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2020

Título: Psiquiatria para Generalistas


Editor: Guilherme Melo
Diagramação: Deborah Silva
Capa: Mateus Machado
Conselho Editorial: Caio Vinicius Menezes Nunes, Paulo Costa Lima,
Sandra de Quadros Uzêda, Sheila de Quadros Uzêda e Silvio José
Albergaria da Silva

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)


Tuxped Serviços Editoriais (São Paulo-SP)

S237p Santos, Mikkael Duarte dos.


Psiquiatria para Generalistas - Do Sintoma ao Tratamento / Mikkael
Duarte dos Santos. - 1. ed. - Salvador, BA : Editora Sanar, 2020.
832 p.

Inclui bibliografia.
ISBN 978-65-87930-48-0
1. Generalistas. 2. Psiquiatria. 3. Sintomas. 4. Tratamento. I. Título. II.
Assunto. III. Santos, Mikkael Duarte dos. a.
CDD 616.89
CDU 616.89

ÍNDICE PARA CATÁLOGO SISTEMÁTICO


1. Medicina: Psiquiatria.
2. Psiquiatria.
Ficha catalográfica elaborada pelo bibliotecário Pedro Anizio Gomes CRB-8 8846
REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA
SANTOS, Mikkael Duarte dos. Psiquiatria para Generalistas - Do
Sintoma ao Tratamento. 1. ed. Salvador, BA: Editora Sanar, 2020.

Editora Sanar Ltda.


Rua Alceu Amoroso Lima, 172
Caminho das Árvores
Edf. Salvador Office e Pool, 3º andar.
CEP: 41820-770 – Salvador/BA
Telefone: 0800 337 6262
sanarsaude.com
atendimento@sanar.com
Sumário

FUNDAMENTOS DA PSIQUIATRIA

1. Um Pouco de História: Da Loucura à Reforma Psiquiátrica


2. Dispositivos de Atenção à Saúde Mental no Sistema Único de Saúde
3. Diagnóstico em Psiquiatria
4. Avaliação Psiquiátrica
5. Exame Mental

PSIQUIATRIA CLÍNICA

Síndromes do Humor
6. Depressão Maior e Depressão Persistente
7. Crise Suicida
8. Transtorno Bipolar

Síndromes Relacionados à Ansiedade


9. Transtorno de Ansiedade Generalizada (TAG)
10. Transtorno de Ansiedade Social (Fobia Social)
11. Agorafobia
12. Transtorno de Pânico
13. Fobia Específica
14. Transtorno de Estresse Pós-Traumático.
15. Transtorno de Adaptação

Síndromes Psicóticas
16. Esquizofrenia
17. Transtorno Psicótico Breve
18. Transtorno Esquizofreniforme
19. Transtorno Delirante
20. Transtorno Esquizoafetivo
21. Psicose Relacionada ao Uso de Substâncias Psicoativas

Síndromes Somatoformes
22. Transtorno de Sintomas Somáticos
23. Transtorno de Ansiedade de Doença
24. Transtorno Conversivo
25. Transtorno Factício
26. Transtornos Dissociativos

Síndromes Neurocognitivas
27. Demências
28. Delirium

Síndromes do Neurodesenvolvimento
29. Deficiência Intelectual
30. Transtorno do Espectro Autista (TEA)
31. Transtorno de Déficit de Atenção / Hiperatividade
Síndromes Obsessivo-Compulsivas
32. Transtorno Obsessivo-Compulsivo
33. Transtornos Relacionados ao Transtorno Obsessivo-Compulsivo
(TOC)

Síndromes Relacionadas à Personalidade


34. Transtorno de Personalidade do Grupo A
35. Transtorno de Personalidade do Grupo B
36. Transtorno de Personalidade do Grupo C

Síndromes Psicomotoras
37. Agitação Psicomotora
38. Catatonia
39. Transtornos do Movimento Induzidos por Medicamentos
Síndromes Relacionadas ao Uso de Substâncias Psicoativas
40. Transtornos Relacionados ao Uso de Álcool
41. Transtornos Relacionados ao Uso de Cocaína e Crack
42. Tabagismo

Síndromes Relacionadas ao Comportamento Alimentar


43. Anorexia Nervosa
44. Bulimia Nervosa
45. Transtorno de Compulsão Alimentar

Insônia
46. Insônia
Condutas Rápidas em Psiquiatria
47. Condutas Rápidas em Psiquiatria

TERAPÊUTICAS EM PSIQUIATRIA

Farmacologia aplicada à psiquiatria


48. Farmacologia Aplicada à Psiquiatria
49. Antipsicóticos
50. Antidepressivos
51. Estabilizadores de Humor
52. Benzodiazepínicos e Hipnóticos
53. Psicoestimulantes
54. Farmacoterapia em Situações Especiais

Psicoterapias
55. Psicoterapias
Autor e Editor-Chefe
Mikkael Duarte dos Santos
Mestre em Saúde da Família pela Universidade Federal do Ceará.
Residência médica em Psiquiatria pela Secretaria de Saúde de Sobral.
Graduado em medicina pela Faculdade de Medicina de Juazeiro do Norte.
Preceptor no programa de Residência Médica de Psiquiatria em Sobral.
Professor e coordenador de psiquiatria e do internato de saúde mental das
faculdades de medicina da UFC e UNINTA. Interconsultor de psiquiatria na
Santa Casa de Misericórdia de Sobral. Psiquiatra assistente da unidade de
internação psiquiátrica no Hospital Dr. Estevam Ponte. Psiquiatra assistente
no CAPS II do município de Sobral.

Autores
Alice Aguiar Teixeira
Formada em Medicina pela Universidade Federal do Ceará, 2009-2014.
Residência médica em Psiquiatria pela Escola de Saúde Pública de Sobral-
CE, 2015-2018. Especialização em Psicoterapia Cognitivo-Comportamental
pelo Instituto Cognitivo, Santa Maria-RS (em curso).

Aline Taumaturgo Dias Soares


Geriatra com residência pelo Hospital Universitário Dr Walter Cantídio
(HUWC)-CE. Residência em Clínica Médica pelo Hosital Geral Dr César
Cals de Oliveira (HGCCO)-CE. Graduação em Medicina pela Universidade
Federal do Ceará- UFC. Especialização em Cuidados Paliativos pela
UECE/ UNIMED.

Ana Luísa Barbosa Pordeus


Formada em medicina pela Universidade de Pernambuco em 2018 Médica
residente em Psiquiatria pela Secretaria Municipal de Saúde de Sobral.

Andressa Müller da Conceição


Acadêmica de medicina no Centro Universitário UNINTA. Membro da
Liga Acadêmica de Psiquiatria e Saúde Mental (LIAPS).

Billy Ian Silva Vaz


Acadêmico de medicina no Centro Universitário UNINTA. Membro
fundador da Liga Acadêmica de Psiquiatria e Saúde Mental (LIAPS).

Cícero Arthur Borges de Carvalho


Formado em medicina pela Faculdade de Medicina de Juazeiro do Norte -
CE (Estácio-FMJ) em 2011. Residência Médica em Psiquiatria pela
Secretaria Municipal de Saúde de Sobral de 2013 a 2016. Preceptor da
Residência Médica em Psiquiatria da Escola de Saúde Pública do Ceará
(ESA) em Iguatu-CE desde 2018.

Danilo de Sousa Rodrigues


Médico formado pelo Centro Universitário Uninovafapi. Residente em
Psiquiatria pela SES – MA.

Danilo Gonçalves Dantas


Graduado em Medicina no Centro Universitário UNINOVAFAPI em 2017.
Médico residente de Psiquiatria na Escola de Saúde Pública Visconde de
Saboia de Sobral/CE.

David Alves de Albuquerque Filho


Graduado em medicina pela Universidade de Fortaleza (UNIFOR) em
2013. Residência Médica em Psiquiatria pela Secretaria Municipal de
Saúde de Sobral em 2018. Com pós-graduação em transtornos alimentares e
obesidade pela UNIFOR. Preceptor da residência de psiquiatria do Hospital
Mental de Messejana e do Hospital Universitário da Universidade Federal
do Ceará (UFC).

David Cássio Ribeiro Vasconcelos


Graduado em Medicina pelo Centro Universitário Christus no ano de 2014.
Residente de Psiquiatria da Rede de Atenção Integrada a Saúde Mental de
Sobral.

Diana Negreiros de Sousa


Graduada em psicologia pela Universidade Federal do Ceará - UFC campus
Sobral. Residência em saúde mental pela Escola de saúde da família
Visconde de Saboya.

Eline Torres Passos


Acadêmica de medicina no Centro Universitário UNINTA. Membro
fundador da Liga Acadêmica de Psiquiatria e Saúde Mental (LIAPS).

Emanuella Sobreira Lacerda


Médica graduada na faculdade de Medicina Unichristus em 2015.
Psiquiatra titulada pela residência médica da Escola de Saúde Visconde de
Sabóia, Sobral-CE. Pós-graduanda em Terapia Cognitivo Comportamental
pela Unichristus. Preceptora da residência de psiquiatria no Hospital
Universitário Walter Cantídio.

Erica Camarço Saboia Fiuza


Acadêmica de medicina no Centro Universitário UNINTA. Membro
fundador da Liga Acadêmica de Psiquiatria e Saúde Mental (LIAPS).

Igor de Albuquerque Oliveira Sousa


Acadêmico de medicina no Centro Universitário UNINTA. Membro
fundador da Liga Acadêmica de Psiquiatria e Saúde Mental (LIAPS).

Isabela Cedro Farias


Graduada em Psicologia pela Universidade Federal do Ceará. Mestra em
Saúde da Família pela Universidade Federal do Ceará.

João Paulo Nunes Magalhaes de Oliveira

Médico pela faculdade de medicina de Juazeiro do Norte. Especialista em


saúde da família pela UFC-Ce. Residência em psiquiatria pelo Instituto
Municipal Philipe Pinnel-RJ.

José Cleano Dias Arruda


Graduado em Medicina pela Universidade Federal do Ceará (UFC) -
Campus Sobral em 2011. Residência Médica em Psiquiatria pela Escola de
Saúde Visconde de Saboia (prefeitura municipal de Sobral-CE) de 2012 a
2015. Mestre em Gestão e Saúde Coletiva pela UNICAMP. Experiência
como docente do curso de Medicina da Uninta nas disciplinas de Psiquiatria
e Bioética.

José Lino Ferreira Júnior


Graduado em Medicina pela Universidade Federal do Ceará (UFC-
Fortaleza) em 2011, residente em Psiquiatria pela Escola de Saúde Publica
do Ceará (ESP-CE).

José Nilton de Azevedo Rodrigues


Graduado em Medicina pela Universidade Estadual do Ceará, 2004 - 2009.
Residência médica em Psiquiatria pela Secretaria de saúde de Sobral 2015 –
2017. Preceptor da residência de psiquiatria em Sobral.
José Péricles Magalhães Vasconcelos Filho
Formado em Medicina pela Faculdade de Medicina de Juazeiro do Norte
em 2013. Residência Médica em Psiquiatria pela Escola de Saúde Pública
do Ceará em 2018. Residência Médica em Medicina do Sono pela
Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo em 2019.

Juan Lucas Furtado Lopes


Acadêmico de medicina no Centro Universitário UNINTA. Membro da
Liga Acadêmica de Psiquiatria e Saúde Mental de Sobral (LIAPS).

Júlia Caroline Peixoto Martins


Graduanda em Medicina no Centro Universitário INTA. Membro da Liga
Acadêmica de Psiquiatria e Saúde Mental de Sobral (LIAPS).

Jurema Siqueira de Oliveira


Graduanda em Medicina no Centro Universitário INTA. Membro da Liga
Acadêmica de Psiquiatria e Saúde Mental de Sobral (LIAPS).

Larissa Linhares Andrade


Acadêmica de medicina no Centro Universitário UNINTA. Membro
fundador da Liga Acadêmica de Psiquiatria e Saúde Mental (LIAPS).

Larissa Maria Lino de Sousa


Graduada em Medicina em 2019 pelo Centro Universitário Inta (Uninta) -
Sobral. Atua em saúde da família pelo Projeto Mais Médicos pelo Brasil e
em Pronto Atendimento.

Leandro de Lyra Lemos


Médico formado pela Faculdade Pernambucana de Saúde. Residente de
psiquiatria pela secretaria de saúde de Sobral.
Leonardo Ávila Miranda
Médico formado pela UNIFOR. Residência de psiquiatria pela secretaria
municipal de sáude de Sobral. Pós-graduação em transtornos alimentares e
obesidade UNIFOR.
Leonardo Tiago Costa dos Santos
Formado em Medicina pela Faculdade Integral Diferencial - Teresina em
2016. Residência Médica em Psiquiatria pela Rede de Atenção Integral à
Saúde Mental de Sobral – 2020. Professor de psiquiatria no Centro
Universitário UNINTA. Graduação em análise e desenvolvimento de
sistemas pelo Instituto Federal do Piauí, IFPI em 2008.

Marcelo Vinicius Almeida do Carmo


Acadêmico de medicina no Centro Universitário UNINTA. Membro
fundador da Liga Acadêmica de Psiquiatria e Saúde Mental (LIAPS).

Mônica Sales Farias


Graduada em Medicina pelo Centro Universitário Christus no ano de 2019.
Residente de Psiquiatria da Rede de Atenção Integrada a Saúde Mental de
Sobral.

Narceli América de Alencar Azevedo


Formada em medicina pela Universidade Federal do Ceará- Campus Sobral
em 2006. Residência em Psiquiatria pelo Hospital de Saúde Mental Dr
Frota Pinto, em Fortaleza- CE, de 2007 a 2010. Mestrado em Ensino na
Saúde pela UECE em 2019. Professora de psiquiatria no Centro
Universitário UNINTA.

Pamella Ponte Mendes


Graduada em medicina pela Universidade Federal do Ceara-UFC (2012.2).
Residente em psiquiatria da Rede de Atenção Integrada a Saúde Mental de
Sobral.

Paulo César Nobre Júnior


Médico formado pela Universidade Federal do Ceará. Residência de
Psiquiatria pela Secretaria de Saúde e Ação Social de Sobral. Residência de
Psiquiatria da Infância e Adolescência pelo Núcleo de Atenção à Infância e
Adolescência (NAIA) do Hospital de Saúde Mental Professor Frota Pinto
(HSM).

Priscila Garcia Câmara Cabral Tavares


Médica formada pela Universidade Federal do Ceará, campus Sobral.
Residente de clínica médica do Hospital Universitário Walter Cantídeo -
Universidade Federal do Ceará.

Rafael Nobre Lopes


Formado em Medicina na Universidade Federal do Ceará - Sobral em 2007.
Residência Médica em Psiquiatria pela Rede de Atenção Integral à Saúde
Mental de Sobral, Sobral - 2012. Mestrado em Saúde da Família pela
Universidade Federal do Ceará - 2018.

Renata Leite Vasconcelos


Graduada em Enfermagem na Universidade de Fortaleza – UNIFOR em
2005. Acadêmica de medicina no Centro Universitário UNINTA. Membro
da Liga Acadêmica de Psiquiatria e Saúde Mental de Sobral (LIAPS).

Renê Eliomar Pinheiro Diógenes


Acadêmico de medicina no Centro Universitário UNINTA. Membro
fundador da Liga Acadêmica de Psiquiatria e Saúde Mental (LIAPS).

Samara Vasconcelos Alves


Graduada em Psicologia pela Universidade Federal do Ceará (UFC).
Residência Multiprofissional em Saúde da Família pela Escola de Saúde
Pública Visconde de Saboia (ESP-VS). Especialista em Educação
Permanente em Saúde pela UFRGS.

Stella Cecília Félix


Acadêmico de medicina no Centro Universitário UNINTA. Membro da
Liga Acadêmica de Psiquiatria e Saúde Mental (LIAPS).

Vanina de Lima Monteiro


Médica pela Universidade de Pernambuco. Residência médica em
Psiquiatria pelo Hospital das Clínicas da Universidade Federal de Minas
Gerais. R4 em Psicoterapia pelo Hospital de Clínicas da Universidade
Federal do Rio Grande do Sul. Especialização em Educação na Saúde para
Preceptores no SUS pelo Hospital Sírio Libanês/Ministério da Saúde.

Vicente Bezerra Linhares Neto


Graduação em medicina pela Universidade Federal do Ceará – campus de
sobral. Residência em Psiquiatria pelo Hospital de Saúde Mental Dr Frota
Pinto, em Fortaleza- CE. Especialização em logoterapia e análise
existencial pela faculdade católica de fortaleza. Professor do curso de
medicina no centro universitário UNINTA. Coordenador do programa de
residência médica em psiquiatria da Rede de Atenção Integral à Saude
Mental de Sobral – RAISM. Preceptor de psiquiatria do internato – UFC
sobral e UNINTA.
Agradecimentos

A lista seria imensa e de leitura desagradável se enumerássemos todos


aqueles que merecem ser citados como responsáveis diretos ou indiretos
desta obra. Contudo, é preciso gratificar a participação de cada um dos
autores da obra que foram, antes de qualquer outro adjetivo, corajosos.
Aceitaram o desafio de realizar um projeto ambicioso e realizaram-no, em
detrimento ao curto prazo, com excelentíssimo zelo e destreza. Aos amigos
alunos, parceiros e mestres: muito obrigado!

Agradecimento também especial à SANAR, no nome do Guilherme


Melo, por acreditar na realização deste livro. Além, devo agradecer ao
grande amigo José Nunes de Alencar por apadrinhar a parceria com a
SANAR e mostrar o caminho das pedras facilitando a concretização deste
trabalho.

À Anna Lou e à Diana, pela paciência na minha ausência.


Apresentação

Este livro nasce da necessidade de graduandos em medicina e médicos


generalistas de conhecer aspectos fundamentais da psiquiatria (e saúde
mental) pouco debatidos nos grandes tratados ou nos livros de
especialidades psiquiátricas. As características desta obra se assentam no
pragmatismo e na objetividade, tão caros aos estudantes e profissionais
médicos que lidam com as mais distintas complexidades das várias áreas de
saber da medicina.
Consiste em quatro grandes divisões. Na primeira delas, o leitor
deparar-se-á com 9 fluxogramas que se iniciam com queixas-guia – as
principais queixas encontradas na sintomatologia psiquiátrica: irritabilidade,
tristeza, ansiedade/preocupação/medo, agitação/agressividade, alucinações,
insônia, esquecimento, queixas comportamentais na infância e queixas
somáticas inespecíficas. O intuito não é o de fornecer o diagnóstico, mas o
de fazer refletir possibilidades diante da queixa trazida. Se o quadro
apresentado pelo seu paciente está te colocando em um nó: a seção de
fluxogramas é o seu lugar (por ora).
A próxima parte, fundamentos da psiquiatria, conta com 5 capítulos que
aproximam o leitor de como a psiquiatria chegou até aqui na História, o
contexto atual da saúde mental brasileira e introduz os conceitos-chave
sobre a concepção do diagnóstico em psiquiatria, a avaliação psiquiátrica e
a construção do exame mental.
No âmago da obra, na seção psiquiatria clínica, é trazido 12 síndromes
psicopatológicas que são fracionadas em 41 capítulos com as mais diversas
nosologias psiquiátricas das quais o clínico não especialista encara na sua
prática, seja em ambiente ambulatorial ou emergencial. Os transtornos são
apresentados de forma clara, objetiva, dinâmica e com vários exemplos para
facilitar o entendimento do leitor. Todos os capítulos dessa seção iniciam-se
com casos clínicos icônicos que servem de roteiro para o desenrolar do
texto; quase ao término, com o tópico redescobrindo o caso (pontos-chave),
o leitor é convidado a identificar todos os pontos que reafirmam o
diagnóstico. Por fim, há um breve comentário sobre o manejo específico do
caso discutido e o registro de um exemplo de uma prescrição. O último
capítulo, intitulado condutas rápidas em psiquiatria, traz, em tom de
revisão, uma forma de consulta ágil para tomada de decisões, especialmente
em ambientes de urgência.
A última parte do livro trata das terapêuticas em psiquiatria. Há um
detalhamento das principais classes psicofarmacológicas (tema que dá
arrepios para o não especialista), tendo como o primeiro capítulo o tema
farmacologia aplicada à psiquiatria que introduz o leitor ao universo da
psicofarmacologia clínica, apresentando os principais termos,
neurotransmissores e conceitos sobre neurofisiologia. No transcorrer de
cada capítulo, o leitor encontrará características específicas dos
psicofármacos mais utilizados e o passo a passo de como manejá-los. O
capítulo farmacoterapia em situações especiais compõe-se, em forma de
bulário, dos psicotrópicos usados em situações específicas como na
infância, gravidez, lactação ou comorbidades clínicas. Finalizamos a seção
e o livro com conceitos gerais sobre as principais abordagens
psicoterápicas, no capítulo psicoterapias.
Esperamos que este livro seja útil na formação de novos médicos e no
aperfeiçoamento de generalistas no atendimento ao paciente com
sofrimento psíquico. Boa leitura!

Mikkael Duarte dos Santos


As profissões que estão ligadas à saúde têm em comum o compromisso
com o cuidado. Entender como diferentes formas de cuidar se criaram e
foram transformadas com o passar do tempo é importante para a
manutenção das mudanças. Conhecer o passado dá-nos ferramentas para
pensar de forma provocativa, curiosa e transformadora nos dias atuais.
Os pacientes psiquiátricos, chamados muitas vezes de loucos e
alienados, carregam consigo a história dos marginalizados e esquecidos,
estudar a sua história é também estudar os miseráveis e desabrigados. Com
o propósito de abrigo, nasceram os hospitais – que em latim significa
hospedagem, hospedaria – como uma instituição de caridade, dava
proteção, alimentação e cuidados àqueles que necessitavam e muitos
estavam também doentes.
Com o tempo, esses espaços passaram a ser institucionalizados em
objetos de controle, com funções sociais e políticas. O hospital passou a
isolar e segregar parte da sociedade com o juízo do Estado e dentre eles
estavam os loucos, internados longe da vista das cidades. Os diretores
exerciam poderes absolutos, sobre os usuários e sua influência se estendia
também de possíveis pacientes fora dos hospitais.
Com o advento da Revolução Francesa, no século 18, observou-se uma
maior projeção dos valores científicos, e os tratamentos médicos foram
efetivamente o objetivo das antigas hospedarias. Classificar, diagnosticar e
tratar de forma sistemática, por meio do modelo epistemológico, era o
objetivo das casas de saúde, e o hospital tornou-se o centro dos cuidados.
Com isso, foi possível estudar e observar com profundidade as
enfermidades e produzir materiais científicos, tendo em vista a ciência
positivista hegemônica. Em contrapartida, a institucionalização se deu ainda
mais e os cuidados médicos foram afastados das casas para grandes
hospitais, os sintomas ganharam mais importância e as pessoas foram
classificadas em doenças. A prática da medicina se tornava especialística,
verticalizada e hierarquizada.
Diante desse contexto e influenciado pelos pensamentos de John Locke,
Philippe Pinel, médico francês, considerado o pai da psiquiatria, incluiu o
termo alienista (estrangeiro, alienígena) no dicionário médico e classificou
as doenças mentais. Pinel acreditava que os loucos tinham direito de maior
liberdade, pelo afastamento das enfermidades. O isolamento do mundo
exterior seria, assim, uma terapêutica para dar maior autonomia aos doentes
psiquiátricos. Diante disso, o hospício, lugar do exercício da sua ação
terapêutica, teria o objetivo de acabar com a loucura. Pode-se pensar hoje
de forma crítica, mas sua finalidade não era a de impedir, afastar ou negar,
mas de recuperar o paciente. Daí a importância de um espaço terapêutico,
que obedecesse aos fundamentos médicos.
O internamento, segundo o alienista francês, diminuía interferências
externas e aumentava as chances de um diagnóstico mais fiel, além de fazer
parte do tratamento. Para ele, as regras invariáveis do hospital pineliano
reeducavam suas mentes e afastava os delírios e ilusões, trazendo-os à
consciência da realidade – essa terapêutica foi definida como tratamento
moral. Apesar de ter um fundamento teórico voltado à liberdade, com
imagens de Pinel desacorrentando os internos, os loucos permaneciam nas
instituições por necessidade terapêutica. Cria-se, com Pinel, o conceito de
loucura enquanto doença e a necessidade de categorizar, diagnosticar, tratar,
alicerçada no modelo biomédico vigente. A doença mental passa a ser
objeto de estudos médicos. Com discurso da neutralidade científica das
ciências positivistas, a doença mental vai ganhando destaque e anulando os
sujeitos e suas subjetividades no modelo psiquiátrico tradicional.
Pinel, médecin en chef de la Salpêtrière en 1795 – Tony Robert-Fleury.12

O desdobramento da popularização dos hospitais pinelianos em todo o


mundo acabou por trazer superlotação institucional: existia um limite difícil
entre a razão e a loucura. Surgiram diversas denúncias contra violência, e as
características excludentes se mantiveram. Aparecia uma necessidade de
uma nova rede de cuidados aos loucos, surgindo as colônias dos alienados.
Embalados no contexto da Revolução Industrial, percebeu-se que
pacientes que se mantinham funcionais, exercendo o trabalho agrícola,
tinham melhora dos quadros. Foi proposto, portanto, o modelo de trabalho
terapêutico, baseado em estímulo da vontade, energia e produtividade dos
alienados. Apesar das tentativas, as colônias mostraram-se semelhantes aos
asilos antigos e novamente formas de violência foram instituídas.

1. O INÍCIO DAS MUDANÇAS


Entre 1914 e 1945 o mundo via acontecer as duas maiores guerras da
história até os dias atuais, deixando um rastro de morte de milhares de
pessoas, mas também grande desenvolvimento tecnológico e modificação
da forma de pensar a natureza humana. Os campos de concentração
apontavam a crueldade e a segregação promovidas pelo homem e, apesar de
sua extinção, evidenciaram que os loucos permaneciam enclausurados e
violentados. Essas reflexões, a necessidade de reconstrução da Europa e de
mão de obra para crescimento econômico, aliados à descoberta dos
psicotrópicos, ao advento da psicanálise e da saúde pública criaram
condições para as primeiras experiências de reforma psiquiátrica no mundo.
O pós-guerra exigia uma necessidade de reorganização para que os
soldados retornassem à sua participação social. Muitos voltaram doentes,
física e psiquicamente, e o número de internamentos aumentou. A
quantidade de profissionais era incapaz de suprir as necessidades do novo
mundo. Surgia a psicoterapia institucional, que requalificou a forma de
atender os doentes com inclusão dos usuários nas decisões dos processos
terapêuticos. A prática de reuniões e assembleias diárias, com os usuários,
acompanhantes e funcionários tinha como finalidade evitar situações de
abandono e violência.
Na França, François Tosquelles, instituiu as “comunidades
terapêuticas”, que trouxeram novamente o trabalho terapêutico com
corresponsabilidades por parte dos internos e funcionários. Foi criado ainda
o clube terapêutico, uma organização com a finalidade de promover
encontros, feiras, passeios e também surgiram ateliês, clubes de leitura…
Esse “coletivo terapêutico” institucionalizou a transversalidade com quebra
nos padrões impositores e hierarquizados antigos.
A psiquiatria preventiva, nascida nos EUA, trazia consigo o conceito
de que, diante do conhecimento da história natural da doença, seria possível
uma intervenção precoce para prevenir crises ou desadaptações sociais, e as
equipes passaram a ter papel de consultores comunitários, identificando e
intervindo nas crises. Desejava-se que os hospitais psiquiátricos fossem
desnecessários, à medida que os eventos preventivos abortassem a
necessidade da hospitalização. Apesar de ter desenvolvido várias estratégias
extra-hospitalares, não questionava o modelo psiquiátrico tradicional
centrado na doença e no saber biomédico. A busca pela prevenção ao
adoecimento mental abriu um período de “caça” àqueles com predisposição
aos desvios da normalidade, aumento da demanda e necessidade de
hospitalização.
Nos anos 1950, na Inglaterra, de maneira provocativa, nasceu a
antipsiquiatria. Segundo seus pensadores, a experiência patológica não
ocorria no indivíduo enquanto corpo ou mente, mas nas experiências que
existiam entre ele, a família e a sociedade. Considerava a loucura como
fruto da opressão e violência sociais, sendo o hospital psiquiátrico um
reprodutor dessas estruturas opressoras. A interferência científica, inserida
em um contexto essencialmente humano, aumentaria o poder das estruturas
opressoras e adoecedoras. Dessa forma, não compreendia a doença mental
enquanto objeto da psiquiatria, mas como uma forma de expressão dos
sujeitos, sendo o processo terapêutico um caminho para expressão da
subjetividade como forma de reorganização interior. Assim, o objetivo do
cuidado seria proporcionar ao usuário a vivência das suas experiências de
uma forma segura.
A psiquiatria democrática teve início na cidade italiana de Gorizia,
com o médico Franco Basaglia. Nessa experiência, além da desconstrução
importante da necessidade dos hospitais psiquiátricos, a
desinstitucionalização passa a compreender não apenas a lógica de
desospitalização, mas a necessidade da quebra do paradigma psiquiátrico da
loucura. A Reforma Italiana coloca a doença entre parênteses e considera
impossível que o saber psiquiátrico dê conta da complexidade do fenômeno
da loucura e do sofrimento psíquico, considera mais importante o sujeito e
possibilita a ampliação da noção de integralidade no campo da saúde mental
e da atenção psicossocial. Compreende o sofrimento mental enquanto
fenômeno social e que deve ser cuidado no seio comunitário, superando a
lógica manicomial. Dessa forma, desenvolve os serviços substitutivos, os
centros de saúde mental (CSM), responsáveis pela integralidade dos
cuidados com base territorial, promove uma reformulação profunda dos
dispositivos de cuidado e dos conceitos sociais de sujeitos sofrimento
mental.
Diferente dos outros movimentos reformistas da Europa, a experiência
italiana e a antipsiquiatria inglesa deram início a processos de rompimento
do paradigma psiquiátrico tradicional. Esses dois movimentos passam a
operar uma ruptura na psiquiatria, olham criticamente a construção do saber
psiquiátrico legitimado como científico a partir da objetificação da loucura,
que aprisiona e reduz a complexidade dos fenômenos vividos.
2. A REFORMA PSIQUIÁTRICA BRASILEIRA
O movimento italiano tem sido apontado como modelo inspirador da
reforma psiquiátrica brasileira, que foi contemporânea da Reforma Sanitária
e teve sua história com influência internacional desses movimentos de
mudança asilar. Inspirado pela reforma basagliana, o Movimento dos
Trabalhadores em Saúde Mental (MTSM) passou a denunciar os maus
tratos em instituições asilares e promover reflexão sobre a necessidade de
mudança, criticando a hegemonia do saber psiquiátrico e do modelo
hospitalocêntrico.
Em 1978, a Associação Brasileira de Psiquiatria (ABP) passa a apoiar o
projeto político do MTSM após participação no V Congresso Brasileiro de
Psiquiatria, criticando o modelo psiquiátrico clássico e as instituições
psiquiátricas.
As primeiras iniciativas da substituição nos serviços acontecem a partir
de 1987, quando surgiu o primeiro Centro de Atenção Psicossocial
(CAPS) do Brasil na cidade de São Paulo. Logo aconteceu a primeira
intervenção em hospital psiquiátrico, na Casa de Saúde Anchieta, em
Santos, que teve repercussão nacional e pôde demonstrar que a retórica da
reforma era possível de ser executada.
Em 1989, o deputado Paulo Delgado lançou o projeto de Lei n.
3.657/1989, que só foi aprovado doze anos depois, após muitas
transformações, mas amparou as discussões sobre a reforma ao longo dos
anos. Foi um período de grandes mudanças no país, o Brasil havia
promulgado sua nova Constituição e passava pela primeira eleição direta
após o período de ditadura militar, eram tempos de abertura democrática.
Entre 1992 e 2000, vários estados conseguiram aprovar as primeiras leis
que determinaram a substituição dos leitos psiquiátricos por uma rede
integrada de cuidados em saúde mental e, finalmente, com a promulgação
da Lei Paulo Delgado e a II Conferência Nacional de Saúde Mental, a
Reforma Psiquiátrica Brasileira passou a ganhar sustentação e visibilidade.
Podemos caracterizar a Reforma Psiquiátrica não como um processo de
mudança administrativa, organizacional ou como um movimento de
melhoria ou aperfeiçoamento ético e científico da psiquiatria. Mas como um
movimento de transformação social e política da psiquiatria tradicional,
alterando as relações de saber e poder, rompendo com a objetificação dos
sujeitos e da doença e desinstitucionalizando os fenômenos, permitindo que
o sofrimento humano ocupe um novo lugar social. Ela não veio com a
finalidade de fechar hospitais psiquiátricos ou abandonar as pessoas às suas
famílias, tampouco tirar do Estado o papel do cuidado (muito pelo
contrário). A desinstitucionalização requer a desconstrução e a superação
do modelo arcaico e segregado da doença mental enquanto entidade
abstrata, para o modelo dos sujeitos que sofrem em suas existências e
experiências concretas de vida.
Com a Reforma Psiquiátrica, surgem a atenção psicossocial e o campo
da saúde mental. A saúde mental, enquanto campo de conhecimento plural,
complexo e intersetorial, entrecruza uma rede de saberes sobre o estado
mental dos sujeitos e das comunidades. A atenção psicossocial enquanto
práticas de cuidado integral, intersetorial, multiprofissional e
individualizado, orientadas para a promoção da saúde e estímulos de
aspectos essenciais para a vida em sociedade e respeitando as
singularidades e as subjetividades.
No modelo psicossocial, é importante perceber que o adoecimento é
uma condição de um cidadão com vontades e desejos, que tem trabalho,
estuda, tem parentes, vizinhos, rotinas e um cotidiano que devem ser
respeitados. Compreender que não se cuida de um doente, mas de um
sujeito em sofrimento psíquico abre opções de acolhimento, trocas sociais e
medidas inclusivas.
Mais do que administração de fármacos ou psicoterapias, o usuário deve
tornar-se um sujeito e não objeto de estudos da psiquiatria. O processo de
cuidado deve construir possibilidades, por meio de uma prática que introduz
novos sujeitos de direito e novos direitos para os sujeitos. uma prática que
reconhece, inclusive, o direito de as pessoas mentalmente enfermas terem
um tratamento efetivo, receberem um cuidado verdadeiro, uma terapêutica
cidadã e libertadora.
O futuro da Reforma Psiquiátrica não está apenas no sucesso
terapêutico-assistencial das novas tecnologias de cuidado ou dos novos
serviços, tampouco nos aspectos técnico-científicos, mas na transformação
social e na forma como a sociedade escolhe lidar com os diferentes, com as
minorias e com os sujeitos em desvantagem social.
Referências
1. Amarante P. Saúde Mental e Atenção Psicossocial. 3 ed. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz; 2007.
2. Vieira ARB. Organização e saber psiquiátrico. Rev. Adm. Empres. (São Paulo) 1981 Dec.;
21(4): 49-58.
3. Castel R. A ordem psiquiátrica: a idade de ouro do alienismo. Rio de Janeiro: Graal; 1978.
4. Ferreira de Lima A. Os movimentos progressivos-regressivos da reforma psiquiátrica
antimanicomial no Brasil: uma análise da saúde mental na perspectiva da psicologia social
crítica. Salud & Sociedad 2016 nov. 16; 1(3): 165-177.
5. Foucault M. História da loucura na Idade Clássica. 3. ed. São Paulo: Perspectiva; 1991.
6. Amarante P. Novos sujeitos, novos direitos: o debate em torno da reforma psiquiátrica. Cad.
Saúde Pública (Rio de Janeiro) 1995 Set.; 11(3): 491-494.
7. Stucchi-Portocarrero S. La Primera Guerra Mundial y su impacto en la psiquiatría. Rev
Neuropsiquiatr (Lima) 2014 jul.; 77(3): 139-143.
8. Ministério da saúde (BR). Memória da loucura: apostila de monitoria. 2 ed. Brasília: Editora do
Ministério da Saúde, 2009.
9. Carvalho AL, Amarante P. Loucos pela vida: a trajetória da reforma psiquiátrica no Brasil. In:
Loucos pela vida: a trajetória da reforma psiquiátrica no Brasil. Rio de Janeiro: Editora
Fiocruz 1995.
10. Heidrich, A. V. Reforma psiquiátrica à brasileira: análise sob a perspectiva da
desinstitucionalização. Porto Alegre: PUC-RS; 2007. Teses de doutorado (programa de pós-
graduação em Serviço Social).
11. Brasil. Ministério da Saúde. Secretaria de Atenção à Saúde. DAPE. Coordenação Geral de
Saúde Mental. Reforma psiquiátrica e política de saúde mental no Brasil. Documento
apresentado à Conferência Regional de Reforma dos Serviços de Saúde Mental: 15 anos
depois de Caracas. OPAS. Brasília, novembro de 2005.
12. Meisterdrucke [publicação online] 23 Ago. 2020. Philippe Pinel à la Salpêtrière [acesso em
2020 ago. 31]. Disponível em: https://www.meisterdrucke.pt
/kunstwerke/500px/Tony_Robert_Fleury_-_Philippe_Pinel_%281745-
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Amarante P. Saúde mental, formação e crítica. Rio de Janeiro: LAPS/Fiocruz; 2008.
13. Amarante P. A constituição de novas práticas no campo da Atenção Psicossocial: análise de
dois projetos pioneiros na Reforma Psiquiátrica no Brasil. Saúde em Debate 2001; 25(58): 26-
34.
SIGLAS

• CAPS Centro de Atenção Psicossocial


• CSM Centros de Saúde Mental
• MTSM Movimento dos Trabalhadores em Saúde Mental
• ABP Associação Brasileira de Psiquiatria
1. INTRODUÇÃO
No pós-guerra, as propostas de desinstitucionalização avançaram nos
Estados Unidos da América (EUA), aliadas à valorização pela lógica
comunitária e reorientação das práticas em psiquiatria. Isso repercutiu na
criação de Centros Comunitários de Saúde Mental, promulgado pelo
Congresso norte-americano em 1963. Desse modo, hospitais deixaram de
ser privilegiados nas condutas médicas, enquanto os serviços comunitários
fundamentados no contexto antimanicomial foram valorizados.
Na década de 1970, na França, os processos de desinstitucionalização
ocorreram juntos ao movimento da psicoterapia institucional, a partir das
experiências de Tosquelles. Na Itália o movimento esteve entrelaçado à
psicoterapia institucional, compreendendo que as instituições também
adoecem e preservam um modelo hegemônico nas relações entre os
profissionais, essencialmente caracterizada pela figura do médico em
hospital psiquiátrico, preocupando-se com a autonomia dos pacientes, a
partir da conscientização institucional, a fim de conquistar uma psiquiatria
democrática.
No Brasil, os dispositivos de atenção à saúde mental possuem um
histórico emaranhado à criação do Sistema Único de Saúde (SUS) e à
Reforma Psiquiátrica Brasileira (RPB), advento de transformações políticas,
organizacionais, técnicas e assistenciais, para transformação das
perspectivas de cuidado centrado na doença, numa perspectiva
desinstitucionalizada.
Foram necessários tensionamentos nas esferas macro e micropolítica
que possibilitassem a revisão de sentidos e práticas na saúde, inclusive na
saúde mental. Esse histórico, portanto, é constituído de mobilizações
efetuadas por movimentos sociais organizados a partir da década de 1970
para a constituição de direitos sociais, dentre eles a saúde. Como resultado,
tivemos a transformação do sistema nacional de saúde, sob perspectivas
orgânicas e estruturais, que levaram à garantia do direito à saúde para todos
os cidadãos.
A década de 1970 foi marcada pela especialização acelerada de
profissionais em psiquiatria, aliada ao aumento de empresas privadas na
oferta de serviços com essa especialidade, denominado como “indústria da
loucura”, e repercutiu no crescimento do número de leitos psiquiátricos em
manicômios, no período, sem a definição clara do direito dos usuários.
Inferimos que alguns países latino-americanos, apesar de terem
acompanhado de maneira simultânea as lutas de movimentos de classe pela
ampliação dos direitos constitucionais sobre a percepção da coletividade,
pouco avançaram na disposição de um sistema de saúde realmente público e
sustentado em princípios de igualdade social.
O Brasil é o único país da América Latina, de regime capitalista, que
ainda possui um sistema público universal há mais de 30 anos. Na
Colômbia, por exemplo, o Sistema General em Seguridad Social em Salud
(SGSSS), após 27 anos instituído, ainda preserva uma organização próxima
ao Instituto Nacional de Assistência Médica da Previdência Social
(INAMPS), que durou de 1977 a 1993. As formas de acesso ao SGSSS
ocorrem de três formas: regime contributivo, com trabalhadores formais,
pensionistas, ou trabalhador independente, com capacidade de pagar;
regime subsidiado, com pessoas que carecem de recursos econômicos ou de
baixo nível social; e regime especial, com trabalhadores de alguma entidade
do Estado (magistério, forças militares, polícia nacional e empresas de
petróleo do país).
Reforçamos que o princípio da universalidade e o princípio da
integralidade, são mediadores da estrutura organizacional que sustenta
serviços e demais dispositivos da atenção psicossocial brasileira, advindos
da reorientação do conceito de saúde que define a agenda política e a
consequente ampliação dos serviços comunitários.
Ocorreram também, no decorrer desses anos, mudanças no paradigma
assistencial em saúde mental, só então consolidadas na RPB. O debate entre
os paradigmas biomédico e psicossocial ainda será por muito tempo
presente nos diversos espaços que integram a saúde mental, mantendo
traços dicotômicos e ideológicos variantes, e reverberados no delineamento
e na execução das políticas públicas da área.
Desse modo, buscamos brevemente estimular os leitores desse capítulo
a uma concepção integrada sobre os dispositivos que compõem a atenção
em saúde mental no Brasil e as vertentes histórico-políticas imbuídas na sua
consolidação. A partir disso, trazemos a seguir alguns desses dispositivos
de maneira detalhada.

2. MATRICIAMENTO OU APOIO MATRICIAL


É um processo de produção de saúde e cuidado colaborativo entre a saúde
mental e atenção primária, construindo conhecimento interdisciplinar no
campo da saúde mental. Compreende uma ferramenta de transformação da
lógica hierarquizada e burocrática do sistema de saúde para uma proposta
pedagógico-terapêutica horizontalizada e dinâmica, em que equipes
interdisciplinares trabalham coletivamente produzindo clínica ampliada e
dialogicidade entre profissões e especialidades.

3. CENTRO DE ATENÇÃO PSICOSSOCIAL


Na intenção de estimular o conceito epistemológico de
desinstitucionalização impulsionado pela RPB, surge no Brasil o Centro de
Atenção Psicossocial (CAPS) como alternativa de cuidado em saúde mental
sustentado na perspectiva psicossocial, com objetivo de fortalecer a relação
entre sujeitos, instituições, família, comunidade e lazer, como algo
simbiótico e terapêutico.
Os CAPS foram estimulados inicialmente pela Lei da RFB (Lei n.
10.216, de 2001), em que o art. 4 determina “a internação, em qualquer de
suas modalidades só será indicada quando os recursos extra-hospitalares se
mostrarem insuficientes”. Essa, portanto, é a base jurídico-legal que
assegura os CAPS como dispositivos principais para assegurar políticas que
apostam nos princípios de uma assistência humanizada e ampliada em
saúde mental.
No entanto, mesmo antes da Lei da RPB o CAPS professor Luiz Rocha
Cerqueira havia se tornado marco inaugural em 1987 na cidade de São
Paulo como primeiro Centro de Saúde orientado para reabilitação
psicossocial, ênfase inspiradora desses serviços.
Os CAPS são compreendidos como dispositivos ordenadores da Rede
de Atenção Psicossocial (RAPS), seja no direcionamento para demais
dispositivos da saúde mental, seja para dispositivos da Atenção Primária à
Saúde (APS), integrando Centros de Saúde da Família (CSF) à saúde
mental, definidos por território, e com uma aposta no modelo pedagógico-
terapêutico do apoio matricial para condução e resolução de transtornos
mentais comuns de maneira corresponsável, o que quebra fronteiras nas
relações entre os dispositivos de saúde e a segregação da assistência ao
usuário.
O território aqui deve ser compreendido como um elemento ampliado e
de estreita relação com o princípio da cartografia sanitarista na saúde
mental, que busca engrenagens nas relações entre os sujeitos,
independentemente dos papéis sociais e de princípios organizativos-
gerenciais que definem atribuições e personagens categorizados nas
profissões da saúde.
Para tanto, os CAPS surgem na contramão do modelo hospitalocêntrico,
reorientando principalmente o conceito de saúde mental, anteriormente
definido por perspectivas psiquiátricas centradas na doença. A Portaria n.
336/2002 vem assegurar que os CAPS devem se constituir como serviços
que respeitem uma lógica territorial, de suporte aos serviços da Atenção
Primária à Saúde, caracterizados em CAPS I, CAPS II e CAPS III,
conforme descrito no Quadro 1.

