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naturalização/
reconhecimento da
violência
Sutilezas da
naturalização/
reconhecimento da
violência
Violências na família,
violências em espaço escolar
Cultura Acadêmica
S586s
Silva, Marilda da
Sutilezas da naturalização/reconhecimento da violência [recurso
eletrônico]: violências na família, violências em espaço escolar /
Marilda da Silva, Adriele Gonçalves da Silva. – São Paulo: Cultura
Acadêmica Digital, 2018.
272 p.: ePUB.
Inclui bibliografia.
ISBN: 978-85-7983-949-8 (eBook)
Editora afiliada:
O começo do fim 9
Debates como esses têm sido comuns nos estudos sobre a temá-
tica e representam, igualmente, a própria natureza do fenômeno:
complexo, ambíguo e multicausal. O debate científico que permeia
a questão da definição da violência é composto por aqueles que
defendem uma definição ampla e por aqueles que defendem uma
baila dados que não são – e nem podem ser – visíveis aos olhos do
pesquisador/observador. Igualmente, mostra-se uma metodologia
favorável para embrenhar-se na complexidade da temática.
As pesquisas sobre violência nas escolas expressam com os resul-
tados diferentes facetas do fenômeno, o que confere uma compreen-
são da realidade a partir de uma pluralidade de conhecimentos e
representações que estão sempre em via de reestruturação. Ressalta-
-se o que diz Debarbieux (2002b, p.19-20) acerca da questão ao se
referir que é impossível ter um conhecimento total acerca da violên-
cia nas escolas, pois o que podemos ter de fato são representações
parciais deste assunto:
não pode definir a violência, porém não pode deixar de ter uma
opinião acerca da mesma”. Segundo o autor, se um pesquisador
em educação tivesse de definir violência, ele deveria defini-la assim:
3 Optamos por este critério considerando nosso objetivo de abrir uma reflexão
sobre a violência da escola: violência que sofrem os alunos pela ordenação da
instituição escolar e por aqueles que a representam institucionalmente, profes-
sores e demais funcionários.
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barreiras na constru-
ção da identidade de
gênero e da cidadania
plena de alunos/as de
escolas estaduais
2008 PRIOTTO, Elis Violência escolar e Identificar a relação Pesquisa qualitativa Professores, direto- Entrevista semies-
Pontifícia Universi- Palma. Violência es- políticas públicas da violência e sua re- res, pedagogos, juiz, truturada/análise de
dade Católica do Pa- colar: políticas pú- presentatividade no auditor, policial da conteúdo
raná blicas e práticas espaço escolar, tendo patrulha escolar no
educativas em vista as práticas contexto de três esco-
educativas efetivadas las públicas de Foz do
por escolas públicas Iguaçu (PR)
para prevenir a vio-
lência escolar
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Instrumento de
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Ano/IES Referência Tema Objetivo principal Tipo de pesquisa Sujeitos coleta de dados/
Análise
2010 CÉZAR, Neura. Bullying escolar Compreender a ma- Pesquisa qualitativa/ Alunos, professores, Observação parti-
Universidade Federal Bullying: neira como o bullying etnográfica gestores, coordena- cipante, entrevis-
do Mato Grosso preconceito, estigmas se manifesta no co- dores, funcionários e ta semiestruturada e
e desafios da educa- tidiano escolar e na famílias de alunos de história de vida
ção para a paz vivência dos alunos, três escolas públicas
a partir do olhar dos de Cuiabá (MT)
próprios estudantes,
do corpo técnico-pe-
dagógico e das famí-
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lias dos alunos
2010 MESQUITA, Maria Violência escolar e Compreender, com Pesquisa qualitativa, Alunos de 8 a 10 anos Observação parti-
Universidade Regio- Cláudia Maria Sou- representações so- base na Teoria das estudo de caso. da 3ª e 4ª série do En- cipante, entrevistas
nal de Blumenau za. Representação so- ciais Representações So- sino Fundamental de grupal e individual
cial de alunos do 3º e ciais de Serge Mos- uma escola pública semiestruturada/
4º ano do Ensino Fun- covici, quais as de Blumenau (SC) análise de conteúdo
damental sobre violên- representações so-
cia no espaço escolar ciais de crianças do
em Blumenau – SC Ensino Fundamental
MARILDA DA SILVA • ADRIELE GONÇALVES DA SILVA
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Instrumento de
Ano/IES Referência Tema Objetivo principal Tipo de pesquisa Sujeitos coleta de dados/
Análise
de uma escola públi- orientação aos gesto-
ca de Teresina (PI) res e os planos de tra-
balho da Seduc/PI de
2004 a 2010/análise
de conteúdo
2011 C O S TA , P o l y a - Violência escolar e Saber o que pensam Pesquisa qualitativa Professores das sé- Entrevista semiestru-
Universidade Fede- na Andreza da Silva. percepções de pro- professores do Ensi- ries iniciais do Ensi- turada
ral do Mato Grosso Violências no cotidiano fessores no Fundamental so- no Fundamental de
do Sul escolar: a visão de pro- bre violência escolar, escolas públicas de
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fessores que atuam no suas causas, manifes- Corumbá/MS
Ensino Fundamental tações, consequên-
de escolas públicas do cias e formas de
município de Corum- enfrentamento
bá – MT
2012 RIBEIRO, Rudinei. Violência escolar, re- Analisar as represen- Pesquisa Professores de es- Entrevistas semies-
Pontifícia Universi- Políticas de formação presentações sociais tações sociais de um qualitativa colas públicas mu- truturadas/análise de
dade Católica do Pa- de professores e vio- e formação de pro- grupo de professo- nicipais e estaduais conteúdo: Atlas-Ti
raná lências nas escolas: re- fessores res sobre a violência localizadas na cidade
presentações sociais escolar e as políticas de Curitiba (PR)
de professores da es- educacionais presen-
cola básica tes nessas represen-
tações
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currículo mento humano
2010 SAUL, Léa Lima. Violência escolar e Identificar e analisar as Pesquisa quali- Professores, coorde- Observação
Pontifícia Univer- Escola e violência: representações sociais representações sociais de tativa nadores pedagógicos e entrevista
sidade Católica de representações sociais educadores sobre a violên- e diretores de escolas semiestrutu-
São Paulo de um grupo de cia em espaço escolar públicas da cidade de rada/ Alceste
educadores de escolas Cuiabá (MT)
públicas estaduais de
Cuiabá (MT)
MARILDA DA SILVA • ADRIELE GONÇALVES DA SILVA
2011 COSTA, Jaque- Violência esco- Identificar as representa- Pesquisa quanti- Alunos adolescentes Questionário
Pontifícia Univer- line Batista de lar, adolescência, ções sociais de adolescente -qualitativa do 6º ao 9º ano de e grupo focal/
sidade Católica de Oliveira. Adolescência representações sociais sobre a violência escolar duas escolas públicas Alceste
São Paulo e violência escolar: e prevenção da e as suas sugestões para a localizadas na cidade
das representações violência prevenção da violência. de Presidente Prudente
sociais às propostas de (SP)
prevenção
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Dos professores
Dos alunos
Violência na escola
P., 2011; Couto, 2008; Priotto, 2008; Ribeiro, 2012; Saul, 2010)
dizem que as relações interpessoais entre os estudantes são marcadas
pela agressividade e que estes já se aproximam um do outro com
agressões físicas e verbais, sendo ou não amigos. Essa representação
sobre as interações entre alunos caracteriza-se como uma percepção
comum entre os sujeitos que participaram das pesquisas. Os pró-
prios alunos consideram que a violência faz parte das suas relações
cotidianas e alguns nem a percebem como é o caso dos alunos entre-
vistados por Mesquita (2010) que incorporaram a violência como
algo natural a suas relações. Notamos, no conjunto das pesquisas,
que a violência entre pares é naturalizada pelos agentes escolares
como brincadeiras corriqueiras e próprias da idade. A nosso juízo
trata-se dos mecanismos operacionais do binômio naturalização/re-
conhecimento da violência, que se manifesta dentro e fora da escola.
