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Cultura

Jornal Angolano de Artes e Letras


17 a 30 de Dezembro de 2019 | Nº 196 | Ano VIII • Director: José Luís Mendonça ..... Kz 50,00

Pág. ECO DE ANGOLA


3

José Kafala
a renúncia
impossível
O melhor brinde musical de José Kafala
é, sem sombra de dúvida, "O Kudizola Kwetu"
(o nosso amor). Pela intangibilidade
das vibrações vocais, a ultrapassar os limites
da estilização do som humano.
Uma voz que dispensa praticamente qualquer
fundo metálico ou electrónico. Uma voz que é,
ao mesmo tempo, mensagem, tonalidade
encantatória e a sua própria melodia orques-
tral em vários tons e alturas.

PANTEÃO Pág.
2 ARTES Pág.
8 DIÁLOGO INTECULTURAL
Pág.
11-12

Ana Clara
Jaime 30 anos
Guerra
de Sousa Araújo da queda
Marques
e a preocupação reflexão no do muro
com a Mulher domínio da de Berlim
e a Criança dança cokwe
2 | PANTEÃO 17 a 30 de Dezembro de 2019 | Cultura

Jaime de Sousa Araújo


e a preocupação com
Normas editoriais

a Mulher e a Criança
O jornal Cultura aceita para publicação artigos literário-científicos e re-
censões bibliográficas. Os manuscritos apresentados devem ser originais.
Todos os autores que apresentarem os seus artigos para publicação ao
jornal Cultura assumem o compromisso de não apresentar esses mesmos
artigos a outros órgãos. Após análise do Conselho Editorial, as contribui-
ções serão avaliadas e, em caso de não publicação, os pareceres serão

JOSÉ LUÍS MENDONÇA


comunicados aos autores.

J
Os conteúdos publicados, bem como a referência a figuras ou gráficos já
aime de Sousa Araújo, nacionalista emérito e homem de Cultura, morreu no dia 8 publicados, são da exclusiva responsabilidade dos seus autores.
de Dezembro, em Portugal, aos 99 anos. O mais velho Sousa Araújo passou gran-
Os textos devem ser formatados em fonte Times New Roman, corpo 12,
de parte dos últimos anos de vida a trabalhar no seu gabinete na Liga Nacional e margens não inferiores a 3 cm. Os quadros, gráficos e figuras devem,
Africana. Foi lá que o fui encontrar um dia qualquer, para uma entrevista que nunca ainda, ser enviados no formato em que foram elaborados e também num
me deu, porque a conversa com aquele humanista e nacionalista percorria as veias ficheiro separado.
capilares do quotidiano angolano e se desembocava, abruptamente, nas artérias da
grande política em vigor no país.
No meio das conversas, caíamos, quase invariavelmente, para o lado jocoso desta
Propriedade
vida, e ríamos às gargalhadas. Acredito que foi esse seu espírito descontraído e o riso
a ele acoplado que o levaram tão longe nos anos.
Sousa Araújo conservava uma mente lúcida, embora embaciada pelas muitas jor-
nadas calcorreadas e uma profunda decepção pelo rumo que a Liga tinha tomada
num tempo de país independente. Jaime Araújo nunca se conformou com a tomada do
prédio da Liga pela LAASP (Liga Angolana de Solidariedade entre os Povos). Nunca Sede: Rua Rainha Ginga, 12-26 | Caixa Postal 1312 - Luanda
Redacção 222 02 01 74 |Telefone geral (PBX): 222 333 344
aceitou que o prédio tivesse sido ocupado e retalhado até na sua periferia. Morreu Fax: 222 336 073 | Telegramas: Proangola
sem conseguir que a Liga recuperasse o seu património. E-mail: ednovembro.dg@nexus.ao
Jaime de Sousa Araújo reuniu-nos, há cerca de três anos, a mim, e a alguns membros
da Liga, para fabricarmos uma organização que se passaria a chamar "Fórum de Re- Conselho de Administração
flexão sobre a Violência Doméstica” (FOREV), uma associação cívico-cultural, e que Victor Silva (presidente)
tem como objecto central contribuir para a tomada de consciência do cidadão angola-
no e dos países lusófonos sobre as causas históricas e sociais desse flagelo, que é a vio- Administradores Executivos
lência doméstica, indo às raízes do problema, com vista à normalização das relações Caetano Pedro da Conceição Júnior,
pessoais e familiares no seio da sociedade lusófona, sem distinção de raça, nem para- José Alberto Domingos, Rui André
lelo politico partidário, no intuito de procurar mitigar o sofrimento que resulta da Marques Upalavela, Luena Kassonde
violência dentro do lar familiar. Ross Guinapo
O FOREV persegue os seguintes fins:
– Produzir estudos científicos sobre a violência doméstica que permanece nos la- Administradores Não Executivos
res de todo o planeta, qual estigma que a própria Humanidade esculpiu nas mentes e Filomeno Jorge Manaças
tem, como vítimas primordiais, a MULHER e a CRIANÇA. Mateus Francisco João dos Santos Júnior
– Criar, no seio do FOREV, fundos de emergência, pelouros de rendimento financei-

Cultura
ro, escolas de bons costumes e de meditação para a melhoria das condições socio-
económicas e psicológicas dos menores de idade e demais sócios.
- Criar uma linha telefónica de apoio, trabalhando em conexão com as entidades
competentes, denominada SOS Mulher, destinada a receber informações e denúncias

Jornal Angolano de Artes e Letras


de casos de violência contra a Mulher e a Criança.
– Proceder ao registo estatístico dos casos de tráfico de seres humanos e explora-
ção sexual, com realce particular para menores, para o que solicitará o apoio das enti-
Nº 196/Ano VIII/ 17 A 30 de Dezembro de 2019
dades competentes dos países lusófonos de que forem causa dos crimes.
E-mail: cultura.angolana@gmail.com
– Apelar a Entidades Oficiais, Organizações e Instituições nacionais ou inter- site: www.jornalcultura.sapo.ao
nacionais, auxílio económico e financeiro com vista a preencher os fins do Fó- Telefone e Fax: 222 01 82 84
rum de Reflexão. CONSELHO EDITORIAL
– Estabelecer a melhor colaboração e o apoio das entidades jurídicas e de seguran-
ça nacional para obter protecção da família vulnerabilizada pela desunião do casal. Director e Editor-chefe:
- Criar delegações em países lusófonos; José Luís Mendonça
- Fomentar a Cooperação e o intercâmbio entre Organizações similares do Espaço Editor:
lusófono a favor do bem-estar sociocultural dos casais e crianças. Gaspar Micolo
Como podemos constatar, Jaime de Sousa Araújo manteve, até aos últimos dias de
vida, aquele espírito nacionalista perdido nos tempos hodiernos: a preocupação com Departamento de Paginação:
a Família angolana e os seus pilares, a Mulher e a Criança, bem como a unidade regio- Irineu Caldeira (Chefe), Adilson Santos (Chefe adjunto),
nal dos povos colonizados, a razão da luta pela independência. Adilson R. Félix, Sócrates Simóns, Jorge de Sousa
e Waldemar Jorge
Edição online: Adão de Sousa

Colaboram neste número:

Angola: Antonio José Mateus, Domingos de Jesus, Fran-


cisco Neto, José Carlos de Almeida, Leonel Cosme, Mário Pe-
reira

Brasil: Itamar Cossi

França: Victoria Mann

FONTES DE INFORMAÇÃO GLOBAL:


Afreaka, Africultures, Portal e revista de referência, Agulha,
Correio da Unesco, Modo de USAR & CO, História.com,
Obvious Magazine e Engenharia é.
Cultura | 17 a 30 de Dezembro de 2019 ECO DE ANGOLA | 3

O José Kafala:
JOSÉ LUÍS MENDONÇA

a renúncia
melhor brinde musical de José

impossível
Kafala é, sem sombra de dúvi-
da, "O Kudizola Kwetu" (o nos-
so amor). Pela intangibilidade das vi-
brações vocais, a ultrapassar os limi-
tes da estilização do som humano.
Uma voz que dispensa praticamente
qualquer fundo metálico ou electróni-
co. Uma voz que é, ao mesmo tempo,
mensagem, tonalidade encantatória e
a sua própria melodia orquestral em
vários tons e alturas.
Com José Kafala aconteceu o mesmo
que ao Rei Elias. O pecado de não ter
emigrado. Bonga, que o fez, é hoje o
embaixador do Semba. Os dois Kafa-
las, mais novos que o embaixador,
morreram precocemente.
Decerto José Kafala sabia desta rea-
lidade, porque vivida no palco. Decer-
to que não escolheu cantar o poema de
Agostinho Neto, Renúncia Impossível,
expurgando-o de certos versos. Este
poema é intemporal, num país como
Angola, marcado sem piedade pelos
poderes aqui instituídos. "Fui eu nem tristezas, nem vida, nem morte. eu não sou, não sou, atingi o zero!" ridos a impressão nostálgica do hori-
quem renunciou à Vida. Podeis conti- Nada. Não sou, nunca fui, renuncio- Do irmão Moisés há que destacar a zonte indefinido.
nuar a ocupar o meu lugar, vós os que me, atingi o zero! E agora, vivei, cantai, voz mais espessa, mas sempre capaz Como se pode constatar ouvindo

Dias importantes para a cultura de Angola


mo roubastes. Aí tendes o Mundo todo chorai. E agora, casai-vos, matai-vos, de enriquecer a trova dos Kafala Brot- Ngola, outro brinde em Umbundo, on-
para vós. Para mim, nada quero. Nem embriagai-vos. E agora, dai esmolas hers, mas, sobretudo, o toque mágico de a flauta deita um fiozinho de azeite
riquezas, nem pobrezas, nem alegrias, aos pobres! Nada me pode interessar, da flauta que confere aos temas dolo- doce sobre o curso do rio melódico.

levisão, se o quiser, poderá estar asso- II - DIA DA MULHER parte dos trabalhadores já recebram os
ciada aos festejos do Diia do Semba, BESSANGANA salários, o que possibilita a aquisição

JOSÉ CARLOS
nomeadamente, fazendo cobertura dos trajes da mulher da região de Luan-

DE ALMEIDA
jornalística dos eventos que vierem a da. Oxalá as mulheres dêem valor a es-

(PENSADOR &
ser organizados. sa manifestação cultural.

ESCRITOR)
5. A futura Câmara Municipal de 2. Por outro lado, é importante que ha-
Luanda incentivará os músicos a pro- ja uma pequena indústria de confec-
duzirem Semba, bem como realizar ções para a produção dessas roupas.
concursos musicais, além de, anual- Acredito que uma indústria dessas te-
mente, produzir um disco com os me- rá mercado, visto que muita gente,

I - DIA DO SEMBA
lhores Sembas do ano, de modo a que que reside em Angola, comprará esse
os consumidores de música possam tipo de indumentária , bem como os
ter um bom produto cultural, além de angolanos que residam no exterior do
Proponho a institucionalização do Dia ser, economicamente, vantajoso para país. A industrialização das roupas se-
do Semba - a bandeira musical de Ango- essa instituição e para os diferentes rá mais uma alternativa à diversifica-
la. Creio que o primeiro Sábado do mês agentes culturais intervenientes na ção da economia e será, certamente,
de Julho é um bom dia para esse fim. elaboração das músicas que forem se- uma grande marca de Angola.
Apresento os seguintes argumentos: leccionadas. 3. Afirmo que os trajes à bessangana
1. Sugiro o mês de Julho, por ter a 6. O Semba precisa de ser ampla- têm beleza e encanto. As mulheres
ver com a época seca em Angola, o que mente divulgado, quer em Angola, vestidas à bessangana têm grande vi-
permite a realização de várias activi- quer fora das suas fronteiras. sibilidade.
dades culturais a céu aberto, sem 7. Devemos escrever a história do 4. Em relação à mulher bessangana, há
quaisquer constrangimentos relacio- Semba. Se Angola não fizer essa e ou- outros aspectos que têm a ver com ela,
nados com a chuva. tras tarefas relacionadas com o Semba, designadamente, a transmissão de va-
2. Proponho o primeiro Sábado do não fará sentido algum candidatá-lo a lores aos seus descendentes e educan-
mês referenciado, uma vez que se tra- património imaterial da humanidade. dos, o ensino da higienização corporal
ta de um dos dias do fim-de-semana, 8. Por fim, proponho o uso da pala- e a lida de casa, relacionados com há-
garantindo, deste modo, maior dispo- vra “sembalino”, como um adjectivo bito de trançar o cabelo e de varrer à
nibilidade temporal aos assalariados referente ao nome Semba. Assim, por volta de casa, por exemplo.
para tomarem parte dos eventos que exemplo, podemos dizer, “instrumen- 5. Por último, devo dizer que, timida-
poderão ser organizados em torno tos tradicionais sembalinos”, “letra de mente, já tinha escrito sobre estas maté-
desse dia, tais como concursos de dan- música sembalina”, encontro de músi- rias, embora não o tivesse feito mais de-
ça e karaokê, só de Semba. cos sembalinos” e prémio da música talhadamente, como o faço, neste texto.
3. No Dia do Semba, poderemos re- sembalina”. Acho que o adjectivo que 1. Proponho a institucionalização o Dia 6. Viva a cultura! Benditos são todos os
flectir, realizar palestras e outros proponho soa bem e, certamente, con- da Mulher Bessangana para dia 15 de que valorizam a cultura dos seu país
eventos atinentes a este tipo de mú- tribuirá para o aumento do âmbito le- Agosto - o mês de Agosto, por ser fazer ou região.

