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Bachelard e Holton: semelhanças óbvias, diferenças profundas

João Barbosa
Centro de Filosofia das Ciências da Universidade de Lisboa

Segundo Bachelard, o conhecimento científico pode ser erradamente considerado objetivo


por parte do cientista que o produz. Sem que este se aperceba, uma grande dose de
subjetividade, que resulta do seu passado intelectual e afetivo, entranha-se no conhecimento
produzido. O trabalho do cientista assenta em «grandes certezas íntimas»1, em «convicções
subjectivas»2, de que o próprio não tem consciência. São vestígios de um passado individual,
de experiências subjetivas, tanto no plano intelectual como no plano sensível e afetivo,
podendo mesmo ser «vestígios da experiência infantil»3. Por isso, diz Bachelard, «aquilo que
imaginamos serem os nossos pensamentos fundamentais acerca do mundo, não passa, muitas
vezes, de confidências a respeito da juventude do nosso espírito.»4 E acrescenta que:

Quando se apresenta à cultura científica, o espírito nunca é jovem. É mesmo muito velho,
porque tem a idade dos seus preconceitos.5

O cientista não é, pois, uma máquina exclusivamente racional; é, pelo contrário, um «homem
inteiro com a sua pesada carga de ancestralidade e de inconsciência, com toda a sua juventude
confusa e contingente (…).»6

Há aqui muito em comum com as ideias do historiador e filósofo da ciência Gerald Holton.
Podemos dizer que, também para Holton, um cientista é um homem inteiro. E que a ciência é
também, e consequentemente, uma actividade inteira, no sentido em que é feita por
indivíduos que não trabalham como simples máquinas de racionalidade mas como seres
humanos completos, ou seja, como seres racionais, sim, mas que trazem consciente ou
inconscientemente para o seu trabalho elementos pessoais das suas histórias de vida e dos
contextos históricos, culturais e sociais em que se integram.

1
Bachelard, Gaston, A Psicanálise do Fogo, trad. port. de Maria Isabel Braga, Estúdio Cor, Lisboa, (s.d.), p. 130.
2
Bachelard, Op. cit, p. 15.
3
Bachelard, Op. cit, p. 25.
4
Bachelard, Op. cit, p. 9.
5
Bachelard, Gaston, La Formation de l’Esprit Scientifique - contribution à une psychanalyse de la connaissance
objective, Librairie Philosophique J. Vrin, 1975, p. 14.
6
Bachelard, Op. cit., p. 209.
Esta conceção de Holton assenta no conceito de thema (themata no plural) – um guia que
orienta de forma determinante a produção de saber, assim como a reação (de aceitação,
rejeição ou indiferença) perante o saber produzido por outrem, estimulando ou
constrangindo, potenciando ou impedindo, estabelecendo uma orientação normativa ou uma
polarização específica do trabalho de uma comunidade ou de um indivíduo.

Para Holton, os themata são também grandes certezas íntimas, convicções subjectivas, de que
o cientista pode não ter consciência; segundo Holton, são também vestígios da experiência
infantil e podem apresentar-se como preconceitos. A ciência pode ser uma exaltação do
objectivo mas, afinal, ou melhor, antes de tudo, é uma atividade com fortes determinações
subjetivas, marcada pela experiência pessoal do cientista. Para Bachelard, como para Holton,
o conhecimento científico tem sempre uma marca de subjetividade.

À partida, as semelhanças entre os dois pensamentos são, pois, inegáveis e até bastante
óbvias. Mas depressa descobrimos profundas dissemelhanças. A primeira é que Holton analisa
a presença e as consequências desta subjetividade do trabalho científico numa perspetiva
exclusivamente descritiva e compreensiva (a análise thematica é, no dizer de Holton, uma
análise «descritiva, não normativa»7), enquanto Bachelard, pelo contrário, entende e analisa
a presença e as consequências da subjetividade no labor científico numa perspetiva
assumidamente valorativa e normativa, partindo do princípio de que a subjetividade em
ciência é sempre negativa e, portanto, qualquer descrição e compreensão das suas
manifestações deve, em última instância, servir para identificar e resolver problemas criados
por essa mesma subjetividade.

