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Aprendizado na travessia:
Wilhelm Meister e Riobaldo
Vítor Beghini
vitorbeghini@gmail.com
2018

“Eu atravesso as coisas – e no meio da travessia não vejo! – só


estava era entretido na idéia dos lugares de saída e de chegada.
Assaz o senhor sabe: a gente quer passar um rio a nado, e passa;
mas vai dar na outra banda é num ponto muito mais embaixo,
bem diverso do em que primeiro se pensou.” (GSV, p. 32)

“Assemelha-se então a um andarilho que, não longe de seu


albergue, cai na água; se alguém lhe esticasse de pronto a mão e
o puxasse para a terra, tudo não teria passado de um banho, ao
passo que, se ele próprio tivesse se livrado por si só e saído na
outra margem, teria feito um longo e penoso desvio rumo a seu
objetivo determinado.” (Os Anos de Aprendizado, p. 184)
Poucas obras na história da literatura ocidental poderiam clamar para si
uma posição tão alta quanto Os Anos de Aprendizado de Wilhelm Meister, de
Goethe, capaz ao mesmo tempo de inaugurar uma tradição de grandes romances
em língua alemã e de fundar todo um novo gênero romanesco, do qual representa
seu protótipo e paradigma fundamental: o Bildungsroman, ou entre nós,
“romance de formação”. Este conceito de difícil definição, profundamente
enraizado no significado que a Bildung tem para a cultura alemã, já fora
tematizado e precisado de inúmeras formas na tradição crítica, sendo
pioneiramente definido por Dilthey justamente como “aqueles romances que
constituem a escola de Wilhelm Meister”1. Ao longo da narrativa de Goethe, pois,
acompanhamos os caminhos e descaminhos formativos do jovem Wilhelm por
aproximadamente dez anos, em meio aos seus erros, incertezas, superações,
aprendizados e (des)encontros; vemos nascer sua paixão pelo teatro, seu primeiro
amor, sua grande desilusão amorosa, a recusa de seu destino burguês, sua
posterior desilusão vocacional, suas aspirações mais íntimas e seus conflitos com
o mundo prático, até o amadurecimento. Percurso impulsionado e orientado por
este ideal programático que, em um momento central da narrativa, emerge como
imperativo auto-consciente na pena de Wilhelm: “para dizer-te em uma palavra:
instruir-me a mim mesmo, tal como sou, tem sido obscuramente meu desejo e
minha intenção, desde a infância” 2 – signo da busca pela formação plena e
harmônica que aspira, só destinada aos nobres. A melhor expressão do que se
encontra em jogo no romance “meisteriano” foi, assim, possivelmente dada por
Hegel, em seus Cursos de Estética: trata-se deste conflito (dialético) entre a
“poesia do coração” e a “prosa adversa das relações sociais”, rumo a um

1 Afirmação de Dilthey já em seu estudo de 1870 sobre a vida de Schleiermacher


(Schleiermachers Leben). Ele prossegue: “A obra de Goethe mostra aperfeiçoamento
[Ausbildung] humano em diversas etapas, configurações e fases de vida”. Apud. Mazzari, M.,
2018.
2Goethe, p. 284. Carta que Wilhelm escreve, no Capítulo 3 do livro V, ao pragmático Werner,
porta-voz no romance da objetividade das relações práticas. No início da carta, ele explicita o
conflito entre sua destinação às atividades comerciais e o impulso formativo que o rege: “De
que me serve fabricar um bom ferro, se meu próprio interior está cheio de escórias? E de que me
serve também colocar em ordem uma propriedade rural, se comigo mesmo me desavim?”.
Torna-se claro para Wilhelm que a formação plena e harmônica que busca é interditada por sua
origem burguesa e que ela deverá se dar pela imersão no mundo dos palcos, onde pretende
contribuir para a criação de um futuro “Teatro Nacional”.

