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Bernardo Sorj
ISBN 85-99662-02-3
Bernardo Sorj1
O “prestígio” atual da sociedade civil, bem como o seu uso polissêmico, é produto de
uma estranha convergência de diferentes tradições políticas e atores sociais
Bibliografia
1
Professor de Sociologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro e Diretor do Edelstein Center for
Pesquisa Social (www.bernardosorj.com).
1
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O conceito de sociedade civil não pode ser simplesmente descartado com o argumento
de que não atende aos padrões básicos da teoria social científica, conforme demonstrado
pela crescente crítica de cientistas sociais sobre a utilidade limitada do conceito.3 Uma
abordagem crítica além de escrutinando sua relevância explicativa científica, precisa: 1)
entender por que o conceito se tornou tão importante, 2) explicar por que e como ele foi
, atores
apropriado por tantos atores diferentes e 3) analisar o papel e a posição
que afirmam
dos diferentes
ser parte
ou representante da sociedade civil e seu papel na construção do sistema político
contemporâneo.
Este artigo afirma que o atual debate teórico chegou a um beco sem saída e os próprios
atores da sociedade civil, em particular ONGs independentes de países em desenvolvimento,
começaram a perceber que estão enfrentando uma crise de crescimento e crescentes
críticas dos fora, em particular no que diz respeito à sua falta de transparência, relativa
ineficácia e défice de representação. Ao mesmo tempo, do lado de dentro, há frustração
com a dependência de doadores externos e os fracos resultados gerais da maioria de suas
ações, expressos na dissonância entre o que se espera que a sociedade civil produza e o
que ela realmente entrega, ou entre seus alta capacidade de levantar questões e sua baixa
capacidade de mudar as desigualdades arraigadas na sociedade e a apropriação do Estado
4
por interesses privados.
2
Neste trabalho, voltamos e desenvolvemos os argumentos que apresentei em Sorj 2003 e 2004. Sou grato a Joel Edelstein, Bila Sorj e John
Wilkinson por seus comentários frutíferos sobre uma versão anterior deste artigo e as discussões com Miguel Darcy e o membros do “Grupo
de Trabalho sobre Governança Global” do Instituto Fernando Henrique Cardoso e de diversas ONGs com quem discuti os argumentos deste
artigo. Escusado será dizer que as responsabilidades por quaisquer erros são apenas minhas. 3
Para uma análise crítica do conceito de sociedade civil, ver David Chandler (2005), Adam Seligman (1992) e Neera
Chandhoke (2003).
4 Ver, por exemplo, a Conferência sobre Sociedade Civil, Governação e Integração em África http://
www.pambazuka.org/index.php?id=29034
2
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Neste artigo, argumentamos que a expressão mais expressiva da sociedade civil nos países
em desenvolvimento, as ONGs independentes, embora compartilhem alguns elementos
comuns com suas contrapartes nos países avançados, são as ONGs dependentes. O conceito
de dependência foi elaborado principalmente por cientistas sociais latino-americanos para
caracterizar como países em desenvolvimento aqueles cujas estruturas econômicas carecem
6
de capacidade para produzir localmentePor inovação
extensão,
tecnológica.
definimos organizações da sociedade
civil dependentes como aquelas cuja principal fonte de financiamento e agenda político-
social provém de países avançados. Isso, como veremos, não significa que seja impossível
aumentar seu espaço de autonomia e criatividade. Na verdade, muito pelo contrário, o objetivo
prático deste trabalho é contribuir para a renovação e aumentar o papel político das
sociedades civis dos países em desenvolvimento, tanto em assuntos nacionais quanto globais.
Para atingir esse objetivo, as sociedades civis precisarão avançar além do atual discurso
político e ideológico no qual estão presas, de serem, por definição, essencialmente benfeitores
contra os males do Estado, dos políticos e dos funcionários públicos. Isso só deslegitima o
regime democrático. Nos países em desenvolvimento, os pobres sabem melhor do que os
ideólogos da sociedade civil que a solidariedade privada não resolverá suas necessidades
de um sistema jurídico e de segurança pública eficiente, educação, saúde, esgoto, eletricidade,
água e serviços urbanos. A sociedade civil só será um importante fator de democratização se
se envolver ativamente no sistema político e na transformação das instituições estatais e dos
partidos políticos.
Para avançar no debate sobre o conceito e o papel dos atores que se dizem parte da
sociedade civil, os cientistas sociais precisam se engajar em pesquisas conceituais e
empíricas, evitando teorias baseadas principalmente em ilusões e reivindicações morais que
substituem as complexidades do mundo real por retórica bem intencionada sobre o valor da
sociedade civil ou de denúncias das limitações práticas de suas atividades. Não é que as
orientações morais não informem a análise social, pelo contrário, mas o século XX nos
ensinou que, se quisermos ser fiéis aos nossos valores, precisamos desconfiar dos processos
sociais e entender que a cooptação, a deformação e as consequências imprevistas são a
regra na vida social, que as intenções são apenas um ponto de partida, e que “o caminho
para o inferno é pavimentado com boas intenções” tanto para indivíduos quanto para
organizações. Exercitar o pensamento crítico pode ser visto como um exercício negativista
e, às vezes, de fato é. Sem o otimismo e o pragmatismo da vontade, a razão só produz
5 Segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – IBGE (2004), em 2002 existiam 500.157 entidades
sem fins lucrativos, das quais 45.161 eram dedicadas ao “desenvolvimento e defesa de direitos”, a maioria
das quais criadas após 1990.
6
Na linguagem daquele período, os países em desenvolvimento eram principalmente produtores de matérias-
primas e bens finais, mas dependiam da importação de bens de capital.
3
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Nossa análise é informada pelo fato de que nossa perspectiva sobre as sociedades
civis é a de uma pessoa que vive na América Latina. Como sociólogo, experimentei
durante décadas a tendência de nossos países serem colonizados por bem-
intencionados teóricos e teóricos de países avançados que, apesar de suas melhores
intenções declaradas, desconsideram as diferentes realidades locais, sociais e políticas
e as relações invisíveis de forças na produção de saberes e práticas sustentadas pelas
clivagens norte/sul e nacionais. Mas a principal razão por trás de assumir uma
perspectiva contextualizada é que a teoria política não é desencarnada das sociedades
em que é produzida e a importação acrítica de conceitos de diferentes contextos pode
ser, como veremos, um desperdício de recursos humanos e materiais, se não claramente prejudicial.
7
Ver, inter alia, John Ehrenberg, 1999, Adam Seligman, 1992, Jean Cohen e Andrew Arato, 1992.
8
Assim como em Cuba e na China hoje em dia.
4
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A maioria desses atores não estaria incluída nos atuais relatórios nacionais produzidos por
centros de pesquisa sobre a sociedade civil, embora na maioria dos países em desenvolvimento
as organizações religiosas
trabalho sejam
filantrópico,
a principal
enquanto
fonte os
de jornais
associações
privados
voluntárias,
automaticamente
solidariedade e
excluídos como pertencentes ao mercado ou setor lucrativo e os sindicatos podem ser citados
ou não, mas colocados no limbo devido aos diagnósticos da maioria dos teóricos da sociedade
civil que os jogam na lixeira da história.
Além disso, o significado e os principais atores da sociedade civil hoje, na Polônia e no Brasil,
são bastante diferentes do período de luta contra os estados autoritários. Na verdade, a
sociedade civil é um conceito em constante mudança, cujas origens estão relacionadas com o
trabalho de filósofos sociais nos séculos XVIII e XIX tentando definir as fontes de solidariedade
social em um mundo onde a sociedade, a religião e o estado, foram divididos em subconjuntos
separados. sistemas e indivíduos tornaram-se autônomos e orientados por valores e objetivos
9
No contexto em que o Estado, para a maioria dos
egocêntricos em uma economia de mercado.
10
autores (com a importante exceção de Hegel) deveria
garantiaser
dareduzido
lei e da ordem,
a um programa
buscava-se
mínimo
a fonte
de
da solidariedade em alguma característica da natureza humana ou dimensão transcendental
que neutralizar as tendências egoístas produzidas pela orientação para o mercado. A sociedade
civil para a maioria dos autores dos séculos XVIII e XIX compreendia todas as formas de
associação presentes na sociedade, inclusive aquelas relacionadas ao mercado, com exclusão
do Estado.
