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Análise capítulo II do Sermão de Santo António aos Peixes

portugues (Universidade do Porto)

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Análise do capítulo II de Sermão de Santo António aos


Peixes
No segundo capítulo, inicia-se a Exposição, com uma interrogação retórica que identifica o destinatário
aparente do sermão (os peixes) e mostra algum desalento do pregador: “Enfim, que havemos de pregar
hoje aos peixes?”. Nele, predominam a ironia e a alegoria, por exemplo quando Vieira afirma que se dirige
aos peixes, quando, na realidade, quer visar os homens, nomeadamente os habitantes do Maranhão que
não se deixam converter. A resposta a essa pergunta é profundamente irónica, ao afirmar que os peixes são
o “pior auditório” (= os homens), precisamente porque são “gente (…) que se não há de converter”.
Neste parágrafo ainda, inicia-se a Propositio (Proposição), que terminará em “E onde há bons, e
maus, há que louvar e que repreender”.
De seguida, enumera duas qualidades dos peixes em geral: ouvem e não falam, qualidades essas que
contrastam com um defeito: não se convertem. Este primeiro parágrafo introduz a oposição entre os peixes
e os homens (bons / maus ouvintes) e inicia a crítica ao comportamento destes últimos pela sua ausência
de conversão. No entanto, essa insensibilidade à palavra de Deus é tão costumeira, tão habitual (“Mas esta
dor é tão ordinária”), que o orador quase não a sente (“já pelo costume quase se não sente.”). Por isso, não
falará “em Céu nem Inferno”, o que tornará menos triste o sermão, comparativamente aos que costuma
pregar aos homens, facto que constitui nova ironia, pois os peixes são uma alegoria daqueles, como
sabemos.
Em suma:

Em todo o lado, há bons e maus, tal como sucede com os peixes: os primeiros devem ser louvados e
os segundos censurados, como afirmaram São Basílio [“Não há só que notar (…) e que repreender nos
peixes, senão também que imitar, e louvar.”] e o próprio Jesus Cristo (“… diz que os pescadores recolheram
os peixes bons, e lançaram fora os maus…”), que comparou a sua igreja a uma rede de pesca, da qual os
pescadores recolhiam os peixes bons e lançavam fora os maus, o que leva Vieira a concluir que “há que
louvar e que repreender”.
Note-se que o orador trata os peixes como “irmãos” (apóstrofe), estabelecendo assim a ligação com
os homens, que são, na verdade, o alvo do seu sermão, o seu auditório e quem ele pretende atingir.
Daqui, o padre Vieira parte para a divisão/a estrutura/a apresentação do plano do sermão: no
primeiro momento, procederá ao louvor das virtudes dos peixes (caps. II – em geral – e III – em particular)
e, no segundo, procederá à repreensão dos seus vícios (caps. IV – em geral – e V – em particular): “Suposto
isto, para que procedamos com clareza, dividirei, peixes, o vosso sermão em dois pontos: no primeiro
louvar-vos-ei as vossas atitudes, no segundo repreender-vos-ei os vossos vícios”. A alegoria é evidente: os
peixes funcionam como metáfora dos homens e as suas virtudes são, por contraste, a metáfora dos vícios
dos homens, enquanto os vícios dos peixes são, por semelhança, a metáfora dos vícios dos homens. Este é
um método adotado pelo orador que possibilita que os ouvintes possam seguir melhor as suas palavras e o
seu raciocínio.
Em suma, tal como o sal apresenta duas propriedades, também o seu sermão se organizará em dois
momentos:

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O terceiro parágrafo dá-nos a conhecer os louvores/as qualidades gerais dos peixes:

▪ foram as primeiras criaturas que Deus criou (“primeiro que as aves do ar, (…) aos animais da terra, e a vós
primeiro que ao mesmo homem”);

▪ foram os primeiros animais a serem nomeados quando Deus atribuiu ao Homem o poder sobre todas as
criaturas;

▪ são os animais mais numerosos e os maiores (“Entre todos os animais do mundo, os peixes são os mais e os
peixes os maiores”).

