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Questões de CTS
II. O que é a Tecnologia Social (TS)? Em que contexto ela é desenvolvida? Quais as
características da sua inovação e gestão?
IV. É possível gerar a TS a partir da TC? Como ou até que ponto isso pode ser feito a partir
da universidade?
Respostas
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“Wanzer” é um neologismo que tomei conhecimento no JRPG Front Mission, disponível
originalmente para PC e PS1. No videojogo, são máquinas de guerra bípedes que imitam a anatomia
humana (algo, ironicamente, também encontrado em um mesmo jogo contemporâneo de Front
Mission, no caso, Metal Gear, franquia de Hideo Kojima). A palavra em si é uma fusão de “Panzer”,
os tanques do exército alemão, com “Wander”, palavra alemã para “caminhante”. No texto,
generalizo o contexto para abranger todo tipo de máquina de morfologia antropológica, mas que,
paradoxalmente, sirva para fins que a moldam como, a usar o termo de Claude Lévi-Strauss,
entropológica - a ação entrópica destrutiva sobre os seres humanos. A ideia é mostrar como o
antropoceno, nesse contexto, tende a antropologizar tudo, mas nessa humanização, acaba
compartilhando com esses “antroprotótipos” o desejo humano do extermínio dos humanos, o que
culmina no que o filósofo Bernard Stiegler chama de entropoceno.
Though our smoke may hide the Heavens from your eyes,
It will vanish and the stars will shine again,
Because, for all our power and weight and size,
We are nothing more than children of your brain!
Mas como uma máquina de funcionamento tão complexo e incompreensível poderia ser
produzida sozinha, se pela prova do teorema de incompletude de Gödel, nós jamais a
compreenderíamos de todo?
A resposta é a evolução. Antes de sua morte prematura em 1957, John Von Neumann estava
trabalhando nas bases de sua teoria de autômatas auto-replicantes. Não há, a princípio,
dificuldade alguma em programar robôs que são capazes de construir fábricas para
produzirem outros robôs. Também não há dificuldade em organizar coisas que robôs
antigos possam copiar dos robôs mais avançados dentro de seus processadores. É uma
simples questão de sincronização do hardware, e então replicar o software de um na
forma de um novíssimo software.
Assumindo que eles estejam programados para priorizar a auto-replicação, haverá uma
inevitável competição pelos escassos materiais e últimos suprimentos que atendam o
efeito da seleção natural. Além disso, podemos prever que os programas sofrerão
mutações regulares.
Elas poderão ser feitas pela substituição de algum imperativo na base do programa, para,
como por exemplo, as máquinas serem instruídas para jamais copiarem umas às outras de
forma idêntica. A cada vez que um programa for transferido, um número substancial de
mudanças será realizada, e essas mudanças serão determinadas randomicamente, de
acordo com, digamos, o número de raios cósmicos vistos por um telescópio em certa data.
Atualmente, grande parte da diversidade evolucionária surge não das mudanças dos genes
mutantes, mas do embaralhamento dos genes inerentes na reprodução sexual. É de se
presumir que algo nesse raciocínio possibilite novos arranjos, com dois ou mais robôs se
reproduzindo ‘sexualmente’ juntos através de novas cadeias misturadas e cruzadas dos
recursos de seus hardwares e os embaralhando novamente em vários de seus
subprogramas, produzindo assim um novíssimo programa para uma prole descendente
deles.
II. A tecnologia social é uma tecnologia que usa a si própria de forma acessível aos
indivíduos, que não se declare neutra, que seus algoritmos sejam transformados
socialmente não-excludentemente, cujos códigos de Hoffman não atomizem as
mensagens.
Suas características principais são: ela é nanotecnologia, seu potencial físico e
financeiro e da criatividade do produtor direto é livre, não é discriminatória na relação
de patrão para com o empregado, é capaz de viabilizar economicamente os
empreendimentos autogestionários e as pequenas empresas, e é orientada para o
mercado interno da massa.
