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Revista Brasileira de Ciências Sociais

ISSN: 0102-6909
anpocs@anpocs.org.br
Associação Nacional de Pós-Graduação e
Pesquisa em Ciências Sociais
Brasil

Menezes, Paulo
Representificação: as relações (im)possíveis entre cinema documental e conhecimento
Revista Brasileira de Ciências Sociais, vol. 18, núm. 51, febrero, 2003
Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Ciências Sociais
São Paulo, Brasil

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REPRESENTIFICAÇÃO
As relações (im)possíveis entre cinema
documental e conhecimento*

Paulo Menezes

No Bilan du Film Ethnographique de Paris pado da empreitada, uma realidade subjacente ao


em 2000 foi projetado um documentário muito es- documentário de outrora foi surgindo e assumin-
pecial e bastante diferente dos filmes que compu- do uma temerosa prevalência sobre o que, então,
nham o restante de suas apresentações. Este docu- foi considerado um dos melhores retratos e uma
mentário, chamado Retour à Plozévet,1 realizou-se das melhores documentações de um modo de
na comuna de St. Demers, na costa da Bretanha, e vida em vias de desaparecer, mas até então pre-
buscava refazer o mesmo trajeto de uma pesquisa servado naquela distante e relativamente isolada
e de um filme etnográfico realizado por Edgar Mo- comunidade. Um dos pontos centrais daquele fil-
rin na primeira metade da década de 1960. me etnográfico referia-se ao cuidado com o trata-
O resultado foi extremamente instigante e ao mento visual que as mulheres daquela comunida-
mesmo tempo profundamente assustador. No de- de tinham consigo mesmas, ao cuidado com suas
correr das entrevistas, que tentavam se realizar vestimentas ornadas com rendas e babados, e ao
com as mesmas pessoas que haviam antes partici- tratamento peculiar que davam aos seus pentea-
dos, considerados um elemento fundamental da
* Este texto tem por base comunicação apresentada constituição de suas próprias identidades. Esses
no V Encontro da Sociedade Brasileira de Estudos penteados, que se elevavam sobre as cabeças
de Cinema (Socine) realizado em Porto Alegre, como uma espécie de coque alto em forma de le-
PUC/RS, 7 a 10/11/2001. Agradeço à Fapesp e ao
CNPq pelo apoio para a realização desta pesquisa. que, armados e altivos, rígidos em sua configura-
Artigo recebido em junho/2002.
ção, apareciam nas mulheres nas mais variadas si-
Aprovado em dezembro/2002. tuações cotidianas, do café da manhã à cozinha

