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Edição 53 - Outubro/Novembro/Dezembro de 2010

COM A PALAVRA Ser Mèdico n %3 - CREMESP 2010

Se você ainda não leu, veja o que está perdendo...

A estratégia da lagartixa para médicos super-hom ens

O livro A Estratégia da Lagartixa é uma coleção de “casos” de um jovem durante sua trajetória como vestibu lando, estudante de
Medicina, médico residente e, finalmente, cirurgião geral. Esses relatos mostram a dinâmica da prática médica na sua dimensão
humana, com fino humor. O título é uma metáfora para a estratégia da lagartixa que, quando acuada por um predador, desprende-se
do rabo para fugir. Na introdução, o autor escreve que espera consegui r mutilar a imagem dos médicos como super-homens na
medida correta para ajudá-los, mas avisa que se trata de obra de ficção e que “todos os lugares, pessoas e aconte cimentos, da forma
como estão narrados, são imaginár ios”. Não por acaso, o autor, Dário Vianna Birolini , foi um jovem que prestou vestibular para
Medicina e tornou-se cirurg ião. A seguir, o leitor pode apreciar um trecho desses “casos”. (Por Reinaldo Ayer de Oliveira, conselheiro
do Cremesp).

Anamnese? O que é isso?

Ambulatório de clínica médica. Moço com estranhos sintomas.


Já bem longe da puberdade , o jovem havia notado um aumento gradu al de suas mamas, acompanhado de alteração no timbre da sua
voz. Ambas as alterações eram notáveis ao exame físico.
O médico que assistia os alunos e residentes (médico assi stente) pergunto u ao paciente se ele estava usando anabol izantes ou
alguma droga, o que ele negou veementemen te.
O caso chamou a atenção dos professo res, que passaram a discutir várias síndromes raras, tentand o explicar os achados clínicos . O
leque de opções diagnósticas era enorme, assim como número de exames possivel mente necessários. Quais testes deveriam solicitar
visando confirmar ou descartar síndromes que poderiam ser endócrino-m etabólicas, neurológicas, urológica s ou, até, genéticas?
Diferentemente da concepção dos médicos, para os alunos e os pacientes, “droga” signi ficaria apenas algo ilícito. Enquanto os
médicos discutiam sobre quais exames pedir, um aluno foi completa r a sua “listinha de perguntas que não posso esquecer de
formular”. Perguntou ao paciente se ele estava tomando alg uma medicação, e ele disse que sim. Ao ser perguntad o sobre qual seria
o medicamento, ele cochichou:
– Estou tendo relaçõe s sexuais com a minha namorada , mas o pai dela não pode saber. Para que não corramos riscos de ser
descobertos, eu é que estou tomando os anticoncepcionais dela...
Parece bobagem, mas é um ótimo exemplo de como a história clínic a é fundamental. Às vezes, uma simples pergu nta reduz
drasticamente o custo, o tempo e o sofrimento de qualquer tratamento, sem contar com a queima desneces sária de massa cinzenta.
Várias pessoas têm a curiosa impres são de que o médico faz diagnósti co por meio do exame físico ou dos exames complementares.
Ledo engano!
O diagnóstico, na maioria das vezes, é alcançado pela históri a clínica. Anamnese é a história que disseca cronológica e
detalhadamente os eventos relacionados com o atual quadro clínico. É fundamental para o profissional saber obtê-la de forma
adequada, se pretende alcançar bons resultados diagnósticos e terapêuticos.
Isso explica por que os médicos detestam ser solicita dos para apenas uma olhadinha, ou por que havia numa Faculdade de
Veterinária a seguinte placa: consulta, R$ 50,00; só uma olhadinha, R$ 100,00.
Ao dar uma rápida olhadinha, nós, médicos, precisamos aplicar conhecimentos que vão desde a anatomia até a farmacologia, mas
temos maior dificuld ade para chegar ao diagnóstico sem uma avaliação ade quada. Cai a nossa eficácia e não ficamos isentos da
responsabilidade!
A história é a nossa pedra fundamental, sendo útil em praticamente todas as situações. Assim, irei explicá-la um pouco melhor.

Ela é dividida em cinco partes:

1. Quei xa e duração
Aqui o médico, de forma rápida e sucinta, identifica qual é o problema que aflige o doente, buscando focar a condução do
interrogatório. A duração ajuda a determinar a urgência e a gravidade do caso. É um poderoso instrum ento na triagem médica. (...)

2. Hist ória pregressa da molésti a atual


(...) O colega precisa saber ouvir, mas deve ajudar o paciente a chegar aonde precisa. Não interessa ouvir se sicrano come muito
feijão ou se tem hemorroidas, quando o seu problema é um tiro no peito!
Parece um bate-papo, mas na verdade envolve uma série de métodos. Não devemos, por exemplo, influ enciar as respostas. Ao
perguntar se a dor é em peso ou queimação, já restringimos a resposta a apenas duas opções. Não é fácil.
O diálogo a seguir, entre um médico e seu paciente, representa apenas um dos tipos de dificuldade que enfrentamos .
– O que a trouxe?
– O ônibus, né?
– Onde começou a dor?
– Na casa de uma prima. Ela mora na Bahia...
– Usou algum remédio?
– Uns comprimidinhos vermelhinhos.
Por mais que finja, o médico nunca sabe a cor do comprimido . (...)
Imagine tirar a história clínica desse paciente durante um plantão de pronto-socorro, sem parecer indelicado ao tentar separar o joio
do trigo. Precisamos de muita paciência e compaixão.

