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Conversando é que a gente se entende

Na sala de reunião da Unidade de Saúde os profissionais de saúde recebem Dr. Clark, pesquisador
renomado, que discorre sobre os últimos achados de sua pesquisa e todos bebem de suas palavras
cheias de sabedoria... sobretudo a dentista Carmem que gosta de pesquisa e busca estar sempre
atualizada. Na saída da Unidade ainda animados pela rica discussão, esbarram no baleiro à porta da
Unidade cujo tabuleiro repleto de guloseimas doces causa uma súbita freada dos dois.

O baleiro não querendo perder a oportunidade ao ver dois doutores de jaleco bem ali na sua frente
pergunta sem pestanejar: “O dotô e a dotora me desculpe o jeito, mas vô proveitá a presença docês e
perguntá porque será minha família tem os dente tão fraco. Já ouvi falá que é coisa do cálcio, outros diz
que é a água de poço que nóis toma, outros diz que que é... como diz mesmo.... que é dessa coisa da
natureza de cada um... Já perdi quase todos os dente da boca, meus filho tão indo pro mesmo caminho”

Olhando o baleiro com sorriso incompleto, Dr. Clark vira-se para a dentista Carmem e diz: “Há duas
coisas que gostaria, rapidamente de explicar: Quantos estamos falando de diagnóstico de cárie, de risco
ou prognóstico da doença nas pessoas, ou de alternativas para prevenir ou tratar as manifestações mais
precoces desta doença, devemos falar de “sensibilidade” e “especificidade”: estas são características do
teste diagnóstico e não dependem da prevalência da doença na população a que pertence o indivíduo...
“... Já os valores preditivos positivo e negativo dependem da sensibilidade e da especificidade do teste,
mas também da prevalência da doença na população a que o indivíduo pertence...”, o cientista continua
falando para si mesmo e para uma plateia invisível”

Carmem , na verdade, gostaria de aproveitar aquele raro momento com o consultor para falar de suas
próprias dúvidas e preocupações, usar melhor aquele breve momento com uma pessoa tão famosa, um
consultor externo de alta qualificação, um cientista tão conhecido na área. Queria uma conversa mais
“técnica”, mais útil para seu trabalho e não gastar conversa com o Baleiro, um conhecido e renitente
usuário da clínica, quase sempre buscando consultas para sua mulher e abundância de filhos, mas
retruca olhando para o baleiro e vai dizendo

- “Não é isto, eu já falei para o senhor, sua mulher e seus filhos... Vocês comem doces demais, e não
escovam os dentes direito. Sua mulher mesmo, eu já vi dar mamadeira açucarada para os filhos, ainda
quando eles eram bebês. E depois, quando crescem, você abre sua “caixa de ferramentas de destruição
dental” permitindo que eles comam todo doce que querem”

Mas Carmem não contem o impulso, pois na verdade, queria era esclarecer com Dr. Clark algumas
questões que ela tinha visto em um congresso em SP, em que pesquisadores estrangeiros falavam com
tanta ênfase sobre os fatores de risco para cárie

Premeditado, o cientista ensaiou um ar de gravidade e impostou a voz com tom de erudição:-Trata-se


obviamente de um caso familiar de alto risco a cárie, sobre o qual eu gostaria de fazer algumas
observações. Mas, antes, quero salientar que há fatores contributivos sociais e ambientais presentes
nesta comunidade. Por exemplo, eu já ouvi da equipe, há pouco na reunião, que esta população não
consome água fluoretada... Vocês pertencem a um subgrupo populacional com dados de prevalência de
cárie muito acima da média da população em geral, para todas as faixas etárias...

Enquanto isso o baleiro continuava denunciando um sorriso maroto no canto dos lábios... Até agora,
não tinha ouvido nada que lhe respondesse por que sua família tinha dentes tão fraco!?

Seu contato com “os doutô” se mostrou sem valia. “Esta gente estudada fala bonito, não se entende entre
eles e não explica nada que a gente qué sabê...” Chega a casa e ouve o rádio ligado em Padre Marcelo.
Então canta com ele, em altos brados:

Adaptado do texto: MOYSÈ S. J. O Cientista, a Dentista e o Baleiro. Ou a sensibilidade


odontoló gica. (disp. On line).

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