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MATERIAL DIDÁCTICO – FOLHA DE ROSTO

| DESIGNAÇÃO(S): Cultura Global ou Globalização das Culturas?

Globalização
Para iniciar o debate, podemos definir a globalização como um processo dinâmico de crescente integração mundial
dos mercados de trabalho, bens, serviços, tecnologia e capitais. Não é um processo novo, tendo vindo a se desenvolver
de forma cada vez mais acelerada, pelo menos desde 1950, e não tendo prazo para acabar. No processo de
globalização há duas variáveis determinantes: uma financeira e outra produtiva.
A revolução nos métodos de produção resultou numa mudança significava nas vantagens comparativas das
nações. Afinal de contas, as facilidades na comunicação e nos transportes permitem que as empresas instalem as suas
fábricas em qualquer lugar do mundo onde existam as melhores oportunidades fiscais e mão-de-obra e matérias-primas
baratas.
Com a globalização, as fases de produção de uma determinada mercadoria podem ser realizadas em qualquer
lugar do mundo e não obrigatoriamente num mesmo país, pois procura-se aquele que oferece maiores vantagens
económicas. O resultado deste processo é que, actualmente, grande parte dos produtos não tem uma nacionalidade
definida. Um automóvel de marca norte-americana pode conter peças fabricadas no Japão, ter sido projectado na
Alemanha, montado no Brasil e vendido no Canadá. Este cenário tem levado a uma acirrada competição entre países
por investimentos externos e a tendência é a da transferência de empregos dos países ricos - que possuem altos
salários e inúmeros benefícios - para as nações industriais emergentes, como os países asiáticos e da Europa do Leste.

A Opel da Azambuja é o caso mais recente de uma multinacional a deixar o território português, mas não é o
único. Só nos últimos três anos, mais de 20 multinacionais fecharam fábricas em Portugal. As empresas trocam
Portugal pelos países de leste em busca de mão-de-obra mais barata e custos de produção mais baixos. O fecho das
multinacionais nos últimos três anos já provocou cerca de 8 mil e duzentos desempregados.

A facilidade com que os fluxos financeiros são movimentados através das fronteiras nacionais comporta
oportunidades e riscos. Tanto pode ser uma forma eficiente de canalizar recursos internacionais para nações que
precisam de investimento, como a possibilidade de usar capitais de curto prazo para ataques especulativos, ameaçando
a estabilidade económica dos países.
A conjugação das globalizações financeira e produtiva resultou, ao longo dos anos 90 do século passado, numa
expansão geral da economia, provocando um crescimento acelerado na movimentação de bens, serviços e capitais
através das fronteiras internacionais. O valor do comércio mundial de bens aumentou quase 50%, saltando de US$ 4,22
triliões para US$ 6,25 triliões As exportações de serviços - comerciais, bancários, de consultoria e turismo - avançaram
ainda mais rapidamente. Investimentos estrangeiros directos (IED) também cresceram de forma contínua, atingindo um
máximo de US$ 1,4 trilião em 2000.

António Polito. Que se entende então por globalização? Geralmente, responde-se assinalando dois fenómenos: a
redução ou a total eliminação das barreiras comerciais entre os Estados e a liberalização do mercado de capital, que
permite aos trabalhadores ir para onde haja uma remuneração mais alta. No entanto, o mundo já conheceu estes
fenómenos: o capitalismo antes da Grande Guerra - se não me engano - já tinha estas duas características. O que há
de realmente novo?

Eric J. Hobsbawm: Antes de mais, penso que não se pode identificar a globalização só com a criação de uma
economia global, ainda que esta seja o seu centro e o seu aspecto mais evidente. Temos de olhar além da economia
A globalização baseia-se em primeiro lugar na eliminação de aspectos técnicos, mais do que económicos, que
constituem o seu pressuposto: a distância e o tempo. Por exemplo, seria impossível considerar o mundo uma unidade
até haver a possibilidade de o circum-navegar. Igualmente, penso que foram os progressos técnicos revolucionários,