Por ser assim, os alunos consideram as brigas, apelidos e xinga-
mentos como práticas normais entre eles, e o motivo apresentado
para essas situações são brincadeiras pesadas que envolvem o conta-
to físico. Nesse sentido, “brincadeira” e “violência” confundem-se,
chegando ao ponto de os responsáveis pelos alunos não saberem ao
certo quando uma situação é violenta. Para os alunos entrevistados
por J. Costa (2011), a violência entre pares é iniciada por brincadei-
ras, mas o autor percebe que a situação só se torna uma violência de
fato dependendo da aceitação da suposta “brincadeira” pela vítima.
Todavia, reconhecem que mesmo sendo uma brincadeira, ela traz
dor e sofrimento às vítimas. Dessa forma, a “brincadeira” é o come-
ço e o fim de situações de violência entre alunos, pois além de dar
início aos atos violentos, ela é também utilizada como justificativa
desses atos, como mostram os excertos:
Ontem mesmo eu inventei que estava doente para não vir à es-
cola por causa das agressões que sofro. Eu não tenho gosto de vir à
escola. Quando chego aqui me dá dor de cabeça, tenho mal-estar por
causa desse tal de [aluno] porque todo dia ele me bate lá na minha
sala e também na hora da troca de aulas – Pedro, 14 anos, 6º ano.
(Cézar, 2010, p.132)
entre alunos são motivadas sobretudo pela cor da pele, isto é, pelo
preconceito racial: “A discriminação racial pode ser entendida como
uma conduta – ação ou omissão – que separa e enfatiza as diferenças
do outro com base na raça”. A discriminação racial é o que mais ocorre
nas escolas, atingindo, sobretudo, as meninas pela desvalorização do
cabelo afro. As meninas negras e afrodescendentes são frequentemente
hostilizadas e rejeitadas por seus colegas, são chamadas de “cabelo de
bombril”, “cabelo de grenha”, “cabelo pixaim”, “cabelo de sarará”,
dentre outras denominações que reforçam a percepção de que o cabelo
afro é ruim e feio. O cabelo afro é considerado ruim até mesmo pelas
próprias alunas-vítimas que manifestam a vontade de ter um cabelo li-
so: “Na sala, já fui chamada muitas vezes de cabelo grenho, pixaim [...]
Tem outras meninas que também têm cabelo igual ao meu, ruim [...].
Eu observo que elas ficam olhando as meninas que tem cabelo liso.
Como eu, elas também se sentem feiosas, são discriminadas e sofrem
com isso – Elisa, 14 anos, 3º ano” (Cézar, 2010, p.122).
Os apelidos, insultos e xingamentos dirigidos às meninas negras
e afrodescendentes são proferidos principalmente pelos meninos. Já
a rejeição, isolamento e exclusão ocorrem entre meninas. De acordo
com Abramovay (2005), a situação da menina negra é ainda mais
complicada porque ela é rejeitada tanto pelos colegas brancos quan-
to pelos próprios colegas negros. As meninas vítimas do racismo
sentem-se profundamente tristes e com vergonha, algumas fazem
de tudo para alisar os cabelos para assemelhar-se ao padrão de beleza
que permeia as relações sociais dentro da escola, com o propósito de
serem aceitas pelos colegas. O cabelo afro também é uma caracterís-
tica estética que motiva o bullying.
Notamos que as relações entre crianças e adolescentes no espaço
escolar reforçam a legitimação de um padrão de beleza na socie-
dade que não valoriza as características físicas da população afro-
-brasileira (ibidem). Apelidos como “neguinho do brejo”, “zumbi”
e “preto” também são expressões de discriminação racial frequen-
tes no espaço escolar. Essas expressões colocam o aluno negro e
afrodescendente em uma posição de inferioridade em relação ao
outro, o aluno branco. Além do preconceito racial, a discriminação
de pessoas que não estudam aqui dentro que vieram pegar um aluno
que estudava aqui. Isso aí foi muito envolvimento com drogas. –
Professora” (Saul, 2010, p.155).
Há, também, aqueles que invadem a escola com o objetivo de tra-
ficar junto aos alunos. Do mesmo modo, moradores do bairro e ex-
-alunos entram na escola para consumir droga, seja na companhia de
alunos ou desacompanhados. As violências cometidas pelos agentes
externos podem acontecer dentro da escola, nos seus arredores e no
portão da escola. Estes agentes costumam pular o muro da escola ou
entrar disfarçados de alunos, nos momentos de entrada e saída das
aulas. De resto, as ações violentas de policiais contra alunos, quando
estão a serviço da patrulha escolar, também são consideradas uma
violência na escola.
Diante das manifestações da violência na escola apresentadas
neste tópico, concluímos que essa violência constitui-se no âmbito
das interações dos alunos uns com os outros, com a escola e com suas
relações sociais fora dos muros da escola. É na trama dessas relações
tensas e conflituosas que a violência na escola se desenvolve e instiga
outras: violência à escola e violência da escola.
Violência à escola
Violência da escola
[...] aí eu tenho que usar de uma certa violência de pressão para fazer
ficar sossegado no lugar dele e trabalhar e fazer o que tem que fazer,
e respeitar tanto os colegas quanto a professora. Se houvesse uma
cultura de respeito, não precisaria usar a autoridade de uma forma
mais agressiva [...] Mas como não há esse respeito, o professor às
vezes tem que usar uma forma mais repressiva. Às vezes, eu sou
obrigada a tirar a educação física deles, às vezes eu sou obrigada a
tirar o recreio, às vezes eu sou obrigada a ameaçar de tirar ponto, mas
eu não tiro, eu só ameaço! – Professor 1, Escola B. (ibidem, p.160)
Eu falei para a aluna: “você é tão engraçada, por que você não
vai trabalhar no circo? Porque lá é lugar de fazer graça. Aí ela olhou
para, deu uma risada amarela. Daí eu falei para ela: olha, ou você
acorda para vida ou você vai terminar como diarista [...] se bobear,
daqui uns dois meses você está de barriga”. – Professora, idade entre
20 a 30 anos, dois meses de tempo de serviço. (ibidem, p.93-4)
1 Vale dizer que é muito difícil conseguir informações sobre violência sofrida,
testemunhada e até mesmo como se pensa sobre ela, o que ficou evidente no
desenvolvimento desta pesquisa, tema ao qual, necessariamente, retomaremos
mais adiante.
O que está em jogo, segundo tal autor, é para “onde” foi deslo-
cada a punição a partir do aparato da justiça punitiva moderna. Se
na Idade Média o corpo era o “lugar” no qual residia o crime e no
qual a punição deveria agir, agora6 trata-se de outra realidade. Se-
gundo Foucault (ibidem, p.18), “o aparato da justiça punitiva teria
que olhar para além da realidade corpórea, deveria, sim, olhar para
a realidade incorpórea”, ou seja, para a alma. Contudo, neste caso,
o corpo continua a insinuar “um saber” e é para essa indicação que
estamos olhando. Nesse sentido, a pergunta que surge é a seguinte:
Será que o corpo, em si, e apesar do aparato punitivo da justiça mo-
derna em uso, é sim e continuará sendo o lugar da ressonância visível
da violência, e por isso faz acusações gestuais quando “seu sujeito”
nega “o saber” que ele acumulou/memorizou a respeito da violência
sofrida? Pela insistência da regularidade observada incluímos os mo-
vimentos corporais no rol dos elementos que compõem a naturaliza-
ção da violência, em largo e estrito sentido, para realizar e analisar as
entrevistas-fonte propriamente ditas. E tomara que não estejamos
no mais puro e robusto exercício do descabimento.
