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AULA 2 – APLICAÇÃO ATUAL DA AI AO DIREITO

APLICAÇÃO DA
INTELIGÊNCIA
ARTIFICIAL AO DIREITO
AULA 2 – APLICAÇÃO ATUAL DA AI AO DIREITO
GUSTAVO MASCARENHAS LACERDA PEDRINA

APLICAÇÃO DA INTELIGÊNCIA ARTIFICIAL AO DIREITO 1


AULA 2 – APLICAÇÃO ATUAL DA AI AO DIREITO

INTRODUÇÃO .............................................................................. .3
1. ANÁLISE DA APLICAÇÃO DE AI NOS EUA..................... .4
2. COMO A AI VEM SENDO UTILIZADA NO JUDICIÁRIO
BRASILEIRO.................................................................................. .8
2.1 A AI NO STF ................................................................. .9
2.2 COMO OUTROS TRIBUNAIS NO BRASIL TÊM
ABORDADO A QUESTÃO? ........................................... 13
CONCLUSÃO................................................................................ 14
REFERÊNCIAS............................................................................. 15

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AULA 2 – APLICAÇÃO ATUAL DA AI AO DIREITO

INTRODUÇÃO

Olá, voltamos!

Para começar, gostaria de te mostrar o quanto já aprendemos até aqui:


identificamos o que é e o que não é exatamente inteligência artificial; entendemos
as origens da AI e o que é o Teste de Turing; navegamos pelas ondas de evolução
desse tipo de tecnologia desde a década de 1950; compreendemos, por fim,
o que é big data e machine learning. Com tais conceitos, restou evidente que
mesmo os robôs-algorítmicos que utilizam aprendizado de máquina precisam de
parâmetros (os dados de treinamento), e que, ainda que possam replicar o que
aprendem autonomamente, partem do que diz um programador.

Ufa! Após consolidados esses conhecimentos, podemos ver como esse tipo
de inteligência artificial tem sido aplicada ao direito, nosso foco de estudo.

Para tanto, é importante ter em mente que

nem tudo o que entendemos como inteligência artificial é mesmo inteligente


ou pode ser considerado como inteligência artificial (para isso é razoável cobrarmos
que a máquina seja capaz de passar ao menos no Teste de Turing) e

que não há nesse apontamento uma crítica ao trabalho dos competentes


cientistas da computação que trabalham arduamente no desenvolvimento da
tecnologia, mas trata-se apenas de uma rigorosa constatação, sempre tendo
como primazia a busca da singularidade, o ponto-ótimo de desenvolvimento no
qual a tecnologia seria capaz de mimetizar redes neurais humanas (o que é difícil
de prever até se será possível um dia), ao qual se possa chamar efetivamente de
inteligência artificial.

Com essas observações em pauta, nesta aula analisaremos como a inteligência


artificial vem sendo utilizada no campo do direito. Partiremos de dois casos práticos
que, a par de demonstrarem o uso de AI no estágio estatístico, não são iguais. O
primeiro deles versa a respeito do uso de AI para sugestão de sentenças penais e
fianças nos EUA. No segundo, discutiremos como tem se desenvolvido o uso da
AI aqui no STF, com a aplicação do robô algorítmico Víctor.

Está pronto? Vamos começar?

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1. ANÁLISE DA APLICAÇÃO DE AI NOS EUA

É notável o dado de que mais de 30 Estados norte-americanos utilizam


atualmente programas de inteligência artificial para sugerir aos juízes sentenças
e fianças. Todos esses programas utilizados hoje são baseados em computação
estatística (STARR, 2013).

Recentemente, o caso Wisconsin vs. Loomis levou a questão até a Suprema


Corte estadunidense, quando Eric Loomis questionou o uso de um programa de
inteligência artificial (o Compas – Correction Offender Management Profiling for
Alternative Sanctions) por parte do Juízo para determinar a sua condenação a seis
anos em regime fechado. A defesa de Loomis queria ter acesso aos critérios que
levaram o robô algorítmico a recomendar sua pena – a Suprema Corte negou o
recurso, assentando tratar-se de segredo industrial o caminho desenvolvido pelo
referido robô.

