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Neste capítulo, são apresentadas as virtudes de alguns peixes em particular, concretamente em quatro: o

peixe de Tobias, o torpedo, a rémora e o quatro-olhos.

Por que razão o padre António Vieira selecionou apenas este quatro e não outros peixes
quaisquer? Para o orador, por um lado, discorrer sobre as virtudes de todos os peixes seria matéria
“infinita” (daí só referir alguns); por outro lado, estes peixes são os que possuem características que os
distinguem dos outros por causa das suas virtudes; além disso, adequam-se melhor à intenção
argumentativa e persuasiva do texto.

Antes de descrever o peixe em concreto, o padre Vieira conta o episódio bíblico que se lhe refere.
O velho Tobias ordenou a seu filho Tobias que fizesse uma viagem até junto do seu povo para cobrar uma
dívida e ao mesmo tempo tomar esposa entre as mulheres da sua tribo. Acompanhado pelo Anjo São
Rafael, quando caminhava à beira de um rio e tentou lavar as mãos do pó do caminho, um peixe enorme
abriu a boca para o comer. Ao ver-se atacado, Tobias gritou e logo o socorreu o anjo, que lhe disse que
não tivesse medo e o aconselhou a puxar o peixe para terra, retirar-lhe as entranhas e guardá-las, que
lhe “iam servir de muito”. Tobias assim fez e retirou-lhe o fel e o coração, que possuíam duas qualidades:
o fel curava a cegueira e o coração afastava os demónios.

Apresentadas as virtudes, o padre Vieira procede, seguidamente, à sua demonstração. Sendo o


pai de Tobias cego, recuperou totalmente a visão depois de, a conselho de São Rafael, lhe ter sido
aplicado um pouco de fel extraído do peixe. Por outro lado, o coração do peixe, quando queimado em
casa, servia para expulsar os demónios que nela existissem, o que se veio a comprovar no caso de Sara,
que tinha na sua habitação o demónio Asmodeu, que já lhe tinha matado sete maridos. Sara e Tobias
filho casaram, ele queimou na casa parte do coração do peixe, o demónio fugiu dali “e nunca mais
tornou”. Assim se comprovaram as virtudes das entranhas do peixe de Tobias.

De seguida, o orador estabelece uma analogia entre o peixe e Santo António, referindo que as
suas palavras tinham o mesmo poder que as entranhas do peixe. De facto, o santo “abria a boca contra
os hereges e enviava-se a eles, levado do fervor e zelo da Fé e da glória divina”, mas eles reagiram e
gritaram contra ele como o peixe de Tobias, porque “cuidavam que os queria comer”, isto é, não o
entenderam e atacaram-no. Observe-se a metáfora e a interrogação «Pois a quem vos quer tirar as
cegueiras, a quem vos quer livrar dos Demónios, perseguis vós?!”, que acentua a ideia de que os homens
vivem cegos (isto é, em pecado) e atacam quem quer curar a sua cegueira (ou seja, recolocá-los no
caminho do bem) e exprime a indignação do orador com os seus ouvintes por causa da hostilidade que
demonstram relativamente a quem só quer o seu bem). Sucede que, se alguém revelasse a esses
homens o coração e as entranhas do santo, descobririam as duas virtudes que simbolizam: a cura da sua
cegueira, dos seus pecados e da sua ignorância, e a expulsão dos demónios de casa. No entanto, há uma
diferença entre Santo António e o peixe: o primeiro pregava (abrir a boca) contra os hereges, contra
aqueles que não se queriam purificar (observe-se o trocadilho com a expressão «abrir a boca» a
expressividade da metáfora / polissemia do verbo «lavar») pela palavra de Deus, enquanto o segundo
abria a boca “contra quem se lavava”.

Dito de outra forma, neste passo do sermão o padre Vieira compara o poder e a virtude do peixe
com a mestria da pregação e da doutrina de Santo António: os homens que ouvissem as suas palavras
libertar-se-iam da cegueira, dos demónios, do mal, ou seja, dos vícios que os corrompiam, emendar-se-
iam e mudariam de vida. Aqui se discerne a alegoria deste passo: a palavra de Deus ilumina e afasta os
vícios dos homens. Por outro lado, a dimensão crítica é também evidente: Vieira critica os homens que,
cheios de vícios e pecados, não se deixam doutrinar, não se querem purificar, nem corrigir os seus erros,
nem abandonar os seus vícios.