Luanda, 16.12.2019
sica angolana. xical dos angolanos ou, até mesmo, parte da estação seca e o dia 15, porque
4. Uma estação de rádio e/ou de te- dos falantes da língua portuguesa. é o meio do mês, altura em que a maior
4 | LETRAS

Processo de assimilação em Primo Narciso,


17 a 30 de Dezembro de 2019 | Cultura

de António Fonseca
materna, exercia uma profissão, pro-
fessava a fé cristã, abandonava os seus
costumes tradicionais, assumia a con-
dição e a figura de um outro, como re-
lata o próprio Fonseca na narrativa, o
assimilado se tornava “um preto com

ITAMAR
alma de branco” (2010, p. 5).Para ser

COSSI
considerado um civilizado, o indígena
deveria rejeitar toda a sua cultura a
priori e assumir a do colonizador, con-
dição contemplada poruma parcela
ínfima de angolanos.
O Cardeal Manuel Gonçalves Cere-
jeira em 1960, enfatizando a política
de assimilação, disse que era preciso
mais escolas em África, as quais indi-

A
narrativa Primo Narciso do es- cariam ao nativo o caminho “para a
critor angolanoAntónio Antu- dignidade do homem”, para isso, era
nes Fonseca , incorpora a fase necessário “ensinar aos nativos a ler,
de contos pós-coloniais, que busca si- escrever e contar, mas não ser douto-
tuar Angola em um espaço próprio, de res”(II AL:372, apud Mondlane,1995:
contra discurso, contra arquivo, de 59). O ensino da língua ocidental do-
romper com a opressão literária oci- minou, silenciou e colonizou as lín-
dental-colonial, cuja escrita é propria- guas tradicionais angolanas, as quais-
mente europeia, num aspecto de exo- foram, desde 1921 em todo o territó-
tismo, racismo e reiteração colonialis- rio colonial de Angola, proibidas, ex-
ta, onde oolhar sobre o país africano, o cluídas e marcadas pelo estigma de in-
foco narrativo e as principais persona- ferioridade. Em contrapartida, para o
gens sempre forameurocentralizadas angolano, aprender a língua do coloni-
e os negrosapenas constituíam um es- zador foi uma das formas de luta pela
paço exógeno, folclórico, sem espes- independência, pois favoreceu a co-
sura cultural, física e psicológica. municação e ajudou na criação de im-
De acordo com a narrativa, a política prensas clandestinas, cujos textos es-
de assimilação enfatizava que ser ne- tavam em português e línguas locais.
gro era uma condição ruim e passar Em Primo Narciso, após KidiluNsua-
por seu processo era a “melhor” ma- António Fonseca di cumprir com todos os requerimen-

Angola não teve o condão de despertá-los, razão porque continuam a


neira que o angolano tinha de ascen- tos da política de assimilação “já havia

observar-se de fora para dentro, com o coração lá longe ainda, obcecados


der na hierarquia das colônias, em tro- sido baptizado, falava português que

por figurinos europeus passeando na paisagem africana


ca o “indígena” deveria silenciar e ne- nem água. Comia à mesa com garfo e
gar a sua cultura ou até mesmo a sua faca, sem atrapalhação (...) rapaz edu-
própria existência. O que aconteceu cado de acordo com os ditames da “ci-
com a personagem KidiluNsuadi da vilização” (2010, p. 5), decidiu voltar e
narrativa em análise, sujeitado à polí- colonos nascidos já na colônia, e os ra se mesclarem genética e cultural- visitar a sua antiga aldeia, para mos-
tica de assimilação, mudou não só os brancos de terceira os filhos mente com os povos colonizados, nes- trar aos demais como era ser “um ci-
seus hábitos culturais e assumiuaos destes.“Sô Martins, um branco consi- te sentido Angola passou a ser uma dadão civilizado”. Chegando à sua an-
do outro – europeu, como também foi derado de primeira, nascido e cresci- continuidade de Portugal, em outros tiga comunidade, mesmo sabendo que
forçado a mudar o seu nome indígena do na metrópole (...) Sô Silva, um bran- termos, o país africano se tornou uma já não era mais permitido pelos colo-
- princípio da construção de sua iden- co de segunda, nascido na colónia por- civilização luso-tropical. nos cultuar suas antigas raízes, já que
tidade, passando a se chamar por seu tanto, conseguiu colocar o filho dos Na narrativa, Sô Rui, padrinho de agora era e assumiu a identidade de
padrinho de Narciso. “– Não! Isso não. seus dezassete anos: era bom para Narciso, era filho de um comerciante um outro, assimilado, Narciso, conta-
Com esse nome o rapaz não vai a lado ajudante da carrinha e do armazém. português, que usou de seus poderes giado pelos cânticos e pela alegria de
nenhum. De hoje em diante – o Sô Rui Quanto ao mais novo, dos seus doze de superioridade masculina e colonial seu povo, festejou junto com os
dirigia-se agora ao rapaz¬ – passas a anos, ninguém o queria, pois era pe- para violentar, estuprar e engravidar seus.“Narciso não resistiu ao apelo das
chamar-te Narciso”. (2010, p. 3).Tor- queno demais para os trabalhos que uma negra da aldeia. Por ser mestiço , origens. Pegou num pano, enrolou-o à
nar-se um assimilado implica à perso- tinham. (2010, p. 2). Abaixo dessa hie- assimilado e filho de um colonizador a cintura, fê-lo descair sobre a mbunda
nagem,além da perda de sua identida- rarquia estavam os diversos tipos de personagem se sentia no direito e se e entrou no frenesim da dança”. (2010,
de tradicional, negar e eliminar os mestiços, seguidos dos negros assimi- colocava numa escala maior na hierar- p. 6). Fonseca explicita em Primo Nar-
seus costumes considerados primiti- lados e aquém de toda essa categoria, quia colonial. “Graças a isso pudera ciso, narrativa de cunho arquivista de-
vos, não no sentido de priori, mas de encontravam-se os negros - indígenas, ser considerado um assimilado, ao colonial, que mesmo o sujeito angola-
inferior, menor, sem valor. chamados de “não civilizados”.Segre- contrário de muitos outros que, como no se tornando um outro pela política
Em Primo Narciso, KidiluNsuadi foi gação que contribuiu para o chamado- suas mães, permaneciam indígenas, de assimilação,não consegue apagar
adotado pelo senhor Rui, que segundo Lusotropicalismo , utilizado em Ango- tal como o estatuto no seu artigo se- por completo as suas raízes tradicio-
o autor, “não era um branco nem de la como suporte e propagação de ideo- gundo rezava: os indivíduos de raça nais, isto é, nenhum discurso coloni-
primeira e nem de segunda. Era sim logias em defesa das colônias portu- negra ou seus descendentes que, ten- zador, imposto através do sangue, da
um mestiço que, embora se soubesse guesas, as quais propagavam suas do- do nascido ou vivendo habitualmente opressão foram e são capazes de apa-
de quem era filho, nunca vira essa pa- minações políticas e sexuais diante nelas (províncias) não possuam ainda gar da memória do angolano, sua cul-
ternidade reconhecida” (2010, p. dos indígenas. Em Angola, olusotropi- a ilustração e os hábitos individuais e tura priori, pois não é questão de pele,
3).Em Angola, na época colonial, os in- calismo apenas favoreceu aos portu- sociais pressupostos para a integral raça, mas de alma, ancestralidade, ele-
divíduos eram separados por catego- gueses, uma vez que, sendo iberos e ti- aplicação do direito público e privado mentos que incorporados aos mitos e
rias: branco de primeira eram os colo- dos como miscigenados estariam ca- dos cidadãos portugueses (2010, p. a tradição oral se tornaram armas
nos que nasceram na metrópole; tegoricamente mais preparados e ca- 3). Um assimilado que aprendia a ler e contra o abuso do arquivo colonial.
brancos de segunda eram os filhos dos pacitados que os demais europeus pa- escrever o português – como língua Ao voltar às origens, Narciso foi sur-
Cultura | 17 a 30 de Dezembro de 2019 LETRAS | 5

preendido pelo chefe de polícia, acom- rios anos emigrara para Luanda.”
panhado pelo Administrador que visi- (2010, p. 7). Alguns assimilados, ou ex PERFIL
tara as sanzalas, onde já haviam assi- buscavam encontrar um alojamento Doutorando pela Universidade de Buenos Aires – UBA, cuja investigação é sobre Me-
milados. Por dançar e cantar suas an- digno, que apenas uma pequena parte mória, Reminiscência e Tradição Oral na Literatura Africana Contemporânea.
tigas tradições Narciso perdeu seu bi- conseguia, a outra vivia pelas ruas das Ervedosa, Carlos – Itinerário da Literatura Angolana – Culturanga, Luanda, 1972.
lhete de identidade portuguesa e foi cidadescoloniais ou pelos matos a se António Antunes Fonseca: nasceu no Ambriz, província do Bengo (1956). Licenciou-se
levadocomo escravo.“...como castigo, esconderem. Tentavam se reencon- em Economia na Universidade Agostinho Neto, de Angola e é Diplomado em Estudos
foi deportado para uma fazenda da re- trarem com sua identidade cultural, Superiores Especializados de Políticas Culturais e Acção Artística, pela Faculdade de Di-
gião de Nambuangongo e nunca mais voltando a cultuar os costumes tradi- reito e Ciência Política da Universidade de Bourgogne, França. Poeta, escritor e ensaísta
se soube dele. Alguns admitiram mes- cionais dos quais haviam se separa- angolano foi co-fundador da Brigada Jovem de Literatura, é membro da União dos Es-
mo que tivesse fugido para o Congo, dos. Regresso importante para um critores Angolanos e éMembro Fundador da Academia Angolana de Letras, de que é o
de onde já sopravam ventos revolu- efetivo compromisso na luta contra a Secretário-Geral. Ao longo da sua carreira profissional dirigiu o instituto Nacional do Li-
cionários e independentistas, porém, dominação colonial. vro e do Disco, o Instituto Nacional das Indústrias Culturais, a Direcção Nacional dos Di-
a verdade era outra” (2010, p. 6).Os A narrativa Primo Narciso de Fonse- reitos de Autor e Direitos Conexos, o Gabinete Jurídico do Ministério da Cultura e a Em-
não assimilados, ou aqueles que dei- ca, portanto,é uma válvula de escape presa Nacional do Disco e de Publicações. Actualmente é o Presidente do Conselho de
xavam de ser, de acordo com a narrati- contra as limitações expostas pelo dis- Administração do Memorial António Agostinho Neto. Desde 1978 é realizador e apre-
va de Fonseca, eram submetidos ao curso dominante, contribuindo para a sentador do programa semanal ANTOLOGIA, na Rádio Nacional de Angola, dedicado à
chamado “contrato” e/ou subordina- construção de um novo campo literá- valorização das tradições orais angolanas. Decreto-Lei nº 39:666, de 20 de Maio de
dos ao trabalho pesado. Amarrados e rio, que se ergue 1954, publicado no Boletim Oficial nº 22.Art.2º - Consideram-se indígenas das referidas
levados aos cafezais dos colonos, como um grito na- Províncias os indivíduos de raça negra ou seus descendentes que, tendo nascido ou vi-
eram tratados como mercadoria, ob- vendo habitualmente nelas, não possuam ainda a ilustração e os hábitos individuais e
jeto de venda e/ou câmbio, elemento sociais pressupostos para a integral aplicação do direito público e privado dos cidadãos
indispensável para a manutenção do portugueses.§ único – Consideram-se igualmente indígenas os indivíduos nascidos de
sistema colonial português em Ango- pai ou mãe indígena em local estranho àquelas Províncias, para onde os país se tenham
la, que usava e exportava mão de obra temporariamente deslocado. Pinto, Alberto Oliveira – Angola e as Retóricas Coloniais –
escrava para outras colônias. roupagens e Desvendamentos - Mercado de Letras Editores – Lisboa -2012.
A qualificação de assimilado masca- Um mestiço poderia permanecer indígena de acordo com a lei da política de assimila-
rava toda a realidade de segregação e ção de 1954. Decreto-Lei nº 39:666, de 20 de Maio de 1954, publicado no Boletim Oficial
exclusão racial provocada pelo colo- nº 22. Artigo 56: a) Ter mais de 18 anos; b) Falar correctamente a língua portuguesa; c)
nialismo, o qual obrigava o “não civili- Exercer profissão, arte ou ofício de que aufira rendimento necessário para sustento pró-
zado” a viver em constante miséria e prio e das pessoas de família a seu cargo, ou possuir bens suficientes para o mesmo fim;
se colocar às margens, morando em d) Ter bom comportamento e ter adquirido a ilustração e os hábitos pressupostos para
musseques e respeitando toques de a integral aplicação do direito público e privado dos cidadãos português; e) Não ter sido
recolher. “Seguindo pela beira-mar, lu- notado como refractário ao serviço militar nem dado como desertor.
dibriou primeiro o controlo da polícia Autoridade administrativa no período colonial. Herança que se perdura até o contem-
à entrada do Cacuaco e, depois, à en- porâneo. Um dos principais centros produtores de café. Na narrativa é um espaço para
trada da cidade. Esgueirou-se pela la- a prisão da personagem Narciso. Na história de Angola, Nambuangongo foi um espaço
deira da Boavista e, subindo pelas bar- importante para os acontecimentos de 15 de março de 1961. Um dos principais redutos
rocas, penetrou no Sambizanga onde da luta de libertação nacional. (...) “nós mesmos urdimos a corda e nós mesmos vamos
passou a viver com um tio que há vá- nela amarrados” (2010, p. 4) - INALD, Luanda, 2007.