RBCS Vol. 18 nº. 51 fevereiro/2003


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do almoço, do trabalho diário na pequena fábrica sa”, por um lado, e pelas necessidades matrimo-
à missa dominical, estando presentes portanto em niais e familiares, por outro, as mulheres de Ploze-
praticamente todas as atividades desenvolvidas vet começaram a cozinhar e a trabalhar como nun-
por aquelas mulheres no decorrer de suas vidas, ca dantes jamais haviam feito. O curioso do filme
constituindo-se, em decorrência, um documento de 1999 era justamente a placidez com que aque-
etnográfico de alto valor de registro. las mesmas mulheres, trinta anos depois, simples-
No documentário recém realizado, por Ariel mente diziam ao pesquisador que “é claro que nós
Nathan, uma outra “realidade” teimou em se es- não trabalhávamos daquele jeito, pois não dava
gueirar por meio das comparações das imagens e tempo... Mas o pesquisador pediu...”, “E nossos
dos depoimentos de então, com as imagens e os maridos não queriam que aparecêssemos desarru-
depoimentos de agora. Soube-se, agora, que, di- madas, que nos filmassem de qualquer maneira.”
ferentemente do que sempre se imaginou, aque- Neste sentido, premidas pelas circunstâncias, essas
las roupas e penteados nunca foram peças de uso mulheres, que deveriam expressar a sobrevivência
diário e cotidiano daquelas mulheres, não sendo de uma tradição e sua importância para a constitui-
utilizados jamais no café da manhã e menos ain- ção das comunidades onde ela se efetivava, cria-
da durante o árduo trabalho na pequena fábrica ram para as câmeras uma “realidade” de segunda
ainda quase artesanal. Apesar de parecer a poste- ordem, como verdade efetiva apenas enquanto
riori absolutamente lógica a estranheza de tão verdade fílmica, distantes portanto das próprias tra-
elaborados penteados e vestimentas para o uso dições que em princípio deveriam estar ali expres-
cotidiano e fabril, essa “realidade” foi tomada sando e reafirmando.2
como verdadeira pela simples existência do filme Neste mesmo Bilan, um outro filme acabou
documental, sem que se colocassem em dúvidas por realizar algo relativamente semelhante. Chris
as possibilidades de se realizar na prática um pen- Owen filmou, em Papua-Nova Guiné,3 um ritual
teado daqueles em tempo de ainda se preparar de fertilidade por meio da deusa Amb Kor, da tri-
um café da manhã, e de suas possibilidades de bo Kawelka, realizado especialmente para as câ-
sobreviver ao trabalho na fábrica durante toda meras e explicado quatorze anos depois pelo seu
uma jornada, sem pensar ainda em dias sucessi- atual líder, Ru, e por um antropólogo, Andrew
vos. O que se descobriu, em 1999, foi que tudo Strathern, pois, em virtude de a maioria dos Ka-
não passava de uma encenação para as câmeras, welka ter se convertido religiosamente, esse ri-
sob o comando do realizador/pesquisador, que tual, caro e complexo, nunca mais se realizaria.
transportou para o uso cotidiano determinados Como não lembrar aqui do célebre filme de
hábitos que só faziam sentido e só possuíam exis- Leni Riefenstahl, O triunfo da vontade (1935), “do-
tência concreta justamente durante as horas do cumentário” realizada a pedido de Hitler para
não trabalho, durante os fins de semana. imortalizar a reunião do partido nacional-socialis-
As razões para isso eram de pelo menos duas ta em 1934, organizada espacialmente e coreogra-
ordens. A primeira, prática, dizia respeito ao tem- fada para as câmeras pelo arquiteto preferido do
po demandado para que aquelas quase “escultu- Reich, Albert Speer, e encenada diretamente em
ras” capilares pudessem tomar forma, pelas pala- alguns de seus momentos por “figurantes” mem-
vras das senhoras de agora, algo entre duas a três bros do exército, SA e SS, onde ressaltam-se as “in-
horas. A segunda, mais prosaica e ao mesmo tem- troduções” aos discursos dos oficiais nazistas em
po mais significativa, que os maridos de então não fulgurantes letreiros em néon, como os intertítulos
queriam que suas esposas aparecessem no filme do cinema mudo, artifício utilizado para compac-
sem que estivessem devidamente paramentadas, tar em um só bloco os inúmeros e infindáveis dis-
justamente pelo que distinguia aquela comuni- cursos, nem sempre filmicamente desejáveis.
dade das outras em suas relações com a tradição, Se Carrière já nos alertava para as inúmeras
o que lhes dava, portanto, dignidade e respeito. “ficções” históricas, onde se reconstroem momen-
Assim, espremidas pelas necessidades da “pesqui- tos da história oficial que em si mesmos estão re-
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pletos de invenções e mentiras, bem como para os no meio de seu acervo gigantesco o que é e o que
momentos em que a própria existência da câmera não é confiável como etnografia. Fazendo-se a
poderia criar determinadas “encenações”,4 não po- pergunta por uma outra direção, o que é que sig-
demos nos esquecer, como afirma Barnouw nificariam essas narrativas “inventadas”, encena-
(1993), que data do próprio nascimento do docu- das, construídas para o processo de constituição
mentário como gênero e do cinema como inven- de conhecimento, sobre si e sobre os outros. O
ção,5 a introdução dessas pequenas “licenças poé- leitor pode estar se perguntando as razões de se
ticas” como formas de se construir um discurso ter eleito os filmes etnográficos como peças cen-
enquanto documentário fílmico. Desde criar per- trais de minha argumentação a respeito das rela-
formances para a câmera, como fazia o então pre- ções entre “real” e imagem, ou seja, entre cinema
sidente dos Estados Unidos, Roosevelt, que “du- e sociedade. As razões diversas, já apontadas an-
rante as palestras notava qualquer cameraman teriormente neste mesmo texto, podem ser busca-
dando a ele o completo benefício de vigorosos das nas próprias origens da etnografia, nas teorias
gestos e sorrisos, algumas vezes andando até o advindas do positivismo, ou seja, no pressuposto
lado da plataforma para o fazer” (Barnouw, 1993, de que no princípio e em princípio a etnografia se
p. 23), até inserções “reconstituídas” de eventos, coloca no lugar da descrição mais “isenta” possí-
como na guerra dos Boer, quando o cineasta Al- vel dos fatos, das coisas e dos ritos.7 Como expli-
bert Smith, necessitando de algumas tomadas dos cita de maneira inequívoca Marc Piault, em seu
Boer em ação, não teve dúvidas em solicitar que Anthropologie et cinéma, num subcapítulo chama-
“soldados britânicos fossem colocados em unifor- do esclarecedoramente de “A objetividade declara-
mes Boer para prover algumas escaramuças” da de uma imagem etnográfica”, ao afirmar que
(Idem, ibidem). Assim, “junto com tendências co- “os filmes trazidos pelos etnógrafos de campo dos
lonialistas, o filme documentário infectou-se com primeiros decênios se queriam deliberadamente
uma crescente falsificação” (Idem, p. 24). positivistas” (Piault, 2000, p. 108, grifos meus) Nes-
Nessa direção, se isto em si não é novidade ta acepção, dos primeiros etnógrafos cineastas, a
desde os primórdios do cinema, não podemos questão da confiabilidade da informação e da pes-
atualmente nos furtar de questionar este tipo de quisa expressa pelos filmes está diretamente vin-
imagem em seus significados epistemológicos. culada à precisão da objetividade de se recolher
Mais precisamente, não podemos deixar de per- do real aquilo que já nele está inscrito em sua or-
guntar, por um lado, qual seria o sentido para o ganicidade, como bem propunha Durkheim, em
conhecimento dessas “encenações” em meio a suas Regras do método sociológico.
um “registro” de determinado grupo social, e, por Decorre dessas proposições se questionar
outro, qual seria o critério para se pensar o tipo sobre os fundamentos da relação entre imagem e
de imagem e de informação que estes filmes pro- real e, mais propriamente, sobre que tipo de co-