A tecnologia social surgiu em um contexto de questionamento sobre o como a técnica,
quando sai do laboratório, dos espaços privados, sai para, como diria Dagnino, “se
identificar e se legitimar com seus pares no exterior” e esses pares são journals &
papers, papeladas e mais papeladas que saem menos da bocca della verittà e mais da
boca de impressoras de Guttenberg. É o esforço de se construir uma tecnologia de
qualidade autônoma, autogestante, que seja representante dela mesma.
Agora, irei sugerir, caro leitor, uma alternativa para essa dualidade que Dagnino
coloca. Uma vindima dionisíaca! - a filosofia progride como um neuromante no
labirinto que ele constrói junto a Daedalus, e assim é o cérebro: uma carne que,
desenvolvendo a si mesma através de estruturas labirínticas, hiperdimensionou as
rotas sinápticas. Essa alternativa é de uma simplicidade ímpar: a tecnologia
naturalista. Pense no que chamarei de visuabilização, isto é, a possibilidade
aumentada de ver o que não vemos a olho nu, em estados ordinários de consciência.
Pense então em uma visuabilização associada às sutilezas que poderíamos enxergar
com um olho que enxerga espectros ultravioletas, infravermelhos, multicromáticos,
ecovisuais, sinestésicos, etc., e que, oposto ao nervo óptico da salamandra de
Maturana & Varela, dispõe de dispositivos de amplificação e recuo fotossensível, e
também permite a visuabilização dos negativos das imagens. Em seguida, imagine
que podemos obter essas habilidades através de substâncias naturais ou sintéticas, ou,
a estender essa discussão, através de distúrbios e perturbações orgânicas. Em outras
palavras, estou querendo dizer, da forma mais pragmática possível, que longe de
serem abridores dos portais da percepção, de experiências místicas, espirituais, os
estados psicodélicos, alucinógenos, numinógicos, são nada mais que o desfrutar visual
de mundos como o molecular, o atômico, o elementar. E sem dúvida, foram através
dessas experiências microcósmicas que os seres humanos poderam prever, antes das
invenções de aparatos tecnológicos que viam as evoluções microorgânicas, essas
evoluções em ação. Compare as mirações proporcionadas por essas substâncias com
os padrões visuais observados em, por exemplo, estruturas dissipadoras. Há
semelhanças. Eis aí, claros exemplos de como se daria sociedades, ou experiências
individuais, de tecnologias pré-industriais, pré-urbanas, pré-laboratoriais - uma
tecnologia, vemos, naturalista.
III. A tecnologia convencional é diferente da tecnologia social por ser funcional para a
empresa privada, pelos governos dos países centrais apoiarem seu desenvolvimento,
pelas organizações e os profissionais que a concebem estarem imersos no ambiente
social e político que a legitima e demandar. Em suma, por trazer consigo seus valores
e, por isso, reproduzi-lo.
IV. Assim diz Dagnino: “"Metaforizando a partir dos desenhos animados, a ciência seria
uma espada. Se Peter Pan conseguir pegar do chão a espada do Capitão
Gancho, poderá matá-lo, pois a espada (como seria a ciência) é neutra:
serve aos interesses de quem a estiver manejando. Levando essa imagem
à frente, eu diria que a ciência é muito mais parecida com uma vassoura
de bruxa. A vassoura de bruxa só voa com “sua” bruxa. Se alguém que
não ela tentar montar na vassoura, esta derruba o desavisado que pensou
que ela era “neutra.”
