela que foi prescrita em lei como devida, representando um mal
à pessoa ao qual é aplicada, inclusive contra a sua vontade, razão por que tem o
caráter de ato coativo. A sanção se traduz em um prejuízo, um castigo, a quem ela é
imposta, por ter descumprido o conteúdo de uma norma jurídica, sendo um aspecto
muito importante desse conceito. Somente em casos extraordinários é que a sanção
poderá não ser reputada um mal, vale frisar, numa situação de excepcionalidade,
14

como o caso em que um homem tira a vida de outro e, movido por remorso, passa a
alimentar o desejo de sofrer a sanção cabível como se lhe representasse um bem
(KELSEN, 2012, p. 36).
Segundo Kelsen, o ato de coerção, ou o uso da força, deve ser executado
apenas na hipótese em que a conduta humana é violadora do dever-ser da norma,
isto é, quando a conduta humana ocorre em desconformidade com o conteúdo da
norma jurídica, havendo resistência. Kelsen, assim, quer sustentar que não pertence
“à essência do Direito „forçar‟ (obter à força) a conduta conforme ao Direito”
(KELSEN, 2012, p. 37-38). Acentua que o uso da força é geralmente proibido pelo
Direito que o define como delito, mas é permitido como sanção, em certas
circunstâncias e a determinados indivíduos. Apenas quando a conduta humana
realizada é proibida e a sua ocorrência configura um ilícito em face do Direito, é que
a sanção terá aplicação. É a conduta ilícita um pressuposto da sanção.
O autor afirma que o Direito é uma ordem de coerção, sendo a sanção
elemento certo e necessário no seu conceito de Direito, mas Kelsen não ignora que
existem nos ordenamentos jurídicos normas que não estipulam uma punição. Ele
também assevera a existência dessas normas, porém o seu entendimento é de que
as normas jurídicas desprovidas de sanção, denominadas de não autônomas, estão
essencialmente interligadas com as que estatuem atos de coerção, chamadas de
autônomas, sendo estes os tipos em que ele classifica as normas jurídicas. Daí
enfatizar que, em virtude do vínculo entre elas é que se deve compreender a
concepção do Direito como uma ordem coercitiva (KELSEN, 2012, p. 57).
Na primeira edição da Teoria Pura do Direito, Kelsen apresentou a
classificação das normas jurídicas em primárias e secundárias, compreendendo as
primeiras como as que estipulam uma sanção para o caso de não observância de
uma conduta devida. Quanto às secundárias, disse que elas descrevem certa
conduta a ser obedecida, inexistindo, nelas, uma previsão de sanção. Considerou
estas como supérfluas segundo a técnica legislativa, enquanto as primárias seriam
as autênticas normas (KELSEN, 2012, p. 61). Essas teorias classificatórias serão
examinadas na seção 3. Em sequência, trataremos dos conceitos de validade e
norma fundamental.
15

2.1.3 Validade e Norma Fundamental

Segundo Kelsen, quando nos referimos à validade, o que queremos é


determinar, de forma específica, que as normas existem. Afirma o autor: “Dizer que
uma norma é válida é dizer que pressupomos sua existência ou - o que redunda no
mesmo - pressupomos que ela possui „força de obrigatoriedade‟ para aqueles cuja
conduta regula” (KELSEN, 2005, p. 43). De acordo com estas palavras, se uma
norma é válida é porque ela existe no ordenamento jurídico, ela está em vigor.
Vimos que há diferença entre uma norma posta e o ato de vontade do
legislador que a criou, de modo que a existência da norma não depende que a
vontade de quem a criou se mantenha existindo. Após a norma ser aprovada e posta
em vigor, a vontade do legislador não interfere na sua vigência, ou seja, a norma
jurídica resulta do ato de vontade do legislador, mas se desliga dessa vontade
quando é promulgada, passando a existir por si mesma, integrando-se às demais
normas do ordenamento jurídico (KELSEN, 2012, p. 11). A afirmação de que a
norma tem origem nas práticas humanas é uma ideia central do positivismo, que
nega a noção de normas jurídicas como derivadas de uma autoridade supra-
humana.
Para Kelsen, uma vez que o conteúdo das normas jurídicas diz respeito
a realizações em um determinado espaço e tempo, a afirmação de que a norma tem
validade quer significar que está valendo para um espaço e um tempo, sendo que
essas dimensões de vigência podem ser estabelecidas pela própria norma ou por
outra superior do ordenamento jurídico. Afirma o autor: “O domínio de vigência de
uma norma é um elemento do seu conteúdo, e este conteúdo pode ser
predeterminado até certo ponto por uma norma superior” (KELSEN, 2012, p. 13-14).
Dissemos, de acordo com Kelsen, que o Direito é um sistema de normas.
A sua concepção de validade da norma jurídica é o da existência desta como
pertencente a um específico ordenamento jurídico. Mas, como se estrutura esse
emaranhado de normas? Kelsen explica que o sistema de normas jurídicas é
hierarquizado, composto de normas superiores e inferiores, cuja unidade é garantida
por um mesmo fundamento de validade para todas as normas dessa ordem,
16

fundamento que ele denominou de norma fundamental, um conceito muito particular


de sua teoria. Em outras palavras: o que confere a qualidade de pertencimento a
uma norma numa dada ordem jurídica é ter a sua validade fundada na norma
fundamental (KELSEN, 2012, p. 33).
Uma norma jurídica é válida se existe em um sistema jurídico de normas
hierarquizado, onde a sua criação cabe a uma autoridade que recebeu poderes para
tanto, de uma norma superior, e a forma de elaboração se dá em conformidade com
um procedimento específico, também determinado por normas superiores. A
validade da norma é aferida de acordo com a sua adequação a uma norma superior,
de modo que o fundamento de validade de uma norma é a validade de outra.
Importa aqui consignar que a determinação da norma superior em relação a inferior
pode ser também de conteúdo, não se limitando ao processo de produção. Ao final
dos elos da conexão de dependência entre normas está a norma fundamental
(KELSEN, 2012, p. 246-247).
A norma fundamental é o fundamento de validade último de todo o
ordenamento jurídico. Não se deve confundir a norma fundamental com a
Constituição. Embora a Constituição represente em um sistema jurídico a norma
escrita mais elevada, superior a todas as demais, ela nada tem a ver com a noção
de norma fundamental kelseniana. A Constituição é uma norma escrita, cuja
validade se apoia na norma fundamental. Por sua vez, de acordo com o autor, a
norma fundamental não é escrita, não é produzida ou instituída, ela é pressuposta,
pensada, é uma norma hipotética que estabelece o dever de obediência à
Constituição. Sendo o fundamento de validade último do sistema, não cabe pôr em
questão o fundamento de validade da norma fundamental (KELSEN, 2012, p. 217).