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nos transportes e nas comunicações, realizados desde o fim da Segunda Guerra Mundial, a consentir que a economia
atingisse os níveis actuais de globalização.
O ponto de partida foi a enorme aceleração e difusão dos sistemas de transporte dos produtos. No passado, a
produção era de facto limitada às áreas em que se operava. E também o comércio era, sob certos aspectos,
condicionado pela incapacidade de transportar bens perecíveis através de grandes distâncias, conservando-os no seu
estado natural. Podia-se comercializar cereais, mas não flores frescas. A mudança teve lugar com o aparecimento dos
aviões de carga. O exemplo mais simples, hoje à vista de todos, é a abolição dos produtos agrícolas sazonais.
Podemos importar fruta tropical, cerejas ou morangos, independentemente das estações. O transporte aéreo tem a
velocidade necessária para os trazer ainda frescos para as nossas mesas.
Eric J. Hobsbawm e Antônio Polito, 0 século XXI: reflexões sobre o futuro, pp. 58-59

A expressão globalização emergiu nos anos 80 do século XX, nas universidades norte-americanas, sendo,
posteriormente, propagada pelo mundo através da imprensa financeira de língua inglesa. O termo globalização é
normalmente utilizado para referir um conjunto de fenómenos que, sobretudo no final do século passado, representou
uma redefinição internacional em diferentes áreas como a economia, a tecnologia, a cultura, as finanças e as
comunicações, entre outras.

Globalização é um termo utilizado há vários anos pelos economistas da moda para descrever um processo
apresentado como recente, mas, de facto, existente desde o início do século e que foi descrito por Lenine em
"Imperialismo, estágio superior do capitalismo" crescimento e primazia das exportações de capital, desenvolvimento
da divisão internacional do trabalho, dos trustes multinacionais, inter-relação das economias dos diferentes países, etc.
Este nome surge pelo facto de que este processo tomou uma amplitude particular desde os anos 80, em que a
desregulamentação generalizada acelera as condições da concorrência no plano mundial e o desenvolvimento dos
meios de transporte e telecomunicações suprimiram um a um os obstáculos à deslocalização de centros de produção.
Ao mesmo tempo, as crises financeiras, que no passado levavam meses ou anos para se propagar, agora tocam
todas as praças financeiras em alguns instantes."

Pierre Size, Dicionário da Globalização, pp. 55-56

Ao tentar elaborar uma definição mais precisa da globalização enquanto conjunto de processos sociais, Manfred B.
Steger, no seu livro A Globalização, enumera quatro características:

CARACTERÍSTICAS EXEMPLOS
Criação de novas redes e actividades sociais e multiplicação das já Internet, comunicação por satélite
existentes, com o poder de ultrapassar barreiras de ordem económica,
geográfica, política e cultural.
Expansão e alargamento das relações sociais, actividades e Comércio electrónico, bolsas de valores, centros
interdependências. comerciais, crises económicas mundiais.
Intensificação e aceleração dos intercâmbios e actividades sociais. Chats e blogues envolvendo pessoas de diferentes
países.
Desenvolvimento, no plano subjectivo, da consciência humana. Manifestações a favor e contra a globalização

No plano económico, a globalização refere-se à reorganização das estruturas produtivas, à desregulamentação