Quadro 1 - Caracterização dos Centros de Atenção Psicossocial por perfil


organizativo-assistencial

Perfil Cobertura Funcionamento Oferta de serviços Equipe profissional


Perfil Cobertura Funcionamento Oferta de serviços Equipe profissional

CAPS I Municípios com Funcionamento Atendimento 1 médico especialista em


população entre de 8h às 18h, e individual; saúde mental; 1
20.000 e 70.000 2 turnos atendimento de enfermeiro; outros 3
habitantes. diários, durante grupos; profissionais de ensino
cinco dias úteis atendimento em superior (psicólogo,
na semana. oficinas assistente social, terapeuta
terapêuticas; ocupacional, pedagogo ou
visitas outro profissional
domiciliares; necessário ao projeto
atendimento à terapêutico); 4
família; integração profissionais de nível
do paciente à médio (técnico e/ou
comunidade. auxiliar de enfermagem,
técnico administrativo,
técnico educacional e
artesão.

CAPS Municípios com Funcionamento Atendimento 1 médico psiquiatra; 1


II população entre de 8h às 18h, 2 individual; enfermeiro com formação
70.000 e turnos diários, atendimento de em saúde mental; outros 4
200.000 durante cinco grupos; profissionais de ensino
habitantes. dias úteis na atendimento em superior (psicólogo,
semana. oficinas assistente social,
terapêuticas; enfermeiro, terapeuta
visitas ocupacional, pedagogo ou
domiciliares; outro profissional
atendimento à necessário ao projeto
família; integração terapêutico); 6
do paciente à profissionais de nível
comunidade. médio (técnico e/ou
auxiliar de enfermagem,
técnico administrativo,
técnico educacional e
artesão).
Perfil Cobertura Funcionamento Oferta de serviços Equipe profissional

CAPS Município com Atendimento Atendimento Regime de turnos


III população acima 24h, individual; 2 médicos psiquiatras; 1
de 200.000 diariamente. atendimento de enfermeiro com formação
habitantes. grupos; em saúde mental; 5
atendimento em profissionais de nível
oficinas superior (psicólogo,
terapêuticas; assistente social,
visitas enfermeiro, terapeuta
domiciliares; ocupacional, pedagogo ou
atendimento à outro profissional
família; integração necessário ao projeto
do paciente à terapêutico); 8
comunidade; profissionais de nível
acolhimento médio (técnico e/ou
noturno, com até 5 auxiliar de enfermagem,
leitos para técnico administrativo,
eventual repouso e técnico educacional e
observação. artesão).
Regime de plantão (12h)
3 (três) técnicos/auxiliares
de enfermagem, sob
supervisão do enfermeiro
do serviço; 1 (um)
profissional de nível médio
da área de apoio.
Perfil Cobertura Funcionamento Oferta de serviços Equipe profissional

CAPSi População de Funcionar 8h Atendimento 1 médico psiquiatra, ou


II cerca de 200.000 em 2 turnos individual; neurologista ou pediatra
habitantes, ou diários, durante atendimento de com formação em saúde
outro parâmetro 5 dias úteis da grupos; mental; 1 enfermeiro; 4
populacional a semana, atendimento em profissionais de nível
ser definido pelo podendo oficinas superior (psicólogo,
gestor local, comportar um terapêuticas; assistente social,
atendendo a terceiro turno visitas enfermeiro, terapeuta
critérios até 21h. domiciliares; ocupacional,
epidemiológicos. atendimento à fonoaudiólogo, pedagogo
família; integração ou outro profissional
da criança e necessário ao projeto
adolescente à terapêutico); 5
comunidade, profissionais de nível
família e escola; médio (técnico e/ou
ações auxiliar de enfermagem,
intersetoriais. técnico administrativo,
técnico educacional e
artesão).
Perfil Cobertura Funcionamento Oferta de serviços Equipe profissional

CAPS Municípios com Funcionar 8h Atendimento 1 médico psiquiatra; 1


AD II população em 2 turnos individual; enfermeiro com formação
superior a diários, durante atendimento de em saúde mental; 1 médico
70.000 5 dias úteis da grupos; clínico; 4 profissionais de
habitantes. semana, atendimento em nível superior (psicólogo,
podendo oficinas assistente social,
comportar um terapêuticas; enfermeiro, terapeuta
terceiro turno visitas ocupacional, pedagogo ou
até 21h. domiciliares; outro profissional
atendimento à necessário ao projeto
família; integração terapêutico); 6
do paciente à profissionais de nível
comunidade; médio (técnico e/ou
atendimento de auxiliar de enfermagem,
desintoxicação. técnico administrativo,
técnico educacional e
artesão).

CAPSi: Centro de Atenção Psicossocial Infantil


CAPS AD: Centro de Atenção Psicossocial Álcool e Outras Drogas
Fonte: Brasil12.

Numa descrição sumária, o CAPS I deve atender pessoas com


transtornos mentais persistentes e uso de substâncias em todas as faixas
etárias. O CAPS II deve oferecer suporte às mesmas demandas de CAPS I,
porém, considerando uma maior densidade populacional e um maior
quantitativo e qualificação de profissionais da saúde mental. A diferença do
CAPS III é que assistência é oferecida 24 horas, todos os dias da semana,
possuindo retaguarda clínica e acolhimento dos demais serviços da rede de
saúde mental, sendo indicado para municípios ou regiões com população
proporcional a partir de médio.
De forma complementar, a Portaria 3.088, de 2011, estabeleceu a
organização da Rede de Atenção Psicossocial para pessoas com sofrimento
ou transtorno mental e com necessidades decorrentes do uso de crack, e
incitou importância das modalidades do CAPS AD, que atende adultos e
crianças, considerando as normativas do Estatuto do Adolescente em uso de
substâncias, e o CAPS AD III, com atendimento para crianças, adolescentes
e adultos, considerando as prerrogativas de direito dessas pessoas e com
necessidades de cuidados clínicos contínuos, e funcionamento 24 horas, em
todos os dias da semana, em municípios com população acima de 200 mil
habitantes. Nesse contexto, Unidades de Pronto-atendimento (UPA),
hospitais e Unidades Básicas e Centros de Saúde da Família integram a rede
intersetorial da RAPS.
Os serviços de CAPSi, já previstos desde 2002, oferecem atendimento a
pessoas entre 3 e 18 anos de idade, com sinais de transtornos mentais
severos e persistentes que impactam no desenvolvimento, como depressão,
psicoses, quadros ansiosos e dependência química. Atendem, também, a
eventos que têm surgido com frequência entre os jovens brasileiros, como
automutilação, transtornos alimentares, Transtorno do Déficit de
Atenção/Hiperatividade (TDAH), por meio de atenção psicoterapêutica,
visitas domiciliares de suporte individual e familiar, por profissionais com
habilidades no cuidado infantojuvenil em saúde mental.
Precisamos destacar a equipe multiprofissional para o exercício das
atividades desenvolvidas nesses serviços, compondo o manejo clínico de
cada categoria profissional de maneira integrada, sem sobreposições
hegemônicas e com finalidade única: melhor condução dos casos por meio
de um projeto terapêutico singular.
Atualmente existem 2.604 CAPS registrados no Cadastro Nacional de
Estabelecimentos de Saúde, distribuídos nos 26 estados e Distrito Federal.
Desse modo, os CAPS são dispositivos que buscam apropriar-se no
princípio da desinstitucionalização, abominam a lógica manicomial e
potencializam a atenção psicossocial com base territorial e comunitária.

4. UNIDADE DE ACOLHIMENTO

A Portaria n. 121, de 25 de janeiro de 2012, institui a Unidade de


Acolhimento (UA) para pessoas com necessidades decorrentes do uso de
crack, álcool e outras drogas, no componente de atenção residencial de
caráter transitório da RAPS. Essas unidades devem funcionar 24 horas nos
sete dias da semana, e possuir caráter residencial transitório, em que haja
dinamicidade na acolhida dos usuários, sem que se firme fixamente no
espaço.
As UAs devem ser definidas em duas modalidades, uma direcionada
para adultos usuários (com 10 a 15 vagas) de substâncias e outra para
acolhimento infantojuvenil, adolescentes e jovens de 12 a 18 anos de idade
(com disponibilidade de 10 vagas). Importante salientar que uma UA não
poderá atender simultaneamente usuários desses dois perfis, sendo possível
apenas usuários com perfil da modalidade.
As UAs são dispositivos da RAPS vinculadas ao Cadastro Nacional de
Estabelecimentos de Saúde de um CAPS, contando com profissionais
específicos de algumas das categorias: serviço social, educação física,
enfermagem, psicologia, terapia ocupacional e medicina.
Devem orientar-se para o acolhimento humanizado, com estímulo à
socialização e à vida em coletividade, acompanhamento psicossocial,
promoção da saúde mental, acompanhamento psicoterápico e de orientação,
atendimentos em grupo (psicoterapia, grupo operativo, atividades de
suporte social, assembleias, redução de danos e oficinas terapêuticas),
articulação intersetorial, articulação com programas profissionalizantes e
outras atividades.

A Portaria n. 855, de 22 de agosto de 2012, incluiu a UA com o código


115 na descrição de serviços da atenção psicossocial, afirmou a
operacionalização orçamentária em valores fixos pré-pagos anualmente em
tetos financeiros e delimitou o perfil de profissionais para cada modalidade
de UA, conforme apresentado no Quadro 2.

Quadro 2 - Perfil de profissionais recomendados para cada modalidade de


Unidade de Acolhimento

Serviço Equipe profissional

Médicos clínicos, enfermeiros, assistentes sociais, psicólogos e


UA adulto (UAA)
psicanalistas, terapeuta ocupacional, profissional de educação física
Serviço Equipe profissional

Médicos clínicos, enfermeiros, assistentes sociais, psicólogos e


UA infantojuvenil
psicanalistas, terapeuta ocupacional, profissional da educação física e
(UAI)
pedagogo

Fonte: Brasil13.

A UAA pode ser implantada em municípios ou regiões com população


acima de 200 mil habitantes, e a UAI em municípios e regiões com mais de
100 mil habitantes, respeitando o cálculo de 2.500 a 5.000 crianças e
adolescentes em situação de risco para o uso de drogas. A fórmula para
definição do número de crianças e adolescentes em risco deve ser:

Número de hab. entre 10 e 19 anos x 6 = N


100

Na fórmula, o número 6 representa o percentual de adolescentes para o


uso de qualquer droga no último mês, que, segundo o Centro Brasileiro de
Informações sobre Drogas Psicotrópicas (CEBRID), é de 6%.
Esses dispositivos apropriam-se de práticas intersetoriais, articulando
suas atividades a serviços do Sistema Único de Assistência Social,
educação, desenvolvimento social e urbano, e segurança pública, a fim de
identificar estratégias solúveis às tendências humanistas empreitadas na
atenção psicossocial e que atendam demandas sociais. Para tanto, é preciso
compreender as UAs como espaços de acolhimento institucional, que no
Brasil, em sua maioria, são vinculadas a organizações sociais.
Segundo dados do Cadastro Nacional de Estabelecimentos de Saúde, no
Brasil são 24 UAs, sendo 15 UAAs e 9 UAIs, distribuídas nos estados da
Bahia (n=4), Ceará (n=4), Goiás (n=2), Minas Gerais (n=3), Paraíba (n=2),
Paraná (n=2), Pernambuco (n=1), Piauí (n=1), Rio de Janeiro (n=1), Rio
Grande do Norte (n=1), Rio Grande do Sul (n=1), Santa Catarina (n=1) e
São Paulo (n=1).
Apesar de serem serviços que buscam sanar problemas de pessoas
vulneráveis, podemos considerar que o cuidado às pessoas dependentes de
substâncias apresentam peculiaridades que os tornam voláteis durante a
assistência. Caracterizam-se como um público com altas taxas de evasão,
sendo principalmente os adolescentes mais atraídos pelas ruas, que referem
sensação de liberdade, distanciamento dos problemas, sonho com uma vida
diferente, e estão longe das regras geralmente estabelecidas na UAI.

5. SERVIÇOS RESIDENCIAIS TERAPÊUTICOS


Os serviços residenciais terapêuticos ou residências terapêuticas compõem
a relação de dispositivos da Política Nacional de Saúde Mental, com o
objetivo central de reinserir socialmente pessoas com transtornos mentais.
Reforçada pela Lei n. 10.216, de 6 de abril de 2001, esses dispositivos de
saúde mental implicaram a redução gradual de usuários estritamente
dependentes da internação hospitalar para oferta de asilo residencial.
Esses serviços são criados antes mesmo da lei da RPB, pela Portaria n.
106/2000, e definidas como “moradias ou casas inseridas,
preferencialmente, na comunidade, destinadas a cuidar dos portadores de
transtornos mentais, egressos de internações psiquiátricas de longa
permanência, que não possuam suporte social e laços familiares”.
As residências terapêuticas podem ser classificadas em duas
modalidades: Tipo I, devendo atender no máximo 8 pessoas, destinada a
pessoas com transtornos mentais em processo de desinstitucionalização; e
Tipo II, para pessoas com comprometimento físico e dependência, com
necessidades específicas, e devendo atender até 10 pessoas. Para questões
de repasse financeiro esses serviços devem possuir no mínimo 4 moradores.
Na residência devem ter cuidadores e profissionais técnicos de
enfermagem, mas é necessária a vinculação com um serviço especializado
em saúde mental que contenha minimamente: um profissional de nível
superior da área da saúde, com formação ou experiência na área da saúde
mental; e dois profissionais de nível médio com experiência específica em
reabilitação psicossocial. A presença do médico é impreterivelmente
necessária para apostas eficientes no tratamento clínico e psiquiátrico.
Em 2001, a Portaria n. 175, que altera o artigo 7º da Portaria n.
106/2000, vincula as residências aos serviços de saúde mental, inserindo o
profissional médico como fundamental na equipe e dois profissionais de
ensino médio capacitados para atuação na área.
Em 2003, o programa “de volta para casa” beneficiou mais de 206
pessoas com transtornos mentais no Brasil, ao serem retirados de hospitais
psiquiátricos sem perspectiva de alta devido a condições persistentes,
estáveis e institucionalizadas. As residências terapêuticas se constituíram
como dispositivos para a concessão de espaços fora de instituições
manicomiais. Até 2010 foram 3.754 pessoas beneficiadas com o programa
em associação com as residências. Até 2019, foram 5.668 beneficiados com
o programa, contando com 684 SRTs (Serviços Residenciais Terapêuticos).
Em 2011, a Portaria n. 3.090, orienta que sejam contratados 5
cuidadores em regime de escala e 1 profissional técnico de enfermagem
diário, com o repasse de custeio de R$ 20.000,00 mensais para implantação
das residências tipo I e tipo II, e custeio mensal de R$ 10.000,00 para o
custeio para cada grupo de 8 moradores das residências tipo I, e R$
20.000,00 para cada grupo de 10 pessoas de tipo II, o que afirma o repasse
por grupo de moradores e não o tipo de residência.
No final de 2000, havia no Brasil 60.868 leitos em hospitais
psiquiátricos e 40 residências terapêuticas. Em 2014, existiam 610
residências implantadas no país, com 3.470 moradores. Dessas, atualmente,
61 residências estão credenciadas como estabelecimentos de saúde em
menos da metade dos estados brasileiros, exceto nos estados Acre, Alagoas,
Amapá, Amazonas, Bahia, Maranhão, Mato Grosso, Mato Grosso do Sul,
Pará, Paraná, Piauí, Rio Grande do Norte, Rondônia, Roraima, Santa
Catarina e no Distrito Federal, conforme registros ativos no CNES.
O número de residências terapêuticas no país ainda é considerado
pequeno, se considerado o número de usuários egressos de internação nos
manicômios. Tal característica evidencia três possibilidades: o retorno
dessas pessoas aos seus lares de origem; pessoas desinstitucionalizadas
suficientemente acompanhadas, em
número e qualidade da assistência, por residências terapêuticas; pessoas que
permaneceram institucionalizadas devido à impossibilidade de oferecer as
duas possibilidades citadas. Os serviços de saúde mental, contudo, devem
compreender a construção dessas residências como elemento histórico do
processo de desinstitucionalização, em que se fez pensar no próprio lar
como referência terapêutica, e esses serviços como apoio em situações
específicas e de extrema necessidade.
Um estudo realizado em Recife, Pernambuco, no ano de 2015, com 190
moradores de 31 serviços de residência terapêutica, dos 58 existentes na
cidade, verificou-se que a população masculina é mais prevalente (64,7%),
o percentual de não escolarizados é de 43,7% e com ensino fundamental
completo/incompleto (35,3%). Além disso, 30,5% passaram por abandono
familiar e 26,3% já estiveram em situação de rua. Tais evidências
demonstram que os serviços residenciais terapêuticos são também centros
de prevenção às vulnerabilidades sociais a que os usuários com transtorno
mental podem estar sujeitos.
Desse modo, esses serviços atuam em apoio a RAPS, concentrando em
si desafios emergentes da RPB, por acolher pessoas egressas de hospitais
psiquiátricos, em um contexto contemporâneo para reorientação do conceito
de moradia após longos anos de internação, sendo exemplo de modelo
efetivo antimanicomial.

6. INTERNAÇÃO HOSPITALAR: HOSPITAIS


PSIQUIÁTRICOS X LEITOS DE SAÚDE
MENTAL EM HOSPITAIS GERAIS
Os hospitais psiquiátricos têm marcos históricos que vão além da
construção de edifícios. A cultura manicomial e as condutas terapêuticas
que prevaleceram por séculos cultivaram a segregação das pessoas com
transtornos mentais e o modelo higienista.
O movimento de reforma psiquiátrica se consolidou sobre o princípio da
desinstitucionalização e do respeito à dignidade humana, sendo o hospital
psiquiátrico o símbolo do modelo manicomial. A reorientação do modelo de
atenção considera a internação hospitalar um recurso necessário para
atenção à crise e casos graves apenas após terem sido esgotados os recursos
extra-hospitalares. Além disso, compreende a crise como o resultado de
vários fatores que se inter-relacionam, não apenas como resultado de
disfunção ou sintomas relacionados exclusivamente à doença.
No município de Sobral, Ceará, o histórico que se assumiu com esse
movimento foi inspirado no refinamento de pensamentos políticos de
gestores locais movidos pela concepção de liberdade das instituições
manicomiais e apoiados pelo movimento estadual dos direitos humanos.
Esse movimento realizou, em 1999, por sindicância, a apuração de danos à
vida na Casa de Repouso Guararapes, com denúncias de maus-tratos,
espancamentos e abuso sexual, considerados rotineiros na instituição
hospitalar. Na época, o manicômio possuía 63 pacientes, sendo 21 mulheres
e 42 homens, sem suporte terapêutico adequado, em péssimas condições
sanitárias e recebendo tratamento hostil. Desse modo, houve uma
desarticulação do hospital, adotando medidas emergenciais para a
reorientação do tratamento psiquiátrico para abordagens médico-
comunitárias. Tudo isso culminou no descredenciamento do hospital.
O caso do paciente Damião Ximenes, o mais conhecido do Hospital
Guararapes, foi levado à corte internacional para intervenção jurídica em
direitos humanos pela família após suspeitas de morte violenta, o que
culminou em um exemplo, hoje muito citado, para a constatação dos riscos
dos sanatórios aos pacientes.
No espectro nacional, um dos hospitais psiquiátricos de maior
repercussão pelo modo de internação e maus-tratos foi o Hospital Colônia
de Barbacena, que se apropriou por longo tempo da ideia eugênica de
pessoas degeneradas por transtornos mentais. Esse hospital tornou-se
referência no tratamento psiquiátrico durante a primeira metade do século
XX, estabelecendo um diálogo permanente com a então instituída Liga
Mineira de Higiene Mental. Somente na década de 1980, após difusão
midiática das condutas terapêuticas adotadas no hospital, é que foram
buscadas melhorias na qualidade do serviço, que, apesar de significativas,
preservavam a lógica institucionalizada.

A Portaria n. 251, em 31 de janeiro de 2002, consolidou as mudanças


nos hospitais psiquiátricos brasileiros e estabeleceu normas e diretrizes para
a assistência psiquiátrica hospitalar. Os hospitais psiquiátricos vinculados
ao SUS passaram a ser avaliados por meio do Programa Nacional de
Avaliação do Sistema Hospitalar/Psiquiatria (PNASH), adotando
pontuações mínimas aos hospitais a partir do total de leitos. Divididos em
classes, esses serviços passaram a ser objetivamente guiados para a revisão
da demanda real por leitos psiquiátricos.
Em 2004, a Portaria n. 52, de 20 de janeiro, para tanto, estabeleceu
critérios para a reestruturação do financiamento dos procedimentos em
hospital psiquiátrico, com recomposição das diárias hospitalares,
incentivando a redução de leitos, a fim de adotar como preferência o
modelo terapêutico comunitário.
O Relatório de Inspeção Nacional dos Hospitais Psiquiátricos no Brasil,
publicado em 2019, resultado da inspeção em 40 hospitais psiquiátricos,
denuncia o possível retrocesso com a retomada dos investimentos em
instituições asilares após Portaria GM/MS n. 3.588, de 21 de dezembro de
2017. Concluiu que: os hospitais inspecionados ainda necessitam se afirmar
nos sistemas locais de vigilância, a despeito de possíveis infrações aos
diretos das pessoas privadas de liberdade; as internações psiquiátricas ainda
devem ser sublinhadas pelos princípios da brevidade e excepcionalidade; os
serviços extra-hospitalares necessitam ficar ainda mais próximos para
sustentar políticas terapêuticas de carácter comunitário; a qualificação e a
manutenção de ações de monitoramento devem ser permanentes, a fim de
qualificar a disposição de serviços em hospitais psiquiátricos. Todos os
anos, no dia 18 de maio, é comemorado o movimento da luta
antimanicomial que celebra o fim dos manicômios e a sustentação de uma
assistência comunitária e igualitária.
Existem 131 hospitais psiquiátricos em todo o Brasil (18.459 leitos),
desses, 119 apresentam leitos do SUS em funcionamento efetivo, o que
totaliza 15.676 leitos destinados ao SUS distribuídos em 22 estados.
Segundo dados de 2011, a maioria dos hospitais psiquiátricos no Brasil
é privada. Deles, 60% não compunham projeto terapêutico individualizado
conforme preconiza a RPB, sendo os óbitos por “causa mal definida”
metade de suas ocorrências, com a presença de “moradores” em suas
instalações ou período de internação, em sua maioria, superior a um ano.
A Política Nacional de Saúde Mental preconiza a expansão da rede de
cuidados extra-hospitalares e a redução progressiva de internações de longa
permanência. A Portaria n. 224, de 1992, cria uma retaguarda hospitalar por
meio de leitos ou unidades psiquiátricas em hospitais-gerais em
consonância com a RPB e seguindo os princípios do SUS, garantindo a
continuidade do cuidado, a diversidade e a complexidade assistencial, a
multiprofissionalidade e a participação social. Também estabelece diretrizes
e normas acerca da assistência em saúde mental hospitalar na qual o
número dos leitos psiquiátricos não deve ultrapassar 10% da capacidade
hospitalar, chegando ao máximo de 30 leitos, com espaços coletivos e
terapêuticos grupais.
Atualmente, contamos com 1.622 leitos de saúde mental responsáveis
por oferecer cuidado hospitalar para pessoas com transtornos mentais e/ou
com necessidades decorrentes do uso de álcool e de outras drogas e manejo
de situações de crise e/ou vulnerabilidade extrema, como risco de morte
para o usuário. Esses leitos estão integrados às RAPS e garantem os direitos
dos usuários, a autonomia e a liberdade dos sujeitos com inclusão das
famílias e comunidades nos cuidados em saúde mental.

7. CONSULTÓRIOS NA RUA
Numa história mais recente sobre os dispositivos de saúde mental no Brasil,
os consultórios na rua foram instituídos pela Política Nacional de Atenção
Básica em 2011, com o objetivo de promover cuidado e acesso à saúde para
pessoas em situação de rua.
A Portaria n. 122, de 25 de janeiro de 2011, definiu diretrizes de
organização e funcionamento das equipes de consultório na rua,
considerando todo o aparato jurídico-legal que rege as assistências em
saúde na atenção básica. Esses dispositivos devem oferecer à população em
situação de rua ações compartilhadas e integradas aos Centros de Saúde da
Família e Centros de Atenção Psicossocial.
Os CRs (consultórios na rua) podem ser divididos em: modalidade I,
formada por uma equipe de no mínimo quatro profissionais, com médico e
mais três profissionais de nível médio ou superior (não deve haver mais de
dois profissionais de nível médio); modalidade II, com equipe de no
mínimo seis profissionais , com médico e outros cinco profissionais (não
exceder o total de três profissionais de nível médio); modalidade III,
formada por equipe proporcional ao da modalidade II, acrescida de um
profissional médico. Os horários de atendimento deverão se adequar às
demandas da população.
Entre as categorias e os profissionais da saúde que podem compor o CR,
destacamos o enfermeiro, o psicólogo, o assistente social, a terapeuta
ocupacional, o médico, o agente social, o técnico ou auxiliar de
enfermagem e o técnico de saúde bucal. Só deve haver no máximo dois
profissionais de cada categoria.
Esses dispositivos centralizam-se na assistência a pessoas com situações
clínicas específicas e de saúde mental, decorrentes da situação de rua, que
os expõe a fatores de risco para o desenvolvimento de doenças e
transtornos.

8. CONCLUSÃO
A saúde mental é uma área muito complexa e extensa do conhecimento. A
reestruturação do modelo de cuidado, para além dos serviços e ancorada no
dia a dia das relações, pede uma rede assistencial com base territorial e
comunitária que não categorize ou reduza a existência humana, mas que
seja viva e construída coletivamente como campo de saberes múltiplos. Isso
implica uma mudança da cultura antimanicomial, implantação de serviços
com necessidade de inovação e invenção de estratégias alinhadas ao
cuidado em liberdade, como preconiza a RPB.

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SIGLAS

• APS Atenção Primária à Saúde


• CAPS Centro de Atenção Psicossocial
• CEBRID Centro Brasileiro de Informações sobre Drogas
Psicotrópicas
• CR Consultórios na Rua
• CSF Centros de Saúde da Família
• EUA Estados Unidos da América
• PNASH Programa Nacional de Avaliação do Sistema
Hospitalar/Psiquiatria

• RAPS Rede de Atenção Psicossocial


• RPB Reforma Psiquiátrica Brasileira
• SGSSS Sistema General em Seguridad Social em Salud
• SRT Serviço Residencial Terapêuticos
• SUS Sistema Único de Saúde
• TDAH Transtorno do Déficit de Atenção/Hiperatividade
• UA Unidade de Acolhimento
1. INTRODUÇÃO
O diagnóstico clínico é essencial para que o tratamento do paciente
seja realizado de forma correta e que não o cause danos adicionais.
Na Medicina, é bastante comum que sejam elaborados critérios
clínicos diagnósticos. Além de serem necessários para estabelecer o
tratamento, o seguimento e o prognóstico são fundamentais em
vários domínios, como: realização de pesquisas na área da saúde,
formulação de políticas públicas, na indústria farmacêutica e no
âmbito judicial, entre outros exemplos.
Por volta do século XVIII, quando as doenças psiquiátricas
foram mais bem descritas e registradas, não existiam, ainda,
critérios diagnósticos na psiquiatria. Assim, caso um paciente não
se encaixasse totalmente em uma descrição, ele não receberia o
diagnóstico. Essa forma de diagnóstico é conhecida como categoria
homogênea ou monotética. Foi a partir do século XIX que
Kahlbaum e Kraepelin passaram a elaborar os primeiros critérios
clínicos diagnósticos em Psiquiatria, de onde partem os principais
critérios diagnósticos utilizados na atualidade.
Ao longo dos anos, os critérios foram se modernizando. Novas
descobertas foram feitas no campo das Neurociências e novos tipos
de tratamento foram alcançados. Nos Estados Unidos, em 1980,
foram criados, pela Associação Psiquiátrica Americana, os critérios
do DSM-III (Diagnostic and Statistical Manual of Mental
Disorders, na sua terceira versão), a primeira classificação baseada
em critérios diagnósticos, que foram bem aceitos entre psiquiatras e
cientistas à época. Após essa versão, sucedeu-se outras quatro:
DSM-III-R, DSM-IV, DSM-IV-TR e DSM-5 (esse último, o mais
atualizado manual, lançado em 2013, será abordado mais adiante
no capítulo).
2. O QUE É UM TRANSTORNO
MENTAL?
O DSM-5 traz a seguinte definição para transtorno mental:

“Um transtorno mental é uma síndrome caracterizada por


perturbação clinicamente significativa na cognição, na
regulação emocional ou no comportamento de um indivíduo que
reflete uma disfunção nos processos psicológicos, biológicos ou
de desenvolvimento subjacentes ao funcionamento mental.
Transtornos mentais estão frequentemente associados a
sofrimento ou incapacidade significativos que afetam atividades
sociais, profissionais ou outras atividades importantes. Uma
resposta esperada ou aprovada culturalmente a um estressor ou
perda comum, como a morte de um ente querido, não constitui
transtorno mental. Desvios sociais de comportamento (p. ex., de
natureza política, religiosa ou sexual) e conflitos que são
basicamente referentes ao indivíduo e à sociedade não são
transtornos mentais, a menos que o desvio ou conflito seja o
resultado de uma disfunção no indivíduo, conforme descrito.”2

Na psiquiatria, é importante a reflexão entre o normal e o


patológico dos comportamentos humanos. Indivíduos
diagnosticados erroneamente com algum transtorno mental podem,
em consequência, serem submetidos a tratamentos desnecessários,
sofrimento e imposição de estigmas associados aos diagnósticos
psiquiátricos. Tal prática consiste em rotular comportamentos
desviantes e moralmente repreensíveis ou mal-adaptados e
transgressivos como patológicos; essa é uma das consequências
possíveis nesse contexto. A medicalização do sofrimento banal
também se apresenta como um risco a se considerar na prática
clínica. Da mesma forma, se o diagnóstico não é contemplado na
assistência a uma pessoa com sofrimento psíquico patológico,
podem advir consequências danosas e ocorrer prejuízos das mais
variadas intensidades.
A depender de pontos de vista filosóficos, ideológicos ou
mesmo pragmáticos, os critérios e os conceitos de normalidades se
mostram de formas distintas (Quadro 1). Pode-se utilizar de vários
constructos teórico-práticos e critérios de normalidade/patológico
de acordo com o objetivo estabelecido pelo examinador. De toda
forma, esse tópico – normal e patológico – em psiquiatria deve
sempre ser encharcado de reflexão e criticidades pelos profissionais
de saúde.

Quadro 1 - Exemplos de critérios de normalidade


PRINCIPAIS
CONCEITO CRÍTICA
CRITÉRIOS

Normalidade como Ausência de sinais e sintomas de Redundante. Não há definição do


ausência de doença transtorno mental. que é, mas do que não é.

Tida como utópica. Algo


Baseada na adaptação dos sujeitos
idealizado e compartilhado
Normalidade ideal às normas impostas
cultural e socialmente de forma
arbitrariamente.
arbitrária.

Fenômenos habituais, como


Com base na distribuição cáries, sintomas depressivos e
Normalidade
estatística, o normal seria o ansiosos leves, por exemplo,
estatística
encontrado com mais frequência. apesar de frequentes, não podem
ser considerados normais.

Conceito de 1946 da OMS: Amplo, impreciso e utópico a


Normalidade como
completo bem-estar físico, mental ponto de poucas pessoas
bem-estar
e social. preencherem os requisitos.

Há patologia se os fenômenos É preciso parâmetros para


Normalidade
acarretam sofrimento e perda da determinar o que seria funcional e
funcional
funcionalidade. disfuncional de forma subjetiva.
PRINCIPAIS
CONCEITO CRÍTICA
CRITÉRIOS

Consideram-se aspectos diversos A normalidade seria mutável de


Normalidade como no desenvolvimento psicossocial acordo com contextos e estágios
processo para a determinação do que seria de desenvolvimento psicossocial
normal. diversos.

Autopercepções podem carecer de


insight na sua avaliação. Por
A percepção individual do sujeito
Normalidade exemplo: pacientes em mania,
definiria o status de normalidade e
subjetiva apesar de todo o sofrimento e
patológico.
prejuízo causados, percebem-se
saudáveis.

Condições limítrofes podem


receber estigma diagnóstico sem
Há determinação prévia arbitrária
Normalidade terem adoecimento ou pacientes
e objetiva de critérios que
operacional adoecidos podem ter seu
delimitam o normal do patológico.
tratamento negligenciado por
terem sido julgados normais.
Fonte: adaptado de Dalgalarrondo P.4

3. TIPOS DE CLASSIFICAÇÕES
3.1. CID-10
A Classificação Internacional de Doenças e Problemas
Relacionados à Saúde, na sua décima edição, ou simplesmente
CID-10, é um instrumento lançado em 1990, elaborado pela
Organização Mundial da Saúde (OMS), utilizado em todo o
mundo, e engloba todas as áreas da Medicina. Sua função é
monitorar a incidência e a prevalência de doenças. No Brasil, é o
sistema classificatório adotado pelo governo e amplamente
utilizado em relatórios médicos e laudos. Na versão da CID
utilizada oficialmente na atualidade, a CID-10, foi realizada uma
cooperação com a Associação Americana de Psiquiatria, a fim de
que a CID-10 tivesse características confluentes com o DSM-IV,
havendo uma linguagem comum internacional.
Na Psiquiatria, há um capítulo específico, o “F”, no qual as
patologias psiquiátricas foram classificadas, assim como foram
estabelecidos critérios para essas classificações. As categorias da
psiquiatria da CID-10 estão listadas no Quadro 2.
Vale ressaltar que a versão mais atual da CID é a CID-11, que
foi apresentada oficialmente em maio de 2019, com previsão para
entrar em vigor em 2022. Uma de suas principais mudanças foi a
retirada do “transexualismo” da lista de transtornos mentais, que
agora passa a ser considerado incongruência de gênero e passa a ser
descrito no capítulo de condições relacionadas à doença sexual e
não mais no capítulo de doenças mentais, comportamentais ou do
neurodesenvolvimento. Na mesma linha, o transtorno de identidade
sexual na infância, na CID-11, passou a ser descrito como
incongruência de gênero na Infância.

Quadro 2 - Categorias da CID-10 na Psiquiatria


F0 – F09 Transtornos mentais orgânicos, incluindo transtornos mentais somáticos

Transtornos mentais e de comportamento decorrentes do uso de substância


F10 – F19
psicoativa

F20 – F29 Esquizofrenia, transtornos esquizotípicos e transtornos delirantes

F30 – F39 Transtornos do humor

F40 – F49 Transtornos ansiosos, relacionados ao estresse e somatoformes

F50 – F59 Síndromes comportamentais associadas a perturbações fisiológicas e físicas

F60 – F69 Transtornos de personalidade e de comportamento em adulto

F70 – F79 Retardo mental

F80 – F89 Transtornos do desenvolvimento psicológico

F90 – F98 Transtornos de comportamento e emocionais com instalação usualmente


durante a infância e a adolescência

F99 Transtorno mental não especificado

Fonte: Organização Mundial da Saúde.5

4. DSM-5
O DSM-5 (Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos
Mentais) é um guia elaborado pela American Psychiatric
Association (APA) para auxiliar que o diagnóstico seja realizado
precisamente, a fim de guiar o tratamento correto das mais diversas
patologias psiquiátricas. É uma importante ferramenta, tanto para
clínicos, como para estudantes e pesquisadores. Além disso, é uma
ferramenta que pode ser utilizada para facilitar a coleta de
informações estatísticas, com o objetivo de estabelecer taxas de
mortalidade, prevalência e incidência.
Sua primeira edição, o DSM-I, foi lançada em 1952, tendo 5
novas versões após a primeira. No entanto, a primeira versão que
contemplou critérios diagnósticos foi o DSM-III, lançado em 1980.
O manual se limita a descrever as manifestações clínicas dos
transtornos, sem abordar a fisiopatologia ou o tratamento
específico, pois ele não é um tratado, e, sim, um manual
diagnóstico. O DSM-IV utilizava um sistema classificatório
multiaxial, que consiste no registro de 5 tipos de informações
diferentes (vide Quadro 3).

Quadro 3 - Eixos do sistema multiaxial utilizado no DSM-IV


Eixo I Síndrome clínica

Transtorno de personalidade ou transtornos crônicos de


Eixo II
desenvolvimento
Eixo III Condições físicas associadas

Eixo IV Gravidade do estressor psicossocial

Eixo V Funcionamento global no último ano

Fonte: Adaptado de American Psychiatric Association.2

Visto que o sistema multiaxial não era algo necessário para o


diagnóstico, não foi mais proposto pela atualização do manual com
o DSM-5. Esse último aborda mais de 150 doenças, divididos em
22 categorias diferentes, listadas no Quadro 4.

Tabela 4 – Categorias do DSM-5


Transtornos do Neurodesenvolvimento

Transtornos do Espectro da Esquizofrenia e Outros Transtornos Psicóticos

Transtorno Bipolar e Transtornos Relacionados

Transtornos Depressivos

Transtornos de Ansiedade

Transtorno Obsessivo-Compulsivo e Transtornos Relacionados

Transtornos Relacionados a Traumas e Estressores

Transtornos Dissociativos

Transtornos de Sintomas Somáticos e Transtornos Relacionados

Transtornos Alimentares

Transtornos da Eliminação

Transtornos do Sono-Vigília

Disfunções Sexuais

Disforia de Gênero

Transtornos Disruptivos, dos Controles dos Impulsos e da Conduta


Transtornos Relacionados a Substâncias

Transtornos Neurocognitivos

Transtornos da Personalidade

Transtornos Parafílicos e Parafilia

Outros Transtornos Mentais

Transtornos do Movimento Induzidos por Medicamentos e


Outros Efeitos Adversos de Medicamentos

Outras Condições que Podem Ser um Foco da Atenção Clínica

Condições para Estudos Mais Aprofundados

Fonte: elaborado pelos autores.

5. ESTRATÉGIAS PARA
ELABORAÇÃO
DIAGNÓSTICA
O principal caminho para chegar a um diagnóstico psiquiátrico
começa com a coleta de uma história clínica completa, por meio de
curiosidade e respeito pela história do paciente. A entrevista
psiquiátrica deve ser feita com perguntas abertas, sem muita
interferência do entrevistador, sem julgamentos, havendo a livre
expressão psicopatológica do paciente.
O diagnóstico é realizado agrupando certos sinais e sintomas,
objetivando a formação do diagnóstico sindrômico, em que não é
considerado a doença específica, mas patologias com sintomas
afins. Esse tipo de categoria diagnóstica agrupa doenças com sinais
e sintomas em comum, que constituem uma síndrome. Por
exemplo, se em um paciente o que mais chama a atenção na
história clínica são alucinações e/ou delírios, podemos classificá-lo
inicialmente com uma síndrome psicótica. Após essa classificação
inicial, é importante saber o que diferencia, dentro de uma
síndrome, as diferentes doenças que a compõem. Fatores como
tempo e gravidade dos sintomas, prejuízo funcional associado ao
quadro, possibilidade de quadros orgânicos não psiquiátricos ou
outros sintomas associados são, todos esses, alguns elementos
fundamentais da investigação para chegarmos a um diagnóstico.
Nesse ponto, a possibilidade diagnóstica se reduz a um número
limitado de doenças e podemos pensar em diagnóstico diferencial
(ou em hipóteses) de forma cautelosa, razoável e criteriosa a partir
do diagnóstico diferencial com outros transtornos da mesma
síndrome.
A partir desse ponto em que foi realizado o diagnóstico
diferencial com outros transtornos da mesma síndrome, chegamos
ao diagnóstico nosológico. Este consiste na taxonomia de
fenômenos patológicos, ou seja, transtornos e doenças. Assim, o
clínico pode chegar ao diagnóstico nosológico e direcionar melhor
sua conduta terapêutica. Para aprofundamento desse tópico, sugere-
se a leitura do capítulo “Avaliação Psiquiátrica”.

Referências
1. Sadock BJ, Sadock VA, Rui P. Diagnóstico em psiquiatria.
In: Compêndio de psiquiatria: ciência do comportamento e
psiquiatria clínica. 11. ed. Porto Alegre: Artmed; 2017. p.
290-299.
2. American Psychiatric Association. Manual Diagnóstico e
Estatístico de Transtornos Mentais – DSM-5. Porto Alegre:
Artmed; 2014.
3. McGorry P, Van Os J. Redeeming diagnosis in psychiatry:
timing versus specificity. Lancet. 2013; 381(9863): 343-345.
doi:10.1016/S0140-6736(12)61268-9.
4. Dalgalarrondo P. Psicopatologia e Semiologia dos
Transtornos Mentais. 3. ed. Porto Alegre: Artmed; 2019.
5. Organização Mundial da Saúde. CID-10 Classificação
Estatística Internacional de Doenças e Problemas
Relacionados à Saúde. 10a rev. São Paulo: Universidade de
São Paulo; 1997.
6. World Health Organization. ICD-11 – The ICD-11
Classification of Mental and Behavioural Disorders.
Diagnostic Criteria for Research. Geneva: WHO, 2018.
7. Gomes de Matos E, Gomes de Matos TM, Gomes de Matos
GM. A importância e as limitações do uso do DSM-IV na
prática clínica. Rev. Psiquiatr. Rio Gd. Sul [Internet]. 2005
Dec [cited 2020 Aug 24]; 27(3): 312-318.
https://doi.org/10.1590/S0101-81082005000300010.

SIGLAS

• CID-10 Classificação Internacional de Doenças e


Problemas Relacionados à Saúde

• DSM Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos


Mentais

• OMS Organização Mundial de Saúde


1. ENTREVISTA PSIQUIÁTRICA
Na medicina, habilidades são construídas com diferentes finalidades: um
cirurgião desenvolve técnicas para minimizar erros dos procedimentos, o
clínico, quando examina o paciente, procura pistas que possam conduzir à
suspeita diagnóstica. Na psiquiatria não seria diferente. As habilidades para
um bom diagnóstico e, consequentemente, um tratamento preciso, deverão
ser desenvolvidas por meio da entrevista psiquiátrica.
Cada entrevistador terá características individuais de acordo com sua
personalidade, capacidade empática e sensibilidade, mas deve estar sempre
atento às perguntas que formula e que evita, pela decisão de falar ou de
calar. Cada paciente apresentará expectativas e desejos distintos quanto à
consulta psiquiátrica, e a oportunidade de criar vínculos de diferentes
maneiras deve ser sempre revisitada. Por meio da fala, o psiquiatra ou
clínico tem a ferramenta para conhecer aquele que está sofrendo, e assim
poder oferecer ajuda.
De acordo com Dalgalarrondo,1 a necessidade de intervir, estabelecer
limites ou deixar o paciente no fluxo de ideias podem variar:

1. De acordo com paciente, sua personalidade e estado mental.


2. De acordo com o contexto institucional da entrevista.
3. De acordo com os objetivos da entrevista.
4. De acordo com a personalidade do entrevistador.

Deve-se, no entanto, destacar que algumas atitudes do entrevistador não


deveriam ser tomadas, exemplificadas no Quadro 1.

Quadro 1 - Atitudes que devem ser evitadas durante a avaliação psiquiátrica

Evitar fórmulas que possam ter funcionado com outros pacientes.


Posturas rígidas O entrevistador deve ser flexível e se adequar às diferentes
situações.

Atitudes excessivamente Transmitem a sensação de distância e desprezo.


neutras ou frias
Reações exageradamente Uma atitude artificialmente calorosa pode afastar o paciente e criar
emotivas um clima de falsa intimidade.

A função do profissional não é, definitivamente, fazer juízo de


Julgamentos
valor a respeito de comportamentos do paciente.

Responder com Deve ficar claro na entrevista que há limites, contudo, sem se
hostilidade ou agressão exaltar e sem entrar em discussões acirradas com o paciente.