2.2 A TEORIA DA NORMA JURÍDICA SEGUNDO HERBERT HART

Diferentemente de Kelsen, que buscou realizar um projeto de


conhecimento científico do Direito e construiu uma sistemática teoria geral do direito
positivo, Hart realizou um trabalho de análise de conceitos relacionados ao Direito,
abordando aspectos próprios da linguagem, através de um estudo dos significados
das palavras nos seus diferentes usos, de modo a verificar erros e acertos de teorias
17

sobre o Direito e oferecer uma alternativa mais clara de entendimento de


importantes aspectos dos sistemas jurídicos modernos.
Na Teoria Pura do Direito, Kelsen apresenta a sua visão sistemática do
Direito, contendo vários conceitos articulados e organizados, que buscam explicar
todo o universo jurídico. Pretendemos aqui seguir o mesmo procedimento ao tratar
da teoria hartiana da norma jurídica, embora esta tenha sido objeto de um plano
diferente, realizado com uma metodologia diversa da que foi aplicada por Kelsen, de
modo que os conceitos principais da teoria de Hart não estão assim tão bem
evidenciados. Hart utiliza o método de se servir de modelos fictícios, uma verdadeira
experiência com as imagens, e, em especial, de um modelo hipotético de controle
social simplificado, para analisar os fenômenos sociais do direito e da coerção3.
Selecionamos três conceitos da doutrina de Hart que entendemos
fornecer noções relevantes do seu pensamento. O primeiro diz respeito à distinção
dos termos “foi obrigado” e “tinha uma obrigação”, através dos quais ele desenvolve
uma concepção de obrigação jurídica. Em seguida, abordaremos um aspecto
destacado da sua doutrina, conteúdo da subseção “Para além da sanção”.
Por último, veremos que uma das suas mais importantes ideias consiste em
diferenciar o “ponto de vista interno” e “ponto de vista externo”.

2.2.1 Obrigação: diferença entre os enunciados “foi obrigado” e “tinha uma


obrigação”

Hart destaca que uma das mais significativas características do Direito é a


de que sua existência implica a obrigatoriedade de certos tipos de comportamento
humano. Partindo dessa evidência, a de que onde existe o Direito, lá está presente a
obrigação, ele toma uma ilustração do uso imperativo da linguagem, que veremos
ser o caso do assaltante, onde há o elemento da obrigação em geral, com vistas a
esclarecer a ideia de obrigar existente no Direito (HART, 2009, p. 8).
Argumenta o autor que há uma diversidade de situações sociais em que
se verifica o uso do modo imperativo de se falar para expressar um desejo, o de

3
O modelo suposto por Hart é de uma comunidade simples, onde reina um monarca absoluto (Rex),
o qual controla o povo através de ordens apoiadas por ameaças, é habitualmente obedecido, porém
não tem o hábito de obedecer a ninguém.
18

obrigar alguém a fazer algo. Ele adota uma situação especial como exemplo do uso
do modo imperativo, tratando-se de uma situação em que um assaltante portando
uma arma de fogo se dirige ao funcionário de um banco e diz ”entregue o dinheiro
ou atiro” (HART, 2009, p. 24). Nesse caso, ocorre o uso de ameaça de um dano
para compelir alguém a fazer alguma coisa. O modelo do assaltante serviria para
ilustrar a noção de obrigação em geral, presente no ato em que o meliante manda
que o funcionário passe o dinheiro sob o risco de concretizar uma ameaça, isto é, a
de disparar-lhe um tiro. Mas, evidentemente, as características nele presentes
contrariam o Direito, configurando-se uma ação delituosa.
Muitos aspectos separam o modelo do assaltante de um caso de
obrigação em geral, de uma situação de obrigação próxima do Direito. De acordo
com o exame feito por Hart (na perspectiva de mostrar as deficiências da teoria do
direito compreendido como ordens coercitivas), pode-se destacar o fato de que a
superioridade do assaltante é momentânea e provém unicamente do seu poder de
infligir um dano ao funcionário. Inexiste autoridade ou direito para obrigar. O
assaltante dá uma “ordem” pontual, tendo em vista uma só conduta, a de o
funcionário lhe entregar o dinheiro; e individual, dirigida unicamente à pessoa do
funcionário. Na situação em que existe o Direito, de regra, as ordens normativas são
gerais, seja em relação ao comportamento determinado, ou em relação aos
destinatários, e as obrigações, longe de serem momentâneas, caracterizam-se pela
permanência, ressaltando, por último, o fato de que as ordens são frequentemente
obedecidas. (HART, 2009, p. 29).
Poder-se-ia indagar sobre a propriedade da afirmação de que o caso do
assaltante ilustra uma obrigação. Ele não tem qualquer autoridade ou direito sobre o
funcionário do banco, e este não recebeu ordens de um superior para obedecê-lo. A
resposta, de acordo com o autor, está em que é necessário compreender que “Há
uma diferença entre as afirmações de que alguém foi obrigado a fazer alguma coisa
e a de que tinha a obrigação de fazê-lo” (HART, 2009, p. 107).
Para Hart, a situação do assaltante seria descrita corretamente acaso
disséssemos que “se B obedecesse, teria sido „obrigado‟ a entregar seu dinheiro”,
em que B é o funcionário. Ele afirma que esse é um tipo de enunciado de obrigação
que diz respeito a questões psicológicas, como convicções, medos e motivos, que
19

são levados em consideração na prática do ato. O significado de dizer que o


funcionário do banco foi obrigado a entregar o dinheiro ao assaltante só pode ser o
de que ele realmente cria, por fundadas razões, que um mal considerável poderia
lhe ser aplicado caso não entregasse o dinheiro, motivo este por que o entregou
(HART, 2009, p. 107-108).
Uma descrição incorreta da situação seria dizer que “B tinha a „obrigação‟
ou o „dever‟ de entregar o dinheiro”. Este enunciado de obrigação não envolve
necessariamente motivações, sentimentos e convicções, por inexistir relação entre
esses aspectos psicológicos e a questão de a pessoa saber se tinha a obrigação de
uma ação de dada forma. De acordo com Hart, esta afirmativa pressupõe um
contexto em que se observa a existência de uma norma que estabelece padrões de
comportamento, dentre os quais o caso se enquadra. A situação do assaltante,
então, comporta o enunciado de ter sido obrigado, não se acomodando na noção de
ter uma obrigação. Ele explica que o pano de fundo apropriado para o enunciado de
obrigação é o de existência de descrição normativa. Hart ressalta que uma
importante característica das normas prescritivas de obrigações, um fator de
determinação de como são vistas, é a seriedade da pressão social em apoio a elas
(HART, 2009, p. 110-112).
As afirmações de que alguém tinha uma obrigação e a de que foi
obrigado são diferentes, uma vez que pressupõem situações e contextos diversos,
implicando significados próprios. Aquele primeiro tipo de enunciado sugere que se
está numa situação social em que as normas se impõem. Este segundo tipo,
contrariamente, sugere um pano de fundo em que as normas não estão presentes e
a situação é caracterizada por se relacionar a fatores que envolvem sentimentos,
motivações e convicções. A seguir, trataremos de uma ideia da doutrina hartiana
que ressalta a noção de norma como importante elemento do conceito de Direito.