dos mercados financeiros e ao aumento dos fluxos comerciais internacionais, num contexto de aceleração do
desenvolvimento tecnológico e com efeitos que abrangem as relações produtivas, financeiras e comerciais.
Uma das principais características da globalização é a expansão mundial das grandes corporações internacionais,
que exercem um papel decisivo na economia mundial. Em 1994, as maiores empresas do mundo - Mitsubishi, Mitsui,
Sumitomo, General Motors, Marubeni, Ford, Exxon, Nissho e Shell - obtiveram uma facturação de 1,4 trilião de dólares,
um valor que equivale à soma dos PIB da Argentina, do Brasil, do Chile, da Colômbia, do México, da Nova Zelândia, do
Peru, do Uruguai e da Venezuela.
A comparação entre os conceitos de empresa "multinacional" e "transnacional" permite compreender melhor a
transição para uma era inteiramente globalizada:
Uma empresa multinacional opera num número determinado de países e ajusta as suas actividades e produtos a
cada um deles. Apesar do seu carácter diversificado e extraterritorial, ainda mantém laços estreitos com o terreno
nacional onde está instalada. Para a estratégia empresarial,' cada país, ou conjunto de países, é considerado uma
unidade específica. O mercado, ainda que global, está dividido em subconjuntos autónomos, cada um deles a exigir
uma abordagem particular.
Uma corporação transnacional opera em todo o planeta como se ele fosse uma única nação: vende as mesmas
coisas e da mesma maneira em todos os lugares. Ao encarar o mundo como um mercado único, a transnacional
considera as especificidades de cada país como secundárias, tendo apenas em conta algumas modificações
adaptativas regionais. O seu desempenho é ditado pela competição mundial, e não regional. Em função deste
mercado internacional, as empresas concorrentes - quer fabriquem automóveis, aviões, artigos farmacêuticos ou
computadores - produzem e vendem em todas as principais regiões económicas do globo produtos o mais uniformes
possível.

Vejamos o exemplo da empresa ABB (Ase Brown Boveri), ligada à fabricação de equipamentos de geração e
transmissão de energia eléctrica. Em entrevista a uma revista americana, o seu presidente afirmou:

A ABB é uma companhia sem centro geográfico, sem eixo nacional para se
apoiar. Nós somos uma federação de companhias nacionais com um centro de
coordenação global. Somos nós uma empresa suíça? O nosso quartel-general é em
Zurique, mas aí apenas trabalham cem profissionais, e não temos a intenção de
aumentar esse número. Somos uma companhia sueca? Eu sou o director-geral,
nasci e fui criado na Suécia. Mas o nosso quartel-general não é na Suécia, e apenas
dois, dos oito membros do conselho de direcção, são suecos. Talvez sejamos uma
companhia americana? Os nossos relatórios de finança são feitos em dólar e o
inglês é a língua oficial da ABB. Fazemos todos os nossos encontros em inglês. Na minha opinião a ABB não é
nenhuma dessas coisas, e todas essas coisas. Nós não estamos sem tecto, somos uma companhia com vários lares.

Renato Ortiz, Mundialização e cultura

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GLOBALIZAÇÃO E CULTURA

Se ao pensarmos no fenómeno da globalização a primeira ideia que nos vem à cabeça são as trocas económicas
entre países, existem, no entanto, outros aspectos desta mesma globalização que podem ser estudados. Um deles é a
cultura, pois, em toda a história da humanidade, sempre que houve troca de mercadorias, houve igualmente um
intercâmbio entre culturas.

A globalização cultural refere-se à Intensificação e à expansão de fluxos culturais pelo globo. “Cultura” é,
obviamente, um conceito muito vasto; utiliza-se frequentemente para descrever a totalidade da experiência humana. A
fim de evitar a consequente problemática da generalização excessiva, é importante fazer distinções analíticas entre
aspectos da vida social, Por exemplo, associamos o adjectivo "económico" à produção, troca e consumo de bens. Se
discutirmos o aspecto "político" referimo-nos às práticas que estão relacionadas com a geração e a distribuição do
poder nas sociedades. Se falamos da vertente "cultural" preocupamo-nos com a construção simbólica, a articulação e
a disseminação do significado. Assim sendo, a linguagem, a música e as imagens constituem as principais formas de
expressão simbólica, pois assumem um significado particular na esfera da cultura.

