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Para a História do Socialismo

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www.hist-socialismo.net

Tradução do russo e edição por CN, 31.12.2016


(original em: http://cccp-kpss.su/490)

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Mais uma vez sobre


o capitalismo de Estado1
Tatiana Khabarova
Maio de 2002

O QUE É em geral o capitalismo de Estado?


O capitalismo de Estado é um regime económico em que o Estado intervém como um
proprietário privado solidário e comum, como um detentor associado de propriedade pri-
vada que exprime o interesse dos proprietários privados.
No nosso país muitos gostam de repetir o pensamento de V.I. Lénine de que o mono-
pólio capitalista é a preparação material completa para o socialismo. Mas não se pode
entender isto de uma forma simplista, como se bastasse chegar ao poder, nacionalizar a
grande indústria capitalista para se obter logo o socialismo.
Tenho afirmado à exaustão de ano para ano – nomeadamente neste auditório não é a
primeira vez que falo deste assunto – que toda a forma de propriedade só se completa e
se torna funcional historicamente em parelha com o princípio que lhe se corresponde de
consolidação e distribuição do sobreproduto global, ou rendimento líquido.
Ora os princípios de formação de rendimento na propriedade socialista e na propriedade
burguesa são directamente opostos, antagónicos, mesmo quando a propriedade burguesa
se reveste da forma estatal.
Com efeito, a propriedade burguesa pode ser socializada completamente e conservar,
no entanto, o seu carácter explorador. No plano teórico isto é conhecido desde há muito,
trata-se do modelo de Walras. 2 Uma tal economia super-exploradora pode ser planifi-
cada a partir de um centro único, com a ampla utilização da técnica informática. Na
prática a planificação realiza-se através da fixação centralizada dos preços.
Pode-se especular à volta disto ligando este esquema – naturalmente nas suas varian-
tes contemporâneas – à sociedade socialista e apresentando-o como a última palavra da
ciência económica. No nosso país tais tentativas foram feitas nos anos 60 – quando teve
lugar o massivo pogrom diversionista das bases da economia socialista estabelecidas na

1 Intervenção no seminário do Comité da Cidade de Moscovo do PCUS, em 17 de Maio de 2002.


2 Léon Walras (1834-1910), economista francês fundador da teoria do equilíbrio da concorrên-
cia perfeita, mediante a regulação dos preços, a qual permitiria a plena utilização de todos os fac-
tores de produção. (N. Ed.)

1
época de Stáline. Nisto empenharam-se particularmente os teóricos da chamada «plani-
ficação optimizada», entre eles o académico Fiodorenko com o seu famoso «sistema op-
timizado de funcionamento da economia» (SOFE). E, dado o seu carácter evidente res-
tauracionista-burguês, juntamente com este SOFE toda esta vaga foi travada durante al-
gum tempo.
Mas qual era o cerne da questão e por que razão os esquemas da «planificação optimi-
zada», apesar de toda a sua envolvente matemática e planificadora, foram naquele mo-
mento justamente qualificados por uma parte significativa dos nossos cientistas, não como
uma descoberta científica, mas como uma tentativa aberta de restauração do capitalismo?
O cerne da questão estava precisamente no princípio da formação de rendimento.
Mesmo que a propriedade burguesa adquira a forma estatal, o princípio da formação de
rendimento não muda, o lucro continua a acumular-se proporcionalmente ao capital
investido, a lei da taxa média de lucro torna-se gradualmente na lei da extracção do
lucro máximo e, finalmente, do superlucro; e no outro pólo social forma-se correspon-
dentemente o brutal sistema de super-exploração dos trabalhadores, que é conseguido,
em primeiro lugar, através do estabelecimento dos preços de consumo ao nível dos gas-
tos máximos. 3
A partir deste exemplo pode-se ver mais uma vez o quanto é imperfeita e retrógrada a
comparação da economia capitalista e socialista em termos de «plano-mercado». A ques-
tão não está nem no mercado nem no plano. Tanto o mercado como o plano – a cada mo-
mento na sua modificação específica histórico-concreta – têm lugar tanto no capitalismo
como no socialismo. A genuína oposição entre estes dois modos de produção reside – repito
mais uma vez – no princípio de consolidação e distribuição do sobreproduto global.
O Estado soviético confrontou-se com este problema no período do comunismo de
guerra, quando se nacionalizou a indústria – e se compreendeu que para o seu pleno fun-
cionamento havia alguma coisa extremamente essencial que faltava. Era de tal modo es-
sencial que, caso não fosse encontrada, o próprio poder soviético não perduraria. Essa
«coisa» era o princípio da formação de rendimento. Faltava o princípio socialista de acu-
mulação e distribuição do rendimento social líquido.
A causa, e o sentido conceptual, da viragem para a NEP [Nova Política Económica (N.
Ed.)] foi a ausência do princípio socialista de consolidação do sobreproduto, daqui a ine-
vitabilidade de um recuo temporário para o esquema capitalista de formação dos preços
e do rendimento.
Agora é preciso fazermos as necessárias precisões relativamente ao termo «capita-
lismo de Estado» na sua aplicação à NEP. No nosso país nunca houve capitalismo de