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horizonte de reconciliação no processo formativo;3 índice da época moderna,
como ecoaria Lukács.4
Mas, nesse sentido, o romance de formação transcende a especificidade
histórica do Meister de Goethe como “romance social burguês”, assaz vinculada
ao espírito de época da Alemanha do final do XVIII (transparecida em seu
realismo e na profunda influência em Goethe dos ideias humanistas advindos da
Grande Revolução). Em sentido lato, o romance de formação faz-se um gênero da
“literatura mundial”, que entre nós pode ser particularmente encontrado naquele
que tem sem dúvida lugar canônico dentre os maiores romances do século XX:
Grande Sertão: Veredas, de Guimarães Rosa. Tal como Os Anos de Aprendizado,
trata-se de um romance intensamente rico; multifacetado, polifônico, dialógico,
enciclopédico, de profusas nuances líricas, de enredo épico e entremeado de
aventuras, sob uma mescla de gêneros literários, entretecido entre o que é
particular à realidade sertaneja e a dimensão do universal – embora vá muito
além de Meister na perspectiva formal ou em suas dimensões de “romance
metafísico” e “fáustico”, por exemplo. Mas se Grande Sertão: Veredas pode ser
lido como um romance de formação é porque também apresenta de modo central
a trajetória de aprendizado de um jovem, Riobaldo, em seus descaminhos e
conflitos com a realidade, amadurecendo nas travessias rumo à consciência de seu
lugar no mundo. “Formação” e “travessia”: eis os topoi polissêmicos de suas
jornadas.
Tanto Wilhelm quanto Riobaldo, ora, seguem o roteiro prototípico da
formação, que tem seu primeiro grande movimento na saída da casa paterna.
Parece saltar-nos de início, porém, uma diferença substancial entre os
protagonistas; Wilhelm é, pois, nascido na segurança de um berço burguês, filho
de um rico industrial, enquanto Riobaldo cresce longe do pai, como um enteado
despossuído e sem-lugar, que logo torna-se órfão de mãe. As motivações de ordem
social que os fazem se lançar ao mundo deveriam ser essencialmente distintas.

3 Na passagem em que comenta o romanesco, Hegel afirma ainda: “Mas, essas lutas no mundo
moderno não são outra coisa senão os anos de aprendizagem, a educação dos indivíduos na
realidade constituída e, com isso, adquirem o seu verdadeiro sentido. Pois o fim desses anos de
aprendizagem consiste em que o indivíduo apara suas arestas, integra-se com os seus desejos e
opiniões nas relações vigentes e na racionalidade das mesmas, ingressa no encadeamento do
mundo e conquista nele uma posição adequada.”. cf. Hegel, Cursos de Estética, v. II. São Paulo:
EDUSP. p. 328
4 cf. Lukács, G., 2006.

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Poderíamos insistir, no entanto (em certa objeção à interpretação de Maria Cecilia
Marks5, que vê aqui uma diferença central), que a posição de ambos é
significativamente mais análoga deste ponto de vista. Riobaldo logo vai morar
com seu então padrinho Selorico Mendes, na fazenda São Gregório, um rico
fazendeiro proprietário de terras (o burguês da sociedade sertaneja), onde passa a
estudar e a “viver na lordeza”. Sua fuga de casa se dá precisamente no momento
em que descobre ser Selorico, na verdade, seu pai: momento em que sente raiva
por tê-lo abandonado, mas também em que abre-se para ele, pela primeira vez, a
perspectiva de uma vida estável e previsível (que revertesse sua desestruturação
familiar), de seu destino como fazendeiro, de tornar-se como seu pai, figura que
porém já lhe engastava.6 Guardadas as diferenças substanciais, Wilhelm e
Riobaldo agem por motivações equivalentes: fundadas em um sentimento de não-
pertencimento e de desejo pelo diferente. Wilhelm já tinha em si bem elaborada a
inclinação para o teatro, que o impulsiona, mas é seu primeiro choque com a
“prosa da realidade” – sua desilusão amorosa e a rejeição de seu destino burguês
– que acaba impelindo-o a aproveitar sua viagem de negócios para, assim como
Riobaldo, preferir lançar-se no incerto e se juntar a grupos mais socialmente
marginalizados, o que resultará na plena convicção em sua missão teatral.7
O sentido deste percurso e o motor de todo o processo formativo dos
heróis é dado para ambos por um encontro instaurador na primeira juventude.
Para Wilhelm é a descoberta das artes, proporcionada por sua casa burguesa.
Inicialmente com a pintura, inspirado pela coleção de seu avô, depois pelo
descortinar da paixão pelo teatro, através do contato com as encenações de
marionetes, experiência que marcará todo o destino de sua juventude. Para
Riobaldo, toda sua vida é transformada pelo encontro que tem nas margens do
rio De Janeiro, como por obra suprema do acaso, com o menino e seus olhos
verdes. Menino Reinaldo, Diadorim, Maria Deodorina, primeiro instante de
paixão, primeiro formador, aquele que lhe ensina a coragem, o amor, a apreciar a

5 Marks, M. C., 2018. pp.


6 ver: Rosa, 2019. pp. 92-96
7 Posteriormente, já plenamente convicto, é que Wilhelm redige a carta em que explicita sua
total consciência daquilo que aspira e que lhe é interdito por nascimento. A classe de Riobaldo
também seria um impeditivo à formação que em retrospecto almeja, mas a condição de
fazendeiro, longe dos centros urbanos, que não lhe daria a oportunidade de ser “homem
estudado” da cidade como seu douto interlocutor, a quem constantemente inveja.

