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Cultura

Jornal Angolano de Artes e Letras


17 da 29 de Abril de 2019 | Nº 180 | Ano VI • Director: José Luís Mendonça ..... Kz 50,00

ECO DE ANGOLA
Pág.
3-5

Prováveis
“origens”
Ovimbundu
A abordagem sobre versões relativas às
“origens” civilizacionais planálticas, no
caso da variante etnolinguística
“mbundu” de estrato sociocultural muntu
(pl. bantu, vantu), passa pela análise da
perspectiva etno-histórica. Quanto ao
etnónimo “mbundu”, sendo nevoeiro em
umbundu - «ombundu, “o nevoeiro”»,
excluído o artigo “«o»mbundu”, designa
as socioculturas emergidas de chefaturas
dispersas ao longo da faixa direita dos
médio e baixo Kwanza, os “«a»mbundu”,
e ao longo da faixa esquerda dos médio e
alto Kwanza, os “«ovi»mbundu”.
Naqueles, a variante linguística é
“«ki»mbundu” e este fala “«u»mbundu”
pelo que chamam-se «ovimbundu “gente
das zonas de nevoeiro.

Pág.
LETRAS 6 HISTÓRIA Pág.
10-12 ARTES Pág.
8-9

Arte angolana
A emergência na vitrina
África e a do Estado mundial
normalização angolano
ortográfica e o seu
da língua reconhecimento
portuguesa internacional
2 | ARTE POÉTICA 17 a 29 de Abril de 2019 | Cultura

POEMA DE MÁRIO PEREIRA Normas editoriais


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Lendo
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Propriedade
(I)
Lendo, avanço e rechaço o poder da vera malícia
Que incessante me segue a qualquer hora do dia!
E mesmo lendo à meia-luz da minha triste candeia
Aprendo a ler a dor estampada no rosto sem carícia
Que enleva quem na dor cultiva amor; uma ideia Sede: Rua Rainha Ginga, 12-26 | Caixa Postal 1312 - Luanda
Redacção 222 02 01 74 |Telefone geral (PBX): 222 333 344
Capaz de apagar a labareda que acende; incendeia Fax: 222 336 073 | Telegramas: Proangola
O rosto em espanto; a cubata em cuja ira se sacia! E-mail: ednovembro.dg@nexus.ao
(II)
Lendo, dou alento à vida que se activa, que aviva Conselho de Administração
Outras vidas, sem muita vida, que se esvaem Victor Silva (presidente)
E se contraem quando alguém ainda vem
Para lugar que não lhe pertence e ali se motiva! Administradores Executivos
(III) Caetano Pedro da Conceição Júnior,
Lendo, activo o pensamento. Que momento! José Alberto Domingos, Rui André
E, ávido de querer saber o que ainda virá Marques Upalavela, Luena Kassonde
Desfolho o meu livro para ver se ainda há Ross Guinapo
Algo que possa merecer o meu consentimento!
(IV) Administradores Não Executivos
Lendo, assino a minha sorte, meu passaporte Filomeno Jorge Manaças
Para um novo patamar que nunca foi meu Mateus Francisco João dos Santos Júnior
Porém, apesar de enigmático, juro não ser teu

Cultura
O vigor com que laboro o presságio da minha sorte!
(V)
Lendo activo festivo a hora da minha chegada
E, mesmo que seja madrugada, creia, estarei lá
Jornal Angolano de Artes e Letras
Onde ninguém me espera, mas onde sei que há
A ansiedade que alenta a espera da hora marcada!
(VI)
Nº 180/Ano VII/ 17 a 29 de Abril de 2019
Lendo, acendo a luz apagada na escuridão E-mail: cultura.angolana@gmail.com
Por quem activa o desalento aceso na alma site: www.jornalcultura.sapo.ao
Cuja chama, inflada em sopro de vera malícia Telefone e Fax: 222 01 82 84
Expande a dor ornada em vil amor que alicia CONSELHO EDITORIAL
Outro mal não menor: o luto que viva alma
Ostenta enegrecendo o corpo na sofreguidão! Director e Editor-chefe:
(VII) José Luís Mendonça
Lendo, avivo a esperança de não ser quem sou Editores:
Que nunca soube o que é isso de ser alguém Adriano de Melo e Gaspar Micolo
Que mantém vivo o ar festivo que me sustém
Sem vintém que alente a calma que se esgotou! Departamento de Paginação:
E quando a esperança se mantém mais além Irineu Caldeira (Chefe), Adilson Santos (Chefe adjunto),
Queiram que é por não possuir aquele vintém Adilson R. Félix, Sócrates Simóns, Jorge de Sousa
Que possa atrair o livro para mim; onde estou! e Waldemar Jorge
(VIII) Edição online: Adão de Sousa
Lendo, apego-me à vida como ao ar incontido
Como ao ar que respiro sem qualquer espirro Colaboram neste número:
Que me faça tremer a alma falida, mas embirro Angola: Armindo Jaime Gomes, Francisco Neto, Mário
Quando o meu livro emprestado não é devolvido! Pereira
E quem diz que me vê em mui vil e vero acirro
Sabe que é por meu livro ausente que me mirro Moçambique: Bento Sitoe
Por sentir na alma o vazio que me deixa combalido!
(IX) FONTES DE INFORMAÇÃO GLOBAL:
Lendo, vou descobrindo o intento do mundo Afreaka, Africultures, Portal e revista de referência, Agulha,
Que é mudo quando a maldade que urde Correio da Unesco, Modo de USAR & CO,
Só pode ser vista se o fogo que ateia arde Obvious Magazine e Engenharia é.
Extinguindo a vida de quem é submundo!
Cultura | 17 a 29 de Abril de 2019 ECO DE ANGOLA | 3
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Prováveis “origens”ovimbundu
em conexo com os seus totens. Salvo gola. Povo, «dos povos miscigenados» A (i) explosão demográfica periféri-
este exemplo, torna-se difícil saber (cfr Gomes, op. cit.), de quase todos os caconsubstanciada em alta natalidade

ARMINDO
desde quando se chama “mbundu” aos vértices da paisagem etnolinguísti- (Coelho, 1966), 6-7 membros por nú-
complexos socioculturas, mais ou me- caangolana incluindo as descendên- cleo familiarem média e baixa mortali-
JAIME GOMES nos distintos em história, muito in- cias ocidentais mercantilistas e orien- dade, (ii) as excelentes condições geo-
fluentes no contexto sociopolítico an- tais de além-Kasay; baluba, matembe- climáticas caracterizadas por altitu-
golano, mas a expansão etnonímica re- le, baxilele, marutzes do lago Niassa, des médias entre 1800m a 2650m do
laciona-se com a desintegração da len- árabes-swahili, assim como os vank- nível do mar: Mbave, 2060m; Kasolo,
dária nação Kulembe (Miller, 1995), ci- humbi, ovambo,zulu,libertos e escra- 2225m; Holokoko, 2350m; Ndembe,