Atenção aos estudantes


universitários angolanos em Cuba
O século XXI caracteriza-se pela existência de grandes transformações e desafios, para os
quais as sociedades e os seus sistemas de ensino necessitam de formar profissionais alta-
mente competentes e comprometidos com o desenvolvimento dos seus países. Por isso, o Go-
verno Angolano, desde há muitos anos investe grandes recursos na formaçao dos seus profis-
sionais em Cuba e noutros países. Os funcionários do Sector Estudantil na Embaixada de
Agola em Cuba, actualmente empreendemesforços para atender os estudantes.
Porém, não tem sido fácil o intercâmbio sistemático com todos os estudantes, pois se trata de
um número elevado de estudantes dispersos por várias províncias desse país. Alunos angolanos em Cuba estão entre os melhores da Ilha
Atendendo a esse factor, a comunicação torna-se insuficiente, bem como a assessoria e a coo-
peração com todos os estudantes, com prejuízo para a sua motivação. cultural de Angola. Por isso, há mais de ciências na comunicação, na assessoria
Das insuficiencias anteriormente focadas, foram identificadas dificuldades na prática pro- 30 anos, muitos de seus jovens estu- e na cooperação que se brinda aos es-
fissional resultando na abordagem do aperfeiçoamentodo processo de atenção aos estu- dam e estudam em Cuba e em outros tudantes, que, en alguns casos, isso
dantes universitarios angolanos en Cubadurante a sua formção países, onde são preparados como pro- afecta, sobremaneira, a sua motivação.
fissionais em diferentes especialida- Das insuficiências anteriormente iden-

ANTÓNIO JOSÉ MATEUS


profissionais competentes e compro- des. É assim que se buscam métodos tificadas, na prática profissional atra-
metidos, que participem activamente mais eficazes para a atenção aos estu- vés do intercâmbio com os estudantes,
no desenvovlimento dos seus países. dantes, com o propósito de cumprir com decidiu-se estudar o aperfeiçoamento
Angola não é excepçãocomo refere a os objectivos propostos. Considera-se o do processo de atenção aos estudantes
INTRODUÇÃO Lei de Base do Sistema da Educação estudo científico deste processo de aten- universitários durante a sua formação
Muitos são os desafios que enfrentam (nº Ley n 17/16 de 7 de Outubro) “a ção aos estudantes universitários para profissional, com o objectivo de propor
hoje as nações e os seus sistemas de educaçãoé um processo planificado e se encontrar mecanismos práticos que uma estrégia para a atenção.
educação como consequência directa sistematizado de ensino e aprendiza- possibilitem, de forma permanente, o O mesmo contém alguns fundamen-
do desenvolvimento acelerado da gem que visa preparar de forma inte- apoio na sua formação profissional. tos sobre a formação profissional dos
ciencia e da técnologia, das relações gral o indivíduo para as exigências da O Sector de Apoio Estudantil em Cuba estudantes e sobre aspectos socio-
desiguais existentes no mundo, assim vida individual e colectiva”. actualmente empreende esforços para psicológicos da direcção em educa-
como os perigos que a propria huma- (A.N.A. 2016: 2). Neste sentido, o Go- atender os estudantes, pois nao tem si- ção, como a motivação e a comunica-
nidade enfrenta, resultantes do câm- verno prioriza a formação da mão-de- do fácil o intercâmbio sistemático, pelo ção, que sustentam a proposta e se
bio climático e dos conflitos bélicos. obra especializada, a qual deverá estar número extenso e a sua dispersão por descreve brevemente a estrutura da
Para enfrentar exitosamente estes de- encarregada de promover o desenvol- quase todas as províncias de Cuba. estratégia que se apresenta para a so-
safios, éimprescindível a formação de vimento económico, social, político e Por este motivo tem havido insufi- lução do problema.
6 | LETRAS 17 a 30 de Dezembro de 2019 | Cultura

O PROCESSO DE FORMAÇÃO
Em Angola, como na maioria dos países
do mundo, formar profissionais com al-
ta qualificação, capazes de aproveitar
os avanços técnico-científicos em bene-
fício do desenvolvimento do país cons-
titui uma necessidade imperiosa; daí a
importância que se lhe concede na edu-
cação, a qual se reflecte na Lei de Bases
da Educação Angolana, aprovada pela
Assembleia Nacional de Angola em
2016 cujo teor é o seguinte:
O sistema de educação e ensino tem de
“desenvolver harmoniosamente as ca-
pacidades intelectuais, laborais, cívi-
cas, morais, éticas, estéticas e físicas.
Bem como o sentimento patriótico dos
cidadãos, especialmente dos jovens, de
maneira continua e sistemática e elevar
o seu nível científico, técnico e tecnoló-
gico, a fim de contribuir para o desen-
volvimento socio-económico do País.
A formação de profissionais é consi-
derada um processo educativo através
do qual o futuro profissional é prepa-
rado continuamente nos conteúdos e
métodos a serem aplicados; começa a Bolseiros angolanos em Cuba

partir do momento em que se escolhe


a profissão e dura a vida inteira. Para 2006: 8). Portanto, é necessário que a gulo et al. (2007), assim, Potes, Peláez sempenho profissional. Esses ele-
isso, "está presente no desenvolvi- formação profissional nas instituições e Escobar (2010). Este artigo assume o mentos interligados constituem um
mento técnico-científico e assume no- universitárias seja uma verdadeira for- conceito de formação integral aborda- sistema complexo cujo principal re-
vas experiências e reflexões que con- mação integral do ser humano, como do pelo ensino superior cubano, onde sultado é a capacidade de contribuir,
tribuem para a transformação do seu um processo contínuo, permanente, é definido da seguinte maneira: de maneira criativa, para encontrar
modo de acção no contexto em que sistemático e participativo que “bus- "A formação integral de estudantes uma solução para os problemas da
exerce a profissão" (Mateus, 2019 a:3). que desenvolver harmoniosa e coeren- universitários deve resultar em gra- prática. (MÊS DE 2016: 8)". No en-
A formação de profissionais nas uni- temente todas e cada uma das dimen- duados com um desenvolvimento tanto, para atingir estes objectivos
versidades visa "preparar integralmen- sões” do ser humano, como ética, espi- político [...] sólido, dotados de uma gerais na formação dos profissionais
te o aluno numa determinada carreira, ritual, cognitiva, afetiva, comunicativa, ampla cultura científica, ética, legal, universitários angolanos, é necessá-
tanto de graduação como de pós-gra- estética, corporal e socio-política, a fim humanista, económica e ambiental; rio um trabalho coordenado, com a
duação, para que se possa cumprir a de alcançar a sua plena realização empenhados e preparados para de- participação de muitas instituições e
missão de preservação, desenvolvi- "(Colectivo de autores; 2016: 2). fender a Pátria [...] e as causas justas pessoas, não devendo ser apenas as
mento e promoção dentro e fora do con- Muitos autores abordaram o concei- da humanidade, com argumentos instituições de ensino, mas se neces-

A atenção
texto universitário..." (Horruitiner , to de educação integral, entre eles, An- próprios e competentes para o de- sita de uma atenção sistemática.

mento, controlo e ajuda cooperada sócio-psicológicos importantes, co- são formados como profissionais. Da
com a participação de instituições de mo motivação e comunicação. mesma forma, neste trabalho, os princí-
Em relação à palavra atenção, vários ensino superior onde estudam, dos De acordo com Carbonell, et al. pios da gestão da educação propostos
dicionários consultados referem a ac- seus professores, famílias, colegas, (2016), algumas das características por González, et al. (2016), com especial
ção de atender. De acordo com o Pe- organizações estudantis, organiza- que a direção na educação deve ter ênfase nos dois princípios seguintes:
queno Dicionário Ilustrado Larousse, ções patronais angolanas, comunida- são as seguintes: 1. "Princípio do carácter participati-
significa "aplicação da mente a um de e funcionários da Embaixada de • Planejar, organizar, desenvolver, vo e o compromisso para a motivação-
objecto". O autor define como "cuidar Angola em Cuba, responsáveis pela controlar e avaliar os processos e ati- laboral nas instituições educativas.
de uma pessoa" (García, 1988: 108). coordenação deste processo, com vis- vidades com a participação de todos. 2. Princípio da coordenação para o
O Colectivo de Autores (2015) defi- ta a promover a sua formação como • Promover a colaboração entre todos desenvolvimento do processo de di-
ne a atenção como "a capacidade que profissionais integrais, competentes, os membros directa e indirectamente li- recção em educação " (página 32).
alguém tem de cuidar de coisas ou um dotados de valores humanos e com- gados ao trabalho da instituição. Da mesma forma, os principais mé-
objetivo, tendo-o em conta ou em prometidos com o desenvolvimento • Estimular o comprometimento e o todos da direcção da educação utili-
consideração" (página 1). do nosso país. trabalho em equipa para atingir os zados na proposta são:
Consequentemente, a atenção para Isso significa que a responsabilida- objetivos da maneira mais eficiente A observação do desenvolvimento
algo ou alguém significa entre outras de pela formação integral dos estu- possível, priorizando a eficácia do de execuções e processos; o exercício;
acepções: atender, ter em conta, con- dantes que se formam nas institui- processo educacional. execução de tarefas práticas; a entre-
siderar ocupar-se deste algo ou al- ções universitárias não é apenas dos • Dirigir e promover a participação, vista; trabalho em grupo ou coletivo; o
guém, ajudá-lo, contribuir para o seu claustros dos professores das referi- definindo os objetivos, as prioridades diálogo; a orientação; a negociação; a
desenvolvimento, enfim, prestar das instituições, mas também do Go- de cada etapa, bem como as acções persuasão; o reconhecimento e apro-
atenção em tudo que seja possível pa- verno e do povo angolano, represen- correspondentes para alcançá-las. vação; a crítica; autocrítica e autoava-
ra que cumpra os seus objectivos. tada primeiramente pelos funcioná- • Integrar as necessidades indivi- liação; conversação informal e res-
De acordo com os autores supra- rios do governo. Portanto, considera- duais e de grupo de todos os mem- ponsabilização. (Mateus, 2019a: 8).
citados, a atenção pode ser de três se que a atenção aos estudantes uni- bros da comunidade educacional. Esses elementos teóricos sobre a di-
tipos: activa e voluntária, activa e versitários angolanos durante a sua • Assegurar um sistema de relacio- reção na educação fundamentam a
involuntária e passiva (Coletivo de formação deve ser apoiada como re- namento efetivo que facilite o traba- atenção necessária aos estudantes uni-
autores 2015). A atenção aos estu- sultado da pesquisa científica, razão lho visando atingir os objetivos e ava- versitários na sua formação profissio-
dantes angolanos em Cuba durante a pela qual, para além dos fundamen- liar os seus resultados. (p. 14-15). nal, mas também se apoiam nos aspec-
sua formação profissional deve ser tos pedagógicos do processo de for- Estas concepções teóricas assumem- tos socio-psicológicos da direcção na
entendida como um processo perma- mação integral, alguns elementos se neste artigo, porque correspondem educação como a motivação profissio-
nente activo e voluntário de assesso- teóricos gerais de direção no campo às aspirações de conseguir uma melhor nal e a comunicação educativa, trata-
ramento, orientação, acompanha- da educação, com ênfase em aspectos atenção aos estudantes angolanos que dos de forma resumida a seguir.
Cultura | 17 a 30 de Dezembro de 2019 LETRAS | 7

IMPORTÂNCIA DA MOTIVAÇÃO
Actualmente, muitos dos estu-
dantes não dedicam o tempo que
realmente precisam para o estudo
de uma carreira universitária, e nem
todos os professores dão a orienta-
ção e ajuda necessárias para mudar
essa atitude. Daí a importância de
trabalhar intencionalmente, a moti-
vação profissional dos estudantes
angolanos, para alcançar níveis
mais elevados no interesse profis-
sional dos estudantes.
No trabalho coletivo (em grupo),
a estimulação motivacional é orga-
nizada através de formas de traba-
lho cooperativo, através das quais
as intenções profissionais são cria-
das e fortalecidas.
O nível superior é alcançado
quando os estudantes conseguem
estabelecer metas e objetivos pro-
fissionais de natureza mediática, fa-
zendo elaborações antecipadas so-
bre o seu futuro desempenho pro-
fissional. Para isso, realizam esfor-


ços complexos, manifestando satis-
fação nesse processo. Eles se com-
portam com optimismo e seguran-
ça, senso de posse, rápida adapta-
ção ao ensino superior e com satis- Bolseiros angolanos em Cuba
fação pela profissão escolhida.
Por isso, é necessário projectar
acções estratégicas que propiciem essência da actividade gerencial. (p.36).”