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natureza, na doce travessia que expressa, como por pressagio, o seu destino. Mas
este acontecimento é indissociável daquele outro episódio fulcral proporcionado
por sua casa de fazendeiro, aquela madrugada de ressonância não menos lírica na
narrativa. Selorico recebe a tropa de Joca Ramiro, e o narrador, ao tomar contato
com o mundo que breve seria o dele, tem a oportunidade de ouvir entoada pelo
jagunço Siruiz uma velha cantiga de boiadeiro que para sempre “molhou sua
ideia”, lhe incitando o gosto pelos versos e conduzindo-o a momentos de epifania,
de beleza e mistério, esfera simbólica de Diadorim.8 Não menos significativo é o
mote da canção, a pergunta pela “moça virgem”. O entoar de Siruiz também é,
como a travessia do menino, uma cifra do seu destino e um motor de seu
destino.9 Após ter abandonado a cruzada de Zé Bebelo, sentido-se traidor, é o
segundo encontro por acaso com “o menino”, agora Reinaldo, que lhe leva fundo
à jagunçagem, sem de fato o querer10, culminando em seu juramento de vingança
à Joca Ramiro. Se Wilhelm parte em uma “missão teatral” de formação, Riobaldo
lança-se, assim, em uma “missão bélica” – que divide seu destino entre as armas,
as letras, e as terras – mas que é, no fundo, missão de amor e de formação pelo
amor. “Quando vou p’ra dar batalha, / convido meu coração…”
Em um de seus eixos centrais, não seria exagerado dizer que Grande
Sertão: Veredas é um romance de e sobre o amor, em seu sentido mais poético.
Mas também a formação e a vida de Wilhelm estão alicerçadas em suas amadas e
em seus encontros amorosos, como agentes formativas medulares, a direcionar
seus caminhos. Em ambos os romances as diferentes amadas parecem figurar, no
limite, as facetas e nuances distintas da experiência amorosa, em constante
equilíbrio, superação, mutação e síntese. Ora, o amor erótico, a atração carnal, é
fermentado em Riobaldo pela “protitutriz” Nhorinhá, por quem não deixa de
sempre nutrir afeto; experiência semelhante é a de Wilhelm com a sensual Philine,
também mulher de muitos, a quem todavia não se entrega diretamente. A

8 Como aponta Murilo Marcondes de Moura, há aqui uma semelhança formal entre os
romances, que misturam prosa e verso em procedimentos próximos ao do prosimetrum. As
canções entoados por Mignon e pelo Harpista também são profundamente enigmáticas e
encantam a sensibilidade de Wilhelm. cf. Moura, M. A canção de Siruiz. Inédito.
9Deve-se observar, também, a importância das histórias de jagunços contadas pelo pai Selorico
Mendes, já preenchendo o imaginário de Riobaldo com aquele que viria a ser seu mundo.
10“De que lado eu era? Zé Bebelo ou Joca Ramiro? Titão Passos... o Reinaldo... De ninguém eu
era. Eu era de mim. Eu, Riobaldo. Eu não queria querer contar.” Rosa, p. 167.