A
vilização pré-mercantilista, sem gran- vos fugitivos dosentrepostos comer- 2410m; Kapanga 2520m; Luvili
abordagem sobre versões rela- des referências historiográficas pois, ciais litorâneos e carregadores serta- 2610m; Moko, 2620m,altas precipita-
tivas às “origens” civilizacio- além das descrições deste autor, de- nejos mercantilistas. A relação com o ções em clima temperado e seco, 17.3º
nais planálticas, no caso da va- poimentos de alguns sobas de Bocóio e oriente, «ko ngangela», prendeu-se a 26.3ºem media anual e a humidade
riante etnolinguística “mbun- Balombo, participantes aos preparati- com a importação de escravos, gado do ar entre 56% a 76%, (iii) com qua-
du”de estrato sociocultural muntu (pl. vos do «I Encontro Provincial das Au- bovino, borracha e marfim, corres- tro meses de cacimbopor ano (Maio,
bantu, vantu), passa pela análise da pers- toridades Tradicionais em Benguela» pondente à expectativa mercadológi- Junho, Julho, Agosto); (iv) a abundân-
pectiva etno-histórica, desconstruindo de 2002 (Arjago: 2002), iludem ter ha- ca da época (Redinha, 1975:226). cia de caça e pastorícia, (v) fertilidade
osetnónimos,topónimos, antropóni- vido um poder endógeno Kulembe, no “Povo de muitos povos” (id.:ibid.), dos solos com jazidas metalúrgicas de
mos, zoónimose fitónimos. Quanto ao et- perímetro montanhoso da faixa litorâ- assim caracterizados porque no de- fácil alcance, (vi) promissores merca-
nónimo “mbundu”, sendo nevoeiro em nea adjacente ao planalto central entre correr da históriaumbundu formou- dos de consumo das manufacturas e
umbundu - «ombundu, “o nevoeiro”», os vales dos rios Longa,Keve, Kutatu, se um conjunto socioculturalunário pacotilha vária e de exportaçãonegrei-
excluídoo artigo “«o»mbundu”, designa Kunynga e Katombela, cujo triângulo sem que assim acontecesse na orga- ra, borracha, marfim, etc., tornaram o
as socioculturasemergidas de chefatu- em referência faz-se coincidir com a et- nização sociopolítica. “Povos dos po- planalto central em aprazível área de
ras dispersas ao longo da faixa direita nogeografia descrita por Miller (1995: vos ovimbundu”, diz Redinha (cfr op. acolhimento e assentamento de dis-
dos médio e baixo Kwanza,os “«a»mbun- 90-91)correspondendo com Kalulu, cit.) que, “do ponto de vista da antro- tintas raças e culturas do processo mi-
du”, e ao longo da faixa esquerda dos mé- Kienya, Kibala, Cela, Libolo, Waku- pologia física, constituem uma sínte- gracional pós-Shabá.
dio e alto Kwanza, os “«ovi»mbundu”. kungu, mas também, Mpungu a Ndon- se dos povos angolanos” (p. 39) sem A extensão limitada em (Ervedosa,
Naqueles, a variante linguística é go (Íd., p. 199).Hoje, Kulembe é insig- lhes identificar traços nítidos e dis- 1980) “espaço sub-rectangular a meio
“«ki»mbundu”tratando-se (Coelho, nificante aldeia kwanza-sulana algu- tintivos. Imbuídos numa tradição da metade oeste de Angola, subindo a
2010ª), “da mais antiga elaboração da res em Amboím. À esta versão adicio- com expectativas políticas divergen- beira-mar para as terras altas” (p. 53),
noção de «grupo étnico» ou de «povo» na-se a cosmovisão sobre a descen- tes, delimitadosno mesmo espaço acabou sendo a região com todas as
populações que falam uma mesma lín- dência “mbundu” emergida do subsolo etnogeográfico, tornaram-se nações condições procuradas pela pessoa hu-
gua” (p. 356) e este fala“«u»mbundu” pe- por intermédio de «Feti» (Childs, autónomas das catervas espontâ- mana desde então. De capital rede hi-
lo que chamam-se «ovimbundu “gente 1949), ente poligínico de descendên- neas de desertores (Cadornega, drográfica com os rios de maior refe-
das zonas de nevoeiro”», plural de cia cósmica dos vales dos rios Kunyo- 1940),evangelistas, escravos esca- rência (Kwanza, Longa, Keve, Kuban-
“«oci»mbundu”, cujo «o» prefixado tor- ñama e Kunene (Gomes, 2016). pados e libertos, aventureiros, ga- gu, Kwandu, Kwebe, Kwitu, Kutatu, Ka-
na-se um artigo neutro singular enquan- Inúmeras “origens”migracionais rimpeiros, caçadores, refugiados, say, Kwatili, Kwembo, Mbalombo), ex-
to o «a» e o «ovi» correspondem ao prefi- como a de Cinguli, aderiram ao pla- desavindos e dissidentes das cisões cedentes de tubérculos, cereais e fru-
xo neutro plural “ambundu,ovimbundu”. nalto central, quer de forma sociopolíticas matrilineares e do de- tas, corresponde administrativamen-
No geral, os etnónimos bantu resul- directa,no exemplo ora evocado em senvolvimento das forças produti- te (Redinha, 1975) com o interior de
tam da caracterização dos seus porta- relação ao Ekovongo, quer através de vas tributáriasperiféricas,cujo pro- Benguela (vacisanji, vaciyaka, vaha-
dores interpretados por vizinhos ad- chefaturas imbangala, o que tem a ver cesso migracional em espiral e não nya),o Huambo (vambalundu, vanga-
miradores ou depreciadores e os cog- com o desenvolvimento sociopolítico linear, prolongado e assistemático langi, vasambu, vawambu), parte do
nominados acabam sendo os últimos a dos Estados planálticos ovimbundu incentivara o êxodo periférico ao Kwanza-sul (vambwi, vasele, vapin-
saber. Aos próprios, normalmente, que, do resto, constituem um conglo- centro que, sob alianças instituíram da), norte do Namibe (vahanya) e da
atribuem-se os zoónimos ou fitónimos merado suis generis à história de An- Estados estáveis e prósperos. Huíla (vangalangi, vakakonda, vakalu-
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kembe, vacikomba, vacipindu),norte, herança enquanto património co- «onjo yo hango», designando o auditó- estruturascastrenses. Os «olosinge»
leste e centro-este do Bié (vaviye, van- mum,as terras e demais interesses pú- rio, a sala de conferências. «Onjan- distanciados e aglomerados em espa-
dulu), com visível predominância no blicos, administrador e monopolista goy’elombe» era o primeiro edifício ços chamados«osongo “o bairro, a
Uíge, Bengo, Kwanza-norte, Moxico, do saber das tradições e história cons- erguido para a tomada de decisões. senzala”«pl. olosongo»,células povoa-
Namibe, Kwando Kubango, Kunene, tituídoem singularidade reconhecida Uma estaca de «elembwi», com folhas cionaisdos «vakwavisoko» (Arjago,
Luanda, Malanje e Lundas. pelos súbditos e vassalos. de «upu» presas numa extremidade 2002), de vários «ovisoko» ou «vak-
Não foi por acaso que Norton de Ma- Dos meros rumores de cacimbo, o depois de espetada no chão, passava a wacisoko» do único acampamento,
tos (1912/1915 – 1921/1924) havia «olumbendo “aerofone”» despertava servir de protector das intenções dos bastando a prefixação de «vakwa “os
tornado do Huambo (Wambu) a «No- ao terceiro cântico do galo. Gritando maus espíritos. Para que a privatiza- de”» no «ocisoko» de «asoko “paus-a-
va Lisboa», capital da colónia de Ango- «ondaka yendelele! “que passe a pala- ção do local se consumassee o poder pique”» singular de «esoko», «usoko».
la e a FAO convencionara chamar de vra”!», os seguidores precipitavam-se instituído fosse eficaz, o agora soba «Ovisoko, ocisoko» deu nome à insti-
“planalto central”resultado dos estu- à parada: mancebos maioritariamen- plantavaa «ulemba, mulemba, “ficus”» tuição solidária de pendor sociopolí-
dos do sistema de classificação dos so- te, famílias nuclearese «vakota “adul- (Aço, 1992),parte dos símbolos do tica de uma geração da mesma
los feitos pelo projecto de Extensão tos”»,armadosde clavas e catanasso- perfil do poder tradicional endógeno. «evamba “rito de puberdade masculi-
Rural (1969/1974), encetado por or- bre as cinturas, flechas e azagaias sus- Rumores tradicionais advogam ter ha- na”» (Arjago, 2002), relativo ao «ek-
ganismos que prosseguiam com o fo- pensas sobreas costas,em missão cujo vido sacrifício de escravos no ritual da wenje» (Altuna, 1993), unida pelo
mento de cereais como a Junta de Ex- destino só o «sekulu» saberá. Emlinha plantação. Ausente, substitui-na por mesmo totem (Freud, 1950).
portação de Cereais, posterior Institu- indiana,marchava lentamente o êxo- «onjilasonde», planta selvagem cujafi- Servindo de instrumento inclusivo e
to dos Cereais de Angola,distribuídos do sem dimensão temporal: - dias, se- tonímia deriva da justaposição - «onji- de controlo jurisdicional, aceso o fogo
na configuração da Angola actual (Li- manas, meses ou escassas horas.Atra- la “o caminho” y’osonde “de sangue”», perpétuo (Arjago, 2002) distribuía-
ma, 1964 & Redinha, 1970). Ainda vessavaos rios e sítios perigosos, gal- por conter a seiva vermelha,carecen- sedo «onjango y’elombe»do «osoma
sim, o regime colonial repovoou inves- gavaas montanhas, rompiaas anha- do de explicações relevantes no con- y’olosoma “soberano (rei)”» aos mais
tindo sobre a região o que não fez no ras,savanas e florestas. Ao minúsculo texto em que se aplicava. próximos colaboradores, sob princí-
resto de Angola tanto em infra-estru- empecilho a caravana parava aos sons Os «vakwavisoko», instituição de pio da palavra de ordem «yendelele!
turas como na pessoa humana. de assobios dos «vakwavisoko» que espontânea solidariedade, organiza- “que siga!”» até às cozinhas domésti-
O contexto ora descrito, determinou prospeccionavam tudo que aos olhos vam-se em grupos de corte de palha, cas. Os primeiros beneficiários ascen-
a elaboração peculiar do modus viven- e ouvidos lhes estranhasse; algum paus-a-pique,carregamento e cons- dem ao título político de «olosoma vi-
di, definiu as condições socioeconó- mal-estar entre os membros, as ro- trução do «onjango y’elombe “sala do nene “os sobas seniores”», «sg. osoma
micas e contribuiu para a transição chas, escavações, cavernas, grutas, tú- poder palaciano”» com três passa- inene “o soba grande”» (Cuehela,
das chefaturas imigrantes para a di- neis, buracos, os seres vivos de vária gens onde eraaceso o fogo perpétuo. 1996) categorias relativas a Epalanga
versidade da auto-organização políti- ordem, as fontes de ribeirinhas e a fer- Um outro edifício erguia-se ao lado, (1º vice-rei, primeiro-ministro), Kalu-
co-administrativa endógena. Sob rugem depositada nos seus leitos, o era «elombe “o palácio”». O local ocu- fele (2º vice-rei, chefe de Estado-
guarda natural (Arjago, 1999) do pro- posicionamento, colorido e a direcção pado tornava-se «ombala “a embala”, maior) e Kapitango(3º vice-rei, conse-
cesso migracional ao planalto central das nuvens, as estrelas, o hálito e as “o capital”». Um pouco além erguem- lheiro-mor) que ao seu nível faziam-
os aderentes à constituição das enti- correntes de ar expirado, as peuga- se «olosinge “os barracões”» que no chegar através de «olosoma “os so-
dades sociopolíticas, transitaram de das,os rastos e excrementos disper- constituíam o núcleo do «ocilombo “o bas”» similares a ministros e governa-
meros sacerdotes, exímios caçadores- sos, os sobejos de ramagem,as plan- acampamento”», conjunto de «olo- dores que por intermédio dos «osoma
guerreiros de especialidade a «olose- tas, os tubérculos e frutos devorados. songo “aldeias”».Os habitantes dos ymbo “os administradores» (David,
kulu», personagens similares aos “pa- Mas era a fumaça,as rotas e o som que «ocilombo» chamavam-se «ovilom- 1997) e «olosekulu “pateres fami-
teres familiae”. A designação «pl. ose- ajudavam a identificar os vestígios hu- bola», «pl. ocilombola “o cidadão”», tí- liae”»o fogo chega aos «olonjango
kulu», se atribui ao mais-velho do sis- manos pois, até encontrar o espaço tulo dado aos iniciados do «ekwenje», vy’apata “os jangos familiares”» de-
tema de parentesco multifuncional, procurado junto de uma boa nascente escola masculina de cidadania,mora- marcando assim a soberania
«ukulu wendamba “autoridade”» o e ordenar o repouso, a caravana enri- dores das cidadelas de casebre com A responsabilidade do «soma y’olo-
patriarca portador do «usoma “po- quecia-se com asnovas aderências e soma» confinava-se entre a política,
der”» delegado em ascensão a «osoma captura de escravos patriarcais. Pente religião, justiça, economia, defesa, se-
“o soba”». «Sekulu», vocábulo deriva- Ao local escolhido inspeccionava-se gurança e diplomacia. A matéria so-
do da aglutinação de pai (ìsê) + mais- amiúde. Havendo interesse nele,pas- ciopolítica (Arjago, 1999),encabeçada
velho (ukulu), “pai mais-velho” pas- sava a chamar-se «itula “pousada”», por Kapitango,confinava-se num con-
sou a «sè+kùlú “sekulu”» enquanto do verbo «okutula “pousar, chegar, ter- selho dos «olosoma»com funções de
marido de mãe (ìnâ) + mais-velha minar”». Partindo de princípio da ine- Mwekalia (juiz presidente), Ukwa-
(ukulu), “mãe mais-velha” evoluiu à xistência de terras baldias, em pleno hamba (ministro da comunicação so-
«ìnâ+kùlú “inakulu”». A capacidade de silêncio o «sekulu» estabelecia o pri- cial), Kapitya (intérprete real)
se impor para tornar-se «sekulu» e meiro contacto com os ancestrais (id.:ibid.). O conselho para questões
atrair para si seguidores, residiu nos através de precesritualísticas antes de religiosas e ancestralidade (Tokarev,
feitos coercivos, perícia,eloquência, acomodação definitiva, solicitando s/d & Santos, 1969) constituía-sepor
na razão do exercício discursivo (Arja- autorização à ocupação e garantia de Ndolohuku (sacerdote-mor), Ekwa-
go, 2002) e, enquanto líder familiar segurança tornando o lugar habitável. to(chefe dos serviços de inteligência
aceite, reconhecido pela comunidade O galo-detonador unicolor (preto, “mítica”)e Cilala (sacerdote dos ako-
segundoa constituição da aliança es- branco ou vermelho) ede grande por- koto). No seu conjunto encarregavam-
tabelecida por ele em nome dos viven- te, era preso nas patas com «elemb- se pelas celebrações,sacrifícios,cul-
tes que o autorizavam ao pacto de san- wi», folhas de uma planta herbácea tos(Freud, 1950), gestão de campos
gue com os ancestrais (Altuna, 1993). das famílias das compostas,muito em- sagrados (Eliade, 1992) e funerais
Abrimos parêntesis recordando que a pregue no exercício medicinal e mági- reais(Arjago, 1999).
«epata “sistema de parentesco multi- co-religioso. Violentamente eralança- Em questões legislativas (Neto,
funcional mbundu”» pode congregar do ao chão a15m a 25m de distância. 2001) o soberano empossavaMwe-
cerca de 1500 membros uterinos. Os seguidores ansiosos aguardavam lentunda (presidente da assembleia),
Para atingir a categoria de «soma em silêncio enquanto a ave bramia.O Cilonga-feka (conselheiro da corte)e
“soba”», detentor absolutista de pode- primeiro predador àsespreitas sob- Ndaka-ya-soma (porta-voz) que ve-
res, ao «sekulu,ukulu wendamba» au- convite dosbrados, era abatido e de- lam pela justiça e «ekanga» (David.
torizado sob consenso das comunida- claradoinóspito o lugar.Oincidente re- 1997), singular de «akanga “os tribu-
des vivas e não-vivas, a atear e minis- portavaa rejeição dos ancestrais des- nais, os julgamentos”» (Arjago, 2002).
trar o fogo perpétuo do njango, se exi- comprometidos com esta ocupação. Quanto aos aspectos socioeconómi-
gia a exibição de poderes de referên- Recolhidaa ave, a marcha prosseguia. cos a comissão dos «olosoma» suben-
cia, relações, influência, persuasão, re- A tranquilidade advinda do galo, tende as funções de Mbetatela (chefe
compensa (Arjago, 1999). Justificava- sem predadores à espreita,autoriza- da exploração metalúrgica e patrimó-
se assim pois sendo uterino o «soma vao «sekulu», a assenhorear-se da nio público), Ndalahata (ministro da
“soba”» (Neto, s/d) primava pela aris- «itula» e ascender a «soma», categoria economia),Kaley (chefe do protocolo
tocracia. O seu titular era em simultâ- mais política que aquela com a qual e relações públicas),Ukwasapy (chefe
neo político, militar, sacerdote mági- autoriza os «vakwavisoko» a erguer o do património real) e Epako(ministro
co-religioso convicto, jurista, gestorde «onjango “ o jango”», corruptela de das finanças) enquanto administra-
Cultura | 17 a 29 de Abril de 2019 ECO DE ANGOLA | 5
dores de impostos, tributos, guns casos confundidos com os «va- helelo, kwamatuy. Aperfeiçoaram as tativo-adaptável”. Os epítetos se-
taxas,contribuições, multas, gestão kavandume». Ambos espaços funcio- sociedades secretas e instituições má- guem o percurso da história moder-
de produção e produtividade.O con- navam como conselho da república e gico-religiosas ngangela, lwimbi e cok- na;-são sulanos ou benguelenses
selho dedicado à defesa (Arjago, só renuíam em situações críticas, - we. Tornaram as guerras de kwata- porque não medem esforços, conse-
2002), segurança (Martinez, 2007) e estiagens,cheias, inundações, epide- kwata,saques e razias em compromis- quências nem distâncias para se
guerra (Pélissier, 1997) comportava mias,guerras; (ii) vakwelombe, - sos económicos à semelhança do fo- adaptarempor constituírem (Redi-
os títulos militares, guarda e guarni- conselho ambíguo conformando a mento do mercado sertanejo interna- nha, 1975) “uma síntese dos povos
çãocomo Kesongo (embaixador), Ka- interpretação na relação entre osde- cional paralelo à evangelização cristã. angolanos” (p. 39). Hoje, a velocida-
lufele(ministro da defesa), Kawaya tentores do poder e as instituições Ocidentalizaram-se cruzarando as eli- de expansionista do umbundu com-
(chefe da casa militar), Katalayu (che- de parentesco multifuncional (Rad- tes: (i) fomentaram a conveniente mes- para-se com a de gota de óleo sobre a
fe da guarda real), Katombela, (minis- cliffe-Brown, & Forde, 1950). Além tiçagem racial; (ii) dos mercadores e madeira. Aumenta de extensão em
tro do interior e ordem pública)Kapo- da «inakulu “rainha”» e as «olonaso- monarquias emergiu a burguesia rural curtíssimos trechos de tempo sem
ko (investigador forense)e ministra- ma “primeiras-damas”» plural de que (iii) cruzou com os cristãos e (iv) dar-se por ela obrigando a vizinhan-
va os «ovilombo e a «evamba», insti- «nasoma»incluíam-se os filhos bio- resultou a classe nacionalista respon- ça a resistir como biglota. Um estudo
tuições relativas ao «ekwenje». lógicos das irmãs deles; (iii) «ohon- sável dos movimentos sociopolíticos em ciências sociais e políticas (Coe-
O aparelho do poder da autoridade gele», - «pl. olohongele», relativo a actuais.Embatendo-se contra a pene- lho, 1966), propunha o reordena-
tradicional endógena umbundu foi assembleia «ohongele y’olosoma “o tração,ocupação e exploração colo- mento do povoamento colonial em
pesado, complexo e exigente, a con- colégio dos sobas”». Instituição sem niais, atravessaram de canoaspela Ma- Angola com base na expansão um-
tar pela quantidade de figurinos ne- relevância política por ser apropria- vinga submetendo os batonga (Zâm- bundu. Os tugas acreditavam na pos-
le envolvidos, enquanto auxiliares e do pelos cristãos. Desde então falan- bia) e em homenagem a localidade se sibilidade de onerar menos o povoa-
servidores do titular da soberania do dela ocorre a ideia de tratar-se de conhece por Mungo de onde saiu a es- mento colonial substituindo os pro-
pois, por detrás das suas decisões encontros magnos das igrejas. taca da «ulemba» ali reproduzida. jectos cabo-verdianos, particular-
escondia-se larga inteligência.Ex- Ateadoo fogo em cerimónia do «on- Quanto à estatística dos “povo de mente em zonas de teatros de opera-
plodindo a demografiaseguida pela jango y’elombe», os «vakwavisoko» muitos povos”, pouco se diz por es- ções militares, bastando água, enxa-
veloz difusão linguística (Niane, outorgavam o título de «cikukulu» ao cocês de detalhes, mas o censo de da e bíblia para assenhorearem os
2010) “sucedeu a expansão e difu- patriarca (Arjago, 2002:29) permitin- 1960 (Coelho, 1966) estabele- ovimbundu. Remata Henderson
são das técnicas artesanais e do co- do ascensão cumulativa a «soma y’ako- ceu34,5% da população angolana e (1990) que tais civilizações “estabele-
mércio, a sociedade organizou-se koto» (Gomes, 2016), instituição trans- justificam o argumento de Cardoso ceram-se a sul do rio Cuanza (sic), no
em linhagens patrilineares” (p. 4) e a cendental de que falaremos à parte. (1964) quanto aos 35% da presença planalto central, dispersando-se pelos
estrutura central da organização po- Por inércia aqueles ascendiam a «vam- umbundu na composição mbali do distritos (sic) mais populosos de An-
lítico-administrativa aumentou de welisoko “donos de ovisoko”»,«sg. Namibedo final do séc. XIX. É mensu- gola: Huambo, Benguela e Bié” (pp.
extensão (Arjago, 1999). Os núcleos mwelisoko»(David, 1997). Entretanto, rável a quantidade de falantes de 22-23) de que “foram-se espalhando
familiares fortaleceram-seevoluin- a estrutura, composição e as funções umbundu espalhada em toda Angola por todos os outros distritos (sic); e,
do para «ofeka “o país”», repartido dos conselhos descritos variaram em e arrabalde;Congo Democrático, assim, este grupo, que era o mais ho-
em «atumbu», «sg. etumbu», regiões qualidade equantidade de realidade Zâmbia, Namíbia, África do Sul, ocu- mogéneo de todos, era também, para-
autónomas organizadas em «ovam- histórica a outra, mas no seu todo era o pando-se de tudo, denunciando ha- doxalmente, o mais abrangente de to-
bo», «sg. ymbo», subentendendo o que chamou-se de «vakwelombe “go- ver envergadura integracional de dos os grupos linguísticos” (Íd.:Ibid.).
conjunto de «olosongo», núcleos po- vernantes, palacianos”, “corte”». No que em tempos pré-coloniais apeli- Até à queda de Mutu ya Kevela (1902),
voacionais uterinos, necessitando conjunto deste embaraço, caçadores- daram de «ovimbundu»;em época organizaram-se em um pouco mais de
de manter a ordem política como ga- guerreiros bantu sedentarizaram-se colonial de «vanano “os planálti- 20 soberanias entre países autóno-
rante o autor citado. adoptando o mais importante dos valo- cos”» no sul; os «bailundos»no nor- mos;Mbalundu, Ekovongo (viye),
Neste contexto, empossaram-se res do outro. Especializaram-se em te; «mukakwiza “viandantes”» no Ciyaka, Wambu, Ndulu e Ngalangisen-
instituições consultivas (Arjago, agro-pecuária da agricultura kimbun- leste. Os colonos os classificaram de do os mais poderosos que determina-
2002:30-31): (i) «ovinduli», - em al- du e da pecuária nkhumbi, nyaneka, civilização (Duarte, 1975:80) “adap- ram a configuração geo-etnolinguísti-
ca e deles ramificaram-se os satélites
Morros do Huambo como Kakonda, Sambu, Civanda, Ci-
komba, Cytata, Ekekete, Kalukembe,
Civula, Cikuma, Mbongo, Elende,
Nganda e inúmeros vassalos entre
Lumbo, Sele, Sumbe, Mbwi, Mpinda.
Foram os missionários congregacio-
nais norte-americanos que fundando
o centro académico do Dôndi (1914-
1916), reestruturaram o umbundu ac-
tual através do colégio de alunos e
evangelistas intérpretes com três re-
presentantes de cada subvariante que
reorientou a composição uniforme da
variante representativa para a evan-
gelização, tornando homogéneo o uni-
verso sociocultural umbundu, mas fi-
caram de fora as subvariantes «ha-
nya» e «mbokoyo» por escaparem ino-
portunamente desta influência. Recla-
mando a titularidade civilizacional
umbundu, os vahanya confinados no
triângulo Cubal, Caimbambo e Chon-
goroi e os vambokoyo, distribuídos no
triângulo Lobito, Sumbe e Bocóio, dis-
tinguem-se facilmente por conserva-
rem consideráveis “tiques” caracterís-
ticos o que distancia o planalto de
Benguela do planalto central e terá
confundido os etnógrafos de referên-
cia como Redinha (1970), Lima
(1964), Ervedosa (1980) ao ponto de
considerar os vandombe do subgrupo
helelo (Carvalho, 1997) como parte da
civilização umbundu por se localiza-
rem na mesma área sociocultural.
Cultura