É importante lembrar que a maioria dessas teorias foi produzida muito antes da explosão da
revolução industrial e da ascensão da social-democracia. No século XX, as velhas teorias da
sociedade civil tornaram-se obsoletas por uma dupla transformação na teoria social e na
sociedade. A teoria social, que começou a tomar forma na segunda metade do século XIX,
abandonou a ideia de uma natureza humana ou força transcendental como base para a
compreensão do comportamento social. A fonte de solidariedade, confiança e integração social
deveria ser explicada em termos de processos sociais ligados às estruturas das sociedades e
suas instituições (por exemplo, divisão do trabalho, socialização, valores compartilhados,
interesses compartilhados, dominação ideológica). Mais importante ainda, a partir da segunda
metade do século XIX, novas realidades como os movimentos operários, sindicais e partidos
políticos socialistas criaram um novo vetor de solidariedade em que o próprio Estado tornou-
se ao mesmo tempo o principal alvo e ator na construção das relações sociais. políticas de
bem-estar. Este novo vetor de transformação social associou-se simbioticamente ao Estado
nacional, ele próprio interessado em consolidar a unidade nacional e em antecipar-se ao conflito social.
Portanto, as questões colocadas pelo liberalismo inicial encontraram novas respostas na
crescente complexidade das estruturas políticas por meio da transformação e democratização
do Estado.11
A importância dos movimentos sociais trabalhistas durante a maior parte do século XX ofuscou
a importância contínua de outras formas de associações e instituições de solidariedade –
família, comunidades locais, amizade, religião, etnia, diásporas – e as várias
9 Ver, inter alia, Simone Chamber e Will Kymlicka (2002), Sudipta Kaviraj e Sunil Khilnani, 2003, Neera
Chandhoke (2004), Adam Seligman (1992) e Nancy Rosenblum, Robert C. Post (2002).
10 Para quem só o Estado poderia reintroduzir um ethos universalista para além dos interesses individuais ou de grupo.
Sobre a teoria hegeliana da sociedade civil e o papel do Estado para superar a orientação particularista da
sociedade civil, ver Shlomo Avineri (1972).
11
Sobre o processo de irradiação das lutas do movimento operário para toda a sociedade e a criação do
estado de bem-estar ver Bernardo Sorj (2004).
5
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formas pelas quais essas associações e instituições foram absorvidas de forma diferente
por cada tradição política nacional. Como sabemos, por exemplo, nos Estados Unidos
a participação voluntária em associações locais tinha um papel preponderante na
manutenção dos valores cívicos enquanto em França a tradição republicana acentuava
o Estado como consubstanciador dos valores de liberdade, solidariedade e fraternidade
e as instituições estatais centralizadas regulavam (geralmente enfraquecendo) a maioria
das instituições sociais intermediárias. De fato, cada país democrático europeu ofereceu
variações nas formas como as diferentes organizações de solidariedade social (incluindo
sindicatos e partidos socialistas de base trabalhista) foram integradas na criação de
sociedades democráticas, para não mencionar as diferentes realidades de regimes totalitários e autoritário
Transferir a aura das teorias dos séculos XVIII e XIX para os fenômenos atuais não
resolve o problema do significado contemporâneo das sociedades civis nas quais o
Estado desempenha um papel central como provedor de bens sociais públicos, onde o
conflito social é canalizado e acessado política e juridicamente para o governo é
organizado através do confronto dos partidos políticos em eleições periódicas. Neste
novo contexto, o papel das sociedades civis mudou profundamente, estando cada
sociedade civil nacional relacionada com a formação específica das suas estruturas
12
sócio-políticas locais, constituição de identidades e formas de confiança e solidariedade.
O “prestígio” atual da sociedade civil, bem como o seu uso polissêmico, é produto de
uma estranha convergência de diferentes tradições políticas e atores sociais
12
Ver, por exemplo, as reflexões de Adam Seligman (1992) sobre o impacto na sociedade civil das
.
formas particulares de formação de identidades comunais na Europa Oriental e em Israel
6
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Esses dois ideais muito diferentes de sociedade civil foram confundidos na vida
cotidiana e na mídia e, de fato, apesar de suas origens diferentes, têm algumas
convergências reais. Ambos são um sintoma e uma tentativa de solução para a atual
crise de representação nas democracias contemporâneas, onde os partidos políticos
tendem para o centro e os programas políticos tanto de direita quanto de esquerda
oferecem pequenas diferenças perdendo seu apelo mobilizador e sua capacidade de produzir novas visões
13
Ver Peter Berger e John Neuhaus (1996) para um trabalho pioneiro sobre esse tipo de pensamento.
14
Sobre o último ponto, Jürgen Habermas (1989) teve uma importância central na promoção de uma crítica de esquerda
da tendência do estado de bem-estar para colonizar a vida social. Veja também Pierre Rosenvallon (1984,
1995) e Anthony Giddens (2000).
7
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Vejam só: a sede do Fórum Social Global (que se autodenomina a expressão radical
17
da sociedade civil) tem sido a cidade de Porto Alegre. o
15
Sobre o conceito de individualismo possessivo, ver CB Mcpherson (1962).
16
Tentamos separar diferentes tipos de argumentos, embora a maioria dos autores use mais de um e, em
alguns casos, como o de Michael Edwards (2004), assumem explicitamente uma definição eclética da
sociedade civil como um agregado de várias dimensões. Para uma bibliografia comentada útil sobre
Sociedade Civil e ONGs, ver Devora Seade, 2000.
8
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Portanto, o verdadeiro desafio que as ONGs hoje enfrentam e debatem cada vez mais
em todo o mundo é como negociar seu grau de autonomia nas relações com seus
financiadores (estado, agências internacionais, fundações e empresas). Isso envolve
sua crescente burocratização devido à necessidade de se ajustar às demandas externas
17
À época do primeiro Fórum o município da cidade estava sob o controle do Partido dos Trabalhadores.
Porto Alegre é conhecida por ser o berço do “orçamento participativo”, geralmente apresentado como um
exemplo de conquista da sociedade civil (ver Leonardo Avritzer 2002). Na prática, a realidade do orçamento
participativo é muito mais complexa, um exercício
dependente
extremamente
da execução
caro,
orçamentária,
aberto àpolíticas
manipulação
que éaddefinida
hoc
dedo
ativistas
pelas
governo.
realidades
locais e
9
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de doadores e as relações de poder desiguais entre ONGs do Norte e do Sul. Em vez de ignorar as
tendências atuais, o desafio é redefinir a relação da sociedade civil com o Estado, o sistema político
e o mercado.
b) Agentes da boa sociedade - A sociedade civil na mídia tornou-se sinônimo de qualquer pessoa
18
que por definição luta pela boa sociedade. Essa abordagem é baseada em
uma visão maniqueísta ingênua de que as instituições sociais podem ter uma natureza moral a priori,
e que pode ser dado como certo o que é a boa sociedade, ou, mais precisamente, quem tem o poder
de definir o que é bom. Nessa visão, precisaremos reconhecer como boa qualquer definição produzida
por qualquer ator da sociedade civil, e eles têm inúmeras definições de boa sociedade, muitas delas
contraditórias.
A consequência política mais danosa de definir a sociedade civil como um monólito orientado pelos
mesmos (bons) valores básicos é que ela nega sua intrínseca composição pluralista e diversificada
e confere autoridade moral a quem se define como parte da sociedade civil. Além disso, implica que
bons valores constituem um pacote coerente de valores. No entanto, a história do século XX é
testemunha das tendências conflitantes entre solidariedade e liberdade. Em nome da solidariedade,
as pessoas estavam prontas para matar aqueles de fora de seu grupo, enquanto em nome da
liberdade a solidariedade foi posta de lado.
Alguns processos sociais, como o individualismo, colocam a liberdade em primeiro lugar, enquanto outros
19
(por exemplo, religião e nacionalismo) a solidariedade.
A definição de sociedade civil como composta por atores não violentos,20 que excluiria grupos da
sociedade civil como Klu Klux Klan, Hamas ou o IRA, também é problemática, apesar da antipatia
pessoal da maioria pela violência. Como um exemplo extremo, sob esta definição, grupos armados
antinazistas na Segunda Guerra Mundial seriam excluídos da sociedade civil. Mesmo do ponto de
vista normativo, seria difícil excluir a priori a violência como instrumento de autodefesa e luta contra
a opressão.
d) Pilares da democracia - Fortalecer as sociedades civis como caminho para consolidar a democracia
tornou-se parte do credo das agências internacionais.21 Embora sociedades civis fortes sejam
comuns em democracias fortes, não há ligação direta entre sociedades civis e a democratização do
Estado .22 As sociedades civis não produzem valores cívicos natural ou automaticamente. As
sociedades civis têm uma relação dialética com o Estado, ao invés de serem seu oposto ou oponente.
Quanto mais as sociedades desconfiarem das instituições estatais, mais a sociedade civil tenderá a
ser alienada e suas ações irão até corroer a legitimidade das instituições democráticas. Ao contrário,
quanto mais forte for a identificação com as principais instituições do Estado, mais cívicas se
tornarão as organizações da sociedade civil, a ponto de quase desaparecer a separação entre a
sociedade civil e as instituições básicas do Estado.