Nessa medida, são as ideias de Foucault (ibidem) – especifica-
mente sobre o corpo e a respectiva economia – que, a nosso juízo,
apontam para uma luz no fim do túnel. Segundo ele,
Foucault pode ser sim uma boa chave para compreender a natu-
ralização da violência, tendo em vista que movimentos corporais são
“sinais do corpo” que podem ser lidos como respostas objetivadas,
nesse caso, sobre violência sofrida. Todavia, não podemos afirmar,
com tais entrevistas-piloto, que os “sinais” observados diziam res-
peito ao fato de o sujeito ter sofrido a violência e negar o ocorrido,
mas podemos indicar que esses sinais apontavam nessa direção.
Também observamos com as entrevistas-piloto que a violência
vivida na família e na escola recebeu justificativas e reações diferen-
tes entre si. Ademais, as cinco professoras, em regularidade, lem-
braram-se mais da violência vivida na família e menos da violência
vivida na escola. Pareceu-nos que à violência da família era dado um
peso maior, como se ela tivesse sido mais marcante do que a viven-
ciada na escola, mesmo havendo muita dificuldade em reconhecê-la,
o que culminou com o fato de as depoentes não terem nem receios,
nem desconfortos ao narrarem episódios de violência por professo-
res contra elas. A diferença de significado da violência vivenciada na
família e na escola foi notória. Essa notoriedade era mostrada pelos
sinais dos corpos quando se tratava da família. Também era igual-
mente notório o esforço das depoentes para justificá-la. A propósito
da referida justificação apresentamos alguns relatos7:
Minha mãe batia na gente, às vezes, mas não era uma violência, eu
acho que não era! Era uma coisa assim pra mostrar pra gente que es-
távamos errados, que aquilo que tínhamos aprontado estava errado.
Entende, não era uma coisa de maldade, era o jeito dela de fazer o
melhor pra formar a gente. (Entrevista-piloto, 3)
8 Reiteramos que se trata de uma inflexão das ideias do autor nos limites possí-
veis do objetivo desta pesquisa.
1 Vale dizer que não fizemos vídeo dos sujeitos tendo em vista ter os sinais do
corpo em um dispositivo visual. Tais sinais foram registrados no caderno de
campo após cada entrevista. Também não os registramos durante a entrevista
porque ela foi gravada, e temíamos, caso anotássemos algo no caderno de campo
à frente do entrevistado, causar prejuízos à entrevista. Por tais razões, sem som-
bras de dúvidas, houve perdas de tais sinais. Mas como eles foram regulares, as
perdas não impactaram os resultados que estarão registrados nesta pesquisa.
2 A opção por esse nível de ensino diz respeito ao fato de que já realizamos
diversas pesquisas que mostram que professores cometem mais violência
contra alunos desse nível de ensino, de acordo com as referências registradas
anteriormente.
3 A coordenadora de tal projeto foi a professora Marilda da Silva, que também
assina a autoria deste texto.
5 Vale dizer que a HTPC, durante a qual foram realizadas as entrevistas, tem
duração de cinquenta minutos.
6 Tais perguntas mostraram-se eficientes na entrevista-piloto; contudo, sem-
pre exigiram complementações e essas não tiveram regularidades entre os
sujeitos, pois cada um deles exigiu um tipo de condução. Tais informações
da entrevista-piloto favoreceram a tomada de decisões durante a realização da
entrevista-fonte.
8 Ressaltamos que a profissão dos pais, nos dois quadros, é referente às funções
que eles exerciam quando os sujeitos eram crianças/adolescentes, não corres-
pondendo, portanto, às ocupações do momento em que as entrevistas foram
realizadas.
A idade dos sujeitos distribuiu-se pelas faixas etárias dos 20, dos
30 e dos 50 anos, pulando a faixa dos 40 anos. Há supremacia da fai-
xa dos 50 anos, três sujeitos, e depois vêm igualitariamente as de 20
e 30 anos, dois sujeitos em cada uma delas. Esse fato levou a outro:
esses professores formaram-se em momentos históricos diferentes.
Isso permite dizer que podem ter tido experiências escolares dis-
tintas tendo em vista, de modo geral, a história brasileira produzida
em cada tempo e, em particular, a história da educação produzida e
reproduzida também por eles, primeiro como alunos e depois como
professores. No que diz respeito à herança familiar, os pais de nossos
sujeitos, em grande maioria, quando os entrevistados eram crianças
e adolescentes, exerciam atividades laborais de pouca exigência es-
colar. Logo, tinham baixa escolaridade. Isso indica a origem socioe-
conômica e cultural desse grupo. Em relação ao sistema de ensino
no qual os sujeitos se escolarizaram (escola básica), quatro deles
frequentaram instituições escolares da rede pública, um frequentou
paulista. É o filho mais velho de uma família formada por pai, mãe,
um irmão e uma irmã. Joca começou a trabalhar ainda muito novo:
descia o cacete com varinha de marmelo que era mais usual, porque lá
na fazenda tinha muito no chão.
Observe que Joca aos 11 anos apanhava de sua mãe porque que-
ria ter as experiências infantis como as outras crianças tinham. No
que se refere ao pai, o professor nos disse: “Meu pai deixava uma
garrafa de pinga embaixo da mesa e da pia da cozinha, ele ia lá e to-
mava um golinho e depois outro golinho. No fim, ele não precisava
tomar muito para ficar ruim e já ficava mal, exaltado” (ibidem).
Nesses momentos de embriaguez do pai Joca apanhava dele. Contu-
do, em certa medida, Joca justifica essa violência: “[...] quando dava
na cabeça dele de bater na gente ele batia. Batia na gente14 sem mo-
tivo, talvez era inconsciente, eu acho que ele não sabia o que estava
fazendo” (ibidem). Essa ação de Joca de transferir a responsabilida-
de da violência cometida por pelo pai contra ele para a bebida15 nos
levou a perguntar: estaria nessa justificativa a dificuldade de colocar
o pai na posição de agressor ou de um delituoso? É Foucault (1987,
p.20) que continua a nos ajudar, com aquilo que é possível para esta
análise e nos limites da mesma. Lembre-se de que para o autor um
julgamento passa necessariamente por “[...] estabelecer a verdade
de um crime, [...] determinar seu autor, [...] aplicar-lhe uma sanção
legal”. Será que tal justificativa pode funcionar como um elemento
da operacionalização da naturalização/reconhecimento da violên-
cia doméstica, neste caso, já que se trata da família? Seria a posição
do pai frente a diferentes sentimentos do sujeito filho que auxilia a
justificação por parte do filho que leva à inocência de quem prati-
cou a ação?
Joca continua seu relato:
16 Vale lembrar que o lugar social da criança na família sempre foi o de obedecer e
ser punida pelos adultos (Ariès, 1981; Guerra, 2008).
contra ele, já que elas não bebiam como o pai? Seria, então, a racio-
nalidade do julgamento que estaria em jogo, mais uma vez? Isto é:
para o pai a justificativa era a inconsciência provocada pela bebida;
para a mãe e a avó a justificativa era que coisas de crianças são pas-
síveis de corretivos.
Um dado importante na entrevista de Joca refere-se ao fato de que
ele foi durante as duas entrevistas mudando sua percepção sobre a
violência que sofreu na infância, fazendo, pareceu-nos, uma autorre
flexão. Isso ficou evidente quando, como em um desabafo, diz que
sua infância foi muito difícil. Nos momentos desse reconhecimento
sua voz tornava-se embargada e ele se ressentia das agressões físicas,
mostrando as marcas dessa violência nos próprios braços. Seria o
suplício do corpo que ainda não foi banido da sociedade, como quis
Foucault (1987)? Contudo, em nenhum momento da entrevista
denominou os atos do pai, da mãe e da avó como violência e sequer
pronunciou essa palavra durante as duas entrevistas. A face de Joca
sofria expressões que denotavam que algo estava acontecendo com
ele naquele momento que se relacionava à percepção que tinha da
infância que descobria agora. Parecia-nos que o corpo dele estava
emitindo um saber no que diz respeito à economia dos direitos sus-
pensos, de acordo com Foucault (ibidem, p.26), o que foi anunciado
na entrevista-piloto em situações semelhantes.