Estas ideias reforçam a convic-


alcançar e manter, nos estudantes, Estas ideias reforçam a convicção da CONCLUSÕES
as suas intenções profissionais, ou importância que é dada à comunica- Os angolanos licenciados na Repú-

ção da importância que é dada


seja, o mais alto nível de interesse ção educativa na estratégia para a blica de Cuba devem concluir com
profissional nas suas carreiras, ele- atenção dos estudantes angolanos que um sólido desenvolvimento político,

à comunicação educativa na


mento essencial para a sua forma- são formados como profissionais, on- uma ampla cultura científica, ética, le-
ção integral como profissionais alta- de o diálogo educativo adquire um pa- gal, humanista, económica e ambien-

estratégia para a atenção dos


mente qualificados e comprometi- pel relevante. tal; estarem comprometidos e prepa-
dos com o desenvolvimento do seu Coincide com Ortiz (2008) no sen- rados para defender a pátria, contri-

estudantes angolanos
país. Daí o papel decisivo da motiva- tido de que não basta que o diálogo buir para o seu desenvolvimento e
ção profissional na atenção aos es- com os estudantes ocorra na insti- serem competentes na sua actuação
tudantes em Cuba. tuição de ensino ou em um determi- profissional, como resultado da for-
nado cenário para ser um diálogo mação profissional integral que rece-
educacional, pois para isso deve bem nesse país. A atenção aos estu-
atender a alguns requisitos, dentre Ressaltar a grande importância da-
PAPEL DA COMUNICAÇÃO
dantes universitários angolanos em
os quais se destacam: da ao trabalho em equipa neste artigo, Cuba durante a sua formação profis-
Entre as múltiplas definições do termo • Motivação para a obtenção de no- como parte da atenção dispensada aos sional deve ser concebida como um
comunicação está o que o concebe co- vos conhecimentos. estudantes na sua formação integral, processo permanente, activo e vo-
mo um processo bidirecional de troca • Estimulo à aparência e/ou à busca não significa que o papel do trabalho luntário de aconselhamento, orienta-
de experiências e conhecimentos que do tal conhecimento. independente seja subestimado, pois ção, acompanhamento, controlo e
exerce influências mútuas entre os su- • Demonstração aos alunos das suas eles devem desenvolver as suas pró- ajuda cooperativa aos estudantes,
jeitos participantes. insuficiências e como eliminá-las. prias habilidades profissionais. com a participação de instituições de
Ao aceitar que se trata de um proces- • Promover a reflexão individual e
ESTRATÉGIA DE ATENÇÃO
ensino superior onde estudam. Pro-
so bidirecional de troca de experiên- colectiva sobre os conteúdos das ma- fessores, familiares, colegas, organi-
cias, "nos distanciamos da ideia bas- térias abordadas. Com base nestes elementos concep- zações estudantis, instituições em-
tante generalizada de que nesse pro- • Que se estimule a criatividade. tuais iniciais, define-se um conjunto pregadoras angolanas e funcionários
cesso há sempre um emissor e um re- • Que a diversidade seja provocada inter-relacionado de acções para o de- da Embaixada de Angola em Cuba,
ceptor, considerando que, para que entre os estudantes sobre conteúdos senvolvimento do processo de aconse- encarregados de coordenar este pro-
exista um verdadeiro processo de co- de valores educativos e instrutivos. lhamento, orientação, acompanha- cesso. Portanto, para conseguir uma
municação, ambos devem ser emisso- • Que as relações do espírito de ca- mento, controlo e assistência coopera- atenção adequada aos estudantes
res e receptores " (Mateus, 2019a: 8). maradagem, cooperação e ajuda mú- tiva aos estudantes, como estratégia angolanos formados como profissio-
Alonso (1994), referindo-se à comu- tua dentro do grupo sejam encoraja- de atendimento aos universitários an- nais em Cuba, é necessária a execu-
nicação especificamente como ele- das, assim como a formação de valo- golanos, como se disse anteriormen- ção de acções de cooperação, por to-
mento sócio-psicológico essencial da res morais. te, com a participação das institui- dos aqueles que podem ter um im-
gestão no campo da educação, pro- O trabalho em grupo deve ser incen- ções de ensino superior onde estu- pacto favorável, tanto em Cuba co-
põe:“Se vemos a comunicação como tivado, como um elemento importante dam, dos seus professores, das suas mo em Angola, ou seja: gestores e
um processo de interação social; rela- para promover a ajuda que os pró- famílias, das organizações estudan- professores de instituições de ensino
ções humanas existentes e possíveis; prios estudantes podem e devem tis, dos próprios colegas de estudo, onde os estudantes são formados, di-
sinónimo de compreensão, ajuda mú- prestar aos seus colegas. Para isso é das instituiçoes empregadoras ango- rectores da Associação de Estudan-
tua, troca, interacção recíproca e vida aconselhável familiarizar os alunos lanas e dos funcionários da Embaixa- tes Angolanos em Cuba, os próprios
em sociedade; conteúdo e forma da com a necessidade de respeitar as "re- da de Angola em Cuba, encarregados estudantes, as suas famílias, repre-
atividade de trabalho, e um processo gras do trabalho em grupo", bem como de coordenar este processo, permi- sentantes de organizações patronais
de resolução de problemas específi- as "regras de uma boa audição", muito tindo passar de um estado inicial para e funcionários da embaixada angola-
cos; então podemos chegar à seguinte úteis e necessárias para promover re- o estado desejado, em cumprimento na em Cuba.
conclusão: a comunicação é a própria lações interpessoais salutares. do objectivo proposto.
Ana Clara Guerra Marques
8 | ARTES 17 a 30 de Dezembro de 2019 | Cultura

Uma primeira reflexão no domínio da dança cokwe


GASPAR MICOLO
Duas das mais

A
o longo dos últimos 30 anos, a bai-
larina e coreógrafa Ana Clara Guer- belas máscaras
ra Marques, pioneira da dança con-
temporânea em Angola, dedicou-se à in- angolanas em livro
vestigação sobre a cultura cokwe, com
destaque para as máscaras de dança - Na actuação destas máscaras – a dan-
Phwo (feminino) e Cihongo (masculino). ça e o conjunto de elementos obser-
A obra “Máscaras Cokwe: a Linguagem váveis, com significados próprios e
Coreográfica de Mwana Phwo e Cihon- identificáveis –, estão sempre presen-
go”, lançada no dia 11 de Dezembro, na tes uma linguagem manifesta e men-
União dos Escritores Angolanos (UEA), sagens latentes resultantes das inter-
em Luanda, reúne assim o resultado de pretações do bailarino, bem como do
um trabalho que compulsa uma vasta re- próprio público. Por mais estrutura-
ferência bibliográfica, depoimentos de dos que sejam os padrões de movi-
colaboradores cokwe e especialistas, mento, este público tem sempre a li-
além da recolha de dados que a investi- berdade de (re)interpretar a perfor-
gadora efectua na Lunda Norte, Lunda mance e de produzir narrativas sobre
Sul e Moxico, assim como em Benguela e ela, a partir da articulação de todas as
em Luanda, junto das comunidades cok- Bailarinos cokwe componentes que reconhecem.
we aí instaladas.Ana Clara Guerra Mar-
ques, que durante 37 anos trabalhou no as particularidades de uma realidade divulgar o sentimento de respeito devi-
Ministério da Cultura, onde foi directora sociopolítica e cultural concreta. "Mwa- do à aristocracia cokwe, e a todas as li-
da Escola Nacional de Dança e consulto- na Phwo é simultaneamente o reflexo de nhagens de soberanos que lideraram
ra, revela um profundo conhecimento da uma sociedade matrilinear e um pode- aquele povo" [ibidem].
cultura cokwe, demonstrado nas abor- roso instrumento de educação e manu- Como se nota, neste trabalho pionei-
dagens histórica, antropológica e etno- tenção dos valores e papel da mulher ro, a autora, além da redefinição das
gráfica efectuadas por reconhecidos entre os Tucokwe" [pág. 188 ]. danças cokwe, à luz da metodologia e
académicos que se interessaram pelos E quanto ao homem, revela: "(...) o Mu- rigor coreográficos, revela igualmente
mascarados cokwe, relativamente às kixi wa Cihongo possui o seu texto en- os ricos elementos da cosmologia cok-
suas funções, significado e simbologia. quanto entidade carregada de repre- we imbuídos nas performances das
E é aqui que o trabalho de Ana Clara sentações onde círculos distintos de máscaras Mwana Phwo e Cihongo. "É,
Guerra Marques se revela pioneiro: pro- uma mesma comunidade constroem pois, através da dança que a simbolo-
põe uma primeira reflexão no domínio imagens culturais. Para além do signifi- gia inscrita nas máscaras é posta em
da dança no contexto cokwe de Angola, cado atribuído ao seu estilo de dança movimento, evocando o sistema de re-
colmatando a ausência de uma perspec- que, pelo vigor empregue nos seus mo- presentações cósmicas que os Tucok-
tiva do ponto de vista da performance vimentos representa a virilidade e o po- we reconhecem e com as quais se
nos estudos sobre os mascarados do der masculino, a sua actuação pretende identificam" [pág. 191].
Nordeste de Angola.
Num dos prefácios, o historiador de
arte Manuel Jordán, director adjunto e
curador para África do "Musical Instru-
ment Museum", nos EUA, e que conta
Sobre a autora
com uma vasta obra sobre a arte cokwe, A autora é mestre em Performance Artística -
aliás bem referenciadas no trabalho, re- Dança, e licenciada em Dança na área da Edu-
fere que o "livro, baseado no treino pro- cação, bailarina, coreógrafa e investigadora.
fissional da autora e nas suas práticas Pioneira da dança contemporânea em Ango-
como coreógrafa, é um contributo im- la, Ana Clara Guerra Marques trabalhou durante
portante por destacar um ângulo com- 37 anos no Ministério da Cultura angolano, on-
pletamente novo e necessário aos estu- de foi Directora da Escola Nacional de Dança e
dos sobre os Cokwe". consultora dos Vice-Ministro e Ministra da Cul-
Partindo de uma análise dos bailari- tura de Angola, tendo fundado a primeira com-
nos mascarados da sociedade cokwe pa- panhia profissional angolana, a Companhia de
ra depois considerar a sua performance Dança Contemporânea de Angola, com a qual
coreográfica, Ana Clara Guerra Marques, propôs novas estéticas e novos conceitos de
que em 1991 fundou a primeira compa- espectáculo para a dança angolana, dividindo a
nhia profissional angolana, a Companhia sua criação entre a intervenção/crítica social e a
de Dança Contemporânea de Angola, extensão artística do seu trabalho de investiga-
descreve e revela neste livro a estrutura ção sobre as danças patrimoniais angolanas,
da dança, destacando o intérprete (Mu- com incidência na cultura Cokwe.
kixi wa Mwana Phwo e o Mukixi wa Ci- Como reconhecimento da sua contribuição
hongo), o movimento e a música. para o desenvolvimento das artes e
Após recolha e processamento de to- da cultura em Angola, foram-lhe atribuídos o
da uma série de dados e informação, a “Prémio Nacional de Cultura e Artes” (2006), o
autora, mestre em Performance Artísti- prémio “Identidade” da União Nacional dos Ar-
ca-Dança, revela que a performance in- tistas e Compositores (1995), os Diplomas de
dicia a presença de uma informação so- Honra (2006) e de Mérito (2016) do Ministério
bre a génese, função e posição ocupada da Cultura de Angola e o “Diploma de Honra –
pelas máscaras Mwana Phwo e Cihongo Pilar da Dança” da UNAC (2011). Guerra Marques . Autora e mestre em Performance Artística - Dança
na sociedade cokwe, o que remete para
ARTES | 9

Justino Handanga, a voz que consolou os angolanos


Cultura | 17 a 30 de Dezembro de 2019

Angola, depois do português ) como


instrumento de comunicação por ex-
celência. Assim, numa tradução literal
da estrofe anterior, temos a seguinte
mensagem: “Sou do Bailundo, vim pa-
rar aqui por causa da guerra/ Mas ago-

DOMINGOS
ra terminou a guerra/ Voltarei para a

DE JESUS
minha terra// Oh, meu irmão/ eu bem
dizia que um dia o sofrimento iria aca-
bar/ Iremos às nossas terras/ E sere-
mos felizes…”
A estrofe desta música convida os