Veja o artigo e as notícias veiculadas a respeito do caso:

• O Supremo Tribunal de Wisconsin exige aviso antes do uso de avaliações


de risco algorítmicas em sentenças

• Condenação pelos números

• Em Wisconsin, uma reação contra o uso de dados para prever o futuro dos
réus

• Enviado para a prisão pelos algoritmos secretos de um programa de


software

No Estado da Virgínia, a utilização de algoritmos para estabelecer


condenações já acontece há mais de dez anos. Caliskan-islam, Byron e
Narayaan (2016) já demonstraram o perigo no seu uso com tal fim: algoritmos
são necessariamente programados e essa programação pode conter um erro
de viés ideológico. Os pesquisadores demonstraram que sentenças produzidas
por robôs algorítmicos, em relação a nomes geralmente atribuídos a pessoas de
ascendência africana, são comumente mais duras do que aquelas que contêm
nomes tradicionalmente europeus (MONAHAN, J. & SKEEM, J. 2019).

Como vimos, a aprendizagem de máquinas envolve um estágio de pré-


processamento e treinamento de dados de entrada (KOTSIANTIS et al, 2006).
Esse pré-processamento, também chamado de rotulagem, pode ser automático,
de caráter meramente estatístico, ou humano – o que é mais comum, mas que

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justamente leva ao estabelecimento de vieses, já que a máquina será programada


e passará a buscar resultados de acordo com parâmetros estabelecidos por um
programador.

Observe que o que esse tipo de programa faz não difere em nada daqueles
de análise de risco geralmente empregados em operações financeiras, por
exemplo. De acordo com dados atuariais, fornece-se uma sugestão de sentença
para o Juízo que, em última análise, (i) aplica superficialmente a prevenção geral e
(ii) busca inibir a reincidência (STARR, 2013). Ambos os resultados, no longo prazo,
tornam-se verdadeira profecia aos sujeitos-objeto da análise, já que não é comum
que mudem, por exemplo, de gênero (e se o risco de homens adultos for maior
para a reincidência em um determinado delito, o programa recomendará maior
tempo de pena).

Ainda conforme Starr (2013), esses programas são baseados em análise


atuarial de risco, mais precisamente em um esquema chamado de EBS (evidence-
based sentencing, sentenciando por base em evidências, em tradução livre). O
exemplo mais famoso de programa desse tipo é o Compas, mas há outros como
o Ohio Risk Assessment System (Oras), o Correctional Assessment and Intervention
System (Cais) e o Wisconsin Risk and Needs Tool (WRN).

A abordagem atuarial representa um modelo de avaliação de riscos focado


em critérios históricos ou imutáveis do indivíduo. Eles “pontuam” o indivíduo e
cruzam essa pontuação com uma tabela atuarial do sistema, resultando em uma
estimativa de risco por um período específico (a chance de X reincidir em 10 anos
é Z, por exemplo).

Essa estimativa representa a porcentagem de participantes no estudo de


desenvolvimento do instrumento que recebeu essa pontuação e reincidiu.
Por exemplo, se um infrator recebe uma pontuação de +5 em um instrumento
traduzido em uma estimativa de risco de 60% em 10 anos, isso significa que
60% dos indivíduos que receberam uma pontuação de +5 no estudo original do
instrumento passaram a reincidir nesse período.

Perceba: isso não significa que o criminoso alvo da aplicação do programa


tenha 60% de chance de reincidência por um período de 10 anos, mas sim
que outras pessoas, na mesma situação, reincidiram em 60% dos casos – ou
seja, em aplicação de norma penal toma-se como régua o “outro”, o que não é
recomendável do ponto de vista dogmático e sociológico, mas é o que esse tipo
de programa faz. Certo?

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Podemos notar que os instrumentos são mecânicos: cada valor possível de


cada variável corresponde a um aumento ou redução específica da estimativa de
risco em todos os casos. Os pesos das variáveis não são determinados com base nas
circunstâncias de cada caso – por exemplo, os homens sempre receberão escores
de risco mais altos do que mulheres em situações idênticas (porque, no geral, em
média, os homens têm reincidência maior), mesmo que o contexto específico seja
aquele em que homens e mulheres tendem a ter riscos de reincidência próximos
ou em que as mulheres têm riscos mais altos. Além disso, na prática, os instrumentos
usam sistemas de pontos ainda mais simples, nos quais o “alto risco” responde a
um sim ou não.