Como de costume, socorre-se das palavras de figuras (como Moisés) ou passagens bíblicas como
argumentos de veracidade e autoridade. Por outro lado, no final do excerto critica os homens pela sua
vaidade e adulação: “mas isto é lá para os homens, que se deixam levar destas vaidades, e é também para
os lugares em que tem lugar a adulação, e não para o púlpito.”.
O quarto parágrafo contém novo louvor dos peixes: são bons ouvintes e obedientes, atentos e
devotos (“é aquela obediência, com que chamados acudistes todos pela honra de vosso Criador e Senhor, e
aquela ordem, quietação e atenção com que ouvistes a palavra de Deus da boca de seu servo António”.
Em cada uma destas virtudes, lemos uma crítica aos homens por contraste, visto que se realça assim
que elas estão ausentes neles.
Esta virtude dos peixes é enunciada a partir da referência ao episódio vivido por Santo António em
Arimino, cujos habitantes o perseguiram, descontentes com as suas críticas, e o quiseram expulsar da terra
ou até matá-lo, o que o levou a mudar o local e o destinatário da pregação, dirigindo-se então ao mar e
passando a pregar aos peixes. Vieira compara o comportamento dos homens com o dos peixes, pois, se
estes não o escutavam e o perseguiram, os peixes acorreram à pregação e escutaram-na com grande
obediência, ordem, quietação e atenção “o que não entendiam”. O contraste é evidente: “Os homens
perseguindo a António, querendo-o lançar da terra e ainda do mundo…” / “… os peixes em inumerável

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concurso acudindo à sua voz, atentos e suspensos às suas palavras, escutando em silêncio e com sinais de
admiração e assenso…”; “… na terra os homens tão furiosos e obstinados e no mar os peixes tão quietos e
tão devotos…”.
O comportamento de homens e peixes é tão díspar e contrário ao que seria de esperar que o padre
Vieira conclui: “Aos homens deu Deus uso de razão, e não aos peixes: mas neste caso os homens tinham a
razão sem o uso, e os peixes o uso sem a razão…”. Ou seja, através deste quiasmo pretende destacar a
forma como os animais se comportavam como se possuíssem razão (que Deus não lhes tinha dado) –
ouvindo atentamente o pregador –, enquanto os homens, a quem tinha sido dado o entendimento
racional, se comportavam como seres irracionais, perseguindo e maltratando Santo António: “Poderia
cuidar que os peixes irracionais se tinham convertido em homens, e os homens não em peixes, mas em
feras…”.
Mais uma vez fica clara a relação de contraste entre seres humanos e peixes: a vaidade
daqueles versus a modéstia destes; a atitude perante a pregação do santo: perseguição por parte dos
primeiros versus a devoção por parte dos segundos; os racionais comportam-se como irracionais e vice-
versa.
É curioso o facto de Vieira se referir, neste parágrafo, simplesmente a «António», não explicitando
com clareza que se trata do santo, o que permite ler esta passagem do capítulo como referindo-se a si
próprio, em virtude das semelhanças existentes entre a situação vivida por Santo António em Itália e a que
ele enfrentava no Brasil, salientando, assim, a incompreensão de que também é vítima.
Algo semelhante sucedeu a Jonas, que foi miraculosamente salvo por uma baleia após ter sido
atirado ao mar pelos homens. Viajando aquele num navio, durante uma tempestade foi atirado ao mar
pelos homens, para ser comido pelos peixes. No entanto, uma baleia engoliu-o e conduziu-o até à cidade
de Ninive para pregar aos habitantes locais (os assírios). Esta disparidade de atitudes leva o orador a
interrogar-se: “É possível que os peixes ajudam à salvação dos homens, e os homens lançam ao mar os
ministros da salvação?”. E, de imediato, através de uma apóstrofe conclui que os peixes são melhores que
os homens. Em suma, “Os homens tiveram entranhas [= tiveram coragem] para deitar Jonas ao mar, e o
peixe recolheu nas entranhas (= sentido literal do nome) a Jonas para o levar vivo à terra.” (trocadilho). De
novo, procura realçar-se “o contraste entre a brutalidade daqueles que deviam ter compaixão – os homens
– e a compaixão daqueles que deviam revelar brutalidade – os animais.” (PINTO Alexandre Dias, Entre Nós
e as Palavras 11, Santillana).
O quinto parágrafo refere-se às “virtudes naturais e próprias dos peixes”, abrindo com a referência às
palavras de Aristóteles (repita-se que estas citações servem para reforçar e credibilizar a argumentação do
orador). A virtude agora mencionada é a liberdade e a indomesticabilidade dos peixes: “Falando dos peixes,
Aristóteles diz que só eles entre todos os animais se não domam nem domesticam.”. Tal sucede porque
vivem afastados dos homens, em retiro, arguta e sensatamente: “Peixes, quanto mais longe dos homens,
tanto melhor…”. Vieira enumera, de forma gradativa, os animais que se domam ou domesticam, em
contraste com os peixes:
Terrestres Do ar
. “o cão é tao doméstico” . “o papagaio nos fala”
. “o rouxinol nos canta”
. “o açor nos ajuda e recreia”
. “grandes aves de rapina (…)
recebem o sustento”