3 A expressão usada no original (замыкающие затраты), para a qual não conseguimos en-
contrar um equivalente em português, poderá ser traduzida literalmente como gastos «fechados»,
ou seja, os custos da produção registados numa dada empresa onde estes atingem o nível mais
elevado. Sobre esta questão, Armando de Castro explica-nos que «os preços não incluem, além
dos valores dos encargos, (…) o lucro particular de cada empresa, mas sim o lucro médio do
conjunto de todas elas. (…) Como há empresas cujo nível tecnológico e organizativo se situa
abaixo da média do conjunto de cada ramo e outras se situam acima, aquelas são penalizadas
perdendo no processo global da sociedade a diferença para menos da sua produção de valores,
ao passo que as outras, situando-se acima da média, vão ganhar essa diferença.» (Lições de
Economia, Caminho, 1982, p. 162). (N. Ed.)

2
Estado na verdadeira acepção da palavra, incluindo durante a NEP; i.e., nunca o Estado
soviético interveio como agente consciente e determinado das relações de mercado
numa base capitalista. No nosso país, chamava-se capitalismo de Estado no período da
NEP aos diversos elementos de economia capitalista privada sob o controlo do Estado
da ditadura do proletariado (concessões, empresas nacionalizadas cedidas mediante o
pagamento de uma renda, etc.). A ditadura do proletariado não só não participava di-
rectamente nesta anarquia do empresariado privado, temporariamente admitida, mas,
pelo contrário, exercia sobre ela o controlo mais rigoroso, reservando para si – como é
conhecido – todas as alavancas de comando da economia.
O mecanismo de consolidação e distribuição do sobreproduto global, ou rendimento
líquido social, foi encontrado e estabelecido na prática na nossa economia nacional no
decorrer dos anos 30 e 40 do século passado. Chamava-se «sistema de preços de duas
escalas» ou, de forma mais geral, modelo económico de Stáline. Qual era a sua forma e
como funcionava já o descrevi centenas de vezes e não vou fazê-lo aqui, há trabalhos já
publicados, 4 nomeadamente no jornal Svetotch que foi distribuído neste seminário; é
preciso ler o que é publicado. As descobertas científicas e socioeconómicas não deixam
de existir pelo facto de não serem lidas.

COM A DESCOBERTA do princípio de formação do rendimento que lhe é adequado, a


propriedade social socialista adquiriu a forma de sistema completo; i.e., não só os meios
de produção ficaram socializados como também, o que é o principal, ocorreu a SOCIALI-
ZAÇÃO DO SOBREPRODUTO GLOBAL. Por outras palavras foi resolvida nas suas partes
determinantes a tarefa fundamental da revolução proletária – a qual não consiste sim-
plesmente em que as fábricas e empresas e tudo o mais passem formalmente para a pro-
priedade do Estado operário e camponês, mas consiste em que o sobreproduto, produzido
nestas fábricas e empresas, na medida mais plena possível, seja entregue aos trabalhado-
res como proprietários associados destes meios de produção.
E para isso o sobreproduto deve consolidar-se ao nível da economia nacional – e de
nenhuma forma ao nível das unidades produtivas – e deve ser distribuído também uni-
camente através de canais sociais. Tudo isto foi realizado no modelo de Stáline, onde a
parte do rendimento social líquido, que é restituída aos trabalhadores como proprietários
associados, era entregue sob a forma de redução regular dos preços a retalho dos produtos
básicos e do aumento dos fundos de consumo social gratuito.
A criação e a entrada em funcionamento com sucesso do mecanismo de socialização
do sobreproduto são realizações cimeiras da época de Stáline, até hoje não entendidas e
não valorizadas pela generalidade das pessoas, apesar de por si próprias superarem todas
as outras realizações daquele período. Nenhum modelo de socialismo que tenha existido,
existente ou proposto, à excepção do de Stáline, se elevou a tal altura. Decorre daqui uma
conclusão unívoca: a economia soviética dos tempos de Stáline é – nos seus princípios,
ao nível conceptual – a ECONOMIA SOCIALISTA EM SI, a economia socialista erigida
COMO SISTEMA. Naturalmente que havia imperfeições, insuficiências, muitas coisas
simplesmente não foram aplainadas até ao fim, esmeriladas, mas tudo isto não invalida

