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Vitória, ES
2022
CONSIDERAÇÕES INICIAIS
O “bloco c”, no qual eu tenho uma suíte alugada, será o foco de minha
descrição e análise – ou, em termos geertzianos, como citado acima, a cultura. De
forma geral, parece que pouco me resta a dizer agora sobre o espaço, afinal, estou
desconsiderando tudo o que possa haver e ocorrer dentro das suítes (sobretudo
porque não tenho acesso a esses dados); assim como, por não necessariamente
fazer parte do bloco c, mas intersectar todos os blocos, não é meu foco dizer
qualquer coisa em relação à dinâmica própria da utilização da área de serviço.
Focarei, portanto, no fenômeno de utilização da cozinha do bloco c, ressaltando um
aspecto sobre a utilização do fogão, como veremos mais a frente.
A OCUPAÇÃO DA COZINHA
Um aspecto interessante, é que cada sujeito utiliza uma bucha própria para a
lavagem de panelas e talheres, assim como o detergente é comprado por meio de
um rodízio não convencionado. Ninguém pega sequer água do outro sem
autorização. Há um senso de propriedade dos locais e das coisas de cada um muito
forte.
A HIGIENE DA COZINHA
Aqui está o ponto onde pretendo me deter um pouco mais. O primeiro ponto
é: todos sempre sabem (acredito), quando a cozinha está sendo utilizado por outro.
Tal reconhecimento se dá por meio de mecanismos auditivos e/ou visuais, mas
também, e em menor medida, olfatório. Isso porque sempre dá para ouvir quando a
porta de um quarto se abre (desde que se esteja com os ouvidos livres), o barulho
de acionamento do interruptor (cujo desligamento sinaliza de uma vez por todas o
término da utilização do lugar, paralelamente ao apagar da luz da cozinha), assim
como os barulhos da movimentação típica em uma cozinha, como o bater de
panelas, pratos e talheres. O estímulo visual (a luz acesa) apresenta-se como uma
via de mão dupla: por um lado, ao passar pelas frestas das portas (e todas elas
tem!), sinaliza para quem encontra-se no quarto se a cozinha está ou não ocupada;
e, para quem está na cozinha, se há ou não inquilino acordado e/ou presente em
outras suítes naquele momento – claro que ele também pode estar presente com a
luz apagada, mas pode-se ter uma noção. Os odores servem apenas como uma
pitada a mais que sinaliza a utilização do espaço compartilhado, embora nem
sempre estejam presentes quando ele está em uso.
Acredito que, assim como eu, todos os outros mobilizam esses mecanismos
em seu cotidiano no bloco c porque há, quando todos os inquilinos encontram-se no
local, o que parece um tanto quanto contra intuitivo, poucos encontros entre nós
nesse que é nosso principal ambiente efetivamente compartilhado. A maioria dos
encontros, quando positivamente ocorrem trocas dialógicas e algum grau de
interação, ocorre quando um já encontra-se no lugar utilizando-o e o outro precisa
passar pela cozinha para entrar em seu quarto, mas quase nunca de forma
intencional pela pura interação e puro interesse – daí que, mesmo estando a dividir
paredes, há pouquíssima intimidade entre nós, não havendo exceções.
Além disso tudo, posso afirmar também que não apenas esses pontos de
utilização da cozinha e fogão, como também os aspectos da higiene e ocupação da
cozinha se perpetuaram. Pude perceber, em minha defesa para essa consideração,
o desenrolar da dinâmica da minha república – que declaro permanecer a mesma -
em duas condições: na de ser o mais novo e o mais antigo membro da comunidade
do bloco c. Cheguei até a agir diferente, em consonância das novas expectativas, no
início dessa nova organização cultural achando que minhas ações, agora outras,
pudessem favorecer a construção de uma nova forma de funcionamento interno do
uso do espaço compartilhado (e com isso também favorecer a construção de novas
formas de interações entre os membros), mas todas as minhas investidas foram
tratadas com indiferença. Cedi à estrutura – continuo a perpetuá-la.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Explicitamente, a presente autoetnografia – se é que realmente posso chamá-
la assim, mas que tem, contudo, a intenção de ser uma - não teve lá grandes
ambições: o fenômeno analisado, de forma extremamente tateada, é verdade (e se
é que posso dizer que de fato houve uma análise), não é lá algo muito complexo,
designando-se apenas a como ocorre algumas (por exemplo: a sinalização pela luz),
ou como evita-se outras (o contato pessoal direto), determinados tipos de relações
culturais em um espaço de trocas simbólicas e de práticas bastante restrito (uma
cozinha) e que é, como me aparece, regido por relações muito próprias desses
fatores. Ademais, a intenção de ser uma autoetnografia, embora eu tenha
impessoalizado as descrições e interpretações muito mais do que gostaria, era de
tentar descrever e analisar as coisas tal como eu as sinto e percebo abstraindo,
assim, um sentido mais direto e menos distorcido por qualquer pré-conceito teórico e
acadêmico. Assim, gostaria de expor aqui mais do que uma descrição densa à
Geertz, porque não é uma descrição da observação, e sim de uma vivência
completa (inclusive de seus pressupostos que de alguma forma são criados por
mim, que sou parte totalmente integrante e construtor da cultura, um nativo); e
também mais do que aprender ao deixar-se afetar à Saad, porque meu
conhecimento é ainda mais profundo – eu não tenho a opção de abrir o caminho à
afetação para aprender: eu aprendo na medida em que meu afeto cria a cultura. É a
este tipo de descrição e análise – de atribuição de sentido - que estava a me propor.
Espero ter conseguido em alguma medida.
REFERÊNCIAS