põem para a investigação e para o pensamento. nhecimento, em termos de saberes, as imagens e,
Esta é uma pergunta que sem dúvida os particularmente, essas imagens fundadas nesses ti-
mantenedores e pesquisadores atuais do Museu pos de atributos nos propõem.
do Homem em Paris, sede do Bilan Etnográfico, Primeira questão pertinente: O que é o real?
não deixaram de se fazer a partir da projeção do Para não permanecer muito próximo, desde
filme de Ariel Nathan em relação ao seu acervo de os primórdios da sociologia seus fundadores já
mais de 200.000 filmes etnográficos. Seu problema propunham três reais absolutamente diversos, ne-
atual coloca-se nos seguintes termos: pensar-se nhum deles, além de tudo, passível de ser apro-
um filme antropológico ou etnográfico6 implica priado diretamente pelos olhos, nem mesmo os
pensar-se a pesquisa e a ética da verdade como dos positivistas. Para Durkheim, vale lembrar, se
critério básico de legitimação da fidelidade da in- os fatos sociais estão inscritos no real é somente
formação ali contida. Após esse filme de Morin e por meio do método que delimita com ele uma re-
das questões que dele decorrem, como distinguir lação de objetividade que se pode eliminar do tra-
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jeto as pessoalidades indesejáveis que nos impe- to das mãos, os componentes de um passo, os re-
dem de descobrir as verdadeiras causas dos fenô- flexos das coisas etc. Com sua capacidade de des-
menos sociais.8 Seria como se a sociedade fosse locar o olhar do comumente visto, as imagens fo-
um grande tapete sujo, de onde o sociólogo, e por tográficas nos colocariam diante de um mundo
que não, o etnólogo, com seu aparato bem cali- estranhamente inédito, imerso e disperso no apa-
brado saberia retirar tudo que não lhe pertence rentemente sempre visto. Assim, diferentemente
para fazer brotar em todas as suas dimensões os do que propõe a percepção vulgar, uma fotogra-
padrões ali inscritos em sua organicidade sem que fia nunca seria uma reprodução do real, uma “re-
se corresse o risco de esgarçar-se a sua tessitura. presentação” do real,13 pois o que ela apresenta é
Tanto para Weber como para Marx, o méto- sempre diferente do que antes era para os olhos.
do aparece como a única possibilidade de se “Um olhar lançado à esfera do ‘semelhante’ é de
constituir um real apreensível ao conhecimento. importância fundamental para a compreensão de
Para o primeiro, o mundo como se apresenta é grandes setores do saber oculto. Porém esse olhar
um caos, composto por uma infinidade de fenô- deve consistir menos no registro de semelhanças
menos que se sucedem e se superpõem incessan- encontradas que na reprodução dos processos
temente, não sendo, portanto, passível de ser co- que engendram tais semelhanças”.14
nhecido e menos ainda compreendido sem o O que vemos por esta proposição de Benja-
recorte direcionado e intencional do investigador, min é um deslocamento do que seria “semelhan-
que seleciona para compreender o mundo que se te” no filme – não importa se entendido como
apresenta sempre como uma configuração de “reprodução”, “duplo” ou “representação” do real
possibilidades.9 Para o segundo, o visível nada – de sua relação imediata entre imagem e coisa fo-
mais é do que formas de manifestação que no seu tografada para o caráter construtivo desta mesma
incessante aparecer e desaparecer, na sua cons- imagem. Francastel já nos apontava que a imagem
tante mutação, elidem os processos que as fazem “existe em si, ela existe essencialmente no espíri-
aparecer como tais, não se permitindo que se to, ela é um ponto de referência na cultura e não
compreendam como são os processos de repro- um ponto de referência na realidade” (1983, p.
dução do capital, e os processos de exploração aí 193). Com isso Francastel acentua que o diálogo
inscritos, compreensíveis apenas e tão somente primeiro de qualquer imagem não é, como se po-
pelo processo de pensamento.10 deria supor, um “diálogo” com a “realidade” física
Se para estes três autores não existe de ime- que a fez nascer. Ao contrário, a partir dessas
diato o real, para o que é que nós olhamos dire- idéias e das de Benjamin, podemos perceber um
tamente? Para Durkheim, as pré-noções, os pré- desvio analítico na investigação das imagens, que
conceitos, para Weber, o caos, e, para Marx, a se deslocaria de sua própria realidade como ima-
ideologia e os fetiches. gem, e de qualquer “real” exterior a ela que lhe
Benjamin, em sua “Pequena história da foto- serviria de “modelo” ou estímulo, para os valores
grafia”, alerta-nos que “a natureza que fala à câ- e as perspectivas que orientaram a sua própria
mera não é a mesma que fala ao olhar”.11 Com constituição enquanto imagem, valores esses que
isso pretende ressaltar a diferença entre o que fundam a escolha entre os diferentes possíveis na
olhamos no mundo e o que podemos olhar nas constituição dialética do par forma/conteúdo.
imagens. De naturezas distintas, essas imagens Como, nesse contexto, relacionar-se-iam
são percorridas pelos olhos de maneiras diversas. com isso os “gêneros” que tentam dar conta e
Benjamin ressalta o que para ele seria a grande “classificar” as diferenças possíveis das relações
peculiaridade das imagens fotográficas que, dife- entre Imagem e Real?
rentemente de serem objetos da mais pura repro- Invertendo-se a pergunta: quais seriam os
dução mecânica, nos termos de Bazin,12 seriam elementos diferenciadores entre filmes que se
veículos primordiais para se ver justamente aqui- propõem ou são vistos como etnográficos, antro-
lo que os olhos não conseguem ver: o movimen- pológicos, sociográficos, sociológicos, documen-
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tários, documentários sociais, ficção baseada em talhados em pedra, que teriam como função ritual
fatos reais, ficção e, por fim, ficção científica?15 substituir o cadáver, transformando-se no lugar
Subliminarmente, existe uma ordem decres- objetivado de sua alma errante. “Substituindo o
cente do poder de “verdade” de cada uma destas cadáver no fundo da tumba, o kolossós não visa
categorias. Entretanto, para procurarmos respos- reproduzir os traços do defunto, dar a ilusão da
tas, proponho um ligeiro deslocamento da forma sua aparência física”.19 Novamente, ressalta-se o
de enfrentar a questão. fato de que aqui, como na representação, a seme-
Discuti no Encontro da Sociedade Brasileira lhança física, a parecença, não é um atributo ne-
de Estudos de Cinema (Socine), em 2000, a im- cessário, nem procurado ou desejado.
propriedade de se pensar imagens fílmicas como Nosso argumento central é de que nem du-
reprodução, como duplo e como representação.16 plo nem representação foram conceitos cunhados
Não iremos aqui reconstituir todo aquele trajeto, a partir da parecença entre coisa e imagem da
mas apenas apontar como essas três noções, que coisa. Nessa direção, o conceito de representa-
surgiram em contextos absolutamente diferencia- ção, a partir da constituição da ciência no Renas-
dores, passam a se identificar a partir de meados cimento, implica de maneira indelével a idéia de
do século XIX com a entrada em cena da fotogra- Verdade, Verdade sobre a coisa e nunca apenas
fia, à época vista por alguns como a superação a imagem desta mesma coisa.20 Vários autores
das formas de representação propostas pela pin- identificam o surgimento do filme etnográfico,
tura realista inglesa e pela pintura naturalista fran- sociológico e documentário quase que com o
cesa, da primeira metade daquele século. Lembre- próprio nascimento do cinema.21 Não deixa de
mos apenas que Gombrich (1986, pp. 27-102) chamar a atenção a primeira separação, apontada
afirma que a representação se constrói a partir de por Luc de Heusch, entre filme sociológico e et-
uma relação de imagens com outras imagens, nográfico pelo tipo de sociedade a que se repor-
comportando nesta afirmação dois sentidos ao tavam: de um lado as “exóticas”, “primitivas” etc.,