A fala dá o poder do entendimento, mas deve trazer consigo um


Entrevistas conteúdo que possa ser analisado no contexto da entrevista. O
excessivamente prolixas profissional deve ter a habilidade de conduzir a entrevista para os
pontos mais valiosos.

Pode transmitir ao paciente a impressão de que a fala dele é pouco


Fazer muitas anotações
importante.

Fonte: Dalgalarrondo P.1

Pacientes mais organizados, fora de um estado psicótico, podem ser


entrevistados de maneira mais aberta, com permissão para expor suas
angústias de forma espontânea e fluente. Já aqueles mais paranoides,
desorganizados, com altos níveis de ansiedade, devem ter uma entrevista
mais estruturada, com maior intervenção por parte do examinador.
Perguntas mais neutras podem iniciar a entrevista, até que se chegue aos
questionamentos mais “quentes”, principalmente para pacientes inibidos,
tímidos ou pouco colaborativos.
Contudo, mesmo deixando o paciente ter a fala livre na maioria dos
eventos, deve-se ter em mente a estrutura da entrevista e preencher as
lacunas da investigação com o passar da conversa. Isso caracteriza o
modelo semiestruturado da entrevista, que permite flexibilidade na
sequência, mas, ainda assim, mantém um roteiro não explícito, com maior
facilidade de chegar a uma hipótese diagnóstica. Lembre-se ainda que o
diagnóstico não é um fim, mas o início do plano terapêutico e da
continuidade dos cuidados.
A confidencialidade tem papel essencial no relacionamento do médico
com o paciente e deve-se ter o máximo de cuidado para que o conteúdo na
entrevista não seja ouvido. Caso isso não seja possível, o entrevistador pode
tentar evitar alguns assuntos para uma nova entrevista em um setting mais
reservado. No caso de o paciente indicar que quer provocar algum dano
físico a ele ou outras pessoas, respeitando as obrigações éticas, pode-se
quebrar o sigilo a fim de poupar uma vida.
O rapport pode ser definido como as respostas harmoniosas do médico
com o paciente e do paciente com o médico. É importante, então, que o
doente esteja em uma boa sintonia e que sinta que o entrevistador também
esteja, de fato, verdadeiramente interessado na sua história. Tanto respostas
não verbais, como se inclinar em direção ao paciente ou balançar a cabeça,
quanto respostas verbais aumentam o rapport. Exemplo de intervenções
empáticas: “Isso deve ter sido muito difícil para você” ou “posso imaginar o
quanto isso foi horrível”.
Se o clínico não tiver certeza sobre a experiência do paciente, o melhor
a se fazer é não tentar adivinhar, mas encorajá-lo a continuar a falar,
mantendo a objetividade. Identificar-se demais com o paciente, contudo,
pode ser confuso para ele e esgotar o clínico.

Quadro 2 - Intervenções facilitadoras

Frases curtas como “uhum”, “sei”, “estou entendendo” podem dar maior
Reforço
ritmo à entrevista.

Pode-se utilizar as palavras do paciente, de forma calma, para que ele


Reflexão
entenda que está sendo efetivamente escutado.

Resumir o que foi dito até então dá a oportunidade ao paciente de


Resumo
esclarecer ou modificar o entendimento.

Informações precisas sobre o curso da doença podem diminuir os níveis


Reafirmação
de ansiedade e ser precioso para manter o vínculo.

O paciente pode necessitar de um tempo para repensar em algo que foi


Silêncio dito ou para formular melhor um pensamento. Cuidado para não gerar,
no entanto, silêncios que possam atrapalhar o ritmo.

Redirecionamento Pode ser utilizado quando o paciente insiste em um tema já esclarecido


ou uma área não produtiva.
Fonte: elaborado pelos autores.

2. ANAMNESE PSIQUIÁTRICA
A história clínica psiquiátrica ou anamnese psiquiátrica nos fornece os
elementos para a formulação diagnóstica, caracterização da personalidade
do indivíduo, potenciais e fraquezas. Será dada importância aos sintomas
objetivos, vivência subjetiva do paciente, cronologia dos fenômenos,
reações do paciente ao fazer seus relatos.
A critério do entrevistador, sugerimos um roteiro que pode ser utilizado
como base das consultas; contudo, muito cuidado, pois ater-se com excesso
a um cronograma enrijecido nos distrai do que realmente importa: o sujeito.
No modelo de entrevista centrado no paciente temos graus variados de
sofrimento, e a referência da entrevista é o mundo de experiências vividas
por ele. É também uma oportunidade explícita da busca pela aliança
terapêutica (empatia, confiança e disponibilidade para a mudança).

a. Identificação
Perguntar sobre o nome, como gosta de ser chamado, sexo,
escolaridade, naturalidade e procedência, estado civil, grupo étnico,
profissão.

b. Queixa principal
Importante observar quem encaminhou, de quem foi a iniciativa de
buscar ajuda e com que objetivo, por meio de descrição breve. Em alguns
casos, o paciente formula bem a queixa principal, o que pode ajudar ao
entrevistador, mas outras vezes sequer admite que existe efetivamente um
problema.
É proposto que o insight (percepção do doente sobre a doença) não seja
um fenômeno categórico e unidimensional, mas com vários níveis de
intensidade e dimensões diferentes.

c. História da doença atual


Avaliar como a doença começou, se existiram fatores precipitantes ou
agravantes, como a doença evoluiu, qual a gravidade e o impacto da doença
sobre a vida da pessoa, quais terapêuticas utilizadas e negativos pertinentes
(esclarecer se há ideação suicida, histórico de episódio maníaco, sintomas
psicóticos etc.).

d. História clínica e psiquiátrica pregressa


Descrever, em ordem cronológica, as doenças, as cirurgias e os
internamentos. Observar alterações de peso, sono, hábitos intestinais e
problemas menstruais não relacionados à história da doença atual. Levantar
ainda informações sobre substâncias e medicações de que faz uso.
Coletar dados sobre tratamentos prévios, especificando quando
ocorreram, tipo e duração dos sintomas. É importante ficar atento ao
significado dos sentimentos do paciente frente à sua história de doença e o
impacto sobre a sua vida. A rede de apoio com quem conta e as
expectativas da recuperação do paciente.
É importante ainda destacar que, embora muitas vezes os
comportamentos sejam desorganizados e caóticos, o relato escrito deve ser
organizado e coerente, facilitando o estabelecimento de hipóteses
diagnósticas e o planejamento terapêutico adequado. O paciente tem o
direito de ser confuso, ilógico, o profissional ao relatar o caso, não.

e. História pessoal
Pode ser desmembrada da seguinte maneira:
I. História pré-natal e nascimento: informações sobre a gestação, o
parto e as condições do nascimento, incluindo peso, icterícia, distúrbio
metabólico.
II. Infância e desenvolvimento: comportamentos e hábitos da
infância, se tinha bons relacionamentos, hábitos do sono, alimentação,
desenvolvimento neuropsicomotor, linguagem, controle esfincteriano,
desempenho escolar, temperamento, medos.
III. Adolescência: interesses, atividades na escola, relacionamento
com os familiares e os colegas, sexualidade, uso de álcool, sentimentos
relacionados a essa fase, delinquência etc.
IV. Idade adulta: trabalho (o tipo da atividade, interrupções, nível de
satisfação, dificuldades relacionadas às competências), casamento, vida
sexual (experiências sexuais, dificuldades de se relacionar, contracepção,
abortos), situação socioeconômica (moradia, fontes provedoras dos
recursos, planos e projetos futuros).

f. História familiar
Colher informações sobre os pais, os irmãos (especificar a ordem
cronológica do nascimento), os filhos, os avós. Sexo, idade, nível
profissional, problemas psiquiátricos e clínicos na família. Observar história
de adoção, suicídio, violação de leis, padrões sociais, nível de interações
familiares entre cada integrante da família.

g. Personalidade pré-mórbida
Notificar as preocupações excessivas com ordem, limpeza,
pontualidade, o estado de humor habitual, a capacidade de expressar os
sentimentos, a maneira como se expressa habitualmente, o nível de
desconfiança e competitividade, a capacidade para executar planos e
projetos e a maneira como reage quando se sente pressionado. É importante
observar as mudanças de personalidade com a doença.

h. Exame do estado mental


É uma avaliação do paciente durante a cena em que foi avaliado no
momento do exame. Quanto maior a quantidade de detalhes, mais fiel é a
avaliação desse momento. Para aprofundamento desse tópico, sugere-se a
leitura do capítulo “Exame mental”.

i. Exame físico geral e neurológico


Pode ser realizado de forma breve, mas bem realizado, guiado pelas
suspeitas diagnósticas.

j. Súmula psicopatológica
Avaliar a apresentação geral, a atitude, a consciência, a atenção, a
orientação, a linguagem, o pensamento, a sensopercepção, a afetividade, a
inteligência, a memória, a volição, a psicomotricidade, a consciência do Eu
e o insight. Para aprofundamento desse tópico, sugere-se a leitura do
capítulo “Exame mental”.

k. Exames complementares
Devem ser excluídos diagnósticos clínicos que possam justificar
alterações do comportamento. Exames comumente realizados, em geral,
guiados por suspeitas clínicas são os bioquímicos, os citológicos, as
sorologias, análise do líquor cefalorraquidiano, hemograma, eletrólitos,
TSH, dosagem de vitaminas B12, metabólitos, hormônios, exames de
neuroimagem e neurofisiológicos.

l. Formular o diagnóstico e o plano terapêutico


Diante da avaliação no processo da entrevista, seria prudente trazer à
tona quais foram suas impressões da conversa, como se deu a elaboração
das hipóteses diagnósticas e os diagnósticos diferenciais que podem ter
surgido. É ainda uma oportunidade para introduzir a psicoeducação do
indivíduo e da família. Se realizada a escolha por medicações, os riscos e os
benefícios devem ser informados.

3. COMO TERMINAR A ENTREVISTA


Os últimos minutos da consulta psiquiátrica são também muito importantes.
É essencial esclarecer o tempo restante e avisar ao paciente. O último tempo
da entrevista pode ainda trazer informações e o clínico deve fazer a escolha,
com o paciente, de deixar o assunto para um próximo encontro, caso achem
prudente. Se durante a continuidade dos cuidados forem trazidas
informações relevantes, sempre ao final das consultas isso deve ser
questionado. Devem ser sempre esclarecidas as dúvidas do paciente e dos
familiares, deixando claro as propostas terapêuticas.
Com mais experiência, o entrevistador pode, aos poucos, abandonar
paulatinamente os modelos estruturados, centrados na doença, para passar a
ter uma atitude de construção com o paciente de uma prática mais
assimétrica e mais pessoal, com valorização do paciente enquanto sujeito de
sua história, que muito tem a dizer sobre si, sobre sua vida. Essa
valorização da escuta e da maneira como o médico deve se comportar,
como um elemento facilitador da construção dessas histórias, é o fio
condutor da prática profissional na saúde mental.
Deve-se ter em mente que os cuidados são longitudinais e não se deve
ter ansiedade para um diagnóstico nosológico. O exame mental pode mudar
a cada entrevista, e é importante descrever de forma objetiva os dados
colhidos.

4. EXEMPLO DE UMA AVALIAÇÃO


PSIQUIÁTRICA
1. Identificação
Marcos, masculino, 22 anos, solteiro, desempregado (ex-caixa de
supermercado), ensino médio completo, católico, natural e procedente de
Sobral, CE. Acompanhado da genitora.

2. Queixa principal
“Desisti de viver.”

3. História da doença atual


Paciente relata que há 4 meses vem sentindo-se triste, sem interesse por
atividades antes prazerosas, como jogar futebol, sair com amigos e assistir a
séries; refere ainda que se sente indisposto para fazer as mínimas coisas,
como escovar os dentes ou tomar banho. Não consegue dormir bem à noite
(deita-se às 22h e acorda às 2h, sem sono) e nem se alimentar por hiporexia.
São recorrentes os pensamentos de suicídio, mas nega qualquer
planejamento. Diz se sentir impaciente e, por isso, não consegue se
concentrar. Acrescenta ainda ter “esquecimentos” frequentes, como horário
de compromissos ou onde guardou pertences pessoais. Conta que o quadro
foi iniciado após demissão de seu trabalho como caixa em supermercado
(diz que a demissão foi por cortes de gastos na empresa). Sintomas
pioraram no último mês, quando foi despejado de seu apartamento por falta
de pagamento do aluguel. Genitora acresce que paciente está muito
choroso, pouco comunicativo e percebe-o lento ao executar tarefas que
exigem alguma coordenação motora, como algumas atividades domésticas.
Nega alucinações, episódio similar anterior ou quadro maníaco prévio.
4. História clínica e psiquiátrica pregressa
Nega comorbidades clínicas ou outros sintomas. Não faz uso de
medicação (e nunca fez medicação de uso crônico). Fazia uso de etílicos
nos fins de semanas na companhia de amigos, sem repercussão prejudicial
na sua vida. Ultimamente não mais saiu com amigos e, por isso, não está
usando bebidas alcoólicas no último mês. Nega uso de drogas psicoativas.
Nasceu de parto normal sem intercorrências na gestação ou periparto.
Nega doenças graves na primeira infância. Andou aos 11 meses, falou
primeiras palavras com 12 meses e primeiras frases em torno de 24 meses.
Não houve dificuldades percebidas ou relatadas por professores e familiares
quanto à aquisição de conhecimento durante a infância. Nega cirurgias ou
internações.

5. História pessoal e personalidade pré-mórbida


É filho único de pais casados e que vivem juntos até hoje. Nasceu de
gestação planejada e desejada. É procedente de família pobre. Genitora
relata que paciente teve uma infância “normal”: era uma criança com boa
interação com colegas, tanto da vizinhança como na escola. Sempre tirou
boas notas e nunca esteve envolvido em confusões. Gostava de brincar com
amigos na rua e nunca foi de gastar tempo em atividades individuais.
Durante adolescência começou a ter relacionamentos amorosos esporádicos
e aos 17 anos teve sua primeira relação sexual com sua primeira namorada
(relacionamento esse que durou 4 anos – dos 17 aos 21 anos). Os
professores sempre teceram elogios ao paciente até o ensino médio. Apesar
de bom desempenho acadêmico, paciente optou por não seguir carreira
acadêmica e logo aos 18 anos entrou no mercado de trabalho como
embalador em um supermercado. Após um ano como embalador, passou a
ser caixa, e ficou nesta função até o momento em que foi demitido, há 4
meses. Nega ter tido qualquer problema na empresa em que trabalhava.
Teve apenas uma namorada “séria” (como ele mesmo fala) e, após o
término, dizia estar mais envolvido com seus amigos (frequentava mais
festas e bares, assim como tinha algumas parceiras sexuais). No entanto, as
chamadas “farras” restringiam-se aos fins de semana. Genitora diz que
paciente sempre foi muito “alegre” e “brincalhão”, e por isso está ainda
mais preocupada com o estado atual dele.
Há um mês, após sair do seu apartamento, onde morava sozinho desde
os 18 anos, está vivendo novamente com seus pais, o que, segundo o
paciente, é motivo de frustração, apesar de a genitora reiterar que “adoro ter
meu filho morando comigo novamente”. Não há relatos de conflitos entre
os pais e nem entre pais e paciente.

6. História familiar
Afirma que pai e familiares paternos têm diagnóstico e
acompanhamento psiquiátrico devido a quadros depressivos.

7. Exame do estado mental


Encontro o paciente na sala de espera. Estava cabisbaixo, usando boné,
camisa preta e bermuda marrom na altura dos joelhos. Usava sandálias de
dedo, que permitia observar as unhas grandes e sujas. Preciso chamar duas
vezes o seu nome para que sua genitora o cutuque e ele perceba que é a sua
vez de ser atendido. Cumprimento-o com um sorriso e um aperto de mão, e
ele retribui apenas o cumprimento de mãos. Estava um pouco pálido e com
marcas um pouco escuras abaixo dos olhos, um aspecto de cansado.
Dirigimo-nos para o consultório. O paciente, sempre mais lento que eu,
acompanha-me ao lado da genitora.
Após solicitar que me conte sua história, dá um grande suspiro e inicia
seu relato de forma pausada, lenta, e chora algumas vezes (quando fala de
ideações suicidas e quando fala da saída do seu apartamento).
Rotineiramente precisa parar para pensar em alguns detalhes da sua história
que parecem escapar de sua memória. Peço que memorize três palavras, que
as repita imediatamente (o que faz sem grandes dificuldades), e após cinco
minutos consegue evocar apenas duas das três. Solicito que me fale seu
nome, sua idade, onde está e qual a data atual. O paciente responde a todas
as perguntas exceto a data, afirmando não saber. Apesar de lento e com
frequentes pausas, o paciente mantém coesão e lógica interna na sua
narrativa. Fala o quanto sua vida não vale mais a pena e que não pretende
fazer mais nada. Pouco muda sua expressão facial, marcada por um ar
soturno e triste, mesmo quando sua mãe conta histórias engraçadas de sua
infância ou quando vê sua genitora chorando diante do seu relato. Ao
término da entrevista, explico como funciona o tratamento, e o paciente se
mostra disposto a continuar o seguimento, reconhecendo que está doente e
precisa de ajuda.

8. Exame físico e neurológico


Nada digno de nota.

9. Súmula psicopatológica
b. Apresentação geral
Vestes próprias, malcuidado, com higiene precária.
b. Atitude
Cooperativo, inibido.
c. Consciência
Alerta.
d. Atenção
Normovigil e hipotenaz.
e. Orientação
Orientado autopsiquicamente e desorientação (abúlica) temporal.
f. Linguagem
Bradilálico.
g. Pensamento
Curso: bradipsíquico.
Forma: conexo.
Conteúdo: niilista.
Juízo de realidade: não delirante.
h. Sensopercepção
Aparentemente sem alterações.
i. Afetividade
Humor: hipotímico.
Afeto: hipomodulado.
j. Inteligência
Adequada para a escolaridade.
k. Memória
Imediata: preservada.
Recente: amnésia por desatenção (?).
Remota: preservada.
l. Volição
Hipobúlico.
m. Psicomotricidade
Bradicinético.
n. Consciência do Eu
Menos-valia.
o. Insight
Presente.

10. Exames complementares


Sem exames complementares.

11. Diagnóstico sindrômico


Síndrome depressiva.

12. Diagnóstico nosológico e diferenciais


a. Depressão maior.
b. Transtorno bipolar episódio atual depressivo? (diagnóstico
diferencial).
c. Depressão induzida por hipotireoidismo? (diagnóstico
diferencial).

Referências
1. Dalgalarrondo P. Psicopatologia e Semiologia dos Transtornos Mentais. 3. ed. Porto Alegre:
Artmed; 2019.
2. Zuardi AW, Loureiro SR. Semiologia psiquiátrica. Medicina (Ribeirao Preto Online) 1996 mar.;
29(1): 44-53.
3. Pereira TC. Roteiros da entrevista clínico-psiquiátrica – diretrizes teórico-metodológicas: “a
rotina estabelecida pela tradição e pelos costumes”. Tubarão 2010 dez.; 10(3): 683-704.
4. Kaplan HI, Sadock BJ. Compêndio de psiquiatria. Porto Alegre: Artmed; 2017.
5. Nordgaard J, Sass LA, Parnas J. The psychiatric interview: validity, structure, and subjectivity.
Eur Arch Psychiatry Clin Neurosci (2013) 263:353–364.
6. Strain J, Shenoy A. The Psychiatric Interview. The Journal of Clinical Psychiatry 2014;
75(e959). 10.4088/JCP.bk09171.
O exame mental (EM), também chamado de exame do estado mental,
exame psíquico, exame psicopatológico ou exame psiquiátrico, seria o
equivalente, na psiquiatria, ao exame físico da clínica geral. O EM é um
procedimento semiológico complexo que exige apropriado treinamento
prático e conhecimento teórico, embasando-se em um campo do
conhecimento denominado psicopatologia. O objetivo deste capítulo é
explanar conceitos básicos necessários para a realização do EM e abordar
os aspectos psicopatológicos.
Apesar de, didaticamente, o exame mental ser posicionado após a
história clínica, ele se inicia ao primeiro contato com o paciente (antes
mesmo de se obterem dados da identificação) e é realizado durante toda a
entrevista, devendo ser feito de maneira cuidadosa e minuciosa, com uma
escuta paciente e atenta aos dados da observação direta, como ocorrências
fisiológicas (rubor facial, tremor, sudorese), gestos, comportamentos e sons,
entre outros.
No momento da entrevista psiquiátrica, tudo o que é dito pelo paciente
deve ser incluído na anamnese, já o que é visto pelo examinador deverá ser
descrito no exame mental. Dessa forma, expressões como “o paciente
refere” ou “o paciente relata” devem ser inseridas na história clínica, ao
invés do EM. No exame psicopatológico, serão descritas as funções mentais
do paciente, estando estas alteradas ou não. Além disso, é interessante
descrever em que condições se realizou o exame, ou seja, se foi na casa do
paciente, no ambulatório ou na enfermaria e se havia algum acompanhante
com ele.
É importante ressaltar que a sintomatologia psiquiátrica pode ser
intermitente, ou seja, pode mudar de um momento para outro, constituindo
então um novo exame psíquico. Nesses casos, um exame mental isolado
pode nos informar muito pouco. O examinador pode lançar mão, nesses
casos, de tornar o EM mais amplo, realizando mais de um exame, com
intervalos de horas ou dias entre um e outro.
De maneira geral, a abordagem aos sintomas psíquicos respeita uma
divisão da vida psíquica total em várias funções psíquicas elementares
individuais. Essa divisão do psiquismo em diferentes faculdades
(consciência, afetividade, orientação, atenção etc.) é um recurso artificial
com o objetivo de facilitar a descrição do EM. Fazer essa divisão é uma
prática de uso corrente no dia a dia, podendo-se, inclusive, acrescentar às
anotações do EM uma súmula psicopatológica. Os componentes do exame
mental podem ser melhor visualizados no quadro a seguir e serão discutidos
um a um no decorrer do capítulo. Com relação à súmula psicopatológica,
ela será mais detalhada ao final deste capítulo.

Quadro 1 - Componentes do exame mental

1. Apresentação 5. Orientação 9. Pensamento 13. Volição

2. Atitude 6. Memória 10. Linguagem 14. Psicomotricidade

3. Consciência 7. Sensopercepção 11. Juízo de realidade 15. Consciência do eu

4. Atenção 8. Inteligência 12. Afetividade 16. Insight

Fonte: elaborado pelas autoras.

1. APRESENTAÇÃO
Diz respeito à aparência física do paciente. De maneira geral, a aparência é
a primeira função psíquica que o examinador analisa, e o seu exame é um
recurso importante para o diagnóstico e para conhecer o indivíduo como
pessoa. Deve-se descrever seu aspecto geral, que é expresso pelo corpo e
pela postura corporal, pelas vestes, pelos adornos (chapéu, óculos, joias
etc.), pela higiene (incluindo cabelo, dentes, unhas e barba) e marcas
corporais (como cicatrizes, tatuagens e queimaduras).
A aparência de um paciente, em geral, pode estar bem cuidada ou
desleixada. Nesse caso, pode apresentar a higiene corporal prejudicada,
roupas sujas ou rasgadas, mau odor, cabelos despenteados e bastante
compridos, barba por fazer, prejuízo da higiene oral com dentes em mau
estado de conservação ou até mesmo ausentes, unhas sujas e compridas.
Outra forma de classificação seria: aparência adequada, bizarra ou
exibicionista. Uma aparência bizarra (ou excêntrica ou extravagante) seria
destoante do usual daquele ambiente ou cultura em que o indivíduo está
inserido. Quando um paciente tem um aumento na libido ou um
comportamento sedutor, pode usar roupas muito curtas ou decotadas ou
expor excessivamente partes do seu corpo, sendo caracterizada uma
aparência exibicionista.

2. ATITUDE
A atitude avalia de que maneira o paciente se porta diante do examinador.
Alguns pacientes vão se apresentar amistosos e cooperativos, outros vão se
mostrar mais desconfiados (suspicazes), hostis ou indiferentes. É
importante ressaltar que a atitude do paciente com relação ao examinador
pode variar ao longo da entrevista. No quadro a seguir são descritos
exemplos de atitudes que o paciente pode manifestar durante uma
entrevista.

Quadro 2 - Exemplo de atitudes

Atitudes do Paciente Características

Comportamento caricatural, trata o examinador por “vossa


Amaneirada
excelência”, p. ex.

Arrogante Age como alguém superior, ironiza e critica constantemente.

Aparenta desconfiança, medo. Normalmente associado a um


Desconfiada ou suspicaz quadro delirante. P. ex.: “o senhor é mesmo médico?”; “existem
câmeras aqui, nos filmando?”.

Contato extremamente fácil, próximo fisicamente, não se sente


constrangido ao falar de sua vida sexual, podendo violar normas
Desinibida
sociais e tornar-se inconveniente. Por exemplo: pode assediar
sexualmente o entrevistador.

Tenta ocultar sintomas ou fatos de sua vida com algum intuito (p.
Dissimuladora
ex.: receber alta hospitalar).

Esquiva Não deseja o contato social e foge dele.

Evasiva Evita responder a perguntas, dá respostas superficiais, genéricas.


Atitudes do Paciente Características

Deseja intensamente o contato social, trata o examinador como se


Expansiva
fosse íntimo dele.

Gliscroide Paciente é grudento; é difícil encerrar a conversa.

Provoca, irrita, ofende, ameaça ou agride fisicamente o


Hostil
examinador.

Não parece estar na entrevista, o paciente não se sente incomodado


Indiferente
pela entrevista ou pela presença do examinador.

Inibida ou contida Não encara o examinador, demonstra estar pouco à vontade.

Faz comentários críticos constantemente, mas não revela


Irônica
superioridade como o arrogante.

Jocosa Faz piadas, brinca com o examinador ou terceiros.

Queixa-se continuamente de seus problemas, demonstra


Lamuriosa ou queixosa
autopiedade.

Tenta obrigar o entrevistador a fazer o que ele quer, com


Manipuladora
chantagens, indiretas, ameaças.

Não colaborativa Não colabora com solicitações básicas na entrevista.

Oposicionista ou Recusa-se a participar da entrevista, se opõe a tudo o que


negativista solicitam.

Reação de último Após intenso negativismo, quando o examinador já está desistindo


momento do contato, o paciente começa a cooperar com a entrevista.

Age como uma criança, brinca (pode chamar o examinador de


Pueril
“tio”).

Discute ou briga com o entrevistador por se sentir ofendido ou


Querelante
prejudicado.
Atitudes do Paciente Características

Exige, de forma insistente, aquilo que julga ser seu direito, mesmo
Reivindicativa
se inadequado.

Elogia e tenta agradar o examinador, ou tenta despertar o interesse


Sedutora
sexual deste.

Tenta parecer que tem um sintoma ou problema que realmente não


Simuladora
tem.

Atende passiva e imediatamente, sem questionar, a todas as


Submissa
solicitações do entrevistador.

Fonte: síntese elaborada pelas autoras.

Algumas dessas atitudes podem aparecer de maneira mais corriqueira


em alguns transtornos mentais. Por exemplo, em episódios de mania é
comum o paciente apresentar uma atitude desinibida, expansiva ou jocosa.
Ou, ainda, pode apresentar-se com atitude irônica, arrogante ou hostil. Já
em quadros depressivos, muitas vezes o paciente mostra-se com atitude
lamuriosa, no entanto, pode demonstrar-se desinteressando, tendo então,
uma atitude indiferente. Em indivíduos com deficiência intelectual,
costumeiramente o paciente tem uma atitude pueril. Por fim, na
esquizofrenia, por causa do quadro delirante, o paciente pode ter uma
atitude suspicaz.

3. CONSCIÊNCIA
Antes de discutir as alterações da consciência, é necessário explicar alguns
conceitos. A palavra consciência é derivada do latim “conscio” e significa
compartilhar o conhecimento daquilo com mais alguém ou deter a
sabedoria. Para a psiquiatria, trata-se de uma função mental subjetiva e
seria o estado psíquico que nos possibilita a percepção do ambiente
(realidade), do mundo interior (self) e da interação entre os dois.
Durante uma entrevista, quando avaliamos o nível de consciência, em
geral encontramos o estado vigil, que compõe um aspecto quantitativo da
consciência. Estar vigil significa estar alerta, desperto, com o sensório
claro, e representa um espectro da ativação da consciência em dois polos
opostos, o estado lúcido, em que o indivíduo está completamente alerta,
funcional, e em oposição a ele estão o sono e o coma.
Já o self, que também é chamado de consciência do eu, é outro aspecto
central da consciência e será melhor abordado mais adiante.

3.1. Alteração fisiológica da consciência


Um indivíduo alerta, ou seja, nível normal de consciência, apresenta
pequenas alterações na intensidade de sua consciência, que vão ocorrendo
ao longo do dia e se intensificam quando o indivíduo está fatigado ou
sonolento, havendo certa diminuição no nível de consciência.
O sono seria uma situação em que um indivíduo entra num estado de
inconsciência, podendo ser despertada por meio de estímulos sensoriais. Vai
havendo então uma diminuição progressiva da atividade cerebral até se
atingir o estado de sono profundo, o qual representa um estado fisiológico
de abolição da consciência. Uma vez atingido o sono profundo, nós
retornamos a um estado de atividade cerebral semelhante à vigília, porém,
com atonia muscular completa, à exceção da musculatura respiratória e
ocular – o movimento dos olhos dessa fase recebe o nome de REM (rapid
eye movement). Nessa fase, ocorre o sonho, que é definido como um estado
de consciência dentro do sono, no qual há uma riqueza de vivências visuais
e o relaxamento do processo lógico do raciocínio. Às vezes, ocorre a
manutenção do pensamento racional e a pessoa tem consciência de que está
sonhando, caracterizando, assim, o sonho lúcido.

3.2. Principais alterações quantitativas da consciência

• Rebaixamento do Nível de Consciência (RNC): pode ser definido


como uma perda gradual da clareza da consciência, no qual o
indivíduo encontra-se num nível de consciência entre a lucidez e o
coma. O paciente com RNC tem uma percepção vaga e confusa da
realidade, havendo um aumento no limiar na percepção de objetos
externos e dificuldade na introspecção. No RNC ocorre uma
diminuição cognitiva global, afetando algumas funções psíquicas,
como atenção, orientação alopsíquica, pensamento, inteligência,
sensopercepção, memória, afeto e psicomotricidade.
Não há um padrão na literatura sobre os termos utilizados na
classificação do RNC. São utilizadas expressões como obnubilação,
torpor, confusão mental, estado onírico, estado comatoso, entre
várias outras. Alguns autores sugerem a divisão desses estados de
nível de consciência em: obnubilação simples e obnubilação
oniroide.

• Obnubilação simples: é quando há RNC sem sintomas psicóticos.


O paciente apresenta sonolência intensa, hipoprosexia, desorientação
alopsíquica, pensamento empobrecido, dificuldades de compreensão
e de raciocínio, diminuição da sensopercepção, apatia e inibição
psicomotora (podendo chegar ao estupor).
• Obnubilação oniroide: é quando há a presença de sintomas
psicóticos, principalmente pseudoalucinações visuais, ilusões e
ideias deliroides (na maior parte das vezes, de cunho persecutório).
Além disso, pode haver agitação psicomotora, perplexidade e
exaltação afetiva (na maioria das vezes, ansiedade). O exemplo
prático de obnubilação oniroide mais comum é o delirium tremens,
um quadro de abstinência alcoólica grave, em que o paciente se
encontra agitado, desorientado alopsiquicamente e com prejuízo da
capacidade de identificar corretamente as pessoas à sua volta.
Ademais, os pacientes com delirium tremens também podem
apresentar zoopsias (tipo de alucinação em que o paciente vê ou
sente pequenos animais ou insetos rastejando no seu corpo).
• Coma: caracterizador por ausência da consciência. O sujeito não
apresenta abertura ocular espontânea, com ausência da motricidade
voluntária e da sensibilidade. Além disso, o paciente não desperta a
estímulos dolorosos intensos.

3.3. Alterações qualitativas patológicas


São alterações parciais do campo da consciência que envolvem algum grau
de RNC, mesmo que mínimo, e alterações na consciência do eu.
• Dissociação da consciência: refere-se à fragmentação do campo da
consciência, havendo perda da comunicação entre as funções
psíquicas elementares, que comprometem a unidade normal da
mente humana. Tem grande relação com quadros histéricos e
frequentemente é associado a um evento estressor.
• Estreitamento da consciência: é característico dos estados
crepusculares. Comum na epilepsia parcial complexa, na intoxicação
alcoólica patológica, no estado hipnótico, entre outros.

3.4. O exame da consciência

• Expressão fisionômica: quando o paciente apresenta fácies que


denotam sonolência ou fadiga, isso pode levar à suspeita de que a
consciência está rebaixada. Além disso, o sujeito pode ainda
apresentar-se com uma fisionomia de perplexidade, devido a um
prejuízo na apreensão do ambiente.

• Alienação do mundo externo: quando um paciente parece estar


alheio ao mundo externo, pode sugerir tanto um RNC quanto um
estreitamento da consciência. Essa condição é caracterizada por um
desinteresse ou dificuldade de apreensão do ambiente; ou ainda por
um comportamento inadequado sem levar a realidade em
consideração.
• Outras funções psíquicas: alterações da atenção, da orientação, da
sensopercepção, da memória e da habilidade de reflexão podem
indicar uma perturbação na consciência.

4. ATENÇÃO
A atenção é uma função mental a qual apresenta a capacidade de concentrar
a atividade mental sobre um objeto em particular. Pode ser conceituada
como a direção da consciência, ou seja, o estado de concentração da
atividade psíquica sobre determinado objeto. A atenção nos permite
selecionar, filtrar e organizar informações. Se não houvesse uma seleção, a
quantidade de informações externas e internas que chegaria à mente seria
muito grande, de modo que deixaria a atividade psíquica inviável.
A atenção interfere em outras funções mentais, como a memória, sendo
de suma importância tanto para fixar informações novas quanto para evocar
antigas.
A atenção tem forte associação com a consciência. Quando não está
alerta, a atenção fica prejudicada. Contudo, mesmo com o nível de
consciência normal, pode existir alteração da atenção. Além disso, a
atenção auxilia a consciência, aumentando o seu rendimento e fazendo com
que os conteúdos mentais sejam processados de maneira mais competente,
além de ser imprescindível para que algo se torne consciente.

4.1. Principais funções da atenção

• Atenção voluntária (ou ativa): consiste num esforço intencional


por parte da pessoa na direção do objeto.
• Atenção espontânea (ou passiva): consiste em reagir de maneira
automática, não consciente e não intencional a estímulos recebidos
pelo indivíduo. Isso explica o motivo de estímulos mais intensos,
repentinos e inesperados despertarem mais a nossa atenção.

• Tenacidade e mobilidade da atenção: a tenacidade (capacidade de


se manter concentrado) é a propriedade de sustentar a atenção em
determinada direção, por um determinado tempo. Já a mobilidade
(ou vigilância) possibilita que a atenção se desloque de um objeto
para outro, a qualquer momento.

4.2. Principais alterações da atenção


• Distração ou rigidez da atenção: não denota falta de atenção, mas
sim uma superconcentração ativa da atenção sobre determinados
conteúdos ou objetos, com inibição concomitante de outros fatos. É
o caso, por exemplo, de um pesquisador que está muito focado no
seu trabalho, mas não percebe que está usando os sapatos trocados.
Há, nessa situação, uma hipertenacidade e uma hipovigilância.

• Distraibilidade ou labilidade da atenção: é o contrário da


distração. O indivíduo apresenta dificuldade de se manter
concentrado, tendo aumento na mobilidade da atenção em direção a
estímulos sem importância. Isto é, há hipotenacidade e
hipervigilância.
• Hipoprosexia: é a diminuição global da atenção, em que há prejuízo
na capacidade de concentração, com fatigabilidade aumentada, o que
dificulta a percepção dos estímulos ambientais e a compreensão dos
fatos. Ademais, existe um prejuízo crescente em todas as funções
mentais complexas, como o pensar, o raciocinar e a integração de
informações. Um indivíduo pode estar hipoprosexo, sem estar,
necessariamente, doente, como nos estados de sonolência, fadiga e
tédio. Já nos transtornos mentais, a hipoproxesia é observada na
esquizofrenia, na depressão ou na demência. Além disso, também
pode estar associada a RNC ou a quadros de delirium.
• Aprosexia: seria uma completa abolição da capacidade de atenção.
Sono profundo, rebaixamento da consciência muito intenso, coma,
demência avançada e alguns casos de esquizofrenia ou depressão são
situações em que podemos observar a aproxesia.

• Hiperprosexia: consiste em um estado da atenção exacerbada, no


qual há uma forte tendência a deter-se indefinidamente sobre certos
objetos com surpreendente infatigabilidade. É característica, por
exemplo, das intoxicações por psicoestimulantes ou estados de
vivências obsessivas.
5. ORIENTAÇÃO
A orientação envolve várias funções psíquicas, como memória, atenção,
percepção, afeto, pensamento e vivências temporoespaciais. De maneira
geral, podemos definir a orientação como a capacidade de situar o sujeito
em relação ao ambiente e a si mesmo. Pode ser dividida em orientação
autopsíquica, que avalia o indivíduo em relação a si (saber seu nome, sua
idade, profissão, com quem mora etc.) e alopsíquica, que tem relação com
o mundo externo, isto é, quanto ao espaço, ao tempo e à situação. Essa
última consiste em saber o motivo de se estar em um lugar e qual tipo de
relação a pessoa mantém com outros indivíduos ali.

5.1. Alterações da orientação


Os componentes da orientação nem sempre são afetados uniformimente.
Pode haver distúrbio da orientação autopsíquica sem que haja alteração da
alopsíquica e vice-versa. Na orientação alopsíquica, as alterações podem ser
desiguais, ou seja, o indivíduo pode saber onde está (orientação espacial
preservada) e não saber que dia é hoje (orientação temporal alterada).
A alteração da orientação pode ser parcial ou total. Se o paciente sabe o
mês e o ano, mas não sabe o dia da semana, está parcialmente desorientado
em relação ao tempo. De forma geral, a orientação temporal é mais comum
e altera-se mais rapidamente que a espacial, uma vez que é mais frágil e
necessita ser constantemente renovada. Na prática, observamos que a
desorientação alopsíquica está associada ao comprometimento de outras
funções psíquicas.

6. MEMÓRIA
A memória pode ser entendida como sistemas de armazenamento múltiplos,
sendo essencialmente imprescindível para o funcionamento cognitivo geral
e demais funções cerebrais superiores. É uma função cognitiva
caracterizada por representações mentais duradouras, adquiridas por meio
de aprendizados, que posteriormente exercem influência sobre o
pensamento, as vivências e os comportamentos do indivíduo. A capacidade
específica de memorizar relaciona-se com vários fatores, entre eles o nível
de consciência, a atenção e o estado emocional (interesse afetivo) pelo
assunto. Também são importantes para o processo de memorização os
contextos, como lugar, momento, companhias, tipo de atividade, fase da
vida etc.
O processo mnêmico pode ser resumido em três etapas: a capacidade de
fixação, conservação e evocação. A primeira consiste na capacidade de
trazer material novo ao reservatório da memória. A segunda se refere à
retenção dos elementos fixados, capaz de vir à consciência em ocasiões
apropriadas. O processo de retenção da memória é mais efetivo quando há
repetição do seu conteúdo e maior associação das informações conservadas
a outros elementos já existentes na memória. A terceira diz respeito a, em
dado momento, trazer conteúdos já armazenados na memória à consciência.
As três áreas estão sujeitas a transtornos.
As memórias podem ser classificadas da seguinte maneira: memória
imediata (ou de curtíssimo prazo), memória de curto prazo (ou recente) e
memória de longo prazo (ou remota), as quais abordaremos separadamente
a seguir.
• Memória imediata: tem a duração de segundos a pouquíssimos
minutos. É muito frágil e possui uma capacidade limitada. Está mais
relacionada à atenção do que à memória.
• Memória de curto prazo: dura de minutos a poucas horas e tem
uma capacidade de armazenamento limitada. Memória de trabalho
(ou operacional): é o armazenamento informações, por período de
tempo limitado, para a prática de tarefas cognitivas. Tem a função de
gerenciar informações em tempo real, guardando elementos
pertinentes para a execução da tarefa por um período de alguns
segundos ou minutos. Um exemplo disso é quando conseguimos
repetir, quase que de imediato, uma sequência de dígitos, como um
número de telefone.

• Memória de longo prazo: é definida como o armazenamento


permanente de informações. Elementos que foram fixados há poucos
minutos poderão ser evocados por bastante tempo, como anos, ou
pelo resto da vida.
As memórias de longo prazo dividem-se em explícitas, ou declarativas,
e implícitas, ou não declarativas. Estas estão mais relacionadas ao
aprendizado motor e menos relacionadas ao processamento consciente de
informações. Já as declarativas têm implicações diretas nas habilidades
cognitivas, que são caracteristicamente humanas. Podem ser classificadas
em:
• Memória episódica – refere-se ao sistema mnêmico que
provavelmente é específico da espécie humana. Está relacionada a
eventos autobiográficos, a vivências do indivíduo que estão
vinculadas a determinado tempo e lugar. Por exemplo: “Esse fim de
semana fui à praia com meu namorado”. Esse tipo de memória nos
permite reviver experiências prévias de maneira consciente e
autorreflexiva. Em parte, isso depende da memória semântica, com a
qual mantém estreita relação.

• Memória semântica – é representada pelo conhecimento geral de


mundo. Refere-se a conhecimentos factuais, comuns a outras
pessoas. Por exemplo: a capital do Ceará é Fortaleza; a
Independência do Brasil ocorreu em 7 de setembro de 1822; “yes”
significa “sim” em inglês; 2+2=4, entre outros.

6.1. Alterações quantitativas da memória

• Amnésia/Hipomnésia: a memória pode estar alterada, havendo


diminuição do número de lembranças evocadas (hipomnésia) ou
mesmo abolição (amnésia).
Amnésia anterógrada: ocorre devido a um prejuízo da fixação da
memória. Há então amnésia a fatos transcorridos depois da causa
determinante do transtorno.
O transtorno amnéstico, os quadros demenciais, o delirium (em
função do prejuízo da atenção), a ansiedade e a mania (secundária
à diminuição na capacidade de concentração) são situações em
que podemos nos deparar com quadro de amnésia/hipomnésia.
Amnésia retrógrada: refere-se à perda de memória dos fatos
ocorridos antes da lesão cerebral. Há uma alteração na capacidade
de evocação, com prejuízo na recuperação de memórias de longo
prazo, as quais já haviam sido adequadamente fixadas. É
comumente encontrada em quadros dissociativos e ainda em
traumatismos cranioencefálicos, na intoxicação por monóxido de
carbono e em lesões talâmicas.
Amnésia transitória: é a alteração na capacidade de fixar
acontecimentos recentes. Os pacientes continuam conseguindo
evocar memórias, porém apresentam transtornos da orientação
temporoespacial, fabulações e perseverações.
Amnésia lacunar: ocorre uma falha na memória, abrangendo
especificamente determinado período de tempo, com limites
relativamente precisos, durante o qual houve um prejuízo na
capacidade de fixação. Observa-se geralmente nos casos de
traumatismo cranioencefálico. Também é encontrada na epilepsia,
especialmente nas crises tônico-clônicas e nas ausências.
• Hipermnésia: ocorre quando lembranças casuais são evocadas com
mais vivacidade e exatidão que comumente. O que ocorre é um
aumento da capacidade de evocação. Semelhante à
hipomnésia/amnésia, pode ser subdividida em anterógrada
(normalmente restrita a uma aptidão específica, como decorar
sequências numéricas, por exemplo), retrógrada (existe um excesso
de evocações num curto período de tempo) e lacunar. Também
podemos citar a hipermnésia seletiva, que evoca apenas memórias
de eventos marcantes ao indivíduo (pode ocorrer em casos de
transtorno do estresse pós-traumático ou na depressão).

6.2. Alterações qualitativas da memória

• Ilusões mnêmicas: ocorre a distorção não intencional de uma


memória verdadeira. São encontradas na esquizofrenia e no
delirium. Em muitas situações, os pacientes nos dão informações
fantásticas, por exemplo, que viveram milhares de anos ou tiveram
milhares de filhos.
• Alucinações mnêmicas: existe a lembrança de algo que não ocorreu
de fato. O sujeito não possui crítica e tem a recordação como parte
real do seu passado, que muitas vezes faz parte de uma
sistematização delirante. Ocorrem principalmente na esquizofrenia,
transtorno delirante e outras psicoses.