Somente sob um estado democrático as sociedades civis orientadas para o civismo florescem, mas
as sociedades civis também podem gerar grupos antidemocráticos. Isso é particularmente verdadeiro
no contexto de Estados fracos ou corruptos. Eles podem produzir uma reação da sociedade que pode apoiar pessoas com
18
Muitos autores defendem esta visão. Ver em particular Michael Edwards
19
(2004), Ver Norberto Bobbio (1982) sobre as antinomias dos valores.
20
O mercado como parte constitutiva da sociedade civil é defendido por John Kehane (2003).
21
Veja, por exemplo, www.worldbank.org/civilsociety/
22
Veja Ariel C. Armony (2004).
10
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e) Associações do Terceiro Setor - A definição da sociedade civil como Terceiro Setor,24 isto é,
como organizações sem fins lucrativos, parece em princípio mais útil, especialmente porque carece
de fortes conotações normativas, mas exclui grupos e indivíduos informais que se envolvem em
atividades cívicas ou públicas. Talvez a revolução mais importante na sociedade da informação
tenha sido fruto da iniciativa de um indivíduo, Linus Torvalds que, com o apoio de uma rede
informal, lançou o Linux, a principal plataforma do movimento do software livre. A importância das
estrelas pop internacionais em influenciar as agendas internacionais às vezes parece ser mais
relevante do que a das ONGs. As reuniões informais (sem estatuto de associação formal) tão
importantes nos países em desenvolvimento, como as feiras ou bares, nas quais se concretizam
grande parte do debate e da iniciativa pública, também estão excluídas da definição formal de
Terceiro Setor.
A maior limitação do conceito de Terceiro Setor é que ele pressupõe isomorfismo entre ele e o
primeiro (Estado) e segundo (mercado) setores. Enquanto essas duas têm um alto nível de
formalização e estabilidade (embora nos países em desenvolvimento a maioria das empresas
privadas tenha um alto grau de informalidade), a sociedade civil é multiforme. Isto é ainda mais
verdade com os novos meios de comunicação, que permitem a constante formação/transformação/
desaparecimento de grupos informais ad hoc. Uma das principais características da sociedade civil
é sua criatividade em ampliar os limites e as formas de participação no espaço público tornando-o
muito mais plástico e nebuloso que o mercado ou o Estado.
23
Sobre a questão da sociedade civil e das diferentes tradições religiosas, ver Nancy Rosenblum e
Robert Post (2002).
24
O centro de pesquisa mais importante que usa a estrutura conceitual do Terceiro Setor é a
Universidade John Hopkins, Instituto de Estudos da Sociedade Civil, em particular veja o trabalho de seu
diretor Lester L. Salamon em http://www.jhu.edu/~ccss/staff .html
11
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A bibliografia apresenta um uso misto do conceito de sociedade civil, que é vista como
representando uma arena ou um conjunto de atores. Como arena, a bibliografia não
apresenta nenhum argumento para substituir o conceito tão consolidado de espaço
público pelo de sociedade civil. O espaço público não é um ator, é a possibilidade de
constituição de atores, e inclui todos os que, com base nos direitos de liberdade de
expressão e associação, se engajam, sem imposição externa, em debates e atividades
orientadas por valores que afetam o percepção (e/ou realidade) que os membros da
sociedade têm de si mesmos (de uma comunidade local à global). A forma do espaço
público e de seus atores depende dos próprios atores, de sua capacidade de criar
novas formas de expressão, associação e instituições. O espaço público é uma
instituição em evolução histórica, incluindo cada vez mais novos atores (no início era
restrito principalmente a membros da elite; foram necessários longos períodos de lutas
sociais para incluir as classes trabalhadoras e as mulheres). Também a sua forma tem
vindo a alterar-se constantemente, desde pequenos clubes intelectuais a partidos
políticos e sindicatos até à atual tendência para a diminuição da participação presencial
e o aumento da utilização de meios eletrónicos de comunicação.
O espaço público inclui todos os atores que se envolvem no debate público, incluindo
funcionários do estado e membros do governo. As instituições estatais são ao mesmo
tempo o principal garante da existência do espaço público e um dos seus atores mais
importantes. Como ator da esfera pública, o governo não mobiliza (ou não deveria)
mobilizar seu poder discricionário, sendo apenas mais um participante na construção do consenso socia
25
Veja, por exemplo, o trabalho de Jean Cohen e Andrew Arato (1992) fortemente informado pela
teoria de Habermas: “Mas os atores da sociedade política e econômica estão diretamente envolvidos
com o poder estatal e a produção econômica, que eles procuram controlar e administrar. Eles não
podem se dar ao luxo de subordinar critérios estratégicos e instrumentais aos padrões de integração
normativa e comunicação aberta característicos da sociedade civil”: ix. Em publicações posteriores, Arato (1995) matizou s
12
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A importância de manter uma definição aberta de sociedade civil é que, caso contrário,
ela estará sujeita a uma discussão normativa sobre quem deve ou não ser incluído.
Somente mantendo o conceito de sociedade civil aberto a quem dela se diz fazer parte é
que se pode fazer uma análise apartidária de sua mudança de sentido e das diferentes
formas de apropriação por diferentes atores sociais.
A análise das sociedades não deve basear-se em definições a priori, mas sim na
compreensão dos contextos sociais e das formas que os atores sociais procuram para
promover as suas próprias definições diferentes de quem constitui a sociedade civil e
qual é o seu papel. As sociedades civis não são um dado fenômeno predeterminado; eles
são o que os atores sociais fazem deles.26 Ao fazer isso, eles participam da formação das
percepções dos cidadãos sobre o sistema político, destacando algumas opções e
menosprezando outras. No entanto, a análise não deve se limitar a compreender apenas
os confrontos simbólicos, mas também incluir os recursos humanos, organizacionais,
políticos e econômicos que a luta pelo sentido mobiliza.
Além da ampla definição operacional da sociedade civil como incluindo cada indivíduo ou
grupo de indivíduos agindo para influenciar a esfera pública, precisamos identificar os
novos aspectos específicos da sociedade civil na política global e nacional contemporânea.
A discussão contemporânea sobre a sociedade civil está relacionada ao seu papel no
avanço da representação cidadã, na construção de valores coletivos na construção do
sistema político e nas formas pelas quais os cidadãos podem influenciar o destino da
sociedade por meio da participação na esfera pública em oposição ao tradicional formas
de representação política.
26
Ver o excelente livro de Ariel C. Armony (2004) sobre a inexistência de uma necessária “…
ligação positiva e universal entre a sociedade civil e a democracia…”, 2004.
13
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Por não se basearem no apoio direto da comunidade que dizem representar, as ONGs
dependem de recursos externos para sua existência. Diferentemente da maioria das
organizações tradicionais da sociedade civil, que se baseavam principalmente no
trabalho voluntário, as ONGs são dirigidas por profissionais qualificados, tornando-se
um importante nicho de empregos. Finalmente, a falta de uma base social estável e
homogênea a partir da qual possam exercer pressão política induz as ONGs a promover
suas agendas por meio de mobilizações sociais ad hoc com objetivos de alcance da mídia.
14
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Essa caracterização de ONGs é muito mais restrita do que o universo existente de ONGs
conforme definido legalmente. Muitas ONGs legalmente definidas se encaixam no modelo
tradicional de organização das associações da sociedade civil, representando uma
determinada afiliação (de sindicatos a organizações profissionais e ONGs comunitárias). A
novidade do desenvolvimento do novo fenômeno das ONGs nas últimas décadas é a criação
de um ator político sem um mandato direto de seu público-alvo. As novas ONGs não são
apenas um novo tipo de ator, mas também mudaram a paisagem das ONGs representativas
tradicionais, especialmente as menores baseadas na comunidade. Enquanto anteriormente,
nos países em desenvolvimento, as ONGs comunitárias interagiam principalmente com o
governo de quem pediam a entrega de bens, agora as ONGs comunitárias seguem cada vez
mais o modelo das novas ONGs de buscar financiamento externo não governamental. Isso é
feito direta ou indiretamente através da vinculação com as principais ONGs nacionais e
internacionais. No processo, eles se profissionalizam cada vez mais e realizam os próprios
projetos sociais.