V
olvidas quase duas décadas de- seus compatriotas que, por motivos
pois do lançamento do primei- do conflito armado, se encontravam
ro álbum discográfico de Justi- longe das suas terras, dos seus kimbos
no Handanga, lembramo-nos, com (lares), e motiva-os a regressarem à
profunda saudade, da voz, da letra e do casa. Conforme podemos notar no re-
ritmo tocado um pouco por todo o país frão da mesma música: “Helã okwen-
e na diáspora (especialmente nas co- da/ eheya/ Helã okwenda ehe/ Tutyu-
munidades angolanas). O álbum “On- kila ehe ya/ Tutyukila ehe/ Tuyukila
jongele yatelisiwã” (alvo atingido), kumãi ehe ya/ Tutyukila ehe/ Helã ok-
lançado em 2004, surge numa oportu- wenda avoyo ehe ya/ Helã okwenda
nidade única, fase em que os angola- ehe”. Tradução literal: amanhã, volta-
nos acabavam de sair duma guerra ci- remos/ Voltaremos/ Voltaremos para
vil de quase três décadas. Ora, após os a mãe/ Voltaremos/ Amanhã voltare-
acordos de Paz, a 4 de Abril de 2002, mos. Ora, o final desta música reveste-
antecedidos pelo silenciar das armas, se duma linguagem conotativa pene-
o povo angolano encontrava-se trau- trante que leva o ouvinte a viajar no
matizado devido ao conflito que não tempo e no espaço, ao dizer: “Olumn-
só destrui as melhores infra-estrutu- da vyokimbo vyovyo vimolehã we
ras do país, como também ceifou mi- ehe/ Lumbanganda omulehã akome/
lhares de almas e deixou viúvas, órfãos Ocipalã lovaso/ Ocipepi Lutimawe/
e mutilados. Nesta fase, o povo estava Ndilinga ndaty avoyo akome/ Okutate
desesperado, a paz ora anunciada pa- koko cavala” (refrão). Tradução: “Lá
recia-lhe, ainda, uma quimera. estão as montanhas da minha terra!/
Apesar do transe, nascia, entre os O moro Lumbanganda também apare-
angolanos, o sonho de reencontrar fa- ce/ É distante com os olhos/ Próximo
miliares, reconstruir lares e reedificar com o coração/ Que faço então!/Lá es-
o que fora destruído pela guerra. Em- tá a terra do meu pai!”
bora o conflito não tivesse assolado to- A música anterior, quando fosse ou-
das as províncias na totalidade, as do vida por alguém que a compreendes-
sul, sudoeste, leste e principalmente se, resultava numa verdadeira catar-
as do planalto central (Huambo, Bié e se, na medida em que permitia ao ou-
Cuando-Cubango) estavam totalmen- vinte esquecer-se dos problemas do
te arrasadas. Foi nesse momento e passado, voltar-se para si e, reanima-
circunstância que, entre a vastidão do, pensar mesmo em voltar para a
das belas vozes da música nacional, terra, pois é lá onde cada um tem o qual contribui, por um lado; por outro seus contemporâneos se formaram
Justino Handanga surge com letras que precisa para sobreviver e conse- lado, por estar abandonado pela sua tendo alcançado uma vida equilibra-
cujas mensagens atingiram a emoção gue encontrar os seus entes queri- família à qual amou e dedicou a vida da. E, pelas suas competências, em
dos angolanos, transmitindo alegria, dos, com os quais fosse possível ser toda. O personagem da música vive antropologia africana, conhecedor do
amor, paz e esperança. feliz verdadeiramente. melancólico e, a lamentar, questiona a folclore do povo umbundu, recorre
Handanga é um artista que soube Decerto, Handanga não se limite a sua condição de homem (macho). Diz, aos provérbios para passar a mensa-
ler o momento e interpretar os cora- estimular saudade e incentivar o re- portanto, ser homenzinho, insignifi- gem. Assim cantou: “Tulosanji vyolo-
ções feridos dos angolanos para, en- gresso à terra. Sendo um artista co- cante que, de tanto pobre, a esposa di- meke ño/ Tupayela ava valya/ Akulũ
tão, anunciar as boas novas. E como nhecedor da realidade política do país vorciou-se dele, vetou-lhe a custódia tupopisi ndoco tukalila mwele oco/”:
as principais vítimas do conflito ar- e a situação deplorável por que passa- dos filhos e, por fim, acusou-o de feiti- “Somos galinhas cegas/ Escarafun-
mado tinham sido as populações do vam muitos angolanos, recorre à mú- ceiro. Assim, num estilo profundo, o chamos comida para os outros/ Mais
centro e sul do país, o artista serve-se sica e encontra nesta um meio fecundo artista pranteia: “Ndikalume we/ Ndi- velhos falem por nós/ Se continuare-
dos seus conhecimentos da cultura para consciencializar e, ao mesmo kalume amãi we/ Ndikalume we nda- mos a sofrer assim”.
desse povo e, assim, canta a paz então tempo, denunciar a crise dos direitos citwile vohali”. “Sou homenzinho (não Já a música “Ndatekateka”, a seme-
alcançada e pede aos seus irmãos pa- humanos, visto que, após o término da sou macho) / Eu sou homenzinho, mi- lhança da anterior, representa os gri-
ra regressarem às suas terras, a fim guerra, o governo escusou-se de servir nha mãe/ Homenzinho sou por ter tos de angústia e desespero de um ex-
de reaver os seus bens, rever os seus o povo, negando-lhe o necessário para nascido no sofrimento”. militar que perdeu a mobilidade du-
parentes sobreviventes do conflito e viver e frustrando aqueles que se de- Outrossim, denuncia a injustiça so- rante a guerra e, em consequência dis-
contribuiu, sobretudo, para a união e dicaram à pátria. cial, cujo apanágio é exploração do so, passa a vida a mendigar para so-
reconciliação nacionais. Três das suas músicas corroboram homem pelo homem, em que a maio- breviver, como quem nunca tivesse
Pelo exposto, nota-se no trecho des- com a ideia anterior, a saber: “Ndikalu- ria trabalha árduo e tanto se esforça defendido o país. Enquanto os gover-
ta música: “Ndumbalundo uyakiwane- me” e “Vatekateka” e “Kolofeka”. A pri- para sobreviver, mas, mesmo assim, a nantes ostentam luxo, conduzindo
le kulo/ Cilo wapwa ndityukila kim- meira, cantada num estilo mais rela- riqueza concentra-se nas mãos da mi- viaturas top-de-gama, tendo acesso
bo/ Amanjange ndacipopale/ Ohalielã xante, retrata a vida de um homem noria, a que detém o poder político e a viagens de primeira classe, com di-
ikapwawe/ Tukanda Kovambo etu que, diante das vicissitudes da vida, económico, tendo todos os privilé- reitos à alimentação saudável, saú-
akome/ Tukakala ciwa he…”. Como sente-se desprezado e humilhado por gios, enquanto o povo sofre vivendo de, casas luxuosas, aquele que um
consta, o artista serve-se da língua estar privados dos seus direitos fun- de migalhas. Ainda diz que não teve o dia lutou e perdeu a vida em comba-
umbundo (a segunda mais falada em damentais no seu próprio país para o privilégio de estudar enquanto os te consola-se, portanto, em pirangar.
10 | ARTES 17 a 30 de Dezembro de 2019 | Cultura

Por tais impossibilidades, a vítima temente, de intervenção social muito


sentiu-se privada do direito de ser pai, forte. Analisadas sob o ponto de vista
na medida em que reconhece, diante dos textos literários, as suas composi-
de Deus e dos homens, não ser justo ções musicais cumprem com os pres-
um sofredor gerar filho. Assim, verse- supostos básicos da poesia: lingua-
ja: “OKucita akome ndkusole/ Masi gem conotativa, expressividade, ritmo
kacitava monda kusuku ekandu/ e melodia, o que o torna cantor-poeta.
Ndaotala hale ohali/ Ukanene ukwene Handanga, mais do que músico e exí-
kilu lyeve/ ame ndikuka/Ciñokela mio intérprete, também foi (e ainda é)
okulila”. Tradução: “Eu também amo defensor dos direitos humanos.

_____________________
ser pai/ Contudo, não devo/ É pecado

Domingos de Jesus, natural do


diante de Deus/ Porque se sofres, não

município da Matala, província


deves trazer o outro ao mundo/ Por-

da Huíla. Licenciado em Ciências


tanto, isto dilacera-me, pois estou a

da Educação.
envelhecer sem descendente.”

Autor da obra académica, inti-


Por último, a música “Kolofeka” é

tulada “Além do Diploma” publi-


uma reflexão antropológica e socioló-

cada em 2019.
gica em que estabelece a diferença en-

Poemas na Antologia Interna-


tre a realidade de Angola e a doutras

cional “Versos Textos e Pré-Tex-


nações. Ousado e inteligente, canta:

tos”, do projecto Raízes publicada


“noutros países as crianças têm a hon-

no Brasil, em 2018.
ra de estar na escola a estudar, mas sa/ Akulũ valivela kaputo eh/ ekandu Todavia, além da lamentação e do

Contos e poemas na Revista


em “Angola do sofrimento” as crian- nye olohali valowa…”. Aqui subjaz a desabafo, também explora os ver-

Portuguesa Antologia Logos da


ças passam o dia na lixeira a recolher ideia segundo a qual no governo colo- sos de amor e entretenimento. Tal é

Fênix (2017; 2018).


lixo, enquanto os pais colhem lenha e nial os angolanos tinham uma vida o exemplo das músicas “Paulina”,

Crónicas e artigos em Palavras


produzem carvão para vender (…)”. E melhor em relação ao momento ime- “Okambela”, “Olonamba” só para ci-

& Artes (2018; 2019).


termina dizendo que os mais velhos diato ao cessar do conflito. Tal pensa- tar algumas. Decerto, o músico, im-

É Secretário para Área Cientí-


choram e até sentem saudade do regi- mento, embora depreciativo, é justifi- buído num espírito crítico, concebe

fica do Movimento Cultural do


me colonial, porque o sofrimento é in- cável, porquanto é comum (e sabe- uma música ecléctica, em que se cru-

Cunene. Palestrante.
suportável. Para não nos alongarmos mos disso) vermos crianças expostas zam vários ritmos e mensagens de

E-mail:
no discurso, vejamos estes versos: a garimparem, na lixeira, resto de co- diversas índoles.

jesusdomingosde@gmail.com.
“Kolofeka viamalë omalã vatito/ Va- mida, vestuários, brinquedos e outros Portanto, a música do artista que

Número Telefónico:
saayala kolosikola mãie/ Etu voNgola objectos que os seus pais não lhos po- nos propusemos abordar é rica em di-

925-41-82-37
yongongo amãi we/ Omalã keyala dem comprar. Isto constitui um aten- versos ângulos da arte e cultura. Rit-
okunolã ovinene/ Papai Upange Oka- tado à saúde das crianças e violação mo próprio, voz única e letras de caris

Fernando Lucano: o apanhador de objectos


tyaña olõi/ Okyoka akala lokualandi- dos seus direitos. antropológico africano e, concomitan-

JOSÉ L. MENDONÇA

A
ssistente do artista plástico
António Ole, desde 2012, Fer-
nando Lucano implanta-se na
geografia cultural angolana como um
apanhador de chinelos de meter o de-
do, latas de alumínio, pedaços de me-
tais dispersos por tudo quanto é canto
nesta cidade-musseque, os quais fo-
ram instalados e expostos no Camões-
Centro Cultural Português, desde o
dia 3 de Dezembro.
Com esses materiais reciclados, Lu-
cano faz alguns deles parecer gente
nova, personas (máscaras) descon-
vencionais, lá estão os olhos, as bocas
e a respiração da Arte, com nomes re-
gistados em cupões ao lado: Mistura-
dos, Ferro, Prata, Negro.
Quatro grandes telas do Musseke, te-
cidas com arame, objectos encontra-
dos (chinelos de meter odedo), latas,
plásticos, rolhas e o quadro que dá títu-
lo à exposição (Diversidade Cultural), em crescimento desordenado, uma ci-
bem como outras peças Sem Título. dade que espalha os seus sinais trans-
O trabalho de inspiração (sub)cons- migratórios da alma a esvair-se em
ciente empresta uma mais-valia artís- míticas revoluções, como se o Negro
tica a este conjunto de 15 ARTEfactos tivesse acabado de existir.
de pintura, acrílico sobre tela e costu- A única tela é feita da matéria-prima
ra sobre tela, ao lado de 3 instalações. dos tecidos de que a Vida se entrecru-
Quem é de cá e observa os quadros ex- za, desde o azul inicial da Criação, a in-
postos revê-se em cada um dos objec- venção do calendário num saco de
tos. Revê o seu dia-a-dia, a luta pela plástico, o despotismo da cruz nazi e
sobrevivência, o pó carnal dos chine- as marcas do Mundo, nas línguas que
los que nos caminham nesta cidade o dominam, ou o “made in”.
Cultura | 17 a 30 de Dezembro de 2019 DIÁLOGO INTERCULTURAL |11

30 anos
da queda
T
JOSÉ LUÍS MENDONÇA

do muro
rinta anos depois da queda do
Muro de Berlim, a Alemanha
mudou, tornou-se maior do
que já era dividida, mas parece que a
sociedade humana não mudou mui-

de Berlim
to. Ainda paira no ar o espectro de
outra Guerra Fria. Como explica este
fenómeno mundial?

Concordo só parcialmente com as


suposições da pergunta. Porquê?
1. A sociedade no território da anti-
ga RDA mudou por completo: De uma
sociedade real-socialista para uma
sociedade capitalista de corte neo-li-
beral com alguns vestígios do estado

Efeitos nas relações


de previdência.
2. De uma sociedade colectivista

bilaterais entre
(em grande medida) para uma socie-
dade individualista.

a Alemanha e Angola
3. De uma sociedade com gran-
des carências em termos de consu-
mo para uma sociedade de abun-
dância e de consumismo com ele-
mentos do hedonismo.
3 De uma sociedade com poucas

Jugoslávia se repartiu em vários


possibilidades de viajar (só dentro do

países. Como se explica esta discre-


bloco soviético) para uma sociedade li- russo em direcção aos vizinhos ime- Guerra de 1914-18. Mas ser agressor é

pância no Leste da Europa?


vre, incluindo livre de viajar, mas nem diatos (Ucrânia, Geórgia, Países Bálti- outra coisa do que exportador.