2.2.2 Para além da sanção.

Nos capítulos II, III e IV de sua obra, Hart se propõe a analisar alguns
elementos presentes no pensamento jurídico dominante, extraídos especialmente,
20

mas não exclusivamente, da doutrina imperativa de John Austin, consagrado


pensador jurídico inglês do século XIX, autor do livro The province of jurisprudence
determined, publicado em 1832. Para tanto, Hart imagina um modelo simples de
sistema jurídico com base nos conceitos utilizados para a descrição do Direito, de
modo que a teoria que forma o pano de fundo do modelo de ordem jurídica por ele
imaginado é a de ordens apoiadas por ameaças (ou ordens coercitivas), emanadas
por um soberano habitualmente obedecido, que não tem o hábito de obedecer a
ninguém (HART, 2009, p. 23, 129).
O autor pretende examinar esses conceitos de “ordens apoiadas em
ameaças”, “hábitos”, “soberano” e “obediência”, a fim de verificar deficiências e
formular uma nova teoria, que descreva o Direito não por meio desses conceitos ou
elementos reducionistas, mas a partir da noção de norma como elemento principal,
de modo a traduzir melhor os sistemas jurídicos modernos, cuja representação,
conforme sustentará, é a de uma combinação de normas de tipos e funções
diferentes. Deste modo, ele formula algumas objeções ao modelo simples de
sistema jurídico, ancorado nesses conceitos referidos, que dizem respeito a
questões do conteúdo, da origem e do âmbito de aplicação das leis, bem como à
concepção de um soberano habitualmente obedecido que não tem o hábito de
obedecer (HART, 2009, p. 36). A primeira das objeções se refere ao aspecto do
conteúdo das leis e está mais diretamente relacionada ao tema aqui tratado, razão
por que nos deteremos neste ponto.
No modelo simples de sistema jurídico, as leis são ordens seguidas de
ameaça de sanção, sendo a coerção elemento central do Direito. Hart argumenta
contra este conceito de leis como sendo o de ordens coercitivas, asseverando que
nem todas as normas de um sistema jurídico ordenam fazer ou não fazer alguma
coisa sob pena de punição. Ele afirma que em todos os sistemas jurídicos existem
normas que outorgam poderes aos particulares para celebrar contratos, outras que
outorgam poderes às autoridades para criar leis, estabelecer os procedimentos a
serem seguidos no processo de criação, e para decidir litígios, e ressalta que estas
normas não impõem obrigações e não preveem punição para o caso de
desobediência.
21

De acordo com Hart, o modelo de ordens coercitivas tem analogia com


as leis ou normas penais. Em alguns aspectos, tem também alguma analogia com
as normas sobre a responsabilidade civil, que impõem a quem deu algum prejuízo, a
reparação pelos danos causados. Já em relação a outras normas do sistema
jurídico, como as que outorgam poderes públicos e privados, o modelo de ordens
coercitivas não se aplica, seja porque elas não regulam conduta, seja porque não
impõem sanção para a hipótese de serem violadas (HART, 2009, p. 37).
O autor lembra que essas normas desempenham funções sociais
diferentes, salientando que, enquanto as normas penais têm a função social de
regular as condutas, as normas que concedem poderes às pessoas para
estabelecer relações jurídicas por meio de contratos permitem que as pessoas criem
os instrumentos por meio dos quais realizarão os seus desejos, o que representa
uma grande contribuição para a vida em sociedade (HART, 2009, p. 37). Hart
demonstra que é notória a variedade de tipos de normas, resultante da diversidade
de conteúdo e de funções, revelando que a concepção de Direito, atrelada a um
modelo de regra coercitiva, que regula conduta e prevê sanção, não condiz com a
realidade dos ordenamentos jurídicos.
Para Hart, uma melhor descrição do Direito envolve a ideia de uma
combinação de normas, em que umas impõem obrigações, às quais chamou de
primárias, e normas de outro tipo, ligadas a estas, que chamou de secundárias, e,
por sua vez, são de três modalidades diferentes: as de reconhecimento, as de
modificação e as de julgamento. A sua posição é de refutação à noção de direito
ligada a uma ideia de sanção como elemento característico da norma jurídica.
Contrariamente a essa tendência de redução do Direito a uma ideia de ordem
coercitiva, Hart se concentra numa ideia de normas, que ultrapassa, em muito, o
conceito de sanção.

2.2.3 Ponto de vista interno e ponto de vista externo.

Os conceitos de “ponto de vista interno” e “ponto de vista externo” são


considerados por Hart como da maior importância para a compreensão do Direito e
22

da estrutura social, afirmando-os como um dos principais temas de sua obra, por
promoverem o entendimento da maneira de pensar, de falar e de agir que a
existência de normas enreda. Segundo o autor, eles representam tipos de atitudes,
do membro ou membros de um grupo social, diante das normas de que a sociedade
dispõe, implicando tipos diferentes de enunciados. Hart afirma que esses conceitos
traduzem a forma como os indivíduos se relacionam com as normas (HART, 2009, p.
115).
Quando os indivíduos têm uma relação com a norma como a de um
simples observador, e não a encaram como um guia de conduta para as suas vidas,
essa atitude é chamada por Hart de ponto de vista externo. Ele ressalta que do
ponto de vista externo podem ser feitas muitas descrições, várias afirmações, mas
discrimina o tipo em que o observador apenas registra as regularidades do
comportamento observado “nas quais consiste parcialmente a obediência às
normas, e as outras reações regulares- reações hostis, recriminações ou punições-
aos desvios ou infrações das normas” (HART, 2009, p. 115).
Nessa posição, o observador poderá, após algum tempo de verificação,
fazer associações entre os desvios ocorridos e a reação hostil, de modo que a
violação à norma, para ele, é só um sinal de que haverá uma reação, com o que se
tornará capaz de fazer previsões do tipo que, a um desvio se seguirá uma reação
hostil ou uma punição, pois se valerá da mera verificação de regularidades
empíricas, sem considerar a forma como os integrantes do grupo social que aceitam
as normas encaram o seu próprio comportamento. Nessa posição do ponto de vista
externo, o observador não poderá fazer afirmações de como o grupo se relaciona
com as normas, pois não se valerá de noções de norma, de obrigações ou de dever.
Descreverá, conforme assinalado, as regularidades observáveis da conduta do
grupo, bem como algumas previsões ou sinais (HART, 2009, p. 116).
Quando os membros de um grupo social se relacionam com as normas
como se lhes representando um manual de conduta, e aceitam conduzir os seus
atos conforme as determinações normativas, a atitude desses indivíduos pode ser
chamada de ponto de vista interno. Para essas pessoas, as normas “estabelecem
um padrão de comportamento e uma obrigação” a ser seguida. Nessa posição, os
desvios à conduta normal não consistem em um mero sinal de que se seguirá uma
23

reação hostil, nem constitui uma previsão de punição, mas representa para o grupo
uma razão para a hostilidade. O grupo busca se comportar de acordo com as
prescrições normativas, e as normas funcionam como preceitos prescritivos de
obrigações que devem ser cumpridos por sua importância, constituindo-se numa
espécie de compromisso voluntário (HART, 2009, p. 115-116). Esse contexto de
normas diferencia-se da ideia de um simples hábito, como o de frequentar um
determinado restaurante, onde os desvios não resultam em retaliações ou reações
hostis, inexistindo as noções de compromisso e de razão para punição em caso de
violação.
Hart afirma que o ponto de vista interno retrata a maneira como as
normas funcionam para aqueles que a consideram como guia de comportamento, e
as utilizam em suas vidas, podendo ser traduzido com afirmação do tipo „Eu tinha a
obrigação‟, ressaltando que esse grupo constitui a maioria da sociedade
representada por autoridades, juristas e pessoas em geral. Quanto ao ponto de vista
externo, reproduz a maneira como as normas funcionam na vida de integrantes do
grupo social que só se atentam para a norma quando acreditam que reações hostis
possam advir de uma violação, revelado em expressão como “Você provavelmente
terá problemas se (...)”, mas não pode reproduzir a forma como as normas
funcionam para aqueles que a consideram para avaliar o próprio comportamento e o
dos demais indivíduos na sociedade. (HART, 2009, p. 117).
Hart assevera que esses conceitos se referem a aspectos internos e
externos das normas, e devem ser ambos considerados para a compreensão da
complexidade do fenômeno jurídico. Deste modo, no contexto social normativo
verifica-se um padrão de comportamento regular e uma atitude crítica, perante a
norma, de aceitação, referindo-se aos pontos de vista externo e interno. A teoria do
Direito como a de ordem apoiada por ameaça parece ter em vista somente o
aspecto externo das normas, na medida em que dá a entender que as pessoas
atuam com receio de possíveis reações hostis às infrações das normas.
24

3. CLASSIFICAÇÃO DAS NORMAS JURÍDICAS EM KELSEN E HART

A doutrina reconhece a pluralidade e variedade de normas jurídicas.