Vamos examinar algumas situações concretas em que foram utilizados esses


sistemas para que você comece a ter uma noção acerca das lógicas que estão por
trás das suas operações.

No sistema utilizado no Estado do Missouri, por exemplo, os relatórios


incluem uma pontuação para cada indivíduo em avaliação, com uma escala de -8
a 7. De tal maneira, de 7 a 4 é classificado como “bom”, de 3 a 2 é “acima da média”,
de 1 a 0 é “média”, de -1 a -2 é “abaixo média” e de -3 a -8 é “ruim”.

Ruim Abaixo da média Média Acima da média Bom

-8 a -3 -2 a -1 0a1 2a3 4a7

Diferentemente da maioria dos instrumentos em uso, o Missouri não inclui


gênero. No entanto, um abandono escolar seguido de desemprego gerará uma
pontuação três pontos abaixo do que um empregado com ensino médio concluído
– fazendo a diferença substancial no resultado final da avaliação de risco.

Da mesma forma, um acusado com menos de 22 anos terá pontuação três


pontos pior do que um com idade acima de 45, simplesmente por sua idade. Em
comparação, ter cumprido anteriormente prisão vale menos um ponto; ter quatro
ou mais condenações prévias por contravenção que resultou em prisão retira mais
um ponto (possuir três ou menos condenações não retira nenhum); ter cumprido
liberdade condicional vale um ponto; e uma fuga da prisão vale menos outro
ponto.

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Veja que se tem literalmente uma conta de pontos a partir de condições


do sujeito – em algumas ele contribuiu (ter sido preso mais de três vezes, por
exemplo), mas outras são inerentes (como a idade).

Aqui vale a pergunta: alguém tem culpa da idade que tem? Esse sistema é
justo? Qual a sua opinião?

Em outro contexto, o Compas, aplicado no caso Loomis, leva em


consideração 137 itens, não necessariamente ligados a questões atinentes ao
delito possivelmente praticado, como (i) se há antecedentes penais na família do
réu ou (ii) se há ocorrências relacionadas a álcool e drogas envolvendo a pessoa
em julgamento (FENOLL, 2018). Os critérios incluem atitudes do indivíduo, de
amigos e familiares, histórico de comportamento antissocial, possíveis problemas
de personalidade, dados acerca da escolaridade, problemas de saúde e uso de
drogas.

Em todas as situações apontadas, por tratar-se de segredo industrial, é


impossível saber com precisão como os itens levados em consideração são
combinados (em que ordem e proporção, por exemplo) para sugerir sentenças ou
fianças. Você há de concordar comigo que isso viola ao menos dois princípios caros
ao direito penal e processual penal: o devido processo legal, já que é impossível
contraditar dados sem que se saiba nem mesmo quais são, e a proporcionalidade,
porque não se pode garantir que sejam realizadas sempre as mesmas operações.

Há ainda o problema da fidelidade dos dados: se um dos dados levados em


consideração em qualquer dos critérios estiver equivocado, a sugestão do sistema
será necessariamente injusta. Para que mecanismos desse tipo sejam efetivos
no propósito de ao menos evitar a reincidência, é necessário que se utilize um
algoritmo sempre atualizável e com critérios claros, que levem em consideração
os princípios que regem a preservação dos direitos humanos.

De qualquer forma, essa é a realidade hoje, nos EUA, de programas de


inteligência artificial: a aplicação de critérios atuariais sistematicamente para sugerir
aos juízes o valor de fianças (quanto maior a “chance” do indivíduo reincidir, maior
a fiança) e para recomendar penas (da mesma forma, quanto maior o “risco” de
reincidência, maior deverá ser a pena).

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SAIBA MAIS

Ficou curioso a respeito do


funcionamento desses sistemas? No link
a seguir você pode fazer o download do
“Manual do Compas” fornecido pela
produtora do programa, a Equivant.

Além disso, tenho outra sugestão. Você


tem 15 minutinhos? Se tiver, aqui está
uma palestra no Tedx sobre a aplicação
de programas atuariais a casos penais
nos EUA e as suas consequências. Vale a
pena conferir!

Tudo bem até aqui? Está claro como os sistemas estão sendo utilizados nos
EUA? Qual a sua percepção a respeito?