É que Bachelard propõe, não uma simples análise, mas uma psicanálise do conhecimento
objetivo. A expressão com que Bachelard denomina a sua proposta metodológica remete para
a compreensão de realidades psicológicas profundas e actuantes, mesmo estruturantes, no
trabalho científico individual mas com o objetivo de erradicar essas determinações subjetivas
do trabalho científico. Assim se explica que a filosofia de Bachelard assuma um caráter
terapêutico. A construção do conhecimento objetivo é uma atividade em que os elementos
psíquicos do sujeito científico são fonte de problemas e devem, por essa mesma razão, ser

7
Holton, Victory and Vexation in Science: Einstein, Bohr, Heisenberg, and Others, Harvard University Press,
Cambridge, Massachusetts and London, England, 2005, p. 144.
conhecidos, desconstruídos e retirados da atividade científica ou, pelo menos, do
conhecimento produzido pela atividade científica.

A proposta bachelardiana é, pois, a de uma «psicanálise das convicções subjectivas


relacionadas com o conhecimento dos fenómenos», uma «psicanálise especial», «útil como
ponto de partida de qualquer estudo objectivo»8. Esta «psicanálise do conhecimento
objectivo»9 visa

descortinar a influência dos valores inconscientes na própria base do conhecimento empírico


e científico. Precisamos pois de mostrar a luz recíproca que passa constantemente dos
conhecimentos objectivos e sociais para os conhecimentos subjectivos e pessoais, e vice-versa.
É preciso revelar, na experiência científica, os vestígios da experiência infantil.10

Trata-se de «psicologia de um inconsciente científico»11. E a zona do inconsciente em que


intervém «tem uma acção determinante sobre o pensamento claro, sobre o pensamento
científico.»12 Pelo que, segundo Bachelard:

É preciso descer mais ao fundo; encontraremos então os valores inconscientes que fazem a
permanência de certos princípios de explicação. Por meio de uma suave tortura, a Psicanálise
deve coagir os sábios [cientistas] a confessarem os seus motivos inconfessáveis.13

Tal como Holton, Bachelard reconhece a profundidade e a inconsciência dos valores subjetivos
na actividade científica. Tal como Holton, Bachelard reconhece a permanência de certos
princípios de explicação, ou, por outras palavras, de padrões intelectuais, de uma insistência
sistemática numa certa forma de ver e explicar o mundo. Tal como Holton, Bachelard defende
a existência de motivos inconfessáveis – porque são inconscientes ou porque, estando ao nível
da consciência, o cientista prefere reservá-los para si mesmo, na esfera da ciência privada. Em
todos estes aspectos, é como se, afinal, a psicanálise de um também fosse a análise do outro.

8
Bachelard, A Psicanálise do Fogo, p. 15.
9
Expressão introduzida no próprio subtítulo de La Formation de l’Esprit Scientifique.
10
Bachelard, A Psicanálise do Fogo, p. 25.
11
Bachelard, La Formation de l’Esprit Scientifique - contribution à une psychanalyse de la connaissance objective,
p. 184.
12
Bachelard, A Psicanálise do Fogo, p. 28.
13
Bachelard, Op. cit., pp. 108-109.
Porém, a diferença é abissal. Não porque a análise thematica não seja também uma
psicanálise. É-o no sentido em que busca as razões profundas, quantas vezes ocultas e
inconscientes, possivelmente originárias de um passado longínquo, para certas filias, certas
fobias, certos padrões intelectuais, para a permanência de certos princípios de explicação. É-
o no sentido em que procura ver o que se esconde por detrás do que é manifesto,
desvendando as raizes de opções intelectuais que podem não ser muito claras e
compreensíveis se nos restringirmos ao plano analítico-empírico. É-o no sentido em que pode
levar os cientistas a confessarem (ainda que involuntariamente) os seus motivos
inconfessáveis. Mas uma psicanálise thematica, digamos, nunca se assumiria como método
terapêutico ou catártico; apenas como simples método compreensivo. A análise thematica é
certamente, e também, uma questão de psicologia, mas dificilmente será de psicanálise, no
sentido terapêutico e catártico do termo. Para Holton, a análise thematica é descritiva, não
normativa. Mas, para Bachelard:

A psicologia do sábio [cientista] deve tender para uma psicologia claramente normativa; o
sábio [cientista] deve recusar-se a personalizar o seu conhecimento; correlativamente, ele
deve esforçar-se por socializar as suas convicções.14

(…) toda a cultura científica deve começar (…) por uma catarse intelectual e afectiva.15

É preciso que cada um se empenhe em destruir em si próprio essas convicções não discutidas.
É preciso que cada um aprenda a fugir à rigidez dos hábitos do espírito formados em contacto
com certas experiências familiares. É preciso que cada um destrua, mais cuidadosamente
ainda do que as fobias, as suas «filias», as suas complacências em face das intuições
primárias.16

Ou seja, para Bachelard, o cientista deve abandonar o espaço da sua ciência privada e
deslocar-se para o espaço da ciência pública. Deve abandonar os seus afetos, libertar-se de si
mesmo e dos seus fascínios primitivos e inconscientes, e entregar-se ao mundo objetivo,
racional e não afetivo.