Norberto Bobbio afirma que, partindo-se de uma definição genérica de ordenamento
jurídico como um conjunto de normas, pressupõe-se que inexista ordenamento
composto por uma só norma, afirmando que “para se conceber um ordenamento
composto de uma só norma seria preciso imaginar uma norma que se referisse a
todas as ações possíveis e as qualificasse como única modalidade” (BOBBIO, 1999,
p. 31-32). Uma proeza normativa dessa natureza não seria concebível, pois, como
faz ver Bobbio, as possibilidades de sistema normativo seriam na modalidade do
Tudo é permitido, Tudo é proibido ou do Tudo é obrigatório, em que a primeira
norma nega o próprio ordenamento jurídico e as restantes impossibilitam a vida
social humana (BOBBIO,1999, p. 31-32).
Buscando-se identificar as normas jurídicas por caracteres comuns, vários
foram os elementos destacados, resultando numa variedade de tipos normativos,
mostrando que as classificações das modalidades de normas têm muita importância,
até mais que a questão da sua conceituação, onde a generalidade e a imprecisão
tomam conta (FERRAZ JUNIOR, 2003, p. 121). É inegável a relevância prática das
classificações das normas jurídicas, ressaltando-se a sua aplicabilidade em tarefas
essenciais como a da interpretação. Na próxima subseção, faremos uma exposição
da classificação de normas jurídicas em autônomas e não autônomas, de Hans
Kelsen. Em sequência, abordaremos a teoria hartiana de normas primárias e
secundárias, estas classificadas em normas de reconhecimento, de modificação e
de julgamento.

3.1 O ENTENDIMENTO DE HANS KELSEN

Dissemos que, segundo Kelsen, a sanção é o elemento essencial da


estrutura da norma jurídica, aquele que distingue o Direito no universo das normas
sociais e representa a sua característica mais significativa (BOBBIO, 1995, p. 156).
Com essa ênfase é de se esperar que o critério de classificação das normas
jurídicas kelseniana seja determinado pela sanção. Do seu ponto de vista, a sanção
25

representa um mal, isto é, a sanção é recebida pelo destinatário como sendo a


privação de um bem valoroso, a exemplo da vida, da liberdade, de bens
econômicos, além de outros também estimados, e só excepcionalmente poderia não
ter essa natureza, a de algo que causa prejuízo.
Kelsen, na primeira edição da Teoria Pura do Direito,4 classificou as
normas jurídicas em primárias e secundárias. O autor apresentou a norma jurídica
formalizada como um duplo juízo hipotético: “Dada certa conduta de alguém deve
ser um ato coativo (dada a não prestação deve ser a sanção)” e a essa norma deu o
nome de primária. O outro juízo, “Dado um fato temporal, deve ser a prestação
(dado Ft deve ser P)”, chamou essa norma de secundária. O autor se referiu à
primeira norma como primária “em decorrência da ênfase que colocou no ato coativo
como específico do jurídico” (DINIZ, 1999, p. 76). Já a norma secundária, aquela
que estabelece a conduta lícita, na lição de Diniz, “era mero expediente técnico para
fazer atuar a primária (sancionadora), que era a verdadeira norma para a doutrina
kelseniana” (DINIZ, 1999, p. 76), a norma que fixava o ato coativo como
consequência da conduta proibida.
Nessa classificação de normas, a nota distintiva é dada pelo elemento da
sanção, de modo que a norma primária é considerada como a norma autêntica por
estabelecer uma sanção para o caso de violação à conduta prescrita. A norma
secundária é a que apenas estabelece a conduta. Segundo Tércio Sampaio, a
distinção kelseniana entre normas primárias e secundárias tem em conta o fator da
relevância, de modo que servia para avaliar a importância das normas: as primárias
eram como que superiores, por seu valor, às secundárias (FERRAZ JUNIOR, 2001,
p. 121). Mas, posteriormente, na segunda edição de sua obra, Kelsen classificou as
normas jurídicas em autônomas e não autônomas, tendo como critério também o
elemento coativo. Enfocaremos cada uma dessas modalidades a seguir.

4
Kelsen modificou o seu entendimento sobre a qualificação das normas, expondo um pensamento,
na primeira edição da obra Teoria Pura do Direito, que foi alterado na sua segunda edição.
26

3.1.1 Normas autônomas

Kelsen afirma que as normas autônomas são as que prescrevem uma


sanção para o caso da não observância da conduta prescrita, ou seja, são normas
que estatuem uma sanção para a hipótese de uma conduta proibida. Um exemplo
pode ser o art. 247 do Código Civil, que comina a obrigação de pagar perdas e
danos ao devedor que recusar a prestação a ele só imposta, ou apenas por ele
exequível. Trata-se de um caso de norma autônoma porque preceitua uma sanção
para a hipótese de se verificar a conduta oposta àquela devida (KELSEN, 2012, p.
61).
As normas penais simbolizam o modelo de normas autônomas, pois, de
regra, estabelecem a conduta proibida a que se liga a sanção. Não há norma penal
que apenas prescreva uma conduta a ser evitada. O art. 155 do Código Penal
preceitua: “Subtrair, para si ou para outrem, coisa alheia móvel: Pena- reclusão, de
1(um) a 4(quatro) anos, e multa.” A norma proíbe uma conduta pelo fato de
estabelecer uma sanção para a conduta prescrita. Sendo as normas penais, em
geral, normas sancionadoras, elas realmente encarnam o modelo de normas
autônomas.
Tercio Sampaio diz que as normas autônomas são “as que têm por si um
sentido completo”, pois, “são as normas que prescrevem uma sanção a um
comportamento estatuído”, ressaltando a sua estrutura de norma independente, que
não exige um complemento (FERRAZ JÚNIOR, 2001, p. 123). Para Kelsen, sendo o
Direito uma ordem coercitiva, essas normas representam a autêntica norma jurídica,
a norma por excelência, cujo caráter jurídico lhe é conferido pelo elemento da
sanção.