África e a normalização
6 | LETrAS 17 a 29 de Abril de 2019 |

ortográfica da língua portuguesa


não é necessariamente o que lá está ciação do conceito da Renascença criar-se formas de escrita que não in-
dito, mas sim o que ficou por ser dito: Africana. Aí sim; discutiremos o AO90 terfiram profundamente no sistema
o papel e o lugar das especificidades em pé de igualdade! ortográfico do Português.

Ortografia em Português de A terminar


de cada país membro; de cada língua

formas oriundas das línguas bantu


autótone das ex-colónias em relação
ao Português europeu.

BENTO
A necessidade de uma escrita coeren- Deve obedecer-se a um princípio basi-
te e consistente é uma das principais ra- O estabelecimento de ortografias só- lar na acomodação de empréstimos: a
SITOE(*) zões por trás das reformas ortográficas, lidas das línguas africanas é meio ca- aplicação consistente das regras ge-
sendo as outras de ordem didáctico-pe- minho andando em direcção ao esta- rais da ortografia e da fonologia da lín-
dagógica. Mas não raras vezes se sobre- belecimento de Vocabulários Orto- gua de chegada, o Português, no caso
põe as razões de ordem política. gráficos Nacionais (VON) que visam vertente, salvo raras excepções, devi-

“H
Será que é correcto escrever-se alimentar o Vocabulário Ortográfico damente justificadas.
á resistências de algu- Cuanza-Norte, Cuanza-Sul ou Cuando- Comum (VOC). Por outro lado, deve reconhecer-se
mas pessoas, e não Cubango, em vez de Kwanza-Norte, Se houver respeito pelos VON, a a importância dos Vocabulários Orto-
são muitas, que têm Kwanza-Sul e Kwandu-Kubangu? equipa central do VOC irá dispor de gráficos Nacionais (VON) na constru-
uma relação emocio- A seguinte regra é geralmente usa- material suficiente e de peso na toma- ção de estratégias comuns da ortogra-
nal, clássica, física e sensorial com a da para estes casos: Em nomes pró- da de decisões isentas, conducentes à fia a adoptar no Vocabulário Ortográfi-
Língua. Mas ninguém será abatido, prios (de pessoas, lugares e institui- implementação não conflituosa do co Comum (VOC), garantia para a dis-
preso ou punido se não aderir às no- ções) respeita-se a grafia da língua de AO90. Aí, este acordo não irá impedir cussão do AO90 em pé de igualdade.
vas normas. O Acordo é uma simplifi- origem. São as formas não adaptadas a circulação do léxico e dos falares pe- Os Países Africanos de Língua Oficial
cação da Língua.” (como se preconiza nos Vocabulários culiares de cada país que, ao fim e ao Portuguesa são iguais, mas há países ni-
(Ministro da Cultura, de Portugal, Ortográficos Nacionais), que em no- cabo, só estarão a enriquecer o Portu- tidamente mais iguais que os outros! A
José Ribeiro, no Jornal Expresso de mes comuns têm uso alternado com guês na sua dimensão transnacional. recuperação da dignidade das línguas
19/08/2008 - destaque nosso) as formas adapatadas à língua de che- Muitas das palavras a registar nos indígenas dos países africanos irá per-
O objectivo da minha interveção é gada: maka‘discussão acesa’, kota VON são empréstimos vindos das lín- mitir o desenvolvimento endógeno de
trazer à reflexão aspectos candentes ‘pessoa idosa e respeitável’, nkaringa- guas africanas. África e permitir-lhes-á entrarem no
relacionados com a necessidade de na ‘conto’(formas não adaptadas que Para isso, devemos respeitaros se- diálogo com o outro em pé de igulada-
harmonizarmos a escrita do Portu- são grafadas em itálico) versus maca, guintes princípios: de. Este movimento irá viabilizar o re-
guês, na sua dimensão transnacional. cota, caringana. • Reconhecer e respeitar o prin- conhecimento oficial das nossas lín-
Como membros da Comunidade As línguas da África Subsaariana cípio de que os empréstimos lexicais guas, devolvendo voz aos seus falantes.
dos Países de Língua Portuguesa têm sido representadas por uma do Português de Angola fazem parte Termino, com um forte kandandu
(CPLP), temos em mãos a discussão do multitude de ortografias baseadas do acervo lexical desta variante e de- endereçado aos colegas da Academia
Acordo Ortográfico de 1990 (AO90) em díspares sistemas ortográficos vem ser nela integrados. Angolana de Letras, que estão a discu-
que tem suscitado debates acesos so- ocidentais. Para que os países africa- • Sempre que possível padroni- tir a séria questão da forma como es-
bre a problemática da relação nem nos discutam questões de ortografia zar-se o uso, aproximando a escrita crever em Português os empréstimos
sempre pacífica e isenta de ambigui- com o Ocidente, devem trabalhar no da fala. das línguas nacionais.
dades entre a variedade europeia do estabelecimento e consolidação da • Ter em conta que no sistema
Português e as variedades emergentes ortografias das suas línguas ortográfico do Português nem sempre
nas antigas colónias de Portugal, bem nativas.Instituições como o Centre há correspondência biunívoca entre NOTA
como as línguas nativas destes países. for Advanced Studies of African So- os sons e os grafemas. Sendo assim, (*) Bento Sitoe é linguista, Professor
E as questões que amiúde se colocam- ciety (CASAS), têm envidado esforços nos casos em que se tem um som da na Faculdade de Letras e Ciências So-
são: Que estratégias de harmonização no sentido de unificar as ortografias língua de origem para o qual o Portu- ciais da Universidade Eduardo Mondlane.
devem ser adoptadas para que as rea- destas línguas em África. guês oferece vários grafemas, é preci- Membro fundador da Academia de Ciên-
lidades peculiares dos países africa- Um sistema de escrita regional- so decidir qual deles usar. cias de Moçambique e da Associação de
nos estejam nele reflectidas? Quais se- mente harmonizado resiste melhor à • Para o caso de sons sem cor- Escritores Moçambicanos. Dentre outros,
riam as implicações sóciopsicológicas corrosão pelos sistemas exógenos. respondência no sistema fonético do é autor do “Dicionário Changana-Portu-
e culturais que seriam despoletadas Não há melhor força para exorcizar os Português, como, por exemplo, os gru- guês” e do “Dicionário Português-Chan-
pela sua implementação? fantasmas do AO do que o estabeleci- pos consonânticos pf, bv, ndr, devem gana”.
Estas questões têm como implica- mento, a promoção e divulgação de
ção imediata que o processo de imple- sistemas ortográficos regionalmente
mentação dequalquer acordo orto- harmonizados das nossas línguas!
gráfico deve ter em conta não só as Assim, “a singularização da plurali-
realidades linguísticas tal como foram dade pela criação de um alfabeto co-
expostas pelo linguista, mas também mum, por exemplo, pode assumir um
a aplicação de tal sistema de escrita significado positivo ao apagar as fron-
em conformidade com as realidades teiras linguísticas e étnicas impostas
sócio-económicas bem como psico- pelo enquadramento colonial, favore-
culturais dos seus utentes. cendo o multilinguismo e o convívio