Agora, é chegado o momento de abordarmos o assunto em nosso país.


Acompanhe comigo no próximo tópico.

2. COMO A AI VEM SENDO UTILIZADA NO JUDICIÁRIO


BRASILEIRO

Vamos ao que afeta mais diretamente o nosso trabalho enquanto operadores


do direito?
so
Mesmo que recente, já há no mercado brasileiro programas com ferramentas
de inteligência estatística para a análise de dados e o oferecimento de respostas
tanto ao advogado quanto ao magistrado. Confira matéria a seguir “Justiça Federal
discute inteligência artificial no Judiciário e escritórios”.

No primeiro caso, o robô pode analisar os dados fornecidos e adaptá-los a


uma petição padrão – por exemplo, escolhendo qual é o melhor contrato para
ser oferecido por uma empresa a um determinado cliente (exemplos de empresas
que trabalham com soluções de TI: Softplan e LawGeex).

Há ainda aplicações que comparam contratos comerciais com a jurisprudência


das autoridades antitrust (Kira) e robôs algorítmicos que separam peças de um
processo que julgam serem as principais.

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No segundo, já estão disponíveis programas que selecionam o que lhes


parecem ser as páginas mais importantes de um processo, a jurisprudência que
se assemelha à discussão, bem como as leis em debate, e que oferecem até uma
proposta de decisão ao magistrado.

Esses robôs-algorítmos agem, portanto, estruturando volumes enormes de


dados (big data) para oferecer análises preditivas com base na identificação de
padrões nas petições. De maneira simples, “veem” se uma determinada tese se
“encaixa” ao caso.

E qual é o potencial e a importância da tecnologia hoje para o judiciário


brasileiro na prática?

Desde 2009, o CNJ analisa os números do nosso judiciário e edita o relatório


“Justiça em números” (você pode ver todos eles aqui, são bastante interessantes).

Em 2018, o judiciário brasileiro encerrou o ano com 78,7 milhões de processos


(CNJ, 2019). Esse número – um dos maiores do mundo – leva à necessidade da
busca de soluções para otimizar o tempo de tramitação dos processos.

2.1 A AI no STF

Diante dos alarmantes números da pesquisa do CNJ, podemos dizer


que o Supremo Tribunal Federal (STF) não se encontra inerte. Pelo contrário,
tem empreendido esforços importantes na aplicação de AI. Desde 2018, está
em funcionamento o robô algorítmico VICTOR, que envolve uma equipe
multidisciplinar composta por três principais organismos em seu desenvolvimento,
isto é, os colaboradores do próprio demandante (STF) e três setores da
Universidade de Brasília (UnB): a Faculdade de Direito (FD), o Grupo de Pesquisa
em Aprendizado de Máquina (GPAM) da Faculdade de Engenharias do Gama
(FGA) e o Departamento de Ciência da Computação (CIC) (SILVA, 2018).

CURIOSIDADE

Por que o robô se chama VICTOR? De acordo com o site de notícias do STF,

O nome do projeto, VICTOR, é uma clara e merecida homenagem a Victor


Nunes Leal, ministro do STF de 1960 a 1969, autor da obra Coronelismo,
Enxada e Voto e principal responsável pela sistematização da jurisprudência
do STF em Súmula, o que facilitou a aplicação dos precedentes judiciais aos
recursos, basicamente o que será feito por VICTOR.

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Segundo MAIA FILHO (2018, p. 228), o início do projeto ocorreu da seguinte


forma:

Trabalhando com cerca de 14 mil processos, a equipe do


projeto centrou-se, inicialmente, na tarefa de separação
e classificação de peças – aquelas mais importantes,
segundo a equipe do STF, para a identificação dos temas
de repercussão geral de maior incidência: acórdão, recurso
extraordinário, agravo em recurso extraordinário, despacho
de admissibilidade e sentença. Visando ao treinamento dos
modelos de aprendizado de máquina, a equipe do Curso de
Direito da UnB criou um conjunto confiável de dados, extraídos
dos processos analisados, com a conversão de imagens em
textos no processo digital, separação do começo e do fim dos
documentos, com a identificação do conteúdo de cada peça
jurídica, além das similaridades e das discrepâncias existentes
entre elas.