3.1.2 Normas não autônomas

Kelsen denomina de não autônomas as normas desprovidas de sanção,


afirmando que elas têm ligação essencial com as normas autônomas. O autor
compreende a noção de Direito como ordem coercitiva a partir da ideia de
vinculação existente entre essas normas, defendendo que as normas jurídicas que
27

não estatuem ato de coerção dependem das normas sancionadoras. Na categoria


de não autônomas, encontramos uma variedade de normas jurídicas.
Podemos começar lembrando a noção de “dever-ser” da norma jurídica.
Vimos que o dever-ser da norma constitui o seu conteúdo, uma vez que a norma
exprime a conduta que deve ser, tendo os significados de prescrever, proibir,
permitir, conceder, atribuir. Um dos casos de norma não autônoma é a de “normas
que permitem uma conduta ou conferem o poder de realizar uma conduta”
(KELSEN, 2012, p. 56). Entre as primeiras, as que permitem positivamente a prática
de uma conduta, um exemplo é a norma que permite o uso da violência em legítima
defesa. Esta norma está relacionada à norma autônoma que proíbe a conduta de
matar alguém e liga uma sanção ao seu cometimento (o art. 121, do Código Penal).
Outro exemplo, fora do campo do Direito Penal, é o art. 1.210, § 1º, do Código Civil,
que permite o emprego da força pelo possuidor turbado ou esbulhado em defesa de
sua posse. O art. 345 do Código Penal proíbe a autotutela, sancionando o exercício
da violência como prática da justiça privada, e aquela norma estabelece uma
limitação ao domínio de validade desta (KELSEN, 2012, p. 61).
A norma não autônoma que outorga poder para a prática de um ato pode
ser ilustrada com as normas constitucionais que conferem poder às autoridades para
elaborar leis e disciplinar o procedimento de sua criação. Este tipo de norma pode
ser encontrado em vários diplomas legais, como os códigos de processo penal e
processo civil, e regimentos de tribunais, onde existem dispositivos que conferem
competência a juízes e órgãos dos tribunais, e também estabelecem os
procedimentos a serem observados. Pinçamos as normas dos artigos 48, 49, 51 e
52 da Constituição Federal, que dão poderes ao Congresso Nacional, à Câmara dos
deputados e ao Senado, assim como a dos artigos 59, 60 e 61, que tratam do
procedimento de elaboração das leis. Salienta o autor que essas normas estão
essencialmente interligadas às normas autônomas na medida em que determinam
os órgãos com competência para criá-las, o modo de proceder à sua criação, assim
como o procedimento a ser seguido na etapa de execução das sanções (KELSEN,
2012, p. 63).
Outro caso de norma não autônoma é o da norma que prescreve uma
conduta, mas não liga um ato de sanção à conduta oposta (KELSEN, 2012, p. 61).
28

Seguindo a linha de se valer de uma norma do nosso ordenamento jurídico, servimo-


nos do art. 569 do Código Civil, entendendo que se presta como exemplo ao caso,
tratando-se de norma que elenca as obrigações do locatário. O art. 570 do mesmo
estatuto legal, por sua vez, estabelece ao locador, quando falta com determinadas
obrigações (emprega a coisa locada em uso diverso do ajustado ou a danifica), uma
punição (o pagamento de perdas e danos, além de suportar a rescisão do contrato,
a requerimento do credor). Esta última norma não só estatui a sanção, como
também contém, positivamente, a condição a qual se liga a sanção nela prevista, de
modo que, seguindo o ponto de vista de Kelsen, o art. 569 apenas estabelece, de
forma negativa, a condição à qual se liga a sanção, estando estas normas
essencialmente interligadas. Ele também afirma que uma norma “torna-se supérflua
do ponto de vista da técnica legislativa”, se outra estatui, de forma positiva, o
pressuposto a que liga a sanção (KELSEN, 2012, p. 61).
Outras hipóteses de normas não autônomas são as normas derrogatórias
e as interpretativas, em que as primeiras determinam a invalidade de outra norma,
retirando-a de vigência, enquanto as segundas são as que buscam esclarecer o
sentido de outras normas a fim de determinar seu conteúdo. Kelsen afirma que há
uma grande relação de dependência entre as normas derrogatórias e as normas
autônomas, de modo que só se pode compreendê-las a partir dessa conexão. O art.
2.045 do atual Código Civil determina expressamente a revogação do Código de
1916 e de parte do Código Comercial, sendo um claro exemplo de norma
derrogatória (KELSEN, 2012, p. 62). Já as interpretativas, podem ser ilustradas com
o art. 819 do Código Civil, o qual reza que “a fiança dar-se-á por escrito, e não
admite interpretação extensiva”, e o art. 47 do Código de Defesa do Consumidor, ao
preceituar que “as cláusulas contratuais serão interpretadas de maneira mais
favorável ao consumidor”, sendo casos de normas que existem em função de outras,
cujo sentido buscam esclarecer.
Outras normas não autônomas kelsenianas poderiam ser indicadas,
porém mais importante que oferecer um elenco dos tipos possíveis é fornecer a ideia
muito simples de norma não autônoma, que vem a ser a de normas não
sancionadoras caracterizadas por uma ligação com as autônomas. A noção é de
que são normas incompletas, dependentes daquelas, as que são providas de
29

sanção. Observamos que a vinculação entre essas normas é mais evidente em


alguns casos, como o das normas derrogatórias e interpretativas. Kelsen não as
distinguiu em função do grau do nexo que as unem nem parece ter dado importância
a esse aspecto, de modo que na categoria das não autônomas estão reunidas
normas muito diferentes. Essas normas estão ligadas por um laço tênue que busca
identificá-las no lugar das normas jurídicas, como assevera Kelsen: “uma norma,
para ser interpretada objetivamente como norma jurídica tem de estatuir um ato de
coação ou estar em essencial ligação com uma norma que o estatua” (KELSEN,
2012, p. 56).

3.2 O PENSAMENTO DE HERBERT HART

Segundo a teoria hartiana, a noção de Direito envolve a ideia de uma


combinação de normas diferentes, denominadas de primárias e secundárias, em
que as primárias são concebidas como as que impõem uma conduta a ser seguida
ou evitada, queiram ou não os destinatários, sendo exemplo a que estabelece como
crime a conduta de matar alguém e estipula uma pena privativa de liberdade,
prevista no art. 121 do Código Penal. A norma que estabelece os deveres dos pais
em relação aos filhos, a do art. 1.634 do Código Civil, é outro exemplo dessa
modalidade. As normas secundárias não exigem a prática nem proíbem certos atos,
sendo consideradas parasitárias em relação às primárias, com as quais têm ligação,
subdividindo-se em três tipos distintos: as normas de reconhecimento, as de
modificação e as de julgamento.
Para expor a sua teoria, Hart utilizou um modelo hipotético de estrutura
social simplificada em que a única característica observada na comunidade,
concernente a um controle social, é a atitude de aceitação de seus membros frente
aos padrões convencionais de conduta, referindo-se a ela como uma sociedade que
contém unicamente normas primárias de obrigação (HART, 2009, p. 118). Afirma
que para uma sociedade sobreviver constituída apenas por esta categoria de
normas, seria necessário satisfazer algumas condições mínimas, como a proibição
do uso infundado de violência, roubo e fraudes, a obediência às normas por parte da
maioria do grupo social, e, em especial, que a sociedade fosse formada por pessoas
30

unidas por laços muito fortes, em um ambiente familiar. A intenção do autor, ao se