Os PALOP e o Acordo Ortográfico


plural sem ter que legitimar divisões,
estratificações e hierarquizações.”
(Severo 2014, p. 27)
As antigas colónias da África subsa- Uma escrita uniformizada destas
hariana ainda estão ligadas ao anti- línguas traz as suas vantagens. Para
go colonizador através de institui- além de favorecer uma comuncação
ções como a Comunidade dos Paí- inter-étnica na região, aproximando-
ses de Língua Portuguesa (CPLP). É nos uns aos outros, reforça o sentido
neste contexto que surge o Acordo de pertença a um grupo maior, de leal-
Ortográfico de 1990. dade e de identidade que podem de-
O que é embaraçoso neste Acordo sembocar na promoção e consubstan-
Publicidade | 17 a 29 de Abril de 2019 | 7

(700.018)
| ARTES 17 a 29 de Abril de 2019 | Cultura

Arte angolana na vitrina mundial


8

ANALTINO SANTOS
gola, quer pelas autoridades governa-
mentais, quer pelos agentes e promoto-

T
endo em conta a presença de res culturais. A resposta positiva do go-
NdakaYoWiñi que actuou a 30 verno angolano, para realização em Se-
de Março no Festival de Jazz de tembro da Bienal da Cultura da Paz uma
Cape Town e a presença no inicio deste iniciativa da UNESCO e a nota negativa
mês de Miguel Hurst na mais recente para a participação na 58.ª edição da Ex-
edição do Fespaco no Burkina-Faso, posição Internacional de Arte Bienal de
duas perguntas se impõem: onde en- Veneza, que estava a ser coordenada pe-
contrar a arte e os artistas angolanas, lo artista plástico Hildebrando Melo po-
fora do nosso espaço territorial? dem ajudar a compreender como as
A arte e os seus intervenientes po- nossas autoridades e artistas preten-
dem ser um bom veículo para dar a co- dem levar de facto aos palcos e vitrinas
nhecer um país, infelizmente é pouco ou internacionais as nossas manifestações
insignificante o que se tem feito em An- artístico-culturais.

Miguel Hurst
É notória a ausência de interve- Ruanda, Sudão e Tanzânia.
nientes angolanos nas grandes mon- Dias depois do regresso da consi-
tras da música e o mesmo acontece derada principal mostra de cinema
com outras manifestações artístico- africano que desde 1969 é realizado
culturais, como é o caso do cinema. na capital do antigo Alto Volta, Ouaga-
Sobre esta modalidade artística, An- dougou, o actor, director e produtor
gola chegou a acolher um evento que de cinema e teatro que vai no âmbito
teve um início retumbante, o FIC-Fes- do projecto MovingAfrica do Goethe
tival Internacional de Cinema. Ao lon- Institut, afirmou que aproveitou a se-
go das primeiras edições,o FIC conse- gunda presença no Festival, para fa-
guiu atrair não apenas alguns dos zer intercâmbio e dar a conhecer as
mais respeitados cineastas africanos últimas produções nacionais.
e internacionais, mas permitiu que os O também idealizador do projecto
intervenientes angolanos estabele- TelÁfrica- sessão de cinema africano,
cessem parcerias. exibido no último trimestre do ano pas-
Ainda na senda da internacionali- sado no Cefojor, negociou com os pro-
zação, o artista quer estar na rota do dutores dos vinte filmes oficiais a serem

NdakaYoWiñi
cinema africano e tem presença no exibidos e não só, a cederem os direitos
Walay, em Barcelona, no Muica, Co- para a sua divulgação em Angola, no ar-
lômbia e São Paulo,nestes dois últi- ranque do TelÁfrica e outras possíveis
mos com o livro e a exposição Angola- mostras de cinema africano intra-mu-
O jovem NdakaYoWiñi começa em A presença do autor de “Olukwem- Cinemas. Sem dúvida que, em África, ros. Pretende transformar o TelÁfrica
grande, ao receber o convite oficial pa- bo” na cidade do Jazz sul-africano e o principal evento dedicado à sétima num Festival de Cinema Africano, na re-
ra participar num dos mais prestigia- num evento onde ao longo dos seus 20 arte acontece em Ouagadougou e a gião austral, tendo como parceiros al-
dos eventos musicais do mundo, o Ca- anos as principais estrelas da música presença angolana, quer de forma ofi- guns cineastas moçambicanos.
pe TownInternationalJazz Festival. mundial têm actuado e que também cial quer por iniciativas dos cineastas, Miguel Hurst reconheceu a fraca
Paulo Flores e Gabriel Tchiema são ou- serve para a passagem por outros pal- é residual. Para a presente edição, Mi- presença angolana nestes fóruns, que
tras vozes angolanas que participaram cos e trampolim para uma carreira in- guel Hurst foi o embaixador da sétima podem ser bem aproveitados para di-
nesta grande mostra. ternacional é reconhecida pelo jovem arte angolana e contou com o apoio vulgar, não apenas o cinema, mas ven-
Tudo começou a ser projectado como o coroar do que apostou para a do Goethe Institute que, em edições der a imagem do país, dando como
quando, no passado, o artista esteve em sua carreira. anteriores, levou Tchiloia Lara da Ge- exemplo Hollywood, Nolliwood, Bolli-
Cape Town na edição anterior do even- Importa salientar que nesta edição ração 80 e Jorge Palma. wood, dentre outras onde a indústria
to e fez alguns contactos preliminares. destacam-seRichard Bona, Soweto- O Fespaco que teve a sua primeira cinematográfica faz muito bem este
Posteriormente em Agosto lançou o seu GospelChoir, ChakaChaka, Eliane Dias, edição em 1969e vai na sua vigésima trabalho. Com tristeza, falou do fraco
álbum de estreia “Olulwembo” que, por dentre meia centena de alternativas sexta edição. Actualmente é bienal, apoio institucional que é dado ao cine-
via de António Cristóvão, o responsável que nos dias 29 e 30 de Março actua- está a decorrer de 23 de Fevereiro a 2 ma e da presença de filmes angolanos.
do saudoso Luanda Internacional Jazz ram no Centro de Convenções da Cida- de Março, teve na programação oficial De acordo com o nosso interve-
Festival, chegou à organização. de do Cabo e em outros espaços. Oli- vinte filmes a concorrer, dentre os niente, em África existem outros im-
Antes da sua passagem por Cape verMtukuzi, a estrela zimbabwena que quais Mabata Bata, do moçambicano portantes festivais de cinema. Tuní-
Town, Ndakaparticiparia na cidade de em 2011 e participou no Luanda Inter- João Luís de Carvalho, a única produ- sia, Marrocos, África do Sul, Nigéria,
Abdijan, Cote d’ Ivoire, no AUB Safari national Jazz Festival, foi o grande au- ção dos falantes da língua portuguesa, Quénia são alguns países que citou,
Show, ao lado de 15 artistas africanos. sente, emboraconstasse no alinha- onde encontramos representantes do afirmando que são autênticos lugares
O evento, uma iniciativa da URTNA- or- mento para o evento para partilhar o África do Sul, Argélia, Camarões, Cote para redes de contactos e de diploma-
ganização das rádios e televisões afri- palco com VusiMashelela. Morreu em d’Ivoire, BurkinaFaso, Egipto, Nigé- cia cultural, questionando o que fa-
canas, está em stand by. Janeiro deste ano. ria, Quénia, Gana, Mali, Marrocos, zem os adidos culturais.
Cultura | 17 a 29 de Abril de 2019 ARTES |9

O exemplo Ruandês
Quem acompanha a política africa- António Cristóvão confidenciou ponsável do certame que surge na se- nais do livro, ajudam a entender o esta-
na sabe do protagonismo que esta na- que está à procura de parcerias para o quência do acordo celebrado entre as do da nossa literatura no cenário mun-
ção tem conquistado no cenário inter- relançamento do Luanda Internatio- autoridades angolanas e a Unesco a 18 dial. Autores ligados a editoras mun-
nacional. Em 2018, Paul Kagame foi nal Jazz Festival. Reconheceu que a ac- de Dezembro de 2018 em Paris. De diais vão cimentando o seu espaço. O
eleito Presidente da União Africana e é tual situação socioeconómica do país acordo com as comunicações, o deba- facto de grande parte dos bons autores
curioso que dois dos principais tro- é preocupante, mas também é tenta- te contra corrupção é outro foco da não levarem a literatura como priori-
féus atribuídos à arte africana foram dora para retomar o projecto. Afirmou Bienal de Luanda. dade facilita uma outra franja, que re-
concedidos a cidadãos deste país. que os quatros anos foram gratifican- Faltando poucos meses para a reali- corre ao marketing agressivo e passam
Na música o jovem cantor Buravan tes e que está feliz porque surgiram zação da Bienal da Cultura da Paz, ser a cara da literatura angolana.

Artes Plásticas
venceu o Prémio Découvertes RFI. O outras iniciativas. Apesar de aparen- pouco ou nada se sabe. Os artistas e
cantor que está em digressão pelo temente afastado na produção de promotores estão fora de todo o pro-
continente, actuou no dia 23 em Luan- eventos e das lides artísticas, Toy Jazz cesso e nem mesmo altos funcionários É uma das poucas onde alguns artistas
da, depois das passagens por Bamako, Cristóvão continua a apoiar os artistas do Ministério da Cultura conseguem têm conquistado visibilidade mun-
Cotonou, Nyamey, Brazzaville, Mala- e a cultura nacional, como aconteceu esclarecer o que se pretende com esta dial. O elitismo e o favoritismo por
bo, Djibouti, Antananarivo, Libreville, com a proposta de NdakaYoWiñi que iniciativa, que o país acolhe num mo- parte do Ministério da Cultura, visto
e São Tomé. Tem ainda uma apresen- não foi só, visto que uma equipe do mento de graves problemas de liqui- que muitos quadros seniores estão
tação em Paris e o seu grande concerto Luanda International Jazz Festival o dez económica. nesta área,têm prejudicado a classe.

Dança
em Kigali, no estádio que consagrou acompanhou e levoupropostas para a Quando a mensuração do impacto
Angola para o Mundial de 2006. próxima edição. das nossas manifestações artístico-
Na 26ªedição do Fespaco, um outro culturais e dos nossos actores cultu- Quase inexistente, também não capi-
jovem ruandês, o realizador Joel Kare- rais e os ganhos para o país na rota in- taliza o boom da Kizomba e do Kudu-
kezi, foi o grande vencedor, conquis- ro. Os egos dos protagonistasda dança
tando o Cavalo de Ouro de Yennenga, o nacional, e a falta de estratégia ajudam
principal troféu do certame. TheMer- no estado de estagnação.

Quando a acção está


cyofTheJungle foi o filme que conven-

com os estrangeiros
ceu o corpo de jurados da edição, que
tem uma prova de diplomacia cultu-
ral.O Festival homenageou o Ruanda e Um outro assunto que merece um olhar
contou com a presença de Paul Kaga- atento é a da legitimação e da promoção
me e outros líderes africanos. dos artistas nacionais pelas instituições
TheMercyofTheJungle (A Miseri- e espaços estrangeiros, no país.
córdia da Selva) tem uma mensagem
simples: aos 33 anos, Joel Karekezi faz

Miguel Hurst pretende transfor-


parte de uma geração de cineastas

mar o TelÁfrica num Festival de Ci-


ruandeses para quem o gatilho foi um

nema Africano, na região austral,


gatilho para fazer filmes e tornou-se

tendo como parceiros alguns ci-


no primeiro ruandês a entrar no filme

neastas moçambicanos.
Olympus dos vencedores do Fespaco.

Quando Luanda Veneza não, Luanda sim,


teve visibilidade mundial com a Cultura da Paz
ternacional com a realização da Bienal
não é um assunto que os promotores
Durante quatro anos (2009 a 2012) Sempre no quesito da internacionali- garantem com propriedade, do mes-
Luanda esteve na rota de grandes no- zação das nossas manifestações artís- mo modo que os eventuais participan-
mes do Jazz e da música mundial. Os ticas e culturais, é sempre importante tes desconhecem as condições. Mas a
dois últimos dias de Julho e os primei- realçar outros dois eventos que estão unanimidade para os amantes da cul-
ros de Agosto eram aguardados com na pauta dos agentes culturais: a não tura e da arte angolana é que festivais
expectativas depois da Riteik, de Antó- participação na Bienal de Artes de Ve- realizados em Angola consigam fazer
nio Cristóvão, e da ESPAfrica, de Ras- neza e a realização da Bienal da Cultu- parte do circuito internacional e que a
hidLombard, organizadores do festi- ra da Paz em Luanda. presença de artistas angolanos no ex-
val de Capetown, brindarem na pri- No primeiro caso,a ausência na 58.ª terior não fique apenas reduzida a
meira edição com o histórico McCoy- edição da Exposição Internacional de concertos em salas direccionadas à
Tyner, os Yellowjackets, Lira, Fleshyl- Arte - Bienal de Veneza 2019, agenda- comunidade angolana ou mesmo em
ground, Jimmy Dludlu, Vanessa da da para Maio a Novembro, em Itália, o concertos em Portugal

Música
Matta e outras stars internacionais Ministério da Cultura alegou “falta de
que se juntaram a artistas nacionais. condições e garantias” para a partici-
Nas edições seguintes, trouxeram pação do evento bem como “razões de Nem mesmo com a febre da Kizomba e
George Benson, Chucho Valdes, Blick- ordem conjuntural”. O artista Hilde- Kuduro, os nossos músicos conse-
Bassy, Lura, DianeReeves, Lenine, Spy- brando Melo esteve a preparar a pre- guem sair do eixo da Comunidade dos
ro Giro, Mayra Andrade, Moreira sença nacional e manifestou-se escan- Países De Língua Portuguesa. Algu-
Chonguiça, Liqueedep, DeeDeeBrid- dalizado pela postura das autorida- mas parcerias e concertos fora deste
gewater, JonatahnButler, IsamelLo, des. O país tem participado nas edi- eixo não têm continuidade.