• Confabulações (ou fabulações): são memórias falsas que ocorrem


no contexto de uma síndrome amnéstica anterógrada, preenchendo
lacunas de continuidade, causadas pelo prejuízo na fixação.
Observa-se com frequência em pacientes com esquizofrenia
paranoide, com transtornos orgânicos e em etilistas com síndrome de
Korsakoff. São produções de relatos, narrativas e ações que são
involuntariamente incongruentes com a história passada do
indivíduo, com sua situação presente e futura.
• Déjà-vu (já visto) e jamais vu (nunca visto): no primeiro, o
indivíduo tem a impressão de já ter vivenciado antes uma situação
inteiramente nova. Já no jamais vu ocorre justamente o contrário: o
indivíduo, diante de uma situação vivenciada no passado, não
apresenta uma sensação de familiaridade. As duas condições podem
acontecer em pessoas normais, na epilepsia do lobo temporal, na
esquizofrenia e em quadros de ansiedade.

6.3. Exame da memória


Enquanto se faz a entrevista e a coleta dos dados da anamnese, já é possível
se estimar razoavelmente a sua memória, especialmente a habilidade de
evocação. Verifica-se se o paciente é capaz de informar detalhes com
precisão sobre os fatos narrados e de organizá-los cronologicamente. No
quadro a seguir estão reunidas algumas formas de avaliação da memória.

Quadro 3 - Tipos de memória e formas de avaliação

Tipo de memória Forma de avaliar durante o exame mental


Tipo de memória Forma de avaliar durante o exame mental

Falar 3 palavras ou números e pedir para o paciente repetir


Imediata
imediatamente após ouvi-las.

Pedir para que o paciente repita essas palavras ou números,


Recente
após algum período de tempo (aprox. 5 minutos).

Remota Perguntas sobre fatos ocorridos no passado.

Fonte: Sanches et al.6

7. SENSOPERCEPÇÃO
Para entender melhor o que é a sensopercepção, seria interessante definir
primeiro o que é sensação e o que é percepção. A sensação é um fenômeno
passivo causado por estímulos externos ou internos, que podem ser físicos,
químicos ou biológicos variados, os quais produzem alterações nos órgãos
receptores, estimulando-os. Toda sensação é integrada a informações
provenientes de outras vias sensitivas e de conhecimentos prévios do
indivíduo, que surge no campo da consciência na forma de uma imagem
perceptiva, ativamente construída. Já a percepção é um fenômeno ativo,
psíquico, central e subjetivo. É um acontecimento consciente, que decorre
da integração dos estímulos sensoriais parciais e de sua associação às
representações. Está ligada à identificação, ao reconhecimento e à
discriminação dos objetos. É a interpretação das sensações. Assim, é
possível dizer que a sensopercepção envolve a capacidade de sentir e
reconhecer as informações captadas do meio interno e externo, sendo,
portanto, uma ferramenta indispensável para a elaboração daquilo que
considera ser a realidade.
Com relação às representações (ou imagens representativas), elas são
impressões sensoperceptivas extraídas da memória, que tomam forma no
campo da consciência, reapresentando um conteúdo do passado que vai ser
novamente visualizado, mas dessa vez na mente. Nesse processo de
revivescência, as imagens representativas se assemelham muito às imagens
perceptivas (reais), visto que vão ativar novamente as mesmas regiões
cerebrais, responsáveis pelo processamento sensorial. No entanto,
fenomenologicamente, elas diferem em alguns pontos essenciais, como
pode ser visto na Quadro 4.

Quadro 4 - Comparação entre percepção e representação

Características Imagem Perceptiva Imagem Representativa

Muito nítida, contornos Pouco nítida e com


Nitidez
muito precisos. imagens borradas.

A imagem é viva, ocupa Vivacidade menos intensa e


Corporeidade
espaço, tem luz, cor e brilho. pouco marcante.

Aparece e desaparece
Estabilidade Pouco mutável no tempo.
com facilidade.

Representação
Percebida no espaço externo. Percebida no espaço interno.
no espaço

Pode sofrer alterações a


Influência
Não é passível de influência. depender da vontade do
voluntária
indivíduo.

Elementos insuficientes,
Imagem detalhada e
Completitude imagem incompleta e com
completa.
poucos detalhes.

Fonte: Marques RC, Intaraminense LL, Braga C de M.9

7.1. Principais alterações da sensopercepção

• Intensidade das sensações: são alterações quantitativas das


sensações, as quais podem estar aumentadas (hiperestesia) ou
diminuídas (hipoestesia). Já a anestesia corresponde a uma abolição
da sensibilidade. Por sua vez, a hiperalgesia seria o aumento na
sensação dolorosa, enquanto a analgesia seria a ausência.
• Agnosia: distúrbio na interpretação de estímulos sensoriais (visuais,
auditivos ou táteis), na sem que haja alteração dos órgãos sensoriais.
Isto é, as sensações permanecem ocorrendo, mas o indivíduo não
consegue interpretá-las de maneira adequada. Há, então, um
comprometimento específico da percepção. Por exemplo, na agnosia
visual, o paciente consegue dizer a cor e a forma de uma cadeira,
mas não consegue identificá-la. Esse distúrbio está relacionado a
lesões em áreas associativas corticais.

• Alucinação negativa: ocorre uma aparente ausência de registro


sensorial de determinado objeto, mesmo este estando presente no
campo sensorial do paciente. Por exemplo, apesar de ter a visão
íntegra, um paciente que não consegue ver um animal diante de seus
olhos. Essa situação está relacionada a um mecanismo de origem
psicogênica, presente em quadros conversivos.
• Ilusão: é uma percepção alterada de um objeto real e não sofre
influência voluntária. Ocorrem, principalmente, em algumas
situações: rebaixamento do nível de consciência; fadiga ou
desatenção; estados afetivos intensos, como momentos de ansiedade
intensa ou humor alterado (nesse caso, conhecidas como ilusões
catatímicas, influenciadas pelo afeto). Por exemplo, um paciente, ao
visualizar um enfermeiro, relata estar vendo um urso.
• Pseudoalucinação: não é considerada uma alucinação verdadeira
por não apresentar as características de uma imagem perceptiva
(real). No entanto, há plena convicção quanto à realidade do
fenômeno. Em geral, as pseudoalucinações são visuais ou auditivas.
As pseudoalucinações parecem ser especialmente frequentes na
esquizofrenia, mas podem ocorrer também nos quadros em que há
alteração do estado da consciência, como no delirium
(rebaixamento) e nos estados crepusculares histéricos e epilépticos
(estreitamento).
• Alucinose: tem as características de uma alteração sensoperceptiva
verdadeira, porém, o paciente tem crítica sobre esse fenômeno,
considerando o evento estranho ou anormal. Ocorre com maior
frequência em quadros psico-orgânicos; sendo também chamada de
alucinação neurológica. Também ocorre frequentemente em
pacientes com intoxicações por álcool e substâncias alucinógenas. A
alucinose alcoólica costuma ocorrer em indivíduos com dependência
crônica de álcool; geralmente o paciente encontra-se alerta, e, muitas
vezes, apresenta crítica em relação à vivência alucinatória,
reconhecendo seu aspecto patológico. O indivíduo pode estar
embriagado ou sóbrio.
• Alucinação: pode ser definida como a percepção de um objeto sem
um estímulo sensorial correspondente. Apresenta as mesmas
características da imagem perceptiva (real): nitidez, corporeidade,
estabilidade, ininfluenciabilidade, extrojeção (imagem fora da
mente) e completitude. O paciente crê veementemente que a
alucinação é um fenômeno verdadeiro. Na prática clínica, um forte
indicativo de alucinações verdadeiras é o comportamento e a
interação com o objeto alucinado. O paciente pode tentar se
esconder, dialogar, tentar retirar algo que sente em sua pele (atitude
alucinatória).
Alucinações visuais: podem ser do tipo elementar (simples),
quando o paciente enxerga cores, pontos, chamas, sombras etc.,
sendo então denominadas de fotopsias. Podem ser também
complexas (elaboradas): formas, objetos, indivíduos, cenas
paradas ou em movimento.
Alucinações auditivas: existem as simples, que ocorrem em forma
de barulhos, zumbidos, cochichos, e as complexas, representadas
pelas alucinações audioverbais, que são as mais comuns na prática
clínica. O paciente relata escutar vozes que podem comentar suas
ações, conversar entre si ou dialogar com o paciente. As vozes
podem influenciar o comportamento do paciente, por assustá-lo ou
por ser uma alucinação imperativa (ou de comando) que ordena a
realização de certas ações (inclusive atos suicidas ou agressões).
Alucinações táteis: são alterações da sensibilidade superficial,
podendo ser classificadas em ativas, quando o paciente sente que
toca em objetos inexistentes, ou passivas. Nas passivas, o paciente
se sente tocado, espetado, sente choques, além de poder sentir
também alterações de temperatura. Pode ocorrer em quadro de
intoxicação por psicoestimulantes e no delirium, por exemplo. Na
síndrome de Ekbom, ocorre uma formicação (sensação de picada
de inseto) associada a um delírio de infestação. Nessa síndrome, o
doente julga estar infestado por pequenos organismos, porém
macroscópicos, especialmente na pele ou nos cabelos.
Alucinações cenestésicas: em geral, envolve órgãos internos,
causando as chamadas alucinações viscerais. Os pacientes sentem
misteriosas irradiações ou descargas elétricas atingindo seu
organismo. Alguns relatam sensação de toque em seus órgãos
genitais (podendo experimentar orgasmos ou sentirem-se
violentados). Outros têm a sensação de que o cérebro está
diminuindo de tamanho, o fígado está se extinguindo ou que há
algo se movendo dentro dele, como um verme (parasitose
alucinatória).
Alucinações cinestéticas ou motoras: são sensações relacionadas
com o movimento do corpo. O paciente pode se queixar de estar
girando (alucinações vestibulares), afundando, voando, dobrando
as penas, apesar de estar na verdade imóvel.
Alucinações sinestésicas ou combinadas: alucinações que
associam duas ou mais funções sensoriais.
Alucinações gustativas e olfatórias: são bastante incomuns e
podem ocorrer em associação, podendo ser difícil de distingui-las
na prática. Os pacientes queixam-se cheiro ou gosto muito ruim,
como de excrementos, lixo, animais mortos, toxinas etc.
Associadas a essas alucinações podem ocorrer uma recusa
sistemática de alimentos (sitiofobia).
Alucinação liliputiana: o paciente tem alucinações com pessoas
ou animais em miniatura. Já a alucinação guliveriana, é
justamente o contrário, o paciente tem uma alucinação visual
gigantesca, maior que a imagem real. Pode ocorrer em quadros de
intoxicação por cocaína e delirium, respectivamente.
Alucinação extracampina: o objeto percebido encontra-se fora do
campo perceptivo. Por exemplo: ver uma pessoa que está atrás de
si ou em outro cômodo; ouvir o que falam a longas distâncias.
Comum na esquizofrenia e em algumas psicoses de origem
orgânica.
Sonorização do pensamento: o paciente ouve o próprio
pensamento, reconhecendo-o como tal, como se ocorresse
externamente à sua mente. Esse fenômeno pode acontecer antes,
durante ou depois do ato de pensar. Se ocorre após, recebe o nome
de eco do pensamento. Ocorre na esquizofrenia.
Autoscopia: o paciente visualiza a imagem do próprio corpo
projetada no espaço externo. Essa experiência é acompanhada de
sofrimento ou medo e costuma acontecer na esquizofrenia, na
epilepsia do lobo temporal, no delirium e na intoxicação por
alucinógenos.
Alucinações hipnagógica e hipnopômpica: são alucinações
relacionadas à transição sono-vigília. Enquanto a primeira ocorre
quando o indivíduo está adormecendo, a segunda seria quando o
sujeito está acordando. São, em geral, visuais, mas também podem
ser auditivas ou táteis. A pessoa tem crítica quanto à irrealidade
das imagens, que apresentam mais atributos das representações do
que das percepções. Esses fenômenos ocorrem em pessoas
normais e na narcolepsia.

7.2. Avaliando a sensopercepção


Perguntar diretamente ao paciente se ele ouve vozes ou se tem visões, no
momento da entrevista psiquiátrica, apresenta valor limitado. O paciente
tanto pode afirmar que ouve, por não entender bem a pergunta, quanto pode
negar por diversas razões: para receber alta hospitalar, em função de uma
proibição por parte das vozes ou mesmo pela falta de crítica ao seu sintoma
(ele acredita estar ouvindo o vizinho e não vozes “sem dono”, por
exemplo). Além disso, um indivíduo sem transtorno mental pode tentar
simular um transtorno, com o interesse de obter uma aposentadoria ou para
tentar escapar de alguma acusação. Portanto, na prática psiquiátrica, o valor
daquela alteração é muito maior quando observada no comportamento do
paciente. Por meio da análise do comportamento do paciente, podemos ter
algumas pistas de atividade alucinatória (Quadro 5).

Quadro 5 - Atitudes alucinatórias

Tipo de Alucinação Alterações Percebidas à Entrevista

Tipo de alucinação Alterações percebidas à entrevista

Falar sozinho, risos imotivados,


Alucinação auditiva
proteção dos ouvidos com as mãos.

O olhar fixo em determinada direção, desvios


Alucinações visuais súbitos
do olhar, movimentos defensivos com as mãos.

Alucinações gustativas e
Recusa sistemática de alimentos.
olfativas

Movimento das mãos como que afastando


Alucinações cutâneas
algo da superfície do corpo.

Fonte: Cheniaux E.2

8. LINGUAGEM
A linguagem é um tipo de processamento simbólico fundamentado em
signos fonéticos e gráficos (geralmente definidos culturalmente), que
funciona como uma ponte entre o pensamento e o mundo externo. A
linguagem tem diversas funções; dentre elas podemos citar: comunicação,
suporte do pensamento, expressão das emoções, indicação e descrição das
coisas e transmissão de conhecimentos.
O objeto de estudo da linguagem são as palavras, enquanto as ideias são
o objeto de estudo do pensamento (que será discutido mais à frente).
Toda língua ou idioma possui um elemento chamado prosódia, que é
constituída pela musicalidade, pela entonação e por inflexões da fala, além
da gesticulação. É a alma do discurso!

8.1. Alterações quantitativas da linguagem

• Afasias: são transtornos adquiridos da linguagem decorrente de


lesão do sistema nervoso central (lesões corticais, acidentes
vasculares, tumores e processos degenerativos, como a doença de
Alzheimer). A depender do local da lesão, pode haver um
comprometimento em diferentes níveis de organização das
linguagens oral e escrita. As afasias podem cursar com diferentes
combinações de sintomas e graus de intensidade. Apesar do quadro
clínico variado, as formas mais relevantes são:
Afasia de Broca: é uma afasia não fluente, na qual o indivíduo,
apesar do órgão fonador preservado, não consegue falar ou fala
com dificuldade e de forma monótona, pois seus pronunciamentos
são curtos, com latência aumentada nas respostas e sem prosódia.
Sendo assim, o paciente tem grande dificuldade de produzir a
linguagem e de expressá-la de modo fluente. Está relacionada a
lesões na região posteroinferior do lobo frontal esquerdo (área de
Broca).
Afasia de Wernicke: consiste em uma afasia fluente, ou seja, o
indivíduo continua podendo falar, porém, sua fala é muito
defeituosa, vazia, às vezes totalmente incompreensível. O paciente
não consegue compreender a linguagem (falada e escrita) e tem
dificuldades para a repetição. No entanto, fala sem hesitação, mas
produz muitos erros na escolha de palavras para expressar uma
ideia. Está associada à lesão na região posterossuperior do lobo
temporal esquerdo (área de Wernicke).

• Mutismo: ausência de linguagem verbal. Pode expressar


negativismo ou ser secundária a uma inibição psíquica (por
exemplo: estupor esquizofrênico, depressivo, histérico ou no
delirium). Nas crianças, pode ocorrer o mutismo seletivo, que é de
origem psicogênica e normalmente ocorre apenas no local do
conflito que gerou o achado (escola, por exemplo).
• Logorreia: refere-se a uma expressão verbal aumentada. Observa-se
um fluxo incessante de palavras e frases, em geral havendo a perda
do sentido lógico do discurso. Normalmente, associada a
taquipsiquismo. O paciente fala o tempo todo, sendo difícil
interrompê-lo. Muito comum nos quadros de mania.
• Oligolalia: refere-se a uma expressão verbal diminuída. Ocorre nas
mesmas circunstâncias do mutismo.

• Hiperfonia: o sujeito apresenta uma elevação do tom da voz, isto é,


fala excessivamente alto.
• Hipofonia: o sujeito fala com um tom de voz excessivamente baixo,
prejudicando ou tornando impossível entender o que se está sendo
dito.
• Taquilalia e bradilalia: aumento e diminuição da velocidade da
expressão verbal, respectivamente. Auxiliam na avaliação das
alterações do curso do pensamento.
• Latência da resposta: relaciona-se ao tempo que o sujeito demora
para responder às perguntas do examinador, podendo estar
aumentada ou diminuída.

8.2. Alterações qualitativas da linguagem


• Ecolalia: é a repetição em forma de eco, da última ou últimas
palavras que o sujeito escuta do examinador (ou outra pessoa do
ambiente), dirigidas ou não ao paciente. Ocorre na síndrome
catatônica, no autismo, na esquizofrenia e na demência. Por
exemplo, o examinador pergunta “quantos anos você tem?” e o
paciente repete “tem”.
• Palilalia: é a repetição involuntária da última ou últimas palavras
que o próprio paciente diz. Ocorre na demência e na esquizofrenia.
Por exemplo, o examinador pergunta “tudo bem?” e o paciente
responde “tô bem não, tô bem não, tô bem não...”.
• Logoclonia: semelhante à palilalia, embora a repetição seja apenas
das últimas sílabas. Comumente encontrada em quadros demenciais
(particularmente, Pick e Alzheimer). Por exemplo, o examinador
pergunta “qual é o seu nome?”, e a paciente responde “eu me chamo
Luana… na”.
• Estereotipia verbal (ou verbigeração): é a repetição monótona,
inadequada e sem sentido comunicativo de palavras ou trechos de
frases. São automáticos, espontâneos, não sendo direcionados a um
interlocutor, de conteúdo relativamente simples. Comum na
catatonia e na demência.
• Mussitação: o sujeito fala com uma voz muito baixa (murmurada),
ininteligível, sem significado comunicativo, quase sem mexer os
lábios. Encontrado em quadros psicóticos e catatônicos.
• Neologismos: o sujeito cria palavras novas ou oferece novos
significados àquelas já existentes. São encontrados principalmente
em transtornos psicóticos. Uma paciente, ao ser questionada a
respeito do significado de sua tatuagem, refere que aquilo foi uma
“blugagem enfática”.

• Jargonofasia: também denominada salada de palavras, ou


esquizofasia ou confusão de linguagem, relaciona-se a uma completa
desorganização da linguagem, com sintaxe totalmente incoerente. O
paciente fala uma série de palavras, em geral reconhecíveis, porém
numa ordem caótica e ilógica. Além disso, pode misturar com
neologismos, tornando o discurso mais sem sentido. Ocorre na
esquizofrenia e na afasia sensorial.
• Parafasia: designa uma deformação ou troca de palavras, que pode
ser literal ou verbal. A parafasia fonêmica seria o ato de substituir
uma palavra por outra, de som semelhante (vela por bela ou colher
por mulher). Ocorre nas afasias de Broca e de Wernicke. Já na
parafasia semântica, seria a substituição de uma palavra por outra
que tenha um significado relacionado, como mesa por cadeira.
Ocorre na afasia de Wernicke.
• Solilóquio: é o ato de falar sozinho, porém, ao contrário da
mussitação, num tom de voz audível. Indica alucinação auditiva,
podendo ocorrer também em pessoas sem transtorno mental.
• Tiques verbais e coprolalia: os tiques verbais são produções de
palavras ou fonemas (sons guturais, abruptos e espasmódicos) de
maneira inadequada, contra a vontade do sujeito. Já na coprolalia, o
paciente fala repetitiva e involuntariamente palavras vulgares, de
baixo calão ou relativas a excrementos. Ambos são fenômenos
característicos do transtorno de tiques, que inclui o quadro da
síndrome de Tourette.
• Glossolalia: o sujeito fala sons incompreensíveis, com manutenção
da prosódia da fala, dando a impressão de estar falando em um outro
idioma.
• Maneirismos: o sujeito fala de maneira pouco natural, afetada, por
meio da escolha de palavras rebuscadas (ou difíceis, com
formalismo exagerado, com uso excessivo de diminutivos etc.), da
maneira de pronunciar as palavras ou do sotaque. Por exemplo, uma
pessoa falando sobre si mesma na terceira pessoa está se utilizando
de um maneirismo. Já com relação à prosódia, um exemplo de
maneirismo é o de uma paciente que, embora fosse cearense e nunca
tivesse saído do estado, falava um sotaque espanhol.

• Pararrespostas: são respostas dadas sem nenhuma relação às


perguntas. Por exemplo: “Qual sua idade?” – Resposta: “Tá calor
aqui”. São encontradas na esquizofrenia e na demência.

9. PENSAMENTO
O pensamento constitui uma atividade psíquica subjetiva e a sua expressão
é exteriorizada por meio da linguagem e da psicomotricidade. É um
processo constituído por dois componentes: o associativo (que conecta as
ideias de modo passivo e estabelece relações significativas entre as imagens
perceptivas, representativas e imaginativas, por meio de semelhança, de
contraste ou de contiguidade no tempo ou no espaço) e a tendência
determinante (a qual ordena e direciona ativamente o pensamento a uma
certa finalidade, de acordo com os interesses e necessidades do indivíduo).
Os elementos cognitivos do pensamento são divididos em três
atividades fundamentais, são elas: a elaboração de conceitos, a formação de
juízos e o raciocínio.
• Conceito: é expresso por uma única palavra que consegue identificar
atributos ou qualidades mais gerais e essenciais de um objeto ou
fenômeno. Está relacionado à abstração e à generalização. Por
exemplo: “flor” e “vermelha” são conceitos.

• Juízo: promove uma relação entre dois ou mais conceitos, por meio
de um ato da consciência de afirmar ou negar algum atributo ou
qualidade a um objeto ou a um fenômeno. Por exemplo: “a flor é
vermelha”.
• Raciocínio: é o processo de relacionar juízos. Da mesma maneira
que a ligação entre conceitos permite o desenvolvimento de juízos, a
ligação entre juízos conduz desenvolvimento de novos juízos. Sendo
assim, o raciocínio e o próprio pensamento se originam. Por
exemplo: “todo animal é mortal”; “o meu cachorro é um animal”,
logo “o meu cachorro é mortal”. Um raciocínio pode ser indutivo
(do particular para o geral), dedutivo (do geral para o particular), ou
analógico (de um particular para outro particular).
Outra forma de se avaliar o pensamento é por meio do seu curso, forma
e conteúdo. O curso é o modo como o pensamento flui, isto é, sua
velocidade e seu ritmo ao longo do tempo. Caracteriza-se pela quantidade
de ideias que vêm ao pensamento e pela velocidade com que as ideias
passam pelo pensamento; dessa forma, o curso pode ser rápido
(taquipsíquico), normal (normopsíquico), lentificado (bradipsíquico) ou
estar completamente bloqueado.
A forma do pensamento, por sua vez, consiste em sua estrutura básica,
sua “arquitetura”. Está relacionada a como o paciente concatena as ideias,
em que sequência, se segue ou não as leis da sintaxe e da lógica. O normal é
que a produção do pensamento seja lógica (coerente e coesa) e que seja
clara e de fácil compreensão. Para detectar as alterações formais do
pensamento, deve-se permitir que o entrevistado desenvolva livremente as
suas respostas, evitando-se perguntas fechadas, como “você se sente bem ou
mal?”. Já o conteúdo do pensamento são as ideias propriamente ditas, sua
conexão ou não com a realidade, refletindo ou não aspectos reais do mundo
externo ou interno. As ideias prevalentes, em função de sua carga afetiva,
ocupam a maior parte do conteúdo do pensamento do indivíduo no
momento do exame. O conteúdo do pensamento expressa as preocupações
do paciente, que podem ser ideias supervalorizadas, ideias delirantes,
delírios, preocupações com a própria doença, problemas alheios, obsessões,
fobias etc. Alguns autores consideram o delírio uma alteração do conteúdo
do pensamento, mas neste capítulo ele será discutido na sessão sobre juízo
de realidade.

10. ALTERAÇÕES DO PENSAMENTO


• Pensamento mágico: consiste na atribuição de uma relação causal
que não se justifica do ponto de vista lógico. Por exemplo, um
paciente acredita que ao amaldiçoar um pertence de alguma pessoa,
na verdade estará amaldiçoando a própria pessoa (magia de
contágio).
• Pensamento dereístico: opõe-se ao pensamento lógico geral, pois
só obedece à lógica e à realidade naquilo que interessa ao desejo do
indivíduo, distorcendo a realidade, para que esta se adapte aos seus
anseios. A pessoa volta seu pensamento para o meio interno, onde
tudo é possível e favorável a ela, havendo forte influência da
vontade sobre suas crenças. É um quadro muito comum nos casos de
mentira patológica, podendo ocorrer também em transtornos de
personalidade e na esquizofrenia.
• Pensamento vago: o discurso é marcado pela perda da habilidade
de separar o essencial do supérfluo; o principal do secundário. São
raciocínios genéricos e imprecisos. Observado na esquizofrenia, em
quadros demenciais iniciais, transtornos da personalidade e neuroses
graves.

• Prolixidade: é quando o discurso é repleto de detalhes irrelevantes,


tornando-o tedioso; a ideia-alvo é alcançada tardiamente, podendo
até nem ser alcançada. Decorre de uma incapacidade de síntese, de
distinguir o essencial do acessório. A circunstancialidade e a
tangencialidade são tipos de prolixidade; o que diferencia uma da
outra é que, no caso da circunstancialidade, a ideia-alvo seria
alcançada, enquanto na tangencialidade, o paciente responde às
perguntas de maneira oblíqua e irrelevante, nunca chegando ao
objetivo final de sua colocação.
• Minuciosidade: é um discurso com a presença demasiada de
detalhes relevantes, os quais são introduzidos para enriquecer a
comunicação e, ansiosamente, para evitar quaisquer possíveis
omissões.
• Perseveração: o sujeito persiste excessiva e inadequadamente no
mesmo tema ou tem uma dificuldade em abandonar determinado
assunto. Consiste numa perda da flexibilidade do pensamento. A
perseveração ocorre na demência, no retardo mental, no delirium, na
epilepsia e na esquizofrenia.
• Pensamentos obsessivos: seria um tipo especial de perseveração.
São ideias tidas pelos próprios pacientes como absurdas e
desagradáveis (egodistônicas). Esses pensamentos invadem a
consciência do indivíduo de modo intrusivo e, muitas vezes, de
maneira recorrente.
• Concretismo: é um tipo de pensamento no qual não ocorre a
distinção entre a dimensão abstrata, simbólica e a dimensão concreta
dos fatos. O indivíduo não consegue entender ou utilizar metáforas,
ironia, duplo sentido, bem como categorias abstratas e simbólicas de
modo geral. Tanto os indivíduos com deficiência intelectual como os
pacientes com esquizofrenia grave podem apresentar pensamento
concreto.

• Fuga de ideias: alteração decorrente, principalmente, do


taquipsiquismo. As ideias sucedem-se de modo muito rápido, a
ponto de prejudicar o encadeamento associativo lógico. Facilmente
se desvia o pensamento a partir de estímulos externos. Além disso,
as associações muitas vezes se dão por assonância (rimas) ou
aliteração (repetição de consoantes) das palavras. É uma
manifestação típica dos quadros maníacos.
• Afrouxamento das associações: o discurso ainda apresenta uma
concatenação lógica entre as ideias, porém há um afrouxamento dos
enlaces associativos. As associações parecem mais livres, não tão
bem articuladas. Manifesta-se nas fases iniciais da esquizofrenia.
• Descarrilamento: o pensamento desvia do seu curso normal,
rumando por assuntos que não têm relação com a ideia original.
Pode estar associado à distraibilidade ou à perda de contato com a
realidade. Quando o descarrilhamento for muito acentuado pode-se
não mais captar a sequência lógica do pensamento. O
descarrilhamento é observado principalmente na esquizofrenia.

• Desagregação do pensamento: perda radical dos enlaces


associativos, observando-se um discurso incoerente, com
anormalidades associativas no nível das palavras e das frases. Há a
formação de associações novas, que são incompreensíveis,
irracionais e extravagantes. O que resta são “pedaços” de
pensamentos e ideias fragmentados, muitas vezes irreconhecíveis,
sem qualquer articulação racional, sem que sejam detectadas uma
linha diretriz e uma finalidade no ato de pensar. Trata-se de alteração
típica de formas avançadas de esquizofrenia e de quadros
demenciais.

11. JUÍZO DE REALIDADE


O juízo é uma formação intelectual, que se origina da capacidade humana
de definir valores ou atributos que damos aos objetos. A atribuição de
valores é feita por meio de referenciais pessoais, porém, há um consenso
cultural em relação à média. É função do juízo de realidade qualificar
nossas vivências quanto à sua realidade. Os juízos falsos apresentam
diferentes causas e podem ser patológicos ou não.

11.1. Alterações de juízo de realidade não delirantes

• Erro simples: alteração não patológica do juízo de realidade, que se


origina devido à falta de informações, a um julgamento apressado, a
premissas falsas ou à carência de lógica no pensamento. Pode estar
associado à forte influência afetiva, o que leva à dificuldade de ver o
tema de maneira objetiva (p. ex., preconceitos, superstições).

• Ideias prevalentes ou sobrevaloradas: são alterações do juízo de


realidade que não chegam a constituir um delírio, pois sua convicção
é menor que o delírio, sendo mais influenciáveis. São ideias que,
pelo grande significado afetivo, passam a ser frequentes e tomar
espaço na vida do indivíduo. Em geral, estão de acordo com a visão
de mundo do indivíduo (egossintônica). Costuma ser uma alteração
compreensível de acordo com o contexto e a história de vida do
paciente e contempla convicções menos intensas que as delirantes.

11.2. Delírio
Segundo Karl Jaspers (1883-1969), as ideias delirantes, ou delírio, são
juízos patologicamente falsos. O delírio não é uma dúvida nem uma
impressão, para o paciente é um fato repleto de extrema convicção interior.
Quando um delírio é instalado, as demais funções psíquicas são afetadas,
influenciando o comportamento do paciente e levando a uma alteração
significativa em sua personalidade (quebra na funcionalidade). Vale
ressaltar que não é a falsidade do conteúdo que faz um juízo ser um delírio,
mas sim a justificativa que o indivíduo usa para aquela crença que
apresenta, o tipo de evidência que lhe assegura que as coisas são assim. De
acordo com Jasper, existem quatro características que servem para avaliar o
discurso e que, do ponto de vista prático, são muito importantes para a
identificação clínica do delírio: 1. convicção extraordinária – o paciente
defende sua crença com afinco, não tendo a menor dúvida sobre a
veracidade dela; 2. ininfluenciabilidade pela experiência ou por
argumentos sensatos – é impossível modificar o delírio pela experiência
objetiva, por provas explícitas da realidade, por argumentos lógicos,
plausíveis e aparentemente convincentes, e o delírio é considerado
irredutível, irrefutável; 3. impossibilidade do conteúdo – teoricamente é o
aspecto mais evidente do delírio, porém, do ponto de vista psicopatológico,
o aspecto mais frágil; isso porque o fato que o paciente relata pode ocorrer
realmente; por exemplo, um paciente que tem delírios de ciúme e sua
mulher realmente o trai. Portanto, é necessária investigação com familiares
ou amigos para avaliar melhor esse fator; 4. produção associal – deve ser
uma crença idiossincrática em relação ao grupo cultural do paciente. Em
geral, o delírio é uma crença limitada a apenas uma pessoa (a qual destoa
fortemente se comparada com seu meio cultural) e não costuma aproximá-
la a um grupo ou uma comunidade; trata-se de uma informação fora do seu
cotidiano ou contexto social.
O delírio é muitas vezes vivenciado como algo evidente; o paciente
tem a certeza de que as coisas acontecem exatamente daquela forma,
segundo o seu juízo delirante.

11.3. Delírio primário e secundário

• Delírio primário: é considerado autóctone, isto é, não é secundário


a outra manifestação psicopatológica. Sua instalação é
incompreensível quando posta em comparação com o restante das
vivências psíquicas atuais ou passadas. Ocorre na esquizofrenia e em
outros transtornos psicóticos.

• Delírio secundário: diferentemente do delírio primário, apresenta


maior compreensibilidade e pode ter uma importante influência do
afeto. Na prática, é observado em quadros como intoxicações,
abstinências, RNC e transtornos do humor.

11.4. Delírios sistematizados e não sistematizados

• Delírios sistematizados: exibem grande coerência entre as ideias,


além de apresentar também uma maior organização e consistência. O
paciente apresenta argumentos lógicos e compreensíveis para a sua
crença falsa. Por exemplo, um indivíduo com delírio persecutório é
capaz de dizer como, quem e o porquê de perseguirem-no. É comum
do transtorno delirante.
• Delírios não sistematizados: o conteúdo e os detalhes do delírio
variam de um momento para o outro. Nesses casos, o indivíduo
afirma que está sendo perseguindo, mas não consegue saber por
quem, como descobriu isso, nem consegue dar qualquer informação
sobre os autores, os meios e os motivos do fato. São típicos da
esquizofrenia.

11.5. Temática do delírio

• Persecutório: é o tema mais prevalente. O paciente acredita que


está sendo perseguido e que planejam prejudicá-lo (ou até matá-lo).
Normalmente sente-se em situação de risco, assustado, incomodado,
preocupado. Durante a avaliação, podemos observar um paciente
hipervigil com atitude suspicaz, secundária a uma desconfiança
excessiva.
• De autorreferência: o paciente acredita que os acontecimentos ao
seu redor são referentes a ele. Tudo o que acontece é para atingi-lo.
Pessoas nas ruas comentam sobre sua vida. Não existem acasos; se
uma pessoa esbarra nele na rua, é de “propósito” para atingi-lo.

• De grandeza: o paciente relata ter força, inteligência, riqueza,


beleza ou influência com famosas ou poderosas. Essas afirmações
são desproporcionais à realidade e sempre enaltecem esse paciente.

• Místico/religioso: tema bastante comum em síndromes psicóticas e


maníacas. O paciente relata ter uma relação privilegiada com as
divindades e, às vezes, ele próprio assume um papel de santo ou
salvador: “Eu sou um anjo enviado pelo Senhor para curar os males
do mundo”.
• Erotomaníaco: o paciente acredita ser fonte de desejo de um grupo
de pessoas ou de uma pessoa influente.
• De reivindicação (querelância): o paciente acredita ser vítima de
injustiças e discriminações.

• De negação: o indivíduo nega sua existência. Particularmente, na


síndrome de Cotard, o paciente nega a existência ou a integridade
dos órgãos, acredita que seus órgãos estão podres ou que está oco
por dentro e, em suma, pensa que viverá para sempre sob tal
desgraça. Por exemplo: “Eu sei que tenho câncer e tudo por dentro já
foi destruído, está tudo podre. Eu estou morta”.
• De ruína: paciente acredita que sua vida está repleta de sofrimento,
fracassos e perdas. Delírios somáticos, de culpa e de negação podem
ser considerados subtipos do delírio de ruína. É comum em
depressão psicótica.
• De influência: paciente afirma ser controlado ou influenciado por
uma entidade, força, ou pessoa externa.

12. AFETIVIDADE
A afetividade é uma atividade do psiquismo que constitui a vida emocional
do ser humano. Ela é contínua no tempo, pois não se pode deixar de sentir
afetos. Trata-se de um termo genérico que tenta definir uma variedade de
vivências afetivas. Os tipos de vivências afetivas são: humor (estado de
ânimo), emoções, sentimentos, afetos e paixões.
• Humor: tradicionalmente, o humor é definido como o estado
emocional interno e continuado do paciente. É a tonalidade de
sentimento predominante e mais constante. O humor pode oscilar
entre os polos da alegria, da tristeza e da irritabilidade, assim como
entre a calma e a ansiedade.

• Emoção: a emoção pode ser definida como uma reação afetiva


aguda, instantânea, intensa e de curta duração, desencadeada por
percepções internas (p. ex., uma memória) ou externas (p. ex., uma
discussão, um susto), e que geralmente desencadeiam alterações
corporais (sudorese, taquicardia, tremor, entre outros).

• Sentimento: é a reação, positiva ou negativa, a alguma experiência,


seja ela uma representação subjetiva interna ou um estímulo externo.
É uma configuração afetiva estável e mais duradoura em relação à
emoção.
• Paixão: a paixão é um estado afetivo extremamente intenso, que
domina o psiquismo do indivíduo como um todo. A pessoa
apaixonada tem apenas um objeto como foco de sua atenção,
interesse e desejo. A paixão intensa dificulta o raciocínio lógico e
imparcial. O estado afetivo de paixão pode ser prolongado.

• Afeto: o afeto é definido como a qualidade ou tônus emocional, que


acompanha uma ideia ou uma representação mental. O afeto difere
do humor, visto que é a expressão do humor naquele momento. Em
outras palavras, humor se refere à dimensão afetiva predominante,
mais constante, enquanto afeto é a sua expressão, o que se observa,
sendo mais flutuante. O normal, para qualquer tipo de afeto, é que
ocorra uma variação na expressão facial, no tom de voz e nos gestos,
denotando um espectro de intensidade na emoção expressada (de
superficial a profunda).
Distinguem-se, basicamente, cinco características formais da
afetividade: estabilidade afetiva – o estado afetivo que não sofre
grandes alterações, independentemente de estímulos menores, sendo
necessário grandes estímulos para provocar alteração na
estabilidade. Se uma pessoa reage com uma mudança afetiva a
estímulos pouco significativos, podemos dizer que há uma
instabilidade afetiva. A modulação afetiva é uma tendência de
mudar de um estado afetivo a outro. Já o tônus afetivo é a
intensidade de resposta afetiva que um indivíduo apresenta num
determinado momento e contexto vivencial. O tônus afetivo pode
estar aumentado, quando, por exemplo, o paciente fala alto, gesticula
muito, fica inquieto, ou pode estar diminuído, como nos casos em
que o paciente responde laconicamente às perguntas do examinador.
Ressonância afetiva é a tendência psíquica de responder a um afeto
com o mesmo afeto, ou seja, a capacidade de vibrar e compartilhar o
mesmo afeto com o outro. Por exemplo, quando um filme triste nos
faz chorar. A congruência afetiva é o afeto tende a acompanhar a
vivência de quem o despertou. Quando existe uma correspondência
da vivência com o afeto, falamos que há congruência ideoafetiva.
Por sua vez, quando o paciente, rindo, conta que foi torturado na
noite anterior, dizemos que há dissociação ideoafetiva.
• Catatimia: refere-se a uma deformação afetiva da realidade. O
humor, os sentimentos e as emoções, bem como as paixões, podem
ser tão intensos, que passam a exercer influência sobre todas as
outras funções psíquicas. Dessa forma, a capacidade de atenção se
altera, podendo ser desviada em função de determinado estímulo; a
memória se torna muito detalhada ou muito pobre, a depender do
significado afetivo daquela situação vivenciada; a sensopercepção
pode ficar alterada em função de estados afetivos intensos,
desencadeando, inclusive, alucinações em pessoas com psicoses; a
psicomotricidade pode estar aumentada ou diminuída e o
pensamento pode se modificar de diferentes maneiras, no fluxo, na
velocidade e no conteúdo das ideias.
12.1. Alterações quantitativas do humor
O humor pode ser classificado quantitativamente em um espectro que oscila
abaixo ou acima do estado de ânimo normal, ou eutimia.
• Hipotimia: caracterizada pelo rebaixamento do humor. Pode ocorrer
em situações de tristeza e luto, não sendo considerada patológica.
No entanto, um aumento da intensidade e da duração desse
rebaixamento vai configurar numa alteração patológica, na qual
predominam os afetos negativos, como a tristeza patológica e o
desespero.
• Hipertimia: na alegria, existe uma elevação normal do humor. Já na
euforia ou alegria patológica vai haver um aumento desproporcional
e imotivado dos afetos positivos, caracterizando um quadro de
satisfação plena e felicidade. No estado de elação, soma-se ao
sintoma de alegria patológica uma sensação subjetiva de grandeza e
de poder, que caracteriza um quadro de expansão do eu. O estado de
êxtase é a expressão máxima dos sintomas hipertímicos. Existe uma
alegria muito intensa, a ponto de provocar uma experiência de
beatitude, em que o Eu parece se dissolver no todo, compartilhando
facilmente seus conteúdos íntimos com o mundo exterior. Quando
ocorre num contexto religioso, não é considerado patológico. O
estado hipertímico é característico dos episódios de mania e
hipomania.

12.2. Alterações qualitativas do humor

• Disforia: estado de humor com grande irritação, amargura, desgosto


ou agressividade.

• Puerilidade: humor de aspecto infantil, superficial ou regredido. O


paciente ri ou chora por motivo banais. Pode ocorrer em casos de
deficiência intelectual, esquizofrenia e no transtorno de
personalidade histriônica.

12.3. Alterações do afeto


• Hipomodulação do afeto: incapacidade de modular a resposta
afetiva de acordo com a situação, havendo certa rigidez na relação
do indivíduo com o mundo. Ocorre em pacientes com esquizofrenia,
em quadros depressivos graves, transtornos da personalidade
esquizotípica, esquizoide ou obsessivo-compulsiva e em alguns
indivíduos com demências.
• Distanciamento afetivo: há uma perda progressiva e patológica das
vivências afetivas, levando a um empobrecimento relativo à
possibilidade de vivenciar alternâncias e variações sutis na esfera
afetiva. Ocorre nas síndromes psico-orgânicas, nas demências e em
alguns pacientes com esquizofrenia.
• Labilidade afetiva: o afeto salta entre os polos afetivos, em outras
palavras, em um momento o humor do paciente vai da alegria direto
para a tristeza, depois retoma para alegria e, a seguir, passa para
irritabilidade. Essa situação é comum na mania, no transtorno de
personalidade borderline, na demência e na deficiência intelectual.
• Embotamento afetivo: seria uma completa derrocada da
afetividade. Há uma diminuição da intensidade e da excitabilidade
dos afetos, sejam eles positivos ou negativos. O paciente torna-se
indiferente ao ambiente, às pessoas e, algumas vezes, a si mesmo,
tendo uma expressão emocional bastante restrita. Ocorre
principalmente na esquizofrenia, nos transtornos de personalidade
esquizotípica e esquizoide e na demência avançada.

• Incontinência afetiva: é uma alteração da regulação do afeto, mais


grave que a labilidade. O indivíduo não consegue controlar a
expressão afetiva. Suas reações afetivas são produzidas com muita
facilidade, sendo excessivas, duradouras e muito desproporcionais
ao estímulo. É manifestada por meio de risos ou prantos frenéticos,
ou de raiva extrema. Acontece especialmente na demência, mas
pode ser encontrada também na mania, na intoxicação alcoólica, na
deficiência intelectual, nos transtornos de personalidade antissocial e
borderline.
• Ambitimia (ou ambivalência afetiva): é a presença de sentimentos
opostos ou paradoxais que ocorrem simultaneamente e que se
referem ao mesmo objeto, pessoa ou situação. Por exemplo: amar e
odiar, ao mesmo tempo, o mesmo lugar.

13. VOLIÇÃO
A volição, ou vontade, é uma função psicopatológica complexa, a qual se
relaciona com a esfera instintiva, afetiva e intelectiva. Consiste basicamente
no ato de intencionar, avaliar, julgar, analisar e decidir algum pensamento
ou ação. É um processo psíquico de escolher uma entre diversas
possibilidades de ação; é uma atividade consciente de direcionamento
sofrendo influência de fatores cognitivos e socioculturais.
As vivências volitivas dividem-se em quatro etapas: intenção (ou
propósito), deliberação (ou análise), decisão e execução. A primeira fase, a
intenção, representa uma tendência para a ação; a segunda, a deliberação,
consiste na ponderação a respeito das possibilidades de ação, analisando-se
os aspectos positivos e negativos, bem como as possíveis consequências
dessa atitude; a terceira fase, a decisão, seria quando o sujeito opta por uma
dessas possibilidades de ação; quando o projeto motor é executado para
realizar o ato que foi mentalmente aprovado; ocorre, então, a quarta e
última fase, a de execução.