As ONGs são uma história em desenvolvimento, não uma realidade fixa. Como todo fenômeno
social, as ONGs contemporâneas não possuem características fixas. As suas formas de
organização, ideologias e papel político estão em constante mutação e nas últimas décadas
sofreram, como veremos a seguir, importantes alterações. O mundo das ONGs é uma galáxia
cada vez mais complexa que cresce exponencialmente em número e em questões (para citar
apenas algumas: ecologia, gênero, direitos humanos, segurança humana, crianças, direitos
dos animais, desenvolvimento, consumo, ajuda humanitária, sociedade da informação,
integração regional, educação, HIV, controle de armas, saúde, desenvolvimento rural e urbano,
drogas, pesquisa social, educação, comércio, corrupção, finanças internacionais, idosos,
cada um com sua subdivisão); origem (criados por indivíduos ou grupos independentes,
comunidades, empresas, religiosos, grupos étnicos entree outros),
de gênero,
níveis
diásporas
de atividade
e partidos
(local,
políticos
nacional e internacional), tipo de equipe (voluntária ou profissional, embora a maioria ONGs
incluem ambos); tipo de financiamento (assinaturas voluntárias, agências governamentais e
internacionais, fundações privadas, embora a maioria das ONGs tenha uma variedade de
fontes de financiamento), tamanho (pequeno, médio e grande), ideologias (quanto maior o
número de ONGs e questões que abordam, mais diversificada as visões que representam
sobre problemas nacionais e internacionais), localização (país, região), tipo de atividade
(advocacy, projetos sociais).
Por último, mas não menos importante, há a questão das fontes de financiamento. Embora
algumas das principais ONGs nos países desenvolvidos recebam uma parte importante de
seu financiamento de contribuições voluntárias, fundações públicas/privadas e instituições
internacionais, o apoio financeiro externo é fundamental para a maioria das ONGs, em particular nos países em d
27
Sobre as abordagens dos diferentes centros de pesquisa ver Dayse Marie Oliveira, 2005.
15
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países. Nas mãos dessas instituições, bem como das grandes fundações (principalmente
americanas) e da cooperação oficial europeia, as ONGs tornaram-se um proxy da sociedade
civil e a ferramenta de entrega de suas políticas de cooperação internacional. Esse financiamento
sempre tem, implícita ou explicitamente, amarras. O mundo das ONGs só pode ser entendido
como parte de uma cadeia maior na qual os doadores têm papel central.
Doadores diretos ou indiretos são um ator importante na elaboração das agendas das ONGs.
Embora as ONGs tenham alguma capacidade de influenciar suas políticas, sua luta pela
sobrevivência as leva a se adaptar às agendas dos doadores. Como veremos, isso é mais
dramático nos países em desenvolvimento, onde as doações voluntárias geralmente não são
relevantes e os recursos externos são decisivos. No caso da cooperação internacional, há uma
questão adicional, a da enorme quantidade de dinheiro que os países individuais e a União
Europeia gastam com seus próprios “especialistas”, bem como as exigências que eles criam
para comprar produtos produzidos em seus próprios países.28
As ONGs estão inseridas em sua realidade política local. O papel das ONGs em regimes
democráticos está imerso e dependente do nível de democratização da sociedade e de seu
sistema político. Quanto menores as características democráticas de uma sociedade, maiores
são as chances de as ONGs se desvincularem do sistema político, tornando-se alienadas das
instituições nacionais, o que pode levá-las a desempenhar um papel de fragilizador na
construção de um estado democrático.
As sociedades civis não podem ser dissociadas das estruturas sociais e políticas dentro das
quais florescem. O papel e a influência política das ONGs em uma determinada sociedade,
como já apontamos a respeito da “sociedade civil”, dependem do contexto social (em casos
extremos podem ter desaparecido ou sido reprimidas como em países muçulmanos
fundamentalistas ou regimes ditatoriais , como Síria, Irã, China e Cuba). Em outras regiões
(como mostrado em termos gerais nos exemplos a seguir) a sociedade civil tem papéis bastante
29
diversos de acordo com diferentes realidades sociais.
Em muitos países africanos, as ONGs, em vez de serem uma expressão da sociedade civil, são
o seu principal componente e agem como uma interface entre os doadores internacionais e a
sociedade local. Para muitos críticos, eles têm uma função semelhante à dos missionários do
mundo ocidental e, portanto, estão alienados das questões e problemas reais da construção
de um estado democrático. Segundo um autor: “Assim, o desafio para a sociedade civil em
África é fortalecer o estado democrático, colaborando com as suas estruturas governamentais
a vários níveis, ajudando a restaurar o contrato social entre o estado e os seus cidadãos e
pressionando pelas reformas necessárias que transformam em realidade a visão da co-
governação sociedade civil-estado efetiva no nível da comunidade (Mbogori et al. 1999: 120)”.
“Para concluir, as partes interessadas da sociedade civil devem reconhecer que “o
fortalecimento da sociedade civil requer como condição indispensável o fortalecimento
28
Ver Romilly Greenhill, Patrick Watt et al., (2005).
29 Existem inúmeros relatórios descritivos e algumas sólidas análises acadêmicas sobre sociedades civis e ONGs
nacionais. Veja, por exemplo, os relatórios dos países no site do IDS: http://www.ids.ac.uk/ids/civsoc/ e a bibliografia
anotada em Deborah Eade (2000). Alguns estudos de caso interessantes também podem ser encontrados em Robert
W. Hefner (1998), Sara E., Mendelson, John K. Glenn, (2002) e Sudipta Kaviraj) e Sunil Khilnani, 2003. Sobre a Índia,
consulte Rajesh Tandon e Ranjita Mohanty, 2000.
16
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do estado: o estado e a sociedade civil permanecem ou caem juntos!” (Marcussen 1996: 421
em Kumi Naidoo e Volkhart Finn Heinrich, 2000: 12).
Em muitas partes da África, as ONGs, quando são autorizadas a funcionar, absorvem uma
parcela significativa dos profissionais de classe média subtraindo quadros reais ou potenciais
do governo. Devido à sua quase total dependência de recursos estrangeiros, as agendas das
ONGs locais precisam se adaptar às prioridades dos doadores estrangeiros e às chamadas
agendas das ONGs internacionais, muitas vezes atuando como serviços subcontratados.
Apoiados praticamente em sua totalidade por meio de financiamento externo, eles oferecem
salários “internacionais”, ou seja, um salário muito mais alto do que aqueles auferidos por
funcionários públicos. Isso permite que seus membros preservem um grau de autonomia e
uma distância crítica da corrupção generalizada na administração pública. Os orçamentos das
ONGs estão se expandindo – uma parte significativa do financiamento da cooperação
internacional atualmente é alocada diretamente para a “sociedade civil” – transformando essas
organizações em verdadeiros centros de poder com influência suficiente para questionar a legitimidade dos govern
O universo das ONGs na América Latina tornou-se tremendamente diversificado desde o final
dos anos 1960, quando era financiado principalmente por fontes externas e seu principal
objetivo era participar da resistência contra regimes autoritários. Na América Latina, as ONGs
geralmente têm menos peso político do que na África, embora suas vozes repercutam na mídia.
Nos países andinos mais pobres, as ONGs desempenham um papel importante no apoio aos
movimentos indígenas locais.
Nas últimas décadas, a importância relativa do financiamento europeu para as ONGs latino-
americanas diminuiu (cada vez mais concentrada na África e no Leste Europeu), enquanto as
fontes públicas de financiamento aumentam, assim como o apoio do setor empresarial, que,
influenciado pelo discurso empresarial, tem aumentado significativamente seu envolvimento
em projetos sociais em países como o Brasil (Anna Peliano, 2005). Governos e agências
internacionais recorrem a ONGs para realizar ações específicas, que utilizam para compensar
a escassez de recursos e a obstinação burocrática e a corrupção. O apoio financeiro de seus
estados nacionais é considerado uma bênção mista, devido à tendência de atrasar os
pagamentos ou simplesmente cancelá-los com uma mudança de governo. A busca por
financiamento do Estado e do setor privado aumentou a crise de identidade das ONGs. Eles
são criticados por intelectuais de fora como uma ferramenta do estado ou como marketing de
empresas privadas, criando assim um sentimento de orfandade dentro das ONGs.
30
Sobre estudos de caso de ONGs em diferentes países da América Latina, consulte o site
31
www.alop.or.cr Veja, por exemplo, o estudo de caso do Viva Rio em Bernardo Sorj (1993).
17
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O mundo árabe é um exemplo claro dos limites de se criar uma sociedade civil
independente e com valores cívicos em um contexto onde a sociabilidade e as próprias
ONGs estão impregnadas de uma cultura onde os conflitos não são resolvidos
pacificamente e onde os valores religiosos dominantes não sustentam a ideia de
instituições autônomo da influência de líderes religiosos. Os estados autoritários do mundo árabe cujos
estão misturados com o sistema político não apóiam ONGs independentes.32
A nova voz da sociedade civil, portanto, não é mais a expressão de associações locais
de baixo para cima, mas de uma equipe de advocacia especializada. Os novos grupos
de defesa são altamente profissionalizados e um importante nicho de emprego, com
atividades que fluem de cima para baixo e fortemente voltados para o comércio. A participação tornou-se
32
Ver Ben Néfisa, Sarah, Abd al-Fattah, Nabil, Hanafi, Sari, Milani, Carlos, 2004.