14
Bachelard, A Psicanálise do Fogo, pp. 134-135.
15
Bachelard, La Formation de l’Esprit Scientifique - contribution à une psychanalyse de la connaissance objective,
p. 18.
16
Bachelard, A Psicanálise do Fogo, pp. 16-17.
Segundo Bachelard, há uma «afectividade do uso da razão»17 contra a qual se deve lutar. A
atividade psicanalítica é, nesse sentido, uma «psicologia do sentimento de ter razão»18. O
cientista tem…

…convicções primeiras endurecidas. É preciso examinar estas «racionalizações» prematuras


(…). Elas são a marca de uma vontade de ter razão à margem de qualquer prova explícita (…).19

Reencontramos aqui uma das características dos themata: também estes são uma convicção
endurecida e podem sustentar uma vontade de ter razão à margem de qualquer prova
explícita, numa «condescendente suspensão da dúvida» de que Holton fala quando se refere
à empedernida insistência em determinadas ideias mesmo quando não há provas que as
apoiem ou até quando as provas disponíveis as parecem contrariar. Mas o que é mau aos
olhos de Bachelard nem sempre foi mau na história do conhecimento científico. Algumas
vezes, tais crenças e teimosias intelectuais conduziram ao erro ou a resultados infrutíferos,
mas, noutros casos, este comportamento mais afetivo do que racional já deu bons frutos.

Esta ambivalente capacidade que determinadas convicções muito subjetivas têm de conduzir
ao fracasso mas também ao êxito encontra-se exemplarmente expressa, por exemplo, no
papel que o thema da simplicidade desempenhou na obra científica de Galileu. Como Holton
defendeu, na linha do historiador de arte Erwin Panfosky20, a crença na simplicidade terá
contribuído para a animosidade ou, pelo menos, indiferença, que Galileu mostrou pelas
elipses orbitais de Kepler. De facto, Galileu nunca aceitou os movimentos planetários elíticos,
apesar das aturadas observações de Tycho Brahe e dos rigorosos cálculos de Kepler
apontarem mesmo nesse sentido, numa atitude possivelmente explicável pelo facto de a
elipse ser uma figura geométrica menos simples (e considerada menos perfeita) do que a
circunferência. O apego ao thema da simplicidade terá conduzido Galileu ao erro, mas terá
sido este mesmo apego que levou Galileu a preferir o heliocentrismo de Copérnico em
detrimento do geocentrismo então vigente. Na verdade, do ponto de vista físico, não havia

17
Bachelard, La Formation de l’Esprit Scientifique - contribution à une psychanalyse de la connaissance objective,
p. 247.
18
Bachelard, Op. cit., p. 247.
19
Bachelard, Op. cit., p. 41.
20
Cf. Holton, Gerald, Einstein, History, and Other Passions, AIP Press, Woodbury, New York, 1996. Tradução
portuguesa: A Cultura Científica e os Seus Inimigos, trad. por Fernando Henrique de Passos, Gradiva, Lisboa, 1998,
pp. 116-123.
razões para o heliocentrismo levar a melhor sobre o geocentrismo, sendo impossível detectar
qualquer movimento terrestre (fosse de rotação ou de translação) recorrendo a alguma
experiência física. À falta pelo de qualquer razão “verdadeiramente científica” que justificasse
a adesão às ideias de Copérnico, terá sido o apego ao thema da simplicidade a orientar Galileu.
Como diz Françoise Balibar, «a convicção de Galileu assenta, portanto, num argumento de
simplicidade: é mais simples para a natureza (e não apenas para os astrónomos) fazer girar a
Terra sobre o seu eixo, do que fazer girar todo o céu em volta da Terra!»21 Neste caso, o apego
ao mesmo thema da simplicidade foi uma convicção frutuosa, que conduziu a ciência de
Galileu ao sucesso. Ou seja: as mesmas convicções subjetivas tanto podem ser convicções
contra as quais convém lutar como, pelo contrário, convicções que convém seguir… À partida,
não há forma de o cientista saber quando deve optar por uma atitude ou por outra. Apenas
os desenvolvimentos científicos individuais e coletivos poderão mostrar, ao fim de algum
tempo, qual a atitude a seguir ou que deveria ter sido seguida.