Durante a Guerra Fria, Angola coo-


sempre com os meios financeiros para cos, Bielorúsia) bem como de a Alema-
A Jugoslávia tinha fissuras, divisões,
perava fortemente com a Alemanha
pagar as viagens. nha ser alvo de uma Guerra Híbrida
conflitos etno-linguísticas desde a
do Leste (RDA). Como se traslada-
Mas também, os cidadãos do Oeste (mesmo de baixo nível).
sua criação em 1919. Depois da II
ram os laços de cooperação com
da Alemanha, da antiga RFA, tinham Não vejo de momento um novo expan-
Guerra Mundial, estas diferenciações
Angola da antiga RDA para a nova
que mudar alguns hábitos. P.ex. aceitar sionismo americano, ao contrário (ve-
foram tapadas (e em certa medida ul-
RFA aumentada?
que a capital agora é de novo a Cidade ja-se o caso da Síria, onde a Russia é a
de Berlim,em detrimento da modesta, trapassadas) pelos comunistas de Ti- potência preponderante).
mas querida Bona. Pagar um imposto to e do seu regime, até à morte dele. “Reminiscência psíquiqua do Muro de Infelizmente, os laços de cooperação
especial para financiar os custos da Depois apareceram de novo as divi- Berlim”? Nao vejo isso. entre a antiga RDA e Angola não se

A Alemanha, há muito que deixou


reunificação, entre outros. sões etno-linguísticas e finalmente trasladaram a nova RFA. Hoje em dia,

de ser um país exportador de guer-


Nova Guerra Fria: A hegemonia in- eclodiram numa guerra sangrenta. as ligações entre os dois Estados são

ras, para ser cada vez uma indús-


contestada dos EUA acabou. O EUA Resultado: a divisão de Jugoslavia em bem diminutas, mas sem problemas

tria mundial de ponta. Isto tem a


continuam sendo a potência mais forte 7 mini-estados e uma constante insta- de fundo. Talvéz a próxima visita da

ver com o nível médio de escolari-


do mundo, sem dúvida, mas não tão bilidade nos Balcãs. Sra. Chanceler Angela Merkel trará

dade e o percentual do orçamento


forte como logo após 1989/90. A posi- Na Alemanha, as coisas eram diferen- novos impulsos para a cooperção en-

do Estado para a educação na Ale-


ção dos EUA é contestada entre outros tes: Para os alemães, a Alemanha exis- tre os nossos dois países.

manha de hoje?
tia há séculos, existia um povo, uma
A distensão mundial causada pelo
por parte de (novos) movimentos radi-
cultura alemã, todo isso concentrado
fim da Guerra Fria não trouxe o de-
cais (religiosos de corte musulmano
no centro de Europa, mesmo com
senvolvimento a Angola. A que se
sobretudo, mas também movimentos A Alemanha, desde finais do século
fronteiras não bem definidas e o povo
deve este facto?
de carácter social (Occupy Wallstreet, 1900, foi um exportador de produtos
Attac p.ex.) e ambientais (Fridays for alemão repartido por diferentes es- industrias e isto tem realmente a ver
Future, Extiction Rebellion, Greenpea- tados. Também durante a existência com o nível da escolaridade e da for- Responder a esta pergunta levaria a
ce etc. etc.)). Além disso, outras potên- de dois estados opostos (RFA e RDA) mação profissional da população. E is- um livro de mil páginas sob o título
cias questionam também (e/ou de no- desde 1949, fanzendo parte de dife- to tem que ser financiado, sobretudo “Angola – desenvolvimento tardio
vo) os EUA, tais como a China comunis- rentes blocos políticos, havia um cer- pelo orçamento do Estado, o que é o num contexto interno e externo difí-
ta e capitalista ao mesmo tempo, a Rus- to sentimento de que as populações caso na Alemanha há mais de 200 cil”. Na minha opinião cabe primor-
sia do Sr. Putin, a Índia, os BRICS em naqueles dois estados formam uma anos. Mas há outros “segredos” da po- dialmente aos próprios angolanos,
conjunto. E com os EUA também a NA- única nação, contra toda a propagan- sição alemã no ranking industrial in- que conhecem melhor que eu a histó-
TO é contestada e assim a Europa in- da do regime da SED na RDA, que ternacional: a qualidade das universi- ria recente do seu país, responder a
cluindo a Alemanha. quis constituir uma própria nação dades, a funcionalidade das institui- esta pergunta. Mas talvez um pequeno
Mas eu não chamaria todo isto uma alemã democrata. ções ao redor da indústria (p.ex. as Câ- conselho: organizar um amplo debate

O actual medo da Rússia é uma


nova Guerra Fria. Para mim é uma maras da Indústria e Comércio, o Sis- nacional, sem hesitações e medo, so-

ficção do expansionismo unipo-


consequência lógica de um mundo tema de Controlo da Qualidade etc.). bre o passado, a actualidade e um de-

lar americano ou é uma reminis-


multipolar e da consequente "anar- Alemanha como “exportador de Guer- sejável futuro do país.

cência psíquica europeia do Muro O Doutor acredita que os países


quia de Estados” desde que não temos ra”. Discordo com o termo. A Alema-

de Berlim? africanos, com fronteiras artificiais


um único estado mundial, que aliás nha nazi de Hitler foi o agressor da 2a

geradas pela Conferência de Berlim


nunca haverá – felizmente. Guerra Mundial – sem dúvida – e a Ale-

Um fenómeno curioso é que, en-


Na Alemanha actual não há medo da
de 1885 teriam mais paz e estabili-
manha do Imperador Guilherme II

quanto a Alemanha se reunificou, a


Rússia. O que há é uma certa preocu-
dade num regime federal, igual ao
também acumulava forte culpa por
pação com um novo expansionismo causa da I Guerra Mundial, da Grande
1 2 | DIÁLOGO INTERCULTURAL 17 a 30 de Dezembro de 2019 | Cultura
da Alemanha? Porquê? use os recursos naturais /o ambiente
Regimes federais não trazem necessá- de 1,5 mundos, mas nós temos só 1
riamente paz e estabilidade. Um tal re- mundo. Num mundo finito não poderá
gime tem que ser aceite e vivido pelos haver crescimento infinito e o desafio é
políticos, pelos povos e tem que provar, como organizar que aqueles que se en-
que seja mais vantajoso, que uma outra contram ainda num estado de subde-
forma de organizar o Estado. Não deve- senvolvimento e pobreza para ascen-
mos esquecer, o federalismo alemão é o der a um nível de vida razoável, en-
resultado da nossa história. Em 1871 quanto as sociedades e economias do
uniram-se estados soberanos num só mundo desenvolvido desaceleram o
estado, o Deutsches Reich. A ideia de seu crescimento/uso de recursos e do
um estado centralizado neste momen- ambiente, sem pôr em risco toda a es-
to estava fora da questão. Assim conti- trutura económica mundial.
nuamos até hoje federalizados, saben-
do também que durante a ditadura de Ou seria mais vantajoso um acordo
Hitler, o estado alemão era extrema- internacional sobre regiões indus-
mente centralizado. As nefastas conse- triais e de comércio mundial, com
quências são conhecidas. Mas isto é a quotas de produção e tipos de pro-
dução mundial tal como existe hoje
Uma vez definido este caminho e os ção causada pelo facto que produtos
história de um estado particular. São os
na União Europeia?
primeiros passos dados, talvez haja industrias africanos ”invadirem” al-
povos africanos que têm que debater e espaço para que Alemanha (melhor: gum dia o mercado mundial. A super-
decidir sobre esta questão à luz de dife- diversos actores da Alemanha) pos- produção chinesa tãopouco tem cau- Uma velha ideia de John Maynard Key-
rentes experiências em diferentes esta- sam cooperar e Angola e o seu povo sada uma implosão do mercado mun- nes. Não seria mal. Mas onde ficam as
dos e continentes. possa aproveitar desta cooperação. dial. Os mercados normalmente têm forças necessárias para implementar

Como é que o Sr. vê a cooperação Se Angola e a África tiverem um dia


uma grande plasticidade, um tal sistema económico mundial re-

ideal entre a Alemanha e Angola, o mesmo desenvolvimento indus-


O que vejo como um problema, já ago- volucionário, enquanto os zombies do

capaz de instilar no tecido econó- trial que a Europa tem, não haverá o
ra, são as consequências ambientais do neo-liberalismo ainda dominam as

mico do nosso país o progresso so- risco de o mundo implodir, devido


crescimento económico e do uso de re- instituições em larga medida?

cial, humano e tecnológico? ao colapso dos mercados e à acu- (As respostas do entrevistado são da
cursos naturais/do âmbiente em lar-

mulação dos produtos da super- opinião pessoal dele e não representam


guíssima escala, sobretudo na Europa,

produção ocidental? nem a opinião da Embaixada da Ale-


Mais um livro de mil páginas. Mas an- América do Norte e China mais alguns

manha em Angola, nem a posição do


tes de tudo são os angolanos que tem outros actores (Japão, Coreia do Sul,

A feira AKAA “quer ser um megafone


Governo da Alemanha.)
que definir para si mesmo um cami- Vejo menos provável um colapso de Taiwan, Ásia do Suldeste, Brasil). Isto
nho bem certinho que querem andar. mercados devido a uma superprodu- leva a que a humanidade anualmente

TRIBUNE

para as vozes do continente africano”


Como explicar a influência da arte
africana contemporânea no Ocidente?
Na França, a criação do Revue noire
em 1991 é uma das iniciativas pionei-
ras de divulgação de artistas do conti-

Para Victoria Mann, fundadora da feira de arte contemporânea em


nente. Primeira revista dedicada, pu-
blicada em francês e inglês, foi distri-

Paris, o diálogo iniciado entre a África e o mundo é visível na arte.


buída em todo o mundo, alcançando
assim um grande público. Esta publi-
cação trimestral, publicada em parte
por dois comissários pioneiros do Se-
negal e Camarões, tinha como missão
principal colocar a África no cenário instituições da França assumam a ilu- das Civilizações Negras (MCN) em Da- nada de vendas de arte africana mo-
da arte contemporânea internacional. minação desses artistas: a Fundação kar ou a inauguração de Zeitz Mocaa derna e contemporânea em Paris e
Há muito tempo associado às artes Cartier, a Fundação Vuitton, o Centro na Cidade do Cabo, o maior museu da Londres aumentou quatro vezes, de US
tradicionais, o continente africano gra- Pompidou, o Jeu de Paume, a Casa Euro- África. É importante ressaltar que, $ 7,6 milhões entre 2014 e 2016 para
dualmente começa a ser reconhecido peia de Fotografia ... esse ecossistema embora algumas pessoas o vejam co- US $ 27,9 milhões entre 2017 e 2019, o
por suas cenas contemporâneas. Essa artístico está estruturado e começou a mo um fenómeno da moda, a arte afri- que prova que essa demanda explode.
iniciativa foi um dos gatilhos e, sem dú- se reunir em feiras anuais ou bienais em cana contemporânea agora está anco- A arte africana contemporânea se
vida, foi um dos primeiros passos para a Paris, Europa ou no continente. rada no tempo, graças ao papel activo tornou um mercado completo e está
democratização e popularização da ar- Essas instituições e referências tor- desempenhado pelos actores do con- sendo promovida por artistas de re-
te africana contemporânea na Europa. naram possível tornar estatutárias es- tinente na conversa com os do resto nome internacional, como Yinka Sho-
Muitos eventos se seguiram, mar- sas cenas contemporâneas, até então do mundo. nibare, do Gana, o etíope Julie Mehretu
cando fortemente o crescente interes- pouco conhecidas. O aumento no nú- e o congolês Chéri Samba, o artista
se dos profissionais e do público em mero de visitantes e compradores ali- UM MERCADO COMPLETO mais procurado nas vendas de arte
geral. Um deles, "Africa Remix", sob a mentou a curiosidade da mídia e o mo- Inspirações e realizações emanam de africana contemporânea, que por si só
direcção artística de Simon Njami, foi vimento cresceu. Num ambiente cultu- Lagos, Abidjan ou Casablanca e encon- é responsável por metade das 10 prin-
em 2005, na capital francesa, a primei- ral internacional altamente competiti- tram uma resposta nas capitais inter- cipais vendas especializadas.
ra exposição a oferecer um panorama vo e saturado, a soma de todas essas nacionais da arte, como Paris, Nova O mercado está se estabilizando e a
de oitenta e quatro artistas do conti- iniciativas individuais lançou um mo- Iorque ou Veneza, com a Bienal. Esse arte africana contemporânea tem um
nente africano e seus vários modos de vimento, impulsionado pelo surgi- diálogo iniciado entre a África e o futuro brilhante se conseguir combi-
expressões artísticas. Estes últimos mento de uma nova narrativa africana. mundo é visível na arte e gera a cria- nar sustentabilidade e desenvolvimen-
foram homenageados no Centro Pom- A África fala de si mesma, chama a ção de uma economia real que produz, to. Para isso, é essencial destacar artis-
pidou por quatro meses. Pintura, mú- atenção do resto do mundo e ocupa o comercializa e cria valor. tas e galerias de referência que tenham
sica, fotografia, desenho, escultura, seu lugar no cenário internacional. Ainda é difícil quantificar esse mer- um peso considerável nessa economia.
montagem, vídeo, instalação e design Torna-se impossível esconder as vo- cado nascente, mas os poucos núme- A arte africana contemporânea é uma
foram destaque e atraíram milhares zes do continente africano dessa con- ros publicados mostram que todos os conversa, uma economia compartilha-
de visitantes. versa e AKAA (Also Known As Africa - que são avistados são verdes. De acor- da entre a África e o resto do mundo, na
Também conhecido como África) quer do com o último relatório da Artprice qual a África deve ter a última palavra.
SURGIMENTO DE UMA
Victoria Mann é a fundadora da única
se servir como um megafone. Os em- (2019), em vinte anos as vendas de ar- _________________________
NOVA HISTÓRIA AFRICANA
feira de arte contemporânea na África de
baixadores escolhidos, os africanos e te africana da Sotheby's em Londres
Após o " Africa Remix ", serão necessá-
Paris , também conhecida como AKAA.
suas diásporas estão multiplicando aumentaram dez vezes, para US $ 3 mi-
rios dez anos para que outras grandes iniciativas como a abertura do Museu lhões (€ 2,7 milhões). A soma combi-
Formar-se
Cultura | 17 a 30 de Dezembro de 2019 DIÁLOGO INTERCULTURAL |13