Manfred B. Stegner, A Globalização, p. 74

Cultura (do verbo latino colere, cultivar) pode ser definida como o conjunto de modelos de comportamento e de
relacionamento presentes numa sociedade. Por outras palavras, uma espécie de código partilhado e aceite, ainda que
não necessariamente na sua totalidade, pelos indivíduos, o que permite a convivência em comum. Ao associarem-se
entre si, os homens procuram estabelecer critérios de convivência, códigos e símbolos comuns, o que nos permite falar
em civilização, entendida como uma sociedade com uma cultura específica. Pertencer a uma cultura, identificar-se como
português, por exemplo, significa reconhecer a nossa identidade frente ao outro e, ao mesmo tempo, partilhar com os
demais portugueses um grau de igualdade em diferentes aspectos: língua, arquitectura, sentimentos, ...
Este processo de formação de uma cultura é forçosamente lento, construído e consolidado ao longo das gerações.
Existem no mundo diferentes sociedades humanas, cada uma com uma cultura distinta, com uma história tão antiga
quanto o próprio processo de formação dessas mesmas sociedades.
O que a globalização traz de novo é a intensificação dos contactos entre as diferentes culturas a um ritmo nunca
antes visto. Este fenómeno, por um lado, parece ser bastante positivo, já que permite a possibilidade de ter acesso a
conteúdos culturais tão diferentes como a música de uma banda de rock espanhola ou um filme japonês. Mas como se
desenrola este contacto? Existirão culturas dominantes e outras destinadas a desaparecer? Estamos a caminhar para
um futuro onde existirá uma única cultura homogénea, com apenas pequenas variantes? Como será a nossa identidade,
poderemos continuar a falar em cultura portuguesa face a tanta uniformidade? Na verdade, não existem respostas
definitivas para este tipo de questões, mas nada nos impede de debatê-las e tentar perceber algumas tendências para o
futuro e como nos posicionaremos perante elas.

O artigo 4º da Convenção sobre a Protecção e a Promoção da Diversidade das Expressões Culturais, aprovada
pelos países-membros da UNESCO, apresenta algumas definições úteis:

1. Diversidade cultural
Multiplicidade de formas nas quais as culturas dos grupos e das sociedades encontram a respectiva expressão.
Essas formas de expressão transmitem-se no interior dos grupos e das sociedades e entre os mesmos. A diversidade
cultural manifesta-se não só nas diferentes formas em que o património cultural da humanidade se expressa, se
enriquece e se transmite graças à variedade das expressões culturais, mas também através de diversos modos de
criação artística, de produção, de divulgação, de distribuição e de fruição das expressões culturais, independentemente
dos meios e das tecnologias empregues.
2. Conteúdo cultural
Remete para o sentido simbólico, para a dimensão artística e para os valores culturais que emanam das
identidades culturais ou as expressam.
3. Expressões culturais
Remete para as expressões que decorrem da criatividade dos indivíduos, dos grupos e das sociedades e que
possuem um conteúdo cultural.
4. Actividades, bens e serviços culturais
Actividades, bens e serviços que, considerados do ponto de vista da sua qualidade, da sua utilização ou da sua
finalidade específicas, encarnam ou transmitem expressões culturais, independentemente do valor comercial que
possam ter. As actividades culturais podem constituir um fim em si mesmas, ou contribuir para a produção de bens e
serviços culturais.