Daqui decorre uma grande discordância entre Holton e Bachelard, relativa à noção de
cientificidade. Para Bachelard, só é científico o conhecimento que for objetivo, puramente
objetivo, despido de qualquer subjetividade invasora; o conhecimento que não tiver qualquer
marca pessoal do seu criador. Pelo contrário, para Holton, o conhecimento científico integra
necessariamente esta marca pessoal. Esta marca pessoal faz parte integrante da ciência.

A identificação total entre conhecimento científico e conhecimento objetivo, com a rejeição


incondicional da subjetividade, fundamentam o caráter normativo e o próprio sentido da
psicanálise do conhecimento científico. Psicanalisar o conhecimento científico é torná-lo cada
vez mais objetivo, purificá-lo, elevá-lo de um nível pré-científico a um nível verdadeiramente
científico. A proposta de Bachelard é absolutamente radical: um conhecimento só é científico
se for totalmente objetivo. Mas, independentemente da possibilidade de um conhecimento
assim tão “puro”, podemos dizer que nada poderia estar mais afastado da perspetiva de
Holton do que este purismo (ou puritanismo) epistemológico. A ciência pública do plano
objectivo não apenas convive com a ciência privada do eixo thematico, eixo este sustentado
numa certa dose de subjetividade, como interage profundamente com a mesma, constituindo

21
Balibar, Françoise, Einstein: Uma Leitura de Galileu e Newton, trad. por Arlindo José Castanho, Edições 70,
Lisboa, 1988, p. 49.
em conjunto, e sem exclusões normativas, a verdadeira e completa atividade científica. É certo
que, tal como a de Holton, a proposta de Bachelard admite uma dimensão subjetiva ao espaço
científico, mas tem sempre por intenção declarada o seu anulamento, com vista a uma ciência
circunscrita a dimensões objetivas, tidas como base do espaço verdadeiramente científico.
Ora, na perspectiva holtoniana, o puritanismo bachelardiano não é nunca um refinamento,
mas um empobrecimento. Para Holton, a ciência inteira, completa, quer como atividade quer
como conhecimento, é um espaço que não dispensa a dimensão mais subjetiva – o eixo
thematico. Holton considera, aliás, que é no eixo thematico e não nos outros que se
encontram o génio e a criatividade22. Extorquir a subjetividade seria, assim, mutilar o cientista
e a ciência, querendo tranformá-los naquilo que não são: figuras planas, sem espessura
humana, sem génio nem criatividade; apenas máquina racional sem impressão digital, apenas
espaço racional.

Pelo contrário, para Bachelard, a psicanálise do conhecimento objetivo pode e deve ser um
instrumento ao serviço da objetividade, um recurso metodológico que todo o cientista deve
utilizar para conseguir produzir conhecimentos verdadeiramente científicos (que nunca o
serão se não forem verdadeiramente objetivos). É um método de catarse e purificação
epistemológicas, orientado no sentido da máxima objetividade possível. Aos olhos de
Bachelard, é precisamente aqui que reside a sua utilidade.

Esta suposta utilidade da psicanálise do conhecimento objetivo implica que seja o próprio
cientista a desenvolvê-la: deve ser o próprio cientista a psicanalisar-se, para conseguir
prosseguir de forma frutuosa o seu trabalho. Pelo contrário, a análise thematica de Holton
não é tarefa para o cientista, mas para o historiador e filósofo da ciência, porque não é uma
ferramenta catárquica da atividade científica mas sim uma ferramenta descritiva e
compreensiva dessa mesma atividade.

É de obstáculos epistemológicos que a psicanálise de Bachelard se pretende livrar, no seu


esforço catártico rumo à objetividade e também à abstração (que o autor considera ser o
«modo de andar normal e fecundo do espírito científico23»).