Não podemos deixar de mencionar que Joca, a seu modo, se res-
sentia da situação – do âmbito do trabalho infantil – a que foi exposto
na infância e na adolescência. A propósito, na adolescência, porque
trabalhava fora de casa e era arrimo da família, afirma que começou
a ser mais poupado pelos pais no que diz respeito a agressões físicas.
Pode-se dizer, talvez, que o capital econômico possibilitou uma
mediação entre violência e não violência, pois quando começou a ga-
nhar dinheiro foi, segundo ele, poupado de castigos corporais. Seria
outra face da economia dos direitos suspensos?
Há que se dizer que em nenhum momento Joca se referiu a
atos de violência simbólica ou à própria denominação desse tipo de
violência. No entanto, pelo exposto, acreditamos que certamente
ocorreram muitas situações em que essa violência era cometida no
contexto de sua família. Não deixa de ser menos grave nessa entre-
vista o fato de Joca não ter se referido a nenhuma situação da nature-
za em questão. A propósito da violência simbólica, Bourdieu (2010a,
p.471) a define do seguinte modo:
Meus pais eram separados, meu pai foi embora e deixou minha
mãe com quatro filhos. Por causa disso eu sofri uma discriminação
muito grande porque na década de 1950 e 1960 os filhos de mãe
abandonada eram muito discriminados. [...] então quando meu pai
foi embora e a deixou com quatro filhos sofremos muito preconcei-
to da família, pelos familiares mesmo. Eu sofria essa discriminação
também por parte das minhas tias se eu fazia alguma coisa errada,
qualquer arte era aquela coisa: “também, é filha de fulano”. Então
era sempre o erro da minha mãe sendo lembrado, a todo o momento.
[...] Minha mãe, quando ela casou com o meu pai, meu avô não que-
ria o casamento, e a família não quis saber da vida dela porque eles
foram contra. E quando meu pai foi embora e a deixou com quatro
filhos sofremos muito preconceito da família. Mas não teve outro
jeito e mesmo assim meu avô levou a gente para casa dele. Então nós
sofremos preconceito por todos os lados. (Vicentina, 2014)
Meu irmão deu muito trabalho, ele era expulso de todas as esco-
las que ele passava e ele apanhava bastante do meu avô. Eu sou a mais
velha dos meus irmãos e ele era meu terceiro irmão. Meu irmão apa-
nhava mesmo porque ele aprontava muito, era aquele comportamen-
to de criança de família desestruturada sabe. Não sei se eu era muito
esperta ou muito na minha porque ele sofreu mais isso, a violência
física. Eu via meu irmão apanhar de fio de ferro. (Vicentina, 2014)
[...] às vezes minha mãe dava umas com ferro na gente, mas eu não
vejo isso como violência, eu vejo como educação. Ela pegava o fio de
ferro e malhava na gente, mas isso era muito raro. Eu vejo as palma-
das da minha mãe ou o fio de ferro no nosso bumbum não como uma
violência, mas como uma forma de educação e não era sempre que
acontecia, só quando ela ficava muito brava. Era educação mesmo e eu
acho que não tem problema nenhum. [...] era tão comum nas famílias,
ficar de castigo, apanhar de cinta ou levar um fio de ferro. Não era
nada fora do normal e eu também acho que não era mesmo. [...] Naque-
la época apanhava com fio de ferro mesmo, mas era só, sabe? Eu não
vejo isso como violência de forma alguma, foi muito bom para mim
e seria bom se as crianças de hoje fossem educadas assim com mais
rigor. (ibidem)
e você lembra que não quer mais sentir aquilo” (ibidem). Assim,
a validade do expediente reside no resultado da violência física
sofrida, especialmente na dor, que nem ela quer sentir novamente.
Como a dor física pode ser concebida como um recurso educativo
eficaz por uma pessoa que a sentiu e não gostou? A respeito da
dor como punição, Foucault (1987, p.16) afirma que “desaparece,
destarte, em princípios do século XIX, o grande espetáculo da pu-
nição física: o corpo supliciado é escamoteado; exclui-se do castigo
a encenação da dor. Penetramos na época da sobriedade puniti-
va”. Será que podemos afirmar que quando Vicentina se refere à
dor provocada pela surra de fio de ferro como sendo um recurso
educativo está operando no universo da sobriedade punitiva às
avessas? Outrossim, há que se perguntar: será que Vicentina não
reconheceu como violência a surra de fio de ferro porque foi de au-
toria da mãe? Novamente, quando a violência é cometida por entes
queridos próximos, ela é transformada em outra coisa – neste caso,
em processo educativo. Será que é por isso que Vicentina, como
mostramos, não considerava que o avô cometia violência contra o
próprio irmão dela? Segundo a depoente:
19 Apesar de Vicentina ter explicitado que gostaria que a educação fosse “rígida”
como a que ela recebeu, ela não explicitou que educa seus alunos “rigidamente”.
20 Júlio é formado em Educação Física e atua nessa disciplina junto ao Ensino
Fundamental Ciclos I e II.
21 Como bem disseram Bauer e Gaskell (2012) e Thompson (1992), o roteiro do
enunciado das perguntas para fazer uma entrevista, ou seja, o guia, é mesmo
apenas um recurso de apoio; pois muitas vezes é preciso inflexionar esse instru-
mento, o que exige do entrevistador conhecimento metodológico e teórico sobre
o tema que investiga (Azanha, 1992).
[...] comigo foi tudo tranquilo porque embora meu pai fosse de uma
profissão pouco remunerada, ele conseguiu passar valores para os
filhos. Ele trabalhava em cemitério, ali ele construía túmulos e abria
covas, mas era uma pessoa muito disciplinada e regrada. Então com o
pouco de cultura que ele tinha, ele conseguiu transmitir. (Júlio, 2014)
Por algumas vezes já apanhei deles [os pais], por questões que
a criança quer aprontar, fazer arte e tudo mais. [...] era quando a
gente fazia alguma malcriação ou falava alguma coisa errada minha
mãe já olhava e a gente falava: “Meu Deus, agora eu vou apanhar!”.
Mas criança, você sabe que criança sempre extrapola, faz coisas de
criança, arte de criança. E aí pega uma coisa, pega outra de casa para
brincar e isso deixa a mãe nervosa, o pai nervoso. [...] Às vezes acon-
tecia de eu fazer outras artes, mas eu não me lembro muito de ter feito
porque eu era muito obediente, tudo que me mandavam fazer eu
obedecia demais. Então, assim, por mais que eu fizesse alguma coisa
desse tipo, não era uma coisa constante apanhar ou ficar de castigo
porque eu não era tão arteira. (Maria, 2014)
Meu pai era muito bravo, mas a minha mãe era mais. Como ela
convivia mais com a gente, então, era ela que dava mais o beliscão ou
a chinelada. Mas, eu sempre fui uma filha muito boazinha, por isso
vivi muito pouco disso. Minhas irmãs também não eram muito dife-
rentes de mim, no entanto, quando uma brigava muito com a outra
a minha mãe interferia ou o meu pai. Se meu pai estivesse em casa
podia acontecer de ele interferir, caso contrário minha mãe deixava
que a gente se resolvia. [...] Quando meu pai entrava na história era
porque alguma coisa acontecia com ele ali junto, aí ele ficava bravo e
batia ou punha de castigo. (ibidem)
gente brigava muito, aí ele dava uns. Mas ele sempre falava primeiro
umas duas vezes pelo menos, quando ele via que não tinha jeito ele dava
beliscão na gente. [...] no máximo era tapa na bunda, nem chinelo ele
usava. (Maya, 2014)
a conviver com esses meninos que por serem meninos já tinha toda
essa diferença. Ela teve mais um filho com o meu pai e nós ficamos
em cinco crianças. E as brigas eram porque não secou a louça ou
deixou de fazer alguma das tarefas, porque em casa as tarefas eram
divididas entre todos. [...] Era porque um irritou o outro ou por ciúmes,
nem lembro direito. Como era muita criança e tinha o bebê, alguns
tinham ciúmes do bebê. Eu não tinha porque eu era a mais velha e cui-
dava dele como se ele fosse meu bebê, mas os outros sim. (ibidem)
[...] minha madrasta às vezes colocava uns defeitos em mim: “ah você
é bunduda” e tal. Ela fazia isso tanto que eu digo que eu sofri bullying
em casa. Ela falava assim pra mim: “você é lerda demais”. Então
por muito tempo eu realmente achava que eu era lerda e até hoje eu
acho umas coisas em mim que eram coisas que ela falava para mim.