mesmo tempo diferentes e que se complemen- e, de outro, as industriais ou em vias de industria-
tam: o primeiro, onde a passagem de uma ima- lização. E o de documentário social, definido
gem para outra se faz pela mediação de uma como aquele que retrataria os “gestos de traba-
idéia, de uma “imagem mental”,17 como no exem- lho”, com nítida tendência ao trabalho industrial
plo do pintor de castelos, que partiria de uma (Cf. Heusch, 1962, pp. 26-33).
idéia, de um conceito de castelo para, então, re- No caso das definições de documentário, a
presentá-lo (Idem, pp. 59-69). Nesta acepção, a questão significativa que se coloca é como fugir
referência primeira de uma imagem não seria a coi- de sua raiz etimológica documentum, que signifi-
sa representada em si, mas a idéia concebida sobre caria exemplo, modelo, lição, ensino, demonstra-
a coisa; o segundo, onde a transposição de ima- ção, prova. Por mais que os documentaristas pos-
gens se daria por meio de códigos reconhecíveis, sam argumentar que não existem dúvidas de que
uma espécie de “vocabulário da semelhança”, um documentário é uma visão determinada sobre
onde o ponto de partida seria “outras imagens re- determinado assunto, portanto, uma visão “sem-
conhecíveis” de castelos e não a visada direta de pre” parcial, dificilmente o receptor, o público, irá
qualquer castelo. “O artista, não menos que o es- ao cinema com esses mesmos pressupostos.
critor, precisa ter um vocabulário antes de poder Como aponta Guy Gauthier, apropriando-se da
aventurar-se a uma mera ‘cópia’ da realidade” definição de Roger Odin, “é ao espectador que
(Idem, p. 76). Lembremos também que o concei- cabe fazer a diferença entre uma ‘leitura docu-
to de duplo não pode ser dissociado em nenhu- mentarizante’, opondo-a a uma leitura ficcionan-
ma hipótese de seu valor ritual. Vernant ajuda-nos te’. Odin definiu a leitura documentarizante como
a compreender esta proposição, ao tratar do ko- uma ‘construção pelo leitor de um Enunciador
lossós, em Mito e pensamento entre os gregos.18 Os pressupostamente real’” (Cf. Gauthier, 1995, p.
kolossós seriam ídolos imóveis, grosseiramente 163). Nessa direção, retomando a hierarquia entre
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ficção e filme etnográfico, é evidente o aumento Da mesma forma que na história oficial francesa
gradativo do potencial de “verdade” herdado da ensinada na Europa não há lugar para uma Fran-
noção de ciência do Renascimento. Nas Ciências ça escravocrata, para “espanto” dos franceses das
Sociais isto está diretamente vinculado à herança Antilhas (DOM26) onde, com uma média de 80%
fundadora do positivismo de Comte e Durkheim. de negros, a escravidão em sua relação com os
Se fizermos uma sociologia da antropologia, brancos – sejam eles descendentes dos antigos
iremos vê-la surgir como um poderoso instrumen- colonizadores (bequês) ou metropolitanos - é te-
to dos processos de colonização, para conhecer os matizada no cotidiano e problematizada como
“exóticos”, “os primitivos”, para melhor compreen- tema escolar desde sempre.
dê-los, para melhor dominá-los, e, no caso dos Portanto, a Sociologia e a Antropologia par-
cineastas etnográficos, “para instruir o olhar colo- tilham sua raízes comuns de ciências criadas para
nial”.22 “Cineastas foram levados, em todos os paí- a dominação e a manutenção da ordem “civiliza-
ses coloniais, a tomar direta ou indiretamente o da” onde ela já “existia” – sociedades urbanas e
partido da colonização” (Cf. Heusch, 1962, p. 43). industriais - ou implantá-la onde ainda não “exis-
Tome-se novamente o exemplo de Flaherty, que tia” – sociedades primitivas ou exóticas, ou qual-
travou conhecimento com os esquimós da Baía de quer conceito que se queira utilizar.
Hudson por ter sido para lá enviado para mapear Não seria de se espantar que o cinema, in-
fontes de minérios e de madeira para as explora- ventado no fim do século XIX, acabasse por espe-
ções de William Mackenzie, grande construtor das lhar esse duplo problema, incorporando ainda
ferrovias canadenses.23 Da mesma forma que um terceiro, relativo à questão da Verdade.27
Grierson propôs filmar Drifters (1929), sobre a in- Como, nesse registro, pensar a questão da Verda-
dústria do arenque do mar do norte, como uma de nas imagens, na relação entre Imagem e Real?
estratégia para obter financiamento dentro do pla- Guy Gauthier nos dá uma resposta emble-
nos do departamento de propaganda do Empire mática: o objeto teórico documentário (aqui recor-
Marketing Board – importante fonte de consolida- tado como critério amplo para englobar também
ção do Império Britânico, espalhado pelo mundo, os filmes sociológicos e etnográficos) tem como
utilizava-se para isso do máximo de material pro- critério definidor fundamental a “ausência de ato-
mocional possível: pôsteres, panfletos, exibições, res”, definição esta que se aplicaria “sem muitas
aos quais Grierson queria adicionar o cinema. O dificuldades à obra de grandes documentaristas
que fez também como produtor de Song of Ceylon (Rouquier, Ivens, Flaherty, Vertov, Marker, Per-
(1935), realizado por Basil Wright, e financiado rault, Rouch, Wiseman, Dindo etc.), ao menos à
pelo Ceylon Tea Propaganda Board.24 parte de suas obras consagradas explicitamente
É evidente que isso anda de mãos dadas ao documentário” (Cf. Gauthier, 1995, pp. 5 e 7).
com o positivismo fundante das Ciências Sociais Associado a isto, evidentemente, está a ausência
desde o positivismo de Comte e Durkheim, ciên- também de qualquer “encenação”, de qualquer
cia da ordem criada para promover a manutenção roteiro detalhado, do qual se teria apenas “orien-
do social, como uma forma de manter a organici- tações”. Mas isso por si só bastaria para transpor,
dade das sociedades européias contra as transfor- nos termos de Bazin, a realidade da coisa para a
mações e as revoluções do século XIX, contra as realidade da “representação”? (Cf. Bazin, 1985, p.
anomias e patologias, contra as “doenças” sociais, 14). Luc de Heusch nos diz que “a autenticidade
expressando inequivocamente suas raízes profun- de um tal filme dito ‘documentário’ depende, no
damente conservadoras. Volto a dizer que o social fundo, inteiramente da boa fé do realizador que
é aqui entendido como a sociedade européia do afirma, por meio de sua obra: aqui está o que eu
século XIX, a única considerada “civilizada”. Essas vi” (1962, p. 36). E Gauthier sacramenta: “A ética
raízes expressam-se até os dias de hoje de manei- do documental é talvez o que sobre, quando tudo
ra bizarra. Os cursos de história da França são co- concedemos ao resto” (1995, p. 6). Aqui, nessa
mumente chamados de cursos de “civilização”.25 acepção, o problema da Verdade é transferido de
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maneira inequívoca do campo da Ciência para as apresentam problemas de saída. Uma classificação
teias da Moral, o que é bastante problemático, que se monte por meio da distinção temática nun-
pois transfere o problema da credibilidade das ca poderá se manter muito tempo de pé, como de-
imagens para a fé numa pretensa “consciência in- monstrou de maneira indiscutível os próprios des-
dividual”. Como vimos, o surgimento do docu- dobramentos da antropologia como campo de
mentário é também o surgimento da falsificação conhecimento, que saiu de uma definição primor-
documental, o que torna a questão proposta nes- dialmente restritiva às sociedades indígenas e ne-
ses termos absolutamente insustentável. gras, no caso brasileiro, para abarcar estudos de
Olhando por um outro ângulo, existiria al- grupos e categorias sociais de grandes centros ur-
gum critério interno às próprias imagens que po- banos e industriais. Da mesma forma que o crité-
deria ser tomado como base para distinguir essas rio de “não existência de atores” e o de “não en-
