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Recensão Caderno Cultural Brotéria | Setembro 2020

Patrick Leigh Fermor. Tempo de Dádivas. Tinta da China, 2020

Patrick Leigh Fermor é conhecido por ter raptado um general alemão, na Creta
ocupada, em 1942, como o auge da sua carreira militar; mas mais do que isso, Leigh
Fermor teve uma vida absolutamente extraordinária, e soube partilhá-la como um
prosador “sem precedentes”, como diz Jan Morris (p. 9). Também por este motivo será
difícil classificar a sua prosa, entre as memórias e a literatura de viagens. Este livro é o
segundo de Leigh Fermor editado pela Tinta da China e o primeiro de uma série de três,
que relata, na primeira pessoa, a viagem a pé do herói e autor, levada a cabo em 1933,
de Roterdão até Constantinopla, atravessando a Alemanha nos primórdios do Nazismo.
Este testemunho histórico singular caracteriza-se sobretudo pelo seu optimismo e
humildade, sobretudo intelectual. Uma virtude inesperada, para um jovem que leva
consigo o Oxford Book of English Verse e as Odes de Horácio e que, além disso,
domina uma “antologia privada” de poesia, que recita de cor pelo caminho. (pp. 119-
126). Leigh Fermor dorme em palheiros e não compreende o pessimismo intelectual
vienense, admitindo que talvez isso seja uma falha sua; reconhece mesmo a sua
inaptidão para discutir política, não abdicando, ainda assim, do seu pacifismo idealista.
Já o seu optimismo não se deverá tanto a um conjunto de princípios, mas a uma atitude,
que lhe valeu a expulsão do colégio: “uma perigosa combinação de sofisticação e
imprudência”, como dissera o seu director. (p. 27) Sofisticação e imprudência,
optimismo e humildade é o que se vê na forma como o Leigh Fermor jovem se relaciona
com as pessoas e confia toda a sua viagem na providência, e é essa combinação que lhe
permite ser ardiloso e aproveitar oportunidades fulcrais para avançar para Leste ou
mesmo retroceder, quando lhe dizem que tem de ver Praga. Esta confiança e abertura
associam-se sem dúvida ao valor teológico da dádiva: acolher o inesperado, saber dar
sem receber e receber sem dar, o que é tão bem expresso no episódio do Natal em
Bingen. (p. 92) Ler Tempo de Dádivas é especialmente importante numa época em que
a memória é desvalorizada e viajar se tornou amiúde uma actividade transaccional,
meticulosamente planeada e, também por isso, muito precária. Tempo de Dádivas é uma
verdadeira peregrinação e merece, também por isso, o nosso passo vagaroso.

Pedro Franco

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