22
Cf. Holton, Gerald e Brush, Stephen, Physics, the Human Adventure, Rutgers University Press, New Brunswick,
New Jersey and London, 2005, p. 521.
23
Bachelard, La Formation de l’Esprit Scientifique - contribution à une psychanalyse de la connaissance objective,
p. 5.
Quando se procura as condições psicológicas dos progressos da ciência, depressa se chega a
esta convicção de que é em termos de obstáculos que é preciso colocar o problema do
conhecimento científico. Não se trata de considerar obstáculos externos, como a complexidade
e a fugacidade dos fenómenos, nem de incriminar a fraqueza dos sentidos e do espírito
humano: é no próprio acto de conhecer, intimamente, que aparecem, por uma espécie de
necessidade funcional, lentidões e turvações. É aí que (…) descobriremos causas de inércia que
chamaremos obstáculos epistemológicos.24

Preconceitos, convicções pessoais, grandes certezas íntimas, valores inconscientes, vestígios


da infância, ideias não discutidas, afetividade, filias, vontade de ter razão, são para Bachelard
obstáculos epistemológicos que dificultam o progresso em ciência.

Também certos hábitos intelectuais podem ser obstáculos epistemológicos:

Um obstáculo epistemológico incrusta-se no conhecimento não questionado. Hábitos


intelectuais que foram úteis e sãos podem, a longo prazo, entravar a pesquisa.25

De igual modo, certas ideias valorizadas (que acabam sobrevalorizadas):

Com o uso, as ideias valorizam-se indevidamente. Um valor em si opõe-se à circulação de


valores. É um factor de inércia para o espírito. Por vezes uma ideia dominante polariza um
espírito na sua totalidade. Um epistemólogo irreverente dizia (…) que os grandes homens são
úteis à ciência na primeira metade da sua vida, nocivos na segunda metade. O instinto
formativo acaba por ceder perante o instinto conservativo. Chega um tempo em que o espírito
prefere o que confirma o seu saber ao que o contradiz (…). Então, quando o instinto
conservativo domina, o crescimento espiritual pára.26

Uma ideia pode ser sobrevalorizada e cristalizar-se, tornando-se dominante e polarizando a


pesquisa de forma excessiva. Transforma-se assim em obstáculo inconsciente e
inultrapassável, fazendo rodar em torno de si todo o esforço do cientista, que assim tenderá
a produzir cada vez menos conhecimento.

24
Bachelard, Op. cit., p. 13.
25
Bachelard, Op. cit., p. 14.
26
Bachelard, Op. cit., p. 15.
Os obstáculos epistemológicos atuam, segundo Bachelard, em duas formas de conhecimento
– o conhecimento empírico e o conhecimento físico-matemático27. Relativamente ao
conhecimento empírico, manifestam-se como: primeira observação (de que resulta um
conhecimento imediato, qualitativo e subjetivo, promovendo certezas prematuras);
conhecimento geral (generalidades erradas criadas por «extensão abusiva de imagens
familiares»28; substancialismo e realismo (ideias facilmente aceites sem qualquer discussão);
em conceções unitárias, analógicas e pragmáticas acerca da natureza (a que se ligam crenças
na sua unidade, na sua perfeição e na sua harmonia); animismo nas ciências físicas; e líbido.
Relativamente ao conhecimento físico-matemático, forma de conhecimento capaz, para
Bachelard, de provocar descobertas, os obstáculos manifestam-se como: imagens familiares
(que considera dificultarem a matematização); compreensão de um primeiro sistema
matemático (este «impede por vezes a compreensão de um novo sistema»29); e, no plano
geométrico, «valorização inconsciente das formas geométricas simples»30.

É possível afirmar que os themata, na sua vasta polimorfia subjetiva, correspondem, segundo
a perspetiva bachelardiana, a obstáculos epistemológicos. Na verdade, também os themata
podem apresentar-se como preconceitos, convicções pessoais, grandes certezas íntimas,
valores inconscientes, vestígios da infância, ideias não discutidas, afetividade, filias, vontade
de ter razão, hábitos intelectuais, ideias valorizadas e sobrevalorizadas.