numa ilha
GASPAR MICOLO

É
indiscutível o importante papel
que as bibliotecas desempe-
nham na formação do indiví-
duo. Ao longo de várias civilizações,
desde o Egipto às conhecidas civiliza-
ções marítimas como a grega e a roma-
na, ficou patente a relação entre o pro-
gresso dessas sociedades humanas e a
cultura de acumular e conservar sabe-
res de diversas áreas. Hoje, podemos O académico moçambicano Elísio ainda não fazemos nas nossas acade-
olhar para o acervo das nossas biblio- Macamo, um dos mais destacados so- mias, na nossa economia e, até mes-
tecas e percebemos a qualidade dos ciólogos africanos, lamentou, em en- mo, na nossa consciência histórica. Se
quadros formados no país. trevista ao Jornal de Angola, em Maio não sabemos o que sobre nós se inves-
Formamo-nos com poucos recur- último, a fraca cooperação entre as uni- tiga, e nem sobre os outros, não pro-
sos. As nossas bibliotecas carecem de versidades africanas. "Acho que a coo- gredimos. Não competimos. Não nos
livros fundamentais de diversos cur- peração é fraca, infelizmente. Podía- actualizamos. Ou seja, não participa-
sos. Por exemplo, na entrevista que mos fazer muito mais. Não trocamos mos "validamente" na construção de
nos concedeu no Jornal de Angola, em publicações, por exemplo. Há muitos um saber universal.
Outubro último, o director da Biblio- colegas que gostariam que os seus es- O prestigiado Collège de France, es-
teca Nacional, João Pedro Lourenço, tudantes tivessem acesso aos meus li- cola criada em Paris, no Quartier La-
reconheceu que há "um défice muito vros metodológicos, mas não existe ne- tin, em 1530, de orientação humanis-
grande" na aquisição de obras recen- nhum convénio que torne possível a ta, para competir com a Sorbonne,
tes publicadas no estrangeiro, sejam sua publicação em Angola. Eu tenho (criada no século XIII), fez recente-
sobre Angola ou sobre alguma área que trazer os livros na mala e vender ou mente uma revelação interessante!
fundamental do saber. Aliás, basta oferecer os poucos exemplares que o Cinco séculos depois da sua criação, a
olhar para o catálogo, ainda manual, excesso de bagagem permite... é uma instituição dedica agora uma cadeira
René Pélissier
da instituição que gere a rede de bi- pena", disse o investigador que esteve permanente à História da África Anti-
bliotecas públicas. E aqui é importan- em Angola a convite do Centro de Estu- ga, uma área que conta com poucas Nouvel Observateur (L´OBS), o ainda
te lembrar que, além da falta de uma dos Jurídicos, Económicos e Sociais dezenas de renomados especialistas persistente "mito da não historicida-
simples aquisição de publicações pe- (CEJES) da Faculdade de Direito da ao nível do Mundo. de" das sociedades africanas "que se
riódicas e não periódicas, o país ainda Universidade Agostinho Neto. Collège de France, cujo lema é "do- exprime até nos manuais escolares,
se debate com a perigosa inexistência O historiador francês Réne Pélis- cet omnia", isto, "ensinar tudo", pre- bastante limitados a era colonial, co-
de traduções de obras lançadas até sier, considerado um dos investigado- tende assim fazer justiça a isso, con- mo se nada tivesse passado antes de
mesmo no continente africano. Reco- res mais densos da História colonial tando com os seus professores consi- África se reduzir a um espaço passivo,
nhecemos o esforço da Faculdade de portuguesa e da dos países de expres- derados brilhantes em muitas espe- que se deixou descobrir, colonizar, de-
Ciências Sociais da Universidade são portuguesa, já chamava a atenção, cialidades. Um deles é exactamente o pois descolonizar".
Agostinho Neto em traduzir já deze- em 1980, numa entrevista à antiga re- historiador e arqueólogo François-Xa- François-Xavier Fauvelle lembra
nas de obras de pensadores africanos vista "África", para o problema acima vier Fauvelle, titular da cadeira agora que, os enviados das potências euro-
e africanistas. Um trabalho louvável. descrito: "(...) É absolutamente indis- criada, que ostenta no currículo mais peias, nomeadamente, administrado-
Se ao menos metade das universida- pensável que os lusófonos de África de 150 textos científicos e uma vinte- res, militares, polícias, sacerdotes, ela-
des se dedicasse a essa tarefa, tería- conheçam o que sobre eles próprios se na de obras, muitas das quais sobre a boraram um conhecimento adquirido
mos de certeza trabalhos de referên- publica no domínio das ciências hu- História da Idade Média Africana. no terreno, e igualmente construído
cia mundial nas nossas bibliotecas. manas, caso contrário condenam-se a Investigador que viveu vários anos em relatórios de dominação e confis-
não fazer quaisquer progressos". Ora, em diversas cidades africanas, Fran- co. "Actualmente, os objectos de co-
é esse progresso que, afinal, quase çois-Xavier Fauvelle lamentou, à pro- nhecimento de África estão na maior
quarenta anos depois da entrevista, pósito do desafio, à revista francesa Le parte das instituições do Norte. A con-
quista colonial foi também uma con-
quista do passado".
O historiador recorda, em entrevis-
ta, a diversidade do continente africa-
no, indicando as mais de 2.400 lín-
guas, as diferentes religiões, organiza-
ções políticas, etc. "Por que as socieda-
des africanas engendraram uma tal di-
versidade, enquanto os seus vizinhos
europeus não paravam de se homoge-
neizar ? Isto permite questionar a His-
tória da Europa a partir de África",
avança François-Xavier Fauvelle.
O que tudo isso sobre o Collège de
France tem que ver com as nossas bi-
bliotecas? É que os estudantes da nova
cadeira terão acesso a livros e a artigos
que os seus homólogos de África, e em
particular de Angola, não têm. E se "os
objectos de conhecimento de África
estão na maior parte das instituições
do Norte" e "a conquista colonial foi
também uma conquista do passado",
então não conhecemos se não resgata-
mos os referidos objectos e nem se-
quer sabemos o que sobre eles se es-
creve. Ao menos deveríamos saber pa-
François-Xavier Fauvelle foi eleito no meio
ra confrontar com a agora valorizada
de especialistas que discordam das suas posições rica tradição oral.
14 | DIÁLOGO INTERCULTURAL 17 a 30 de Dezembro de 2019 | Cultura

Luís Damião
vai participar na 12ª
edição da Bienal Africana
de Fotografia,
em Bamako numa ilha
B
ienal Africana de Fotografia, nia, Europa, América) e no conti-
“RENCONTRES DE BAMA- nente africano. Através da dinâ-
KO”, que decorre de 30 de mica da fotografia é uma ques-
Novembro de 2019 a 31 de Janeiro tão de dar origem a correntes
de 2020, a decorrer na cidade de de consciência que nascem de
Bamako, Mali. e para além das costas do
Com o tema “STREAMS OF continente Africano.
CONSCIOUSNESS” e direcção artís- Encontros de Bamako é
tica do camaronês um dos eventos mais impor-
Bonaventure Soh Bejeng Ndi- tantes do continente dedica-
kung, a bienal vai dedicar uma re- do à criação contemporânea e
trospectiva em homenagem e cele- uma notável plataforma de vi-
bração do 25º aniversario do festi- sibilidade para os fotógrafos e
val. “STREAMS OF CONSCIOUS- videastas da África e sua diás-
NESS” refere-se a uma letra do mú- pora que participam da cele-
sico Abdullah Ibrahim, como uma bração da fotografia con-
conversa alma-a-alma, com ênfase temporânea com profissio-
na noção de diálogo entre o conti- nais e o público em geral.
nente e as suas diásporas, incluin- Representado pela galeria
do as pontes que compõem e ani- de arte contemporânea ango-
mam o universo africano. África há lana THIS IS NOT A WHITE CU-
muito que deixou de ser um concei- BE, Luís Damião vai participar
to geográfico limitado ao seu espa- na Bienal Africana de Fotografia
ço geográfico. Como um conceito numa parceria com a Associação
global, a África está preocupada Franco-Angolana Alliance Française
com pessoas de de Luanda e a Embaixada da França
ascendência africana espalha- em Angola, e com apoio de TOTAL,
das por todo o mundo (Ásia, Oceâ- EP Angola e DIMASSABA.

Biografia do artista
Luís Damião nasceu em Luanda, em 1978, numa família com fortes raízes artísticas. Filho do fotógrafo e foto-
jornalista angolano Paulino Damião (Kota 50), e irmão do artista plástico Lino Damião, Luís Damião não diferiu
na paixão pelas câmaras fotográficas, pincéis, espátulas, tintas e telas.
Envolveu-se desde cedo com o mundo da arte e da cultura como auto-didacta, dando os primeiros passos no
universo da fotografia pelo impulso do pai e inspirado pelo irmão, altura que já frequentava o atelier do consa-
grado e falecido artista plástico Victor Teixeira (Viteix).
Em 2002 apresenta-se publicamente pela primeira vez através do projecto artístico colectivo denominado “Art
&Moda”, realizado no Espaço Cultural Elinga: uma exposição de jovens artistas de reconhecido talento nas moda-
lidades de pintura, escultura e moda.
Em 2012, realizou a sua primeira exposição individual de fotografia intitulada “Mulheres do dia-a-dia” na Ga-
leria De Maio na UNAP. Nesse mesmo ano, publicou fotografias da sua autoria no livro de estudo e defesa da arqui-
tectura, lançado para o Prémio Fernando Távora 2012, instituído pela Secção Regional do Norte da Ordem dos Ar-
quitectos, em Portugal.
O ano 2013 foi um dos mais interventivo na carreira do artista: participou na exposição do colectivo de jovens
artistas da oficina Kapela e no projecto “Cores do Verão”, ambos apresentados no Espaço Cultural Elinga.
Em 2014, Don Ruela e a Oficina Kapela lançam o projeto Ex-Por-Arte no Espaço Cultural Elinga, no qual Luís Da-
mião participa com fotografias.
Luís Damião O seu mais recente projecto centra-se na prática artística da fotografia e no desenvolvimento de novos supor-
tes, de novos meios de produção técnica e de apresentação desenvolvidos em atelier.
Cultura | 17 a 30 de Dezembro de 2019 BARRA DO KWANZA |15

A coita do mano Dadão


voltar a casa, de onde nem sabia como porque o miúdo deixou o portão aberto lar isso, verás o que te faço!...
saíra, porque andava sempre acuada por descuido. Faz favor, meu marido vai Nessa noite, o pai ficou tão abespi-
no seu curral. No afã de ver o jogo a re- me matar! nhado que nem sequer jantou. A mãe já
tomar, todos os jogadores juntaram- O motorista não respondeu. Abriu as não ficou triste. Mas eu fiquei com pena
se à empreitada. mãos em jeito de pedido de licença. A dela, a minha boa mãe que me livrara
Quando esta começou a mostrar-se mãe deixou-o passar. Antes de o camião de apanhar uma boa sova do nosso ri-
frutuosa, surgiu um camião que se arrancar, as vizinhas começaram a sol- goroso pai.
FRANCISCO transformou num óbice para a Zá, for- tar apupos. Acusavam os homens de ga- Meses depois, o pai transformou o
NETO çando-a a desviar os seus adiposos tunos. Diziam que eles estavam a fazer curral da Zá num galinheiro e comprou
quatro pés do caminho que a levaria à yulas com os porcos dos pobres e inde- duas galinhas da “vicuca”. As galinhas
nossa casa. Parado o camião, três ho- fesos cidadãos, porque a Câmara não eram fortes, pareciam a Zá em miniatu-
mens saltaram da carroçaria. Um deles trabalhava nos sábados. A minha mãe fi- ra. Passados dois dias, o pai pulou como
trazia uma enorme rede nas mãos. cara tácita. Num repente, um ingente lu- um imberbe que ganhou um belo carri-
– Eh!!! Estes tios são da Câmara, vão to tornara-se o governo do seu rosto. Eu nho como presente de aniversário ao