33
O principal ponto cego de Theda Skocpol é que ela inclui os sindicatos como parte do modelo tradicional
de associação cívica multiclasse dos Estados Unidos, enquanto eles são constituídos por apenas um grupo
social. Por isso ela não isola em sua análise o impacto específico do declínio dos sindicatos nos Estados
Unidos sobre a distribuição de riqueza.
18
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reduzido ao envio de cartas, por meio das quais as organizações defendem suas
causas e os apoiadores enviam suas doações. Essas mudanças refletem a
transformação da estrutura social dos EUA, o novo papel das mulheres instruídas
(anteriormente um dos principais pilares do trabalho voluntário) na força de trabalho,
o declínio do movimento sindical, a crescente importância das fundações e dos novos
meios de comunicação e mídia. na política e em particular nas novas formas de classe
34
média alta, sociabilidade que as isola do resto da sociedade.
34
Sobre os Estados Unidos, veja também o interessante livro de Christopher Beem (1999).
19
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Embora haja, sem dúvida, algo que pode ser chamado de opinião pública transnacional , é
confuso falar de uma opinião pública global. Para se tornar significativo e mais do que
apenas uma metáfora, tal conceito precisaria abranger a existência de um espaço efetivo
para todas as opiniões públicas nacionais se expressarem, portanto, um novo tipo de
cidadania mundial desenraizada dos interesses nacionais. Considerando que os cidadãos
de muitos países não têm meios de se fazer ouvir nem mesmo localmente, a noção de
opinião pública global refere-se principalmente ao confronto na arena mundial de um número
ainda limitado de cidadãos e elites.
A difusão de ideias de contextos nacionais ou regionais para o nível mundial continua a ser
o vetor cultural mais importante da mudança social. Direitos humanos, livre mercado,
feminismo e ambientalismo, para citar algumas das mais importantes ideologias do mundo
contemporâneo, moldaram a opinião pública transnacional por meio de um complexo
processo de formação de agendas globais (ou seja, agendas de mudança social que afirmam
ter alcance universal). validade). No entanto, a infraestrutura de recursos intelectuais e
materiais necessários para a formação de agendas globais é altamente influenciada pela
divisão Sul/Norte e precisa de uma análise cuidadosa.
Seria legítimo falar de algumas dessas organizações (por exemplo, a Igreja Católica ou a
comunidade científica) como globais, no sentido de que elas têm um conjunto transnacional
comum de regras e instituições que, embora influenciadas por condições locais, são
relativamente independentes. subsistemas capazes de comunicar e defender visões de
mundo além das sociedades nacionais. Essas instituições relativamente fechadas não
existem apenas por crenças compartilhadas, mas também pela infraestrutura e recursos
que são capazes de mobilizar tanto nacional quanto internacionalmente.
No entanto, a ideia de uma sociedade civil global35 é, na melhor das hipóteses, uma
metáfora evasiva que não faz muito sentido empiricamente e pode facilmente induzir a uma
visão mistificada da política contemporânea. Como mencionamos antes, as sociedades civis nacionais são con
35
Para uma visão geral sobre o conceito de Sociedade Civil Global e diferentes perspectivas,
consulte Gideon Baker e David Chandler (2005) e Mary Kaldor et al, 2004. Para uma análise crítica do
conceito de Sociedade Civil Global, consulte Gordon Laxer, Halperin Sandra (2003 ) e David Chandler
(2005). Vários autores apresentam sua própria visão idiossincrática do que é a sociedade civil. Ver,
inter alia, John Keane, 2003, Michael Walzer (2002, e José Vidal Beneyto, 2003) Para uma análise
quantitativa, ver Lester M- Salamon et al (2003).
20
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por atores muito heterogêneos. Não há unidade interna entre esses atores nem a maioria
deles tem impacto internacional. Na verdade, a maioria das teorias da sociedade civil
global não se refere a um nível supranacional no qual as sociedades civis nacionais
expressam suas opiniões, mas sim a novos atores supranacionais que promovem
agendas globais, as ONGs internacionais (conhecidas como ONGIs).
Mary Kaldor et al, por exemplo, apresentam uma definição de sociedade civil global como
“… e economias”. (Ibidem: 4). Os autores que tentam esclarecer ainda mais sua definição
indicam que os participantes da sociedade civil global e seus valores são “... pelo menos
em parte, localizados em alguma arena transnacional e não vinculados ou limitados por
estados-nação ou sociedades locais” (Ibid.). O principal problema aqui é o significado do
conceito de arena transnacional, um conceito que não é definido pelos autores. De fato,
na sociedade da informação contemporânea, a Internet torna transnacional qualquer ato
local e a TV a cabo pode transformar qualquer evento local em um espetáculo mundial.
Ainda assim, sem sobrevalorizar a importância dos atores não estatais na arena
internacional, a crítica feita à escola realista das relações internacionais (que se concentra
principalmente nos interesses dos Estados nacionais soberanos) é relevante e o papel
crescente dos atores internacionais para além dos Estados nacionais é um ponto
importante. Comunidades transnacionais de ativistas (não apenas ONGs, mas também
grupos religiosos, diásporas, cientistas) têm um papel importante na elaboração da política internacional, e
36
Ver Martin Shaw (2004) e Ulrich Beck (2004).
37
Veja os artigos de Shaw e Beck, para uma crítica da abordagem construtivista veja David Chandler
(2004, Capítulo 7).
21
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No entanto, não é que os atores descritos pelo rótulo de “sociedade civil global” não
tenham um papel fundamental na política mundial. Sim, mas o conceito supõe a
existência de um ator cosmopolita e de uma arena global livre que não encontra
suporte na realidade empírica. Sua ênfase em uma perspectiva global negligencia
que o Estado nacional ainda é o principal locus de distribuição de riqueza e
oportunidades de vida para a maioria dos habitantes do planeta. Talvez o mundo
devesse ser diferente, mas enquanto não muda quanto à importância do papel do
Estado nacional na distribuição da riqueza, a verdadeira luta é melhorar a posição
relativa dos países mais pobres e dos pobres dentro de cada país. Adotar uma visão
cosmopolita implica que alguém (indivíduo ou organização) possa ser portador de
uma perspectiva cosmopolita. Isso significa que além das intenções subjetivas de
indivíduos/grupos, existem atores que são capazes na prática de serem desenraizados
de seus contextos nacionais? O conceito de sociedade civil global supõe que para
os atores desta nova arena as realidades nacionais de poder desigual e viés cultural
desapareceram graças aos valores compartilhados daqueles que integram este novo
reino. Mas os fatos falam o contrário. Os supostos membros da sociedade civil global
alimentam seus valores cosmopolitas a partir de suas realidades culturais nacionais
e financiam suas atividades com o apoio de doadores públicos e privados de seus países que estabele
38
Ainda assim, pode-se argumentar, como faz Chandler, que alguns dos atores não apóiam agendas
alternativas às de seus estados nacionais, ao contrário, suas agendas internacionais são apoiadas por
governos nacionais como parte de seu papel interno de autolegitimação.
22
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A sede nacional (ou multinacional) da maioria das ONGs internacionais está sediada em
países desenvolvidos, de onde obtêm a maior parte de seus recursos financeiros e associados.
Sem dúvida, qualquer ONG depende de doadores. Mas as agendas das ONGs sediadas
no Norte são a expressão de suas próprias sociedades de onde recebem seus recursos
materiais, enquanto a maioria das ONGs “independentes” do Sul depende do apoio de
fora de seus países. Assim sendo, o mundo das ONGs não é uma rede de iguais, mas se
baseia em uma estrutura hierárquica de poder. As ONGs sediadas no Norte, mesmo as
muito pequenas, têm capacidade para atuar internacionalmente, enquanto as grandes
ONGs do Sul obtêm apoio principalmente para atuar nacionalmente.39 Enquanto a maioria
das ONGs está localizada no Sul, as chamadas ONGs Internacionais (INGOs) são
principalmente do norte. Daí o paradoxo de que a chamada sociedade civil global é
orientada por valores de equidade, mas não há equidade na sociedade civil global.
A idealização de uma sociedade civil global leva a uma representação do mundo como
unificado por atores com uma visão comum capaz de transcender interesses nacionais e
realidades culturais. Mas a realidade é bem diferente: os interesses e a cultura nacional
ou regional são parte constitutiva das ONGs. Isso não implica a impossibilidade de
alianças e cooperação produtiva entre ONGs do Norte e do Sul. Mas não devemos
subestimar divergências importantes entre ONGs do Sul e do Norte sobre questões
concretas, seja a governança da Internet, os subsídios agrícolas, a organização da ajuda
humanitária, o comércio justo ou a prioridade a ser dada às questões ambientais.