5. Indústrias culturais
Indústrias que produzem e distribuem bens ou serviços culturais de acordo com a definição que destes é dada no
n.º 4 anterior.
6. Políticas e medidas culturais
Políticas e medidas relativas à cultura, a nível local, nacional, regional ou internacional, que se centrem na cultura
enquanto tal ou se destinem a exercer um efeito directo nas expressões culturais dos indivíduos, dos grupos ou das
sociedades, incluindo na criação, na produção, na divulgação e na distribuição de actividades, bens e serviços culturais,
bem como no acesso aos mesmos.
7. Protecção
Adopção de medidas destinadas a preservar, salvaguardar e valorizar a diversidade das expressões culturais.
«Proteger» significa adoptar tais medidas.
8. Interculturalidade
Existência e interacção equitativa de diversas culturas, assim como a possibilidade de gerar expressões culturais
partilhadas pelo diálogo e pelo respeito mútuo.
GLOBAL OU GLOBALIZAÇÃO
É fácil constatar que as sociedades se parecem cada vez mais umas com as outras, seja na alimentação, seja na
forma como os indivíduos se vestem e divertem ou os programas que vêem na televisão, com uma preponderância nítida
da cultura americana. Discoteca, calças de ganga, hambúrguer ou Guerra nas Estrelas são apenas alguns exemplos de
fenómenos internacionais que fazem parte do quotidiano da maioria dos países. E o que não pode ser consumido de
uma forma real, pode sê-lo em termos virtuais. Um determinado bem pode não existir num país ou ser tão caro que
muitos não tenham acesso a ele, mas todos irão conhecê-lo através da televisão ou da Internet.
Para alguns estudiosos, é possível falar de um novo tipo de cultura, a cultura global, resultado da expansão de uma
dada cultura por todo o planeta, auxiliada pelo grande desenvolvimento dos meios de comunicação e transportes. Ou
seja, todas as sociedades humanas tenderiam, em maior ou menor grau, a ficar sob a influência de um mesmo sistema
de crenças, valores, hábitos, comportamentos e representações, que passariam a ser internacionais, não reconhecendo
países ou diferenças civilizacionais. Esta cultura global seria principalmente de origem norte-americana, já que não se
pode ignorar que os Estados Unidos dominam a indústria cultural.
Para outros autores, não é possível falar ainda numa cultura global, mas antes num conjunto variado de culturas
locais, que conseguem uma maior projecção internacional devido à globalização e promovem, assim, uma diversidade
cultural nunca antes vista na história da humanidade. Essa sobreposição é um processo em permanente evolução, onde
formas culturais locais ou nacionais estão em constante contacto, gerando por vezes novas culturas.
Segundo Boaventura Sousa Santos, o mundo teria espaço para abrigar o que ele chama culturas globais parciais,
não existindo, portanto, uma única cultura global. Em alguns casos, como no dos países que surgiram nos últimos anos,
como aconteceu na União Soviética, na Checoslováquia, na Jugoslávia, etc., há mesmo um renascer das culturas
nacionais, algumas há muito subjugadas por um processo de homogeneização imposto por razões de ordem política e
económica.
No próprio interior da União Europeia as formas culturais regionais são valorizadas. A Espanha, um exemplo
importante mas não único, permite, nas suas diferentes regiões, a valorização das línguas locais, inclusive no sistema de
ensino. O mesmo se aplica aos bretões na França, aos flamengos e valões na Bélgica ou aos lombardos na Itália. No
espaço europeu, a pluralidade cultural e a valorização das tradições e costumes locais não são vistos como uma ameaça
ou como sendo incompatíveis com a existência de uma estrutura internacional, como o é a União Europeia.
Se não é possível negar a internacionalização das diferentes formas de cultura, ainda é arriscado prever um futuro
onde o imperialismo cultural simplesmente destruirá as culturas locais e implantará no seu lugar uma uniformização
planetária. Arriscado, mas não impossível. Se o mundo será o território de um único grande império multicultural, só o
tempo dirá.

Por uma globalização plural

A nave espacial Terra é movida por quatro motores associados e. ao mesmo tempo, descontrolados: ciência,
técnica, indústria e capitalismo. A globalização pode ser vista como a última fase de uma planetarização tecno-
económica.
Ao mesmo tempo, ela pode ser vista como a emergência caótica e desigual de um embrião de sociedade-mundo.
Uma sociedade dispõe de um território, que comporta um sistema de comunicações. 0 planeta encontra-se, hoje,
dotado de uma textura de comunicações [aviões, telefone, fax, Internet] como nenhuma outra sociedade do passado
jamais teve.
Uma sociedade inclui uma economia. A economia actual é mundial, de facto, mas faltam-lhe as restrições de uma
sociedade organizada [leis, direito, controlos). E as instituições mundiais actuais, o FM) e outras, são incapazes de
efectuar as regulamentações necessárias.
A sociedade é inseparável da civilização. Existe uma civilização mundial, saída da civilização ocidental, que
desenvolve o jogo interactivo da ciência, da técnica, da indústria e do capitalismo e que comporta um certo número de
valores padronizados. Ao mesmo tempo que comporta múltiplas culturas no seu seio, uma sociedade também gera
uma cultura própria.
Acontece que existem múltiplas correntes transculturais que irrigam as culturas, ao mesmo tempo que as
superam e que formam algo que quase chega a ser uma cultura planetária. Mestiçagens, hibridizações,
personalidades biculturais [Rushde, Arjun Appadura) ou cosmopolitas enriquecem essa via transcultural de maneira
incessante.
No decorrer do século 20, os media produziram e difundiram um folclore mundial a partir de temas originais
saídos de culturas diferentes, às vezes dotadas de recursos próprios, às vezes sincretizadas.
É notável o facto de que as máquinas culturais formidáveis do cinema, da canção, do rock e da televisão,
animadas pelo lucro e organizadas numa divisão quase industrial do trabalho, sobretudo em Hollywood, tenham
conseguido produzir algo além de obras medíocres e conformistas. Existe e existiu criatividade em todas essas áreas.
Um folclore planetário constituiu-se e enriquece-se com as integrações e os encontros. No que diz respeito à
arte, à música, à literatura e ao pensamento, a globalização cultural não é homogeneizadora. Ela é feita de grandes
ondas transculturais que favorecem a expressão das originalidades nacionais no seu seio.
A mestiçagem recriou a diversidade, ao mesmo tempo favorecendo a intercomunicação. 0 jazz começou como
híbrido afro-americano, produto singular de Nova Orleans, que se expandiu pelos Estados Unidos, passando por
diversas mutações, sem que os novos estilos fizessem desaparecer os estilos anteriores. Assim, o jazz tornou-se uma
música negra e branca, ouvida, dançada e depois tocada também por brancos, e, sob todas as suas formas, espalhou-
se pelo mundo, tanto assim que o velho estilo de Nova Orleans, aparentemente abandonado no seu local de origem,
renasceu em Saint-Germain-des-Prés, retornou aos Estados Unidos e estabeleceu-se em Nova Orleans mais uma
vez.