Diríamos que a ciência é, se formos fazer analogias, mais semelhante com uma cruz
cristã do que com uma espada ou uma vassoura, por mais irônico que isso soe. Isso
porque a cruz é uma postura improvisada, algo que os objetos se encaminham a
servirem um propósito de exadaptação ou algo que, assim como uma mitocôndria que
seria imune ou mortal às células cancerosas, mas que essas só surgiram daqui a
milhões de anos; estatisticamente, não é fácil imaginar que essa mitocôndria teria se
desenvolvido com o propósito de imunizar ou eliminar o câncer de seus hospedeiros,
certo? A resposta é tão aberta quanto ambígua. Vejamos as cruzes de São Sebastião e
São Galgano, por exemplo: uma espada e uma postura. Galgano era um cavalheiro da
idade média que levou a fama de ter sido um grande retaliador de corpos, porém, com
sua conversão, decidiu por abandonar o ofício de matador a serviço de reis
absolutistas e orar, em nome de todos os mortos que deixou por seu caminho com
rastros e pegadas de sangue, de joelhos na frente de sua espada, que enterrou a lâmina
na terra, a escondendo, e deixando apenas a parte superior e as laterais visíveis, que de
fato lembravam uma cruz; Sebastião, nas representações mais homoeróticas dele nas
pinturas, se exibe fazendo a postura de crucificado apoiado na árvore no qual é
alvejado, mesmo sem dispor de uma cruz de fato.
A ciência, e a tecnociência, tem as utilidades de suas tecnologias existentes de modo
versátil - nenhuma de suas utilidades é eternamente predestinada a ser como é,
podendo um mesmo aparato tecnológico, para não expirar sua data de validade,
substituir sua data de validade pela data de validade de sua utilidade, para prolongar
sua existência sob o risco da obsolescência - seja essa nova utilidade, no caso da
espada e do corpo terminal, uma cruz, ou exemplos mais desprezíveis.
Dagnino diz que o paradigma mais presente da relação de C&T nas universidades é o
de uma ciência universal, com diferenças apenas temporalmente verticais, e que,
sendo assim, “a última tecnologia, baseada na última descoberta científica, seria a
melhor - a tecnologia de ponta, e todas as outras seriam atrasadas, obsoletas, não
valeriam nada e hão de ser eliminadas” o que poderia ser entendido, como ele mesmo
diz, uma ciência “darwinista”.
Qual é o caminho para escaparmos desse atual paradigma?
Construirmos ciências que sejam ligadas aos seus cientistas como irmãos siameses
são ligados entre si, esqueleticamente, é o primeiro passo. Isso pode acontecer com o
desenvolvimento de transdisciplinas, por exemplo, mas não se restringir a isso: deve,
convenente, ser transversal e translegal, isto é, se ligar simbioticamente à própria lei,
ao próprio poder constituinte de se permitir acontecer não mais por brechas
legislativas, mas por obrigações legislativas. Construir pontes entre o laboratório e o
céu aberto, do cientista ao ser humano, da tecnociência às relações sociais.
Erwin Schrödinger, em O Que é a Vida?, a partir do capítulo “A aparente melancolia
do darwinismo”, faz um elogio à verdadeira beleza da filosofia natural de Lamarck,
defendendo uma nova visão de sua teoria, unificada com a seleção orgânica de Julian
Huxley, de que, na prática, os indivíduos não possuem a liberdade de escolher quais
mutações eles terão, pois estas vêm, aparentemente, do acaso, porém, possuem a
liberdade de desenvolver aquelas que eles mais gostaram, seja por comportamento,
por migração de territórios que aperfeiçoam essas mutações, por contato com
experiências que também melhoram essas mutações e prolongam suas evoluções, etc.
Termino este breve texto com uma concordância à visão schrödingeriana da ciência
biológica. Desde que comemos do fruto da árvore da ciência do bem e do mal, não
mais vemos todas nossas ações como completamente boas nem como completamente
más. A fruta nos abençoou com o dom divino da cisão, do julgamento esquizofrênico
do discernimento que possibilitou a escolha, presente desde na seleção voluntária de
nossas mutações para nossos descendentes, até as utilidades dos nossos instrumentos
tecnocientíficos.
E será essa ambiguidade que nos salvará, e também que possibilita,
esperançosamente, que a C&T brote nas universidades e em todos os lugares.