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segurança do lar, da esposa como âncora, aparece na inclinação racional de
Wilhelm por Therese e em sua posterior consumação e redenção espiritual em
Natalie, e amiúde se instancia no amor puro de Riobaldo por Otacília, “forte
como a paz”, remanso distante e redentor, por quem deixaria a jagunçagem. Mas
a força ígnea do amor juvenil e insuperado por Mariane, a atração interdita pela
Condessa e o arrebatamento pela Amazona Natalie encontram figurações na
profundidade inefável da relação com Diadorim. Deve-se ressaltar que a dupla
perda de Mariane por Wilhelm (seu abandono e a notícia de sua morte) configura
dois momentos decisivos de sua formação, e o amor que ainda sentia anos depois
encontra lugar em seu filho Felix, o que lhe resta dela, cuja paternidade abrirá um
novo horizonte de sentido aos seus ainda futuros anos de aprendizado. Mas é a
perda de Diadorim (num desfecho de “altura dantesca do sublime trágico”11, de
que fala Davi Arrigucci) que encarna, como nenhum outro acontecimento, o peso
do luto e do sofrimento amoroso para a autocompreensão, o amadurecimento, e a
tomada de consciência, momento em que sua missão por amor chega ao fim pela
força do “desencantamento”, se “desapoderando” para partir em jornada de
reflexão. É Diadorim e o amor por Diadorim que guiam Riobaldo em todas as
travessias.
Poderia-se dizer que o eixo medular de ambas as narrativas na perspectiva
de seus acontecimentos está na reflexão a respeito do acaso e do destino, aspecto
paradigmático do romance de formação. Esse tópos é tematizado explicitamente
nos Anos de Aprendizado, a partir da constante confrontação entre as crenças e
especulações de Wilhelm e os ideais utópicos da Sociedade da Torre, encarnado
no discurso do Abade. Ora, Wilhelm amiúde parece acreditar numa força do
destino, sem a qual estaria à deriva; de um processo que, agindo à sua revelia,
explicasse os acasos que lhe favorecem. A Sociedade logo lhe responde: “o destino
é um preceptor excelente, mas oneroso” 12, “a trama deste mundo é tecida pela
necessidade e pelo acaso; a razão do homem se situa entre os dois e sabe dominá-
los”13, cabe ao homem tomar as rédeas de seu destino para evitar sucumbir à
contingência. Wilhelm, porém, estava relativamente certo quanto à sua

11 Arrigucci, 1994. p. 25
12 Goethe, 2006. p. 127
13 idem, p. 83

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determinação por um “destino”; pois naquilo que mais poderia lhe parecer obra
do acaso, ele era na verdade secretamente guiado pelos mestres, ao arbítrio
racional de outrem. Neste aspecto, Riobaldo se encontra do outro lado: à mercê
da contingência e da casualidade.“Por que foi que eu conheci aquele Menino? O

senhor não conheceu” — pergunta a certa altura, consciente da origem de tudo


no seio supremo do acaso. Mas a força do Destino não deixa de aparecer a todo
momento na trama simbólica da narrativa, encontrando seu ponto de paroxismo
no aspecto oracular da canção de Siruiz. O fato é que, no jogo entre as veredas do
acaso e as estradas do destino, Wilhelm e Riobaldo são típicos heróis romanescos.
Como discutido em um momento central ao caráter teórico-especulativo do
romance de Goethe 14, o herói épico ou romanesco se diferenciaria do herói
dramático por sua relativa passividade, tudo a ele se modela e não há adversidade
a qual sucumba; assim, também, se o drama impõe ao homem a força inexorável
do destino trágico, ao romance é permitido o livre jogo do acaso, conduzido,
porém, pela força da subjetividade que aqui inunda ambos os romances. É neste
sentido que o destino se impõe ao “miserável cachorro” Wilhelm, de Goethe, e ao
“pobre menino do destino” de Rosa, assim como ao “filho enfermiço da vida” de
Thomas Mann, Hans Castorp – que padece de um final muito mais trágico – e a
tantos outros protagonistas em formação. Se o herói dramático é aqui levado pela
correnteza do rio, nossos heróis fazem a travessia a nado, e por mais adversidades
que encontrem, chegam na outra margem, ainda que em um ponto bem diferente
do que imaginavam – não raro, em um ponto muito melhor, para aludir à
parábola de Saul, inserida na narrativa de Meister. Ora, “viver é muito perigoso”.
Eis que Wilhelm sem dúvida alcança ao final certo estágio
reconciliatório.15 Vendo o equívoco de sua carreira teatral, que guia toda a
primeira metade mais individualista e subjetivista do romance, é conduzido pela
Sociedade da Torre à objetividade da vida social, a uma aceitação consciente da

14Capítulo 7 do Livro V. A discussão teórica ali apresentada reproduz as reflexões do próprio


Goethe a respeito dos gêneros épico e dramático, tendo sido largamente desenvolvidas em sua
correspondência com Schiller.
15Embora – ressalte-se – jamais de “maestria” ou superação definitiva de seus dilemas, como
sugiro em seguida. Isso é exprimido sobretudo por uma das ironias maiores da narrativa: os
momentos de maior indecisão e falta de perspectivas para Wilhelm seguem-se ao anúncio de
que é chegado o fim de seus anos de aprendizado, com o rito da Sociedade da Torre. “A
natureza te absolveu”.