Tente identificar elementos culturais internacionais que façam parte do seu quotidiano.
Ex. Literatura, Música, Cinema Alimentação, Desporto, Arquitectura, Vestuário, …

Esta presença da cultura no processo de globalização não seria possível sem a rápida evolução e popularização
das tecnologias da informação (telefones, computadores e televisão). Uma revolução tecnológica que pode ser
considerada um acontecimento tão importante como o foi a Revolução Industrial. Sem esta evolução, a globalização,
como hoje nós a conhecemos, não teria sido possível.

1960 - Um cabo de telefone intercontinental conseguia transmitir 138 conversas em simultâneo. Hoje - Os cabos de fibra
óptica transmitem 1,5 milhões de ligação ao mesmo tempo.
1930 - Uma ligação telefónica internacional de 3 minutos custava cerca de US$ 200. Hoje - A mesma ligação é feita por
US$ 2.

As ligações telefónicas cresceram mundialmente 62%, passando de 520 milhões, em 1990, para 844 milhões, em
1998, enquanto os assinantes de telemóveis, no mesmo período, aumentaram 2800%, saltando de 11 para 319 milhões.
0 número de utilizadores da Internet é de cerca de 50 milhões, com tendência para duplicar a cada ano, o que faz dela o
meio de comunicação que mais cresce no mundo. já os satélites de comunicação possibilitam que alguns canais de
televisão - como as redes de notícias CNN, 1313C e MTV sejam transmitidos instantaneamente para diversos países.
Podemos mesmo falar de uma economia global baseada na informação. Global na medida em que a produção, a
circulação e o consumo estão organizados numa escala mundial. Ou seja, com capacidade para funcionar com uma
unidade de tempo real à escala planetária, baseada na informação porque a produtividade e a competitividade
dependem fundamentalmente da capacidade das organizações para gerar, processar e aplicar de forma eficiente. a
informação. As novas tecnologias permitem, por exemplo, que os capitais circulem entre economias num espaço de
tempo muito curto. A estratégia seguida tanto pelas grandes como pelas pequenas empresas é vender onde podem, e
fazem-no em grande medida graças às novas tecnologias de informação e comunicação.