Então ela falava coisas assim e botava defeito. [...] “você fez malfeito,
pode fazer de novo”, sabe? Coisas assim. Ela era muito rígida comigo,
engraçado é que eu gosto dela pra caramba era só nessa parte que ela
era meio cruel comigo. Sabe aquela coisa? Tinha que ariar a panela até
brilhar e a gente ficava lá naquela panela a vida toda. [...] Isso era
na adolescência, ela fazia várias coisas assim que hoje eu acho meio
cruel, mas não sei se era consciente da parte dela, eu acho que não.
Mas tinha essas coisas meio cruéis: “você é feia”, “você é bunduda”,
“você é nariguda”, “você não faz as coisas direito”, “olha a pereba na
sua boca”, então ela falava essas coisas porque ela sempre foi de tirar
muito sarro, ela sempre falou essas coisas pra mim. (ibidem)
coisa. Não era um abuso, vamos dizer assim, mas era uma violência
voltada à indisciplina e a problemas momentâneos. A punição gera-
va a palmada punitiva, isso era por parte de pai e mãe, a punitiva. A
violência estava voltada para uma coisa punitiva, mas não era nada
assim coisa de pai que bebe e apaga o cigarro na criança de maldade.
[...] Era bater com um galho ou uma cinta, por exemplo. Quando
meu pai pegava a cinta, o negócio era mais feio. Agora a punição
maior através da palmada e do bater só dependia do meu pai quando
necessitava de uma violência muito maior, se não, dependia só da
minha mãe. [...] Já aconteceu, assim, de sujar o sofá que acabou de
limpar ou sujar e estragar muito uma roupa. Acontecia também
pelas brigas entre irmãos e aí os dois apanhavam. Isso funcionava
para separar a briga. Era uma coisa de punir para não fazer de
novo, sempre nesse sentido. Quando precisava da intervenção do
meu pai era uma coisa que vinha no sentido de que não era para
fazer aquilo mesmo. Talvez esse seja um dos piores problemas da
educação/formação porque ela é sexista: a mãe cuida de um jeito e
o pai de outro, então quando o pai cuida a responsabilidade parece
ser maior. (Manuel, 2014)
punir com cinta e vara por ter sujado o sofá, por ter estragado uma
roupa e conflitado com o irmão. No que se refere especificamente
às brigas entre Manuel e o irmão, o que se nota é que para cessá-las
usava-se de violência. Assim, uma violência gerava outra. Tal proce-
dimento é muito vigoroso para a reprodução da violência, sobretudo
quando os envolvidos são crianças e adolescentes, tendo em vista
que poderão incorporar a violência como recurso para resolver con-
flitos na vida adulta, afirma Cardia (2012).
Na adolescência, Manuel relata que as brigas com o irmão eram
frequentes, o que, talvez, ocorresse devido ao fato de a violência
fazer parte das relações familiares e ser considerada um recurso ade-
quado para aprender algo. O excerto seguinte esclarece:
[...] meu pai ele foi muito agredido pelo pai dele e o pai dele realmente
não foi um pai presente, ele era simplesmente o dono da casa, só isso.
Meu avô agredia minha avó e os filhos também, por isso meu pai sem-
pre falava que queria fazer o inverso e até certo ponto ele fez, porque
nunca deixou faltar nada, mas ele acabava entrando em contradição
por conta da bebida. Ele falava que queria fazer tudo diferente do
que ele passou com o pai dele, só que ele fez? Sim, ele fez muita coisa
diferente, mas a diferença é que meu avô não bebia para ser violento,
e meu pai bebia e batia em todo mundo. Olha, eu não sei, mas eu acho
que no caso do meu pai a culpa era da bebida mesmo, sei lá, mexia com
alguma coisa lá na cabeça dele porque depois do efeito da bebida ele
chorava e pedia desculpa arrependido do que fez. (Leandro, 2014)
tinha contra ele. Será que foi um caso de reflexão endógena mobi-
lizada pela entrevista? (Thompson, 1992). Esse processo foi visto
ora mais, ora menos em quatro sujeitos ao todo. Outro dado que
reaparece no depoimento de Leandro e que foi constatado em ou-
tros sujeitos, como já apresentamos, diz respeito à intensificação de
conflitos entre irmãos na adolescência. Leandro expõe que as brigas
e desentendimentos entre ele e seus irmãos eram frequentes e por
motivos banais, justificativa também usada pelos outros sujeitos que
mencionaram tais conflitos:
28 Há que se dizer que o irmão mais velho de Leandro foi assassinado quando
ainda tinha 17 anos.
dados deixam claro que quando se trata de entes queridos como pai,
mãe e avós não há agressor, tampouco vítima. Há educação. E o que
nos pareceu ser o estruturador básico desse resultado é o “contrato
consanguíneo” subscrito pela força do sangue.
Outro dado importante desta etapa da pesquisa diz respeito ao
fato de os sujeitos terem escolhido a violência ocorrida na família
para falar primeiro. Lembre-se de que a pergunta que abria o diálogo
da entrevista indicava apenas a etapa em que pudesse ter ocorrido a
violência – infância e adolescência –, não indicando o “lugar” em
que os fatos pudessem ter ocorrido, família ou escola. Mesmo levan-
do em conta que infância remete em primeiro plano à família, esse
comportamento chamou-nos a atenção, sobretudo à luz dos com-
portamentos seguintes. Depois do relato sobre o contexto familiar, a
pergunta que se fazia era: “Por acaso você sofreu violência em outro
espaço que não o da família?” Unanimemente, os sujeitos disseram
que havia sido na escola. Quando o último relato se encerrava,
perguntava-se, mais uma vez, se haviam sofrido violência em outros
espaços. Unanimemente, os sujeitos disseram que não. Então, foi na
família e na escola que este grupo sofreu violência.
Foi necessário nesta etapa repetir muitas vezes uma mesma ideia,
como foi o caso do binômio naturalização/reconhecimento da vio-
lência entre outras coisas. Mas foi essa repetição que nos permitiu
mostrar a recorrência dos episódios, a desigualdade de percepção
sobre eles e o emaranhado afetivo que envolve a violência na família
que nos levou à força do sangue como o operador que dificulta co-
locar pai, mãe e avós em um lugar delituoso quando eles cometem
violência30 contra seus descendentes diretos.