Peixes
. “lá se vivem nos seus mares e rios”
. “lá se mergulham nos seus pegos”
. “lá se escondem nas suas grutas”
Atente-se no uso do advérbio com valor temporal «lá», que traduz a distância que os peixes mantêm
dos homens, e do determinante possessivo («seus», «suas»), que clarifica que o espaço onde habitam em
harmonia não só é longínquo como lhes pertence.

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Por outro lado, a liberdade que caracteriza a existência dos peixes é contraposta ao cativeiro em que
vivem os restantes animais:
. “Cante-lhe (…) o rouxinol” . “na sua gaiola”
. “diga-lhes ditos o papagaio” . “na sua cadeia”
. “vá com eles (…) o açor” . “nas suas pioses”
. “faça-lhe bofonerias o bugio” . “no seu cepo”
. “contente-se o cão (…) roer o osso” MAS . “levado (…) pela trela”
. “preze-se o boi (…) formoso e fidalgo” . “com o jugo sobre a cerviz puxando pelo
. “glorie-se o cavalo mastigar freios arado e pelo carro”
dourados” . “debaixo da vara e espora”
. “tigres e leões comem carne” . “presos e encerrados”

Face ao exposto, prudentemente os peixes devem manter-se afastados dos homens, para evitarem o
cativeiro. Se agissem de forma diferente, poderiam obter algumas vantagens, como comida, por exemplo,
mas pagariam um preço elevado: o cativeiro.
Este passo do sermão relaciona-se diretamente com o objetivo global da obra, que era a defesa dos
índios do Maranhão, explorados e escravizados pelos colonos portugueses. Por analogia, pode concluir-se que
também aqueles deveriam viver afastados dos segundos. Por outro lado, o padre Vieira, ao enumerar os vícios,
pretende que os ouvintes tomem consciência deles e os corrijam. É a moralização dos costumes que o orador
procura, em suma.
De seguida, no sexto parágrafo, Vieira socorre-se de dois argumentos de autoridade para comprovar a
sua pregação. O primeiro é a referência ao dilúvio, ao qual sobreviveram todos os peixes, ao contrário dos
demais animais, cuja sobrevivência se restringiu a um casal de cada espécie. Além de todos terem escapado, os
peixes “ficaram muito mais largos que dantes, porque a terra e o mar tudo era mar.”. E por que razão não
sofreram eles esse “universal castigo”? Porque eram os únicos animais que viviam afastados dos homens e, por
consequência, dos seus pecados, daí não terem sido castigados, como o comprovam as palavras de S. Ambrósio.
O dilúvio era, pois, “um castigo universal que Deus dava aos homens por seus pecados, (…) para que o mesmo
mundo visse que da companhia dos homens que lhe viera todo o mal e que por isso os animais que viviam mais
perto deles foram também castigados e os que andavam longe ficaram livres.”.
O outro argumento de autoridade prende-se com Santo António, o qual, para se aproximar de Deus, se
afastou dos homens, abandonando a casa dos seus pais e recolhendo-se numa religião que professava a
clausura, na medida em que a sua existência se encontrava contaminada pelo pecado. “E, porque nem aqui o
deixavam os que ele tinha deixado…”, abandonou Lisboa, depois Coimbra e, por fim, Portugal. Mas o santo não
se ficou por aí, tendo também mudado o hábito, o nome, ocultado a sua sabedoria, até se ter isolado num
ermo, de modo que “tanto mais unido com Deus, quanto mais apartado dos homens.”. Como afirmam Auxília
Ramos e Zaida Braga (Sermão de Santo António aos Peixes. Porto Editora. 2010 – p. 29), “O capítulo termina
com um novo apelo aos peixes para que sigam o exemplo de Santo António que tudo deixou, a sua cidade e até
o seu país, alterando a sua própria identidade, o seu saber (“Para fugir e se esconder dos homens, mudou o
hábito, mudou o nome, e até a si mesmo se mudou, ocultando a sua grande sabedoria debaixo da opinião de
idiota”). Esta atitude radical foi a forma que encontrou para se afastar da maldade dos homens e se encontrar
com Deus, optando por uma vida solitária, afastado do convívio com os homens.

