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Capítulo 1

CONTESTADO: O CENTENÁRIO DA
GUERRA E O CONFLITO SEM FIM
Paulo Pinheiro Machado

Introdução

Nos primeiros dias de outubro de 1912 o Cel. João


Gualberto Gomes de Sá, comandante do Regimento de
Segurança do Paraná, recebeu a ordem do Presidente do Estado
para dissolver o ajuntamento de sertanejos que acompanhava o
monge José Maria no Irani, então município de Palmas. O ato
seria uma demonstração de força do Paraná sobre um grupo
de “fanáticos” supostamente enxotados pela polícia catarinense
para criar tumultos no território sob jurisdição contestada.
O governo de Curitiba avaliava que os políticos catarinenses
queriam uma intervenção da força federal, que poderia
viabilizar a execução da sentença de limites em favor do Estado
de Santa Catarina. Os catarinenses haviam vencido a questão
de limites no Supremo Tribunal Federal em 1904, sendo a
sentença confirmada no recurso de 1909 e nos embargos de
1910. A sentença não era executada por obstrução política do
Paraná, estado mais rico, mais populoso e mais influente na
política nacional.
O Cel. João Gualberto montou uma poderosa expedição
que tinha como objetivo, além da dissolução do pequeno
povoado, mostrar ao vizinho estado catarinense a determinação
em guardar o território Contestado sob seu mando. O resultado
foi uma ação desastrosa. A precipitação do Comandante do

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Regimento de Segurança do Paraná resultou em sua morte e na


destruição da força expedicionária.
Quando a força paranaense se aproximou do Irani, houve
troca de mensagens entre José Maria e João Gualberto. José
Maria, afirmando que não tinha nenhuma questão contra o
Paraná, apenas pedia três dias para dispersar sua concentração.
João Gualberto simulou que concordava com o prazo, mas no
início do segundo dia investiu sua volante contra os sertanejos.
O ataque, interpretado como ato de deslealdade pelos caboclos,
não os pegou de surpresa. Um grupo de mais de 200 homens
resistiu à investida da tropa oficial. A força paranaense se sentiu
desguarnecida quando a metralhadora maxim negou fogo no
momento decisivo. Os sertanejos caíram de supetão à garrucha e
a facão de pau sobre os soldados. Muitos mortos nas duas partes.
O monge José Maria tombou com um tiro na subida da pequena
elevação onde se encontrava a polícia paranaense. Quando os
soldados dispersavam, João Gualberto, que estava ao lado da
metralhadora enguiçada, foi cercado por um grupo de caboclos
enfurecidos onde um líder gritou: “Piquem este desgraçado,
que ele é o único culpado!”. Os facões que estraçalharam
João Gualberto estavam impondo outra lógica ao curso dos
acontecimentos.1
Desde o primeiro combate, no Banhado Grande do Irani,
havia o entrelaçamento de duas questões distintas, mas inter-
relacionadas, a questão de limites entre os dois Estados e o
movimento social criado em torno da atuação do monge José
Maria. Naquele episódio do Irani as forças e o governo paranaense
estavam apenas agindo em função de sua interpretação na questão
de limites, desconheciam o movimento social, desconheciam as
formas de vínculo e lealdade que os sertanejos tinham com José
Maria. A chamada “turba fanática”, seria apenas um conjunto de
sertanejos ignorantes a serviço de chefes oportunistas.

1
Mais detalhes sobre o combate do Irani ver o Processo do Combate. Arquivo
do Fórum de Palmas - PR.

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O confronto de dois mundos

José Maria e seu grupo, por outro lado, não entendiam o


ataque da tropa paranaense. A troca de correspondência entre José
Maria e João Gualberto é, até hoje, um rico processo de síntese da
irredutibilidade das linguagens e culturas destes dois mundos em
confronto. Revela também os temores e desconfianças mútuas.
José Maria declara não ter nada contra o Paraná,
encontrava-se no Irani para escapar de perseguição injusta
movida pelo chefe político de Curitibanos. João Gualberto tinha
como missão prender José Maria e vários integrantes de seu
grupo sertanejo para leva-los a cordas e fazê-los desfilar pelas
ruas de Curitiba. O grupo que seguia José Maria não tinha
posição sobre a questão de limites, procurava apenas um local
para sobreviver sem perseguições de chefes políticos locais.
Por isto o caboclo que comanda o ato final de picar a facão João
Gualberto por considera-lo o único responsável pela tragédia
do combate, não entendia que o oficial estava apenas cumprindo
ordens do governo.
Para muitos paranaenses, além da disputa de jurisdição
sobre um amplo território, o Contestado representava parte da
fronteira natural de expansão da colonização, com a agregação
de mais territórios, seus recursos naturais, suas oportunidades
econômicas, seu potencial futuro. A fronteira era o futuro.
É por isto que Santa Catarina também desejava chegar até a
extrema fronteira oeste, aos espanhóis confinantes. Para todos
os Estados brasileiros no início do século XX possuir um
sertão de expansão significava um capital político e econômico
vital, um potencial de crescimento, um potencial de progresso.
Mas apenas potencial, já que a população nacional existente,
formada por descendentes de indígenas e africanos, mesclada
a alguns paulistas e gaúchos tropeiros, este povo não era visto
como sujeito do progresso. O progresso só era entendido como
branqueamento e europeização destes sertões que passam a ser
narrados como “vazios demográficos”.