Com seis anos de idade Joca iniciou seus estudos em uma escola
pública localizada na região central de uma cidade do interior pau-
lista. Segundo ele, à época, a escola pública de sua cidade era fre-
quentada por alunos de diferentes classes sociais, visto que ainda não
existiam escolas privadas nas quais poderiam estudar os filhos das
famílias abastadas da cidade. Devido a essa situação, Joca percebia
em sua escola uma exclusão muito grande dos alunos considerados
pobres. Para ele era muito pior, porque se agregava ao pobre o fato
de ele morar na zona rural. Com isso, Joca acredita que sua aprendi-
zagem escolar foi prejudicada:
fazer alguma coisa e hoje eu procuro não fazer isso com meu aluno. Se
você não perguntasse o professor não falaria e quando você resolvia
perguntar algum aluno que sabia falava: “Ô seu burro, não é assim
que faz”. (Joca, 2014)
que você estudasse isso ou aquilo”. Não tinha nada disso, na minha
casa não tinha esse diálogo. (Joca, 2014)
“Não era uma violência escancarada, era mais aqueles códigos invi-
síveis que ninguém vê nem percebe, só quem passa por isso percebe”33.
E essa discriminação, como já vimos, foi muito marcante em sua
infância. Neste caso, o tipo de organização familiar a que pertencia
foi um corroborador da violência a ela destinada no âmbito da escola.
Outrossim, o tipo de escola em que estudou colaborou significativa-
mente para que sofresse a respectiva violência. Em relação às profes-
soras, Vicentina (ibidem) percebia que
A coisa era muito séria, o ensino era muito puxado e difícil. Os pro-
fessores eram a autoridade máxima, e o ensino era de primeira, aquilo
sim era um ensino de verdade, não era isso que a gente vê hoje. [...]
Antes o aluno saía da escola mais preparado, meu estudo foi muito
bom. Os alunos tinham muito respeito. Os professores naquela épo-
ca eram vistos como um juiz, um médico, um advogado, o professor
tinha um status social imenso, até o salário era bom. O professor era
visto, verdadeiramente, como um mestre e o respeito era total. Toda
vez que o professor entrava na sala de aula nós ficávamos em pé em
sinal de respeito, a gente só sentava quando ele mandava. Tudo isso
foi perdido com a escola democrática, hoje em dia, você vê: não tem
regras, nem respeito pelo professor. (ibidem)
o caso para a direção, mas não aconteceu nada. Como foi ele, o fato
passou despercebido. (Júlio, 2014)
Existia sim, mas eu acho que era algo bem humano. [...] Eu sentia,
assim, que existia uma diferenciação, mas eu acho que era bem natu-
ral própria das relações, bem humano mesmo. [...] Era algo velado,
algo assim mesmo. Até existia um comentário ou outro entre os
mais pobres, mas não passava disso também. A gente não partia para
nenhum tipo de manifestação. A gente não sentia por isso, porque a
gente não ficava torcendo por uma aproximação maior, nada disso.
São forças que existem em qualquer grupo, mas não chegava a ser
uma discriminação, eu não posso dizer que era. Eu vejo que era algo
bem natural ao ser humano mesmo. (ibidem)
34 O termo está diretamente relacionado ao fato de Júlio não ter feito nenhum
relato sobre discriminação racial.
[...] Olha, no ginásio tinha um rapaz que ele estudava comigo e uma
vez ele pichou o banheiro, a gente só soube que foi ele que pichou
porque foram na sala chamá-lo para limpar as paredes do banheiro.
Esse aluno ele dava muito problema de indisciplina na escola, era tanto
trabalho que uma hora a escola o convidou a se retirar. Isso foi no
Ginásio, tinha mais essas coisas de adolescente explodir bomba no
banheiro, pichar carteira e escrever na parede do banheiro, a gente via
muito disso. (Maria, 2014)
Teve uma professora que uma vez ela fez algo assim parecido. Eu
estava conversando com uma menina e nós éramos muito amigas e a
professora já tinha dado bronca para ninguém conversar na aula, ela
era uma professora de Português muito brava e aí eu fui pedir o durex
e falei alguma coisa com essa menina. Nesse momento a professora já
olhou assim pra gente de um jeito. Isso foi em outubro e ela separou a
gente, ela me colou do outro lado da sala até o fim das aulas. Para mim
ela me puniu muito fazendo isso. Hoje como professora eu não faço isso
porque eu não vou punir um aluno por tanto, porque eu lembro que eu
sofria tinha que ficar do lado de uns meninos muito chatos. A profes-
sora escolheu o lugar que eu ia ficar, e a outra menina continuou no
lugar dela só eu mudei de lugar, não sei se foi porque eu que virei para
trás pra falar com a menina, não sei. E aquela menina era minha me-
lhor amiga, a primeira pessoa que veio falar comigo quando eu cheguei
nessa escola onde eu fiz o Ensino Médio, e ela me jogou lá do outro la-
do da sala, longe da minha amiga, foi horrível! Com todo mundo ela
era assim, muito rígida e brava. Os alunos tinham bastante medo e eles
não gostavam dela, se ela falasse todo mundo ficava quieto de medo.
Ela era muito rígida, e engraçado porque eu não sou uma professora
rígida, talvez ela tenha influenciado no sentido de não ser assim como
ela, de ser diferente. Por exemplo, essas atitudes dela eu não teria de
jeito nenhum com meus alunos. (ibidem)
[...] os que me batiam nem sempre eram da minha sala, às vezes eram
de outras salas ou de grupinhos de alunos, entendeu. Eu lembro
uma vez quando eu estava no 1º colegial em que a professora estava
distribuindo as provas e a minha prova caiu no chão, aí o menino pisou
na minha prova e outro foi lá e puxou. Com isso minha prova rasgou
e eu não estava na sala de aula na hora que isso aconteceu, mas eu só
sei que quando eu cheguei na sala fiquei supernervoso e empurrei
o menino que puxou minha prova e perguntei: “por que você fez
isso com a minha prova?”. Olha, só sei que nesse dia quando estava
saindo da escola, o pai do menino me pegou pelo colarinho, me puxou e
falou que isso não ia ficar assim. Mas eu falei para ele que eu só queria
saber quem fez aquilo com a minha prova e aí passou. Acontece que
no dia seguinte esse menino chegou perto de mim com os amigos
dele para tirar satisfação comigo. Eu falei para os amigos dele que eu
só queria saber da minha prova e tal, mas o menino da prova ficou
falando: “é mentira dele”. Nisso veio outro menino todo alterado e fa-
lou que eu estava mentindo e me deu um murro na cara, daí juntou ou-
tros dois e começou aquela briga. [...] Nossa, foi a maior confusão! Por
causa disso acabei ficando um tempo sem ir para escola, meus pais
queriam me mudar de escola e me colocar em uma escola particular,
mas eu falei que não, disse que queria ficar naquela escola porque eu
tinha minha namoradinha lá também. Eu sei que tudo ficou por isso
mesmo, os meninos não falaram mais nada, eu não mudei de escola
e continuei apanhando como sempre. (ibidem)
A escola não fazia praticamente nada, não tinha uma coisa assim
que eles faziam, sabia? Uma vez o que eles fizeram foi me deixar ficar
uma semana saindo pelos fundos da escola. Então, assim, eu saía escon-
dido da escola um pouco mais cedo. A ajuda da escola foi só essa, por-
que eram umas pessoas barra-pesada, e na outra escola era suspensão.
A escola também alegava que o aluno já tinha muito problema em casa e
que isso justificava as atitudes dele e o nervosismo. Normalmente era só
a suspensão mesmo. [....] Várias vezes eu fui ao Conselho Tutelar para
conversarem comigo, mas não conversavam com quem me agrediu. [...]
Eu ia porque lá tem a conselheira para conversar, era tipo um acom-
panhamento. Minha mãe me levava no Conselho para conversar com
ela sabe, mas minha mãe que tomava essa atitude porque ela via que
eu me sentia mal. Faltava um pouco dessa atitude dos pais dessas pes-
soas, de olhar mais para os filhos e os problemas deles. Então, assim, eu
que apanhava e tinha que ir ao Conselho Tutelar. (ibidem)
36 “Afeto (lat.Affectus; in. Affection, fr. Affection; ai. Affektion-, it. Affettó). Enten-
dem-se com esse termo, no uso comum, as emoções positivas que se referem a
pessoas e que não têm o caráter dominante e totalitário da paixão (v.). Enquanto as
emoções podem referir-se tanto a pessoas quanto a coisas, fatos ou situações, os A.