13.1. Alterações patológicas da volição

• Hipobulia/abulia: seria a diminuição e abolição da volição,


respectivamente. É caracterizada pela sensação de indisposição,
fraqueza, desânimo ou falta de energia para realizar as atividades
cotidianas; cursa ainda com ausência de iniciativa, espontaneidade e
interesse pelo mundo externo. Além disso, também podem estar
presentes indecisão, dificuldade de transformar as decisões em ações
e inibição psicomotora. Comum na depressão, na esquizofrenia, no
delirium sem psicose e quadros demenciais. É importante diferenciar
a hipobulia/abulia da ataraxia; esta seria o estado de indiferença
provocado pelo próprio indivíduo (voluntário), que faz um esforço
consciente para atingir um estado de desprendimento, o qual é
pretendido em situações místico-religiosas, como os monges
budistas, por exemplo.
• Hiperbulia: é um aumento da iniciativa, da espontaneidade e do
interesse em relação ao mundo externo. Pode ser acompanhada de
desinibição e aumento da psicomotricidade. Presente,
principalmente, em quadros de mania.

• Atos impulsivos: a impulsividade é uma ação sem reflexão prévia.


Os atos impulsivos normalmente não são contrários ao desejo e aos
valores da pessoa que o pratica, sendo então egossintônicos. Tratam-
se de atos súbitos, incoercíveis, incontroláveis, sem finalidade
aparente. As etapas de deliberação e decisão do processo volitivo
não acontecem, e o indivíduo passa direto da intenção para a ação
(muitas vezes até sem intenção nenhuma). Os atos impulsivos são
patológicos quando são empaticamente incompreendidos para quem
os observa. Alguns comportamentos são associados a características
de um ato impulsivo. A seguir, ilustramos alguns atos impulsivos.
Comportamentos heteroagressivos impulsivos: acontece de
maneira não premeditada, sendo, por diversas vezes, imotivados.
Frangofilia: impulso patológico de destruir os objetos que
circundam o indivíduo. Está associado geralmente a estados de
excitação impulsiva intensa e agressiva. Ocorre nas psicoses
(principalmente esquizofrenia e mania), em alguns quadros de
intoxicação por psicotrópicos (drogas e/ou medicamentos), em
indivíduos com transtornos da personalidade (explosiva,
borderline, antissocial etc.).
Piromania: impulso de atear fogo a objetos, prédios, lugares etc.
Aparece principalmente em indivíduos com transtornos do
controle de impulsos e/ou transtornos da personalidade do cluster
B.
Dromomania: o sujeito exibe uma necessidade de se afastar, de
sair do lugar onde se encontra, que se apresenta por meio de uma
deambulação sem finalidade ou como uma corrida repentina e
imotivada. Ocorre em episódios dissociativos, na esquizofrenia e
na deficiência intelectual.
Dipsomania: tendência periódica de ingerir grande quantidade de
etílicos. Após iniciar o consumo da bebida alcoólica, a pessoa
perde totalmente o controle, bebendo até ficar inconsciente.
Potomania: representa uma ingestão excessiva de água, mesmo na
ausência de sede. Presente na esquizofrenia.
• Atos compulsivos: são atitudes que o indivíduo se sente obrigado a
desenvolver. No entanto, a execução não é imediata, ocorrendo após
algum período de deliberação consciente, havendo, frequentemente,
uma resistência contra a sua execução (egodistônicos). Muitas vezes
não estão associados a uma sensação de prazer, levando a uma
produção de alívio, em geral, transitório. No transtorno obsessivo-
compulsivo, há a possibilidade de as compulsões serem secundárias
a ideias obsessivas. A pessoa tenta diminuir a ansiedade provocada
pelos pensamentos obsessivos por meio de comportamentos
repetitivos. Por exemplo, um paciente, por medo de se contrair
alguma doença, lava as mãos e toma banho várias vezes no decorrer
do dia. As compulsões também podem aparecer na depressão e na
síndrome de Tourette.
• Comportamentos desviantes em relação aos impulsos:
comportamentos de autoflagelação e suicida são considerados
desvios dos impulsos de autopreservação. O impulso, o
comportamento e os atos suicida e automutilatório são comuns em
muitos pacientes gravemente deprimidos e ansiosos. Tal impulso
ocorre com frequência associado a outros sintomas mentais e
condições gerais, como humor depressivo, desesperança, ansiedade
intensa, uso pesado ou dependência de álcool e outras drogas, dor ou
disfunções orgânicas crônicas.
• Ambitendência: é quando falta ao sujeito a capacidade de decisão,
em virtude da presença na consciência de vivências volitivas
opostas. Por exemplo, ter vontade de estar perto de alguém ao
mesmo tempo que teme essa aproximação.
• Negativismo: pode ser definido como uma oposição ou resposta
ausente a instruções ou a estímulos externos. Pode se dar
passivamente, quando a pessoa não faz o que lhe é pedido; ou
ativamente, quando faz exatamente o oposto ao requisitado. O
mutismo (ato de se recusar a falar) e a sitiofobia (ato de recusar
alimentos) podem representar formas de negativismo passivo. O
negativismo está presente em quadros catatônicos, como na
esquizofrenia e na depressão.

14. INTELIGÊNCIA
A inteligência pode ser entendida como o conjunto de habilidades
cognitivas de um indivíduo, que está relacionada à competência de resolver
problemas, por meio de compreensão da situação, formulação e testagem de
hipóteses. Também está ligada à habilidade de adequação, de síntese e
crítica, de abstração e generalização, de distinção entre o que é essencial e o
que é secundário, de lidar com conceitos, julgar e raciocinar, e de utilizar o
pensamento de forma competente e bem-sucedida.
A avaliação dessa função, de forma empírica na situação de entrevista,
envolve uma estimativa do nível de desempenho intelectual esperado, em
função da escolaridade e do nível sociocultural. No momento da entrevista,
verificamos se o sujeito é capaz de usar e compreender conceitos, metáforas
e analogias, bem como a adequação de seus juízos e raciocínios e a riqueza
de seu vocabulário. Obter informações a respeito do rendimento estudantil
ou profissional, sobre como a pessoa lida com situações adversas do dia a
dia e sobre sua conduta social podem ter mais valor do qualquer teste. A
avaliação psicodiagnóstica, por meio de testes específicos de inteligência,
deve ser realizada quando for observada na entrevista a presença de déficits
específicos.
14.1. Alterações da inteligência

• Déficit intelectivo: é quando o funcionamento cognitivo se encontra


abaixo da média esperada para idade/escolaridade. Pode acontecer
no desenvolvimento deficiente e na deterioração intelectiva. Esta
consiste na diminuição da capacidade cognitiva em comparação ao
nível pré-adoecimento; frequente na demência e na esquizofrenia. Já
o desenvolvimento deficiente está associado a prejuízo na aquisição
de habilidades específicas, como na deficiência intelectual.

Quadro 6 - Inteligência nos principais transtornos mentais

Nos casos leves, existe a dificuldade em lidar com conceitos, problemas de


aprendizagem, além de imaturidade emocional e social. Nos quadros
moderados, observam-se maiores dificuldades na linguagem e na capacidade
de simbolização. Nos casos graves, por sua vez, além do que já foi descrito,
Deficiência
há também comprometimento motor. Além da dificuldade de síntese,
intelectual
abstração e generalização. Algumas alterações das funções mentais são
comuns nos pacientes com deficiência intelectual: atitude pueril;
pensamento concreto; impulsividade; labilidade e incontinência afetiva;
dificuldade na realização das atividades de vida diária e instrumental.

Ocorre uma desintegração progressiva do intelecto, da memória e da


personalidade. Há prejuízo na atenção, na capacidade de aprendizagem e na
Demência capacidade de formar e compreender novos conceitos. O pensamento torna-
se concreto, prolixo e perseverante. A inteligência deteriora-se após terem
sido atingidos os níveis normais de desenvolvimento.

Delirium Há um prejuízo reversível no desempenho intelectivo.

Depressão A deterioração intelectiva é secundária e reversível: está relacionada ao


prejuízo na atenção, à falta de motivação e à inibição do pensamento que
acompanham a perturbação do afeto.

Há uma deterioração intelectiva, que leva ao empobrecimento do


Esquizofrenia pensamento ou ao embotamento afetivo. Além disso, os sintomas psicóticos
costumam prejudicar o desempenho intelectivo.

Fonte: Cheniaux E.2

15. PSICOMOTRICIDADE
A psicomotricidade é a capacidade de projetar o modelo psíquico
consciente ou inconsciente para a ação, responsável pela discriminação dos
movimentos a serem realizados em determinada tarefa.

15.1. Alterações da psicomotricidade

• Apraxia: é a dificuldade ou incapacidade de realizar atividade


motora intencional, voluntária, sem a presença de paresia ou
paralisia, de déficit sensorial e de descoordenação motora. Refere-se
à perda da capacidade de realizar um movimento outrora aprendido
e está relacionada a lesões corticais, geralmente no hemisfério
dominante.
• Hipercinesia/taquicinesia: a hipercinesia é definida como um
aumento patológico da motricidade voluntária. É a alteração
psicomotora mais comum. Pode apresentar três níveis de gravidade:
inquietação, agitação e furor. Em geral, é secundária a
taquipsiquismo (aceleração dos processos mentais) acentuado. Está
associada a quadros maníacos, episódios esquizofrênicos agudos,
quadros psico-orgânicos agudos (intoxicação por substâncias,
síndromes de abstinência etc.) e quadros psicóticos em pessoas com
deficiência intelectual e em indivíduos com demências. A
taquicinesia é o aumento da velocidade dos movimentos.
• Hipocinesia/bradicinesia: a hipocinesia é a diminuição acentuada e
generalizada da quantidade da motricidade voluntária. A
bradicinesia é a diminuição acentuada da velocidade dos
movimentos.

• Acinesia ou estupor: é quando inexistem movimentos voluntários,


na ausência de um rebaixamento de nível de consciência. Costuma
envolver toda a atividade voluntária do indivíduo, que pode ficar
durante um grande período restrito ao leito, acordado, sem, no
entanto, esboçar nenhuma reação ao ambiente ou a outras pessoas,
apresentando mutismo, ausência de expressão facial, sitiofobia, além
de incontinência urinária e fecal e ainda abulia.
Se o estupor for acompanhado de rigidez muscular, com diminuição
da movimentação passiva e manutenção da postura corporal,
estamos diante de um quadro de catalepsia. Nesse caso, o paciente
assume, de maneira induzida, posições que podem ser incômodas,
por um grande período de tempo.

• Ecopraxia: é a reprodução automática e sem propósito de ações


motoras executadas por outra pessoa, no campo de visão do
paciente.
• Estereotipias e maneirismos: as estereotipias motoras são
repetições automáticas e uniformes, de determinado ato, que não
apresentam finalidade e sentido, inclusive para o próprio indivíduo.
Podem ser de gestos (movimentos simples de dedos e até marchas),
de posição, de lugar (buscar repetitivamente um mesmo lugar, sem
motivo plausível) ou de palavras e frases (também denominada
verbigeração). Acredita-se que as estereotipias sejam resquícios de
ações motoras que inicialmente possuíam finalidade e sentido, mas
acabaram sendo empobrecidas ou desfiguradas. Já o maneirismo é
caracterizado por movimentos bizarros e repetitivos, geralmente
complexos, que parecem buscar certo objetivo, mesmo que
esdrúxulo. Um exemplo de maneirismo é acenar (dar tchau) com
movimentos excessivamente vigorosos com duração superior a um
minuto. As estereotipias e os maneirismos podem estar presentes na
síndrome catatônica, em estados crepusculares epilépticos e no
autismo.
• Tiques motores: os tiques são atos coordenados, repetitivos,
resultantes de contrações súbitas, breves e intermitentes. Acentuam-
se muito com a ansiedade. Podem ocorrer em indivíduos sem
qualquer outra alteração mental e entre crianças ansiosas,
submetidas a estresse.
• Flexibilidade cerácea: existe uma rigidez muscular a qual consegue
ser vencida com tranquilidade pelo examinador. Isso permite que ele
coloque uma parte do corpo do paciente (seja um braço ou uma
perna, por exemplo) em posições variadas. O paciente se mantém na
postura corporal em que foi colocado, mesmo que ela seja
desconfortável. A flexibilidade cerácea é encontrada em quadros
catatônicos, na esquizofrenia, nos transtornos do humor, na
encefalite letárgica, no parkinsonismo e na síndrome neuroléptica
maligna.

• Interceptação cinética: é uma interrupção abrupta de uma atividade


motora que já havia sido iniciada (o paciente para o movimento no
meio da ação). O indivíduo se queixa de uma impossibilidade de
terminar o movimento, por causa de uma influência externa. A
interceptação cinética equivale ao roubo do pensamento (alteração
da consciência do Eu). Pode ocorrer na esquizofrenia catatônica.
• Perseveração motora: é uma repetição sem motivo de uma ação
motora que a princípio era realizada adequadamente. Por exemplo: o
examinador pede para o paciente que colocar o dedo na ponta do
nariz, e, em seguida, que o retire. O sujeito passa então a repetir o
mesmo movimento, sem que ninguém tenha solicitado. Ocorre na
esquizofrenia catatônica, e em quadros relacionados a doenças
cerebrais, como processos demenciais, deficiência intelectual, entre
outros.

16. CONSCIÊNCIA DO EU
Da mesma forma que existe uma consciência em relação aos objetos e ao
meio circundante, existe a consciência do eu, que pressupõe a tomada de
consciência do próprio corpo e mente. As dimensões do Eu e suas
principais alterações são as explicadas a seguir.
• Existência do Eu (ou vitalidade do Eu): é a sensação de estar vivo,
de existir inteiramente, de se sentir fisicamente presente de fato. No
tocante a suas alterações, a consciência da existência do Eu pode
estar reduzida ou aumentada. Se reduzida, o paciente vai relatar que
suas sensações corporais, seus sentimentos, suas lembranças ou sua
motivação estão menos intensos (como na depressão); se aumentada,
ocorre uma exacerbação do sentimento vital (como na mania).

• Unidade do Eu: é a certeza de ser um indivíduo único, integrado


aos seus comportamentos e pensamentos. Uma alteração básica seria
o fenômeno do desdobramento do Eu, que é a divisão da
personalidade de uma pessoa em uma ou mais partes, que coexistem,
muitas vezes, de forma conflituosa.
• Atividade do Eu: pode ser também chamada de execução ou
autonomia do Eu. Consiste em acreditar ser o indivíduo atuante de
suas próprias vivências. Se alterada, o paciente torna-se um simples
observador passivo de suas existências psíquicas, que não reconhece
como sendo suas. Por exemplo, alguns pacientes esquizofrênicos
têm a sensação de que as atividades da sua mente e do seu corpo são
realizadas por imposição de alguém externo ao Eu.
• Identidade do Eu: é ter a consciência de ser a mesma pessoa
durante todo o tempo, mesmo diante das mais diversas situações e
apesar das mudanças de muitos aspectos da personalidade. Está
relacionada a uma qualidade de continuidade. Quando alterada,
como em alguns casos de esquizofrenia ou outras psicoses, o
indivíduo refere não ser mais a mesma pessoa. Às vezes pode até
referir a si como um outro ser, um “mutante” ou um ser espiritual.

• Delimitação do Eu: é o estabelecimento de uma demarcação


precisa entre o nosso corpo e os objetos do ambiente externo e entre
as vivências e as vivências do indivíduo e as das outras pessoas.
Quando alterada, ocorre uma fusão do eu com o mundo externo – o
paciente se identifica com os objetos do mundo externo e não
consegue se diferenciar deles. Ocorrem com mais frequência na
esquizofrenia e na intoxicação por alucinógenos.

17. INSIGHT
• O insight, também chamado de consciência de morbidade, se refere
à percepção do indivíduo sobre seu estado de saúde. Dizemos que o
insight está presente quando o paciente consegue reconhecer que
determinadas vivências ou comportamentos seus estão alterados, por
meio da noção que há uma doença está acometendo-o e que se trata
de um transtorno mental, não físico. Pacientes com consciência da
morbidade possuem melhor adesão ao tratamento, visto que é de se
esperar que quem não se ache doente não queira se tratar.

17.1. Alterações do insight


O insight não se resume a estar “ausente ou presente”. Entre esses dois
extremos, pode haver um insight parcial. Vale salientar que o quanto uma
pessoa entende sobre a sua condição não é um indicador de gravidade da
doença. Uma pessoa com psicose pode ter bom entendimento, enquanto
uma pessoa com um transtorno de ansiedade leve pode ter pouco ou
nenhum entendimento.

18. SÚMULA PSICOPATOLÓGICA


A súmula tem uma grande importância na psiquiatria, uma vez que busca
uniformizar a prática da teoria psicopatológica na avaliação de um caso
clínico concreto. A súmula é descrita com termos técnicos e vai ser
composta pelas funções mentais que foram avaliadas durante o EM.
Didaticamente, após ter sido descrito o exame mental, é feita a sua súmula
psicopatológica, que nada mais é que uma síntese do exame psíquico.
Diante de um exame psíquico bem descrito, qualquer deverá ser capaz de
realizar a mesma súmula psicopatológica.
Não existe uma regra quanto à melhor maneira de se organizar a súmula,
nem quanto ao número de funções mentais descritas ou à ordem de
apresentação delas. Às vezes, quando estamos descrevendo uma alteração
quantitativa, pode ser interessante estimar a intensidade delas, a fim de ter
uma maior precisão, de maneira análoga ao que costuma ser feito no exame
físico. Por exemplo, “pensamento acelerado (3+/4+)”. Também é válida a
atribuição de graus de segurança quanto à presença ou não de determinada
alteração (por exemplo: “juízo de realidade delirante?”).
A seguir, será descrito um exemplo de um exame psíquico, com
algumas modificações, a fim de torná-lo mais didático. Ao final, será
realizada a súmula psicopatológica.

18.1. Exemplo de um exame mental


A paciente foi por mim examinada na enfermaria de psiquiatria de um
hospital em Sobral, no Ceará, no qual ela estava internada.
Encontro a paciente no leito, sem acompanhantes, deitada na cama, a
qual fica encostada na parede, ao lado de uma janela. Está em decúbito
dorsal, com a face e os cabelos molhados de suor, trajando a bata do
hospital e por baixo um short jeans. Na mão esquerda, tem um terço
enrolado no punho e uma aliança, está usando um colar com um pingente
discreto. As unhas estão curtas e um pouco sujas. Embora estivesse com
suas roupas sujas de comida, ela não exalava mau odor. Observo que a
paciente apresenta um olhar perdido e não esboça nenhuma reação quando
me aproximo. Então, me apresento à paciente como sua médica, e ela
permanece na mesma posição, sem fazer contato visual e fala apenas:
“Levi, Levi, Levi...”, lentamente e repetidas vezes. A fim de iniciar a
entrevista, pergunto seu nome completo, ela responde falando muito baixo e
com velocidade normal, porém fica repetindo seu último nome várias vezes
“Cândido, Cândido, Cândido...”. Em seguida, pergunto a sua idade, mas,
nesse momento, se vira para o lado da parede, bem devagar, cospe no chão,
e volta para a posição inicial, sem me encarar. Tento reiniciar a conversa
com a paciente, mas ela não faz contato comigo. Ao mesmo tempo em que
tento falar com ela, uma outra paciente está cantando muito alto do lado de
fora, próximo à janela, uma música religiosa. A paciente, então, começa a
fazer o sinal da cruz, e o repete por três vezes, porém, na última, interrompe
bruscamente o movimento, fica parada por alguns segundos, e volta a se
virar na cama, de costas para mim. Após algumas tentativas frustradas de
me comunicar com a paciente, chega a sua acompanhante. Ao vê-la, a
paciente fala “oi”, mas não altera muito a mímica facial. Pergunto a ela
quem é essa moça que chegou, e ela me responde, numa voz muito baixa,
que é sua irmã, e sem que eu pedisse, fala o seu nome. Começo a conversar
com a irmã que, em um dado instante, fala que a paciente sempre falava em
Satanás. Nesse momento, a paciente repete: “Satanás, Satanás...”. Tento
mais uma vez conversar com a paciente e questiono se ela sabe onde está.
Ela leva um tempo para responder, mas diz: “hospital”. Pergunto o que
aconteceu para ela ter vindo para o hospital e ela aparenta refletir um pouco
e, quando abre a boca para começar a responder, para abruptamente, vira o
rosto um pouco de lado, olha em direção à parede, sussurra algumas
palavras que não consigo compreender e depois põe as mãos nos ouvidos e
fala: “sai, sai, sai”, com voz de choro, embora sua expressão facial não
denotasse tristeza. Logo depois, a paciente coloca o polegar na boca, chupa
o dedo e se vira novamente para a parede e cospe. Observo a parede e
percebo que há três comprimidos cuspidos, pregados na parede, e um
comprimido em cima do travesseiro. Continuo conversando com a irmã,
que fala que em casa a paciente sempre falava em morte, tiro e bala. Pouco
depois, a paciente aponta dois dedos para mim, em formato de arma, e diz
“pei, te matei”, e fica repetindo esse gesto uma porção de vezes. Em
seguida, ela começa a fazer movimentos circulares com as mãos e fica
balançando as pernas como se estivesse dando chutes. Observo que, quando
coço a minha cabeça, a paciente imita o mesmo movimento que eu fiz.
Durante todo o tempo em que estive com a paciente, ela parecia estar
bem distante emocionalmente, expressando muito pouco suas emoções. A
minha presença na enfermaria não a alegrava, mas também não a
incomodava. Embora a todo instante passassem pessoas diante da janela,
quase nunca desviava seu olhar para aquela direção.
Ao final da entrevista, peço licença à paciente para examiná-la, mas
quando toco em seu braço, ela começa a gritar, depois chora sem motivo
aparente e oferece resistência. Após mais uma tentativa, paciente dá as
costas para mim e eu encerro a entrevista.

18.2. Súmula psicopatológica

• Aparência: vestes hospitalares, higiene prejudicada.


• Atitude: pouco cooperativa; na maior parte do tempo, indiferente.
• Consciência: alerta.
• Atenção: hipovigil e hipotenaz (hipoprosexo).
• Orientação: autopsíquica preservada; alopsíquica orientada em
relação ao espaço e às pessoas, orientação temporal não avaliada.

• Linguagem: bradifasia, com palilalias e ecolalia.


• Pensamento: bloqueio do pensamento. Na maior parte do tempo,
bradipsíquico, desconexo, sem conteúdo predominante.

• Sensopercepção: alucinações auditivas; atitude alucinatória.


• Afeto: embotado.
• Humor: indiferente.
• Inteligência e memória: não foram possíveis avaliar.
• Volição: hipobúlica.
• Psicomotricidade: bradicinética, com ecopraxia, estereotipias.
• Insight: ausente.
A construção do exame mental e da súmula, permite ao clínico
identificar síndromes psicopatológicas vigentes sem a necessidade de uma
anamnese completa. Possibilita, portanto, na maioria das vezes, a
introdução de um tratamento (voltado para a síndrome). Isso é
particularmente interessante naqueles pacientes desorganizados e
desacompanhados, em que a formulação de um diagnóstico nosológico,
pela falta de informações vitais da história clínica, se torna um grande
desafio.
19. REFERÊNCIAS
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AMA da S, editor. Psiquiatria: Estudos Fundamentais. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan;
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25. Sanches M, Marques AP, Ortegosa S, Freirias A, Uchida R, Tamai S. O exame do estado
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36. David Wechsler. The measurement and appraisal of adult intelligence. Williams, Wilkins,
editors. Baltimore; 1958.

SIGLAS

• EM Exame Mental
• RNC Rebaixamento do Nível de Consciência
Síndromes do Humor
Nesta seção reunimos as manifestações patológicas do humor que o
generalista deve se habituar com o diagnóstico e manejo, seja pela
importância epidemiológica, seja pela sua importância clínica. Além das
principais nosologias – depressão maior, depressão persistente (distimia)
e transtorno bipolar – incluímos também a crise suicida. Essa, a crise
suicida, apesar de presente nesta seção, não é provocada apenas pelas crises
de humor, como veremos no capítulo que trata sobre o tema; contudo, as
doenças do humor são as patologias psiquiátricas mais implicadas no
suicídio.
As polarizações do humor caracterizam-se pela saída do paciente do seu
tônus afetivo basal normal (a eutimia) e a migração, de forma consistente,
por vários dias, a maior parte do tempo, para os polos depressivos –
distimia e hipotimia (depressão) – ou para os polos maniformes –
hipomania e mania. Há também pacientes que, de forma contra intuitiva,
experimentam sintomas dos dois polos simultaneamente, condição
conhecida tradicionalmente como episódio misto. O DSM-5 prefere adotar
a nomenclatura “características mistas”. Exemplo: um paciente que
preencha critérios para um episódio maníaco com características mistas
deve ter os critérios para mania satisfeitos e, pelo menos três sintomas do
polo oposto (depressão), devem estar presentes simultaneamente.

Figura 1 – Polarizações do humor


Fonte: Extraído de Stahl SM. Psicofarmacologia: bases neurocientíficas e
aplicações práticas.
4 ed. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan; 2017.
1. CASO CLÍNICO 1
Arabella, 26 anos, estudante de Medicina, vem para o ambulatório de
psiquiatria acompanhada de sua irmã. A paciente referiu sensação de
vazio interior e inutilidade, desânimo intenso com dificuldade para as
atividades diárias, passando a maior parte do dia deitada. A
acompanhante refere que Arabella perdeu peso e estava muito chorosa
nas últimas seis semanas. Acrescentou que sua irmã não costumava ser
assim. Atribui sintomas a uma queda no seu desempenho acadêmico,
mesmo diante de seus esforços para impedir tal redução na
aprendizagem.
Não há histórico nenhum de episódio depressivo ou maníaco
anterior. Paciente não apresenta quaisquer comorbidades, não faz uso
de medicações, não é etilista e não realiza atividades físicas.

Exame mental: paciente entra na sala cabisbaixa, tem aparência


emagrecida e abatida, com olheiras bem evidentes. Apresenta
latência no tempo de resposta e redução da atenção global.

2. DISCUTINDO O DIAGNÓSTICO
O estado melancólico é reconhecido desde os tempos de Hipócrates. O
próprio termo “melancolia” significa “bile negra”, de acordo com a
teoria humoral difundida na Grécia Antiga. Foi só durante o Iluminismo
que tal estado foi caracterizado como uma “neurose”, termo empregado
de forma pioneira por William Cullen. Apenas no século 19 o termo
“depressão” surge, pela primeira vez, com um sentido mais próximo ao
atual, e por volta de 1860 a palavra começa a aparecer nos dicionários
médicos. Philippe Pinel classificou a “melancolia” como doença e
destacou a predisposição desses pacientes a cometerem suicídio.
O assunto que abordaremos aqui é de extrema relevância, visto que
o transtorno depressivo maior (TDM) foi considerado pela Organização
Mundial da Saúde como o “mal do século” e afeta aproximadamente
264 milhões de pessoas no mundo inteiro. Trata-se de uma doença que
se comporta como um sequestrador, que além de roubar a vitalidade de
sua vítima, a faz acreditar que não existe solução para seus problemas,
quando, na verdade, a chave para sair do cárcere encontra-se em suas
mãos. A tarefa do médico psiquiatra e do psicólogo, ambos em ação
conjunta, é fazer com que o paciente entenda que pode ser ajudado e
que, com o tratamento correto, a doença pode ter sua resolução.
Para entendermos melhor com o que estamos lidando, é preciso
saber que a depressão maior está dentro do conjunto de transtornos do
humor unipolares (em contraste com os transtornos de humor
bipolares). É caracterizada pelo DSM-5 como a presença de humor
triste, vazio ou irritável em associação com alterações somáticas e
cognitivas, causando algum nível de prejuízo à pessoa afetada, com
duração igual ou superior a duas semanas, não ultrapassando dois anos
de forma ininterrupta (critério este que se faz presente para o
diagnóstico de depressão persistente ou distimia, explicitada mais
adiante neste capítulo). Para fechar o diagnóstico de transtorno
depressivo maior é preciso que o paciente apresente pelo menos 5
critérios destes listados a seguir, sendo obrigatória a presença de pelo
menos um dos dois primeiros critérios:

1. Humor deprimido na maior parte do dia, quase todos os dias.


Em crianças ou em adolescentes, além do humor deprimido,
pode ocorrer irritabilidade.
2. Anedonia, ou seja, perda da capacidade de sentir prazer nas
coisas que anteriormente eram satisfatórias e traziam alegria.
3. Aumento ou perda do peso sem que o paciente tenha feito
dieta ou mudado de alguma forma seus hábitos alimentares.
4. Insônia ou hipersonia.
5. Agitação ou retardo psicomotor.
6. Fadiga ou perda de energia.
7. Sentimentos de inutilidade ou culpa excessiva.
8. A concentração pode estar prejudicada, podendo estar
acompanhada de lentificação da fala.
9. Pensamentos de morte ou suicídio.

A lógica é que as alterações nas funções mentais e no


comportamento do indivíduo acometido sejam compatíveis com o
estado de humor rebaixado. Assim, teremos na dimensão do
pensamento a desesperança, o pessimismo, ruminações de mágoas
antigas, pensamentos de inutilidade e morte, autoculpabilização
excessiva, autoestima diminuída e sentimento de incapacidade. Na
cognição, teremos dificuldade de concentração, de memória e na
tomada de decisões (pseudodemência ou “falsa demência” do
depressivo). A psicomotricidade também pode estar afetada, com
latência no tempo de resposta, diminuição do fluxo da fala, lentificação
global e, em casos graves, pode haver sintomas psicóticos congruentes
com a alteração afetiva, como delírios de ruína, miséria e/ou culpa e
alucinações auditivas de conteúdo depreciativo ou de comando suicida.
Observemos, no entanto, que na descrição acima há dois sintomas
que aparentemente se contradizem: insônia e hipersonia, perda e
aumento de peso. As depressões que cursam com aumento de peso e
hipersonia são chamadas de atípicas: essas geralmente se acompanham
de uma sensação de “corpo pesado” (paralisia plúmbea) e possui
relação com transtorno bipolar, sugerindo vigilância, quando iniciado o
tratamento, em relação ao possível surgimento de sintomas ou sinais da
esfera hipertímica (como aumento de energia ou hipomania).
Além dos aspetos qualitativos da síndrome apresentados aqui, a
quantidade dos sintomas apresentados nos permite diferenciar o
episódio em leve, moderado, grave e grave com sintomas psicóticos
(segundo a CID-10). No episódio depressivo leve, o paciente
apresentaria, além dos sintomas fundamentais (humor deprimido e
anedonia), 2 sintomas acessórios. No episódio depressivo moderado,
o paciente teria 3 ou 4 sintomas mencionados acima, e no caso grave,
mais de 4. Caso ocorram sintomas psicóticos, como delírios,
alucinações ou catatonia (estupor depressivo), estamos diante do
episódio grave com sintomas psicóticos.
É importante salientar que outros transtornos psiquiátricos também
poderão apresentar alguns desses sintomas; logo, é preciso que o
médico saiba diferenciar bem uma patologia de outra. Para tanto, ele
deverá conduzir uma entrevista cuidadosa e detalhada, guiada pela
queixa do paciente, duração e frequência dos sintomas e quão
prejudiciais eles são nas atividades cotidianas do indivíduo. Ou seja,
tendo em mente a caracterização do episódio depressivo como um
fenômeno dimensional, no qual em um extremo estariam sintomas de
entristecimento normais, e no outro depressões graves com sintomas
psicóticos, poderíamos compreender melhor e realizar um diagnóstico
certo por meio da abordagem de aspectos como duração dos sintomas,
persistência, abrangência e influência no funcionamento habitual do
paciente; assim como a desproporcionalidade da condição que se
apresenta em relação a qualquer provável fator precipitante cogitado
pelo paciente.

3. ASPECTOS SOBRE
EPIDEMIOLOGIA E ETIOLOGIA
A depressão é considerada mundialmente a maior causa de
incapacitação e, segundo a Organização Mundial da Saúde, em 2030,
projeta-se que será a enfermidade mais prevalente no planeta. Um
estudo populacional realizado em São Paulo estimou que 10,6% da
população brasileira apresentava um episódio depressivo ao longo de
12 meses. A depressão é responsável pela maior parte dos suicídios,
sendo que 2/3 das ocorrências de tal fenômeno são cometidas por
portadores de depressão.
Os transtornos depressivos apresentam alta comorbidade com outros
quadros clínicos gerais, como artrite, lombalgia, problemas
cardiológicos (incluindo infarto agudo do miocárdio), hipertensão
arterial e hipotireoidismo, para citar alguns. Quando isso ocorre,
geralmente há um pior prognóstico para ambos os problemas. Devido a
tal fato, nem sempre é fácil reconhecer um quadro depressivo, pois boa
parte dos sintomas físicos dos pacientes que buscam atendimento
ambulatorial não está associada a processo orgânico de doença. O
diagnóstico mais comum em cuidados primários é o de não doença.
Quanto mais sintomas físicos sem explicação o paciente apresente,
maior a chance de receber um diagnóstico de depressão e maior será
sua incapacidade social e profissional.
Boa parte (cerca de 46%) dos pacientes que sofrem de um episódio
depressivo terão um segundo episódio. Também é alto o número de
pacientes com curso crônico sem remissão dos sintomas. Aqui
deparamos com as diversas modalidades de apresentação da depressão
maior, que pode se configurar como “episódio depressivo maior”
(nomenclatura reservada a um primeiro quadro de depressão
apresentado que preencha os critérios diagnósticos anteriormente
citados; “transtorno depressivo recorrente”, quando o paciente já
apresenta uma recorrência de quadro depressivo maior) “depressão
persistente” ou distimia, quando o indivíduo apresenta sintomas por um
período maior que 2 anos, porém que não preenchem critérios
completos para um episódio maior (explicado posteriormente neste
capítulo).
É interessante mencionar que o TDM é mais prevalente no sexo
feminino. Para ilustrar essa realidade usaremos um estudo transversal
realizado no município da Zona da Mata Mineira, nas Unidades de
Saúde da Família desse mesmo local, em que comparando com a
porcentagem de TDM em homens (9,7%), as mulheres alcançaram a
porcentagem de 21,6% dos casos da população. Acredita-se que o
transtorno depressivo maior seja causado por múltiplos fatores, que em
conjunto ajudam a desencadear essa doença, e alguns eles estão
representados no fluxograma a seguir.

Fluxograma 1 - Possíveis fatores causais para depressão.


Fonte: elaborada pelos autores.

Algumas características de personalidade podem estar associadas ao


irrompimento de um transtorno depressivo, como a introversão, a
preocupação e a sensibilidade excessivas e a dependência. O
desencadeamento de um transtorno depressivo é, muitas vezes,
consequente de um fator estressante, geralmente constituído como um
acontecimento vital, um estresse crônico ou mesmo problemas
cotidianos. No entanto, da mesma forma que existem fatores
agravantes, assim também se fazem presentes os protetores, como, por
exemplo: ampla rede de apoio (família e amigos), presença de
companheiro(a) e religiosidade.

4. DIAGNÓSTICO DIFERENCIAL
Logo no início deste capítulo, no tópico em que estávamos discutindo o
caso, foi mencionado que era preciso que o médico que estivesse o
conduzindo soubesse diferenciar bem as patologias, para assim
diminuir a probabilidade de erro diagnóstico. Assim, também foi dito
que o caminho para o acerto do diagnóstico encontrava-se em uma boa
anamnese, delimitando o início dos sintomas, o fator desencadeante
deles – se houver algum – bem como a frequência e por último o
prejuízo causado por eles no dia a dia do paciente. Dito isso, podemos
prosseguir para as demais doenças que fazem parte do diagnóstico
diferencial de TDM e que podem mimetizar os sintomas (Quadro 1).

Quadro 1 - Outros transtornos ou condições que cursam


comumente com sintomas depressivos
Episódios maníacos com A distinção de TDM é feita por meio da
humor irritável. presença clínica de sintomas maniatiformes.

Transtorno depressivo ou Neste transtorno uma determinada substância


bipolar desencadeado por ou medicamento poderá ser a etiologia da
uso de medicamentos. crise.

Pode ser diagnosticado em conjunto com o


Transtorno de déficit de TDM, desde que cumpra os critérios. É
atenção e hiperatividade. necessária atenção em crianças, para não
confundir tristeza com irritabilidade.

A diferença dele para TDM é a não existência


Transtorno de adaptação com de todos os 5 sintomas e também a
o humor deprimido. necessidade premente de um estressor
psicossocial.

Aqui é importante o médico verificar a


Transtorno de humor por existência de outra condição médica que
outra condição médica. mimetize os sintomas como: hipotireoidismo;
acidente vascular encefálico; dentre outros.

Aqui o médico deverá avaliar se o paciente


está passando por um luto, por exemplo, ou
outra condição que o afete sobremaneira (isso
pode ser testado também pela reatividade do
Tristeza.
indivíduo aos estímulos positivos, ocorrência
que não procede na depressão maior, de fato).
Os outros comemorativos da depressão não
estarão presentes.

Fonte: elaborada pelos autores.

4.1. E aí, o que fazer?


Primeiramente, é importantíssimo que o médico que conduz o caso se
mostre atencioso e que saiba exercer a empatia com o seu paciente,
visto que a depressão ainda é um tema muito delicado de se discutir,
principalmente pela dificuldade dos pacientes em reconhecer sua
condição de “doente”. É fundamental que o paciente confie e se sinta
acolhido por seu médico, pois assim existe também maior
probabilidade de adesão ao tratamento, reduzindo então o risco de
abandono deste.
É conveniente, além de uma esmiuçada história clínica, investigar a
possibilidade de condições físicas ou medicamentosas que possam
explicar o surgimento de sintomas depressivos (hipotireoidismo,
anemias, patologias hepáticas etc.). Isso poderia ser feito por meio de
medidas como exame físico e investigação laboratorial (quando houver
suspeita): hemograma, ureia e creatinina, transaminases hepáticas,
gama-GT, T4 livre, TSH e qualitativo de urina. Se houver história
familiar de cardiopatia e/ou o paciente tiver idade acima de 40 anos,
seria prudente eletrocardiograma ou avaliação cardiológica. Após isso,
avaliaremos tudo aquilo que possa servir de gatilhos para que os
episódios depressivos aconteçam e, por meio do trabalho adjunto com
psicoterapia, será proporcionado ao paciente o desenvolvimento de sua
resiliência e de estratégias para melhor lidar com tais gatilhos, ou a
saber reagir de outra maneira a eles. É interessante lembrar que quanto
maior a rede de apoio que o paciente possuir, mais amparado ele se
sentirá, e menos risco ele apresentará a si mesmo caso tenha ideação
suicida.
Diversas modalidades de psicoterapia podem ser utilizadas nos
quadros depressivos, tanto TDM como depressão persistente:

• Terapia cognitivo-comportamental: associa estratégias


baseadas na compreensão de que cognições mais saudáveis
conduzem a padrões de comportamento mais adaptados, em
via de mão dupla.
• Terapia interpessoal: ressalta as relações interpessoais
saudáveis como interferentes na depressão, sendo a ruptura
destas um dos fatores em seu desenvolvimento.

• Terapia em grupo: oferece oportunidade de explorar modos


de interação e proporciona ao paciente o conhecimento de que
outros também compartilham de quadro semelhante.

• Terapia familiar: atende situações específicas de interações


inadequadas entre membros familiares que podem se
configurar como questões centrais na origem e na manutenção
da sintomatologia.

Em conjunto com a psicoterapia e com o tratamento farmacológico


que comentaremos adiante, podemos aliar também mudanças de estilo
de vida que são refletidas na alimentação, prática de exercícios físicos e
diminuição dos fatores estressantes.

5. FARMACOTERAPIA
São utilizados antidepressivos (AD) que, apesar da alcunha, não são
utilizadas exclusivamente para transtornos depressivos, mas também
para diversas condições, como quadros patológicos de ansiedade,
transtorno obsessivo-compulsivo, transtornos alimentares etc.
Essas medicações possuem diferentes mecanismos de ação (vide
capítulo “Antidepressivos”), mas com o mesmo objetivo, que seria
aumentar a concentração e/ou a ação da serotonina e de outros
neurotransmissores envolvidos (como dopamina e noradrenalina) nas
fendas sinápticas. Sendo assim, eles têm as subdivisões apresentadas no
Quadro 2.

Quadro 1 - Antidepressivos em suas classes farmacológicas


Inibidores da monoaminoxidase (IMAO)
Não seletivos e irreversíveis Seletivos e irreversíveis Seletivos e reversíveis

Iproniazida Brofaromina

Tranilcipromina Clorgilina (MAO-A) Moclobemida

Fenelzina Befloxatona

Inibidores não seletivos de recaptura de monoaminas


(ADTs – antidepressivos tricíclicos)

Imipramina Amitriptilina

Clomipramina Nortriptilina

Inibidores seletivos de recaptura de serotonina (ISRS)

Fluoxetina Sertralina Fluvoxamina

Paroxetina Citalopram Escitalopram

Inibidores de recaptura de 5-HT/NE (IRSN)

Venlafaxina Duloxetina Desvenlafaxina

Inibidores de recaptura de 5-HT e antagonistas ALFA-2 (IRSA)

Nefazodona Trazodona

Estimulantes da recaptura de 5-HT (ERS)

Tianeptina

Inibidores seletivos de recaptura de noradrenalina (ISRN)

Reboxetina Viloxazina

Inibidores seletivos de recaptura de DA (ISRD)

Amineptina Bupropiona Minaprina

Antagonistas de alfa-2 adrenorreceptores

Mianserina Mirtazapina

Fonte: Elaborada pelos autores.


5-HT: serotonina; NE: noradrenalina; DA: dopamina
Os efeitos terapêuticos dos ADs em geral podem ser vistos de duas
a quatro semanas após o início do tratamento. Esse é um tempo médio,
pois alguns pacientes respondem antes desse prazo, e outros podem
exigir mais que oito semanas para uma resposta adequada. A
farmacoterapia, em geral, obedece aos passos: ensaio clínico com um
AD de primeira escolha; aumento da dose; troca para outra classe;
potencialização ou combinação de ADs; tratamentos específicos para
refratariedade. Fala-se em tratamento da fase aguda os 2 a 3
primeiros meses de farmacoterapia, no qual os objetivos visam a
redução dos sintomas depressivos (resposta) com meta à remissão dos
sintomas. A seguir, com a remissão ou resposta de pelo menos 90% dos
sintomas, entra-se no tratamento de continuação (4 a 9 meses), no qual
deve-se manter a melhora obtida evitando recaídas dentro do mesmo
episódio depressivo. Em alguns pacientes, será necessário o tratamento
de manutenção, quando se trata de uma depressão recorrente (no qual o
histórico é composto de mais de um episódio depressivo).
A superioridade de um AD em relação a outros não foi, até então,
bem-estabelecida, sendo encontradas informações contraditórias ou
divergentes até o momento. A escolha do AD dependerá das
características clínicas do episódio depressivo e também de fatores
como: resposta anterior ao uso da medicação (tanto dos pacientes como
de seus familiares), perfil de efeitos colaterais, condições clínicas do
paciente, sua idade, comorbidades psiquiátricas e presença de sintomas
psicóticos.
Atualmente, os antidepressivos mais utilizados são os Inibidores
Seletivos de Recaptação da Serotonina, visto que eles têm menor
perfil de efeitos colaterais em comparação aos demais, apresentam
melhor tolerabilidade e maior janela terapêutica. Eles agem
potencializando a neurotransmissão serotoninérgica, inibindo
seletivamente, assim como seu nome diz, a receptação da serotonina.
Seus efeitos colaterais são variáveis e estão entre eles, vômito, diarreia,
dor abdominal, aumento da ansiedade (principalmente nas duas
primeiras semanas de uso) alterações de sono e alterações no peso.
Maiores detalhes sobre os potenciais efeitos adversos e terapêuticos dos
ADs serão vistos no capítulo Antidepressivos.
Apresentamos a seguir um quadro com especificidades de classes
AD em relação as condições do paciente (incluindo comorbidades):

Quadro 2 - Antidepressivos em condições específicas


Presença de cardiopatia Evitar ADTs.

Contraindica maprotilina.
Presença de epilepsia
Cuidado com aumento de dose de bupropriona.

Obesidade Evitar ADTs e mirtazapina.

Podem agravar-se com ISRS, favorece uso de


Disfunções sexuais trazodona, nefazodona, mirtazapina ou
bupropriona.