Teatro
Rui Veloso, ManuDibango, Sara Tava- ções da Bienal de Veneza desde 2013,
res, Marcus Miller, AbdullahIbraim e e conquistou o ‘Leão de Ouro’, pelo
muitos mais. projecto ‘Luanda, Cidade Enciclopédi- Os amantes desta arte são os que mais
Dos nacionais, Totó ST, KizuaGour- ca’, do artista Edson Chagas. reclamam da falta de apoio institucio-
gel, Aline Frazão, Wyza, Waldemar O segundo é a realização da Bienal nal, mas curiosamente vão realizando
Bastos, Conjunto Angola 70, Sandra de Luanda e do FórumPanafricano da alguns festivais internacionais, como
Cordeiro, Banda Maravilha, Afrikanni- Cultura da Paz em África, na segunda o Festeca no Cazenga, do Elinga, Ki-
ta, SimmonsMancine, João Oliveira, quinzena de Setembro, segundo se- lamba dentre outros. Alguns grupos

Literatura
dentre outras vozes a que se juntam mestre do ano, uma parceria entre a têm feito intercâmbio internacional.
Gabriel Tchiema e Paulo Flores que fo- Unesco e o governo angolano que dis-
ram levados para Capetown, no mes- ponibilizará mais de meio milhão de A escassaa tradução de obras e a au-
mo festival onde NdakaYoWiñi pisará. dólares. Alexandra Aparício é a res- sência nas principais feiras internacio-
10 | HISTÓRIA 17 a 29 de Abril de 2019 | Cultura
Organizações Internacionais, mas já
quanto às outras categorias de sujeitos –
insurrectos, beligerantes, movimentos
de libertação nacional –, a doutrina do-
minante tende a afirmar a natureza
constitutiva do reconhecimento.
Debrucemo-nos agora sobre a moda-
lidade, quiçá a mais importante, o reco-
nhecimento do novo Estado. Este surge
em três tipos de situações: (i) fusão de
dois ou mais Estados; (ii) desmembra-
mento de Estados e (iii) ascensão à in-
dependência de um território até então
não autónomo. Discute-se na doutrina
se o reconhecimento do novo Estado é
um acto livre e discricionário ou se, pe-
lo contrário, é um acto vinculado, vale
dizer, se existe um dever de reconhecer
o Estado neófito, por parte dos outros
Estados. Embora, de jure condendo, se
possa preconizar a existência de tal de-
ver, em homenagem aos princípios da
autodeterminação dos povos e da
igualdade soberana dos Estados, a ver-
dade é que, na prática internacional, o
reconhecimento permanece larga-
mente uma faculdade livre e discricio-

A emergência do Estado angolano


nária dos outros Estados.
Fernando Oliveira Diferente do hipotético dever de re-
conhecer é a existência, em determi-

e o seu reconhecimento internacional


nadas situações, de um dever de não
reconhecer. Com efeito, se o processo
de criação do novo Estado não está in-
teiramente concluído ou, apesar de
concluído, foi feito em violação de nor-
mas e princípios do Direito Interna-
cional, não deve ser reconhecido. Foi o

Na sua última aula , ministrada no passado dia 27 de Março, no au-


caso da criação pelo Japão do Estado

ditório Maria do Carmo Medina da Faculdade de Direito da Universi-


fantoche de Mandchouko, província

dade Agostinho Neto (UAN), o Professor Fernando Oliveira abordou


tabelecimento de relações diplomáticas chinesa da Manchúria, que foi objecto

sucessivamente (i) a emergência do Estado angolano e o seu reconhe-


com um Estado implica necessariamen- da chamada “Doutrina Stimson”,

cimento internacional; (ii) a questão do mercenarismo; (iii) o uso da


te o seu reconhecimento. enunciada em 1931 pelo Secretário de

força e o “Caso Naulila”; (iv) as agressões sul-africanas a Angola e, fi-


Questão teórica – mas com grande re- Estado norte-americano. Igualmente

nalmente, (v) Angola e a codificação do Direito Internacional.


levância prática – é a indagação sobre a traduziram injunções de não reconhe-

A partir desta edição, o jornal Cultura publica, em várias partes, es-


natureza do reconhecimento. Aí, a dou- cimento as tomadas de posição do

sa “última aula”, através da qual Fernando Oliveira revisitou alguns


trina divide-se entre a teoria constitutiva Conselho de Segurança das Nações

temas em que Angola se cruzou com diferentes capítulos do Direito In-


ou atributiva e a teoria declarativa. Para a Unidas sobre os pseudo-Estados da

ternacional, tal como é ensinado nas Faculdades de Direito.


primeira, o reconhecimento tem um Rodésia do Sul, do Katanga e do Biafra,
efeito constitutivo, isto é, cria na esfera dos bantustões da África do Sul, no
jurídica internacional uma situação no- tempo do apartheid, do regime ilegal
ternacionais; (iv) das Nações e (v) dos va. Assim, quanto ao Estado, o reconhe- de ocupação da Namíbia, dos territó-

A
emergência da Angola indepen- Beligerantes, Insurrectos e Movimentos cimento seria como que um quarto ele- rios árabes ocupados por Israel e da
dente, sob a forma da República de Libertação Nacional. Quanto ao sujei- mento constitutivo, a acrescentar à trilo- pretendida anexação do Koweit pelo
Popular de Angola, coloca a ques- to do reconhecimento – quem reconhece gia clássica da população, território e go- Iraque, durante a guerra do Golfo.
tão do reconhecimento internacional do –, ele pode ser individual, quando é feito verno. Já para a teoria declarativa, o Esta- A questão do reconhecimento do Go-
novo Estado, pelos outros Estados e pela apenas por um sujeito, maxime um Esta- do é sujeito de Direito Internacional des- verno só se põe em relação ao Governo
Comunidade Internacional, designada- do, ou colectivo, quando é assumido por de o momento do seu surgimento, inde- formado por via não constitucional, isto
mente a ONU e a OUA. O reconhecimento um conjunto de Estados, quer em asso- pendentemente de ser ou não reconhe- é, por uma revolução, golpe de Estado ou
de um novo sujeito de Direito Internacio- ciação específica, quer no quadro de cido. Modernamente, é esta última teo- qualquer outra vicissitude anómala. Se o
nal é um capítulo clássico do Direito In- uma Organização Internacional. Já quan- ria que recolhe o favor quase unânime da novo Governo surge através dos méto-
ternacional. Nele estabelece-se o concei- to à forma de que se reveste, o reconheci- doutrina internacionalista, dado que é a dos constitucionais estabelecidos, não
to do reconhecimento internacional co- mento pode ser expresso, quando verti- mais consentânea com os princípios da se coloca qualquer problema de reco-
mo sendo o acto pelo qual “um Estado, do numa declaração solene do Estado autodeterminação dos povos e da igual- nhecimento: o reconhecimento de um
constatando a existência de certos factos que reconhece, manifestando inequivo- dade soberana dos Estados. A mesma foi Estado implica o reconhecimento da sua

FERNANDO OLIVEIRA
camente a sua vontade de reconhecer o lapidarmente expressa na Carta de Bo- ordem constitucional, ao abrigo da qual
novo sujeito, ou implícito, quando, sem gotá, de 1948, constitutiva da Organiza- os Governos se vão sucedendo.
haver uma manifestação expressa da ção dos Estados Americanos: “ A existên- O reconhecimento traduz a constata-
(um novo Estado, um governo, uma si- vontade de reconhecer, resulta implici- cia política do Estado é independente do ção e aceitação do novo poder como re-
tuação, um tratado, etc.) declara ou ad- tamente de comportamentos de um Es- seu reconhecimento pelos outros Esta- presentativo do Estado: constata que a
mite implicitamente que os considera tado para com o sujeito reconhecido que dos”. Note-se, contudo, que se o Estado autoridade política que tomou o poder
como elementos sobre os quais serão es- permitem inferir aquela vontade. Como existe para o Direito Internacional antes nessas circunstâncias representa valida-
tabelecidas as suas relações jurídicas” bem se compreende, a verificação de um do seu reconhecimento, a verdade é que mente o Estado na esfera internacional,
(Basdevant, Dictionnaire de la Termino- reconhecimento implícito suscita pro- só com este se criam para ele as bases ju- sem que essa constatação signifique
logie du Droit International – 1960, pg. blemas de prova, pelo que só uma apre- rídicas que possibilitam o livre e pleno qualquer juízo de valor sobre o acto que
508). Conforme seja o objecto do reco- ciação casuística do comportamento em desenvolvimento da sua capacidade de deu origem ao novo Governo. Quando
nhecimento no campo da personalidade causa e do seu contexto permitirá a qua- acção nas relações internacionais. Rete- um Estado nasce, o reconhecimento do
jurídica internacional, distingue-se o re- lificação de que esse comportamento nhamos que a natureza declarativa do Estado implica igualmente o do seu pri-
conhecimento (i) do novo Estado; (ii) do acarreta o reconhecimento. Porém, nu- reconhecimento pode ser estendida ao meiro Governo. Neste caso, o reconheci-
novo Governo; (iii) das Organizações In- ma situação a doutrina é unânime: o es- reconhecimento do novo Governo e das mento do Estado e do Governo como que
Cultura | 17 a 29 de Abril de 2019 HISTÓRIA | 11
se confundem. so, no salão nobre do antigo Palácio do
À questão de saber quando e em que Governador, fez uma declaração solene
condições se deve reconhecer um novo que, pela sua relevância histórica, se cita
Governo, respondem as duas principais aqui: “em nome do Presidente da Repú-
doutrinas neste domínio: a doutrina da blica, proclamo solenemente – com efei-
legitimidade, que defende que só devem to a partir das 0 horas do dia 11 de No-
ser reconhecidos os Governos legítimos, vembro de 1975 – a independência de
à luz de determinados valores, e a doutri- Angola e a sua plena soberania, radicada
na da efectividade, segundo a qual um no Povo Angolano, a quem pertence de-
Governo deve ser reconhecido desde cidir das formas do seu exercício.” E, após
que exerça efectivamente autoridade no esta solenidade, o último representante
território e esteja em condições de cum- de Portugal na colónia foi arrear a ban-
prir os seus compromissos internacio- deira portuguesa na Fortaleza de São Mi-
nais. Esta é, a meu ver, a doutrina mais guel e dali seguiu para a base naval da
correcta, à luz dos princípios gerais do Ilha, onde embarcou todo o dispositivo
Direito Internacional, e a que é mais fre- militar em navios de guerra, os quais
quentemente aplicada na prática inter- permaneceram nas águas territoriais
nacional. Trata-se, com efeito, de uma angolanas (que na altura eram de até 20
decorrência do princípio geral que atra- milhas da costa) até às 0 horas de 11 de
vessa todo o Direito Internacional, o Novembro. À mesma hora, em Luanda,
princípio da efectividade, segundo o na Praça da Independência, o Presidente
qual os factos criam situações legais. Agostinho Neto proclamava a Indepen-
Alguma particularidade assume a dência de Angola e a instituição da Repú-
questão do reconhecimento do novo Es- blica Popular de Angola. No mesmo dia
tado e do novo Governo pelas ou no seio de 11 de Novembro, a Unita, na então No-
das Organizações Internacionais. Quan- va Lisboa, e a FNLA, no Ambriz, procla-
to ao novo Estado, o seu reconhecimento mavam a Independência e a assim deno- Homenagem ao professor
está implícito na sua admissão como minada República Democrática de An-
membro da Organização. Já quanto ao gola. Mas, nesse dia 11 de Novembro,
novo Governo, a questão do seu reco- apenas Agostinho Neto era empossado crática de Angola”, esta entidade teve nhecer e, em 9 de Março seguinte, a esta-
nhecimento acaba por se subsumir no como Presidente da República de Ango- uma vida efémera, esfumando-se sem belecer relações diplomáticas com An-
mecanismo da verificação de poderes: la, e o seu Governo no dia seguinte, en- ter alcançado qualquer reconhecimen- gola. Quanto aos Estados Unidos da
no fundo, trata-se de aceitar ou não a quanto que, em Nova Lisboa, apenas Jo- to, quer bilateral, quer no seio das Orga- América, só vieram a reconhecer o Esta-
qualidade de Governo do mandante que nas Savimbi presidia à cerimónia da In- nizações Internacionais. Aliás, o seu “Go- do e o Governo de Angola, dezoito anos
habilita as pessoas que, em sua repre- dependência e instituição da dita Repú- verno” e o seu “Conselho da Revolução” depois, em 19 de Maio de 1993, com a
sentação, pretendem participar em de- blica Democrática de Angola, na ausên- apenas viriam a tomar posse no dia 3 de Administração Clinton.
terminado órgão da Organização. cia do Presidente da FNLA, Holden Ro- Dezembro, no Huambo, com a ausência A par dos reconhecimentos bilaterais
Neste quadro teórico, como é que se berto, que na altura se instalou no Uíge e notória dos dois Presidentes Holden Ro- – Estado a Estado – a questão do reco-
insere o facto histórico do reconheci- depois em Kinshasa. berto e Jonas Savimbi. A breve trecho, so- nhecimento de Angola colocou-se tam-
mento do novo Estado da Angola inde- Estando assim concentrada em um ou brevieram confrontações armadas entre bém, e com grande acuidade, ao nível das
pendente? dois dias o fim da noite colonial de cinco os dois Movimentos por todas as provín- Organizações Internacionais, designa-
Como é sabido, o problema surgiu séculos de dominação estrangeira, o cias que dominavam. damente a Organização das Nações Uni-
por força das circunstâncias anómalas contexto dramático em que tal acontecia De modo radicalmente diferente, ocor- das e a Organização da Unidade Africa-
em que o novo Estado nasceu, à data era o de uma profunda divisão e confli- reu o reconhecimento da República Po- na, no contexto da admissão do novo Es-
de 11 de Novembro de 1975. Por um tualidade bélica entre os três Movimen- pular de Angola e do Governo por ela ins- tado como membro dessas Organiza-
lado, não houve uma transmissão for- tos de Libertação: um País partido em tituído. Desde logo, na cerimónia da pro- ções.
mal do poder pela potência colonial; três, sem a presença, em nenhum dos clamação da Independência, em Luanda, Na OUA, e após uma dramática Cimei-
por outro, na mesma data irromperam palcos, da potência colonial que abalara fizeram-se presentes representantes de ra dos Chefes de Estado e do Governo,
no território duas entidades recla- nas modernas caravelas. numerosos Estados, maioritariamente realizada entre 10 e 12 de Janeiro de
mando-se, antagonicamente, da quali- A partir daqui, iniciou-se a grande ba- africanos e dos então países socialistas e 1976 – em que 22 Países votaram a favor
dade de um novo Estado. talha pelo reconhecimento internacio- não-alinhados. Essa presença em tal so- da admissão e 22 votaram contra, com
De facto, na tarde do dia 10 de Novem- nal do novo poder instituído, quer como lenidade não podia deixar de constituir uma abstenção – a admissão da Repúbli-
bro, Portugal, pela voz do então Alto Co- novo Estado, quer como novo Governo. uma clara forma de reconhecimento im- ca Popular de Angola acabou por ser
missário Vice-Almirante Leonel Cardo- No que concerne à “República Demo- plícito. Nessa cerimónia, destacou-se a adoptada em 12 de Fevereiro de 1976.
presença do representante do Brasil, o Angola tornou-se, assim, o 46º Estado
Embaixador Ovídio Melo. Para além des- membro da Organização continental,
sa presença, simultaneamente, às 20 ho- numa altura em que 80 Países, entre os
ras em Brasília e meia-noite em Luanda, quais 40 africanos, a tinham reconheci-
o Governo do General Ernesto Geisel do bilateralmente.
emitia uma declaração de “reconheci- Já na ONU, o processo de admissão da
mento do Governo instalado em Luan- República Popular de Angola foi mais
da”. Por isso, a história regista ter sido o problemático e estendeu-se por mais
Brasil o primeiro Estado a reconhecer a quase um ano. Basicamente porque, sen-
República Popular de Angola. E o primei- do o processo de admissão de um novo
ro, por decreto do mesmo dia, a criar membro sujeito a uma dupla apreciação
uma Embaixada em Angola. A partir daí, na Assembleia Geral e no Conselho de
desenrolou-se aquilo que ficou conheci- Segurança, ao nível deste último órgão
do como a “batalha pelo reconhecimen- prevalecia a oposição forte do Governo
to”, centrada numa denodada e eficiente dos Estados Unidos, que brandia a amea-
campanha diplomática, conduzida pelo ça do uso do seu direito de veto. Essa
então Ministro das Relações Exteriores, ameaça só desapareceu quando o Con-
o Eng. José Eduardo dos Santos. A Itália selho de Segurança adoptou a Resolução
foi o primeiro País europeu a reconhecer nº 397, de 22 de Novembro de 1976, na
a República Popular de Angola, em 12 de qual recomendou à Assembleia Geral a
Fevereiro de 1976. Portugal, a ex-potên- admissão de Angola como membro da
cia colonial, que falhara a qualquer das Organização. O que este órgão plenário
cerimónias de proclamação da Indepen- veio a deliberar, em 1 de Dezembro de
dência, só o veio a fazer em 23 de Feve- 1976, tornando-se assim Angola o 146º
reiro desse ano, sendo o 82º País a reco- Estado membro. Esta é uma data históri-
12 | História 17 a 29 de Abril de 2019 | Cultura
Biografia