As ONGs do Norte são capazes de estabelecer e divulgar agendas globais que estão fora
dos limites para a maioria de suas contrapartes do terceiro mundo.40 Além disso, as
ONGs do Norte têm recursos para estabelecer sua representação local em países em
desenvolvimento, contratando alguns dos melhores quadros locais e às vezes até “comprando” ONGs locai
Isso não significa que concordamos com autores que trabalham no referencial teórico
de Bourdieu, como Guilhot (2005) e Dezalay (1996, 2003), que afirmam que as ONGs se
tornaram o vetor através do qual as fundações e universidades norte-americanas cooptam
intelectuais e disseminar agendas neoliberais no Terceiro Mundo. Há um número
crescente de estudos que argumentam que as ONGs se tornaram instrumentos para as
políticas neoliberais, compensando o recuo do Estado nas atividades assistenciais e, na
mesma linha, alguns críticos consideram o discurso dos direitos humanos funcional para
a visão liberal de um estado mínimo associado a um mercado desregulado. Muitos
críticos também argumentam que as ONGs estão se distanciando cada vez mais dos movimentos populares
39
Nesse sentido, o mapa-múndi apresentado em The State of Global Civil Society 2003 (Mary Kaldor et. al.
2004), que mostra que a sociedade civil global baseada principalmente em países avançados é obviamente
enviesado pela relação norte-sul: os principais critérios para densidade da sociedade civil global é a existência
de ONGs internacionais! (Helmut Anheier e Hagai Katz, 2004)
40
Talvez uma das poucas inovações locais que passaram a fazer parte da agenda internacional seja a tão
chamados de bancos populares, que emprestam a microempresários e produtores.
23
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Além disso, a identificação de políticas de ajuste estrutural como a fonte de todos os males
que afetam as sociedades latino-americanas é equivocada. As desigualdades sociais no
continente são baseadas em uma tendência estável de longo prazo e, sem dúvida, muitas
políticas de ajuste tiveram impactos sociais negativos, mas foram apoiadas -pelo menos
passivamente- pela maioria da população que as percebia como a única alternativa
disponível para deter a hiperinflação e diminuir cada vez mais inaceitáveis privilégios
corporativistas acumulados por empresários e setores da classe média que trabalham para
o governo e empresas estatais.42
41 Ver, por exemplo, sobre a América Latina, James Petras (2000) e sobre a África, Firoze Manji e Carl O'Coill (2002).
42
Para uma análise do caso brasileiro, ver Bernardo Sorj (2000)
43
Sobre o papel da Fundação Ford no Brasil, ver Bernardo Sorj, 2002)
44
Ver, por exemplo, Bila Sorj, análise de Aparecida Moraes sobre a “tradução” de políticas feministas no Brasil
(2005).
45
Ver Anthony Bebbington e Diana Mitlin (1996).
24
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substituindo políticas estatais. Na melhor das hipóteses, eles estão sendo contratados
pelos governos para implementar serviços locais, uma questão importante sobre a qual
ainda há necessidade de estudos aprofundados. Na América Latina, o principal problema
não é a substituição do Estado
tornar um parceiro pelas ONGs,
autônomo mas o aumento
do Estado, por meio de
dosua capacidade
avanço de se
de projetos
inovadores que se transformem em políticas sociais e de uma relação mais produtiva
com o sistema político e os movimentos sociais .
Os desafios enfrentados pelas ONGs são uma expressão da questão geral da construção
institucional democrática nas sociedades contemporâneas em que a desdiferenciação
de subsistemas (Niklas Luhman, 2001) e a individualização e a desinstitucionalização
de valores (Danilo Martuccelli, 2000) são tendências centrais. Por desdiferenciação de
subsistemas entendemos o aumento da indefinição das fronteiras dos subsistemas
sociais, através da interpenetração e colonização das várias esferas de poder (por
exemplo, o poder econômico influenciando a pesquisa científica, a influência judiciária
nas decisões políticas, o impacto da mídia na política e, em geral, a difusão da influência
do setor privado nas diferentes áreas da vida social). Por desinstitucionalização de
valores entendemos o distanciamento crescente dos valores individuais e da formação
da identidade das instituições estatais (em particular a escola), bem como o declínio
das instituições tradicionais de representação (sindicatos, associações profissionais, partidos políticos). 4
46
Sobre esta questão ver Bernardo Sorj, 2004.
47
Nesta seção avançamos algum ponto levantado em Bernardo Sorj 2003.
48
No Brasil, segundo estudo do IBGE (op. cit.) , menos de 0,2% das ONGs empregam um terço do quadro
de funcionários das ONGs.
25
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A sua grande dimensão, bem como a exigência dos doadores de propostas e relatórios
sofisticados, aumenta a necessidade de pessoal especializado, embora devido à sua
instabilidade financeira a maioria das ONG tenha dificuldade em pagar salários
competitivos. A profissionalização das ONGs produz certa tensão no recrutamento de
pessoal, entre as exigências de um ethos moral que atrai pessoas dispostas a aceitar
salários abaixo do mercado -mas nem sempre plenamente qualificados-, e um ethos
profissional que exige altos pessoal qualificado com suas respectivas expectativas de
maiores salários e visão das ONGs como estrutura empresarial. Esse é um problema
enfrentado por ONGs em todo o mundo, e a profissionalização de ONGs de médio e
grande porte está bem encaminhada, estimulada por novas exigências dos órgãos financiadores.
26
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A principal dificuldade para os projetos sociais das ONGs é o prazo limitado de apoio aos seus
projetos. Os projetos sociais das ONGs normalmente têm um ciclo de vida equivalente ao
período de financiamento externo. Embora haja uma pressão crescente dos doadores para que
os projetos se tornem autossustentáveis após um curto período, na maioria dos casos esta
não é uma demanda realista. A verdadeira questão não é tanto a auto-sustentabilidade dos
projetos, mas sim se eles podem se tornar um modelo para as políticas públicas e/ou para o
mercado, os únicos que, a longo prazo, têm recursos materiais e humanos para adotar o novo
soluções de forma sustentada e sistemática.
A maioria dos projetos sociais de ONGs são ações locais ad hoc , sem dúvida relevantes para
as comunidades-alvo, mas sem grande impacto social pela simples razão de que geralmente
não são replicáveis devido aos recursos locais disponíveis. Em vez de serem pioneiros ou
complementares à ação governamental, muitas vezes acabam se tornando vitrines. No entanto,
a crítica frequentemente levantada de que as ONGs se tornaram um substituto para as políticas
estatais sob a agenda neoliberal é, como mencionamos acima, insustentável. As ONGs não
podem oferecer de
segurança, justiça,
saúde. As ONGs,serviços urbanos,
no máximo, estãoeducação em larga
sendo utilizadas escala
pelo ou serviços
estado para
complementar ou apoiar suas políticas, e precisamos de mais pesquisas para avaliar a
importância de sua contribuição para as políticas estaduais.
As ONGs precisam de apoio externo constante para criar e experimentar projetos sociais, que
muitas vezes são cancelados quando o financiamento acaba. Embora haja alguma verdade no
argumento de que as ONGs são mais eficientes do que o setor público em igualdade de condições
27
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Os projetos sociais das ONGs devem ter formato bem definido, estrutura gerencial e sistema de
avaliação que possam levar à sua reprodução em larga escala, permitindo que sejam
eventualmente apropriados pelo mercado ou transformados em políticas públicas.
As ONGs devem ser treinadas para superar o amadorismo e criar projetos sociais cujo sucesso
não dependa apenas da boa vontade e sacrifício do pessoal da ONG e/ou financiamento externo.
Isso pode ser feito por meio da criação de protótipos que possam ser transformados em políticas
públicas. Sem esse treinamento, os esforços locais provavelmente resultarão em pouco mais do
que melhorias temporárias ou, na melhor das hipóteses, a melhoria social de pequenos grupos
visados pelos projetos.
Como os doadores não querem apoiar projetos por mais de um determinado período de tempo
(normalmente curto), a maioria dos projetos sociais de ONGs não sobrevive. As burocracias
doadoras preferem não reconhecer esse fato e muitas delas produzem relatórios (geralmente em
edições extremamente sofisticadas e caras) nos quais apresentam histórias de sucesso de
projetos que apoiaram, muitos dos quais já foram enterrados quando o relatório circula.