Preferir sertralina, citalopram ou reboxetina;


Idosos
caso opte por ADT, preferir nortriptilina.

Amitriptilina ou mirtazapina poderão ser uma


escolha para contrabalancear tais sintomas
Comorbidade com insônia ou
associados; por opção, associar
ansiedade grave.
benzodiazepínico. Evitar bupropriona pelo
potencial piora da ansiedade ou agitação.

Associação com transtorno de pânico,


com transtorno obsessivo-compulsivo Preferir medicações que tratam também as
ou com transtorno de ansiedade comorbidades: ISRS, IRSN ou clomipramina.
generalizada.

Fonte: elaborada pelos autores.

5.1. Redescobrindo o caso


4

1 Sexo feminino

2 Humor deprimido

3 Culpa/inutilidade

4 Fadiga

5 Perda do apetite/peso

6 Tempo de evolução (> 15 dias)

7 Possível estressor

Diminuição da concentração e
8
bradipsiquismo

A paciente é do sexo feminino, tem sintomas de anedonia,


desânimo, e pensamentos sugestivos de baixa autoestima. A irmã
também nos deu informações importantes, pois mencionou o
emagrecimento, bem como o humor depressivo e o tempo de início dos
sintomas. A paciente também relatou o motivo e apontou uma provável
alteração em sua concentração/atenção, que em casos de depressão
maior pode encontrar-se prejudicada. Em seu exame mental podemos
notar o quanto está abatida, pois já entra cabisbaixa no consultório e
nota-se sem muito esforço que está com olheiras e emagrecida. Todas
essas informações somadas corroboram com o diagnóstico de TDM.
O quadro não sugere motivações secundárias para o quadro
(doenças médicas gerais ou uso de substâncias psicoativa). O clínico
deve averiguar ativamente a presença de ideias suicidas ou sintomas
psicóticos. Por fim, é importante o estímulo à atividade física, tão cedo
a paciente melhore em sua disposição e energia, assim como deve-se
incentivar e acompanhar a psicoterapia associada

Exemplo de uma prescrição para Arabella


Paroxetina 20mg, 1 comprimido, via oral, por dia.

6. CASO CLÍNICO 2
Ana Júlia, 18 anos, solteira, estudante, veio acompanhada de sua mãe
para o consultório de psiquiatria com queixas de tristeza, desânimo e
desesperança. Quando questionada sobre o início dos sintomas, disse
que sempre foi assim, nem lembrava há quanto tempo (pelo menos três
anos), mas que recentemente notou piora do quadro e resolveu ir ao
médico por insistência da mãe e dos amigos. Quando a acompanhante
da paciente foi interrogada sobre o comportamento da filha, ela afirmou
que Ana Júlia parecia estar triste a maior parte do tempo e não
demonstrava ter alegria, sendo raras as vezes que ela tinha bom humor.
Referiu que a filha também não se alimentava ou dormia direito, e se
referiu a ela como uma pessoa “amarga” com a vida.

Exame mental: paciente entra cabisbaixa no consultório, com


roupas escuras e largas, tem aparência cansada, está emagrecida e
com olheiras bem evidentes. Diz não ter muitas expectativas sobre
seu futuro.

7. DISCUTINDO O DIAGNÓSTICO
Distimia é uma palavra proveniente do grego que significa “mau
humor”, que foi utilizada durante muitos anos para definir um sujeito
mal-humorado. Por essa razão, a palavra foi apropriada para definir
uma condição clínica relacionada a excesso de irritabilidade e
pessimismo em um indivíduo. Após diversas mudanças de visão sobre
tal apresentação clínica, que incialmente fora encarada como um
transtorno de personalidade, chegou-se à descrição atual, cujo termo foi
modificado para depressão persistente.
A distimia (ou transtorno depressivo persistente) seria o equivalente
ao transtorno depressivo maior, porém cronificado. Nesse caso, os
sintomas devem prevalecer por no mínimo dois anos, ou pelo menos
um ano para crianças e adolescentes. Devido a esse fator temporal
prolongado, é muito comum que o paciente declare “sou assim desde
sempre”, e dificilmente acreditará que tem algum problema de saúde.
Geralmente a busca por auxílio ocorre quando há intensificação dos
sintomas, ou quando o indivíduo é estimulado por familiares e/ou
amigos a procurar auxílio. Essa característica torna o diagnóstico da
doença muito mais difícil.
Assim, de acordo com o DSM-5, a depressão persistente ou distimia
caracteriza-se por ser um humor depressivo persistente, de início
insidioso, que está presente na maior parte do dia, por um período igual
ou maior do que dois anos. Em crianças e adolescentes o tempo para
diagnóstico é menor, podendo ser de apenas um ano. Anteriormente, a
distimia era tida como um distúrbio de personalidade – o que seria uma
condição permanente – e não como uma doença, tratável e curável com
psicoterapia e tratamento clínico.
Devido aos sintomas serem insidiosos e estarem presentes de
maneira crônica, o indivíduo que possui distimia acredita que essa é a
“personalidade” dele, o que o leva a acreditar que é uma pessoa triste e
que vai permanecer assim, não procurando a ajuda médica. O quadro
distímico pode ser tão prejudicial quanto o transtorno depressivo maior.
É importante mencionar que esse distúrbio não apresenta somente o
humor depressivo, como também podem estar presentes outros
sintomas, são eles:

1. Alterações no apetite (muito aumentado ou diminuído).


2. Insônia ou hipersonia.
3. Baixa autoestima.
4. Sentimentos de desesperança.
5. Concentração diminuída e capacidade reduzida de tomar
decisões.

Porém, antes de firmar o diagnóstico de depressão persistente,


precisamos investigar se esses sintomas não são advindos de outro
distúrbio psiquiátrico/orgânico ou até causados por algum tipo de
substância, como uso de drogas ou medicações.

7.1. Aspectos sobre a epidemiologia, etiologia e


curso da doença
Quanto aos aspectos epidemiológicos, mundialmente a distimia,
juntamente com a depressão maior, tem prevalência de
aproximadamente 12%. É observado também que mulheres têm duas
vezes maior prevalência de distimia do que homens. Geralmente ocorre
associada a episódios depressivos maiores, e nesses casos a
possibilidade de remissão completa entre os episódios é bem menor.
Pacientes com depressão persistente comumente são polimedicados,
devido à cronicidade dos sintomas.
A etiologia da distimia, assim como dos demais estados
depressivos, é multifatorial; ou seja, envolve fatores biológicos, sociais
e psicológicos. Podemos citar também como fatores de risco:

1. Genética.
2. Doença mental prévia.
3. Ansiedade.
4. Estilo de vida.
5. Neuroticismo.
6. Histórico familiar (familiares de primeiro grau).

7.2. Diagnóstico diferencial


Primeiramente, precisamos excluir causas orgânicas que possam
ocasionar esses sintomas. Feito isso, passamos para as demais hipóteses
diagnósticas. O diagnóstico diferencial abrange outros distúrbios que
não se encaixam nos critérios de distimia, são eles:

1. Depressão Maior.
2. Transtorno Bipolar.
3. Distúrbios Psicóticos.
4. Transtornos de Personalidade.

A depressão maior foi destacada porque existem pontos a serem


elucidados a respeito da diferenciação dela quanto à distimia. De
acordo com o DSM-5, podemos distinguir o episódio distímico de um
episódio depressivo de acordo com o tempo de duração dos sintomas,
que é inferior a dois anos, no caso do transtorno depressivo maior. Caso
os critérios sejam preenchidos tanto para distimia quanto para
depressão, sendo a última persistente nos últimos dois anos, esta será o
especificador. A agudização de um quadro distímico com um episódio
de depressão maior, é chamado de depressão dupla.

7.3. E aí, o que fazer?


É necessário que o médico que vai conduzir a consulta saiba fazer uma
boa anamnese, assim como realizar a escuta ativa, exercitando a
empatia e encorajando o paciente a falar com perguntas abertas, sempre
procurando estimular uma boa relação médico-paciente.
Assim como a distimia possui inúmeras causas para a sua
ocorrência, seu tratamento não poderia abordar somente uma área para
ocasionar a melhora do paciente. O tratamento deve ter uma ampla
abordagem, focando não só apenas a melhora do paciente, mas também
fortalecendo seu funcionamento psicossocial e evitando sequelas desse
distúrbio, principalmente no caso de crianças e adolescentes.
O tratamento constitui-se primordialmente de psicoterapia
(geralmente de longo prazo), tendo o tratamento farmacológico
ganhado importância na atualidade. A combinação entre psicoterapia e
farmacoterapia seria o tratamento mais eficaz. Pesquisas suportam o
uso de ISRS, venlafaxina e bupropiona.

7.4. Redescobrindo o caso

1 Sexo feminino.

2 Queixas depressivas.

3 Tempo de evolução.

4 Alteração do sono e apetite.

5 Irrtitabilidade (“mau humor”).


6 Sinais de hipotimia.

7 Visão pessimista.

O que nos chama atenção nesae caso é: presença de tristeza e


desânimo por 2 anos ou mais, sendo que na maior parte do tempo a
paciente não demonstra traços de alegria, contentamento ou bom
humor. Além disso, podemos perceber alterações no sono e no apetite.
No exame mental notamos que sua aparência é abatida e a paciente
refere não ter expectativas para o futuro, mesmo tendo apenas 18 anos.
Todas essas informações nos chamam a atenção para o diagnóstico-
tema em questão: depressão persistente.

Exemplo de uma prescrição para Ana Júlia


Escitalopram 10mg, 1 comprimido por via oral 1 vez ao dia, após
café da manhã.
+
Encaminhamento para Psicoterapia

Referências
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antidepressants: A revision of the 2000 British Association for
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Treatment of Dysthymia in Children and Adolescents. CNS
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antidepressants, psychotherapies, and their combination for acute
treatment of children and adolescents with depressive disorder: a
systematic review and network meta-analysis. The Lancet
Psychiatry 2020; 7(7): 581–601. doi:10.1016/s2215-
0366(20)30137-1.

SIGLAS

• ADTs Antidepressivos Tricíclicos


• ERS Estimulantes da Recaptura de Serotonina
• IMAO Inibidores da Monoaminoxidase
• IRSA Inibidores de Recaptura de Serotonina e Antagonistas
Alfa-2

• IRSN Inibidores de Recaptura de Serotonina e Noradrenalina


• ISRD Inibidores Seletivos de Recaptura de Dopamina
• ISRN Inibidores Seletivos de Recaptura de Noradrenalina
• ISRS Inibidores Seletivos de Recaptura de Serotonina
• TDM Transtorno Depressivo Maior
1. CASO CLÍNICO
Lucas, 23 anos, solteiro, trazido à emergência por amigo que
afirmava que o paciente havia tentado se matar com ingestão de
medicamentos não controlados. Lucas relata que começou a “perder
a vontade” de realizar atividades corriqueiras, bem como
acadêmicas, no início de 2020, com o início do semestre acadêmico.
Possuía crises de desânimo e anedonia frequentes, com piora após o
término de seu namoro que durou 6 anos. Na maior parte de seu dia,
não conseguia realizar atividades domésticas simples, e não tinha
vontade e tampouco prazer ao estudar – atividade anteriormente
muito prazerosa, segundo relata. Refere ingerir bebidas alcoólicas 4
vezes por semana, apresentando ideação suicida sempre que as
consome. Além do episódio atual, teve 1 tentativa de suicídio não
concluída, e relata medo da morte.

Exame mental: paciente se apresenta com aspecto geral


malcuidado, hipertenaz e hipovigil. Com fala de conteúdo
depressivo, hipobúlico e apático.

2. DISCUTINDO O DIAGNÓSTICO
A palavra suicídio deriva etimologicamente do latim sui (si mesmo)
e caedes (ação de matar), podendo ser definida como uma morte
intencional autoinfligida. Relatos apontam que o comportamento
suicida existe desde os tempos mais antigos da humanidade, tendo
mudado apenas a forma como esse ato é visto, sendo considerado
como um evento constituinte da tradição em certas culturas, ou
ainda opção aceitável em outras, a pecado na Idade Média e, no
século XIX, sinal de doença mental.
Atualmente, em uma visão mais abrangente, o suicídio pode
ainda ser representado como todo ato pelo qual um indivíduo causa
lesão a si mesmo, qualquer que seja o grau de intenção letal e de
conhecimento do verdadeiro motivo desse ato.
Pode-se classificar o comportamento suicida em três categorias
distintas: ideação suicida, tentativa de suicídio e suicídio
consumado. A ideação suicida fica em um dos extremos, o suicídio
consumado no outro e a tentativa de suicídio entre eles. Ou seja, a
ideação suicida é compreendida como pensamentos, crenças,
imagens, vozes ou qualquer outra cognição mencionada pelo
indivíduo que se refere a acabar com a própria vida. Já o
planejamento suicida acontece no momento em que o indivíduo, já
possuindo a ideação, planeja detalhes para a realização do ato, como
o método a ser usado, o local, o melhor horário e, em alguns casos,
escrever um bilhete de despedida. A tentativa de suicídio, por sua
vez, é definida por comportamentos autoagressivos não fatais, que
podem deixar sequelas, graves ou não. Por fim, o suicídio
consumado se caracteriza pelo conjunto intencionalidade-
planejamento-ato, podendo se configurar também por meio de
comportamentos altamente danosos, que resultam na morte.
Portanto, ao analisar o suicídio, deve-se pensá-lo como uma
consequência final de um leque maior de situações que põem em
risco a vida, considerando-as como comportamentos suicidas. Ou
seja, não se deve dar atenção apenas ao ato suicida em si, no sentido
final da morte provocada intencionalmente, mas todos os fatores
que precederam aquele ato: as ideações e os desejos suicidas, assim
como os comportamentos suicidas sem resultado de morte iminente,
como, por exemplo, o etilismo crônico grave. Além disso, o
comportamento suicida não necessariamente busca especificamente
a morte como um desaparecimento real do mundo, mas muitas
vezes é uma tentativa de resolver conflitos e sofrimentos nos quais a
existência se encontra, de libertar-se de uma ausência intolerável; a
morte seria apenas uma consequência infortuna.
Para Lucas, o paciente do nosso caso clínico, devemos levar em
consideração todos os acontecimentos que marcaram sua história e
avaliar o objetivo de sua tentativa de suicídio, uma vez que pode
significar essa tentativa de resolver seus conflitos e sofrimentos.
Corrobora com esse pensamento o fato de Lucas ter medo da morte,
apesar das tentativas de suicídio.

3. ASPECTOS SOBRE ETIOLOGIA


E EPIDEMIOLOGIA
O suicídio figura entre as três principais causas de morte de pessoas
que têm de 15 a 44 anos de idade. Segundo os registros da
Organização Mundial de Saúde (OMS), ele é responsável
anualmente por um milhão de óbitos (o que corresponde a 1,4% do
total de mortes). Essas cifras não incluem as tentativas de suicídio,
que são de 10-20 vezes mais frequentes que o suicídio em si.
No Brasil, a taxa geral de mortalidade por suicídio, em 2012, foi
de 5,3/100 mil habitantes. O total de suicídios no país, entre os anos
2002 e 2012, passou de 7.726 para 10.321, representando um
aumento de 33,6%, superando o crescimento da população do país
no mesmo período, que foi de 11,1%.
O método de preferência para cometer suicídio no mundo é a
ingestão de substâncias tóxicas, preferencialmente pesticidas e
herbicidas. No Brasil, os métodos de suicídio mais utilizados são:
enforcamento (47,2%), armas de fogo (18,7%) e envenenamento
(14,3%). Quando o envenenamento foi o método de suicídio
utilizado, 41,5% cometeram suicídio usando pesticidas e 18%
usando medicamentos.
Na realidade, mesmo com esses dados concretos, é difícil
mensurar a quantidade real de comportamentos suicidas, uma vez
que apenas uma pequena porção chega a nosso conhecimento após o
registro de atendimento em um serviço de saúde. De cada três
pessoas que tentaram o suicídio, apenas uma foi, logo depois,
atendida em um pronto-socorro, formando uma espécie de iceberg,
como mostrado na figura 1.4

Figura 1 - Comportamento suicida ao longo da vida

Fonte: Botega e colaboradores.4

Deve-se buscar, em uma boa anamnese, identificar os diversos


fatores de risco que envolvem a crise suicida e que geram o
sentimento de “desesperança” no indivíduo, uma vez que o
fenômeno do suicídio é multicausal, envolvendo fatores ambientais,
psicológicos, culturais, biológicos e políticos, tudo englobado na
existência do indivíduo.
No quadro a seguir, são listados os principais fatores de risco e
fatores de proteção para o suicídio. Nela, destacam-se como mais
evidentes a tentativa de suicídio prévia e o histórico de doença
psiquiátrica.

Quadro 1 - Fatores de risco e de proteção para suicídio


Fatores de Risco Fatores Protetores

Tentativa de suicídio prévia*


Apoio da família e de outras pessoas
Doença psiquiátrica* significativas

Alcoolismo e abuso de drogas


Crenças religiosas, culturais e étnicas
Sexo masculino

Desemprego
Envolvimento na comunidade
Dor crônica, cirurgia recente, doença
terminal

Abuso e outros eventos adversos na


infância
Rede social significativa
História familiar de suicídio

Ser solteiro, viúvo ou separado


Acesso a serviços e cuidados de
saúde mental
Isolamento social

Alta hospitalar recente

*Principais fatores de risco


Fonte: Mari JJ, Kieling C.12

A maior parte dos dados demográficos encontrados na literatura


demonstram que a tentativa de suicídio é mais comum em mulheres,
porém o índice de suicídio consumado é mais elevado em homens: a
cada três homens que falecem por suicídio uma mulher morre pela
mesma causa. Esse fato que pode ser explicado pela dificuldade dos
homens para procurar e aceitar que precisam de ajuda, mesmo
encontrando-se em uma série de problemas emocionais. Além disso,
homens utilizam métodos mais agressivos, o que reduz as
probabilidades de sobrevivência. Também encontramos a associação
entre atividade laboral e comportamento suicida; especificamente
no que se refere a profissionais de saúde, notadamente o suicídio é
mais frequente em médicos e estudantes de medicina.
Podemos ainda entender a presença do suicídio como fenômeno
independente da faixa etária, já que sua presença é visível em todas
as fases da vida, a saber: fase infantojuvenil, fase adulta e fase
idosa. Na fase infantojuvenil, a adolescência pode ser vista como a
etapa com maior índice de comportamento suicida, com médias
etárias variando entre 12 e 15 anos, uma vez que se considera a
adolescência como fase em que o indivíduo vivencia crises
profundas, mediante as transformações, tanto físicas quanto
psicológicas e culturais. Já na fase adulta, os reveses econômicos –
empobrecimento ou desemprego – são fatores de estresse para o
homem que está envolto por uma cultura patriarcal e provedor de
seu lar. Por fim, na fase idosa, a qual está em constante ascensão,
vemos um aumento das tentativas de suicídio, uma vez que idosos
tendem a comunicar menos suas ideações, bem como são mais letais
em seus comportamentos suicidas, associado ao fato de ser mais
frequente sua associação com os fatores de risco listados no Quadro
1.
Por sua vez, considera-se que a resiliência emocional individual,
ou seja, a capacidade para resolver problemas e as habilidades
sociais que reduzem o impacto de fatores ambientais adversos ou
intrapsíquicos, pode contrabalançar o peso de certos fatores de
risco. Por isso, acredita-se que os fatores citados no Quadro
1 possam proteger o indivíduo de um comportamento suicida,
embora não haja trabalhos científicos que sustentem tal suposição.
A existência de um transtorno mental é considerada o principal
fator de risco para suicídio. Cerca de 93%-95% dos casos de
suicídio possuem um diagnóstico psicopatológico, com prevalência
maior de transtornos de humor (depressão grave correspondendo a
40%-50% dos casos), dependência de álcool (em torno de 20% dos
casos) e esquizofrenia (10% dos casos).
A associação entre depressão e suicídio é extremamente
congruente, tal psicopatologia consiste no principal fator associado
ao comportamento suicida, segundo a literatura. O risco de suicídio
aumenta mais de 20 vezes em indivíduos com episódio depressivo
maior e é ainda maior em casos em que haja um transtorno
psiquiátrico juntamente com a depressão.
Vale ressaltar que o transtorno bipolar também tem se mostrado
prevalente nas tentativas de suicídio. Dados da literatura acerca
desse predomínio podem estar relacionados à demora para se chegar
a um diagnóstico, que pode acarretar maior gravidade do transtorno.
O transtorno de personalidade borderline é também
caracterizado por uma excessiva dificuldade nas relações afetivas,
marcante impulsividade e predisposição a agressão ao próprio
corpo. Pacientes com este transtorno tendem a ter comportamento
suicida, principalmente quando há comorbidade com outras
psicopatologias como transtornos de humor. Verifica-se, então, uma
exacerbação dos riscos de suicídio.

4. E AÍ? O QUE FAZER?


4.1. Avaliação do risco de suicídio e entrevista
O primeiro contato pode ocorrer em condições pouco favoráveis,
muitas vezes no pronto-socorro, estando o paciente reticente,
sonolento ou ainda recebendo cuidados médicos intensivos. O
paciente pode mesmo negar que tenha tentado morrer, embora
familiares e equipe médica refiram-se a uma tentativa de suicídio.
Desde o início é preciso tentar o estabelecimento de um vínculo que
garanta a confiança e a colaboração, em um momento em que a
pessoa pode se encontrar enfraquecida, hostil e nem sempre disposta
a colaborar.
O examinador deve demonstrar empatia, tranquilidade e
seriedade durante a entrevista. Deve ser continente e evitar
comentários críticos, reprovações ou julgamentos morais e
religiosos. É importante enfatizar que, ao contrário do que prega o
senso comum, falar sobre suicídio não tem a capacidade de induzir
o comportamento suicida. O que se sabe de fato é que o efeito, em
geral, é o contrário; o paciente se sente aliviado em poder tratar de
um assunto tão delicado e carregado de preconceitos com um
profissional de saúde genuinamente interessado em ajudá-lo.
Portanto, se influenciado por atitudes negativas e por crenças
errôneas, o profissional encontrará dificuldade para compreender
empaticamente o paciente, avaliar bem o risco de suicídio e, caso
esse exista, iniciar ações terapêuticas. Diante disso, o Quadro 2
apresenta algumas crenças errôneas a serem desfeitas pelo
profissional.

Quadro 2 - Crenças errôneas acerca do suicídio


Crenças E Comportamentos Errôneos Realidade

Questionar sobre ideias de suicídio aumenta o


vínculo com o paciente. Este se sente acolhido
“Se eu perguntar sobre suicídio, poderei por um profissional cuidadoso, que se interessa
induzir o paciente a isso.” pela extensão de seu sofrimento. Não
questionar aumenta a mortalidade, e o
profissional será responsável por isso.

Uma parcela das pessoas que se matam, ou que


“Ela está ameaçando o suicídio apenas
tentam fazê-lo, havia declarado sua intenção de
para manipular.”
suicídio para amigos, familiares ou médicos.
Crenças E Comportamentos Errôneos Realidade

Essa ideia pode conduzir a imobilismo


terapêutico ou descuido no manejo de pessoas
“Quem quer se matar se mata mesmo.” em risco de suicídio. Não se trata de evitar
todos os suicídios, mas diminuir a
possibilidade de eles acontecerem.

Há sempre o risco de o profissional identificar-


se profundamente com aspectos de desamparo,
depressão e desesperança de seus pacientes,
“No lugar dele, eu também me mataria.” sentindo-se impotente para a tarefa
assistencial. Há também o perigo de se valer
de um julgamento pessoal subjetivo para
decidir que ações fará ou deixará de fazer.

O comportamento suicida exerce um impacto


emocional sobre a equipe de saúde, podendo
provocar sentimentos de franca hostilidade e
“Veja se da próxima vez você se mata rejeição. Isso é capaz de impedi-la de encarar a
mesmo!” tentativa de suicídio como um possível marco
em uma trajetória pessoal acidentada, a partir
do qual se pode mobilizar forças para uma
mudança de vida.

Diversos estudos epidemiológicos


demonstraram que, vistas em conjunto, as
pessoas que tentam o suicídio apresentam
“Quem se mata é bem diferente de quem características diferentes daquelas que chegam
apenas tenta.” a um desenlace fatal. No entanto, esses
achados não deveriam funcionar como álibi
para dispensar pouca atenção aos que tentam o
suicídio sem obter êxito.

Fonte: Botega e colaboradores.4

A avaliação do risco suicida requer que uma série de


informações (geralmente resumidas sob as denominações de fatores
de risco e fatores de proteção, como as listadas no Quadro 1) seja
ponderada com a experiência e a intuição do entrevistador. Não há
uma fórmula simples nem escalas que possam estimar com precisão
o risco de suicídio. No entanto, é importante lembrar que
informações epidemiológicas – ou o fato de um paciente pertencer a
um grupo de risco – são apenas parte do que se deve considerar na
estimativa de risco.
Além de conhecer os principais fatores de risco, faz-se
necessário ficar atento aos sinais de alerta dados pelos pacientes,
tais como comportamentos de despedida (cartas de despedida, pagar
todas as dívidas, dividir os bens com os familiares), falar que tem
“vontade de dormir para sempre” ou “sumir”, aquisição de armas,
investimentos financeiros que beneficiariam a família com a própria
morte, dentre outros.
Por fim, a avaliação simultânea dos fatores de risco, da
gravidade da ideação/planejamento e intencionalidade suicida e da
periculosidade de uma possível tentativa, relacionada ao grau de
letalidade dos meios à disposição do paciente (por exemplo:
medicações, venenos, armas de fogo), assim como do grau de
acessibilidade do paciente a esses meios, pode ajudar o médico a ter
uma estimativa rápida do risco suicida, com base em elementos
simples. Essa estimativa norteará a decisão quanto à conduta
imediata a ser estabelecida.

4.2. Manejo do paciente


Pacientes com ideação/planejamento suicida devem sempre ser
encaminhados para reavaliação e seguimento em serviços de saúde
mental. Pacientes com risco suicida considerado baixo podem ser
encaminhados para seguimento em serviços extra-hospitalares, mas
é fundamental que seja garantida a admissão rápida no serviço, com
possibilidade de consultas frequentes e disponibilidade para
atendimentos não agendados.
Pacientes com risco considerado médio também podem ser
encaminhados para seguimento extra-hospitalar, desde que sejam
atendidas algumas condições, tais como:
a. Disponibilidade de suporte familiar capaz de manter
acompanhamento constante 24 horas por dia.
b. Comprometimento em iniciar tratamento psiquiátrico
disponível.
c. Estabelecimento de um “contrato de vida”, que se
caracteriza pelo compromisso sincero e empático por parte do
paciente de não tentar suicídio e de procurar atendimento de
emergência ou ajuda caso perceba agravamento da ideação
suicida.

Todas as outras situações que não preencham os critérios acima


são consideradas situações de alta gravidade e devem ser
encaminhadas para acompanhamento em ambiente protegido
(internação hospitalar). A ação nos estágios em que o paciente
apenas tem ideias ou mesmo planejamento é fundamental para
diminuir a chance de que ele cometa suicídio.
Ao identificar risco de suicídio, é essencial que o médico
comunique a família do paciente e envolva-a em seu cuidado. A
família tem papel central nos esforços de evitar que o paciente
execute seus planos ou ideias suicidas. Uma das orientações
importantes para a família é o cuidado para evitar que o paciente
tenha acesso aos métodos potencialmente letais, tais como
medicamentos, armas ou cordas.
Uma parcela dos indivíduos em risco de suicídio necessita de
tratamento psiquiátrico para transtornos mentais específicos. No
tratamento da depressão, o início da melhora clínica implica um
período mais crítico quanto ao risco de suicídio. Devem ser
retirados os psicofármacos que estejam sendo usados indevidamente
e/ou que possam ser usados como meio letal, como, por exemplo, os
antidepressivos tricíclicos. Medicamentos perigosos, se necessários,
devem ser prescritos em pequena quantidade e, de modo ideal, ficar
em poder de uma terceira pessoa.
No que se refere a intervenções psicoterápicas em pacientes com
comportamento suicida, estudos mostram que a Terapia Cognitivo-
Comportamental – TCC, tem se mostrado bastante eficaz no manejo
com tais pacientes. O processo terapêutico da TCC com o paciente
com pensamentos suicidas tem similaridades com o processo
terapêutico da TCC para pacientes com depressão, com transtornos
de ansiedade, com transtornos de dependência de substância, dentre
outros. A TCC com o paciente suicida se debruça sobre os
problemas de vida do indivíduo, mais aguçadamente se estes
estiverem concatenados com crises suicidas. Sendo assim, torna-se
importante atentar para a prevenção do suicídio, seja na busca de
estratégias que modifiquem a ideação ou intenção suicida, seja na
busca de estratégias que provoquem esperança para o futuro.

4.3. Redescobrindo caso (Pontos-Chave)


1 Sexo Masculino

2 Idade de Incidência

3 Estado civil

4 História de separação

5 Abuso de álcool

6 Fator de risco

Descrição e sintomatologia de quadro


7
depressivo

Devido à diversidade de fatores e de problemas associados à


tentativa de suicídio, não existe uma única “receita” para todas as
pessoas que apresentam risco de suicídio. O determinismo
multifatorial do suicídio impõe-nos, de início, analisar cada fator de
risco e proteção com prudência.
4.4. Exemplo de conduta para Lucas
Devido aos fatores de risco proeminentes de tentativa anterior,
doença psiquiátrica (provável diagnóstico de depressão maior),
aliado aos outros fatores de idade, sexo, abuso de álcool e
separação recente, está indicado internação hospitalar com
acompanhamento por especialista, prescrição de antidepressivo pelo
diagnóstico psiquiátrico. Como alternativa, caso seja avaliado que o
paciente apresente uma boa rede de suporte familiar, poderia ser
realizado o seguimento intensivo extra-hospitalar, com
acompanhamento familiar 24 horas por dia, comprometimento em
iniciar o tratamento psiquiátrico e estabelecimento do “contrato de
vida”.

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Psychiatric Association: APA, USA; 2010.
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comportamental para pacientes suicidas. Porto Alegre:
Artmed; 2010.
SIGLAS

• OMS Organização Mundial de Saúde


• TCC Terapia Cognitivo-Comportamental
1. CASO CLÍNICO
Michele, 25 anos, atendente de telemarketing, casada, comparece ao pronto-
socorro acompanhada do marido. O familiar relata que há 20 dias a paciente
está inquieta, fala muito alto, sorri muito, muda de assunto bruscamente
durante a conversa e fala de vários assuntos em um curto intervalo de tempo.
Está dormindo apenas 3 horas por noite, passa a madrugada arrumando a
casa, fez gastos excessivos no cartão de crédito comprando roupas
sofisticadas para ir trabalhar e está gastando mais tempo do que o de
costume para se maquiar antes de ir ao trabalho. O esposo decidiu procurar
auxílio médico após a paciente agredir fisicamente uma colega de trabalho
que fez comentários sobre sua aparência extravagante. O fato resultou na
perda do emprego.
O marido afirma que a mãe da paciente faz acompanhamento no CAPS,
porém não sabe dizer por qual motivo e recorda apenas que sua sogra faz uso
de lítio. Nega histórico de uso de substâncias ou medicações recentes.

Exame mental: paciente com aparência extravagante, não colaborativa,


atitude arrogante, discurso conexo, disfórica e solicitando
insistentemente ao marido que a leve para casa, pois não tem nenhuma
queixa e que se sente bem.

2. DISCUTINDO O DIAGNÓSTICO
O transtorno bipolar, também conhecido como transtorno afetivo bipolar
(TAB), é uma doença mental comum e caracterizada por alterações graves e
persistentes de humor que envolve períodos de elevação e rebaixamento de
humor intercalados com períodos de remissão. O transtorno bipolar é uma
doença episódica ao longo da vida, apresenta curso variável e resulta em
comprometimento cognitivo e redução da qualidade de vida.
No século XIX, Kraepelin separou as psicoses em dois grupos e
estabeleceu importante distinção nosológica entre a chamada demência
precoce, hoje esquizofrenia, e a psicose maníaco-depressiva (PMD). Em sua
obra, Kraepelin inicialmente dividia a PMD em vários subtipos, porém, em
1899, adotou o ponto de vista unitário e considerou que a PMD abrangia os
estados depressivos e a mania.
O TAB é uma entidade nosológica relativamente nova na classificação
psiquiátrica. Em 1980, foi introduzido como diagnóstico pela primeira vez
com o lançamento da terceira versão do manual estatístico e diagnóstico dos
transtornos mentais da Associação Americana de Psiquiatria e se firmou
como um diagnóstico distinto dos transtornos depressivos unipolares. A
Organização Mundial da Saúde também seguiu com a inclusão do TAB na
décima revisão da Classificação Internacional de Doenças no ano de 1992.
Em 2013, com o lançamento da quinta versão do manual estatístico e
diagnóstico dos transtornos mentais (DSM-5), a classe dos transtornos de
humor foi desmembrada e foram criadas as categorias dos transtornos
depressivos e transtorno bipolar e transtornos relacionados. Essa última
inclui o transtorno bipolar tipo I, transtorno bipolar tipo II, transtorno
ciclotímico, transtorno bipolar induzido por substância/medicamento,
transtorno bipolar relacionado à outra condição médica, outro transtorno
bipolar e transtorno relacionado especificado, e transtorno bipolar e
transtorno relacionado não especificado.
A mania e a hipomania são semelhantes, e ambas têm como
manifestação central um período distinto de humor anormal e
persistentemente elevado, expansivo ou irritável, e aumento anormal e
persistente de energia. Durante esse período, ambas incluem também as
seguintes características conforme o DSM-5:

1. Autoestima inflada ou grandiosidade (discurso com conteúdo


grandioso).
2. Redução da necessidade de sono (sente-se bem e disposto no dia
seguinte com apenas 3 horas de sono).
3. Mais loquaz que o habitual ou pressão para continuar falando.
4. Fuga de ideias ou experiências subjetivas de que os pensamentos
estão acelerados (mudança de assunto várias vezes durante a
conversa dificultando o entendimento de quem está escutando).
5. Distratibilidade (atenção desviada muito facilmente por estímulos
externos).
6. Aumento de atividade dirigida a objetivos (passando muito tempo
dedicado a alguma atividade específica) ou agitação psicomotora.
7. Envolvimento excessivo em atividades de risco (gastos excessivos,
desinibição sexual e envolvimento em atividades que coloquem em
risco sua integridade).

A diferenciação é feita de acordo com a gravidade e a duração dos


sintomas listados acima. Durante o episódio de mania a duração dos
sintomas deve ser de no mínimo 7 dias e apresentar 3 (ou 4, se o humor for
apenas irritável) ou mais sintomas entre os enumerados acima. A gravidade
dos sintomas na mania causa perda da funcionalidade importante, pode vir
acompanhado de sintomas psicóticos e demandar internação hospitalar.
Já na hipomania, a duração dos sintomas é de no mínimo 4 dias, porém
mesmo as perturbações do humor sendo observáveis por outras pessoas, elas
não são suficientemente graves para causar prejuízo acentuado do
funcionamento. O indivíduo consegue continuar exercendo suas atividades
profissionais, por exemplo. Por que essa diferenciação é tão importante?
A caracterização de episódios de humor elevado em episódios maníacos
ou hipomaníacos é importante para a diferenciação entre transtorno bipolar
tipo 1 (TAB-1) e transtorno bipolar tipo 2 (TAB-II). O TAB-I é
diagnosticado quando os critérios para um episódio de mania são
preenchidos. Vale ressaltar que se ocorrerem sintomas psicóticos ou
necessidade de hospitalização o episódio é por definição maníaco! Para o
diagnóstico de TAB-II é necessário a confirmação de pelo menos um
episódio hipomaníaco e de um episódio depressivo maior. E como se
manifesta um episódio depressivo no TAB?
O DSM-5 utiliza os mesmos critérios para diagnóstico de um episódio
depressivo maior bipolar ou unipolar. Esses critérios já foram apresentados
neste livro e podem ser conferidos no capítulo sobre “Depressão Maior e
Depressão Persistente”. No início da doença, a maioria dos pacientes com
TAB apresenta um episódio depressivo que difere sutilmente do unipolar e é
justamente a depressão o quadro mais comum e persistente entre os
pacientes com TAB, além de ser a principal causa de incapacitação.
A depressão bipolar tem difícil diagnóstico. O diagnóstico incorreto leva
a tratamento inadequado que não alivia os sintomas, pode desestabilizar
ainda mais o humor, ocasionar prejuízos sociais e aumentar o risco de
suicídio e transtorno por uso de substâncias (TUS). Ao discutirmos os
diagnósticos diferenciais no próximo tópico traremos mais detalhes sobre
esse assunto.
Além de episódios de humor bem característicos de polos opostos,
podem ocorrer episódios mistos durante o curso do TAB. Esses episódios
têm alta prevalência no contexto do TAB e acometem aproximadamente
40% dos pacientes. Podem ser definidos como estado maníaco com
características depressivas (mania mista) ou depressão bipolar com sintomas
maníacos (depressão mista).
No DSM-5, para caracterizar um episódio misto é necessário que todos
os critérios para um dos polos sejam atendidos e pelo menos 3 do polo
oposto também sejam. Pacientes com estados mistos geralmente apresentam
sintomas mais graves, maior duração dos episódios, recorrência dos
episódios, taxas mais altas de comorbidades, pior desfecho clínico, além de
maior risco de suicídio.
O curso clínico pode variar bastante. A história natural do TAB
geralmente inclui períodos de remissão, mas a recorrência é normal e
esperada, principalmente se a adesão ao tratamento for ruim. O tipo 2 tende
a evoluir com uma maior quantidade de episódios de alteração de humor em
comparação com o do tipo-1, bem como maior duração de episódios
depressivos.
O DSM-5 traz o especificador “ciclagem rápida” para caracterizar a
presença de pelo menos quatro episódios de humor que atendam aos
critérios de episódio maníaco, hipomaníaco ou depressivo maior nos últimos
12 meses. Os episódios podem ocorrer em qualquer combinação ou ordem e
a ciclagem rápida pode estar presente no TAB-1 e no TAB-2.
O TAB tem efeitos sociais e econômicos importantes mesmo quando
tratado. O uso de medicações adequadas melhora os sintomas, porém o
retorno ao nível pré-mórbido de funcionamento é difícil de ser alcançado. O
comprometimento funcional é variável, envolve vários domínios e a perda
de funcionalidade já pode ser observada mesmo após um primeiro episódio.
E sobre a ciclotimia, quais as suas características? O transtorno
ciclotímico no DSM-5 abrange os pacientes que desenvolvem apenas
sintomas hipomaníacos e sintomas depressivos brandos que não
preenchem critérios para caracterizar um episódio hipomaníaco, maníaco ou
depressivo. Os sintomas subclínicos devem ser persistentes durante um
período de pelo menos dois anos (ou um ano para crianças e adolescentes).
Se durante o curso da doença existir evolução num sentido de gravidade, o
indivíduo será reclassificado como TAB-1 ou TAB-2.

3. ASPECTOS SOBRE EPIDEMIOLOGIA E


ETIOLOGIA
Segundo o estudo global de cargas de doenças realizado em 2013, existiam
naquele ano 48,8 milhões de pessoas com TAB no mundo, configurando-o
como uma importante causa de incapacidade. Um estudo mundial de saúde
mental da Organização Mundial de Saúde, no ano de 2011, encontrou
prevalência ao longo da vida no TAB-1 de 0,6%, no TAB-2 de 0,4%, nas
formas subsíndrômicas de 1,4% e 2,4% no espectro bipolar.
As taxas de prevalência independem da etnia, da nacionalidade e do nível
socioeconômico. Atinge homens e mulheres de forma semelhante, porém o
TAB-2 é mais comum no sexo feminino. Na maioria das vezes, os
primeiros sintomas surgem no final da adolescência e início da vida adulta,
com uma média geral de início em torno de 25 anos. Quanto mais precoce
for a idade do início, maior será a gravidade dos sintomas depressivos e o
nível de comorbidades como transtornos de ansiedade e TUS.
O transtorno bipolar está associado a altos níveis de comorbidades
médicas e psiquiátricas que contribuem para piores resultados do tratamento,
mortalidade prematura e redução da qualidade de vida em comparação com
o público em geral. As comorbidades clínicas mais comuns incluem doenças
cardiovasculares, obesidade, diabetes, síndrome metabólica, doenças da
tireoide, osteoporose e fibromialgia. Entre as doenças psiquiátricas, os
transtornos de ansiedade são as condições mais comuns, mas também há alta
prevalência o TUS, transtorno de déficit de atenção e hiperatividade
(TDAH) e transtornos da personalidade, principalmente do grupo B.
Muitos estudos sugerem que a doença psiquiátrica com a maior
prevalência de comportamentos suicidas seja o transtorno afetivo bipolar.
Uma revisão sistemática de 2013 constatou que o risco de suicídio em
pacientes bipolares era de 20 a 30 vezes maior que o da população geral.
Existem fatores gerais que sabidamente implicam um maior risco de
suicídio, como história familiar de suicídio, baixa qualidade de vida, suporte
social ruim, doença de início precoce, presença de comorbidades
psiquiátricas, sentimento de desesperança, polaridade depressiva no primeiro
episódio de humor e ciclagem rápida.
Até o momento a etiologia do TAB não está totalmente esclarecida, mas
atualmente o mais aceito é um modelo multifatorial com a interação de
fatores genéticos, biológicos e ambientais. Estudos de gêmeos
monozigóticos evidenciaram taxas de concordância de até 75% e o risco da
doença em pessoas com familiares de primeiro grau com TAB é cerca de
10%. Esses dados mostram que fatores genéticos contribuem muito para a
etiologia do TAB.
O desequilíbrio do sistema de monoaminas, especialmente o sistema
dopaminérgico no TAB, é a teoria mais conhecida para explicar a gênese dos
transtornos de humor. Apesar de evidências mostrarem o papel dos circuitos
monoaminérgicos, nenhuma disfunção específica foi identificada. Ganhou
força nos últimos estudos a importância da plasticidade sináptica e neuronal
exercida pelas neurotrofinas na regulação de funções afetivas e cognitivas.
As neutrofinas são essenciais para o desenvolvimento do sistema nervoso
central e supõe-se que nos distúrbios afetivos uma depleção congênita ou
adquirida cause prejuízo na capacidade cerebral de se adaptar a estímulos
ambientais.
O avanço das evidências de processos neuropatológicos progressivos na
etiologia do TAB também tem levado ao estudo de outras vias que possam
estar implicadas no processo fisiopatológico que incluem processos
inflamatórios, imunes, endócrinos e mitocondriais.