várias classificações dos filmes?28 Entre os que cenação” pode ser colocado em xeque e deitado
vimos até então, o critério “conteúdo” explícito - por terra sem muitos esforços. Nesse sentido, Na-
sociedades industriais versus sociedades não- nook se aproximaria mais, como afirma Luc de
industriais, trabalho fabril etc. - é extremamente Heusch, das técnicas do sociodrama, da “observa-
fraco. Quanto ao critério “ético”, nem se fala. ção participante” (Heusch, 1962, p. 37). Como
Mas essa confusão teórica é expressa tam- não lembrar aqui do suicídio encenado em Ber-
bém de maneira acentuada na prática e nos filmes. lim, Sinfonia de uma metrópole (1927), de Walter
Podemos apenas lembrar de Nanook (1922), uma Ruttmann? Ou das cenas de interior do barco de
espécie de pai fundador do documentário (Cf. pesca em Drifters, de Grierson.
Gauthier. 1995, p. 9), e do filme etnográfico,29 e do Se os critérios internos são problemáticos,
filme sociológico.30 Enfim, de todos. Mas, o que te- não é incomum buscar-se critérios externos às
mos em Nanook, nos termos de Luc de Heusch, é próprias imagens para legitimar o discurso visual:
“Nanook interpretando o papel de Nanook”. Ou no caso do filme etnográfico, o fato de ele ser fru-
seja, vemos Nanook interpretar a si mesmo como to de uma pesquisa “científica” e acadêmica, o
ele deveria ser se ainda vivesse da maneira tradi- que torna clara as suas raízes positivistas. A defi-
cional que o filme retrata mas que, na época das nição do filme sociológico, mais fluída que a do
filmagens, já não existia mais. O filme teve extir- etnográfico, seria, no limite, também fundada na
pado de suas seqüências todas as cenas onde sur- pesquisa “científica”, o que, para alguns, o distin-
giam as penetrações das “sociedades industriais” guiria do documentário social e do documentário
da época no modus vivendi dos esquimós, restan- em geral, fundados em pesquisas de outro tipo.
do nele apenas duas como contraste: a do disco e De qualquer jeito, ambas as definições buscam
da vitrola e a da garrafa de óleo de rícino.31 Isso transportar para a legitimação do discurso das
tudo sem falar na construção do cenário, dos iglus imagens a legitimação do discurso da ciência e,
fílmicos, gigantes e pela metade, para que a luz no limite, do discurso de verdade da ciência
permitisse a filmagem se realizasse, mesmo em ce- como fonte de sua própria autenticidade.
nas diurnas, bem como na cena final da caça à É aqui que retornamos ao problema causa-
foca, que sai completamente morta do buraco de do pelo filme de Morin. Um documentário não é
onde deveria ter saído apenas agonizante. Mas obrigatoriamente fruto de pesquisa científica
como ela, a verdadeira, terminou por escapar da mesmo que possua uma ética fundada no “real”.
sua luta com Nanook, realizou-se novamente a Nessa confusão entre documentários e “docu-
cena com um dublê de corpo, quero dizer, dublê mentários”, entre público e documentarista, aca-
de foca,32 já devidamente retirada desta vida para ba-se por fazer desaparecer os elementos consti-
não causar mais problemas para o diretor. tutivos da percepção desse discurso como
Não é necessário se alongar muito em de- construção, sempre como construção, e, portan-
monstrar como essas proposições de classificação, to, como sendo sempre parcial, direcionado, e,
mesmo as muito genéricas como as de Gauthier, no limite, interpretativo.
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Mesmo que possamos argumentar que para de não o tempo infinito, mas as infindáveis articu-
o cineasta documentarista, etnólogo ou sociólogo lações do passado no presente, adquirindo a cada
isto não seja assim, que eles têm plena percepção vez novos significados.35 A representificação seria
da construção de real que estão fazendo (mas será a forma de experimentação em relação a alguma
que têm mesmo?),33 para o senso comum, para o coisa, algo que provoca reação e que exige nos-
público em geral, se a ficção nos mostra uma sas tomadas de posição valorativas, relacionando-
construção imaginada do real, o documentário se com o trabalho de nossas memórias voluntária
(visto aqui indistintamente como filme etnográfico e involuntária que o filme estimula.
e sociológico, que ele nem sabe mesmo o que é) Voltando a uma discussão que parece cada
reproduz o real, mostra a verdade sobre um tema vez mais atual, todo filme é uma ficção, não por
ou um fenômeno qualquer.34 Nessa direção, o ser uma criação da imaginação, não por ser uma
pressuposto de uma “realidade” do filme associa- invenção, mas por ser um ficcio, que, além de sig-
da à “realidade” da coisa filmada não é possível de nificar invenção, significa também ato de mode-
ser aniquilado por uma mera operação intelectual, lar, formar, criar.36 Ficcios que possuem em rela-
por um mero ato da “consciência”. Por isso um fil- ção àquilo que se convencionou chamar de real e
me não é uma representação do real, pois a repre- realidade relações diferenciais. Relações estas,
sentação não se confunde com o próprio real. Não que são a matéria-prima de uma investigação so-
é um duplo do real, pois não tem a função ritual ciológica sobre cinema em geral e sobre os filmes
de unir dois mundos distintos. Não é reprodução, documentários, sociológicos e etnográficos, em
pois não copia, não “xeroca” um mundo pretensa- particular, pois esses filmes dizem mais sobre as
mente “externo” sem mediações. formas de se construir o mundo do que sobre este
Proponho que se entenda a relação entre ci- mundo propriamente dito. Nesta acepção, os fil-
nema, real e espectador como uma representifica- mes mais ficcionais são justamente os documen-
ção, como algo que não apenas torna presente, tários, os sociológicos, os antropológicos e os et-
mas que também nos coloca em presença de, re- nográficos, pois são filmes que escondem em
lação que busca recuperar o filme em sua relação seus próprios nomes os esquemas valorativos que
com o espectador. O filme, visto aqui como filme presidem seus esquemas conceituais construtivos,
em projeção, é percebido como uma unidade de os sistemas relacionais que constituem, e que
contrários que permite a construção de sentidos. omitem, por meio de suas imagens. Seus próprios
Sentidos estes que estão na relação, e não no fil- “gêneros” classificatórios legitimam sua percepção
me em si mesmo. O conceito de representificação como verdades por meio do espectador, indepen-
realça o caráter construtivo do filme, pois nos co- dente do que acham seus realizadores, e às vezes
loca em presença de relações mais do que na pre- (e não poucas) por meio dos próprios cineastas,
sença de fatos e coisas. Relações constituídas pela dublês de pesquisador e cientista.37 No caso dos
história do filme, entre o que ele mostra e o que filmes sociológicos e etnográficos isto é levado ao
ele esconde. Relações constituídas com a história extremo, pois, além de tudo, fundam seus crité-
do filme, articulação de espaços e tempos, articu- rios de legitimação na pesquisa acadêmica e cien-
lação de imagens, sons, diálogos e ruídos. Pensar tífica, baluarte final das possibilidades de consti-
o cinema como representificação significa poder tuição de verdades, de verdades científicas.
pensar a sessão de cinema como acontecimento Retornando ao filme de Morin, podemos
no termos em que a concebia Foucault, “a irrup- agora perceber a complexa dimensão dos pro-
ção de uma singularidade única e aguda, no lugar blemas que ele levantou e que o conceito de re-
e no momento de sua produção” (Cardoso, 1995, presentificação pode ser útil para investigar e
p. 59). Isso permite se pensar o tempo como en- compreender.
trecruzamentos e não como sucessão, nos termos Pois, “afinal, é esta a tarefa de uma história do
de Benjamin, onde não existe linha reta entre o pensamento por oposição à história dos comporta-
passado, o presente e o futuro, sendo a eternida- mentos ou das representações: definir as condições
REPRESENTIFICAÇÃO 95