servir desse modelo imaginário de controle social, é demonstrar a estrutura de um
sistema jurídico. Através do modelo, ele aponta os defeitos e as suplementações
que uma ordem social tão simplória, fundada apenas em normas primárias de
obrigação, isoladas, necessitaria para se tornar um sistema jurídico (HART, 2009, p.
119).
Podemos revelar as deficiências detectadas por Hart através de algumas
perguntas sobre o modelo simples de controle social. Em uma sociedade contendo
apenas normas primárias, o que haveria de ser feito para se identificar as normas
existentes? Segundo Hart, a incerteza a respeito das normas vigentes seria um
grave defeito dessa forma de estrutura de controle social, exatamente por lhe faltar
um tipo específico de normas capaz de dirimir essa dúvida. Haveria necessidade de
suplementar este controle com uma modalidade diferente das primárias, para
solucionar o defeito da incerteza. O autor afirma que a solução seria a inclusão de
uma norma com a função de identificar as normas válidas, à qual chamou de norma
secundária de reconhecimento.
Uma vez que se compõe apenas por normas primárias, poderíamos
perguntar: como se daria nessa sociedade a modificação ou extinção de normas
antigas, e introdução de outras, mais adequadas às novas circunstâncias sociais?
De acordo com Hart, as normas primárias só seriam alteradas mediante um lento
processo, no qual as condutas passariam a ser, de opcionais, habituais, até se
tornarem obrigatórias, ocorrendo o mesmo em um sentido inverso, em que, de
obrigatórias, as condutas se tornariam toleradas e, depois, despercebidas. Atribuiu
esse aspecto ao caráter estático das primárias e concluiu que seria necessária a
suplementação da estrutura simplificada com outro tipo de normas, afirmando que a
solução seria a inclusão da norma secundária de modificação, com a função de
assegurar a atualização das normas.
Uma terceira pergunta: como haveria, nessa estrutura social, de se aferir
a violação de uma norma e punir o infrator? Hart explica que essa forma de controle
social seria marcada pela ineficiência, pois a verificação acerca de violação às
normas ficaria a cargo de grupos desorganizados, com possibilidade de recurso à
vingança privada, ressaltando que haveria de ser complementada essa estrutura
31

com a introdução de normas disciplinadoras de órgãos oficiais capazes de


determinar a ocorrência de violação às normas e punir os transgressores,
chamando-as de normas secundárias de julgamento.
A estrutura social formada unicamente por normas primárias de obrigação
do modelo hipotético hartiano apresentaria, assim, os três graves defeitos da
incerteza, do caráter estático e o da ineficiência, sendo que a adição das três
modalidades de normas secundárias transformaria a estrutura social simples,
formada por normas soltas, em um indiscutível sistema jurídico, onde cada categoria
normativa solucionaria um defeito específico (HART, 2009, p. 118-122). Para o
autor, a combinação de normas primárias e secundárias representa “o cerne de um
sistema jurídico” (HART, 2009, p. 127), merecendo destaque, as seguintes
afirmativas:

Enquanto as normas primárias dizem respeito a atos que os


indivíduos devem ou não devem praticar, todas as normas
secundárias se referem às próprias normas primárias. Especificam
como as normas primárias podem ser determinadas, introduzidas,
eliminadas e alteradas de forma conclusiva, e como estabelecer
conclusivamente o fato de terem sido transgredidas.” (HART, 2009,
p. 122).

Vimos que as normas primárias impõem o cumprimento de obrigações e


condutas, e as ilustramos com os artigos 121 do Código Penal e 1.634 do Código
Civil, embora exemplos possam ser extraídos de vários ramos do Direito, pois
compreendemos que as normas primárias não estão enfeixadas na modalidade das
normas penais. Uma norma penal, de regra, determina que o indivíduo se abstenha
da prática de um ato ou que pratique um determinado comportamento, prevendo
uma sanção para o caso de descumprimento. Nem todas as normas obrigacionais
têm essa estrutura, como a referida norma do art. 1634 do Código Civil, que
estabelece os deveres dos pais em relação aos filhos, sendo desprovida de sanção.
De outro lado, a perda do poder familiar por um ou ambos os pais, em razão de
cometimento de certas condutas, prevista no art. 1.638 do Código Civil, é medida
que visa a atender aos interesses da criança ou do adolescente do que impor uma
sanção àqueles. A norma que estabelece as obrigações dos contratantes em um
contrato de compra e venda, como é o caso do art. 481 do Código Civil, e as que
32

dispõem dos deveres das partes nos diferentes tipos de contratos, também ilustram
essa categoria de normas. A seguir, abordaremos, em separado, cada uma das
modalidades de normas secundárias.

3.2.1 Normas de reconhecimento

As normas secundárias de reconhecimento se relacionam com as


normas primárias, “especificando as características que, se estiverem presentes
numa determinada norma, serão consideradas como indicação conclusiva de que se
trata de uma norma do grupo” (HART, 2009, p. 122). Podemos dizer que a função
desse tipo de norma é oferecer critérios para a identificação das normas vigentes em
uma dada ordem jurídica, pelas pessoas em geral e por parte das autoridades
públicas (HART, 2009, p. 130).
Há uma diversidade de formas pelas quais as normas de reconhecimento
se manifestam, sendo que a forma mais simples é a que se constitui em referência a
um texto escrito. O Código de Hamurabi é o mais antigo texto de leis já descoberto e
ilustra uma forma simples e antiga de norma de reconhecimento. Nos sistemas
jurídicos modernos, embora a consulta aos textos de leis, como a Constituição, seja
um exemplo de critério de identificação da norma jurídica, as normas de
reconhecimento são mais complexas. Além do exame de textos legislativos, a
identificação das normas é feita “por meio da referência a algumas características
gerais das normas primárias” (HART, 2009, p. 123). Hart explica que “pode ser, por
exemplo, o fato de terem sido aprovadas por um órgão específico, ou sua longa
prática consuetudinária, ou ainda por sua relação com as decisões judiciais” (HART,
2009, p. 123).
Essas características são critérios por meio dos quais se torna possível
admitir a vigência da norma em determinado ordenamento jurídico, podendo dizer
respeito a um processo específico de criação de normas, de modo que a norma
elaborada segundo um procedimento especial e emanada de órgão competente é
considerada válida no sistema. Um exemplo é o artigo 60 da constituição, que prevê
a possibilidade de emenda, segundo um procedimento específico, a cargo de um
órgão especial, além de estabelecer limitações concernentes à matéria objeto de
33

alteração. A norma elaborada a partir de uma proposta de emenda à constituição,


com a observância dos trâmites previstos nas normas pertinentes à sua criação, é
de ser reconhecida como válida, por estes caracteres que funcionam como elemento
de aferição da validade da norma.
É possível que os critérios de identificação da norma válida sejam
concernentes a decisões judiciais reiteradas sobre uma dada questão. O
posicionamento uniforme dos tribunais sobre um assunto pode gerar um vínculo
para os tribunais que as emite e para outros tribunais inferiores e juízes. As decisões
de juízes e tribunais nesse caso passam a acompanhar a posição do tribunal
superior que deu uma interpretação específica a uma norma primária. Então, essas
decisões se tornam verdadeiros critérios de identificação de normas válidas.
De acordo com Hart, a norma de reconhecimento não é formulada
expressamente, mas demonstrada por meio da forma como as autoridades e os
indivíduos em geral buscam identificar as normas jurídicas. No caso dos tribunais e
demais aplicadores do direito, o uso da norma de reconhecimento como modelo
para a identificação de normas específicas, o modo como atuam de fato para
identificá-las, revela uma atitude própria do ponto de vista interno, manifestada em
expressões do tipo “A lei estabelece que...”, característica de quem se relaciona com
as normas as aceitando, e de quem aplica a norma de reconhecimento para
reconhecer como válida uma dada norma do sistema (HART, 2009, p. 131-132).
Como os critérios de reconhecimento da validade das normas são
diversificados, há a possibilidade de ocorrer conflito entre eles, razão por que são
classificados de forma hierárquica, em que o critério superior normalmente é o das
disposições constitucionais, nos sistemas com uma Constituição escrita. No
ordenamento jurídico brasileiro, as normas da Constituição funcionam como o
critério hierarquicamente mais elevado para identificação da norma válida,
representando, portanto, o último, da norma de reconhecimento.
A norma de reconhecimento é, portanto, o fundamento de validade do
sistema jurídico, uma vez que oferece os critérios de avaliação da validade de outras
normas do sistema. Uma norma é considerada válida se atende aos critérios
oferecidos pela norma de reconhecimento, que não se manifesta na forma
expressamente formulada de uma norma, mas no seu emprego pelos tribunais e
34

demais funcionários, para identificar, declarar e aplicar as normas como válidas.