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Desta maneira, por muitas décadas os historiadores


paranaenses consideraram o Contestado como um conflito
artificialmente provocado pelos catarinenses para se apossar de
significativo quinhão de seu território. O Contestado passou a
ser um tabu, um trauma, uma prova da fraqueza dos governantes
da época que caíram na armadilha da negociação imposta pelo
Presidente Wenceslau Brás.
Para os historiadores catarinenses o Contestado
também passou a ser um tabu, assunto desagradável e de difícil
explicação. A oligarquia Ramos, formada pelo patriarca Vidal
José de Oliveira Ramos, político lageano que governou na época
do início do conflito, dominou a política estadual por muitas
décadas, inclusive durante o Estado Novo e pós 1945, com
o interventor Nereu Ramos, ajudou a enterrar o assunto. Por
outros intelectuais, representantes da outra facção oligárquica
do grupo Konder-Bornhausen, a apologia da imigração europeia,
a construção de um Estado branco, também significou mais uma
pá de cal na história e na memória do Contestado.
A desqualificação dos sertanejos, da população nacional
negra e morena, não é exclusividade da historiografia do sul do
Brasil. Adjetivos pejorativos revelam o ódio às classes populares.
O ódio aos negros, indígenas e pobres em geral é algo muito
profundo no espírito da classe dominante brasileira que, como
diz Renato Janine Ribeiro, construiu por séculos o processo
de exclusão e profunda desigualdade social. Não se trata de
um acidente ou infortúnio de determinadas circunstâncias,
a desigualdade é fruto de um planejamento construído por
séculos. A linha de classe que definiu o movimento social do
Contestado, que fica nítida ao longo do ano de 1914 - quando
ocorre claramente uma guerra de pobres contra ricos - ajudou
a selar a demonização de sua memória e a construção de uma
sofisticada política de esquecimento.
Mais importante que tentar reviver a questão de limites,
de tentar identificar qual o Estado que tinha legítimos direitos
pelo território disputado - o que é inútil e apenas reconstrói

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a luta de duas oligarquias - é estudar o Contestado pelo que


ele possui de mais rico, seu movimento social e o projeto das
Cidades Santas.
A população pobre do planalto meridional brasileiro
vivenciou o início da República como um conjunto de experiências
traumáticas e dolorosas. A descentralização política aumentou o
poder local dos Coronéis, a Guerra Federalista devastou vilas
e povoados inteiros, arrastando milhares de sertanejos para o
recrutamento forçado, tanto por maragatos como por pica-paus.2
A violência desencadeada pelo conflito federalista foi inédita,
mesmo numa região onde certa violência costumeira já era
presente tanto no trato com os indígenas da fronteira, como
no cotidiano da relação coronelista. A concentração fundiária
se acelerou com a implementação de Leis estaduais de terras
e colonização. A construção dos últimos trechos da Estrada
de Ferro São Paulo - Rio Grande, ao longo do Rio do Peixe,
entre 1908 e 1910 e no trecho entre União da Vitória e Rio
Negro, ao longo do rio Iguaçu, de 1911 a 1913, produziu um
grande número de famílias expropriadas de sitiantes, ervateiros
e pequenos posseiros de suas terras e locais tradicionais de
moradia (MACHADO, 2004). Estas terras que passaram a ser
ocupadas por uma empresa estrangeira que, depois de derrubar
as florestas para a extração das madeiras, tratou de lotear o
território e vende-lo aos imigrantes europeus.

Progresso x atraso

Para as autoridades públicas e a imprensa do período,


a resistência cabocla que aconteceu no Contestado foi vista
- e apresentada para o resto do país - como um movimento
“anti-progessso”. A própria defesa da “Monarquia”, tomada
isoladamente das falas sertanejas, era considerada uma prova do

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“Maragatos” eram os defensores do Federalismo, enquanto “Pica-Paus” eram
os políticos republicanos.