Em suma, neste capítulo, o padre António Vieira enumera as virtudes gerais dos peixes:
▪ foram as primeiras criaturas que Deus criou;
▪ são os animais mais numerosos e os maiores;
▪ são bons ouvintes e obedientes;
▪ são livres e não se deixam domar nem domesticar;
▪ são sensatos e prudentes (“Não condeno, antes louvo muito aos peixes este seu retiro, e me parece que se não
fora natureza, era grande prudência”).

Por outro lado, ao longo do capítulo, de forma implícita ou explícita, o padre Vieira aponta os
vícios/defeitos dos homens:

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▪ a vaidade e o deslumbramento face à adulação (“isto é lá para os homens, que se deixam levar destas vaidades,
e é também para os lugares em que tem lugar a adulação”);
▪ a insolência e a presunção (“Os homens perseguindo a António, querendo-o lançar da terra e ainda do mundo”);
▪ a violência e a obstinação (“os homens tão furiosos e obstinados”);
▪ a crueldade irracional (“os peixes irracionais se tinham convertido em homens, e os homens não em peixes, mas
em feras”);
▪ o exibicionismo (“longe dos homens e fora dessas cortesanias”).

Por outro lado, este capítulo do sermão mostra, com total clareza, a forma como o padre Vieira estrutura
o seu discurso e, sistematicamente, o demonstra e comprova com argumentos. Observemos:

● 1.º argumento: a passagem da vida de Santo António, que decidiu pregar aos peixes, tendo os peixes ocorrido,
obedientemente, a ouvir a palavra de Deus.

Peixes Homens
. ouviram a palavra de Deus pela boca . perseguiram Santo António porque
de Santo António este os criticava
↓ ≠ ↓
comportamento racional comportamento irracional

● 2.º argumento: o exemplo de Jonas, que foi lançado ao mar de um barco, durante uma tempestade, pelos
homens, e engolido por uma boleia, que o manteve vivo e conduziu até à praia.

Peixes Homens
salvam matam
↓ ≠ ↓
o peixe recolheu Jonas nas suas tiveram entranhas para atirar Jonas ao
entranhas e salvou-o mar

● 3.º argumento (de autoridade): segundo Aristóteles, dentre todos os animais só os peixes “se não domam nem
domesticam” e vivem em liberdade porque vivem afastados dos homens.

Animais da terra e do ar Peixes


↓ ↓
vivem perto do homem, agradam, ≠ vivem afastados, longe dos homens, e
ajudam-no, mas amansados, presos livres

● 4.º argumento: o episódio bíblico do dilúvio, a que unicamente os peixes sobreviveram na totalidade.

Outros animais Peixes


↓ ↓
. salvaram-se dois de cada espécie ≠ . salvaram-se todos
. sofreram o castigo divino por viverem . foram poupados do castigo divino
perto do homem por viverem em retiro

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