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“prosa das relações”. Isso ocorre nos dois últimos livros, apologéticos de um
pensamento revolucionário e humanista que tanto inspirava Goethe, fazendo o
ideal formativo inflexionar do indivíduo à comunidade. O processo formativo de
Wilhelm segue (como aponta Marcus Mazzari16) um movimento de Aufhebung,
que supera as fases e conflitos anteriores mas conservando-as em um estágio
superior. Diferente parece ser, em certos sentidos, a destinação de Riobaldo. Pois
por mais que – de Riobaldo a Tatarana a pactário Urutú-Branco – ele aprenda,
amadureça, e encontre um final de paz redentora, casado com Otacília e
administrando suas fazendas, o que pulsa ao longo da narração errante é um
estado derradeiro de dúvida e incompreensibilidade, de quem olha para o passado
para buscar, na anagnórisis, em meio a veredas de sentido num sertão de
mistérios, a unidade de sua identidade, e tentar racionalizar pelo esclarecimento,
pelo logos discursivo, o que lhe é mítico.17 É preciso que, em Grande Sertão:
Veredas, as incertezas, contradições, e ambiguidades, de que fala Antonio
Candido18, mantenham-se em aberto.19 Se Wilhelm Meister é um romance
dialético, poderia-se arriscar, pois, que Grande Sertão é um romance “dialético
negativo”, que não pode dar a Riobaldo, ao final, entre o coração e a realidade,
um momento positivo-racional de síntese, senão como síntese aberta, não-
violenta. Sua narração parece assemelhar-se mais a um processo de cura
psicanalítica do que à expressão do reconciliado. Já assentado na vida objetiva
prática, sua redenção final é pela espiritualidade, sob influência de seu formador
derradeiro, Compadre Quelemém. Mas afinal, um romance de formação
“aberto”: lemniscata narrativa, “matéria vertente” sem estrada definida e ponto
de chegada, campo inesgotável de contínuo aprendizado. “Porque aprender-a-
viver é que é o viver, mesmo”.
Eis que aproximamos-nos mais da natureza do processo formativo. Ambos
os romances deixam-nos claro que a formação é menos um horizonte teleológico

16 Mazzari, M. V., 2018. p. 27


17Clara alusão ao processo amplamente descrito por Adorno e Horkheimer em Dialética do
Esclarecimento; articulação melhor elaborada por David Arrigucci Jr. (1994). Esboço em
seguida certas descrições que valem-se também de instrumentais de matriz adorniana, sem,
porém, maior espaço para desenvolvê-las.
18 Candido, A., 2002.
19 A serem continuamente reelaboradas na rememoração discursiva.

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a ser alcançado do que um processo, uma direção a ser seguida. Formação
dinâmica, não-linear, e que nunca estará completa, podendo mesmo agir por
descaminhos e retrocessos ou dar-se “às avessas”. Processo de desdobramento do
indivíduo, mas pelo constante conflito produtivo entre o Eu e o mundo, e de
aperfeiçoamento inter-subjetivo (Riobaldo e Zé Bebelo são mestres e alunos “se
aprendendo”; Felix forma Wilhelm sendo por ele formado). Essa dimensão
relacional da formação está, pois, no núcleo do próprio Bildungsroman. Ela salta
do enredo e atinge o próprio leitor (capaz de amadurecer com os heróis),
enquanto resulta de uma escrita “formativa” do próprio autor. Ora, Goethe
celebremente afirmou que tudo o que escreveu são “fragmentos de uma grande
confissão”. Não nos será surpreendente, assim, descobrir que Guimarães Rosa
definiu Grande Sertão: Veredas como sua “autobiografia irracional”; uma em que
não se vai “viver para contá-la”, mas “contar para vivê-la”: travessia.

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Referências
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AUERBACH, E. Mimesis: a representação da realidade na literatura ocidental.


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GOETHE, J. W. Os anos de aprendizado de Wilhelm Meister. São Paulo: Editora


34, 2006

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34, 2006

MARKS, M.C. “No meio da Travessia”, in: Revista Literatura e Sociedade, 27,
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MAZZARI, M. V. “Os Anos de Aprendizado de Wilhelm Meister: ‘um magnífico


arco-íris’ na história do romance”, in: Revista Literatura e Sociedade, 27, p.
12-30, jan/jun 2018

RÓNAI, P. “Três motivos em Grande Sertão: Veredas”, in: Grande Sertão:


Veredas. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001

ROSA, J. G. Grande Sertão: Veredas. São Paulo: Companhia das Letras, 2019

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