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atraso e da “estupidez dos matutos”. Como defender a Monarquia


se a própria família Orleans e Bragança já tinha renunciado ao
trono do Brasil?
É uma tradição muito antiga, na crônica literária e
na historiografia, a atribuição de atraso e de barbárie aos
movimentos sociais vindos das camadas populares. Na tradição
latino-americana o temor das classes dominantes sempre foi um
levante geral de indígenas e escravos. A independência do Haiti
renovou estes temores na virada do século XVIII ao XIX. Na
ilha de São Domingos não ocorreu apenas uma independência
política da colônia em relação à metrópole, foi uma revolução
dos escravos contra seus senhores e feitores. A linha de cor se
confundiu com a linha de classe e os senhores foram mortos por
seus escravos. Desde este momento o espectro do haitianismo
passou a assombrar os brancos e terratenentes de todo o
hemisfério ocidental. E a imagem recorrente era a ameaça de
destruição da civilização pelos de baixo (DIAS, 2005).
A visão de luta contra o progresso foi em parte absorvida
por autores da sociologia brasileira, em que pese que seus
estudos inovadores sobre o Contestado na década de 1950,
como Maria Isaura Pereira de Queiroz (1968) e Maurício
Vinhas de Queiroz (1966). Estes autores renovaram a pesquisa,
colocaram o estudo do Contestado no meio universitário,
registraram depoimentos e salvaram fontes decisivas. Do
ponto de vista teórico, deixam de usar a noção de “fanatismo”
e passaram a empregar o conceito weberiano de “messianismo”
que tinha como base explicativa o impacto da modernização
vivido por uma sociedade tradicional. O resultado deste
impacto seria, em várias situações, a criação de um ambiente de
perda de identidade, uma “anomia social”, que seria uma forma
patológica de reação à modernização, tal como um autismo.
Portanto, mesmo quando se abandonou a noção de “fanatismo”,
por muito tempo as populações rurais continuaram a ser vistas
como incapazes de viver a modernidade, ou traumatizadas com
seus efeitos ou patológicas em sua reação.

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O cinema representou esta situação. No filme “Guerra


dos Pelados”, de 1971, escrito e dirigido por Sylvio Back, em
uma de suas sequências iniciais, aparece um caboclo com uma
espada de pau lutando contra uma locomotiva. O personagem,
representado pelo ator Stênio Garcia diz que está disposto
a enfrentar o “dragão que solta fumaça pelas ventas”, mas
é destruído pelo trem. A cena sintetiza toda uma visão de
confronto da modernidade contra o atraso. Às vezes a arte
pode reforçar preconceitos. A situação filmada nunca aconteceu
realmente, nem seria provável que acontecesse. Os sertanejos
do Contestado, indivíduos habituados no tropeirismo, na
circulação entre a bacia platina até a região de São Paulo, não
eram matutos isolados, eram indivíduos que tinham um grande
arco geográfico de experiências, já conheciam as ferrovias em
operação no Rio Grande do Sul e em São Paulo. A chegada da
estrada de ferro não os deixou bestializados.
Os cariocas que, na capital da federação, se levantaram
contra a vacinação obrigatória em 1904, também foram acusados
de atrasados e de inimigos do progresso. As forças dominantes
da nascente República só entendiam o progresso como caminho
para a disciplina, o ordenamento e a europeização do país.
Naquele período, quanto maior a presença e atuação do Estado,
mais sofriam as populações nacionais pobres.
A apologia da ordem e do progresso, bordão adotado
do pensamento positivista para a República brasileira, foi
sintomaticamente apropriado pelo atual governo interino. O
recado à sociedade fica bem claro: reestabelecer hierarquias e
desobstruir quaisquer estruturas que impeçam a acumulação
de capitais. Hoje como ontem, o “progresso” é empregado como
uma ideologia da modernidade onde quem não se encaixa ou
não se adapta, deve ser descartado.
Outro dogma que contribuiu para o silenciamento sobre
o Contestado foi o fato de ter sido considerado um movimento
local, regional, com especificidades próprias, difícil de ser
entendido fora de seu território. Este certo culto ao localismo

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tem sido defendido até por indivíduos que lutam contra o


esquecimento da aventura cabocla. Nada mais equivocado.