A instabilidade financeira não só põe em risco a continuidade dos projetos como
dificulta o recrutamento de pessoal qualificado, principalmente quando se exige experiência
executiva. Às vezes, o simples tamanho serve como um antídoto. A grande dimensão permite
acumular uma massa crítica de recursos que permite manter uma equipa permanente de
profissionais qualificados apesar das flutuações do fluxo de caixa e cobrir o custo de programas-
piloto antes de obter financiamento formal.
a) Avaliar o impacto de projetos sociais implica não apenas identificar suas consequências para
um determinado público-alvo, mas também sua sustentabilidade no longo prazo e seu potencial
de transformação em uma solução que possa ser convertida em políticas públicas ou absorvida
pelo mercado. Este tipo de avaliação implica uma visão de longo prazo para além do ciclo de
tempo do próprio projeto, considerando que a maturação do projeto e o impacto público ou de
mercado ocorrem em um período de tempo mais longo. Nem os doadores nem as ONGs trabalham
dentro de um prazo além do período em que o projeto está em vigor. Na verdade, a burocracia
dos doadores não está muito interessada em saber as consequências de longo prazo de suas
doações. Às vezes, os doadores recorrem a especialistas externos, mas em muitos casos esses
especialistas têm independência limitada e geralmente vêm de países desenvolvidos com
conhecimento e sensibilidade insuficientes para as condições locais.
A maioria das ONGs não tem recursos para acompanhar as consequências de seus projetos.
Assim que um projeto está em andamento, eles buscam apoio para outro. E, de qualquer forma,
não é muito realista pedir autoavaliação quando está em jogo a própria sobrevivência.
49 Ver Michael Edwards, Alan Fowler (2003) para uma discussão sistemática sobre
questões de gestão de ONGs. Ver também David Lewis, 1999 e Helmut K. Anheier, 2000.
.
28
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b) Projetos de advocacy são ainda mais difíceis de avaliar devido ao complexo número de
fatores envolvidos no aumento da conscientização pública. A abrangência de seu impacto é
normalmente maior do que a dos projetos sociais e mais difusa. Conforme declarado por um
estudo sobre a Sociedade Civil Africana: “Os estudos demonstram que a contribuição feita
pelas organizações da sociedade civil para a democracia não se manifesta apenas na extensão
de sua capacidade de influenciar políticas e legislação. Se medidos apenas com base neste
critério, o seu impacto seria considerado mínimo. Mas as evidências demonstram que a
contribuição das organizações da sociedade civil para a democracia se estende à sua
capacidade de fomentar a participação e a deliberação, de construir capacidade de liderança e
de nutrir valores de tolerância e construção de consenso, todos os quais são uma função das
práticas democráticas internas. Sua capacidade de oferecer voz aos cidadãos nas decisões e
aumentar o pluralismo pode ser tão importante quanto a capacidade de influenciar a tomada de
decisões e exigir responsabilidade dos atores estatais.” (Mark Robinson e Steven Friedman, 2005: 40).
e) Provavelmente nem as ONGs nem os doadores são os mais qualificados para avaliar os
projetos nos quais estão envolvidos. O que se faz cada vez mais necessário são instituições
locais, com capacidade intelectual e independência, capazes de produzir metodologias de
avaliação adaptadas às condições locais. Além disso, há a necessidade de estruturas
conceituais para entender o papel das ONGs, de modo a aumentar sua auto-reflexividade,
compilar e comparar suas experiências, bem como avaliar os impactos de longo prazo de seus
projetos.
A tendência das ONGIs de enfatizar o conflito entre países ricos e pobres as leva a subestimar
a importância das desigualdades nacionais dentro dos países desenvolvidos e em
desenvolvimento. Enquanto a divisão Norte/Sul exige principalmente o aumento da ajuda
humanitária aos países em desenvolvimento, as desigualdades internas são muito mais
29
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questão política que implica um confronto de interesses sociais que não podem ser
dissolvidos em reivindicações gerais de direitos humanos. A ênfase excessiva nos direitos
dos grupos de identidade relegou a questão geral das condições de trabalho a um segundo
plano (Michael Piore, 1995). A fragmentação das causas sociais e a multiplicação de ONGs
especializadas tem levado a uma dispersão de energias e a uma desconsideração das
questões mais unificadoras que podem levar à melhoria das condições de vida dos setores mais pobres da popu
A promoção das causas dos grupos de identidade sem alterar as condições gerais do
mercado de trabalho e das políticas sociais tem um efeito limitado na melhoria das condições
gerais de vida dos pobres e das classes médias baixas.
Deve-se reconhecer que estamos longe da realidade de uma sociedade civil global. Não se
trata apenas, como muitos defendem por causa do 11 de setembro, da luta contra o terrorismo
e do backlash produzido pela intervenção dos Estados Unidos no Iraque e pela postura
antimultilateralista do governo Bush. É claro que as atuais políticas dos EUA tiveram
importantes efeitos negativos sobre o avanço das agendas multilateralistas e internacionalistas.
Os defensores da sociedade civil global na década de 1990, no entanto, tendiam a ter uma
percepção ingênua da política mundial e cegueira para a contínua importância dos Estados-
nação na elaboração da política internacional, inclusive dentro do mundo transnacional das sociedades civis.
50 Ver Edwards, Michael, David Hulme (1997). Para uma análise muito crítica da “indústria da ajuda”, ver Alison
Van Rooy, 1999.
51
Sobre esta questão, ver Caroline Harper (2001).
30
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para todo o continente. Hoje esse tipo de think tank não existe. A reconstrução do
pensamento criativo local, nacional e regional é dificultada pela internacionalização da
investigação académica e pelas redes Norte/Sul que marginalizam os contactos
horizontais Sul/Sul, mesmo a nível regional. A política dos doadores internacionais na
última década para apoiar principalmente projetos de 'ação' tem sido particularmente
prejudicial para as atividades de pesquisa. Centros de pesquisa orientados para
políticas em países em desenvolvimento dedicados a esse empreendimento poderiam
contribuir muito para dar sentido à experiência acumulada e ajudar a orientar as
atividades das ONGs para definir uma agenda nacional/regional. O desafio para as
sociedades civis do sul é aumentar a capacidade de seus think tanks para produzir
centros autônomos de reflexão que orientem a ação das organizações da sociedade civil local.
Isso implica que as ONGs devem se tornar um ator autônomo e engajado com outros
atores políticos. A experiência de muitas ONGs na América Latina passou da alienação
dos partidos políticos para o apoio acrítico, como o dado pela maioria das ONGs
independentes ao Partido dos Trabalhadores no Brasil.52 Engajar-se em interação e
debates com partidos políticos, sindicatos e congressistas ajudar as ONGs a ir além das
agendas orientadas para a demanda, enfrentar a questão dos recursos estatais limitados
e criar propostas realistas e uma agenda social inclusiva. As ONGs podem desempenhar
um papel democratizador se se enxergarem como parte do sistema político nacional,
enfrentando os problemas de governança, distribuição de riqueza, direitos trabalhistas
e democratização do Estado. Em outras palavras, a relevância das ONGs depende,
finalmente, de sua capacidade de fazer parte da formação de sistemas democráticos nacionais, reinventand
52
Essa identificação não se deveu às raízes políticas comuns de ONGs e lideranças petistas, mas sim a uma
tendência semelhante do Partido dos Trabalhadores e ONGs de se engajar em um discurso anti-
neoliberal moralista sem abordar a questão de formas alternativas de elaborar e implementar políticas alternativas.
31
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As ONGs não apenas minimizam a questão de como elas representam a voz do povo,
mas também o problema da representação interna: quais são as ONGs que representam
a galáxia das ONGs? Este é ainda mais o caso das ONGs internacionais que afirmam
representar a voz da sociedade civil global. Como argumentamos acima, as ONGs do Sul
e do Norte, bem como as de diferentes países em todas as regiões, têm posições
diferentes em muitas questões. As organizações internacionais devem reconhecer a
importância de garantir um papel para ONGs de diferentes nações e regiões e suas
diferentes perspectivas. Aumentar a voz das ONGs do Sul é ainda mais importante
considerando que normalmente as ONGs mais ricas podem arcar com o custo de
financiar uma presença permanente de lobby em organizações internacionais. Reconhecer
suas diferenças permitirá que as ONGs organizem diferentes coalizões representativas de sua diversidade.
53
A proposta de ampliação do papel da sociedade civil nas Nações Unidas, elaborada em 2004 no
pedido do Secretário-Geral, pelo Painel de Eminentes, presidido pelo Presidente Fernando
Henrique Cardoso, ver www.un.org/dpi/ngosection/N0437641.pdf. e Miguel Darcy 2005. Veja
também Riva Krut (1997) e para uma perspectiva mais nuançada sobre as possibilidades de
intervenção da sociedade civil em organizações multilaterais veja Shepard Forman (2004) e Stephen Toulmin (994).