População mundial - 6420 milhões de habitante


Percentagem da população que utiliza a Internet - 15%
População portuguesa - 10 milhões de habitante
Percentagem da população que utiliza a Internet - 58,2%

Região População % de utilizadores da Internet


África 892 2,7
América do Norte 328 68,2
América Latina /Caraíbas 54 13,3
Ásia 3622 9
Europa 804 35,2
Oceânia / Austrália 33 52,8
Internet World Statistics
Jornal da Unicamp - Teóricos colocam a Internet como a tábua de salvação de manifestações culturais locais
e/ou regionais, sobretudo aquelas que se mantêm isoladas. O Senhor concorda com esta visão?
Renato Ortiz - Não há dúvida que os meios informáticos conectam grupos diferentes. Entretanto, é falsa a ideia
de que conexão seja sinónimo de integração. 0 mundo actual encontra-se conectado mas não necessariamente
integrado. A noção de integração remete-nos para um outro universo, cultural e social, e não meramente técnico,
como a de conexão. Posso escutar uma rádio da Croácia pela Internet, mas preciso de entender servo-croata para
saber o que está a acontecer.
JU - É consensual que a Internet democratizou as relações no mundo globalizado. 0 Senhor concorda?
RO - Acho que há um equívoco de base nessa discussão. O equívoco é vincular a técnica a questões de ordem
ideológica, isso e uma constante na história dos meios de comunicação. Por exemplo: a imprensa, em determinado
momento, foi vista como um veículo democrático, em contraposição ao universo elitizado dos livros. A invenção da
televisão, por causa da sua abrangência, foi percebida como um meio mais democrática do que a imprensa.
Novamente, os adventos do computador e da Internet são valorizados como instrumentos que incentivam a pluralidade
e a democracia. O problema é que cada um desses exemplos supõe uma equivalência entre meio técnico e valor
político. Mas a democracia é um conceito que, em hipótese alguma, poderia ser reduzido à dimensão técnica dos
fenómenos sociais. Nesse sentido, para mim, a Internet em si não é um avance nem um retrocesso democrático. A
questão seria: quais são as concepções políticas dos diferentes grupos que a utilizam e em que medida elas
contribuiriam ou não para o fortalecimento da democracia?
JU - Mas, por outro lado, é inegável que foi facilitado o acesso a determinados media. É possível, por exemplo,
ouvir uma música sem necessariamente ter de comprar um CD. Há sites que armazenam e disponibilizam músicas de
milhares de bandas.
RO - Certamente, mas não devemos confundir acesso com democracia. É perfeitamente possível vivermos numa
sociedade autoritária que nos dá acesso a um conjunto de bens materiais. O facto de termos uma escolha maior, na
sua pergunta, de músicas, é evidentemente bom. Não vejo porque indignar-me quando posso escolher entre roupas
de cores e modelos diferentes, ou estilos arquitectónicos diversos para reformar a minha casa. Mas isso nao significa
um incremento de democracia. Senão deveríamos pensar como esses manuais muito utilizados nas escolas de
administração de empresa nos quais a liberdade se transformou em sinónimo de livre escolha no mercado.

Renato Ortiz, Sociólogo, Unicamp - Universidade Estadual de, Campinas, São Paulo, Brasil