Nacionalização do Contestado

O movimento do Contestado é muito mais que local ou


regional, é um movimento que sintetiza vários aspectos da
sociedade e da política do Brasil na Primeira República. É uma
encruzilhada de diferentes conflitos. Foi um movimento que
abalou profundamente as bases do Coronelismo, colocou em
cheque o poder do clero católico, além de abalar os interesses
do capital internacional, reunidos em torno da ferrovia e da
empresa madeireira e colonizadora. O movimento opôs-se ao
deslocamento compulsório de populações para a construção de
grandes obras, que provocaram grande impacto ambiental e
econômico. Os sertanejos do Contestado travaram uma série
de lutas que também aconteciam e acontecem em outros locais
do Brasil e da América Latina.
Os caboclos do movimento do Contestado foram muito
além da resistência, muito além de uma mera reação às agressões
externas. Picar de facão o comandante de uma tropa agressora
foi só o início do processo de construção da utopia cabocla. As
evidências da luta pela posse da terra já foram registradas pelos
primeiros cronistas militares que estudaram o Contestado, os
Historiadores de Farda, na expressão do prof. Rogério Rosa
Rodrigues.
Além de lutar por terras, que naquele contexto não
significava uma reforma agrária, mas sim a construção de
uma nova comunidade ou reduto distante dos olhares dos
Coronéis, o projeto sertanejo ainda não estava pronto no
Irani, nunca foi um projeto estático, foi construindo-se ao
longo do conflito, com a invenção das instituições caboclas,
a construção das Cidades Santas e da vitória da monarquia
celeste. Os caboclos construíram um regime social avesso à
República dos coronéis.

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Viver nos redutos e Cidades Santas significava a libertação


dos vínculos opressores dos Coronéis e da Cia. Estrada de
Ferro, a Southern Brazil Railway. Mais ainda, significava a busca
de uma sociedade onde todos se ajudariam, como dizia José
Maria : “quem tem moi, quem não tem, também moi e no fim
todos ficam iguais”.3 A luta por esta igualdade, almejada pela
irmandade cabocla, seria a construção de uma sociedade onde
dominasse a justiça, a consciência e o bem-estar. Segundo o chefe
Eusébio Ferreira dos Santos, a Cidade Santa seria como uma
“Nova Jerusalém”. Esta era a verdadeira Monarquia sertaneja,
uma curiosa Monarquia sem Rei onde os meios de subsistência
pertenceriam a todos, os Bragança não eram necessários.
A construção do projeto foi generosa, apesar de serem
deslocados de seus territórios por população de origem europeia,
os sertanejos não desenvolveram nenhuma forma de xenofobia.
Pelo contrário contaram com o apoio e a participação de muitos
imigrantes e seus descendentes, principalmente no planalto
norte catarinense.
Por muito tempo a história e as ciências humanas negaram-
se a conhecer por dentro os caboclos, a conhecer sua cultura,
suas motivações e sonhos. A pecha de fanáticos serviu, por
décadas, para a criminalização e a infantilização dos sertanejos.
O fanatismo, imprecação ainda muito utilizada na atualidade,
com forte peso pejorativo, envolve a noção de irracionalidade,
loucura, alienação, que leva a estranhamento e distanciamento
do outro. Ninguém sente empatia por um fanático. Por que esta
palavra é frequentemente usada para explicar ações de indivíduos
de outras culturas? Não é por acaso que a imprensa ocidental
demoniza o islã e seus representantes na atualidade, utilizando a
palavra “fanático”.
A descontextualização da linguagem e da ação política
dos indivíduos é o primeiro problema. Será que não podemos
entender as motivações e a convicção de um homem bomba?

3
Moer significa pilar o milho e/ou a mandioca para fazer farinha.

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Estas situações, por mais dramáticas que pareçam, reclamam


um estudo detido, refletido e contextualizado, no qual os
historiadores devem se preparar para se debruçar. Não se trata de
legitimar movimentos e ações, mas sim de compreender porque
e como ocorrem.
Ao longo do século XX os sertanejos, não só no Contestado,
mas no Brasil inteiro, frequentemente foram narrados como
indivíduos mergulhados em carências e premidos pela miséria
e pelas necessidades. Sempre foram caracterizados pelo que não
eram: não eram alfabetizados, não eram brancos, não eram ricos.
Só com Duglas Teixeira Monteiro (1974) há uma verdadeira
virada de interpretação sobre o movimento sertanejo. Duglas
adverte seus leitores defendendo o ponto de vista de que os
sertanejos do Contestado eram pessoas normais, pelo menos tão
normais quanto os que os combateram. Assim, este importante
autor abriu o caminho para o entendimento dos sertanejos
pelo que foram e pelo que construíram. Esta virada promovida
por Duglas é ponto de partida de um processo amplo, que é a
retomada dos estudos sobre o movimento do Contestado como
parte do processo de redemocratização da sociedade brasileira.
Ao longo das décadas de 1970 e 1980 a marcha pela
democratização da sociedade brasileira partiu dos de baixo.
O processo de modernização - novamente esta palavra com
conotação aparentemente positiva, mas que significou em
realidade violência, expropriação e mortes - da agricultura
empreendido pela Ditadura Militar foi um acelerado progresso
técnico, com intensos investimentos públicos e subsídios para
grandes empresas se instalarem em extensas áreas. Houve uma
verdadeira união entre o capital e o latifúndio. O empresariamento
do meio rural via financiamento de bancos públicos e estímulo à
industrialização da agricultura foi propagandeado como meio de
superação do atraso e do subdesenvolvimento.
A união da ciência, do Capital e do Estado produziu
um processo crescente de concentração fundiária, êxodo
rural e subordinação acelerada dos agricultores familiares