O louvor do peixe de Tobias finaliza com uma apóstrofe aos «moradores do Maranhão», que
constitui um apelo («Abri, abri estas entranhas; vede, vede este coração.») a que vejam as entranhas
dele mesmo – padre Vieira – e o seu coração puro e virtuoso, porque curam a cegueira do pecado.
Todavia, a ironia das duas frases finais do parágrafo – o orador “relembra” que não prega aos homens,
mas aos peixes – servem para cativar e prender a atenção do seu auditório, mas também para
escancarar a sua mágoa pelo facto de esse mesmo auditório ignorar a sua mensagem, a sua pregação,
cuja única finalidade é curar-lhes a cegueira e libertá-los do mal (algo que eles não percebem).

Seguidamente, o padre António Vieira apresenta outro exemplo, o da rémora, cujas características
são as seguintes: é um «peixezinho tão pequeno no corpo e tão grande na força e no poder». De facto,
estamos na presença de um peixe de pequenas dimensões que possui uma barbatana dorsal
transformada em ventosa. Segundo a ideia exagerada de obras da Antiguidade, como, por exemplo, a
História Natural, de Plínio (séc. I d.C.), este animal teria a propriedade de fazer parar uma nau se se
pegasse ao seu leme. Repare-se na forma como é justificada a sua integração no sermão: se naquele dia
se celebra Santo António (13 de junho), que é um “santo menor”, então terá todo o cabimento
incorporar no texto um peixe também menor. E acrescenta que se trata de uma preferência (“devem
preferir” = devem ser preferidos) de caráter obrigatório.

O uso do diminutivo «peixinho» chama a atenção do ouvinte para as dimensões reduzidas do


animal e traduz a afetividade do orador para com ele. O contraste entre o seu tamanho (acentuado pelo
advérbio «tão») e as características morais que o tornam “tão grande na força e no poder” configuram a
prevalência do espírito sobre o corpo. Para exemplificar esse poder da rémora, Vieira seleciona um
objeto que é o “leme de uma nau da Índia”. Ora, esta era o tipo de embarcação mais possante da época;
por outro lado, a Índia é um local bem distante de onde regressavam as naus normalmente muito
carregadas; além disso, a referência a elementos como «velas» e «ventos», os quais possibilitam a
deslocação do barco e atuam em conjunto (“das velas e dos ventos”), o que torna muito mais difícil a
tarefa de os anular, aliada à expressão coordenada, com valor também concessivo, que destaca o peso e
o tamanho da rémora, contribuem para a criação de um contraste entre o animal e os elementos contra
os quais é representado a agir, contraste esse que traduz a desproporção entre a gigantesca nau ou a
força dos ventos e das velas que a fazem mover. Apesar disso, a rémora é capaz de “prender e amarrar”
a nau “mais que as mesmas âncoras” (atente-se na imagem, na comparação, na interrogação retórica e
na hipérbole).
A interjeição «Oh» que abre o período seguinte introduz um desejo do orador: o de que houvesse
uma rémora na terra, com tanta força como a do mar, que diminuiria o número de calamidades (“perigos
na vida” e “naufrágios no mundo”) que se abatem sobre os homens.

Posteriormente, o padre Vieira estabelece uma analogia entre a rémora e Santo António: a existir,
a rémora na terra seria a língua do santo. Esta ideia é sustentada por um argumento de autoridade: a
citação de S. Gregório Nazianzeno (“Na verdade, a língua é pequena, mas tudo vence pela força.”). De
seguida, explica a relação existente entre a «língua» e os objetos que têm como função guiar ou travar o
percurso: o «leme» da nau e o «freio» do cavalo (metáforas). A rémora “é freio da nau e leme do leme”.
As virtudes e a força são pertença da língua e esta, por sua vez, pertence a Santo António.