nas quais o ser humano ‘problematiza’ o que ele é, nada alteram os pressupostos iniciais de constitui-
e o mundo no qual ele vive” (Foucault, 1985, p. 14). ção da disciplina como área de conhecimento.
8 Lembre-se, por exemplo, de O suicídio, onde a es-
tatística é utilizada para que as causas individuais
NOTAS de tal ou qual suicídio seja desprezada em direção
de causas sociais que façam com que, em determi-
nados momentos da história, mais pessoas se ma-
1 Direção de Ariel Nathan, França, 1999.
tem do que o que era sociologicamente normal
2 “Pior ainda, sabemos que, em todas as guerras, so- para aquelas condições (cf. Durkheim, 1992).
bretudo durante as batalhas nas ruas das cidades, os
9 Cf. a introdução e o primeiro capítulo de A ética
combatentes são estimulados, pela presença da câ-
protestante e o espírito do capitalismo, Weber, 1981,
mera. Eles se oferecerão prontamente para um re-
p. 1-27, bem como “A ‘objetividade’ do conheci-
pórter, para correr até uma esquina e disparar uma mento nas ciências sociais”, in: Cohn, G.(org.). We-
rajada de balas. Portanto, até alguns desses filmes ber. São Paulo, Ática, 1979, p. 79-127.
são simulações. Volker Schlöndorf conta que, em
Beirute, quando filmava Die fälschung (O ocaso de 10 Cf. Karl Marx, O capital, s. d., em especial o primei-
um povo), alguns soldados que ele tinha contrata- ro capítulo, “A mercadoria”, p. 41-93.
do como figurantes se ofereceram para atirar de 11 Walter Benjamin, “Pequena história da fotografia”,
uma janela e matar - ao acaso - algum passante na em Obras Escolhidas: magia e técnica, arte e políti-
rua” (Carrière, 1995, p. 62). ca, 1986.
3 Bridewealth for a Goddess, Papouasie-Nouvelle- 12 Cf. André Bazin, “Ontologie de l’image photogra-
Guinée, 1999. phique”, em Qu’est-ce que le cinéma?, pp. 9-17.
4 “Até nos livros de História oficiais se permite que os 13 Sobre esta polêmica dos primórdios da fotografia
historiadores mintam. Todos os povos se comportam consulte Rudolf Arnheim (s. d.), Beaumont Newhall
dessa maneira, inocentemente e conscientemente. (1964) e Paulo Menezes (1997).
Sobre a batalha de Poitiers – a famosa vitória dos
francos sobre os árabes no século VIII, um secular 14 Walter Benjamin, “A doutrina das semelhanças”, em
alicerce da noção de superioridade nacional da Fran- Obras Escolhidas: magia e técnica, arte e política,
ça e do seu desprezo por outras raças – um profes- p. 108.
sor da Sorbonne me confidenciou certa vez: ‘Sabe- 15 Essas classificações não são exaustivas nem totali-
mos agora que a batalha de Poitiers não aconteceu. zantes, variando de autor para autor. Veja-se, por
E, se aconteceu, não foi em Poitiers. E, se aconteceu exemplo, Erik Barnouw (1993) e Luc de Heusch
em algum outro lugar, nós a perdemos’” (Carriè- (1962). Bill Nichols (1991) propõe uma classificação
re1995, pp. 137-138). Cf. também nota 2 acima. transversal: o modo expositivo, o modo observacio-
5 Estamos utilizando aqui a distinção entre cinemató- nal, o modo interativo e o modo reflexivo, para dar
grafo e cinema por meio da introdução da narrativa conta dos diferentes modos de abordagem utiliza-
como constituição de linguagem e discurso, discuti- dos pelos cineastas, um outro assunto que não cabe
da por vários autores como André Bazin (1985), Ed- nos limites deste trabalho.
gar Morin (1985), Siegfried Kracauer (1960), Ismail 16 Este trabalho está publicado com o nome de “Pro-
Xavier (1984), entre outros, sem nos determos aqui blematizando a “representação”: fundamentos socio-
nas divergências entre eles no que toca passar essa lógicos da relação entre cinema, real e sociedade”,
distinção por uma acentuação da montagem ou, em em Ramos, Mourão, Catani e Gatti (orgs.), Estudos
direção oposta, das narrativas em planos-seqüência. de Cinema 2000 SOCINE, 2001, pp. 333-348.
6 Não nos interessa, nesse momento, discutir as pos- 17 O termo não é de Gombrich.
síveis diferenças entre ambos.
18 Ver o capítulo “Figuração do invisível e categoria
7 É claro que não estou me esquecendo de todas as psicológica do ‘duplo’: o kolossós, pp. 303-316.
questões epistemológicas levantadas pelas obras
19 Idem, p. 306.
dos “pós-modernos” da antropologia, como Taus-
sig, bem como das alterações adjetivais, não sei se 20 Ver, por exemplo, a polêmica em torno do quadro
frutíferas, de autores como Geertz, na constituição de Caravaggio, Gerônimo interpretando as escritu-
de conceitos relativos como o de “descrição densa”. ras, onde o fato de Gerônimo ter sido representa-
O que proponho é que essas novas abordagens em do de pé, apoiando um joelho sobre o tosco ban-
96 REVISTA BRASILEIRA DE CIÊNCIAS SOCIAIS - VOL. 18 Nº. 51