Fernando Manuel Oliveira nasceu Director do Gabinete do Ministé- no domínio económico, elabora- nementales Attachées à l’Aide au
no Huambo em 1946. Obteve a li- rio da Informação no Governo de ção, nomeadamente, dos projec- Dévelopment,. Ecologie contre
cenciatura em Direito pela Univer- Transição (1975). Ajudante Audi- tos de leis sobre as actividades Souveraineté, 1994; A Protecção
sidade Clássica de Lisboa em tor do Procurador da República económicas e delimitação de sec- Internacional dos Direitos Huma-
1970, D.E.A. de Direito Internacio- (1975-1978). Director do Gabinete tores, sobre os investimentos es- nos em Angola, 1996; A Interven-
nal pela Universidade de Direito, Jurídico do Ministério da Justiça trangeiros, sobre as empresas pú- ção das Nações Unidas na Solu-
Economia e Ciências Sociais de (1978-1986). blicas e sobre a planificação. ção do Conflito Interno Angolano,
Paris (1987). Investigador do Cen- Assessoria jurídica ao Governo Emissão de pareceres e legal opi- 1996; Praticando o Direito, 1998;
tro de Estudos e Investigação da angolano, no domínio legislativo, nions para o exterior, como legal Prédio Comfabril – a Reparação de
Academia de Direito Internacional desde a Independência. advisor independente, em opera- uma Ilegalidade. Recurso para o
de Haia (1994). Delegado de Angola em diversos ções de financiamento internacio- Tribunal Supremo, 1999; Ques-
Professor titular da Universidade comités e conferências internacio- nais à República de Angola. tões Fiscais Administrativas. Pe-
Agostinho Neto (UAN), regente nais de codificação do Direito In- Advogado em Angola, desde 1973, ças & Pareceres, 2005.
desde 1980 da disciplina de Direi- ternacional, na Organização das inscrito na Ordem dos Advogados
to Internacional Público I e Direito Nações Unidas e na Organização de Angola, da qual foi co-fundador.
Internacional Público II (direito do de Unidade Africana. Principais publicações:
Mar) do Curso de Direito da Facul- Consultor do Governo angolano, A Defesa do Consumidor, 1973;
dade de Direito da UAN. Membro com o estatuto de Conselheiro do Textos de Direito Internacional I,
da Comissão Instaladora da Fa- Ministério das Relações Exterio- 1982; Breve Glossário de Latim
culdade de Direito da UAN (1978- res, designadamente sobre a In- para Juristas, 1984; Textos de Di-
80). Coordenador Científico da dependência da Namíbia e a deli- reito Internacional II, 1985; La Rai-
Faculdade (1982-86). Membro da mitação das fronteiras marítimas sonabilité en Droit International,
Comissão de Gestão da Faculda- de Angola. 1987; Les Pouvoirs Impliqués des
de (1990-1997) e Decano eleito da Consultor do Banco Mundial (Pro- Organizations Internationales,
Faculdade desde Fevereiro de jecto PREGE – Componente Legal, 1987; Defesas Penais – Peças Fo-
1997 até 2005. 1994: diagnóstico do quadro legal renses, 1990; Conditions Environ-

1848: Karl Marx publica


o Manifesto Comunista
History.com
Em 21 de Fevereiro de 1848, o Mani-
festo Comunista, escrito por Karl Marx
com a ajuda de Friedrich Engels, é pu-
blicado em Londres por um grupo de
socialistas revolucionários de origem
alemã conhecido como Liga Comunis-
ta. O panfleto político - indiscutivel- culo 19 que buscava um sistema dia- nacionalidade prussiana e foi acom- do depois de sair das prensas em
mente o mais influente da história - léctico e abrangente de filosofia. Em panhado por Engels. Londres, quando a revolução irrom-
proclamava que “a história de toda a 1842, Marx tornou-se editor do Rhei- Durante os dois anos seguintes, peu na França em 22 de Fevereiro de-
sociedade até então existente é a his- nische Zeitung, um jornal democráti- Marx e Engels desenvolveram sua filo- vido à proibição de reuniões políti-
tória das lutas de classes” e que a ine- co liberal em Colónia. O jornal cres- sofia do comunismo e se tornaram os cas realizadas por socialistas e ou-
vitável vitória do proletariado, ou ceu consideravelmente sob sua líderes intelectuais do movimento tros grupos da oposição. Distúrbios
classe trabalhadora, poria fim à socie- orientação, mas em 1843 as autori- operário. Em 1847, a Liga dos Justos, isolados levaram à revolta popular e,
dade de classes para sempre. Origi- dades prussianas o fecharam por ser uma sociedade secreta formada por em 24 de Fevereiro, o rei Louis-Phi-
nalmente publicado em alemão como muito franco. Naquele ano, Marx mu- trabalhadores revolucionários ale- lippe foi forçado a abdicar. A revolu-
Manifest der Kommunistischen Par- dou-se para Paris para co-editar uma mães que moravam em Londres, pe- ção se espalhou como fogo na Europa
tei (“Manifesto do Partido Comunis- nova revisão política. diu a Marx que se juntasse à organiza- continental. Marx estava em Paris a
ta”), o trabalho teve pouco impacto Paris era na época um centro para o ção. Marx aceitou e, com Engels, reno- convite do governo provincial quan-
imediato. Suas ideias, no entanto, re- pensamento socialista, e Marx adop- meou o grupo de Liga Comunista e do o governo belga, temeroso de que
verberaram com força crescente no tou a forma mais extrema do socialis- planejou uni-lo a outros comités de a maré revolucionária logo engoliria
século 20 e, em 1950, quase metade mo conhecido como comunismo, que trabalhadores alemães em toda a Eu- a Bélgica, o baniria. Mais tarde na-
da população mundial vivia sob go- pedia uma revolução da classe traba- ropa. Os dois foram encarregados de quele ano, ele foi para a Renânia, on-
vernos marxistas. lhadora que derrubaria o mundo ca- elaborar um manifesto resumindo as de agitou a revolta armada.
Karl Marx nasceu em Trier, na pitalista. Em Paris, Marx fez amizade doutrinas da Liga. A burguesia da Europa logo esma-
Prússia, em 1818 - filho de um advo- com Friedrich Engels, um colega De volta a Bruxelas, Marx escreveu gou a Revolução de 1848, e Marx teria
gado judeu que se converteu ao lute- prussiano que compartilhava seus O Manifesto Comunista em Janeiro de que esperar mais por sua revolução.
ranismo. Ele estudou Direito e Filoso- pontos de vista e se tornaria um cola- 1848, usando como modelo um trata- Ele foi a Londres para viver e conti-
fia nas universidades de Berlim e Ie- borador vitalício. Em 1845, Marx foi do que Engels escreveu para a Liga em nuou a escrever com Engels, enquanto
na e inicialmente foi um seguidor de expulso da França e se estabeleceu 1847. No início de Fevereiro, Marx en- organizavam o movimento comunista
GWF Hegel, o filósofo alemão do sé- em Bruxelas, onde renunciou à sua viou o trabalho para Londres, e a Liga internacional. Em 1864, Marx ajudou
imediatamente adoptou-o como seu a fundar a Associação Internacional
manifesto. Muitas das ideias do Mani- de Trabalhadores - conhecida como a
festo Comunista não eram novas, mas Primeira Internacional - e em 1867
Marx havia conseguido uma síntese publicou o primeiro volume de seu
poderosa de ideias diferentes por monumental Das Kapital - o trabalho
meio de sua concepção materialista de fundação da teoria comunista. Com
da história. O Manifesto começa com a sua morte em 1884, o comunismo se
as palavras dramáticas: "Um espectro tornou um movimento a ser conside-
está assombrando a Europa - o espec- rado na Europa. Vinte e três anos de-
tro do comunismo", e termina decla- pois, em 1917, Vladimir Lenine , um
rando: "Os proletários não têm nada a marxista, liderou a primeira revolu-
perder a não ser suas cadeias. Eles têm ção comunista bem sucedida do mun-
um mundo para vencer. Trabalhado- do na Rússia.