4. DIAGNÓSTICO DIFERENCIAL
O transtorno bipolar é um transtorno mental comum e muitas vezes não é
reconhecido na atenção primária. Até 30% dos pacientes atendidos na
atenção básica com sintomas depressivos e ansiosos podem ter TAB. Os
pacientes com TAB procuram frequentemente atendimento quando estão
deprimidos e é justamente o episódio depressivo a primeira manifestação em
pacientes bipolares, tornando o diagnóstico um desafio. Como então
minimizar erros diagnósticos e diferenciar um episódio depressivo bipolar de
um unipolar?
Primeiro, lembre-se: a característica essencial para o diagnóstico de um
TAB é presença de mania ou hipomania. Os pacientes geralmente são muito
sensíveis e conscientes em relação aos sintomas depressivos, mas não
reconhecem sintomas maníacos ou hipomaníacos. É importante investigar se
o paciente tem ou já teve momentos de aumento de energia, irritabilidade
extrema e aumento de atividade dirigida a objetivos. As mesmas perguntas
devem ser feitas às pessoas próximas, pois o paciente pode ser incapaz de
identificar mudanças em seu próprio comportamento, energia ou humor.
Os critérios diagnósticos para um episódio depressivo maior são os
mesmos na depressão bipolar e no transtorno depressivo maior (TDM), e
não existe um conjunto de sintomas patognomônicos para cada transtorno. O
médico deve, portanto, estar ciente de que sintomas específicos e fatores de
risco têm maior probabilidade de estar associados a cada diagnóstico.
Queixas somáticas, perda de apetite, longa duração dos episódios,
insônia inicial e maior sensibilidade à dor são sugestivas de TDM. Já o início
da doença precoce, histórico familiar de TAB, depressão em período pós-
parto, ansiedade comórbida, ideias suicidas, labilidade, irritabilidade,
sintomas psicóticos, hiperfagia, retardo psicomotor, episódios depressivos
mistos, hipersonia e múltiplos episódios aumentam a chance do diagnóstico
de depressão bipolar.
Outros diagnósticos diferenciais, como transtornos de ansiedade,
transtornos da personalidade, TDAH, esquizofrenia, uso de substâncias
psicoativas e condições médicas gerais também devem ser descartados
durante a avaliação clínica de um paciente com hipótese diagnóstica de
TAB.
Os transtornos de ansiedade, além de diagnóstico diferencial, devem
também ser investigados como transtorno mental comórbido. Duas
metanálises recentes de análises epidemiológicas e estudos clínicos
mostraram que a taxa de transtornos ansiosos varia de 35% a 38% em
pacientes bipolares. Além de alta prevalência, os sintomas ansiosos afetam
negativamente o curso da doença e os resultados do tratamento, tendo em
vista que aumentam as taxas de suicídio e abuso de substâncias.
Avaliação clínica criteriosa é fundamental para distinguir transtorno de
ansiedade generalizada (TAG) de TAB. Aceleração do pensamento e
comportamentos impulsivos do TAB podem ser confundidos com sintomas
do TAG.
Assim como os transtornos ansiosos, é alta a prevalência de alcoolismo e
outros TUS em pacientes com TAB4 TUS comórbido dificulta o diagnóstico
e está associado a início precoce dos sintomas de humor, maior risco de
hospitalização, aumento de tentativas de suicídio, declínio cognitivo,
resposta parcial ao tratamento medicamentoso e mudanças entre os polos de
humor.
Substâncias de abuso podem ir além de uma comorbidade do TAB e ser o
desencadeador de episódios maníacos e hipomaníacos. As drogas de abuso
mais comuns incluem os clássicos agentes que causam humor acelerado e
irritabilidade (álcool, anfetaminas, cocaína e alucinógenos, além de
opioides), bem como outros agentes que nem sempre estão relacionados com
esses comportamentos. Além das drogas de abuso, medicamentos também
podem causar mania secundária. As categorias de medicamentos associadas
incluem:

• Agentes cardiovasculares: captopril e hidralazina.


• Agentes endocrinológicos: bromocriptina e corticosteroides.
• Agentes neurológicos: levodopa.
• Medicações psiquiátricas: antidepressivos, dissulfiram, metilfenidato
e inibidores da monoaminoxidase.

• Outros agentes: bacofleno, isoniazida e cimetidina.


Segundo os critérios do DSM-5, para a perturbação do humor ser
classificada como induzida por substância ou medicamento é necessário que
os sintomas de humor eufórico, expansivo ou irritável se desenvolvam
durante ou logo depois da intoxicação ou abstinência da substância ou após
exposição ao medicamento. O uso de substâncias pode ser um fator de
confusão diagnóstica e a presença de um TAB primário e independente deve
ser lembrado quando:

1. Os sintomas de humor se iniciaram antes da exposição à substância.


2. Os sintomas persistem por cerca de um mês após a interrupção da
intoxicação ou abstinência.
3. Histórico positivo de episódios de humor não relacionados ao uso de
substâncias.

Quando o medicamento indutor no episódio maníaco for alguma droga


antidepressiva, algumas considerações devem ser feitas para a classificação
correta do TAB. Se o episódio hipomaníaco ou maníaco surge durante o
tratamento de episódio depressivo maior com medicação antidepressiva e o
nível de sinais e sintomas persiste além do efeito fisiológico desse
tratamento, o TAB deve ser classificado com um TAB primário e não como
TAB induzido por uso de substância ou medicamento.
Condições médicas diversas podem imitar ou exacerbar episódios
maníacos ou hipomaníacos. Para a perturbação de humor ser atribuída a essa
etiologia, deve existir alguma evidência na história, no exame físico ou nos
achados de imagem ou laboratoriais, e a perturbação não ser explicada por
outro transtorno mental. Algumas doenças são comumente mais associadas a
episódios de exacerbação do humor como os distúrbios da tireoide, doença
de Cushing, esclerose múltipla, lúpus eritematoso sistêmico, deficiências
vitamínicas, infecções, neoplasias e lesões traumáticas do sistema nervoso
central.
Episódios maníacos e hipomaníacos associados a condições médicas
geralmente têm início de forma aguda assim que se inicia a patologia
associada, e em alguns casos surgem em períodos de agudização da doença
de base. Deve-se suspeitar de mania secundária em pacientes com déficits
neurológicos, histórias atípicas para o transtorno bipolar clássico e primeiros
episódios maníacos após os 40 anos.
A desregulação emocional, a impulsividade e o comportamento suicida
são características comuns ao transtorno de personalidade borderline
(TPB) e TAB, entretanto importantes diferenças podem ser apontadas. A
instabilidade emocional no TPB é reativa a estressores interpessoais quando
comparada ao TAB, em que o quadro de instabilidade é independente, está
mais ligado a fatores internos e tem maior duração. O TPB apresenta início
dos sintomas ainda na adolescência, tem maior prevalência de histórico de
traumas na infância, não responde bem ao uso de estabilizadores de humor e
apresenta perturbações mais intensas e graves nas relações interpessoais.
O transtorno esquizoafetivo é um distúrbio psicótico crônico
potencialmente incapacitante considerado uma condição intermediária entre
transtornos do humor e esquizofrenia. Sua característica central é a presença
de um episódio de humor bem caraterizado (depressivo ou maníaco)
acompanhado de delírios, alucinações ou discurso desorganizado. Como
então diferenciar o transtorno esquizoafetivo do TAB com características
psicóticas? Os sintomas psicóticos nos pacientes esquizoafetivos devem
estar presentes de forma marcante por pelo menos duas semanas na ausência
de sintomas de humor maníacos ou depressivos. Além disso, nos pacientes
com transtorno de humor os sintomas psicóticos geralmente surgem apenas
durante os episódios de mania e depressão.
O TDAH é um diagnóstico diferencial importante durante a infância e
adolescência, principalmente quando comórbido com transtorno de
conduta e transtorno opositor desafiador. O comportamento agressivo
nessas duas patologias pode se sobrepor com sintomas maníacos e
hipomaníacos. Desregulações do humor, padrão de sono irregular e
agressividade estão mais relacionados ao diagnóstico de TAB. Já a
inquietação e comportamentos desorganizados em consequência da
desatenção e da distração são mais sugestivos de TDAH.

4.1. E aí? O que fazer?


Apesar de o TAB ser altamente recorrente, os pacientes podem alcançar
remissão completa com períodos livres de qualquer sintoma durante um
intervalo de tempo em que se considera que o distúrbio está latente e
necessita de tratamento de manutenção. O tratamento abrange medidas
farmacológicas e não farmacológicas para o manejo dos episódios agudos
depressivos, hipomaníacos e maníacos, bem como a prevenção de recaídas.
O estabelecimento de uma aliança terapêutica também é de extrema
importância para estimular a adesão ao tratamento.
O primeiro passo no tratamento no TAB é caracterizar o episódio de
humor atual, tendo em vista que a abordagem difere consideravelmente para
cada situação. No tratamento agudo o objetivo principal é garantir a
segurança do paciente e pessoas próximas e alcançar estabilização clínica e
funcional, minimizando efeitos adversos. Já os objetivos em longo prazo são
evitar recorrência de novos episódios e preservar funcionalidade.

5. TRATAMENTO FARMACOLÓGICO
Atualmente a lista de medicamentos inclui os estabilizadores de humor (lítio
e anticonvulsivantes) e antipsicóticos. As evidências para o uso de
antidepressivos no TAB são controversas. No entanto, é recomendado que
quando usados nunca sejam prescritos em monoterapia.
O carbonato de lítio é amplamente utilizado e continua sendo o padrão-
ouro para o tratamento do TAB. É o único estabilizador de humor que
demonstrou eficácia na prevenção do suicídio. A dose inicial é geralmente
300 mg duas ou três vezes ao dia e aumentos são feitos em 300 mg a cada
cinco dias, com base na resposta e na tolerabilidade do paciente. O objetivo
é atingir um nível sérico terapêutico, que geralmente ocorre com uma dose
de 900 a 1.800 mg por dia.
O tempo esperado do início de ação varia de uma a três semanas e o nível
sérico alvo para tratamento agudo está entre 0,6 a 1,2 mEq/L. A medição
deve ser feita de cinco a sete dias após o último ajuste de dose. Os efeitos
colaterais agudos mais comuns são náusea, diarreia, poliúria, ganho de peso
e tremores. Deve-se estar atento ao agravamento dos efeitos colaterais, pois
são indícios de intoxicação grave. Em longo prazo, o lítio pode afetar rins e
tireoide, e por isso função renal e tireoidiana deve ser medidas no início e a
cada seis meses de tratamento.
Os anticonvulsivantes também têm sido utilizados no tratamento com
base principalmente em evidências seguras de efeitos antimaníacos da
carbamazepina e valproato de sódio, além dos efeitos da lamotrigina como
tratamento de manutenção para reduzir a recorrência de episódios
depressivos. Outros anticonvulsivantes como topiramato e oxcarbazepina
têm eficácia duvidosa no TAB.
O valproato (ou ácido valproico) é comprovadamente efetivo na mania
aguda, mas não tem eficácia bem estabelecida para evitar recorrência de
mania e tratamento da depressão bipolar. Pode ser eficaz nos pacientes com
episódios mistos ou cicladores rápidos. É iniciado geralmente na dose de 500
a 750 mg/dia, mas em casos de mania grave, por exemplo, doses iniciais
mais altas podem ser usadas. A dose é aumentada em 250 mg a 500 mg a
cada três dias, conforme a tolerância do paciente para atingir um nível sérico
terapêutico que geralmente ocorre com 1.500 mg a 2.500 mg por dia. A
medição do nível sérico deve ser feita cinco dias após o aumento de cada
dose, e valores entre 50 e 125 mcg/mL são aceitáveis. Os efeitos colaterais
comuns do valproato de sódio incluem ganho de peso, náusea, vômito, perda
de cabelo e tremores. Devido ao risco de hepatotoxicidade e
trombocitopenia, é recomendado realizar hemograma e testes de função
hepática antes do início do tratamento e regularmente, em especial durante
os primeiros seis meses.
A carbamazepina é aprovada pelo FDA nos Estados Unidos para uso na
mania aguda e também é utilizada nos episódios mistos, já o seu uso a longo
prazo como terapia de manutenção carece de evidências. A dose inicial
recomendada é de 100 a 200 mg/dia em duas tomadas e aumentos de 10 mg
por kg são feitos a cada cinco dias. A dose máxima varia de 800 a 1.200
mg/dia, dividida em três tomadas, e os efeitos colaterais mais comuns são
sedação, queixas gastrointestinais, hiponatremia, leucopenia e reações
cutâneas. A carbamazepina apresenta um perfil ruim de interações
medicamentosas e efeitos colaterais que a colocam como opção de segunda
linha no tratamento do TAB. A droga acelera o metabolismo e reduz níveis
séricos de vários outros psicotrópicos. Os testes de função hepática,
hemograma e sódio sérico devem ser solicitados a cada seis meses.
A lamotrigina é aprovada para uso de prevenção de recaídas de
episódios maníacos e depressivos, retardando o tempo para o aparecimento
de um novo episódio de humor. Também vem sendo usada no tratamento
para depressão bipolar aguda, embora ainda não tenha sido indicada
formalmente para esse fim. A dose inicial de lamotrigina é de 25 mg uma
vez por dia durante duas semanas, que é aumentada para 25 mg duas vezes
por dia nas duas semanas seguintes. A partir dai, são feitos aumentos de 25 a
50 mg a cada uma ou duas semanas, até atingir dose alvo que é de 200
mg/dia, mas pode variar de 100 a 400 mg/dia.
Os efeitos colaterais mais comuns com o uso de lamotrigina são cefaleia,
náusea, tontura, sedação e reações cutâneas. A titulação lenta da lamotrigina
parece reduzir o risco de erupções cutâneas graves que oferecem risco a
vida. O esquema de titulação de dose deve ser ainda mais conservador em
pacientes que já fazem uso de valproato de sódio, uma vez que este aumenta
o nível sérico de lamotrigina.
Os antipsicóticos atípicos ou de segunda geração (ASG) são usados no
manejo dos episódios de mania aguda, nos episódios depressivos e como
terapia de manutenção. Apresentam início de ação mais rápido no controle
dos sintomas maníacos e psicóticos quando comparados aos estabilizadores
de humor e não apresentam necessidade de monitoramento, como lítio,
valproato de sódio e carbamazepina.
Os ASG apresentam perfis farmacológicos distintos, apesar de
compartilharem muitas propriedades. Na tabela a seguir podemos conferir as
doses inicial e máxima, bem como o manejo da titulação de cada ASG
utilizado no tratamento do TAB.
Tabela 1 - Antipsicóticos de segunda geração para o tratamento do TAB

Medicamento Dose Máxima Dose Inicial E Progressão

Aripiprazol 30 mg/dia 5-10mg / Aumentar 5 mg a cada 7 dias

5-10mg divididas em 2 tomadas / Aumentar 5 mg a cada 7


Asenapina 20 mg/dia
dias

Clozapina 900 mg/dia 25 mg / Aumentar 25-50 mg a cada 3 dias

Lurasidona 120 mg/dia 20 mg / Aumentar 20 mg a cada 2 ou 7dias

Olanzapina 30 mg/dia 05-10 mg / Aumentar 5 mg a cada 7 dias

Paliperidona 12 mg/dia 6 mg / Aumentar 3 mg a cada 5 dias

Quetiapina 800 mg/dia 50 mg / Aumentar 50-100 mg a cada dia

Risperidona 08 mg/dia 1-2 mg / Aumentar 1 mg a cada 1 ou 2 dias

40 mg divididas em 2 tomadas / Aumentar 20-40 mg a cada


Ziprasidona 200 mg/dia
7 dias

Fonte: Stovall J.45

O perfil de efeitos colaterais varia de acordo com cada fármaco da classe.


De modo geral, os mais prevalentes são alterações metabólicas (ganho de
peso, aumento dos triglicerídeos, resistência insulínica), sedação, acatisia,
tontura e sintomas extrapiramidais. Olanzapina e clozapina são os ASGs
com maior risco para alterações metabólicas, enquanto aripiprazol e
ziprasidona apresentam menor risco. Recomenda-se fazer uma avaliação do
paciente antes do início da droga e periodicamente com acompanhamento de
medidas de índice de massa corpórea, níveis glicêmicos, perfil lipídico e
pressão arterial.
Apesar do protagonismo dos ASG no tratamento do TAB, a
clorpromazina e o haloperidol são os antipsicóticos típicos mais estudados
no tratamento de mania bipolar. A clorpromazina é aprovada para tratar a
mania aguda e a literatura sugere que o haloperidol possui propriedades
antimaníacas e um início mais rápido de ação em comparação com
antipsicóticos atípicos. Entretanto, devido ao perfil mais desfavorável de
efeitos colaterais, ausência de efeitos protetores e risco potencial de induzir
depressão, o haloperidol é considerado opção de segunda ou terceira linha
para a mania aguda.
O uso de benzodiazepínicos, principalmente clonazepam e lorazepam,
são úteis no manejo de situações de hiperatividade e insônia durante um
episódio de mania. Seu efeito calmante é imediato e muitas vezes necessário
até o início da ação dos estabilizadores de humor. O uso em curto prazo é
indiscutivelmente eficaz e bem tolerado, no entanto, evidências indicam
riscos potenciais quando usados em longo prazo. As doses de clonazepam
utilizadas são de 1 a 6 mg\dia e as de lorazepam variam de 1,5 a 8 mg/dia.
Existem poucos medicamentos aprovados para o tratamento da depressão
bipolar e o uso de fármacos antidepressivos, apesar de comumente prescritos
na prática, seu uso é controverso e apresenta evidência de eficácia limitada.
A preocupação com o uso dessa classe farmacológica se deve a riscos
potenciais de elevação excessiva do humor com mudança de polaridade
(virada maníaca), aumento da frequência de episódios e comportamento
suicida. Esses riscos são maiores com drogas antidepressivas tricíclicas e
inibidores da receptação de serotonina e noradrenalina e menor com
inibidores seletivos da receptação de serotonina (ISRS) e bupropiona. A
prescrição de antidepressivos deve ser cautelosa, com duração breve,
aumento lento de doses e sempre associada com um estabilizador de humor.
Fármacos estimulantes, como metilfenidato e modafinil, também são
recomendados por diretrizes internacionais no tratamento do TAB. Os
estimulantes são escolhas de segunda e terceira linhas para depressão bipolar
e também são indicados em casos de TDAH comórbido em pacientes
bipolares. Essa classe farmacológica deve ser usada com cautela, pois as
evidências ainda são controversas e existe risco potencial para
desestabilização do humor com indução de episódios hipomaníacos,
maníacos e mistos.
Diante das possibilidades farmacológicas apresentadas neste tópico, qual
fármaco escolher para cada situação? Qual usar em monoterapia? Quais
combinações indicadas? Nas tabelas a seguir apresentamos as
recomendações para cada fase da doença, segundo a última diretriz da Rede
Canadense de Tratamento de Humor e Ansiedade (CANMAT) e a Sociedade
Internacional para Distúrbios Bipolares (ISBD) do ano de 2018.

Quadro 1 - Tratamentos recomendados para o manejo da mania aguda

Primeira linha – Monoterapia

Lítio, Quetiapina, Valproato de sódio, Asenapina, Aripiprazol,


Palperidona, Risperidona e Cariprazina

Primeira linha – Terapia combinada

Litio ou valproato de sódio + Quetiapina, Aripiprazol, Risperidona ou Asenapina

Tratamentos de segunda linha

Olanzapina, Carbamazepina, Ziprasidona, Haloperidol

Litio + Valproato de sódio

Olanzapina + Lítio ou valproato de sódio

Fonte: Yatham LN, Kennedy SH, Parikh SV, et al.23

Quadro 2 - Tratamentos recomendados para o manejo da depressão no TAB-


1

Tratamentos de primeira linha


Tratamentos de primeira linha

Quetiapina, Lítio, Lamotrigina, Lurasidona

Lurasidona + Lítio ou valproato de sódio

Tratamentos de segunda linha

Valproato de sódio, Cariprazina

Olanzapina + Fluoxetina

ISRS ou bupropiona + Litio, valproato de sódio ou ASG

Fonte: Yatham LN, Kennedy SH, Parikh SV, et al.23

Quadro 3 - Tratamentos recomendados para a depressão no TAB-2

Tratamentos de primeira linha

Quetiapina

Tratamentos de segunda linha

Lítio, Lamotrigina, Bupropiona, Sertralina*, Venlafaxina*

*Apenas para depressão pura (sem sintomas mistos).


Fonte: Yatham LN, Kennedy SH, Parikh SV, et al.23

Quadro 4 - Tratamentos recomendados para a manutenção no TAB

Tratamentos de primeira linha

Lítio, Quetiapina, Valproato de sódio, Lamotrigina, Asenapina, Aripiprazol


Tratamentos de primeira linha

Quetiapina + Lítio ou valproato de sódio

Aripiprazol + Lítio ou valproato de sódio

Tratamentos de segunda linha

Olanzapina, Risperidona, Carbamazepina, Paliperidona

Lurasidona + Lítio ou Valproato de sódio

Ziprasidona + Lítio ou valproato de sódio

Fonte: Yatham LN, Kennedy SH, Parikh SV, et al.23

6. TRATAMENTO NÃO FARMACOLÓGICO


A natureza crônica e recorrente do TAB exige estratégias de manutenção e
preventivas a longo prazo. As medidas farmacológicas continuam sendo a
base do tratamento do transtorno bipolar, mas a farmacoterapia isolada está
associada a piores taxas de remissão e a maiores taxas de recorrência dos
episódios de humor e não adesão ao tratamento quando comparada com a
associação de psicoterapias e abordagens de estilo de vida.
A psicoeducação é eficaz na prevenção de recaídas e tem objetivo de
alcançar pacientes e cuidadores. Consiste em fornecer informações de modo
individual ou em grupo que ajudem o paciente a atender melhor sobre o seu
distúrbio. Os pontos trabalhados vão desde fornecer informações simples
sobre sintomas da doença como intervenções mais complexas sobre gestão
de estilos de vida. Existe considerável sobreposição entre psicoeducação e
psicoterapias específicas, como terapia cognitiva comportamental (TCC),
terapia de ritmo interpessoal e terapia familiar.
Abordagens psicoterápicas são eficazes em melhorar a funcionalidade e
reduzir o número de hospitalizações. O foco da TCC é ensinar habilidades
para lidar com estresses psicológicos, facilitar a adesão medicamentosa e
monitorar ocorrência e gravidade de sintomas. A terapia de ritmo
interpessoal e pessoal visa aumentar a regularidade das rotinas diárias e
melhorar estilos de vida.
A eletroconvulsoterapia tem evidência de eficácia e segurança para o
tratamento agudo de quadros depressivos, maníacos e estados mistos com
risco mínimo de induzir efeitos desestabilizadores ou mania. Pode ser usada
como primeira linha em casos graves como estados catatônicos e
comportamento suicida.

6.1. Redescobrindo o caso (Pontos-Chave)


6

1 Idade de incidência

2 Tempo de sintomas
3 Humor expansível

4 Pensamento acelerado/fuga de ideias

5 Necessidade de sono reduzida

6 Aumento de energia

7 Atividades de risco

8 Aumento de atividade dirigida a objetivo

9 Irritabilidade/agressividade

10 Histórico de família

11 Ausência de insight

A paciente encontra-se em um estado de perturbação anormal do humor,


apresenta prejuízo importante da funcionalidade e todos os sinais e sintomas
apresentados indicam que Michele encontra-se atualmente em um episódio
maníaco. Como discutido nos tópicos anteriores, podemos afirmar que a
paciente apresenta diagnóstico de transtorno bipolar tipo I, pois o episódio
maior de humor é maníaco.
A paciente do caso apresenta comportamentos que colocam em risco sua
integridade e a integridade de terceiros. Também não demonstra nenhuma
crítica em relação ao seu atual estado de saúde. Esses fatos nos levam a
concluir que existe indicação de internação. O clínico que realiza primeiro
atendimento em ambiente de pronto-socorro de um paciente com esse
quadro deve esclarecer para a família acerca da necessidade de internação,
providenciar transferência da paciente e realizar a primeira prescrição. Se
houver CAPS III no município, poderá ser feito contato com a equipe deste,
ou, se não houver a possibilidade de acolhimento em CAPS III, a internação
em leito de hospital.
Exemplo de uma prescrição para Michele
Lítio 300 mg, iniciar com um comprimido via oral pela manhã e à
noite. Após 5 dias passar a tomar dois comprimidos pela manhã e um à
noite.
+
Risperidona 1 mg, iniciar com um comprimido via oral à noite. Após 2
dias passar a tomar um comprimido pela manha e um à noite.
+
Clonazepam 2 mg, tomar 1 comprimido à noite.

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SIGLAS

• CANMAT Canadian Network for Mood and Anxiety Treatments


• DSM-5 Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (5ª
revisão)
• ISRS Inibidor Seletivo de Receptação de Serotonina
• ISBD International Society for Bipolar Disorders
• PMD Psicose Maníaco-Depressiva
• TAB Transtorno Afetivo Bipolar
• TUS Transtorno por Uso de Substâncias
• TDM Transtorno Depressivo Maior
• TPB Transtorno de Personalidade Borderline
• TDAH Transtorno do Déficit de Atenção e Hiperatividade
• TAG Transtorno de Ansiedade Generalizada
• TCC Terapia Cognitivo-Comportamental
A ansiedade é uma alteração da afetividade presente em todos os seres
humanos e é de extrema relevância para a sobrevivência da espécie. A
ansiedade tem como grandes pilares a preocupação e o medo. Esses
sintomas, fisiologicamente, mantém o indivíduo alerta e pronto para o
enfrentamento de riscos da vida. No entanto, em uma parcela considerável
da população – os transtornos ansiosos estão entre os mais prevalentes
chegando a 30% da população – esses sintomas extrapolam o limite do
normal provocando sofrimento clínico significativo ocasionando prejuízos
funcionais.
Os sintomas que se agrupam nessa grande síndrome são a preocupação,
medo, ataques de pânico, esquiva fóbica, compulsões, tensão muscular,
irritabilidade, dificuldades com o sono, baixa concentração e fatigabilidade,
além de sintomas somáticos inespecíficos associado a excitabilidade
autonômica. Tais sintomas podem estar presentes em maior ou menor
intensidade nas diversas patologias em que a ansiedade é marcante.
Nesta seção elencamos capítulos que ilustram condições em que a
ansiedade ou representa o grande aspecto sintomatológico ou está
fortemente associada, a saber: transtorno de ansiedade generalizada,
transtorno de ansiedade social, agorafobia, transtorno de pânico, fobia
específica, transtorno de estresse pós-traumático e transtorno de
adaptação. Os transtornos se distinguem entre si pelo objeto/situação que
induzem, justificam e perpetuam os sintomas, além do tempo em que
despertam e/ou somem.
1. CASO CLÍNICO
Eduarda, 36 anos, enfermeira, divorciada, comparece ao
ambulatório de psiquiatria desacompanhada, com queixa de insônia.
Diz se sentir com os nervos à flor da pele, sempre preocupada com
seus pais, que são idosos e moram em outro estado. Ela também
relata sentir tensão muscular e dor nos ombros. Ao ser questionada a
respeito da preocupação, ela fala que sente medo de que algo muito
ruim aconteça com seus pais. A paciente é filha única e mora no
Ceará, enquanto os pais moram no Maranhão, longe de todos os
familiares. Por ter história familiar de doença cardiovascular,
paciente teme que os pais venham a ter um infarto ou um acidente
vascular encefálico e não tenha ninguém por perto para ajudar. Liga
para os pais várias vezes ao dia, para perguntar se está tudo bem e,
caso eles não atendam o telefone, se sente extremamente ansiosa.
Eduarda fala que se preocupa também com os estudos dos filhos,
mesmo eles tirando boas notas no colégio, e fica preocupada com as
finanças da casa, mesmo tendo uma boa condição financeira. Diz
que no trabalho sente dificuldade de concentração e tem medo de
acabar errando as medicações dos pacientes. Já faltou inúmeras
vezes no emprego e tem medo de ser demitida por esse motivo. Tem
feito uso de vinho, diariamente, para se acalmar e conseguir dormir.
Relata que já vem apresentando esses sintomas há cerca de 3 anos e
que os sintomas vêm piorando progressivamente.

Exame mental: inquieta, loquaz e humor ansioso.

2. DISCUTINDO O DIAGNÓSTICO
A ansiedade é uma característica humana que foi selecionada
durante a evolução da espécie. Na pré-história, os mais ansiosos
eram mais cautelosos quando iam procurar alimento para não serem
atacados por predadores. Enquanto isso, os menos ansiosos, por não
tomarem cuidado, ficavam mais expostos à predação. Assim,
quando falamos de ansiedade, estamos nos referindo a uma
característica que faz parte da vida e é um sentimento intrínseco ao
desenvolvimento humano. Ela está associada às mudanças naturais
do desenvolvimento, além de ser um sinal de alerta em caso de
perigo iminente. A ansiedade é uma emoção normal e esperada,
diante de situações novas, desconhecidas ou de perigo. O transtorno
de ansiedade, por sua vez, pode ser diferenciado de uma ansiedade
normal por se apresentar em nível excessivo, persistindo por
períodos além do apropriado, que leva a sofrimento e a prejuízo
funcional.
Como podemos observar no nosso caso clínico, Eduarda está
sofrendo há cerca de 3 anos com uma preocupação exacerbada, que
tem, inclusive, prejudicado seu trabalho. A preocupação excessiva
e persistente é uma característica marcante do transtorno de
ansiedade generalizada (TAG), que é muitas vezes acompanhada de
sintomas físicos e relacionados à hiperatividade autonômica e à
tensão muscular. Dentre esses sintomas, os mais comuns que
podemos citar são: palpitações, sudorese, fadiga, queimação no
estômago, tontura, insônia, dificuldade para relaxar e dores
musculares.
No quadro de TAG os sintomas ansiosos excessivos ocorrem na
maior parte dos dias, por pelo menos 6 meses e são associados a no
mínimo 3 dos seguintes:

1. Inquietação ou sensação de estar com os nervos à flor da


pele.
3. Fatigabilidade.
4. Dificuldade em se concentrar ou sensação de “branco” na
mente.
5. Irritabilidade.
6. Tensão muscular.
7. Perturbação no sono (dificuldade em conciliar ou manter o
sono ou sono insatisfatório e inquieto).
Além disso, alguns pacientes, num contexto de agudização do
quadro de ansiedade, podem experimentar um ataque de pânico,
caracterizado por ser uma crise paroxística de ansiedade, que cursa
com dispneia, palpitações, tremores, dor torácica, entre outros
sintomas (para mais informações, consultar o capítulo “Transtorno
do pânico”).
Os sintomas do TAG, ainda de acordo com os critérios
diagnósticos, devem causar prejuízo no funcionamento social,
profissional e outras áreas importantes da vida da pessoa. No
entanto, para fechar o diagnóstico, precisam ser excluídas causas
clínicas, como hipertireoidismo, por exemplo, ou psiquiátricas,
como outros transtornos de ansiedade ou transtorno por uso de
substância.
Nos quadros de TAG, o paciente apresenta dificuldade de
controlar a preocupação e de evitar que pensamentos preocupantes
interfiram na atenção às tarefas em questão. Por esse motivo,
pacientes sofrendo de ansiedade generalizada apresentam pior
qualidade de vida, diminuição da produtividade e aumento da
procura por serviços médicos.
Apesar de os pacientes com transtornos ansiosos procurarem
com frequência os serviços de saúde, eles são, usualmente,
diagnosticados incorretamente nos serviços de atenção primária. As
taxas de diagnóstico incorreto para o TAG podem chegar a até 71%.
Isso muito provavelmente ocorre porque a maioria dos pacientes
(70% a 90%) com ansiedade chegam ao médico se queixando de
cefaleia ou desconforto gastrointestinal. Outros se queixarão apenas
de insônia ou dor no peito, isoladamente. Alguns ainda chegam
referindo termos vagos ou populares, como “gastura” ou “coisa
ruim” ou, ainda, “repuxamento dos nervos”.
Muitas vezes, o médico não vai conseguir encontrar uma
explicação clínica para esses pacientes, devendo a hipótese de um
transtorno ansioso ser levantada. Uma pergunta que cabe ser feita
aos pacientes que se queixam apenas de insônia, humor depressivo,
desconforto gastrointestinal, sintomas de dor crônica ou outros
sintomas clínicos não explicados é se eles se preocupam
excessivamente com problemas pequenos. Em geral, o paciente
apresenta uma resposta afirmativa para essa pergunta.
A partir de uma suspeita de TAG, o clínico pode lançar mão de
uma ferramenta para auxiliar o diagnóstico, como o GAD-7
(Generalized Anxiety Disorder 7-item), uma escala autoaplicável
(Quadro 1) que leva apenas alguns minutos para ser respondida. O
GAD-7 foi originalmente desenvolvido em serviços de cuidados
primários para detectar e avaliar a gravidade de distúrbios de
ansiedade. Vários estudos comprovaram a fidedignidade e a
validade do instrumento, tanto em cuidados primários como na
população em geral.

Quadro 1 - Escala para avaliação do transtorno de ansiedade


generalizada (GAD-7)
Durante as últimas 2 semanas com
Mais da
que frequência você foi Nenhuma Vários Quase todos
metade dos
incomodado pelos problemas vez dias os dias
dias
abaixo?

1. Sentir-se nervoso(a),
ansioso(a) ou muito 0 1 2 3
tenso(a).
Durante as últimas 2 semanas com
Mais da
que frequência você foi Nenhuma Vários Quase todos
metade dos
incomodado pelos problemas vez dias os dias
dias
abaixo?

2. Não ser capaz de impedir


ou de controlar as 0 1 2 3
preocupações.

3. Preocupar-se muito com


0 1 2 3
diversas coisas.

4. Dificuldade para relaxar. 0 1 2 3

5. Ficar tão agitado(a), que


se torna difícil 0 1 2 3
permanecer sentado(a).

6. Ficar facilmente
0 1 2 3
aborrecido(a).

7. Sentir medo, como se


algo horrível fosse 0 1 2 3
acontecer.

Pontuação:
A pontuação total (0 a 21) é a soma dos itens individuais. Pontuações totais de 5 a 9 indicam
ansiedade leve, provavelmente subclínica, e o monitoramento é recomendado. Pontuações
totais de 10 a 14 indicam ansiedade moderada, possivelmente significativa clinicamente, e
avaliação e tratamento adicionais (se necessário) são recomendados. Pontuações totais de 15
a 21 indicam ansiedade severa, provavelmente significativa clinicamente, e o tratamento
provavelmente é necessário.

Fonte: Solomon CG.9

8. ASPECTOS SOBRE
EPIDEMIOLOGIA E
ETIOLOGIA
Dentre os transtornos ansiosos, o TAG é o mais comum, tendo a
prevalência ao longo da vida estimada entre 5% a 9% nos EUA. No
Brasil, de acordo com a Organização Mundial da Saúde (OMS),
aproximadamente 9,3% da população sofre com algum tipo de
transtorno de ansiedade, sendo um dos países com a maior taxa de
prevalência. Estudos epidemiológicos realizados nas cidades de São
Paulo e Rio de Janeiro detectaram a presença de TAG, nos últimos
12 meses, em 2,2% a 3,5% da população e, pelo menos uma vez na
vida, em 5,8% a 6,0%.
O transtorno de ansiedade generalizada acomete duas vezes mais
mulheres do que homens. A idade de início é muito variável.
Enquanto alguns casos começam na infância, a maioria começa no
início da idade adulta, tendo outro pico observado em adultos mais
velhos ou idosos, muitas vezes relacionado a um contexto de
condições crônicas de saúde. A doença tende a apresentar um curso
crônico, com flutuação da gravidade dos sintomas. Quanto mais
cedo o início dos sintomas, maior a chance a doença desenvolver
um curso crônico e ser resistente ao tratamento.
O TAG é o transtorno ansioso mais comumente visto na atenção
primária e corresponde a mais de 50% dos casos dos transtornos
ansiosos. Além disso, está associado a um prejuízo funcional
significativo, semelhante ao transtorno depressivo maior.
Mais de 90% dos pacientes que sofrem com o transtorno de
ansiedade generalizada têm uma comorbidade psiquiátrica
associada. Desses, 48% sofrem de depressão maior. O TAG também
é frequentemente comórbido com outras condições clínicas, como
dores crônicas, cefaleia, síndrome do intestino irritável e distúrbios
do sono.
Vale salientar também a alta associação de transtorno de uso de
substância (TUS) com o TAG. Aproximadamente 35% das pessoas
com TAG se automedicam com álcool e drogas, para reduzir os
sintomas de ansiedade. Esse padrão de uso constitui um risco
aumentado de TUS entre essas pessoas.
Com relação ao curso da doença, alguns fatores podem predizer
a evolução do transtorno. Relações familiares conflituosas, presença
de comorbidades (principalmente depressão maior, transtornos de
personalidade do cluster C e outros transtornos ansiosos) estão
associados a uma menor chance de remissão do TAG. O gênero
também parece afetar a evolução da doença. O sexo feminino está
relacionado a uma menor taxa de remissão; sua vez, as mulheres
que remitem do quadro são menos propensas a recair, em relação
aos homens.
Alguns fatores de risco são bem estabelecidos para o TAG e
incluem: sexo feminino, pessoas viúvas ou divorciadas, múltiplos
fatores estressores na vida, baixo nível educacional, saúde geral
ruim e exposição a adversidades na infância (abuso sexual ou físico,
negligência e problemas parentais como violência, alcoolismo e
abuso de substância).
Sobre a etiologia do transtorno de ansiedade generalizada, suas
causas ainda não foram bem estabelecidas. Fatores genéticos,
biológicos e ambientais parecem ter um papel importante na
patogênese do TAG. Estudos envolvendo gêmeos mostram
evidência de um moderado risco genético para o transtorno, com
hereditariedade estimada em 15% a 20%.
Um construto psicológico conhecido como intolerância à
incerteza – a tendência a reagir negativamente a situações que são
incertas – tem sido evidenciado como uma característica específica
de pessoas com o transtorno de ansiedade generalizada. Embora não
esteja claro se a origem desse construto é ambiental ou genética, foi
observada a redução na intolerância à incerteza como um mediador
importante dos resultados da terapia cognitivo-comportamental
(TCC), fornecendo suporte para seu papel central nesse transtorno.
Estudos de neuroimagem funcional envolvendo pacientes com
transtorno de ansiedade generalizada sugeriram aumento da
ativação dentro de partes do sistema límbico (por exemplo, a
amígdala) e redução da ativação no córtex pré-frontal, com
evidência adicional de conectividade funcional diminuída entre
essas regiões.

9. DIAGNÓSTICO DIFERENCIAL
Os diagnósticos diferenciais do TAG são vastos e incluem
condições psiquiátricas e clínicas como hipertireoidismo,
feocromocitoma, arritmias, epilepsia do lobo temporal e várias
outras. As doenças clínicas devem ser descartadas a partir de uma
anamnese e exame físico completos, bem como exames para
investigação complementar.
Apesar de alguns transtornos mentais cursarem de forma
semelhante ao TAG, conseguir diferenciá-los é de suma importância
para manejar corretamente as patologias. No Quadro 2 serão
abordados os principais pontos que distinguem o TAG de outros
transtornos mentais.

Quadro 2 - Diagnósticos diferenciais psiquiátricos do TAG


PATOLOGIA CARACTERÍSTICAS

TRANSTORNO DE
A ansiedade é restrita à preocupação quanto a ter ou
ANSIEDADE DE
contrair alguma doença grave.
DOENÇA

Apresenta pensamentos ou imagens intrusivas


TRANSTORNO
recorrentes indesejáveis e/ou comportamentos
OBSESSIVO-
repetitivos ou atos mentais, como contar ou verificar,
COMPULSIVO
realizados para reduzir a ansiedade.
PATOLOGIA CARACTERÍSTICAS

É diagnosticado quando há medo ou ansiedade


acentuados acerca de situações sociais em que o
indivíduo é exposto a possível avaliação por outras
TRANSTORNO DE
pessoas. Por exemplo, interações sociais, ser
ANSIEDADE SOCIAL
observado comendo ou bebendo, ou ainda situações
de desempenho perante a outros, como proferir
palestras.

Ocorrem ataques de pânico recorrentes e


inesperados, descritos como ondas inesperadas de
ansiedade, associados a múltiplos sintomas físicos e
TRANSTORNO DO
cognitivos. Os sintomas comuns incluem frequência
PÂNICO
cardíaca elevada, falta de ar, tremores, desconforto
abdominal, tonturas e medo da morte ou perder o
controle.

Após a exposição ao trauma, o paciente experimenta


TRANSTORNO DO sintomas que podem incluir pensamentos intrusivos
ESTRESSE PÓS- com relação ao trauma, humor negativo, dissociação,
TRAUMÁTICO pensamentos evitativos sobre o trauma e
hiperexcitação.

Fonte: elaborado pelos autores.

9.1. E aí? O que fazer?


Uma vez realizado o diagnóstico do TAG, o próximo passo será
explicar ao paciente e aos familiares o que é o transtorno e orientar
sobre mudanças no estilo de vida que possam reduzir sintomas de
ansiedade, como reduzir uso de álcool, cafeína e cigarro. Além
disso, deve-se discutir com o paciente estratégias para melhorar a
qualidade do sono e encorajá-lo a praticar exercícios físicos
regularmente. Você deve monitorar o progresso do paciente com as
mudanças no estilo de vida. Caso perceba que não houve melhora
com a psicoeducação e com as mudanças no estilo de vida, o
próximo passo será discutir com o paciente qual a melhor forma de
tratamento para ele.
Deve-se optar, inicialmente, por algum dos tratamentos
considerados de primeira linha: TCC (terapia cognitivo-
comportamental), inibidores seletivos da receptação da serotonina
(ISRS), inibidores da receptação da serotonina e noradrenalina
(IRSN), também chamados de duais, ou a pregabalina. A escolha do
tratamento vai depender, principalmente, da preferência do paciente,
da disponibilidade do tratamento e do custo.
É importante, ainda, individualizar o tratamento, levando-se em
conta as comorbidades do paciente, efeitos colaterais das
medicações, bem como avaliar se o paciente já fez tratamento
prévio com alguma medicação e qual foi a resposta e tolerância
àquele fármaco.

10. FARMACOTERAPIA
Para os pacientes que escolhem o tratamento medicamentoso, o
mais recomendado na prática clínica é iniciar com algum ISRS ou
IRSN, principalmente naqueles pacientes com depressão comórbida,
visto que eles teriam potencial de tratar as duas condições
simultaneamente. Além disso, essas medicações têm poucos efeitos
colaterais e, em geral, são bem toleradas.
Mas como iniciar a medicação? No geral, recomenda-se iniciar o
antidepressivo na menor dose possível, a fim de evitar efeitos
colaterais, como inquietação. Além disso, é importante sempre
lembrar de comunicar ao paciente que a medicação demora cerca de
2 a 4 semanas para iniciar seus efeitos. Caso o tratamento do TAG
com o antidepressivo seja eficaz, este deverá ser mantido, por, pelo
menos 12 meses, ao invés de 6 meses, como era preconizado em
estudos anteriores.
Tanto os ISRS como os duais são eficazes em reduzir sintomas
de ansiedade e em estudos controlados nenhum agente se mostrou
superior a outro. Os vários efeitos adversos dos antidepressivos
tricíclicos os impedem de ser primeira escolha no tratamento
farmacológico. No entanto, são medicações eficazes e de fácil
acesso no serviço público de saúde.
Com relação aos benzodiazepínicos (BZDs), eles demonstram
eficácia a curto prazo, tendo vantagens no efeito imediato dos
sintomas de ansiedade, podendo também ser utilizados em casos de
exacerbação aguda de ansiedade. Porém, são medicações
problemáticas como monoterapia a longo prazo, devido aos efeitos
de tolerância e dependência, além dos prejuízos cognitivos
associados a seu uso. Dessa forma, o uso de BZDs é mais indicado
no período de introdução dos ISRS ou duais, quando estes ainda não
atingiram o efeito desejado, por conta da latência terapêutica.
Dentre os BZDs mais utilizados, destacam-se o alprazolam, o
lorazepam, o clonazepam e o diazepam. Eles devem ser evitados
nos pacientes que fazem abuso de substâncias, principalmente o
álcool.
Outra medicação de primeira linha indicada no tratamento do
TAG é a pregabalina, uma medicação eficaz tanto no tratamento
agudo, quanto no tratamento de prevenção a recaídas do TAG. Esse
fármaco tem ação ansiolítica rápida, podendo fazer efeito já nos
primeiros dias (aproximadamente 1 semana) de tratamento. Sua
faixa terapêutica vai de 50 a 300 mg/dia, porém, a maioria dos
pacientes vai necessitar de doses maiores que 150 mg/dia. Seus
efeitos colaterais incluem sedação e tontura. A pregabalina pode
tanto ser utilizada em monoterapia para o tratamento de ansiedade
quanto para potencializar a ação de algum ISRS ou IRSN.
A tabela 1 a seguir ilustra as medicações de primeira linha,
trazendo informações sobre dose inicial, faixa terapêutica e
informações adicionais que podem auxiliar o clínico na escolha do
fármaco.
Tabela 1 - Medicações de primeira linha para o tratamento de
ansiedade generalizada
Dose Faixa
Características relevantes selecionadas para o
Medicação Inicial Terapêutica
tratamento de adultos com TAG
(mg) (mg)

Baixo risco de insônia/agitação


Pouca interação medicamentosa
Citalopram 10 20 a 40
Pode aumentar intervalo QT com aumento da
dose

Baixo risco de insônia/agitação


Escitalopram 5 a 10 10 a 20
Pouca interação medicamentosa

Diarreia e outras queixas gastrointestinais são


Sertralina 25 a 50 50 a 200
frequentes

Maior risco de agitação/insônia


Fluoxetina 10 a 20 20 a 60
Queixas gastrointestinais são frequentes

Sedação leve
Paroxetina 10 a 20 20 a 50 Sintomas de retirada, se não for feita redução
gradual da dose

Baixo risco de insônia/agitação


Fluvoxamina 50 100 a 300
Interações medicamentosas significativas

Maior risco de insônia/agitação


Útil no tratamento comórbido de dor crônica
Duloxetina 30 60 a 120
Sintomas de retirada, se não for feita redução
gradual da dose

Maior risco de agitação/insônia


Aumento da pressão e dos batimentos
Venlafaxina 75 75 a 225 cardíacos com o aumento da dose
Pouca interação medicamentosa
Útil no tratamento de dor crônica comórbida

Sedação e tontura
Pregabalina 50 50 a 300 Possibilidade de tolerância, dependência e
abstinência

Fonte: Craske M, Bystritsky A.17


Outras medicações também podem ser utilizadas no tratamento
do TAG, como a buspirona, a qual é uma medicação bem tolerada e
efetiva, particularmente nos pacientes que não fizeram uso prévio de
BZD. Tem a eficácia similar aos benzodiazepínicos, sem o risco de
dependência. É bastante utilizada para potencializar os efeitos dos
ISRS e duais. A dose utilizada é de 30 a 60 mg/dia, e os efeitos
colaterais mais comuns são: insônia, náuseas e agitação.