4 Sobre este tema ver, entre outros: http://www.hist-socialismo.com/docs/KharbarovaEco-


nomiaSocialista.pdf; http://www.hist-socialismo.com/docs/KhabarovaMaisValia.pdf;
http://www.hist-socialismo.com/docs/Socialismo_e_%20Capitalismo_de_Estado.pdf;
http://www.hist-socialismo.com/docs/Socialismo_e_mercado.pdf. (N. Ed.)

3
nem afecta o principal: no modelo de duas escalas, e unicamente nele, foi possível alcan-
çar a plena congruência sistémica no socialismo entre a forma de propriedade e a forma
de extracção e distribuição do rendimento social líquido. Por isso é preciso eliminar da
forma mais decidida todos os rótulos imbecis que durante décadas foram postos, e hoje
continuam a ser postos, no modelo de duas escalas. E enquanto não o fizermos, o passado,
o presente e o futuro do país não nos aparecerão à sua verdadeira luz, e o nosso chamado
movimento comunista não terá possibilidades nem capacidades para avançar realmente
numa direcção, em vez de ficar apenas a marcar passo.
Voltando ao capitalismo de Estado, no nosso país foram dados passos nesta direcção
no decurso da famosa «reforma económica» de 1965-67. A finalidade deste plano di-
versionista consistia em cortar a mais importante ligação entre a forma de propriedade
e o modo de consolidação do rendimento líquido. E cortaram-na. Decretaram a formação
de lucro proporcionalmente aos gastos de trabalho social, e não de trabalho vivo como
acontecia no modelo de Stáline. I. e., colaram à propriedade socialista um substituto, que
lhe é alheio na sua raiz, do princípio capitalista da formação e distribuição do sobrepro-
duto. O processo de formação de rendimento passou, em grande medida, do nível do Es-
tado para o nível das empresas e ministérios, os canais sociais de distribuição definharam,
pôs-se fim à redução de preços, os trabalhadores, na sua massa, deixaram de ser os prin-
cipais beneficiários do rendimento, e esse beneficiário tornou-se a cúpula dirigente, in-
cluindo a do Partido.
Eis a causa e a origem da inegável crise que dilacerou o país, pelo menos a partir de
meados dos anos 60. Naturalmente que também dessa vez não surgiu nenhum capita-
lismo de Estado no nosso país, no entanto, – dado que o Estado dava cobertura a tal curso
das coisas – voluntaria ou involuntariamente o Estado adquiriu os traços de «capitalista
solidário» ou mesmo de «explorador solidário» que lhe são característicos em situações
análogas na sociedade burguesa.
Deve-se sublinhar que isto não foi uma degeneração interna espontânea do poder so-
viético, uma vez que o regime soviético, por si só, não podia degradar-se ao ponto de en-
trar no marasmo que surgiu em resultado da reforma de Kossíguine. Mas o povo não en-
trava nestas subtilezas e, simplesmente, no momento decisivo recusou dar ao Estado so-
cialista o seu apoio activo de massas. Aconteceu o que aconteceu.
Resumindo, o capitalismo de Estado, nas suas diversas variantes, é tão estranho e an-
tagónico ao nosso regime como o «simples capitalismo» sem outros epítetos. Não nos
devemos iludir por ser de Estado, e por isso de alguma forma ser «nosso» – e constituir
um degrau, a preparação, etc. Ele não é «nosso» mais do que o feudalismo estatal, quando
no tempo da servidão metade dos camponeses no nosso país pertencia directamente ao
poder monárquico. O feudalismo de Estado também foi a preparação e um degrau, só que
acabou por ficar nesse degrau. Com Stáline entrámos pela nossa senda para a história
universal e é a ela, a essa senda, que precisamos de regressar. Os namoriscos com esque-
mas sociais incompatíveis do ponto de vista de classe nunca levaram e não levarão no
futuro a nada de bom.

Tatiana Khabarova
Doutorada em Ciências Filosóficas
Secretária-coordenadora da Plataforma Bolchevique no PCUS
Membro do Comité Executivo do Congresso de Cidadãos da URSS

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