U
m sonoro coral de vozes des- levar a porca!! – Vozeou o Lima. também a imitara. Na minha mente, gi- descobrir que uma das galinhas ovara
compassadas levou-me a des- Apavorei-me. À laia de velocista pro- ravam as palavras dela: “estou a limpar duas vezes nesse dia. Era uma poedeira.
pertar com assombro. Os ami- fissional, saí com grande corrida nos o curral e a porca saiu porque o miúdo O pai passou a ter um largo sorriso no
gos chamavam-me para jogar à bola. pés para chamar a minha mãe. Em casa, deixou o portão aberto por descuido”. rosto por culpa da sua galinha que ova-
Era o primeiro sábado das nossas “fé- encontrei-a dentro do curral da Zá. Fa- Fui para casa com a mãe. O jogo da- va duas vezes por dia. Ufanava-se por
rias grandes”, que, naquele tempo, zia limpeza. Assim que ela ouviu falar quela sabática fria manhã deixara de ter conseguido uma grande compra.
aconteciam no Cacimbo e era também de Zá e de tios da Câmara, fez-se pávida. ter importância para mim. Engravidei- Muitos dias eram passados, quando,
o dia de início do campeonato de fute- Na rua, encontrámos os tios da Câmara me de medo, porque sabia que o meu numa certa manhã de sol impiedoso, o
bol organizado pelo Lima, que era o a lutarem para meter a Zá no camião. A pai tinha planos de matar a Zá na Qua- pai nos acordou com grande pavor na
mais dinâmico jovem da nossa zona. mãe chegou impetrante, mas os tios pa- dra Festiva, inclusive já havia prometi- voz. Ao sairmos, vimos a poedeira em
Assim que notara a clareza, pelas fres- reciam que não a ouviam. Continuaram a do a alguns parentes que lhes enviaria cima do tecto do nosso vizinho.
tas das paredes de madeira da nossa pugnar contra a Zá, que os obrigava a carne de porco no Natal. – Dadão, Mateus e Kito, vão a correr
humilde casa, de imediato deixara de suar. A nossa gorda porca soltava agoni- À tardinha, quando ouvi a voz do meu agarrar a galinha!! – Ordenou-nos.
ser mandrião pós-sono. zantes berros. Algumas vizinhas junta- pai, corri e anichei-me debaixo da cama. Metemos o pavor do pai nos nossos
Depois de rápido asseio, achei-me na ram-se à minha mãe. Mais pedidos supli- Meu medo agigantou-se, deixando o pés. Quando chegámos ao quintal do
rua, onde o jogo estava prestes a iniciar. cantes aos tios da Câmara. Contudo, meu corpo com grandes tremuras. Pa- vizinho, já a poedeira tinha saltado pa-
As duas equipas já estavam no campo. mostrando-se frígidos aos requestes do recia que já sentia as mangueiradas que ra outro tecto. Seguimos a galinha, que
Assim que o nosso mister, o Man Sabas, mulherio, um quarto homem juntou-se decerto apanharia nesse dia. Minha pulava de tecto em tecto, até que fomos
me viu, bateu repetidas vezes com a pal- ao séquito. Era o motorista. Desse jeito, à mãe seguiu o meu pai ao quarto e anun- parar fora do nosso bairro, que ainda se
ma da mão direita no pulso da sua mão Zá não restara outra opção: fora derrota- ciou-lhe a desgraça. Para gáudio meu, chamava oficialmente Popular. A poe-
esquerda. Com aquele gesto censurava- da e aumentara o número de porcos na ela assumira todas as culpas. Dissera deira foi parar na Calemba.
me pelo atraso. Sem justificações, jun- carroçaria, que passara a ser cinco. que a porca saíra quando fora deitar os Cansados, mais pelo sol que nos açoi-
tei-me ao grupo de jogadores suplentes. Com grande arrelia maculada no ros- seus estercos na rua. tava com os seus fortes raios, eu e o ma-
O Lima, nas vestes de árbitro, deter- to, minha mãe, ladeada de duas vizi- Horas depois, já livre do medo que me no Mateus desistimos. O mano Dadão,
minou o início do jogo. Decorridos cer- nhas, tornou ínvio o caminho do moto- deixara a vibrar como um telemóvel, que talvez temesse que o fracasso re-
ca de dez minutos, uma nédia porca rista. Apesar de estar assaz furibunda, que não existia naquele tempo, fiquei sultasse em surra para si, continuou a
forçou a primeira paragem. Levei as era visível que ela mantinha um certo azabumbado quando vi o pai a chatear- acossar a poedeira, que não mostrava
duas mãos à cabeça: reconhecera-a de respeito por aqueles homens. se como um touro que tinha um tourei- sinais de cansaço. Chegados a casa, en-
imediato. Era a Zá, a nossa porca. Pedi – Minha senhora, saia do caminho, ro com um pano vermelho à frente de si contrámos o pai com um potente arru-
que os amigos me ajudassem a fazê-la por favor. Se não tens condições não porque a mãe dissera que os homens da fo estampado no rosto. O sorriso largo
voltar a casa. podes criar porcos. Aqui é na cidade, Câmara que levaram a Zá eram gatunos. dos últimos tempos sumira.
A Zá era uma porca muito forte. Esta- não pode ter porcos a andar de cima a – Gatunos uma ova!! Merecias mazé – Pai, estamos a sair da Calemba. A
va em nossa casa há mais de sete anos e baixo e a borrar as ruas com cocó como apanhar umas boas lambiscadas para galinha está a voar bué, mas o mano
nunca procriara por falta de parceiro. se estivéssemos num quimbo. aprenderes a cuidar dos animais e a Dadão continuou atrás dela. Nós esta-
Nessa manhã de sol tépido, a garotada – Senhor, não vês como estou suja?! respeitar os homens que trabalham em mos muito cansados. – O mano Ma-
mostrava-se impotente para a fazer Estou a limpar o curral e a porca saiu nome do Estado. Se um dia voltas a fa- teus avisou.
16 | BARRA DO KWANZA 17 a 30 de Dezembro de 2019 | Cultura
A mãe consolou o pai dizendo que o reita, estava a poedeira. Vendo-o, o pai ainda copiar a seguinte mensagem: “pe- De súbito, o pai, nervoso como uma
Dadão iria conseguir agarrá-la, fruto da fez nascer fulgor nos olhos. Porém, fora lo menos a galinha poderemos comer, pacaça ferida, saltou para cima do ma-
experiência que tinha conseguido no efémero porque, abeirado do local on- não é como a Zá que foi levada pelos ga- no Dadão, que não teve um fado igual
tempo em que andara no quimbo, em de estávamos, o mano Dadão lançou a tunos”. Levantou-se. Foi à cozinha pre- ao que tive com a Zá. Quando a mãe e o
casa do nosso avoengo materno, e se poedeira ao centro. Estava morta. parar uma panela com água para cozi- vizinho Chico acudiram, o mano Da-
dedicava à caça. O pai meneou a cabeça – A galinha morreu de tanto correr, nhar a poedeira. Nós ficámos a consolar dão já tinha apanhado umas boas cha-
descrente. Estava sem esperanças. De pai. Morreu de cansaço. – Disse. o pai com um tumular silêncio, que se padas e uns bons pontapés. À noite,
seguida, a mãe contou-nos que a poe- Silêncio total. Todos sentimos pena quebrou com a abertura do portão. sentados à mesa, a ordem do nosso pai
deira escapara porque o pai limpava o do nosso pai. Instantes depois, a mãe, – Oh! A galinha morreu mesmo?!... Mas foi inexorável:

Ngandala kutambula wanga


galinheiro. com outras palavras, disse que não po- também era impossível resistir àquela – O Dadão não vai jantar. Não pode
O mano Dadão apareceu pelo portão. díamos continuar a chorar pelo leite toda surra que o Dadão lhe estava a dar. – comer a galinha que matou sem
Estava suado e ofegante. Na sua mão di- derramado. Nestas palavras dela, pude O nosso vizinho Chico surdiu prosador. autorização!

eme. 7. - Mukonda dya kyenyeki pe,


mwolongimona kuma ngalembwa ku-
fikisa kwimana ngo kofele omukutu. 8.
- Onzala iyi ya dikota yene yondon-
gyambata mwalunga!9. - Eye pe, manu,
tutangele hanji inyi iwandala eye, ni tu-

MÁRIO
tene kukufikidila; ni tutene kukulemb-

PEREIRA
wesa kubela kyenyeki kala minya ya
mbiji ya salakalu aidile mu kifwa kya
menya ndungu mu kizuwa kya sabalu
mu ngoloxi. 10. - Jipange jami, eme
ngasakidila okuswina kwenu kwoso

1
. - Ngolo mimenekena. Enu ma- kwa kungikumbulula inyi ingamesena,
wazekele kyambote? - Etu twa- ni mutene kungilembwesa kukala mu
zekele. Eye we? wadyama wenyo uzumbuka mwenyu

-
Eme ngazekele kyambote, jipange wa mutu anga mwene kandale hanji
jami. 2. - Eme dijina dyami Mango- kukala mu kilunga kya kufwa, kala eme
loloma Ngongo, ngimona ya Ngu- mwene ngala benyaba ku polo yenu.
ma ya Ngongo ni Donana dya Maniku; 11. - Ngamiximana jipange jami… 12. -
angivwalela mwazanga mu Lwanda Eye wolodibota kyavulu, manu. 13. -
benyaba, butandu dya kalunga ka me- Twandala utwambela ngo inyi i wan-
nya. 3. -Inyi iwandala eye? 4. - Ngeza dala eye, ni tukufikidile. 14. - Eye utu-
kumitangela kuma ngabwila izuwa yo- tangela ngo inyi iwamesa nitutene
so kukala ni nzala ni dinyota tunde kya kwijiya seye wafwama hanji kukala ni Iyi, yene yoso ingandala mungibana. kala ni kitadi kyavulu. 28. - Kulengesa
ngivwalela. 5. - Se mwala mu ngongo mwenyu anga kana. 15. - Seye wafwa- Kuwabu. 19. - Yene ngo iwandala, ma- jinguma. 29. - Kujimisa kufwa. 30. - Ku-
ndumba dya atu adya, anwa; atu ma kukala hanji ni mwenyu, tubinga nu? 20. - Iyi, manu, kyadifangana ni vudisa menya. 31. - Kulembwesa kudi-
alembwa kukala ni nzala ni dinyota, kwa Nzambi o ufikidilu iwamesena; ubingilu wa wadyama. 21. - Yene mwe- la mu tambi. 32. - Kulembwesa mutu
eme we ngafwama kukala kyenyeki ka- seye ki wafwama kukala ni mwenyu ne ngo iwandala, eye u pangyetu? 22. - kuya mwalunga mu uxikelelu wa usu-
la Nzambi watuxindi mu ngongo mu Tubinga kindala kwa kadya pemba uk- Iyi, yene yoso mwene ingandala. 23. - ku. 33. - Kujimisa uzembu. 34. - Kuku-
twala. 6. - Senu mwangimono ngabele wambate kya ki ukale dingi ni kufwa Usoneka kamukanda, manu, ni ubinge disa ukamba. 35. - Kulembwesa atu ku-
kya kala minya; ngakukuta kya kala ku mbanji ye. Dibote kya. 16. - Eme yoso i wandala eye. 24. - Wasoneka dizwila. 36. - Kulengesa akwadimi. 37.

Quero receber feitiço


mukwa nzala unyungana mu izuwa yo- ngandala kutambula wanga! 17. - O mukanda, mwenyomo anga ubinga: - Kuvudisa mufete ni muzonge mwa-
so ni utene kudisanza; ni utene we wanga una wabeta mukukola ni ngite- 25. - Ngandala kutambula wanga ni zanga mu Lwanda benyaba. 38. -I yi,
hanji kutunda mu wadyama mu ngala ne kulunga kufwa kwangizukama. 18. - ngitene: 26. - Kulengesa nzala. 27. - Ku- yene yoso ingandala eme!

1
.- Estou a cumprimentar-vos. verão que estou magro como uma espi- eu mesmo que me encontro aqui à no, com o pedido de um desgraçado!
Dormiram bem? - Dormimos nha; estou seco como um faminto que vossa frente. 11.- Estou-vos muito 21.- - É só isso mesmo o que preten-
bem. E você? - Dormi bem, meus anda de um lado para o outro, todos os agradecido, meus irmãos. 12.- – Es- des, ó irmão nosso? 22.- – Isso é tudo
irmãos.2.-Chamo-me Lamentos do dias, para que me possa curar desta si- tás a falar demais, mano. 13.- Quere- o que pretendo, meus irmãos. 23.- –
Mundo, filho de Inimigo do Inimigo e de tuação; para que possa sair dessa pe- mos apenas que nos digas o que pre- Escreve uma cartinha, mano, e, nela,
Donana Maniku, nasci aqui, na ilha de núria em que me encontro. 7.- Por isso é tendes, para que te possamos ajudar. pede o que quiseres. 24.- Escreveu a
Luanda, em pleno mar. 3.- - O que pre- que estais a ver que nem consigo expe- 14.- Conte-nos apenas o que preten- carta em que pedia: 25.-Quero rece-
tendes? 4.- - Vim dar-vos a conhecer rimentar aprumar o corpo. 8.- É essa des, para sabermos se ainda mereces ber feitiço para que possa: 26.- Afu-
que estou cansado da fome e da sede fome extrema que me há-de levar para estar vivo ou não. 15.- Se ainda mere- gentar a fome. 27.- Ter muito dinhei-
desde que nasci. 5.- Se há muita gente a eternidade. 9.- Mas, ó mano, diga lá ces estar vivo, pedimos ao divino a ro. 28.- Afugentar inimigos. 29.- Ex-
no mundo que come, que bebe; gente o que pretende, para que possamos aju- ajuda que mereces; se já não mereces tinguir a morte. 30.-Fazer com que
que não conhece a fome e a sede, eu dar-te; para que possamos impedir-te estar com vida pedimos agora ao de- haja muita água. 31.- Impedir que se
também mereço estar como Deus defi- de emagrecer dessa maneira, como a mónio que te leve, para que te livres chore no óbito. 32.- Impedir que uma
niu para nós neste universo em que nos espinha dum peixe salgado comido em de ter a morte, permanentemente, a pessoa siga para a eternidade na es-
encontramos. 6.- Se olharem para mim, forma de menya ndungu de sábado à teu lado. Desembucha, pá. 16.- – Eu curidão da noite. 33.- Extinguir o
tarde. 10.- - Meus irmãos, agradeço a quero receber feitiço! 17.- Feitiço do ódio. 34.- Fazer crescer a amizade.
vossa coragem por me terem abordado mais rijo, para que possa vencer a 35.- Impedir que as pessoas se enfar-
sobre o que pretendo, a fim de me impe- morte que me acerca. 18.- Isso é tudo tem. 36.- Afugentar os linguarudos.
ISSN 2617-7986

dirdes de estar nesta desgraça que fina o que quero que me ofereçam. Pron- 37.- Fazer crescer o volume do mufe-
a vida de uma pessoa, mesmo que ainda to. 19.- -- É só isso o que pretendes, ó te e o caldo, aqui na ilha de Luanda.
9 772617 798007
não queira estar na fila da morte, como mano? 20.- Isso parece-se, ó meu ma- 38.-É tudo o que desejo!

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