Contudo, os themata não são, em si mesmos, elementos negativos (nem positivos) para a
atividade científica; são simplesmente elementos fortemente atuantes e condicionantes em
todo o trabalho científico e no conhecimento que o mesmo produz. Podem ser bem sucedidos
e conduzir um cientista ao sucesso, à revelia de qualquer prova segura ou até perante provas
aparentemente contrárias a esses mesmos themata. Também podem conduzir ao erro ou
paralisar. Mas o sucesso/insucesso não está inscrito nos themata. O sucesso/insucesso dos

27
Toda a sua obra La Formation de l’Esprit Scientifique - contribution à une psychanalyse de la connaissance
objective desenvolve esta questão, explicitando aquelas que considera serem as grandes manifestações dos
obstáculos epistemológicos.
28
Bachelard, Op. cit., p. 73.
29
Bachelard, Op. cit., p. 22.
30
Bachelard, Op. cit., p. 232. Holton estaria de acordo com Bachelard ao reconhecer como obstáculo a
(sobre)valorização das formas geométricas simples em casos como o da desconfiança com que grandes homens
de ciência (com Galileu à cabeça do grupo) receberam a elipse de Kepler, vista como deformação da
circunferência, forma simples e durante muito tempo considerada mais pura. Cf. Holton, Gerald, A Cultura
Científica e os Seus Inimigos – o legado de Einstein, pp. 116-123.
themata depende da complexa conjugação de diversos fatores. No seio dessa complexa e
imprevisível conjugação de fatores, os themata podem funcionar como obstáculos ou, pelo
contrário, como catalisadores epistemológicos. Por isso, a polimorfia subjetiva e pouco
racional não faz dos themata obstáculos de que o cientista deva imperiosamente
desembaraçar-se.

Mais: segundo Holton, é bem possível que de nada valha ao cientista tentar «purgar» os seus
themata para melhorar as suas qualidades de homem de ciência. Contudo, o exame
consciente dos themata opostos aos escolhidos poderia ser bem salutar31.

A acreditar em Holton, o papel desempenhado por preconceitos, convicções pessoais, grandes


certezas íntimas, valores inconscientes, vestígios da infância, ideias não discutidas,
afetividade, filias, vontade de ter razão, hábitos intelectuais, ideias valorizadas e
sobrevalorizadas, não é a marca de um conhecimento pré-científico mas, ao invés, continua
bem ativo na ciência contemporânea. O papel dos themata é um elemento essencial e
estrutural de toda a atividade científica. Ao contrário de Bachelard, Holton não divide a
história da ciência em estádios – um estádio pré-científico seguido de um estádio
verdadeiramente científico, caracterizado pela vitória sobre os obstáculos epistemológicos. O
que Bachelard entende como obstáculos, e, portanto, elementos estranhos a uma suposta
ciência objetiva, Holton entende como elementos de pleno direito do território científico,
como dispositivo determinante, com todas as suas potencialidades e limitações para a
atividade científica. A adesão a um conjunto de themata não faz do cientista um pré-cientista
nem da ciência uma pré-ciência. Os themata integram por direito próprio o conhecimento
científico. Onde Bachelard diria que é preciso psicanalisar e desobstruir, Holton diria apenas
que é preciso descrever e compreender. A análise thematica é uma análise, não uma
psicanálise.

_________
Bibliografia

31
Cf. Holton, The Scientific Imagination, Harvard University Press, Cambridge, Massachusetts and London,
England, 1998, p. 22.
Bachelard, Gaston
- A Psicanálise do Fogo, trad. port. de Maria Isabel Braga, Estúdio Cor, Lisboa, (s.d.).
- La Formation de l’Esprit Scientifique - contribution à une psychanalyse de la connaissance
objective, Librairie Philosophique J. Vrin, 1975.

Balibar, Françoise
- Einstein: Uma Leitura de Galileu e Newton, trad. por Arlindo José Castanho, Edições 70,
Lisboa, 1988.

Holton, Gerald
- Thematic Origins of Scientific Thought – Kepler to Einstein, Harvard University Press,
Cambridge, Massachusetts and London, England, 1973.
- The Scientific Imagination, Harvard University Press, Cambridge, Massachusetts and London,
England, 1998.
- Einstein, History, and Other Passions, AIP Press, Woodbury, New York, 1996. Tradução
portuguesa: A Cultura Científica e os Seus Inimigos, trad. por Fernando Henrique de Passos,
Gradiva, Lisboa, 1998.
- Victory and Vexation in Science: Einstein, Bohr, Heisenberg, and Others, Harvard University
Press, Cambridge, Massachusetts and London, England, 2005.

Holton, Gerald e Brush, Stephen


- Physics, the Human Adventure, Rutgers University Press, New Brunswick, New Jersey and
London, 2005.

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