No período seguinte, através de uma imagem que sugere a existência de uma nau, associa o livre-
arbítrio (“alvedrio”) inerente aos homens ao «leme» e a «razão» ao piloto. Recorrendo à conjunção
coordenativa adversativa «mas», o orador estabelece um contraste entre o que deveria ser (o que
acabou de referir) e aquilo que é e que se encontra demonstrado no quantificador indefinido «poucas»,
intensificado pelo advérbio «quão», que, por antítese, denuncia o grande número de vezes que o
homem erra; e o adjetivo «precipitados», qualificador do nome abstrato «ímpetos» – que têm origem no
«alvedrio» – anula a submissão à razão, como é indiciado pela frase interrogativa. Porém, o leme é “tão
desobediente e rebelde” e Vieira compara a língua do santo à rémora, realçando a semelhança entre a
força do peixe e a da língua de Santo António “para domar e parar a fúria das paixões humanas”. Dito de
outra forma, as suas palavras foram “uma rémora na terra”, dado que conseguiram domar as paixões
humanas. Note-se, neste passo, a expressividade do nome «fúria», que sugere uma circunstância de
agressividade e irracionalidade, e da gradação presente nos verbos «domar» e «parar», pois o primeiro
refere-se a um ato de submissão e o segundo remete para uma situação de cessação/fim de algo.

O padre Vieira prossegue o seu discurso alegórico, apresentando quatro exemplos que confirmam
a ideia de que ele foi uma rémora entre os homens, porque conseguiu “domar a fúria das paixões
humanas”:

▪ a nau Soberba, com as velas inchadas pelo vento, não se desfez contra os rochedos, porque as
palavras de Santo António a salvaram;

▪ a nau Vingança, carregada de ira e de ódio, encontrou a paz através das palavras do santo;

▪ a nau Cobiça, sobrecarregada até às gáveas com uma “carga injusta”, foi salva das garras dos corsários
pela ação de Santo António;

▪ a nau Sensualidade, perdida na cerração e na noite, iludida pelos cantos das sereias, encontrou a
salvação, seguindo a luz das palavras do santo.

O orador começa, pois, por nos falar dos homens dominados pela soberba e que, por isso,
navegam num navio “com as velhas inchadas do vento e da mesma soberba”. Estas orações demonstram
a rapidez com que a embarcação e os seus ocupantes se deslocam («correndo»). A imagem das velas
enfunadas sugere que o vento é propício a uma navegação veloz. Nota-se, porém, aqui o
estabelecimento de uma analogia entre a imagem do vento a enfunar as velas e a da soberba (“que
também é vento”), que é tão vazia quanto o vento e, tal como ele, obriga os homens a movimentarem-
se com rapidez excessiva. Esta atitude coloca-os na iminência do perigo (“se iam desfazer nos baixos”),
ideia reforçada pela metáfora «rebentavam». No entanto, a língua de Santo António, mais uma vez
comparada à rémora, impediu que esta situação de destruição se concretizasse: “… se a língua de
António, como rémora, não tivesse mão no leme” (metáforas). A sua língua funciona como a mão de um
piloto experiente, guiando a nau por um rumo certo, mantendo o leme na posição devida, “até que as
velas se amainassem”. Ou seja, embora seja Santo António quem mantém o rumo, são as velas que, por
decisão própria, que corresponde à intervenção do «alvedrio», reduzem a velocidade, o que implica que
a escolha última seja sempre do indivíduo (o livre-arbítrio).

No período seguinte, o foco do orador centra-se nos que embarcaram na nau Vingança, “com a
artilharia abocada e os botafogos acesos”, “corriam enfunados a dar-se batalha”. As consequências deste
ato passariam pela destruição inevitável, fosse pelo fogo, fosse pela água. Novamente, é a língua de
Santo António (metaforicamente considerada como «rémora») que detém a fúria e os salva dessa
destruição. Esta situação apresenta 3 fases: a primeira, em que a ira e o ódio dominaram e o desejo de
vingança imperou; a segunda, marcada (já) pela inexistência desses sentimentos; a terceira,
caracterizada pela predominância da amizade, que substituiu o ódio.