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à agroindústria. Este processo não significou uma melhoria


de vida aos trabalhadores rurais. Muito pelo contrário. A
industrialização da agricultura estimulou a exportação de
commodities como soja, carne, algodão, café e milho, artigos que
ganharam grande espaço na pauta de exportações, responsáveis
por gerar divisas. A intensificação do emprego de alta tecnologia
na monocultura exportadora, que prometia “progresso” resultou
numa renda que foi extraída do meio rural com altíssimo custo
social e ambiental (OLIVEIRA, 2001)
Logo se formaram legiões de expropriados dispostos a
lutar, não apenas a migrar. Foi assim no Bico de Papagaio (norte
do então Estado de Goiás), em Encruzilhada Natalino e Ronda
Alta (no Rio Grande do Sul), entre os agricultores que ocuparam
a fazenda Burro Branco, em Campo Erê (MELO, 2009), entre
os agricultores expropriados por Itaipu e outras barragens
(FERNANDES; MEDEIROS; PAULILO, 2009). Por todo o
país a luta pela terra recrudesceu ao final da Ditadura, esta luta
fez reviver a memória e ressignificar a experiência dos sertanejos
de várias lutas antigas, como Canudos, Porecatu, Tombras e
Formoso, Ligas Camponesas e o movimento do Contestado.
Em que pese a diferença das condições históricas, o
recrudescimento da luta pela terra no Brasil fez com que se
criasse, não só em meio aos participantes dos movimentos sociais
do campo, mas também entre professores e pesquisadores do
meio urbano do sul do país, um interesse renovado na memória
e no estudo das experiências dos caboclos do Contestado.
De meados dos anos 1980 para cá, além de uma significativa
trajetória historiográfica, houve a formação de grupos teatrais,
a publicação de poemas, romances, músicas, além da formação
de grupos de dança. Vários assentamentos da Reforma Agrária
adotaram nomes de personagens, de episódios e de “cidades
santas” do Contestado, não como uma identificação formal, mas
com um desejo de continuidade, um relampejo com o passado,
fruto de uma empatia com os de baixo, como diria Walter
Benjamin.

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Referências

DIAS, Maria Odila Leite da Silva. A Interiorização da Metrópole e


outros estudos. São Paulo: Alameda Casa Editorial. 2005.

FERNANDES, Bernardo Mançano; MEDEIROS, Leonilde Servolo de;


PAULILO, Maria Ignez (Orgs.) Lutas camponesas contemporâneas:
condições, dilemas e conquistas. A diversidade das formas das lutas no
campo. Vol. 2. São Paulo/Brasília: Ed. UNESP/NEAB, 2009.

MACHADO, Paulo Pinheiro. Lideranças do Contestado: a formação e


a atuação das chefias caboclas (1912-1916). Campinas: Ed. UNICAMP,
2004.

MELO, Cristiane Dias de. A ocupação da Fazenda Burro Branco:


história, memória e posições - 1980. Cadernos do CEON, ano 21, n.
29, 2009. Disponível em http://bell.unochapeco.edu.br/revistas/index.
php/rcc/article/view/335/405. Acessado em 21 jul. 2016.

MONTEIRO, Duglas Teixeira. Os errantes do novo século. São


Paulo: Ed. Duas Cidades, 1974.

OLIVEIRA, Ariovaldo Umbelino de. A longa marcha do campesinato


brasileiro: movimentos sociais, conflitos e Reforma Agrária. Estudos
Avançados, São Paulo, v. 15, n. 43, set./-dez. 2001. Disponível em:
http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0103-
40142001000300015. Acessado em 21 jul. 2016.

QUEIROZ, Maria Isaura Pereira de. Messianismo no Brasil e no


Mundo. Rio de Janeiro: Zahar, 1968.

VINHAS DE QUEIROZ, Maurício. Messianismo e conflito social:


a Guerra Sertaneja do Contestado (1912-1916). Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 1966.

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