Contudo, enquanto uma norma do sistema pode ser válida, a norma de
reconhecimento, que propõe os critérios de validade, não pode ser aferida como
válida ou inválida, mas a sua utilização é simplesmente aceita, como uma prática
complexa de autoridades e pessoas em geral (HART, 2009, p. 140-142).

3.2.2 Normas de modificação

Através das normas secundárias de modificação é possível introduzir,


alterar e eliminar as normas no sistema jurídico. Elas conferem poderes para a
criação de novas normas, alteração ou extinção de normas antigas, e determinam os
procedimentos a serem seguidos no exercício dessa atividade, possibilitando a
atualização normativa. Entendemos que as normas que outorgam aos indivíduos
poderes de realizar atos e negócios jurídicos, a exemplo de testamentos,
casamentos ou contratos, determinando as condições como devem ser
formalizados, também estão incrustadas na modalidade de normas de modificação
(HART, 2009, p. 124-125). Vejamos alguns exemplos explicativos.
As normas secundárias de modificação que outorgam poderes às
autoridades para a elaboração de normas pode ser ilustrada com o artigo 61 da
Constituição, que estabelece as autoridades e os órgãos com competência para a
iniciativa de leis das matérias nele delimitadas. Já os artigos 59 e 60 do texto
constitucional disciplinam o processo de criação das normas. Cuidam de um tipo
normativo que pode ser encontrado em diversos diplomas legais, nas esferas do
executivo, do legislativo e do judiciário. Encontramo-las em leis orgânicas de
instituições públicas e de regimentos internos de tribunais, por exemplo, onde são
delimitadas a competência dos órgãos e a forma procedimental de sua atuação.
As normas que outorgam poderes aos indivíduos para firmar contratos,
disciplinando sobre as condições, os meios e procedimentos para a realização
desses negócios jurídicos, merecem uma atenção especial. Elas conferem às
pessoas naturais poderes para estabelecer relações entre si que produzam efeitos
jurídicos. Vejamos o que Hart diz sobre essas normas jurídicas:
35

Essas leis não impõem deveres ou obrigações. Em vez disso,


oferecem aos indivíduos meios para realizar seus desejos,
outorgando-lhes poderes jurídicos para criar estruturas de direitos e
deveres na moldura coercitiva do direito através de certos
procedimentos e sob determinadas condições. (HART, 2009, p. 37)

Essas normas jurídicas não dispõem sobre deveres, não exigem ou


proíbem a prática de um ato, queiram ou não os seus destinatários. O que elas
fazem é ditar como se deve proceder, por exemplo, se o que se deseja é contrair um
matrimônio, doar um bem, ou deixar um testamento. Elas estabelecem as
qualificações de quem deseja praticar certos atos jurídicos (como a idade de 18
anos, para testar, art. 1.857, do Código Civil; ou mais de 16 anos, com autorização
de ambos os pais, para casar, art. 1.517 do mesmo diploma legal), a forma de que
se deve revestir o documento (como o de ser escrito por tabelião, em seu livro de
notas, no caso de testamento público, art. 1.864 do Código Civil; ou a habilitação
para o casamento perante oficial competente, art. 1525 do mesmo código), os tipos
possíveis de que se pode servir para o ato ou relação jurídica que se espera realizar
(testamento público, cerrado ou particular, nos termos do art. 1.862, do Código Civil;
casamento civil ou religioso com efeitos civis, artigos 1.512 e 1515 do mesmo
diploma), procedimentos ou meios, condições especiais. São aspectos relativos à
pessoa e referentes ao modo de formalização dos negócios.
Essas normas de modificação exercem uma importante função social ao
regulamentar a prática de atividades comuns e tão necessárias à vida em
sociedade, como é o caso das várias espécies de contrato, além de outros atos tão
tradicionais e também corriqueiros, como da feitura de testamentos. Como diz Hart,

Do mesmo modo que não poderia haver crimes e delitos se não


houvesse leis penais do tipo coercitivo, tampouco poderiam existir a
compra e a venda, as doações, testamentos ou casamentos na
ausência de normas que outorgam poderes; pois todos esses atos,
como as ordens dos tribunais e as leis criadas pelos corpos
legislativos, consistem apenas no exercício válido de poderes
jurídicos (HART, 2009, p. 43).
36

Ressalte-se que a não observância de uma das condições exigidas para o


exercício do poder, público ou privado, acarreta a nulidade do ato, efeito este que
Hart sustenta não ser semelhante à sanção, argumentando que, em muitos casos, a
nulidade não representa um mal para quem não cumpriu alguma exigência e deu
causa a invalidação, como o do contrato firmado por um menor de idade (HART,
2009, p. 45). O autor confere tamanha importância ao conjunto das normas de
modificação que não hesitou em comparar a sua introdução na sociedade ao que
pode ser considerada a passagem do mundo pré-jurídico ao jurídico (HART, 2009, p.
56).
Sabemos que a atividade legislativa é também um critério de identificação
das normas, como foi visto ao tratar das normas de reconhecimento, de modo que é
manifesta a relação entre as normas de reconhecimento e as de modificação. De
acordo com Hart, sempre que existirem as de modificação, a norma de
reconhecimento deverá adicionar uma referência à prática legislativa como um traço
peculiar de identificação das normas (HART, 2009, p. 122).

3.2.3 Normas de julgamento

Na estrutura social formada apenas por normas primárias, haveria o


defeito da ineficiência do controle de cumprimento das normas, a cargo apenas da
pressão social desorganizada, ou seja, nas palavras de Hart, “haverá disputas para
saber se uma norma aceita foi ou não violada [...] se não houver uma instância
especialmente encarregada de estabelecer [...] o fato da violação da norma” (HART,
2009, p. 121). A solução seria introduzir as normas de julgamento, às quais caberia
outorgar poderes a alguns indivíduos para decidirem se, em casos específicos,
ocorreu violação a uma norma, bem como ditar os procedimentos a serem seguidos
para a tomada da decisão sobre eventual transgressão à norma.
As normas de julgamento “conferem poderes judiciais e um status
especial às declarações judiciais sobre o não cumprimento de obrigações” (HART,
2009, p. 125). São desse tipo as normas constitucionais que conferem poderes a
juízes e tribunais para solucionar os litígios e demandas judiciais, a exemplo dos
artigos 92 e 102 da Constituição Federal. A primeira norma estabelece os órgãos
37

que compõem o poder judiciário e que são responsáveis por decidir se, em
determinadas situações, houve violação às normas primárias. A segunda norma
enumera as competências atribuídas ao Supremo Tribunal Federal, delimitando os
litígios e ações que devem ser conhecidos, processados e julgados por essa Corte
maior do judiciário.
Segundo Hart, há ligações entre as normas de julgamento e a de
reconhecimento. Ele explica que “a norma que conferir jurisdição será também uma
norma de reconhecimento, que identificará as normas primárias por meio dos
julgamentos dos tribunais” (HART, 2009, p. 126). Tratam-se dos julgamentos que
representam precedentes, os quais são observados pelos julgadores nas suas
decisões, de modo que a norma de julgamento permite aos juízes, por meio de suas
sentenças, identificar as normas primárias.