Preparando as fontes II
Sutilezas_da_naturalizacao__(MIOLO14x21)_Graf-v1.indd 235
Escola pública e
larização da Escola pública Escola pública Escola pública Escola privada Escola privada Escola pública
privada
entrevistada
Formação aca-
Pedagogia Pedagogia Pedagogia Letras Pedagogia Pedagogia Pedagogia
dêmica
Tempo de
6 anos 1 ano 12 anos 8 anos 7 anos 4 anos 5 anos
serviço
Disciplina que Língua Portu-
Polivalente Polivalente Polivalente Polivalente Polivalente Polivalente
ministra guesa e Leitura
Todos os anos 2º ano do E.F
Série em que Educação Educação
3º ano EF I 3º ano EF I do E.F I e I e Educação 3º ano do E.F I
atua Infantil Infantil
E.F II Infantil
Cidade em Boa Esperança Américo Brasi-
Ribeirão Bonito São Paulo São Paulo Araraquara São Paulo
que atua do Sul liense
Fonte: elaboração própria, 2016.
SUTILEZAS DA NATURALIZAÇÃO/RECONHECIMENTO DA VIOLÊNCIA 235
04/06/2018 14:21:23
236 MARILDA DA SILVA • ADRIELE GONÇALVES DA SILVA
Eu penso em algo que atinge, é tudo aquilo que pra mim violenta
e atinge de fato a nossa dignidade, porque todos nós temos direito a
um lugar em que nós nos sintamos acolhidos e bem. Então a partir
do momento em que isso nos é tirado ou que me tiram o que é mais
precioso pra mim, por exemplo, para uma criança ou adolescente que é
ser acolhido em suas necessidades físicas e materiais, ali já existe uma
violência, penso eu. Eu penso que a violência é um ataque à dignida-
de a partir do momento que é tirada a minha liberdade e que minha
dignidade está sendo atacada eu estou sendo violentada. E isso não
acontece só fisicamente. Eu penso assim. [...] Eu acredito que infe-
lizmente esse é um mal muito presente e também muito abafado, muitas
vezes é. E a gente sabe muito pouco sobre esse tema e também sobre as
situações de violência que acontecem mesmo [...]. Geralmente os casos
que temos conhecimento aparecem na mídia, por exemplo, são casos
de pessoas ricas e são casos que chocam por conta da gravidade da
violência. Mas nós sabemos que em lugares mais pobres, afasta-
dos, acontecem coisas muitas vezes piores e ninguém fica sabendo.
[…] eu penso que infelizmente é algo que acontece com muita frequência
e a maior parte dessa violência acontece com a própria família, são os
próprios familiares que acometem tanto as crianças quanto os adoles-
centes nessa violência. E eu vejo também que há a necessidade da
criação de uma rede de proteção para essas crianças e adolescentes
para que nos âmbitos escolares também se consiga perceber quando
há algo diferente com essa criança ou com esse adolescente para ten-
tar fazer alguma intervenção. (Marta, 2016)
algo que ela não quer fazer. [...] Eu acho um absurdo, mas não seria só
isso [pausa]. Ah, não sei! Bom… [pausa]. (Nara, 2016)
3 Esse entendimento sobre violência que tais sujeitos mostram ter vai ao encon-
tro do entendimento sobre violência que Marilena Chauí (2000) registra no
livro Brasil.
4 O que se iniciou com a revisão bibliográfica.
vestibular e tal. Mas com a turma da tarde não acontece isso porque
parece que eles sempre são deixados de lado. (Laura, 2016).
Eu penso que pra mim como profissional eu tenho que estar sempre re-
fletindo mesmo sobre as minhas atitudes, porque eu sei que até mesmo pelo
meu temperamento que é muito explosivo, sei lá, pode acontecer alguma
coisa. Eu preciso refletir sempre! A agressão contra a criança não deve
acontecer nunca na escola. Então eu procuro pensar constantemente na
minha prática, na minha forma de ensinar e na minha forma de lidar
com as crianças para saber se eu não estou agredindo-as na dignidade
delas e até mesmo nas dificuldades de aprendizagem delas. A partir do
momento que não aceito o tempo de cada aluno na aprendizagem, se
deixo um aluno de lado ou não tenho a paciência necessária pra poder
ajudar enquanto professora, penso que isso já é agir com violência
porque eu não estaria sendo coerente com a minha prática. Então eu
penso que como professora eu tenho que me vigiar constantemente, nas
minhas atitudes e nas minhas omissões em relação às crianças. [...] Tal-
vez essa não reflexão dos meus atos pode sim chegar a uma violência
até mesmo física. Então se tem uma criança que eu não estou sabendo li-
dar com ela, com o jeito dela que, muitas vezes, pode ser agressivo porque
cada criança é de um jeito, eu posso acabar cometendo uma violência. Se
a gente não souber lidar com isso fica complicado. E é aquilo: se uma
violência culmina na física é porque ela já vem de antes, de muitas si-
tuações mal resolvidas em que você não se observou e acabou agindo
pelo impulso do momento. Então essas coisas podem culminar na
violência mesmo, mas se eu estiver me observando e refletindo isso
não acontece. Eu me preocupo com isso e acho importante que todos
os professores se preocupem com isso. Quando estou indo para minha
sala de aula eu já me preocupo com aquelas crianças que eu sei possuem
uma capacidade maior de me tirar do sério ou do meu foco ali dentro da
sala de aula. Se eu não souber lidar com essas crianças que podem me
tirar do sério isso pode sim culminar em uma violência, até mesmo física,
porque às vezes você pode pegar a criança com mais violência ou algo
assim. Eu já agredi verbalmente, então eu sei que isso é possível, por isso
eu tenho sim que me preocupar e vigiar as minhas atitudes. (Paula, 2016)
a mãe dele apareceu na escola pra contar pra gente o que estava acon-
tecendo com o menino e pediu ajuda porque ela estava desesperada.
Ela contou que o menino – de onze ou doze anos – estava dormindo
fora de casa, saindo de casa a hora que queria, que ele ia pra escola e
não voltava pra casa. Essa mãe, claramente, não tem o menor contro-
le sobre o menino, e ela ainda disse que ele está roubando as coisas de
casa. [...] ele também fez um amiguinho que mora na mesma rua e
com a mesma idade e começou a passar muito tempo na rua com esse
menino. Ele chegava a não querer voltar para casa e acabava dormin-
do na rua, voltava para casa só seis horas da manhã para pegar o
material e ir para escola. Ela disse que um dia ele chegou em casa
inteiramente molhado porque foi um dia de chuva e a família desse
amiguinho não queria os dois andando juntos. Nesse dia ele dormiu
na calçada da casa do menino na chuva em cima de um papelão. Ou
seja, ele ficou molhado a noite inteira e voltou para casa só de manhã.
Depois dessas informações você começa a perceber umas coisas du-
rante a conversa com a mãe, por exemplo, a forma como ela fala. Não
é preconceito, mas a forma como ela fala, como ela se veste, e aí você
perguntando se ele tem pai e tal. Você faz várias perguntas assim e a
pessoa acaba falando e você percebe um pouco da vida dela, da situa-
ção de risco que ela mesma vive. Por exemplo, essa mãe estava com
um bebê de colo bem novinho. Nós até chegamos a pensar que a
mudança dele foi devido ao nascimento do irmão, mas pela fala da
mãe nós percebemos que a coisa era bem mais séria porque ele estava
roubando as coisas de casa. A mãe falou que é separada do pai do
menino, que o pai esteve preso, que o pai é bandido, os tios são ban-
didos e que, muitas vezes, ele foge para ficar na casa da avó com os
tios e é uma casa que fica quase dentro da represa. Enquanto a mãe
falava, eu ia analisando alguns acontecimentos relacionados a esse
aluno e me lembrei de um dia, em particular, que encontrei o garoto
com a mãe na rua e parei para cumprimentar [...] nesse momento eu
estava trocando os óculos de grau pelos óculos de sol e pedi para o
menino segurar os óculos de grau pra mim enquanto colocava o outro.