(https://www.history.com/this-
res do mundo, uni-vos!" ______________

day-in-history/marx-publishes-ma-
No Manifesto Comunista, Marx

nifesto)
previu uma revolução iminente na
Europa. O panfleto mal havia esfria-
Cultura | 17 a 29 de Abril de 2019 DIÁLOGO INTERCULTURAL | 13

Bernard Dabié (1916-2019)


Parte um dos pioneiros
das letras africanas
GASPAR MICOLO

C
nas de obras com elevado sucesso de
onsiderado inequivocamente venda, com destaque para "Noirs dans

Marfim, o escritor Bernard


o pai das letras da Costa do les camps nazis " e "Et si Dieu n’aimait
pas les Noirs : enquête sur le racisme

JosephMiller (1939 – 2019)


Abou Koffi Binlin Dadié, ou aujourd’hui au Vatican". Serge Bilé

Um gigante na História
simplesmente Bernard Dabié, faleceu acaba de lançar, no início deste mês, a
no passado dia 9 em Abidjan, aos 103, sua obra "Mes Années Houphouët",
deixando assim um vasto legado nas em que reconta episódios da vida do
letras africanas, não fosse ele um dos então primeiro Presidente da Costa

de África e de Angola
seus pioneiros, deixando marcas de do Marfim, Houphouet-Boigny. Na
forma brilhante, em todos os géneros, obra, o jornalista dedica um capítulo
da poesia ao teatro. completo à vida de Dabié, revelando
No passado dia 10 de Janeiro, o es- aspectos reconhecidos da sua bravu-
critor comemorou os seus 103 anos, o ra. "Bernard Dadi é o símbolo das le-
que, claramente, levantou muitas cu- tras da Costa do Marfim, o símbolo da
riosidade sobre o segredo da sua lon- resistência literária, o símbolo do

Reconhecido pelos seus pares, JosephMiller deixa um


gevidade. Mas, Bernard Dabié já esta- não", diz o escritor marfinense Josué

trabalho excepcional e pioneiro na historiografia angolana.


va fragilizado e vivendo na sua habi- Guébo, ex-presidente da Associação
tual discrição e uma elogiada dignida- de Escritores da Costa do Marfim, que
de. Só algo o irritava: já não podia es- participa no livro de Serge Bilé. "Ele se O caminho que abriu foi seguindo por vários historiadores,
crever, "enquanto ainda tinha muito a opunha à colonização, bem como à
aos quais apoiou até a sua partida.
dizer", terá confessado a um parente, neocolonização".

GASPAR MICOLO
no verão de 2017. Dabié, que conside- Ao lado de gigantes como Léopold
rava que o escritor "é um intérprete Sédar Senghor e Aimé Césaire, Ber- pensamento histórico, assim como em
do seu povo", foi dos primeiros dra- nard Dadié, duas vezes vencedor do estudos adicionais em antropologia.
maturgos africanos em francês, e em Grande Prémio Literário da África Ne- O conhecido historiador norte- Ao longo da sua carreira, Miller rece-
toda a sua obra há o casamento entre o gra, pertence ao panteão das letras americano JosephCalderMiller, de 79 beu vários prémios; entretanto, reve-
tradicional africano e o mundo mo- africanas de expressão francesas. anos, não resistiu a um cancro agressi- lou-se mais orgulhoso quando lhe foi
derno, numa escrita sempre elegante, Nascido em 1916 em Assinie (80 vo no passado dia 12. Professor de atribuído o Prémio Herskovits pela As-
rica em poesia, humor e uma militân- km a leste de Abidjan), Dabié encon- História na Universidade de Virgínia, sociação de Estudos Africanos pela mo-
cia da liberdade. tra, durante toda a sua vida, um equilí- o académico contribuiu com várias numental obra “WayofDeath: Merchant
Há um ano, o renomado escritor brio entre, por um lado, a necessidade obras sobre a História de África, no- CapitalismandtheAngolanSlaveTrade,
perdeu a sua companheira Rosalie As- de escrever o que sempre o animou e, meadamente a de Angola e a do Tráfi- 1730–1830” (Caminho da Morte: O Ca-
samala, com quem casara em 1950, e por outro lado, as contingências da co de Escravo Transatlântico. pitalismo Mercante e o Comércio de Es-
teve nove filhos. E isso afectou profun- política que ele sofreu. Não admira Durante os quarenta e seis anos em cravos Angolanos, 1730-1830).
damente Dabié, um homem apaixona- que tenha entrado explorado a narra- que trabalhou na universidade, Miller O Jornal de Cultura apurou que o
do pela esposa. É que, enquanto secre- tiva autobiográfica. recusou outras posições, incluindo um destaque da sua carreira ocorreu no
tário de informação do Partido Demo- Indicado pelo governo do seu país convite para ingressar na Faculdade de ano passado, depois de aposentado,
crata da Costa do Marfim, que lutava a candidato ao Prémio Nobel, em História, em Harvard. Conhecido como com dois eventos extremamente espe-
pela independência, Dabié esteve pre- 2014, Dabié parte assim sem o galar- um gigante no campo da História de ciais: Millerfoi inserido na turma de
so entre Fevereiro de 1949 e Março de dão que muitos achavam merecer. Ao África e da História mundial da escravi- 2018 da Academia Americana de Artes
1950 e a sua querida Rosalie percor- juntar-se à sua eterna companheira, dão, o seu trabalho concentrou-se no e Ciências, uma conquista excepcional-
ria quilómetros para o ver na prisão. deixa uma vasta obra que falará por tráfico de escravos e escravatura, espe- mente notável, reconhecendo o seu
Casados depois de livre da prisão, Ro- si, não fosse o escritor um intérprete cialmente em todo o Atlântico Sul. trabalho inovador ao longo de uma lon-
salie desempenha outra vez um im- do seu povo. "Ele partiu enquanto vi- Publicada originalmente em 1976, ga carreira; depois, realizou-se um co-
portante papel na vida de Dabié. O es- via", disse o sobrinho Joseph Anoma a sua obra “Kings andKingsmen”, tra- lóquio em sua homenagem, "África na
critor e jornalista marfinense Serge à Jeune Afrique. E "(...) lutou até o úl- duzida para o português, “Poder Polí- História Global", organizado pelos seus
Bile reconhece que Rosalie "desempe- timo suspiro". tico e Parentesco – Os Antigos Estados antigos alunos, colegas e amigos do
nhou um papel importante na sua car- Mbundu em Angola” acabou por ser Harvard Center for AfricanStudies.
reira literária e ele conseguiu, através editada em 1995 pelo Arquivo Histó- Valorizando o testemunho oral co-
dela, levar uma vida extraordinária". rico Nacional (AHN), numa iniciativa mo imprescindível para o estudo das
Com uma vasta obra premiada, Da- que marcava o 20º Aniversário da In- sociedades africanas, o trabalho de Jo-
bié viria a desempenhar várias fun- dependência de Angola. sephMiller “foi pioneiro, no caso de
ções dentro da administração de Félix No prefácio à referida obra, assinado Angola”, sendo assim “exemplo de in-
Houphouët-Boigny, então secretário pela então directora do AHN, Rosa Cruz vestigação onde se relacionam os mé-
geral do seu partido, depois da inde- e Silva, que viria a ser a ministra da Cul- todos da História e da Antropologia
pendência do país em 1960, mas viria tura, justifica-se qua o trabalho do Pro- (com apoio da Linguística), abriu um
a discordar deste em diferentes oca- fessor Miller “responde aos anseios de caminho essencial ao conhecimento
siões. Chegou ainda a ser ministro da uma historiografia renovada que se re- do passado angolano”, escreveu Rosa
Cultura e Informação do país em clama entre nós e se constrói com base Cruz e Silva sobre o historiador que,
1977. "Bernard Dadié teve a coragem numa metodologia de complementari- enquanto presidente da Associação
de lutar contra a ordem colonial e da dade das fontes disponíveis para o de Estudos Africanos (2005-2006) e
luta contra Houphouet-Boigny, quan- exercício do fazer histórico”. da AmericanHistoricalAssociation
do dele discordou", diz Serge Bilé à Miller destaca-se assim pelo seu re- (1998), dedicou-se a orientar outros
Jeune Afrique. "Eles tiveram confron- curso às fontes orais, aliado à explora- estudiosos e apoiou os esforços para
tos que não eram simples", diz o jor- ção das fontes escritas, em trabalhos construir redes entre os pesquisado-
nalista emérito, autor de duas deze- rigoroso, quer na sua abordagem do res da África lusófona.
14 | BARRA DO KWANZA 17 a 29 de Abril de 2019 | Cultura

FRANCISCO
NETO

O
angolano, sabe-se lá como ga-
nhou este hábito, dentro das
suas fronteiras, é conhecido
como muito hospitaleiro. Fora delas, e
ainda terá de se descobrir quando é
que começou, é conhecido como ex-
cessivamente vaidoso e pródigo. Em
algumas paragens, dizem com fre-
quência: o angolano gasta à toa!!…
Entretanto, como tudo na vida, exis-
tem algumas excepções nestas famas
que o angolano ostenta dentro e fora
das suas fronteiras. Passo a contar co-
mo nasceram:
Era sábado à tarde. A Rua de Nazaré
estava apinhada de gente, por culpa de
uma grande briga que acabara de

A fama do angolano
acontecer. Nos vários séquitos forma-
dos, ecoavam sonoras gargalhadas. As
pessoas contavam como fora aquela
briga entre o Stefen e o seu grande
amigo Durão, inclusive, uns imitavam
os golpes que os dois contendores se
disferiram. Noutras catervas, havia
forte admiração nos rostos. Era-lhes
difícil acreditar que os dois amigos ha-
viam pugnado tão ferozmente. Eram
como irmãos. zendo quem eram as pessoas que apa- comunidade portuguesa em Luanda. para o local onde se encontravam to-
Num repente, todos os integrantes reciam nas fotografias. Aos poucos, os A partir daquela data, quando os por- dos os convivas.
daqueles grupos, os admirados e os portugueses, que acompanhavam tugueses se referiam aos angolanos, Vendo-os tão sorridentes, Kama-
sorridentes, pregaram o olhar no Ka- emudecidos, foram alterando o sem- em forma de jargão, diziam: “é um que tumbo, que respondera sem pensar,
matumbo, que acabava de fazer a es- blante. Motivo: Kamatumbo mostra- tem muitas mães e muitos pais”. Para notara a ingente necedade que come-
quina do Peter Fonda, como ficara afa- va-lhes muitas mães e muitos pais. eles, a fama de povo hospedeiro que os tera. É que aquela tristeza lhe surgira
mada a ligação entre a Rua de Nazaré e “Esta é a minha mãe grande. Esta é a angolanos ostentavam terminara na- de chofre porque, ao ver aquela mesa
a do Amaral de Baixo. Na verdade, os minha mãe de casa. Esta é a minha quele sábado em que o Stefen pugnara farta, lembrou-se de que os seus fi-
mirones olhavam para os dois senho- mãe menora. Esta é a minha mãe cas- contra o seu amigalhaço Durão. lhos, se calhar, naquela noite estavam
res de raça branca que vinham com o sule”- “Este é o meu papá de casa. Este Passados muitos anos depois des- a dormir sem jantar, pois a sua empre-
Kamatumbo. Eram seus colegas na é o papá grande. Este é o meu pai me- te episódio, certa noite, Kamatumbo, sa estava com muitos salários atrasa-
empresa Soares da Costa. nor. Este é o meu pai pequeno”. Coisa que já trabalhava para uma empresa dos. Falou do cabrito porque era o que
Ao passarem, Kamatumbo foi acenan- de angolano! pública de transportes como motoris- lhe ocorria naquele instante. Comer e
do para os grupos de prosadores, sem Depois de terminarem o passeio pe- ta e apoiava a Selecção do Gana, por al- guardar, dentro de si, para depois le-
parar. Os seus acompanhantes, imitan- lo álbum, quando Kamatumbo o levou tura do Can 2010, realizado em Ango- var para os filhos.
do-o, faziam o mesmo. Em casa, a esposa de volta, os dois portugueses entreo- la, achava-se em grande festejo com a Kamatumbo juntou-se aos homens
do Kamatumbo recebeu com elevada lharam-se com espanto e, de seguida, equipa ganense, que celebrava a sua sorridentes e disse-lhes que estava a
pompa os colegas do esposo. Aliás, o encolheram os ombros. Regressado, passagem à final da competição. brincar. Estes não acreditaram e, mi-
bem-receber era a marca dos angolanos. Kamatumbo, novamente, conseguiu Naquela luxuosa sala do Hotel, de nutos depois, Stephen Appiah escre-
A seguir, a mesa esteve linda. Prenhe meter sorriso grande na boca dos seus súbito, Kamatumbo isolou-se dos de- veu na sua conta do Facebook: ganen-
com os vários manjares e as bebidas. visitantes. Contou-lhes várias cenas mais convivas. Seu rosto perdera toda ses, contem connosco. Seremos cam-
Depois do almoço, as cervejas de do Quadrado. Naquele sábado, até o a alegria. Seus olhos perderam o ful- peões, porque o nosso desejo não é ser
marca Super Bock, geladinhas, foram nome do Boy Quim, que era o grande gor. Sentado, absorto, Kamatumbo cabrito como os angolanos, É ser cam-
as companheiras na cavaqueira. En- vilão do Quadrado, se maculara na bo- prendera as mãos no queixo e o olhar à peões de África!!!
quanto avançavam os tragos, as garga- ca dos forasteiros. mesa, recheada de comidas e bebidas. Ainda naquela noite, a fama do de-
lhadas também ganhavam maior to- A noite era incipiente, quando os Vendo-o naquele estado, Asamoah, Jo- sejo dos angolanos, em serem cabri-
nalidade. Os dois portugueses conta- portugueses descolaram as nádegas nathan Mensah e Stephen Appiah tos, tornou-se famigerada. Depois de o
vam variadíssimas anedotas. Cenas das cadeiras. Nas bocas, ao despedi- abeiraram-se dele. O último indagou- campeonato terminar, com vitória do
bem hilariantes. rem-se, houve um pedido veemente: o o motivo daquela sua apatia repenti- Egipto, no Gana, os angolanos, foram
Ouvindo as cenas dos forasteiros, a da próxima vez, queremos conhecer o na. Sem sequer desprender as mãos cognominados de “os desejosos de ser
anfitriã lembrou-se da luta que ocor- Boy Quim, ao que Kamatumbo respon- do queixo e o olhar da mesa, Kama- cabritos”. E esta fama arrasta-se até
rera na rua. Contou-lhes também. Os deu prontamente: está combinado! tumbo respondeu aos dias hodiernos.
portugueses sorriram à beça e pude- Quando os dois portugueses chega- - Neste momento, estou com um E foi deste jeito que nasceram as
ram entender porquê que encontra- ram ao condomínio da empresa, que forte desejo de ser um cabrito. duas excepções às famas dos angola-
ram a rua grávida de gente. Quando as se localizava na Vila Alice, sem delon- Os três soltaram uma estrondosa nos. Dentro das suas fronteiras, os
gargalhadas terminaram, Kamatum- gas, contaram logo a grande novidade gargalhada de repente. O barulho da portugueses passaram a chamá-los de
bo foi buscar o álbum de fotografias. que encontraram na casa do Kama- mesma retirou Kamatumbo daquele “os que têm muitos pais e muitas
Era preciso mostrar a sua família aos tumbo: os angolanos têm muitas mães estado. Com as mãos fora do queixo, mães”. Fora delas, no Gana, são apeli-
colegas portugueses. Enquanto apre- e muitos pais. Na manhã seguinte, es- levou o olhar, agora cheio de pasmo, dados de “os desejosos de ser cabri-
ciavam o álbum, Kamatumbo foi di- ta novidade era de domínio de toda a aos três gargalhadores, que voltavam tos”. Tudo por causa do Kamatumbo…
Cultura | 17 a 29 de Abril de 2019 Património cultural | 15