4. CONCLUSÃO

Expusemos alguns conceitos principais das doutrinas de Kelsen e Hart


bem como a classificação das normas jurídicas de cada um, e vimos que esses
autores compreendem o Direito como sendo formado por normas reunidas, que
existem enquanto pertencentes a um determinado sistema jurídico, cuja unidade é
garantida por um fundamento de validade apoiado em uma ideia de norma última
não positivada, tratando-se da norma fundamental kelseniana e da norma de
reconhecimento hartiana, dois importantes conceitos, além de complexos e
polêmicos, que aqui foram apenas mencionados.
O lugar da norma é o mais importante e central nessas teorias do Direito,
porém a concepção de normas jurídicas apresenta divergências entre uma e outra.
Os conceitos de “sanção” e “para além da sanção”, na seção 2, não apenas
sugerem, mas em verdade revelam formas diferenciadas de se entender e de se
descrever o Direito, tendo sido ali postos com a intenção de fazer ver a valorização
da sanção, em grau elevado, conferida por Kelsen, para conceituar a norma jurídica
e distinguir o Direito, enquanto, para Hart, melhor do que a noção de sanção é a
própria ideia de norma como elemento essencial para elucidar os aspectos
essenciais do fenômeno jurídico. A centralidade que Hart conferiu ao tema dos
38

enunciados internos e externos, do ponto de vista interno e ponto de vista externo,


revela o posicionamento de que a noção de norma é fundamental para alcançar um
entendimento amplo e mais completo do Direito. Esses conceitos dizem respeito ao
modo como os integrantes de uma sociedade se relacionam com as normas e o
autor compreende haver uma ideia de compromisso social implicada na noção de
norma, de aceitação voluntária das normas como padrão de comportamento, em
oposição ao entendimento de seu cumprimento envolvido numa ideia de receio de
punição, que apenas dá uma visão externa da ideia de obrigação da norma.
Hart argumenta que nem todas as normas preveem uma punição,
ressaltando a diversidade de normas jurídicas, para refutar as teorias que buscam
uniformizar as normas em um ou alguns elementos, como o caso da doutrina
kelseniana, centrada no elemento coativo. Ele mostra que a escolha de um elemento
único identificador das normas jurídicas impede a percepção dos diferentes
movimentos e operações que estão implicados em diferentes tipos de normas, como
as que impõem uma conduta a ser seguida ou evitada, e preveem uma sanção, e as
que outorgam poderes públicos e privados para a prática de atos. Para tanto,
sobreleva as diferentes funções que essas normas exercem, seja a de buscar evitar
condutas socialmente indesejáveis, no caso das primeiras, seja de estimular
determinadas condutas, regulamentando-as, no caso das segundas.
Defendemos que a classificação das normas jurídicas hartiana em
normas primárias e secundárias, estas subdivididas em normas de reconhecimento,
de modificação e de julgamento, representa melhor a dimensão do Direito como
modo de controle social, na medida em que dá a conhecer as diferentes
características das normas e promove desta forma a sua identificação, possibilitando
uma descrição mais acabada do sistema jurídico moderno. A classificação
kelseniana em normas autônomas e não autônomas confere ao elemento da sanção
uma valorização excessiva que distorce a compreensão do Direito, ressaltando-se
que a reunião de normas constitucionais que outorgam poderes a autoridades, com
as que impõem obrigações, as derrogatórias e as que permitem positivamente uma
conduta, entre outras, numa modalidade única de normas não sancionadoras, não
permite sequer vislumbrar aspectos muito díspares entre elas.
39

O cotejamento dessas teorias classificatórias evidencia que a diferença


dos tipos normativos vai além dos contrastes referentes aos aspectos de
terminologia e estrutura. Sustentamos que essas classificações não devem ser
confundidas, compreendendo que decorrem de métodos e perspectivas diferentes.
Deste modo, ressaltamos que o conceito de normas primárias não coincide com o
de normas autônomas, uma vez que aquelas são normas que exigem a prática ou
abstenção de condutas, que preveem, ou não, uma sanção. A estrutura de uma
norma autônoma parece ajustar-se bem ao modelo das normas penais, embora não
exclusivamente, considerando-se que, em geral, muitas das normas do Direito Civil
que estabelecem obrigações não apresentam uma previsão de punição para a
hipótese de serem violadas, limitando-se a ditar condutas, obrigações, deveres. De
outro lado, muitas das consequências para as transgressões das obrigações nelas
impostas não podem ser equiparadas a uma sanção no sentido que lhe é atribuído
na doutrina kelseniana, de um mal, uma espécie de castigo ou pena.
A compreensão da invalidação dos atos jurídicos pelo descumprimento de
obrigações como uma sanção é uma maneira forçada de tentar uma equiparação de
normas do Direito Civil com as normas autônomas, que a própria noção de sanção
como um mal, conforme ressaltado, afasta como via de entendimento, já que a
nulidade de negócios jurídicos nem sempre representa um mal, e, segundo Kelsen,
só excepcionalmente é que a sanção não tem esta natureza.
No tocante a categoria das normas não autônomas, vimos que nela estão
agrupadas normas com distintas funções, unidas pela única característica de serem
desprovidas de sanção, e dependentes das normas autônomas. Ocorre que, diante
de outros aspectos mais relevantes, a exemplo da função e subordinação, este fator
de dependência representa um detalhe, que sequer possibilita entrever a riqueza
dos tipos de normas aí enfeixados, conforme foi mencionado. A reunião de normas
com funções e estrutura semelhantes em categorias próprias resulta em promover
uma identificação dessas normas, o que se verifica com a subdivisão das normas
secundárias em três modalidades distintas, que disciplinam sobre a criação de
normas e a celebração de atos e negócios jurídicos. Registre-se, por último, que a
norma de reconhecimento não se ajusta a nenhuma modalidade da divisão de
normas kelseniana.
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Defendemos que a classificação de normas hartiana é melhor


estruturada, presta-se a revelar os diferentes aspectos das normas, descreve com
mais clareza os elementos que caracterizam o Direito e traduz com mais rigor um
sistema jurídico moderno. Entendemos, assim, que as diferenças apontadas afastam
uma leitura da teoria hartiana como sendo tão somente mais sofisticada que a teoria
classificatória kelseniana, embora se possa concluir que a divisão de normas de Hart
é, em confronto com esta, uma forma mais aprimorada e sofisticada de
representação do Direito.
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REFERÊNCIAS

BOBBIO, Norberto. O Positivismo Jurídico: Lições de filosofia de direito. Trad.


Márcio Pugliese, Edson Bini, Carlos E. Rodrigues. São Paulo: Ícone, 1995.

________. Teoria da norma jurídica. Trad. Fernando Pavan Baptista, Ariane Bueno
Suddati. São Paulo: Edipro, 2001.

________. Teoria do ordenamento jurídico. Trad. Maria Celeste C. J. Santos.


Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1999.

DINIZ, Maria Helena. Conceito de norma jurídica como problema de essência. 3ª


ed. São Paulo: Saraiva, 1999.

FERRAZ JÚNIOR, Tércio Sampaio. Introdução ao estudo de direito: técnica,


decisão, dominação. 4ª ed. São Paulo: Atlas, 2003.

HART, Herbert Lionel Adolphus. O conceito de direito. Trad. Antônio de Oliveira


Sette-Câmara. 1.ª ed, São Paulo: Martins Fontes, 2009.

KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. Trad. João Baptista Machado. 8.ª ed. São
Paulo: Martins Fontes, 2012.

________. Teoria geral do direito e do Estado. Trad. Luís Carlos Borges. 4ª ed.
São Paulo: Martins Fontes, 2005.

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