António Potito - Sempre houve uma tendência das elites de cada país para partilharem uma cultura «mundial»,
«global». Mas hoje estamos perante um fenómeno inédito: uma espécie de homologação cultural planetária, a difusão
global de uma cultura popular de massas. Mencionou o facto de que 90 por cento dos filmes vistos no mundo (com a
considerável excepção do Japão e da índia] são de produção norte-americana. Mas o mesmo acontece para o rock,
todos os jovens do mundo ouvem mais ou menos a mesma música. O futebol é outro fenómeno macroscópico; eu sou
apoiante de uma equipa de futebol italiana que tem por jogadores só um ou dois italianos. Fenómenos de vedetismo,
como o culto de Lady Diana, são capazes de falar simultaneamente aos corações do universo inteiro. Como se explica
tudo isto?
Hobsbawm - Em parte por razões técnicas e em parte por razões económicas. É evidente que invenções como a
fotografia o cinema, a rádio, a televisão, a reprodução mecânica do som, características deste século, tiveram uma
importância enorme, multiplicada por desenvolvimentos tecnológicos mais recentes que ainda continuam a produzir
efeitos, em particular através do processo de miniaturizacão, que permite transportar estes meios técnicos e torná-los
disponíveis em toda a parte.
Conta também a difusão da Internet, que põe simultaneamente à disposição uma ampla gama de meios. Temos,
no entanto, de ter consciência de que, no fim do século XX, quem tem acesso à Internet é uma ínfima minoria, é
verdade que em rápida expansão, mas de momento limitada aos Estados Unidos e à Europa. Ate porque um requisito
essencial para aceder à Internet é a alfabetização e, muitas vezes, o conhecimento do inglês.
Depois, há o lado económico. O crescimento de um mercado global tornou possível a rápida transferência das
comunicações e dos produtos de informação: o mesmo programa de televisão ou o mesmo filme podem ser
projectados ao mesmo tempo em todo o mundo, Isso transformou os acontecimentos ao vivo: por exemplo, o futebol é
hoje um verdadeiro entretenimento internacional, em que as equipas já não estão ligadas a um país em particular e
menos ainda a uma só cidade. Existe uma reserva global de jogadores que são contratados e deslocados pelo mundo
inteiro, como no passado acontecia só às divas da ópera e aos grandes directores de orquestra. Não há nada que
explique a globalização melhor do que os desenvolvimentos do futebol nos últimos dez anos.
Há, no entanto, uma diferença entre cultura erudita, tradicional, com origem no século passado, e a moderna
cultura de massas. Deixemos de lado o futebol que, pela sua natureza, é bastante padronizado – um jogo de futebol
entre o Japão e a Malásia desenrola-se exactamente da mesma maneira que um derby Juventus-Torino.
A verdade é que 2 cultura tradicional se difundia através de um modelo europeu que era depois globalmente
adoptado. O programa de um concerto em Osaka, ou em Chicago, ou em Joanesburgo irá sempre apresentar o
mesmo tipo de repertório: música culta europeia. Isto não é válido para a literatura, por causa de um limite muito forte
da globalização, que é a diferença de linguagem Também os clássicos do século XIX nunca foram globalizados do
modo em que a música ou as artes visuais foram. Ainda são poucas, fora de Itália, as pessoas que pensam realmente
em Dante como num dos seus grandes. A razão é simples: a maior parte das pessoas nunca o puderam ler. Só os
russos e as pessoas que falam russo pensam realmente que Pushkine é um dos maiores poetas que alguma vez
existiram.
Na cultura popular, pelo contrário, no final do século XX, estamos perante um grande sincretismo. O exemplo
mais óbvio é a música popular, caracterizada pela assimilação de diferentes elementos: cultura negra americana,
cultura branca do country west, latino-americana, recentemente até africana e indiana, Em poucas palavras, tudo. 0
que atravessa o mundo e uma combinação destas diferentes tradições musicais. A cultura popular global é constituída
por esta tendência para misturar diferentes elementos oriundos de diferentes partes do mundo. É uma força propulsiva
que a cultura erudita não tem.
Há depois um último problema na relação entre cultura erudita e popular A segunda é partilhada por todos,
também pelas pessoas que têm familiaridade com a cultura erudita, enquanto o contrário não é verdade. Alguém que
adore Mozart, com certeza ouviu, conhece e talvez goste de rock.
É por isso que os «ícones globais» provêm da cultura popular. Talvez não lhe pertençam num sentido estrito.
talvez nem sejam pessoas em carne e osso. Podem ser tudo. Andy Warlhol, um dos artistas deste século mais
sensíveis em apreciar o significado da cultura popular, quando inventou a famosa série de ícones globais, escolheu
Marilyn, Mao, Che Guevara, e uma lata de sopa da Campbell's.
A disponibilidade simultânea destas imagens em escala planetária tornou possível a sua iconologia. Até que
ponto são permanentes? O próprio Warhol pensava que a maior parte destes símbolos iriam ser temporários. Nós
podemos avaliar pelo extraordinário impacto global de figuras como Lady Diana. Suspeito que, daqui a cinquenta
anos, o que aconteceu em torno da sua morte será uma interessante nota de rodapé, mais do que um capítulo, na
História da cultura popular do século XX.

Eric J. Hobsbawm e Antônio Polito, 0 século XXI: reflexões sobre o futuro, pp. 104-106

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