Nessa de cumprimentar a mãe e brincar com o bebê que estava com ela,
eu saí e me esqueci de pegar com ele os meus óculos que pedi para ele
gostou daquilo. Ele até tentou irritar o tempo todo, querendo cha-
mar atenção pra ele, mas ele gostou daquilo e entrou na onda, come-
çou até me chamar pelo nome da personagem. No dia seguinte ele
aprontou e cortou a mão toda de tanto esmurrar um vidro. Nesse dia
que ele cortou a mão ele me gritou pelo nome da personagem num
momento em que eu estava passando próximo a ele, e aí eu fui até
ele para tentar acalmá-lo porque ninguém conseguia acalmar o
menino. Nem as pessoas do abrigo que são os psicólogos, a mãe
social e o assistente social, que eram chamados o tempo todo na
escola, não conseguiam dar conta do menino. O abrigo estava até
tentando transferir o menino para outro abrigo ou ia dar ele para
outra pessoa da família, porque não conseguiam dar conta dele.
Eles estavam brigando na justiça porque não tinham condições de
ficar com o menino no abrigo. Aí nesse dia que ele machucou, ele
grudou em mim e quis ir pra minha sala. No meio daquele tumulto
eu acabei levando ele pra minha sala, e lá ele me contou que odiava
o padre e a freira que cuidam do abrigo e que eles eram os culpados
por ele ter saído da casa da avó. A questão é que ele morava com a
avó e ele achava que foram as pessoas do abrigo que tiraram ele do
convívio da avó, e ele queria voltar a morar com a avó de qualquer
jeito. Aí eu me lembro de ter conversado com a assistente social e
ela me contou que os pais dele eram drogados e ele estava sob a tu-
tela da avó, mas a avó precisava trabalhar e ele ficava com uma vizi-
nha. Acontece que de tanto ele aprontar, a vizinha abusava dele,
introduzia pau no ânus dele, fazia comer fezes, e por esses motivos
os outros vizinhos denunciaram e a avó acabou perdendo a guarda
da criança. Mas pra ele, por pior que fosse, ele estava com alguém
que ele tinha vínculo, a avó, e ele queria voltar para a casa da avó e
ele falou claramente pra mim que ele ia aprontar tudo que ele pu-
desse até a freira e o padre mandarem ele de volta para a casa da avó.
Então, assim, é muito difícil de lidar com essas situações e a Educa-
ção não está preparada para isso, nós deveríamos ter dentro da escola
psicólogos para atender tanto os alunos quanto os professores e alguma
estrutura que conseguisse dar conta desses casos. É muito difícil quando
você tem uma sala com trinta ou quarenta alunos para dar conta, mais
Por exemplo, quando você está dando aula e quer que a criança
escreva o nome dela, mas não escreve porque ela ainda não consegue
juntar as letras e você começa a gritar com esse aluno, a pegar na mão
e ficar forçando. Então pra mim isso é um ato de violência. [...] Na
Educação Infantil eu acho que a criança depende muito de você e
você é o exemplo dela, o espelho dela, e a grande maioria das crian-
ças ficam mais na escola do que em casa com os pais. Então, quando
você comete qualquer tipo de ato violento contra essa criança, você está
indo contra esse ser que confia plenamente em você, porque pra mim
que falaria com a diretora sobre o que aconteceu, porque aquela si-
tuação não tinha sido a primeira, ou seja, já tinha acontecido outras
vezes. [...] Eu cheguei, conversei com ela e aí ela falou assim: “ai,
você viu? Ele me tira do sério”. Você sabe, crianças dessa idade ainda
não conseguem se defender em relação a um adulto, mas quando
a criança chega em casa ela vai contar pra mãe o que aconteceu na
escola. Agora, assim, isso que eu vou dizer não justifica, mas a pro-
fessora querendo ou não está cansada, estressada, a criança passa o
dia inteiro na escola, são turmas com dezesseis ou mais alunos só
com uma professora. Eu sei que isso não justifica, mas as condições
de trabalho acabam contribuindo para que ela tenha essa atitude, assim
como a professora do estágio. Olha que a da creche da época do estágio
trabalha em meio período e a outra o dia inteiro. Mas é isso, eu acho
que as condições de trabalho, a estrutura da escola, o estresse, o fato
de você ter muitas crianças dentro da sala de aula contribui para essas
coisas acontecerem. (Nara, 2016)
Eu acho que na maioria dos casos acontece como uma forma de pu-
nição, correção, e os pais acabam exagerando nessa forma de correção
dentro de casa. Mas agora eu fiquei em dúvida nessa forma de correção
das crianças porque, assim, não seria isso uma questão social ou
cultural porque eu percebo que as crianças estão acostumadas a esse
vocabulário de xingamentos, e eu acho que tem muita droga envol-
vida nisso. Eu acho que isso influencia na violência dentro de casa,
por exemplo, os pais que são alcoólatras e acabam batendo na mãe.
Então eu acho que é por causa do uso de entorpecentes, abuso do
álcool e na forma de correção mesmo. (Isabel, 2016)
de que não haverá tempo para dias melhores e que o fim do mundo
está prestes a chegar.
No que se refere à potencialidade de uma pesquisa sobre este
tema realizada por meio de entrevistas, apontamos a fertilidade dos
sinais do corpo ou o “saber do corpo” – informações imprescindíveis
aos dados textuais propriamente ditos. Sem levar em conta esses
sinais – e aqui buscamos fundamento em Foucault (1987) –, os
depoimentos ficarão incompletos. Seguramente, o saber do corpo é
um texto indispensável em casos assim. Igualmente, a triangulação
de dados empíricos advindos de sujeitos e objetivos diferentes é fun-
damental e indispensável ao alargamento da reflexão e abre portas
interpretativas que não seriam alcançadas sem esse procedimento.
Nesta pesquisa, o salto decorrente desse procedimento foi evidenciar,
por exemplo, que a violência em espaço escolar (violência na escola,
violência à escola e violência da escola) tem menor significado para
a vítima do que quando essa violência ocorre no âmbito da família,
e que isso acarreta mais dificuldades para a erradicação da violência
doméstica do que para a erradicação da violência em espaço escolar.
O obstáculo fundamental da erradicação da violência doméstica
está, sobretudo, na força do elemento que constitui a dificuldade
a que estamos nos referindo: o contrato consanguíneo, ou seja, a
relação consanguínea da família nuclear, sobretudo quando se trata
de progenitores biológicos. Todavia, também houve a mesma reação
quando se tratou de uma madrasta que cometia diversas e diferentes
ações violentas contra a enteada, o que coloca tintas na complexidade
da naturalização/reconhecimento da violência no âmbito da família.
A propósito da explicação advinda da metáfora da força do sangue –
inspirada em Miguel de Cervantes Saavedra (1970), que mostra em
seu conto homônimo o mecanismo desse contrato –, consideramo-la
mais uma chave fértil para compreender a trama afetiva que envolve
a violência da família quando se trata de violência de pais contra fi-
lhos. Esse contrato subliminarmente protege as famílias, paradoxal-
mente, na própria constituição da violência operada nesse contexto.
Nossos sujeitos – quando se tratou de experiência de violên-
cia vivida na família –em momento algum colocaram membros
EQUIPE DE REALIZAÇÃO
Coordenação Editorial
Marcos Keith Takahashi
Edição de texto
Gabriela Garcia
Editoração eletrônica
Sergio Gzeschnik