Para “ler” as peças de um processo, o VICTOR atua com técnica de “OCR”


(optical character recognition, na sigla em inglês para reconhecimento ótico de
caracteres: as páginas do processo, transformadas em imagem, são “lidas” pela
máquina).

Dessa forma, o sistema indica por machine learning (esse conceito você
conhece bem!) se os recursos extraordinários e agravos se “encaixam” em uma
das 27 principais teses (que correspondem a 46% dos processos devolvidos pela
barreira da repercussão geral) cuja repercussão geral tenha sido reconhecida pelo
STF.

O VICTOR é um robô algorítmico, não é algo físico ou humanoide como


somos levados a crer pelo nome “robô”. Ele fica abrigado em uma rede de
computadores. No trabalho diário, os servidores do Tribunal visualizarão, ao
abrirem o processo para trabalharem, as cinco principais peças já separadas. Foi
o Victor que fez essa separação e ninguém precisou dar o comando. Se o Victor
não existisse, eles precisariam achar essas peças no processo para, só então,
começarem o trabalho.

Com isso, a análise de um processo e a separação de peças que, por


um servidor, levariam, em média, 15 minutos, são realizadas pelo VICTOR em 5
segundos. Tal fato resulta numa economia de 22 mil horas de trabalho em um ano,
o que custaria 3 milhões de reais ao Tribunal.

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O VICTOR ainda é capaz de aprender com os erros e ter um nível crescente


de acertos – atualmente ele acerta em 91% dos casos (esse número é chamado de
acuidade ou acurácia, indicando a assertividade da máquina). Não é incrível?

Veja a imagem de um teste de acuidade do sistema (teste “f1-score”: o dado


de 91% pode ser visualizado no total, na última linha da quarta coluna):

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Esquematicamente, o VICTOR funciona da seguinte maneira:

Recurso extraordinário ou agravo em recurso extraordinário aporta no Tribunal

VICTOR verifica a qualidade das imagens, se o processo não for digital, aplica OCR

VICTOR grava o conteúdo do processo no banco de dados

VICTOR classifica as peças processuais, separando acórdão, recurso


extraordinário, agravo em recurso extraordinário, despacho de admissibilidade e
sentença

VICTOR classifica o processo em um ou mais temas de repercussão geral

É importante sempre ressaltarmos, contudo, que aplicações como o VICTOR


agem a partir do aprendizado com parâmetros definidos pelo programador
humano (chamados de inputs). Há a necessidade de supervisão constante. E não é
só isso: imagine o volume de dados digitalizados... Para se ter uma ideia, o VICTOR
recebeu uma quantidade enorme de dados de treinamento: 4 terabites! A equipe
que trabalha no robô passou todo o conteúdo que não era originalmente digital
por OCR.

Manter essa quantidade de arquivos segura é um desafio constante e requer


contínua evolução dos mecanismos de proteção.

Com o natural crescimento do volume de dados fornecidos ao algoritmo, o


VICTOR melhorará seus resultados ao longo do tempo, já que a classificação dos
novos dados dos processos que chegam leva ao aprendizado pela máquina – o
próprio algoritmo passa a analisar o processo em busca de padrões distintos. Tem-
se então o ponto de aprendizado supervisionado e não supervisionado.

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É importante ressaltar um dado aqui antes de concluirmos: o VICTOR


não realiza juízo de mérito. Ele indica onde estão as cinco principais peças do
processo e diz, com 91% de chances de acerto, se há ou não um dos 27 temas de
repercussão geral mais recorrentes.

A utilização de um mecanismo como o VICTOR implicará, no longo prazo, a


melhoria do aproveitamento dos servidores, que poderão exercer outras tarefas,
ao passo que o robô separa as peças e indica se são temas de repercussão
reconhecida. Além disso, permitirá o acúmulo de dados por parte do Tribunal,
sendo possível ao Supremo reconhecer melhor quem são os litigantes e quais
temas são os mais debatidos.

2.2 COMO OUTROS TRIBUNAIS NO BRASIL TÊM


ABORDADO A QUESTÃO?

Em Minas Gerais está em funcionamento a aplicação Radar, que lê os


processos por OCR e separa os casos similares para julgamento conjunto.