co de madeira, com a perna crispada e com o ce- lectuais e historiadores a respeito da (in)“fidelida-
nho franzido, em sinal de esforço de deciframento, de” da minissérie da rede Globo, O quinto dos
ter sido interpretado pela igreja como uma forma infernos, 2001, indignados com a forma pela qual
de se colocar dúvidas sobre as verdades que trans- se construiu a família real, sempre questionando os
mitiam aos fiéis essas mesmas escrituras, que deve- autores pela diferença entre os personagens e a
riam ser, ao contrário, absolutamente transparentes “realidade” daqueles que os inspiraram. D. João
e indiscutíveis. não era assim, D. Pedro não era assim etc., o que
mostra que a confusão entre “real” e ficção pode
21 Cf. Gauthier (1995), Barnouw (1993), Heusch entrar pela porta dos fundos dos mais insuspeitos
(1962) e Piault (2000). e culturalmente preparados espectadores.
22 Cf. Piault (2000, p. 83), entre outros. 34 No lado oposto, vale lembrar por exemplo do pro-
23 Cf. Barnouw (1993, p. 33), Gauthier (1995, p. 41) e grama Linha Direta da Globo, que várias vezes fez
Piault (2000, p. 69). os telespectadores denunciarem o ator que encena-
va como sendo o criminoso de quem se falava na
24 Cf. Barnouw (1993, pp. 87-91) e Piault (2000, história. Ou dos atores de novela que são xingados
p. 101). pelas ruas quando estão interpretando um persona-
25 Ver, por exemplo, o livro que era adotado pela gem ruim e malvado.
Aliança Francesa de São Paulo, para o curso de 35 Cf. Walter Benjamin, “A imagem de Proust”, em
Nancy, de Marc Blancpain e Jean-Paul Couchoud, Obras escolhidas: magia e técnica, arte e política,
La civilisation française (1984). pp. 36-49.
26 Département D’Outre-Mer. Penso em Guadalupe e 36 Ver a esse respeito a discussão realizada em Mene-
Martinica, especificamente. zes (1995).
27 Embutido em toda a discussão herdada da fotogra- 37 Sempre encontro neste ponto a objeção de cole-
fia a respeito da “reprodução”. Ver notas 10 e 11. gas cientistas sociais, das faculdades de cinema e
28 Aqui o conceito de classificação é preciso. de documentaristas que dizem que é claro que
todo documentarista sabe que seu filme é um re-
29 Citado como a opinião de Luc de Heusch. Piault, ao corte e uma visão parcial do mundo e que não ex-
contrário, vê nos filmes do brasileiro Thomas Reis, pressa nenhuma verdade. Para reforço de minha
fotógrafo e cinegrafista das expedições de Rondon, posição, cito apenas a entrevista de Vladimir Car-
o nascimento da etnografia filmada (Cf. Piault, 2000, valho, documentarista assumido, publicada na Re-
pp.68, 40-42). vista de Cinema, 16, agosto de 2001, pp. 74-75,
que apresenta o esclarecedor título de “O docu-
30 Paul Rotha, afirmado por Luc de Heusch (1962,
mentário como verdade”(grifo meu), onde ele
p. 33).
afirma que “a poesia do documentário é a verda-
31 Cf. Barnouw (1993, pp. 36-38). Faz parte dos rela- de”. Assim, mesmo que para alguns (que teimo
tos conhecidos de Nanook que durante a cena da em achar que não são muitos) esta parcialidade
caça às morsas, um dos momentos de grande ten- esteja sempre muito clara, esta matéria reforça a
são do filme e das filmagens, num certo instante os idéia de que para outros muitos, de jornalistas a
caçadores e o próprio Nanook começaram a gritar cineastas, passando pelo público em geral, docu-
para Flaherty pedindo para usar os rifles para aca- mentário é sim sinônimo de verdade.
bar com aquilo, pois eles temiam ser arrastados
para as águas. Flaherty teria fingido não ouvir e
com isso fez com que eles terminassem a luta sem
usá-los, independente dos riscos que sofriam. Mas,
BIBLIOGRAFIA
para quem tem bons olhos, é possível ver o que os
relatos não contam, um rifle no ombro de um dos ARNHEIM, Rudolf. (s. d.), A arte do cinema. São
caçadores no momento em que correm em direção Paulo, Martins Fontes.
aos animais que estavam descansando preguiçosa-
mente na praia. BARNOUW, Erik. (1993), Documentary: a history
of the non-fiction film. Nova York, Ox-
32 Alguns afirmam que, na verdade, nem mesmo uma
foca era aquele animal morto.
ford University Press, 1993.