“Necessitamos de um espaço compatível


Soraia Santos, directora do Museu Regional da Huíla:

com os padrões da museologia internacional”


técnico de catalogação e conserva-
ção do acervo?
De facto, o espaço é reduzido. Ape-
nas um novo Museu poderá resolver
O Museu conta com apenas 5 fun- essa questão do espaço. Mesmo as-
cionárias efectivas. Por sermos pou- sim temos procurado ter também es-
cas não temos papéis definidos, faze- se serviço aberto ao público e temos
mos de tudo um pouco. Temos neces- tido muitos utilizadores do espaço,
sidade de, pelo menos, mais três fun- principalmente estudantes do Ensi-
Soraia Santos cionários para a área técnica e inves- no Superior.

no que toca a pessoal capacitado


tigação e três para limpezas e jardi-

para a investigação antropológica


nagem. A falta de Recursos Humanos

e sociológica na região, com quem


e falta de um meio de transporte são,

conta o museu, que necessidades


sem dúvida, as maiores carências do

se fazem sentir e onde buscar es-


Museu neste momento.

a biblioteca contém livros raros ses técnicos?


e antigos muito úteis para pesqui-
sa. Quem a tem frequentado?
O Departamento de Investigação é
um dos mais importantes dentro dos
A nossa biblioteca tem cerca de 8 Museus, apenas técnicos com forma-
mil livros e estão todos à disposição ção especifica estão capacitados a fa-
de estudantes e investigadores que zer investigação. Para além de mim, o
necessitem de os consultar. Abrimos MRH tem contado com os estudantes
em 2013 uma sala de leitura onde es- finalistas do ISCED-Huíla que nos
sa consulta pode ser efectuada. Ne- vão disponibilizando o resultado das
nhum livro sai da instituição, a con- suas investigações nas áreas da An-
sulta é feita no local. tropologia Cultural, História e Ar-

o espaço destinado à biblioteca


queologia. Para dinamizarmos o De-

pareceu-nos muito reduzido, mes-


partamento de investigação necessi-

mo para albergar os 8 mil livros da


tamos de pelo menos um técnico su-

colecção. como superar esse pro-


perior com experiência em investi-

blema?
gação e de um meio de transporte pa-
ra trabalhos de campo de pesquisa e

Biografia
JoSÉ luÍS mEnDonÇa
queológicos da Pré-História, uma co-
lecção de postais, uma pequena co-
lecção de numismática, uma colec- Soraia de Fátima Martins dos San- tos na área do Património Cultural
ção de selos e a estatuária colonial tos Ferreira, natural do Lubango, enquanto técnica da Direcção Pro-

D
esde a sua fundação, em que conta com quatro bustos (Luís aos 17 de Maio de 1981, é licencia- vincial da Cultura da Huíla. Em
1956, o Museu da Huíla fun- de Camões, José Agapito da Silva Car- da em História, variante Arqueolo- 2014, é nomeada Directora do Mu-
ciona em instalações provisó- valho, D. José da Câmara Leme e An- gia, pela Universidade de Coim- seu Regional da Huíla onde, desde
rias, que hoje já não se coadunam tónio Augusto Peixoto Correia) e bra. Na mesma Instituição de En- então, coordena todo o trabalho
com os padrões da museologia inter- duas estátuas (João de Almeida e Ar- sino Superior especializa-se em técnico, projectos de investiga-
nacional, nem com a magnitude da tur de Paiva). Dessa sete colecções Museus e Património Cultural. An- ção e museológicos. É ainda, des-
História dos povos da região. O Jor- apenas duas podem ser visitadas, a tes de regressar a Angola tem de 2013, docente colaboradora no
nal de Angola apresenta, pela voz de de Etnografia do Sul de Angola e a de contacto com o mundo profissio- ISCED-Huíla. Ao longo dos anos
Soraia Santos, directora do museu, o estatuária colonial. nal trabalhando no Museu Mono- tem participado em diversas con-
quadro das actividades que fazem a O Museu funciona num edifício gráfico de Conimbriga e partici- ferências nacionais e internacio-
ligação mais directa com um público adaptado às funções de museu desde pando em diversas campanhas de nais, como conferencista e com
mais vasto e a visão futurista da ins- a sua fundação em 1956. Já nessa altu- escavação e acompanhamentos artigos publicados nas revistas
tituição que dirige. ra, e segundo as fontes, as instalações arqueológicos. O seu regresso a Africana Studia e Diálogos com a
Angola acontece em 2009, ano em Arte, bem como em diversas Ac-
o museu regional da Huíla pos-
eram provisórias, portanto, sim, ne-
que começa a desenvolver projec- tas de encontros científicos.
sui um acervo que permite contar
cessitamos de um espaço novo, conce-

a história da região Sul de angola


bido de acordo com os padrões da mu-

desde a pré-história aos dias de


seologia internacional. Esse projecto

hoje. mas, o espaço físico do mu-


existe, desde 2014, é um projecto do

seu é suficiente? o que falta, afi-


Governo provincial, mas, infelizmen-

nal, construir no lubango, em ter-


te, a crise económica que o país vive,

mos museológicos?
também desde essa altura, não permi-
tiu a execução do mesmo.

Quando o museu recebe muitas


O MRH conta com várias colecções,

visitas, o pessoal técnico tem de se


uma de Etnografia do Sul de Angola,

desdobrar e ocupar-se do acom-


uma de Etnografia portuguesa, uma

panhamento. Qual seria a situação


colecção fotográfica com cerca de

ideal, em termos de pessoal, por


2000 fotos que retratam as várias fa-

forma a não prejudicar o trabalho


ses de evolução da cidade do Luban-
go, uma colecção de artefactos ar-
16 | património cultural 17 a 29 de Abril de 2019 | Cultura

recolha de dados e até mesmo reco- pelo Banco Económico, a apresenta-

Quais são os projectos em curso,


lha de novas peças para a Instituição. ção do obra "História de Angola. Da

que fazem a ligação com o público


Pré-História ao início do século XXI"

e as academias?
de Alberto Oliveira Pinto, sendo esta
a primeira apresentação pública da
Temos o MEC (Museu ao Encontro obra em Angola, patrocinado pela fá-
das Comunidades) que tem como ob- brica de água Preciosa e a finalização
jectivo darmos a conhecer o MRH fo- do projecto de reabilitação do jardim
ra de portas. Fazemos palestras so- do Museu que contou com o apoio da
bre o Museu, o que é, para que serve, Água Preciosa, Planasul e Conser.
em escolas, Instituições de Ensino Costumo dizer que foi o melhor ano
Superior e pretendemos, em breve, do Museu em termos de realizações.
abrange-lo às comunidades mais ru- Para 2019 esperamos uma dinâmi-
rais. ca idêntica, também muito apoiada
Para os mais pequeninos temos a nos patrocínios de empresas locais.
sala "O contador de Histórias" que Esperamos poder conferir ao nosso
tem como objectivo estimular o gos- depósito principal as condições ade-
to pela leitura, privilegiando a litera- quadas à conservação das peças, es-
tura infantil de autores nacionais e tamos a trabalhar num projecto que
esperamos ainda, durante este ano, implica a concepção de uma nova ex-
implementar o projecto "Descobrir posição permanente, uma vez que es-
quem somos" (do qual posso falar ta já está montada há 10 anos e espe-
quando arrancar). ramos montar uma exposição tem-
2018 foi um ano muito positivo pa- porária em Junho. Para além disso te-
ra o MRH que, com a ajuda do empre- remos uma agenda cultural ao longo
sariado local, conseguiu concretizar de todo o ano que conta com apre-
objectivos antigos, como o lança- sentações de dança, teatro, poesia,

A escravatura moderna
mento do catálogo da exposição per- jazz e projecções de documentários
manente "A Herança Secular dos Po- que divulguem a grande diversidade
vos do Sul de Angola", patrocinado cultural do Sul de Angola.
Marcelina Hiange, à esquerda e Zenguela Costa, à direita

A escravatura moderna é um crime em 2000. A ONU introduziu o termo


contra a humanidade. Embora alguns “tráfico de pessoas” e omitiu refe-
tipos de escravização, como o tráfico rências de casamento forçado do
sexual, sejam amplamente conheci- Protocolo de Palermo amplamente
dos, outros se escondem à vista. A es- adoptado. Mas em 2013, a Assem-
cravização acontece em muitas in- bleia Geral da ONU reconheceu o ca-
dústrias - incluindo restaurantes, tra- samento forçado como uma forma
balho doméstico, electrónicos, cons- de escravidão.
trução, têxteis, aço e frutos do mar. As definições são importantes
Mas exactamente quantas pes- porque influenciam a maneira como
soas hoje vivem na escravidão? Seja o público e os formuladores de polí-
medindo a escravidão moderna nos ticas interpretam o assunto. Em tri-
EUA ou em todo o mundo, existem bunal, por exemplo, o termo “tráfico
estimativas diferentes e inconsis- de pessoas” pode ser mais persuasi-
tentes. Em 2017, estimava-se que vo para os jurados do que um termo
havia cerca de 40 milhões de pes- como “escravidão”.
soas escravizadas em todo o mundo. Para os pesquisadores, as nuances
Para alguém que pesquisa a escra- também são importantes quando se
vidão moderna, calcular a sua preva- trata de estimar o número de pes-
lência é como encontrar uma agulha soas escravizadas. Algumas organi-
num palheiro. Uma figura válida é elu- zações incluem o casamento forçado
siva e, no entanto, essencial para que nas suas estimativas da escravidão
políticas melhores libertem as pes- moderna; outros não o fazem.
soas escravizadas e as ajudem a fazer Outros ainda discordam sobre
a difícil transição para a libertação. quando as condições de trabalho

Definindo a escravidão moderna


severas merecem o rótulo de “es-
cravidão”. A Organização Interna-
cional do Trabalho disse: “Nem to-
As definições da escravidão moder- das as crianças que são expostas
na mudaram com o tempo. ao trabalho perigoso são 'escra-
Em 1926, a Liga das Nações defi- vas', e nem todos os trabalhadores
niu a escravidão como o “status ou que não recebem um salário justo
condição de uma pessoa sobre a qual são forçados."
qualquer ou todos os poderes liga- Entre as estimativas publicadas de
dos ao direito de propriedade são casamento forçado, os números são
exercidos”. A ONU ampliou essa defi- impressionantes. Com base em seus
nição em 1956 para incluir casamen- cálculos, a UNICEF estima que apro-
to forçado e mais protecções pelos ximadamente 650 milhões de meni-
direitos das mulheres. nas e mulheres vivas hoje se casaram
As coisas mudaram novamente antes de completarem 18 anos.

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