32
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doadores internacionais supõem ser o correto.54 A chamada cultura local é sempre uma
mistura de várias tradições que podem ser interpretadas de várias maneiras e a etnicidade é
em si um conceito culturalmente enviesado, que tem diferentes significados na vida cotidiana
da maioria dos países.
Em alguns casos, como nas favelas do Rio de Janeiro, um grande número de líderes
comunitários está diretamente envolvido ou indiretamente em risco de chantagem por parte do
narcotráfico. Isso, por si só, já seria razão suficiente para não deixar a gestão dos projetos
inteiramente nas mãos dos moradores locais. Mas aqueles que enfatizam o empoderamento
das comunidades argumentariam que isso é circunstancial e, portanto, temporário. Essa visão
se baseia em uma visão idealizada e, portanto, distorcida da comunidade. Essas comunidades
são freqüentemente controladas por estruturas oligárquicas que, sem controle externo, tendem
a apoiar projetos que, na melhor das hipóteses, reforçam seu poder e, na pior, canalizam recursos escassos para s
Embora a participação local seja fundamental, ela não deve levar ao mito de um discurso
'alternativo' baseado no conhecimento local, que tem sido adotado por muitas grandes
fundações. É importante valorizar a expressão das comunidades locais e de suas lideranças,
mas sem mistificá-los como única fonte de conhecimento
Em vez de celebrar identidades pré-existentes que foram ignoradas ou coibidas pela cultura
dominante, a questão central é transformar a autoimagem dos setores mais pobres e a imagem
negativa que outros grupos sociais têm deles, criando novas formas de integração cultural e
social com a sociedade em geral. Em vez de oposição e isolamento, o objetivo deveria ser
integrá-los à vida social e cultural nacional. O preconceito social, um ethos jornalístico de
notícias de alto impacto e até mesmo uma cooperação internacional bem intencionada que se
concentra na exclusão social tende a apresentar as comunidades pobres sob uma luz negativa,
como locais de violência e sofrimento. Sem negar esses problemas, as ONGs devem tentar
criar pontes entre os diferentes setores da sociedade, apresentando uma visão mais nuançada
e multifacetada da vida dos pobres. Ao mesmo tempo, as ONGs não devem confundir a
solidariedade e a manifestação das necessidades dos grupos de baixa renda com a
representação real desses grupos. A solidariedade não pode e não deve ser confundida com
representação, pois, por mais bem intencionada que seja, equivale a uma espécie de usurpação.
10 - A contradição entre soberania e titulares de direitos individuais não pode ser resolvida
apenas com base em princípios.
As ONGs do norte baseiam suas atividades na suposição de que o princípio da soberania é
substituído pelo humanitarismo internacionalista e pelos direitos humanos. enquanto houver
54
Um dos tipos de iniciativas mais questionáveis é o programa de ação afirmativa da Fundação
Ford no Brasil, que mostra uma falta de compreensão das particularidades do racismo no Brasil em relação aos EUA.
Viu Peter Fray? (2005).
33
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situações que requerem algum tipo de intervenção externa, a soberania é considerada na maioria dos
países em desenvolvimento como um mecanismo de autodefesa contra as tendências imperiais das
, nacional
nações mais fortes.55 a crise da Iugoslávia56 a recente invasão e ocupação do Iraque
que epermite
a legislação
a busca
de presumíveis criminosos políticos de outros países gerou dúvidas em setores da sociedade civil de
muitos países em desenvolvimento sobre as questões complexas envolvidas em contornar a soberania
nacional.
57
O mesmo vale para as causas ecológicas avançadas pelos países desenvolvidos
que podem dificultar o desenvolvimento econômico ou restringir as importações com base em
critérios que podem ser usados como barreiras invisíveis ao comércio. Os ativistas internacionais de
direitos humanos e ecológicos precisam se envolver com as sociedades civis locais nos países em
desenvolvimento, se não quiserem ser vistos como organizações de orientação imperial.
Embora o princípio da soberania sempre tenha sido relativo, em particular para as nações mais
fracas, não deve ser descartado prontamente como um obstáculo à implementação das agendas de
direitos humanos. A intervenção externa é sempre uma experiência traumática e a
imposição de regimes democráticos está, em muitos casos, fadada ao fracasso, especialmente se a
agenda externa se impõe sobre as realidades sociais internas . tanto com base em princípios quanto
contra a reação que possa produzir em nível nacional e regional.
11 - Os direitos humanos são insuficientes para fornecer orientação política em situações de violência
aberta ou onde choques culturais estão presentes e podem ser manipulados por interesses partidários.
A defesa dos direitos humanos por meio da denúncia de violações é uma tarefa importante na qual
as ONGs têm desempenhado um papel central. No entanto, os militantes dos direitos humanos têm
enormes dificuldades em enfrentar as realidades práticas de situações violentas em que a polícia e/
ou as forças armadas devem usar a repressão física. Claro que o recurso à repressão deve ser
acompanhado do respeito pelos direitos humanos e associado a políticas preventivas de melhoria
das condições sociais propícias à criminalidade e à violência. Não se pode ignorar, porém, a
necessidade de enfrentamento dos grupos violentos com medidas repressivas. As ONGs que ignoram
a demanda da sociedade por um sistema de segurança pública eficaz apenas empurram a população
para as mãos de governos que propõem agendas repressivas (veja, por exemplo, o caso da
popularidade do presidente Uribe na Colômbia). O discurso dos direitos humanos deve estar
relacionado a propostas ativas sobre o papel da polícia e das forças armadas em situações de conflito,
devendo ser capaz de avaliar situações de risco e violência e o uso adequado da força quando
necessário. A tendência de criticar principalmente as ações repressivas do Estado, juntamente com a
clemência e, às vezes, até mesmo as racionalizações da violência civil, tendem a alienar os grupos de
direitos humanos do resto da população. Os grupos de direitos humanos devem reconhecer e
denunciar a violência civil, tanto como uma questão de princípio quanto como a única forma prática
de encontrar apoio mais amplo para desenvolver uma relação de trabalho com as forças de segurança.
55
Para o caso latino-americano, ver Bernardo Sorj (2005). Para uma crítica geral ao internacionalista
visão de direitos humanos ver Danilo Zolo (1997, 2002).
56
Uma análise crítica da intervenção da OTAN pode ser encontrada em Danilo Zolo (2002). Sobre guerras humanitárias
ver também David Chandler (2002)
57
Assim como o pedido de julgamento de Pinochet na Espanha, visto por muitos militantes democráticos no Chile como uma
intervenção em seus assuntos internos. 58
Ver David Chandler (2002).
34
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O desejo de ser inclusivo e aberto a todas as culturas leva muitos teóricos da sociedade
civil a acreditar que é possível ser completamente aberto a culturas não ocidentais.
Essa é uma presunção ingênua que ignora que há limites para a aceitação dos valores
de outras culturas, algumas das quais negam inclusive a possibilidade de uma
sociedade civil democrática. Na prática, os valores não podem ser esticados a ponto
de colocar em risco a possibilidade de sua própria existência, sem a qual a abertura a
outros valores não seria possível. A democracia deliberativa supõe que os atores
59
A solução
sociais concordam para esta
previamente contradição
sobre não
o valor da é teórica, mas
democracia prática e terá de ser
deliberativa.
negociada em cada contexto (por exemplo, o conflito entre os direitos das mulheres e
as culturas que numa perspectiva liberal oprimem as mulheres).
Em um mundo em que as relações e os valores sociais são cada vez mais plásticos e
individualizados e as velhas ideologias políticas e seus vetores –sindicatos e partidos
políticos- estão em desordem, a ideia de sociedade civil e a prática das ONGs tornou-
se uma âncora para muitos em encontrando uma maneira de expressar seu desejo de
melhorar o mundo. No entanto, as sociedades civis em geral e as ONGs em particular
estão sob a influência dos mesmos fatores – poder econômico, social, político e
cultural desigual que vicia o funcionamento da democracia em todo o mundo.
59
Ver Neera Chandhooke (1995).
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Não são apenas as realidades materiais da vida cotidiana que fazem das nações a principal
referência para a maioria dos cidadãos. As narrativas coletivas e a construção da vontade
política não podem se basear em princípios abstratos (o alimento dos intelectuais de classe
média), mas precisam estar relacionadas a histórias e experiências comuns, que até agora
só podem ser encontradas, pelo menos para a maioria das pessoas, dentro de uma
referência territorial. A democracia não é uma narrativa que pode ser imposta com
mensagens de boa vontade ou atividades ad hoc, embora ambas ajudem, mas é um
60
processo complexo de participação social – envolvendo
responsáveis juntamenteacom
criação de instituições
o desenvolvimento
econômico sustentado e a redistribuição da riqueza.
60
Ver Guillermo O'Donnell (1999).
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