Em Pernambuco, o sistema Elis promove a triagem de execuções fiscais (veja


aqui um artigo sobre o assunto).

No Rio Grande do Norte, uma parceria entre a UFRN e o Tribunal de Justiça


do Estado levou à criação do Poti. A aplicação promove automaticamente a
penhora de valores nas contas bancárias de devedores. Além disso, o Poti atualiza
o valor da execução fiscal e transfere o montante para as contas oficiais indicadas.
Se não existir dinheiro na conta, o sistema é programado para realizar novas buscas
em períodos consecutivos de 15, 30 e 60 dias.

SAIBA MAIS

Gostaria que você assitisse


à reportagem sobre o
laboratório da UnB que
criou o VICTOR:

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Para finalizar nossa discussão, quero propor uma reflexão:

Será que algum dia um robô algorítmico será capaz de realizar um


julgamento? O que acha disso? Esse ponto parece bastante distante da realidade,
mas na Estônia há um projeto nesse sentido. Leia as reportagens a respeito:

• Estônia quer substituir os juízes por robôs

• Estônia está desenvolvendo o primeiro “juiz robô” do mundo

CONCLUSÃO

E o que podemos concluir disso tudo? Aparentemente a tecnologia não


substituirá os operadores do direito. Trata-se de um conjunto de ferramentas
voltadas à otimização do tempo e do trabalho no nosso ramo de atuação. A máquina
até é capaz de “ler” documentos por OCR como vimos, mas, ao menos no atual
estágio de desenvolvimento da tecnologia, não é capaz de emular a inteligência
humana.

A inteligência artificial, no atual ponto de desenvolvimento ou no que


esperamos alcançar (assunto da nossa próxima aula), certamente impactará na
prática do direito e nos sistemas de justiça. Se já discutimos atualmente temas como
fake news, bloqueio de conteúdo e criptografia (todos esses temas da aula 4), em
pouco tempo os assuntos evoluirão para, por exemplo, se temos o direito de ver
nossos casos judiciais julgados por um robô algorítmico ou por um ser humano.

Aguardo você na aula 3!

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REFERÊNCIAS

BARROSO, Luís Roberto. Vinte anos da Constituição de 1988: a reconstrução


democrática do Brasil. Revista de Informação Legislativa, n. 179, jul./set. 2008.

BRAZ, N. et al. Document classification using a Bi-LSTM to unclog Brazil’s supreme


court. NIPS 2018 Workshop on Machine Learning for the Developing World (ML4D).

CALISKAN-ISLAM, A.; BRYSON, J.J.; NARAYAAN, A. Semantics derived automatically


from language corpora necessarily contain human biases. 2016. Princeton:
Princeton University. Disponível em: <http://randomwalker.info/publications/
language-bias.pdf>. Acesso em: 9 nov. 2019.

Cf. MONAHAN, J.; SKEEM, J. Risk Assessment in Criminal Sentencing. Virginia Public
Law and Legal Theory Research Paper, n. 53. Disponível em: <https://papers.ssrn.
com/sol3/papers.cfm?abstract_id=2662082>. Acesso em 6 nov. 2019.

CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA. Justiça em números. Disponível em: <https://


www.cnj.jus.br/wp-content/uploads/conteudo/arquivo/2019/08/justica_em_
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FUX, Luiz. Inteligência artificial. Palestra, 2019. Disponível em: <https://www.conjur.


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KOTSIANTIS, S. B.; KANELLOPOULOS, D.; PINTELAS, P. E. Data preprocessing for


supervised learning. International Journal of Computer Science. Jornal digital. vol.
1, n. 2, 2006, p. 111-117.

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em: <www.kirasystems.com>. Acesso em: 10 nov. 2019.

Law Geex Contract Review Automation. Disponível em: <www.lawgeex.com>.


Acesso em: 10 nov. 2019.

MAIA FILHO, Mamede Said; JUNQUILHO, Tainá Aguiar. Projeto VICTOR:


perspectivas de aplicação da Inteligência Artificial ao Direito. Revista de Direitos e
Garantias Fundamentais, Vitória, v. 19, n. 3, set./dez. 2018. p. 228.

SILVA, N. et al. Document type classification for Brazil’s supreme court using a
Convolutional Neural Network. THE INTERNATIONAL CONFERENCE ON FORENSIC
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