3. Antecedentes pessoais e hábitos


Haveria alguma doença, cirurgia, medica ção, alergia ou hábito que poderia ter colaborado para o aparecimento ou o agravamento dos
sintomas?
Quando o médico menospreza esse passo, pode cair numa armadilha. Veja o que aconteceu com um cirurgião ao tirar uma história
sem pesquisar adequadamente os antecedentes:
– O senhor está com apendicite!
– Mas não é possível. Tem certeza?
– Não há dúvida. Tudo indica – falando com o peito estufado e as pálpebras semicerradas – tratar-se de uma apendicite aguda!
– Mas eu já retirei o meu apêndice.. .
– Talvez – ainda no pedestal – tenha sido mal operado. Devem ter deixado um pedaço dele.
– Mas foi o senhor que operou. Não se lembra?

4. Antecedentes famili ares


Uma queixa de alteração do hábito intestinal me deixará mais preocupad o em relação a um paciente que possui vários familiares
falecidos por câncer de intestino do que a um aluno morando numa república, cuja dieta costuma ser macarrão com pizza e gelatina.

5. Interrogatório sobre os diversos aparelhos


Busca ativa do médico por outras alteraç ões e sintomas em todos os sistemas (eventualmente esquecidos no relato dado pelo
paciente), investigando-os de forma holística. Parte fundamental para tratar uma pessoa e não o seu estômago.
Apesar do treino, às vezes obter uma anamnese pode ser um parto a fórceps. A história clínic a mais difícil que já tirei foi numa aula
de propedêutica neurológica.
O professor, sem saber dos diagnósticos, distribuiu aleatoriamente os alunos pelos leitos da enfermaria de neurologia. Nossa missão
seria colher uma história clínic a em “apenas” uma hora. Caí com o número onze e extrapolei o tempo disponível, pois não conseguia
encontrar nexo no que o paciente falava. Esgotado o períod o, o professor pediu que eu relatasse o meu caso clínico para o grupo. A
história era terrível, sem pé nem cabeça. Desculpei-me, alegand o que o paciente era muito difícil, quando tive de engolir um famoso
bordão de medicina:
– Não existe história difíci l, e sim quem não sabe tirá-la!
Estimulante para quem está aprendendo, não?
Mas a vingança não tardou. Para que pudesse mostrar aos outros alunos sua refinada técnica , o professor foi entrevistar o meu
paciente. Logo viu que entraria em apuros, caso não tivesse percebido o problema. O doente possuía afasia de Wernicke, devido a
um derrame cerebral . Em outras palavras, ele falava fluenteme nte, mas sobre coisas totalmente sem sentido. Quando eu perguntava
as horas, ele respondia garfo ou verde. Nunca tinha visto isso e, sem conhecer a existência de uma patologia assim, escrevi a história
mais esdrúxula que o professor teria ouvido. Ele desculpou-se pela sua própria rigidez e nos ensinou um pouco mais sobre a
síndrome.
Além de todas as técnicas que tinha de aprender, sofria grande dific uldade para decorar tudo o que o paciente falav a, filtrar o
importante, passar para o papel e, finalmente, raciocinar no diagnóstico e na conduta. Não sabia ainda me focar no que era pertinente
nem refletir enquant o ouvia. Aliás, ficávamos mais preocupado s com as perguntas que precisaríam os aplicar do que com as
respostas. Ainda não sabíamos fazer o mais importante: ouvir.
No início, as perguntas são decoradas. Às vezes as esquecíamo s ou as fazíamos sem a menor necessidade, uma vez que não
estavam sendo elaboradas com base num raciocínio lógico, mas na decoreba. Mais uma vez, faziam parte da “listinha de perguntas
que não devemos nos esquecer de fazer”. Por isso, no começo, as histórias dos terceiro-anistas são verdadeiros tratados de
besteirol, recheadas de dados inúteis e indagações, algumas vezes até inconvenientes. Esse problema ocorre porque o questionário
não deve ser sempre o mesmo. Ele muda de acordo com o contexto. No começo, somos muito rígidos para mudar também. Isso me
levou a vivenciar uma série de situações interessantes, como:
– A senhora sente falta de ar quando anda?
– Se a paraplegia me permitisse andar, talvez eu soubesse responder!
...
– O senhor está com a menstruação atrasada? (Afina l, sempre temos de perguntar sobre a parte ginecológica...)
Às vezes, escrevíamos enormes bobage ns sem pensar, compatíveis apenas com as que li na bula do medicamento que se compra
para o filho: “Contraindicações da pomada específica para tratamento de fimose: gravidez e amamentação. (...)”

Dário Vianna Birolini é cirurgião geral, assis tente do Departament o de Cirurgia do Hospital das C línic as de São Paulo.

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