33 Vale a pena lembrar aqui das ilustrativas discus- BAZIN, André. (1985), Qu’est-ce que le cinéma?
sões, que chegaram às portas do bisonho, de inte- Paris, Ed. du Cerf.
REPRESENTIFICAÇÃO 97

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RESUMOS / ABSTRACTS / RÉSUMÉS 191

REPRESENTIFICAÇÃO: AS RE- REPRESENTIFICATION: THE REPRÉSENTIFICATION: LES


LAÇÕES (IM)POSSÍVEIS EN- (IM)POSSIBLE RELATIONSHIP RAPPORTS (IM)POSSIBLES
TRE CINEMA DOCUMENTAL E BETWEEN DOCUMENTAL CI- ENTRE LE CINÉMA DOCU-
CONHECIMENTO NEMA AND KNOWLEDGE MENTAIRE ET LE SAVOIR

Paulo Menezes Paulo Menezes Paulo Menezes

Palavras-chave Key words Mots-clés


Documentário; Filme sociológico; Documentary, Sociological movie; Documentaire; Film sociologique;
Filme etnográfico; Representifica- Ethnographic movie; “Representifi- Film ethnographique; Représentifi-
ção; Cinema documental. cation;” Documental movie. cation; Cinéma documentaire.

Este artigo discute o surgimento do This article discusses the appearan- Cet article discute l’apparition du ci-
cinema documental por meio da ce of the documental cinema by néma documentaire à travers l’analy-
análise de suas variantes originais - means of analyzing its original va- se de ses variantes originales – le do-
o documentário, o documentário so- riants – the documentary, the social cumentaire, le documentaire social
cial e o filme etnográfico - em suas documentary, and the ethnographic et le film ethnographique – dans ses
relações com as possibilidades que movie – in their relationships with relations avec les possibilités qu’ils
oferecem de conhecimento, ou the knowledge possibilities they of- offrent de savoir, ou d’accès au sa-
acesso ao conhecimento, da realida- fer, or the access to knowledge, of voir, de la réalité sociale à partir de
de social a partir de seus fundamen- the social reality from their positivist ses fondements positivistes. L’auteur
tos positivistas. Discute também o foundations. It also discusses the aborde également le rôle de la “fic-
papel da “ficção” e da encenação do role of “fiction” and the staging of tion“ et de la mise en scène du “réel“
“real” nesses filmes, e questiona the “real” in such movies. Questio- dans ces films, et questionne ses po-
suas potencialidades epistemológi- ning their epistemological potentia- tentialités épistémologiques en re-
cas ao investigar que tipo de infor- lities while investigating what kind cherchant quel type d’information
mação essas imagens propõem. Por of information those images propo- ces images proposent. Finalement,
fim, o autor propõe a representifica- se. Finally, the author proposes the l’auteur propose la représentification
ção como um conceito que supera “representification” as a concept that en tant que concept qui surpasse les
os problemas e as inconsistências de overcomes both the problems and problèmes et les inconsistances de
noções comumente utilizadas para a the notions commonly used to notions habituellement employées
análise da relação entre imagem e analyze the relationship between pour l’analyse de la relation entre
real – reprodução, representação e imagery and reality – reproduction, l’image et le réel – reproduction, re-
duplo - ao recuperar o caráter cons- performance and double – as it re- présentation et double – en récupé-
trutivo essencial do discurso cine- covers the documental cinematogra- rant le caractère constructif essentiel
matográfico documental, ressaltan- phic discourse essential building du discours cinématographique do-
do-se como significativa a relação character, regarding as significant cumentaire, mettant en avant la rela-
entre imagem e espectador. the relationship between image and tion significative entre l’image et le
spectator. spectateur.

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