O período posterior foca a nau Cobiça. Ou seja, o orador vai debruçar-se sobre todos aqueles que
se deixam dominar pela cobiça. Note-se como o padre Vieira hiperboliza as ideias veiculadas pelas
imagens “sobrecarregada até às gáveas” e “aberta com o peso de todas as costuras”, as quais revelam a
ambição desmedida dos homens, impedindo-os de vislumbrarem o perigo que os espreita (“incapaz de
fugir, nem se defender”). O navio vai tão carregado e vulnerável que é impossível a sua defesa. A
salvação, mais uma vez, está na “língua de António”, que impede que os indivíduos percam tudo o que já
possuem (“com perda do que levavam”), bem como o que poderiam vir a ter (“e do que iam buscar”),
mostrando-se assim que a cobiça, o desejo excessivo de bens materiais, pode levar a uma perda superior
àquilo que se desejou lucrar. Até à intervenção da rémora (o santo), os navegantes corriam o perigo de
perder tudo, pois a carga da nau (a cobiça) era excessiva; agora, libertos dessa carga («aliviados»),
adquirida de forma errada («injusta»), entram numa fase que os conduz a um terceiro momento, este
vivido já em segurança (“escapassem do perigo e tomassem porto?”).

Por fim, surge em cena a nau Sensualidade, que transporta aqueles que, cegos, s perderiam em
Cila ou Caríbdis, escolhos situados no estreito de Messina, onde se afundavam muitos navios; neste
passo, Vieira faz uma referência ao episódio da Odisseia, de Homero, em que Ulisses enfrenta Cila (o
monstro de seis cabeças de serpente) e o remoinho Caríbdis. Esta quarta nau navega sempre (note-se
como o recurso ao presente do indicativo e o uso do advérbio de tempo «sempre» sugerem o caráter
habitual das condições de navegação) com cerração, sem Sol de dia, nem estrelas de noite, o que a
impede de conhecer o rumo certo, pois não consegue ver os elementos que serviriam de orientação. Os
perigos e a perdição a que os navegadores estão sujeitos são acentuados pela referência ao canto das
sereias (o qual, de acordo com a mitologia, conduz quem o ouve à loucura e/ou à morte) e à navegação
ao sabor da corrente, sem nada ser feito para alterar as circunstâncias, acabando por se perder “onde
não aparecesse navio nem navegante”. No entanto, os ocupantes da nau Sensualidade são salvos, mais
uma vez, pela língua de Santo António.

Estilisticamente, o parágrafo referente à rémora é marcado, entre outros, pelos seguintes


recursos:

▪ a simetria e o paralelismo de construção;

▪ a reiteração do quantificador interrogativo «quantos», sob a forma de anáfora, que sugere a


indefinição acerca do número de indivíduos que navegam nas diferentes naus;

▪ o modo condicional, para designar as catástrofes que podem advir das paixões humanas;

▪ a conjunção subordinativa condicional «se», que, associada ao modo conjuntivo em frases de teor
negativo, remete para uma situação hipotética e irreal;

▪ a locução conjuncional «até que», que significa anterioridade e estabelece um limite temporal;

▪ o caráter interrogativo dos sucessivos períodos constitui um convite dirigido aos ouvintes para que
meditem nas situações apresentadas.

Por outro lado, esta passagem do sermão, referente à rémora, põe-nos em contacto, através das
imagens das quatro naus, com quatro tipos de vícios dos homens, os quais só se salvaram graças à língua
de Santo António, que os «obrigou» a usar o livre-arbítrio (a capacidade individual de escolha) que cada
um possui, de forma racional.

O último período referente ao peixe em questão abre com uma apóstrofe aos «peixes» e uma
perífrase do santo (“do vosso grande pregador”), que funcionou como rémora (isto é, guia) para aqueles
enquanto a ouviram, no entanto a sua mudez presente (causa) acarreta consequências desagradáveis: a
existência de muitos naufrágios (“se veem e choram na terra tantos naufrágios” – gradação). Há aqui,
portanto, uma relação de causa (a mudez do santo) -efeito (os naufrágios). Uma última nota para a
oração subordinada adverbial concessiva (“posto que ainda se conserva inteira”), que se refere ao facto
de a língua de Santo António se conservar como relíquia na sua basílica em Pádua. Porém, como está
muda, incapaz de exercer a sua função no presente, existem perdas numerosas, ou seja, desde que
emudeceu, veem-se na terra muitos homens que se perdem pela soberba, pela vingança, pela cobiça e
pela sensualidade.

O recurso à alegoria das naus, em suma, confirma e exemplifica o poder e a virtude de Santo
António (e da sua língua) ao domar, controlar e travar os vícios do ser humano:

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