11. TRATAMENTO NÃO


FARMACOLÓGICO
Várias modalidades de psicoterapia têm se mostrado efetivas no
tratamento do TAG, dentre elas, podemos incluir: terapia cognitivo-
comportamental, as terapias psicodinâmicas (que tratam de conflitos
subjacentes que se acredita serem a fonte da ansiedade), mindfulness
(incluindo terapia de aceitação e compromisso, que incentiva o foco
no presente e nos valores centrais que transcendem os sintomas e a
doença) e a terapia de relaxamento aplicada (que ensina abordagens
para induzir um estado de relaxamento).
Dentre essas formas de terapia, as evidências são mais fortes
para o uso da terapia cognitivo-comportamental no tratamento do
transtorno de ansiedade generalizada. A TCC é projetada para
identificar pensamentos e comportamentos automáticos mal-
adaptativos com objetivo de reestruturá-los por meio de exercícios
terapêuticos. A TCC é tão eficaz quanto um tratamento
medicamentoso e considerada tratamento de primeira linha. Além
de poder ser indicada em monoterapia, também pode ser indicada
em associação ao tratamento medicamentoso.
11.1. Redescobrindo o caso (Pontos-Chave)

1 Sexo feminino

2 Fator de risco

3 Perturbação do sono

4 Preocupação intensa

5 Tensão muscular

6 Dificuldade de concentração

7 Prejuízo funcional

Uso abusivo de álcool – comorbidade


8
frequente

Tempo de evolução dos sintomas > 6


9
meses.
Eduarda está apresentando um quadro de ansiedade
generalizada, com manifestação sintomatológica há três anos
ocasionando prejuízos funcional e social. Apresenta ainda uso
abusivo de etílicos (condição muito comum nos pacientes ansiosos),
utilizado com frequência por esses pacientes como
“automedicação”.
O psiquiatra que a atendeu deve orientá-la sobre a natureza do
transtorno, acerca da higiene do sono e a cessar, ou ao menos
reduzir o uso do álcool, além de motivá-la a realizar atividade física
de maneira regular. Deve ainda explicar a ela as possibilidades de
tratamento, como psicoterapia e farmacoterapia.

Exemplo de prescrição para Eduarda


Sertralina 25 mg, 1 comprimido por via oral, após o café da
manhã por 1 semana. Após esse prazo, passar a tomar:
Sertralina 50 mg, 1 comprimido por via oral, após o café
+
Encaminhamento para psicoterapia

Referências
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Transtornos de Ansiedade. In: Meleiro AMA da S, editor.
Psiquiatria: Estudos Fundamentais. Rio de Janeiro:
Guanabara Koogan; 2018. p. 298-325.
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editor. Prática Psiquiátrica no Hospital Geral: Interconsulta e
Emergência. 4. ed. Porto Alegre: Artmed; 2017.
3. Zuardi AW. Características básicas do transtorno de
ansiedade generalizada. Med Ribeirão Preto Online. 2017;
50(1): 51-5.
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importante componente de ansiedade. In: Psicopatologia e
Semiologia dos Transtornos Mentais. 3. ed. Porto Alegre:
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Transtornos Mentais – DSM-5, estatísticas e ciências
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7. Craske MG, Stein MB. Anxiety. Lancet. 2016; 388: 3048-59.
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17. Craske M, Bystritsky A. Approach to treating generalized
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Expert Opin Pharmacother [Internet]. 2018; 19(10): 1057-70.
Available from:
https://doi.org/10.1080/14656566.2018.1491966.
SIGLAS

• BZD Benzodiazepínicos
• GAD-7 Generalized Anxiety Disorder 7-Item
• IRSN Inibidor da Receptação da Serotonina e
Noradrenalina

• ISRS Inibidor Seletivo da Receptação da Serotonina


• OMS Organização Mundial da Saúde
• TAG Transtorno de Ansiedade Generalizada
• TCC Terapia Cognitivo-Comportamental
• TUS Transtorno de Uso de Substância
1. CASO CLÍNICO
Maria, 17 anos, comparece em consulta médica acompanhada da
genitora a fim de ajudá-la com a timidez que demonstrava há tempos.
Maria se mostrava muito relutante em falar de si, mas conseguiu afirmar
que se sentia constantemente tensa. Relatou ainda que a ansiedade e o
medo eram “muito fortes” há vários anos e que costumavam ser
acompanhados por episódios de tontura e choro.
Maria não conseguia falar ou se expressar em nenhuma situação fora
de casa ou durante as aulas, pois temia que as pessoas a criticassem. Não
saía de casa por medo de ser forçada a interagir com alguém que
encontrasse, tamanho o desconforto que apresentava. Na presença dos
adolescentes com quem mantinha contato mais frequente na escola
também ficava muito ansiosa, assim como ficava muito incomodada
para falar com os próprios vizinhos, que já conhecia há tempos. Sentia-
se totalmente incapaz de comprar algo para si, a ter que fazer um pedido
a um estranho do outro lado do balcão, por medo de passar vexame.
Maria disse que se sentia aprisionada e incompetente e que contemplava
o suicídio recorrentemente.

Exame mental: atitude tímida, inquieta, de esquiva perante o


examinador, corpo inclinado para frente olhando para o chão; tom
de voz baixo, discurso com poucas palavras, respondia à maior parte
das perguntas de forma monossilábica e somente ao perguntado.

2. DISCUTINDO O DIAGNÓSTICO
O Transtorno de Ansiedade Social (TAS), antigamente denominado de
fobia social, é um distúrbio psiquiátrico comum e debilitante,
caracterizada por um medo acentuado e persistente de uma ou mais
situações sociais (como conversar com um estranho ou com um colega,
ir a uma festa) ou atividades de desempenho (como discursar, comer,
beber em público), resultando em resposta de ansiedade e sofrimento. As
pessoas que sofrem desse tipo de fobia acreditam que quando expostas a
essas situações sofrerão críticas negativas ou serão ridicularizadas,
podendo reagir de forma variável, suportando o fato mesmo com intenso
medo ou chegar a desencadear um ataque de pânico.
Essas dificuldades nas interações interpessoais resultam em
comprometimento em quase todas as facetas da vida diária, incluindo
relacionamentos, trabalho e estudos, havendo até uma maior
probabilidade de abandonar prematuramente a escola, ter menor nível
educacional, manter empregos abaixo do seu nível de qualificação, ter
menor renda e estar em situação de desemprego. Esses pacientes relatam
má qualidade de vida, são mais propensos a tentativa de suicídio e é
mais provável que desenvolvam dependência de álcool e nicotina.
Assim, a fobia social resulta em saúde significativamente negativa, além
de consequências econômicas e funcionais.
O desconforto ansioso em situações sociais ou de desempenho pode
acontecer com qualquer indivíduo, entretanto, quando a intensidade
dessa ansiedade admite um aspecto limitante, com um comportamento
de evitação excessiva, com representação negativa na vida do paciente,
caracteriza-se a fobia social. Uma patologia nova na saúde mental,
reconhecida em meados da década de 1980, seus sintomas deixaram de
ser considerados uma “timidez excessiva” e caracterizaram um
transtorno de ansiedade limitante do funcionamento social e profissional
dos indivíduos.
O diagnóstico é clínico e baseia-se nos critérios do Diagnostic and
Statistical Manual of Mental Disorders, Fifth Edition (DSM-5). Para isso
os pacientes devem ter:

1. Medo acentuado e persistente (≥ 6 meses) ou ansiedade em


uma ou mais situações sociais em que podem ser julgadas por
outras pessoas. O medo deve envolver uma avaliação negativa
por outras pessoas (p. ex., de que os pacientes serão
humilhados, envergonhados ou rejeitados ou ofenderão outros).
2. As mesmas situações sociais quase sempre provocam medo ou
ansiedade.
3. Pacientes evitam ativamente a situação.
4. O medo ou a ansiedade é desproporcional à ameaça real
(levando em conta as normas socioculturais).
5. O medo, a ansiedade e/ou esquiva causam sofrimento
significativo ou prejudicam muito o funcionamento social ou
ocupacional.
Além disso, o medo e a ansiedade não podem ser caracterizados mais
corretamente como um transtorno mental diferente (p.
ex., agorafobia, transtorno do pânico, transtorno dismórfico corporal) ou
consequência de efeitos fisiológicos de alguma substância ou de outra
condição médica.
A duração dos sintomas já citados deve ser de no mínimo três meses
em crianças e adolescentes até 17 anos, e de seis meses a partir dos 18
anos de idade. Nos adultos, ainda, para não ser confundido com outra
patologia, é necessário que o paciente reconheça que seus medos são
irracionais e excessivos, o que pode garantir a legitimidade do
diagnóstico.
No CID-10, a fobia social é também denominada antropofobia e
aparece classificada em F40.1, tendo como sintomas presentes: o rubor,
tremores das mãos, náuseas ou desejo urgente de urinar, sudorese,
podendo evoluir para um ataque de pânico.

3. ASPECTOS SOBRE A
EPIDEMIOLOGIA E A ETIOLOGIA
Estudos indicam que as mulheres (9%) são mais propensas a ter fobia
social e demonstram uma apresentação clínica mais grave em
comparação com os homens (7%). Sugerem que homens e mulheres
com fobia social têm idades de início de manifestações da doença
semelhantes e taxas de procura por tratamento também semelhantes. A
prevalência ao longo da vida pode ser de 13%.
Apesar de se apresentar geralmente na adolescência, no período
inicial de 15 anos, acentuando-se no desenvolvimento e na fase adulta, a
fobia social pode desenvolver-se precocemente na infância,
apresentando comportamentos de esquiva social excessiva, timidez
extrema, recusa em participar de brincadeiras comuns à idade, e se
manter sempre perto dos adultos conhecidos que lhe passam segurança
(núcleo familiar).
Além dos males da própria patologia, há associação de
comorbidades, sendo mais incidente a depressão, que pode ocorrer como
consequência do isolamento social e sentimentos de inferioridade, além
do uso abusivo do álcool e drogas, meio encontrado como redutor,
mesmo que momentâneo, da ansiedade, ocorrendo principalmente
quando o início dos sintomas é na infância ou na adolescência.
Existem muitos caminhos para o desenvolvimento da fobia social,
com uma ampla gama de fatores de risco e proteção tendo influência.
Deriva de importante interação entre fatores ambientais e intrínsecos
ainda pouco esclarecidos. Observa-se que fatores causais e de
manutenção da fobia social podem não ser os mesmos e que diferentes
fatores de risco podem ser mais ou menos influentes em diferentes
idades.

4. DIAGNÓSTICO DIFERENCIAL
Outras condições psiquiátricas podem manifestar sintomas semelhantes
aos do TAS, que merecem ser melhor investigados, como as citadas a
seguir.
Transtorno de pânico cursa com ataques de pânico, que consistem
em crises paroxísticas de ansiedade com duração média de 30 minutos,
na qual o paciente apresenta reações somáticas com taquicardia,
sudorese, tremores, sensação de falta de ar, medo de morrer, dentre
outros. Ataques de pânico ocorrem de forma recorrente e inesperada e
não estão relacionados diretamente ou apenas com relacionamento
interpessoal e situações sociais.
Agorafobia tem como grande marca o medo e ansiedade intensos
diante de determinadas situações, nas quais o paciente teme que algo de
ruim lhe aconteça quando permanece em locais fechados ou espaços
abertos, em uso de transporte público, ao sair sozinho de casa, ficar em
filas ou mesmo estando em meio a multidões, podendo, diante disso,
apresentar ataques de pânico. Na agorafobia, os ataques, quando
presentes, são evidentemente esperados, pois ocorrem quando o paciente
se expõe a situações temidas por ele.
Transtorno Dismórfico Corporal (TDC) é caracterizado por um
comportamento perceptivo distorcido em relação à imagem corporal e
uma preocupação com um defeito imaginário na aparência ou na
inquietação exagerada em relação a imperfeições corporais identificadas.
No TDC, os indivíduos não reconhecem sua imperfeição como mínima
ou inexistente, o que acarreta importantes prejuízos no funcionamento
pessoal, familiar, social e profissional. Esse padrão comportamental é
frequentemente notado em situações sociais, sendo comum esquiva
social e tentativas de camuflagem (com maquiagem, roupas, gestos etc.),
podendo haver isolamento, que se assemelha ao que ocorre na fobia
social, pois esses comportamentos podem se tornar cotidianos,
prejudicando as atividades diárias.
Timidez normal é uma descrição comum para se referir às formas
de constrangimento que o indivíduo pode sentir na presença de outros,
incorporando um enrijecimento comportamental marcado por inibição e
evitação de um grande número de situações sociais, porém, geralmente,
a ansiedade diminui com a repetição dos eventos, como que passando
por uma adaptação, e o desconforto não está relacionado com pânico,
sendo, de certa forma, controlável.
Transtorno de ansiedade generalizada é caracterizado por
preocupação excessiva, persistente e de difícil controle, acompanhada
por alguns sintomas físicos ou psicológicos, causando sofrimento e
prejuízo no desempenho, porém o medo não envolve necessariamente
avaliação negativa por outras pessoas.
Fobias específicas consistem em medos persistentes, irracionais e
intensos de situações, circunstâncias ou objetos específicos, causando
ansiedade e esquiva, sendo possível ser identificado uma situação ou
objeto em particular, como, por exemplo, medo de determinados
animais, de altura ou de tempestades e não em situações sociais ou
relacionadas a desempenho.

4.1. E aí? O que fazer?


A fobia social é quase sempre crônica, e o tratamento é necessário.
Fobia social pode ser relativamente bem tratada com farmacoterapia e
psicoterapia. Estudos recentes mostram que terapia cognitivo-
comportamental individual, comparada com outros tratamentos
psicológicos e farmacológicos, teve o maior efeito em redução de
sintomas, porém, um número considerável de pacientes não responde
adequadamente ao tratamento.

5. FARMACOTERAPIA
ISRS (Inibidores Seletivos da Recaptação de
Serotonina) e benzodiazepínicos são eficazes para fobia social, embora
os benzodiazepínicos possam causar dependência física e também
possam prejudicar o pensamento e a memória, faculdades necessárias
para o sucesso da terapia cognitivo-comportamental.
Betabloqueadores podem ser usados para reduzir a frequência
cardíaca, os tremores e a sudorese experimentados pelos pacientes que
estão angustiados ao se apresentarem em público, mas esses fármacos
não diminuem a ansiedade. Podem ser utilizados como sintomáticos em
situações de exposição social. O atenolol (50 a 100mg) e o propranolol
(20 a 40mg) são utilizados 1 hora antes do desempenho.
Estudos mostram que todas as doses de escitalopram (5,10 e 20 mg /
dia) apresentaram aumento significativamente maior na eficácia
comparado ao placebo. Dado o seu perfil de tolerabilidade favorável, o
escitalopram tem uma boa relação risco-benefício, sendo a dose inicial
de 5 mg e a dose terapêutica entre 10 e 20 mg. Outras medicações da
mesma classe podem ser utilizadas, como paroxetina (dose inicial 10
mg, dose terapêutica 20-60 mg), fluoxetina (dose inicial 5 mg, dose
terapêutica 20-60 mg), sertralina (dose inicial 25 mg, dose terapêutica
50-200 mg) e citalopram (dose inicial 10 mg, dose terapêutica 20-40
mg). Podem ser utilizados também os Inibidores Seletivos da
Recaptação de Serotonina e Noradrenalina (ISRSN), a exemplo da
venlafaxina (dose inicial 37,5 mg, dose terapêutica 75-225 mg).

6. TRATAMENTO NÃO
FARMACOLÓGICO
As formas mais eficazes de tratamento para a fobia social consistem em
terapia cognitivo-comportamental (TCC) individual ou em grupo,
acompanhada, quando necessário, de utilização de fármacos adequados.
Nos casos mais graves da doença, a terapia de grupo não é aconselhável,
sendo necessário o acompanhamento individual. A TCC ensina os
pacientes a reconhecerem e controlarem seus pensamentos distorcidos e
suas convicções falsas, assim como os instrui sobre a terapia de
exposição, que consiste em exposição controlada à situação que provoca
medo e ansiedade, sempre com o objetivo de que o paciente aprenda a
controlar os sintomas físicos da ansiedade, com a modificação dos
pensamentos desadaptativos, e o enfrentamento do medo, de modo
gradual, das situações sociais para que retome a tê-las sem o temor
existente.
O tratamento infantil requer, ainda, um acompanhamento com
os pais, para orientações e colaboração no tratamento. Os pais são as
figuras fundamentais no desenvolvimento infantil de habilidades,
principalmente sociais, e, por isso, é necessária a verificação da
influência desses no comportamento da criança.

6.1. Redescobrindo O Caso (Pontos-Chave)


Sexo Sintomas
1 4 7 Evitação
feminino pilares

Tempo de Ansiedade mesmo


Idade de
2 5 evolução (>6 8 em situações
incidência
meses) corriqueiras

Queixa Limitações Grande sofrimento


3 6 9
comum sociais clínico

Maria apresenta de forma característica medo e ansiedade diante de


situações em que a sua exposição necessita acontecer, ainda que diante
de pessoas com quem já tem convivência (na escola, na vizinhança),
gerando sintomas intensos que a paralisam e causam mais isolamento
social e prejuízos em suas interações sociais. Ressalta-se que isso a
acomete há muitos anos (> 6 meses, conforme os critérios do DSM-5).
Nesse caso, interessante observar o aspecto de sua personalidade que
apresenta desde a infância: a timidez. No entanto, ao analisar o contexto
da história de Maria, há a presença de sofrimento psíquico tão intenso
como os sintomas de medo e ansiedade que causam desconforto
importante, ocorrendo, então, prejuízos de diversos âmbitos: sociais,
profissionais, relacionamentos interpessoais etc. Além do mais, o
sofrimento chega a ser tão intenso, que a possibilidade do suicídio
chegou a ser cogitada. Além da farmacoterapia, Maria deve ser orientada
a buscar acompanhamento psicoterápico.

Exemplo de uma prescrição para Maria


Escitalopram 5mg, 1 comprimido, via oral, após o café da manhã
por 7 dias. Após esse prazo, passar a tomar:
Escitalopram 10mg, 1 comprimido, via oral, após o café da manhã.

Referências
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anxiety disorder: A review. Clinical Psychology Review 2017
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Trial. Psychother Psychosom. 2019; 88(4): 244-246.
doi:10.1159/000500108.

SIGLAS

• ISRS Inibidores Seletivos da Recaptação de Serotonina


• ISRSN Inibidores Recaptação de Serotonina e Noradrenalina
• TAS Transtorno de Ansiedade Social
• TCC Terapia Cognitivo-Comportamental
• TDC Transtorno Dismórfico Corporal
1. CASO CLÍNICO
Cleide, 22 anos, vem acompanhada da genitora (só aceitou entrar no
consultório nessa condição) e relata que há aproximadamente seis meses não
vem conseguindo se utilizar de transporte público por referir sentir muita
angústia, sensação de medo extremo e de sufocamento, temendo não conseguir
sair, com sensação iminente de que vai perder o controle sobre si. Mais
recentemente, só de pensar em subir em um ônibus, já se sente desconfortável,
e prefere não ir, ainda que sua mãe ofereça companhia. Tem ficado reclusa em
casa, onde se sente muito confortável. Diz sentir muita falta da companhia dos
amigos e dos passeios que realizava frequentemente.

Exame mental: apresenta-se tímida, um tanto aflita, apreensiva e


hipervigilante, inquieta, com respiração curta, e segurava a mão de sua
mãe durante toda a consulta. Ao adentrar no consultório, já deslocou as
cadeiras para ficar mais próximo da porta e pediu ao médico para que a
porta do consultório ficasse entreaberta, pois relata que “já deu crise de
pânico quando estava no elevador.”

2. DISCUTINDO O DIAGNÓSTICO
O termo agorafobia vem no grego antigo àγορά, ágora, que significa “praça
pública” associado ao sufixo -φοβία, que significa fobia ou “medo”. Estamos
diante de um caso de agorafobia! Faz-se necessário, para fins conceituais e
diagnósticos, a diferenciação entre Agorafobia e Transtorno do Pânico (TP).
No DSM-5, a agorafobia é caracterizada por medo acentuado e persistente
(≥ 6 meses) ou ansiedade em relação à exposição real ou antecipada,
ocorrendo na maioria das vezes em pelo menos duas de cinco situações
diferentes:

1. Usar transporte público.


2. Estar em espaços abertos.
3. Estar em espaços fechados.
4. Ficar em fila ou estar em meio a uma multidão.
5. Estar fora de casa sozinho.
Essas situações são temidas e evitadas pela crença neurótica da
possibilidade que algum mal lhe sobrevenha e que a fuga pode ser difícil ou
que a ajuda pode não estar disponível se desenvolver sintomas de pânico ou
outros sinais ou sintomas angustiantes. O indivíduo deve fazer ativamente
esforço para evitar a situação, de forma comportamental, como encontrando um
emprego que não exija mais o uso de transportes públicos, ou de forma
cognitiva, usando distração quando em situação temida. As situações temidas
não devem ser verdadeiramente ameaçadoras. Assim como em outras fobias, o
DSM-5 sugere que os sintomas devem durar pelo menos 6 meses.

3. ASPECTOS SOBRE EPIDEMIOLOGIA E


ETIOLOGIA
A agorafobia é um dos transtornos de ansiedade menos estudados, inclusive no
que diz respeito à epidemiologia mundial. Houve uma mudança importante do
DSM-IV para o DSM-5, desvinculando o transtorno de pânico (TP) da
agorafobia, classificando-os como distúrbios que existem separadamente, o que
ocorreu baseado em estudos que indicam uma substancial proporção de
indivíduos com agorafobia que não têm TP e/ou TP ou ataques de pânico que
não precedem a agorafobia. Como consequência, pelo DSM-IV, indivíduos com
agorafobia, mas sem sintomas de pânico, não recebiam diagnóstico formal
mesmo cursando com comprometimento e incapacidade substanciais.
Em decorrência dessas mudanças no DSM-5, se torna necessário um
reexame nos dados de epidemiologia sobre agorafobia, podendo sua
prevalência ter sido subestimada. Em estudos recentes, podemos observar que
os critérios do DSM-5 permitem identificar indivíduos com maior persistência
da desordem, gravidade e comorbidade do transtorno.
A taxa de prevalência ao longo da vida para agorafobia com transtorno do
pânico é de 1,1%. A prevalência de agorafobia sem transtorno do pânico é
estimada em 0,8%. Comparado a adolescentes e adultos jovens, a prevalência
de agorafobia entre idosos é um pouco menor. O transtorno pode ser mais
comum em pessoas mais jovens, mulheres, pessoas viúvas, divorciadas e em
pacientes com transtorno do pânico.
A taxa de comorbidade da agorafobia com outros transtornos de ansiedade
varia de 49% a 60%, e com transtornos depressivos é de 33,1% a 52%.
Condições comórbidas significativas incluem: fobia específica (73,7 a 75,2%),
fobia social (66,5%), transtorno de ansiedade generalizada (15 a 31,9%),
transtorno de estresse pós-traumático (24,2 a 39,6%), transtorno depressivo
maior (38,5 a 48,7%), transtorno bipolar (15,5 a 33%) e transtornos por uso de
substâncias (31,4 a 37,3%). O princípio dos sintomas comumente acontece
antes dos 55 anos de idade, sendo 20 anos de idade a média para o início do
transtorno. Normalmente a agorafobia não remite sem tratamento.
Acredita-se que fatores biológicos, psicológicos e ambientais contribuam
para a agorafobia. Estudos têm mostrado alguns agrupamentos familiares de
agorafobia e a herdabilidade da agorafobia é estimada entre 48% e 61%, o que
significa que a contribuição genética é moderada, com a influência de fatores
ambientais.
Os fatores de personalidade que influenciam a agorafobia incluem
introversão/extroversão, sensibilidade à ansiedade e dependência. A
extroversão tem sido associada negativamente à agorafobia, mas não ao
transtorno do pânico. A sensibilidade à ansiedade, ou a crença de que os
sintomas da ansiedade são perigosos, prevê agorafobia sem ataques de pânico.
Traços de personalidade dependentes e evitáveis também podem prever o início
da agorafobia.

4. DIAGNÓSTICO DIFERENCIAL
Um dos principais diagnósticos diferenciais é o transtorno do pânico, pois TP
e agorafobia são condições de apresentação clínica similar, havendo
frequentemente diagnóstico associado de agorafobia ao TP. Ambas as
condições, de agorafobia e TP, cursam com ataques de pânico, porém, em se
tratando de agorafobia, os ataques ocorrem de forma evidentemente esperada,
quando o indivíduo se expõe às situações temidas, enquanto no TP os ataques
ocorrem de forma recorrentemente inesperada. É importante termos em mente
que o diagnóstico de agorafobia não exclui um possível diagnóstico de
transtorno do pânico, ou seja, o diagnóstico de ambos pode ser concomitante.
Fobia específica é uma condição psiquiátrica que pode cursar com ataques
de pânico, entretanto, esses estão relacionados diretamente a temor por objetos
ou situações específicas, e não de forma ampla como na agorafobia. Segundo
DSM-5, se o indivíduo teme apenas uma situação, a fobia específica é o
diagnóstico. A agorafobia também difere de uma fobia específica em termos
das consequências temidas. Se a situação é temida apenas por causa das
respostas esperadas de ansiedade ou pânico, ela se enquadra na categoria de
agorafobia. Se a situação é temida por outros motivos, é mais provável que seja
uma fobia específica.
O transtorno do pânico com agorafobia é um dos grandes fatores de risco
para o desenvolvimento de depressão comórbida. A soma de quadro
depressivo à agorafobia aumenta a probabilidade de ideação e tentativas de
suicídio, bem como uma maior duração dos episódios depressivos.
Aproximadamente metade de todos os pacientes com TP associado à
agorafobia são afetados por depressão, levando a maior comprometimento e
gravidade dos sintomas de pânico.

4.1. E aí? O que fazer?


A identificação precoce, embora não seja simples, é essencial para
implementação do tratamento adequado para melhora da qualidade de vida e
retorno à funcionalidade do indivíduo. Atualmente, as melhores opções de
tratamento foram terapia cognitivo-comportamental (TCC) e intervenções
farmacológicas com antidepressivos. A farmacoterapia e a TCC foram
consideradas superiores ao placebo e nenhum tratamento mostrou eficácia
superior sobre o outro.

5. FARMACOTERAPIA
O tratamento farmacológico tem por objetivo a prevenção dos ataques de
pânico, além de reduzir ou eliminar a ansiedade que antecede a exposição às
situações agorafóbicas, diminuindo o impacto da desordem na qualidade de
vida do paciente. Várias classes de medicamentos são usadas para tratar os
sintomas do transtorno do pânico, incluindo inibidores seletivos de recaptação
da serotonina (ISRS), inibidores seletivos de recaptação de serotonina e
noradrenalina (ISRSN ), antidepressivos tricíclicos, inibidores da monoamina
oxidase e benzodiazepínicos.
Os ISRS – como citalopram, escitalopram, fluoxetina, sertralina,
fluvoxamina e paroxetina, além da venlafaxina – são considerados tratamento
de primeira linha, enquanto os antidepressivos tricíclicos – como imipramina e
clomipramina –, os benzodiazepínicos – como alprazolam, clonazepam,
lorazepam e diazepam –, e os inibidores de monoamina oxidase (imao) são
considerados tratamento de segunda linha devido ao seu perfil de efeitos
colaterais associados.
Durante o tratamento inicial com os medicamentos de primeira linha, o
início de ação terapêutica é lento, variando de 4 a 10 semanas, e muitas vezes
requer terapia combinada com benzodiazepínicos. Embora os
benzodiazepínicos tenham propriedades de efeitos ansiolíticos rápidos, estão
associados a potenciais efeitos colaterais, incluindo sedação, comprometimento
cognitivo, risco de tolerância e dependência.
Além disso, pacientes tratados com as drogas de primeira linha já citadas
frequentemente têm um aumento inicial da ansiedade, o que pode ser
prejudicial para a adesão ao medicamento antes mesmo de alcançados os
efeitos benéficos nos sintomas. Estratégias como início com doses inferiores às
mínimas eficazes e associação com benzodiazepínicos no início do tratamento
são válidas para minimizar as incidências desses efeitos adversos.

6. TRATAMENTO NÃO FARMACOLÓGICO


Diretrizes baseadas em evidências recomendam a terapia cognitivo-
comportamental (TCC) como a primeira escolha de terapia, sendo essa a
abordagem psicoterapêutica mais bem pesquisada, com ganhos clínicos
mantidos em dois anos de acompanhamento. A TCC apresenta eficácia maior
na prevenção de crises, medo de situações fóbicas e sintomas de ansiedade. A
TCC utilizada isoladamente não se mostrou eficaz para agorafobia grave.
Verificou-se que a combinação de farmacoterapia com TCC é superior a
qualquer tratamento isolado durante o tratamento da fase aguda.

6.1. Redescobrindo o caso (Pontos-Chave)


5
1 Sexo feminino

2 Idade de incidência

3 Caráter de dependência

4 Tempo de evolução para diagnóstico

5 Critério diagnóstico (transporte público)

6 Ataque de pânico

7 Ansiedade antecipatória

8 Critério diagnóstico (ambiente fechado)

Cleide apresenta os dois principais critérios: tempo aproximado de início do


quadro (há aproximadamente seis meses) e a ocorrência em pelo menos duas
situações em que evita (transporte público) ou que causa intenso desconforto
com sintomas ansiosos (ambiente fechado: consultório), assim como apresenta
uma característica de dependência muito intensa com a sua genitora
(provavelmente pode haver traços de personalidade dependente, a qual pode ser
uma condição comórbida ao transtorno de agorafobia). Como ocorre nesse
transtorno, Cleide se sente tranquila e assintomática no ambiente que se sente
segura (em seu lar).
Em decorrência da presença de ataques de pânico nos locais citados, Cleide
apresenta agorafobia com ataque de pânico. Pacientes com essa condição
necessitam ser acolhidas em suas queixas e demandas; cabe ao clínico ser
empático diante dos relatos da paciente, orientar o uso adequado das
medicações que serão necessárias, assim como explicar a importância de
retornar às consultas para reavaliações, além da necessidade de psicoterapia,
pois sem essa ferramenta a evolução do quadro pode não ser favorável e o
tempo de resposta para melhora do quadro ser extenso, podendo haver mais
prejuízos a si e às suas interações sociais.

Exemplo de uma prescrição para Cleide


Sertralina 25 mg, 1 comprimido, via oral, por 7 dias. Após esse prazo:
sertralina 50 mg, 1 comprimido, via oral, após o café da manhã.
+
Alprazolam 0,25 mg, 1 comprimido, sublingual, em caso de ataque de
pânico.

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SIGLAS

• ISRS Inibidores Seletivos de Recaptação de Serotonina


• ISRSN Inibidores Seletivos de Recaptação de Serotonina e
Noradrenalina
• TCC Terapia Cognitivo-Comportamental
• TP Transtorno de Pânico
1. CASO CLÍNICO
Marília, 25 anos, divorciada, vem para o atendimento acompanhada de sua
genitora. Refere palpitações, tremores, sensação de sufocamento, turvação
visual, parestesia em membro superior esquerdo, além de dor retroesternal.
Quadro iniciado há 15 minutos sem estressor identificável (estava assistindo
à TV quando foi acometida pelos sintomas).
Essa já é a quarta crise similar que Marília tem no último mês e, segundo
a mãe, a paciente tem evitado situações que acredita serem desencadeadoras
de tais sintomas (por exemplo, deixou de ir para academia após sofrer
ataques se exercitando).
Paciente tem quadro de asma com diagnóstico ainda na infância.
Ingere bebidas alcoólicas frequentemente e não fuma.

Exame mental: paciente se apresenta muito aflita, chorosa, dispneica e


sudoreica. Pede insistentemente por ajuda referindo que está infartando.

2. DISCUTINDO O DIAGNÓSTICO
O termo pânico deriva do nome do deus grego Pã, que, com seus chifres e
pernas de bode, vagava pelos bosques tocando sua flauta. Aos que se
aventuravam em travessias pelas matas sombrias, o medo pavoroso surgia
subitamente e a autoria desse temor era creditada a Pã. Assim como as
vítimas do deus-pastor, Marília do nosso caso padece de um mal súbito,
espontâneo e desesperador, a ponto de fazê-la crer na própria morte. Estamos
diante de um ataque de pânico! Para fins conceituais e diagnósticos, faz-se
necessária a diferenciação entre ataque de pânico e transtorno de pânico
(TP).
O ataque de pânico caracteriza-se como uma crise paroxística de
ansiedade, que tem duração média de 30 minutos (atinge o pico de sintomas
em 10 minutos e menos comumente a crise ultrapassa os 60 minutos de
duração), apresentando, segundo o DSM-5, pelo menos 4 dos seguintes
sintomas:
1. Palpitações, coração acelerado, taquicardia.
2. Sudorese.
3. Tremores ou abalos.
4. Sensações de falta de ar ou sufocamento.
5. Sensações de asfixia.
6. Dor ou desconforto torácico.
7. Náusea ou desconforto abdominal.
8. Sensação de tontura, instabilidade, vertigem ou desmaio.
9. Calafrios ou ondas de calor.
10. Parestesias (anestesia ou sensações de formigamento).
11. Desrealização (sensações de irrealidade) ou despersonalização
(sensação de estar distanciado de si mesmo).
12. Medo de perder o controle ou “enlouquecer”.
13. Medo de morrer.

Perceba que não há necessidade de memorização sem raciocínio lógico.


O ataque de pânico pode, embasado na clínica, ser sintetizado como o
esquema a seguir.

Figura 1 - Ataque de pânico


Fonte: elaborado pelo autor.

Temos a fugacidade, descrita anteriormente, como a duração da crise


medida em fração de hora. As reações somáticas nos lembram claramente
uma descarga do sistema simpático e, diante desse cenário de brusca
ansiedade e intensos sintomas físicos, rotineiramente o paciente cursará com
a crença que pode estar desfalecendo, infartando, tendo um acidente
vascular, ficando louco, perdendo o controle e variantes desses citados.
Existem ainda dois tipos de ataques de pânico: os esperados e os
inesperados. Imagine-se na faculdade, dentro de uma sala de aula num dia
normal, numa aula normal, na sua desatenção habitual. Rompem a porta
bandidos mascarados e fortemente armados atirando a esmo. Um ataque de
pânico subsequente à ocasião descrita seria esperado. Usei do exagero para
evidenciar a previsibilidade intrínseca ao ataque de pânico dito esperado.
Para que não sobrem dúvidas: o ataque de pânico esperado é consequência
de fator estressor bem identificado, sendo esse agente um desencadeante
óbvio da crise como uma situação receada ou o encontro com um objeto
temido (ex.: uma cobra para aqueles que padecem de ofidiofobia). Crises de
pânico que surjam sem fatores motivadores são chamados inesperados, dos
quais temos como melhor exemplo os ataques de pânico noturnos. Esses
acontecem durante o sono do paciente fazendo-o acordar com a sensação de
pavor já descrita anteriormente.
Há de se notar que a presença do ataque de pânico isoladamente não é
suficiente para o diagnóstico de transtorno de pânico; esse aglutina
algumas características que vão além daquele (o ataque). Vamos a elas:

1. Ataques de pânico recorrentes e inesperados.


2. Pelo menos um dos ataques foi seguido por um mês ou mais, de
preocupação intensa de ter novos ataques (ou das suas possíveis
consequências), ou motivou mudanças de comportamento no
paciente.

Entende-se como recorrência o fato de o ataque de pânico acontecer mais


de uma vez (não existindo número mínimo de crises). Apesar de os ataques
inesperados serem a grande marca do transtorno de pânico, a presença de
crises esperadas não exclui o diagnóstico. Deve haver, contudo, mais de um
ataque de pânico inesperado bem documentado na história clínica para se
firmar o diagnóstico. Cabe cautela do clínico ao caracterizar a sequência de
eventos prévios ao ataque de pânico e permitir clareza quanto à ausência ou
não de fatores precipitantes de crise.
A quais preocupações e mudanças o ponto 2 se refere? Geralmente o que
se sucede a ataques de pânico recorrentes é um temor quanto à própria saúde
(ter algum problema grave, como uma cardiopatia, por exemplo), a algum
constrangimento público derivado dos sintomas de pânico ou mesmo à
própria sanidade mental. Em consequência, na tentativa de minorar as
repercussões das crises, o paciente pode mudar rotinas (por exemplo: evitar
ir ao trabalho porque se sente mais seguro em casa) e evitar situações que
acredita serem desencadeadoras de crises.
Deve-se realçar que os ataques de pânico não podem ser consequência
direta de alguma substância (anfetaminas, por exemplo) ou de alguma
condição médica geral, como hipertireoidismo. Além disso, os ataques de
pânico não são explicados por outros transtornos mentais. Exemplificando:
imagine um paciente com fobia social sendo exposto a uma situação em que
ele será julgado, como uma entrevista de emprego; é de se aguardar que ele
tenha ataque de pânico diante dessa situação temida. Ou pense num sujeito
com fobia específica a aranhas exposto, num lugar onde não haja fuga, a um
aracnídeo; deduziremos também que um ataque de pânico há de acontecer.
Para que não restem dúvidas: os ataques de pânico do transtorno de pânico
são inesperados.

3. ASPECTOS SOBRE A EPIDEMIOLOGIA E


ETIOLOGIA
Nos Estados Unidos (dados no Brasil não disponíveis), ataques de pânico
isolados tiveram prevalência estimada em 22,7% ao longo da vida, enquanto
o diagnóstico de transtorno do pânico gira em torno de 2% a 5% da
população (também no transcorrer da vida). Os adultos são mais acometidos
do que crianças menores que 14 anos e idosos. A média de idade para o
diagnóstico fica por volta dos 25 anos. As mulheres têm transtorno de pânico
até três vezes mais que homens. Baixo status social, personalidade ansiosa
na infância e história recente de separação/divórcio são fatores de risco para
o transtorno.
Dificilmente o TP acontece como psicopatologia isolada. Comumente
associa-se a outros transtornos mentais, como depressão maior, uso
problemático de substâncias psicoativas, TOC (transtorno obsessivo-
compulsivo), TEPT (transtorno de estresse pós-traumático) e outros
transtornos ansiosos, com destaque para agorafobia. Além das comorbidades
psiquiátricas, o transtorno de pânico tem relação estreita com doenças
médicas gerais. Sabidamente associa-se com asma, doença coronariana,
hipertensão, acidentes vasculares encefálicos, síndrome do intestino irritável
e diabetes.
O curso tende a ser crônico, especialmente em pacientes não tratados,
mas com variações de gravidade ao longo da vida. Não há clareza quanto ao
prognóstico, mas aparentemente apenas 30% ficam completamente livres
dos sintomas a longo prazo. Os ataques de pânico podem variar quanto a sua
frequência e intensidade. Podem ocorrer várias vezes no dia ou menos de
uma vez por mês.
Os mecanismos etiopatogênicos ainda são desconhecidos. Tem-se que o
surgimento do quadro se deve à interação de fatores genéticos e ambientais.
Apesar de não haver genes bem identificados ou mesmo localizações
cromossômicas que apontem para a contribuição genética do transtorno, há
um risco até oito vezes maior de parentes de primeiro grau com TP
desenvolverem o mesmo transtorno.

4. DIAGNÓSTICO DIFERENCIAL
O transtorno de pânico, especialmente os ataques, podem mimetizar várias
condições médicas gerais e psiquiátricas (Quadro 1).

Quadro 1 – Diagnósticos diferenciais de transtorno de pânico

Condições médicas gerais Condições psiquiátricas

Hipertireoidismo Agorafobia

Feocromocitoma Transtorno de ansiedade generalizada

Hiperparatireoidismo Fobia específica

Arritmias cardíacas Transtorno de ansiedade social

Doenças pulmonares obstrutivas (DPO) Transtorno de estresse pós-traumático

Substâncias psicoativas (cafeína, adrenérgicos,


levotiroxina, crack/cocaína, cannabis, abstinência Crise conversiva-dissociativa
de depressores como benzodiazepínicos e álcool)

Fonte: elaborado pelo autor.

Distinção entre ataques de pânico e as condições médicas gerais


assentam-se basicamente nos indícios clínicos da anamnese e do exame
físico que apontam para uma causa orgânica subjacente de estimulação
simpática (hipertireoidismo, feocromocitoma, substâncias psicoativas ou
abstinência), dispneia e alterações de ausculta (DPO e arritmias).
Diferenças entre o transtorno de pânico e outras condições psiquiátricas
podem ser sutis, mas são preciosas para o manejo adequado. Abaixo,
ocupemo-nos com as peculiaridades que distinguem pânico de outras
nosologias.
Agorafobia é a comorbidade ansiosa mais importante e também o
diagnóstico diferencial mais complexo. Visitemos rapidamente a clínica da
agorafobia. Essa tem como grande marca o medo e a ansiedade intensos
diante de determinadas situações; o paciente pode temer que algo de ruim
aconteça consigo quando permanece em locais fechados ou espaços abertos,
em uso de transporte público, ao sair sozinho de casa, ficar em filas ou
mesmo estando em meio a multidões; e, diante de tais circunstâncias, pode
apresentar ataques de pânico. Por conseguinte, ambas as condições, TP e
agorafobia, cursam com ataques de pânico; no entanto, na agorafobia, os
ataques quando presentes são evidentemente esperados, pois ocorrem
quando o paciente se expõe a situações temidas listadas aqui. Quando há
recorrência de ataques inesperados, o diagnóstico comórbido de TP deve ser
feito.
Transtorno de Ansiedade Generalizada (TAG) é bem caracterizado
por preocupação e ansiedade excessivas que acontecem, diferentemente do
transtorno de pânico, pela maior parte dos dias por pelo menos seis meses.
Ainda assim, no TAG, eventualmente podem surgir ataques de pânico como
agudizações do quadro. Distintamente ao TP, os ataques de pânico no TAG
surgem a partir de estados basais de ansiedade ou mesmo como reação a
estressores, e não são, portanto, completamente inesperados. Veja bem,
enquanto o TP se manifesta em crises – os ataques de pânico, no TAG –, a
natureza dos sintomas é perene, já que os pacientes estão, de base,
preocupados e ansiosos em demasia.
Pacientes com fobia específica podem apresentar ataques de pânico.
Mais uma vez, a presença desses ataques, quando ocorrem, ligam-se
diretamente às situações e objetos temidos. Tomemos como exemplo um
paciente que tenha fobia específica à altura. Caso enfrente alguma situação
em que esteja em altitude considerável, possivelmente cursará (e somente
nessas situações) com ataque de pânico. Sempre são crises esperadas.
Da mesma forma, temos pacientes com transtorno de ansiedade social
(fobia social) que podem cursar com ataques de pânico. Essas crises, quando
presentes, surgem em decorrência à exposição a situações em que o paciente
se sente julgado, avaliado ou observado. Logo, os ataques de pânico na fobia
social são sempre esperados.
No transtorno de estresse pós-traumático, quando há presença de
crises de pânicos, esses têm relação direta (vivências, lembranças, pesadelos,
situações) com o evento traumático. Novamente temos ataques sempre do
tipo esperados.
Até 20% dos ataques de pânico cursam com síncope. A turvação da
consciência também é uma característica da crise conversiva-dissociativa
que, além disso, cursa com alterações sensoriais e motoras que se
assemelham a disfunções neurológicas (mas são puramente psicogênicas).
Perceba que crises de pânico podem apresentar-se com paresias e
parestesias. Como diferenciar? As conversões e as dissociações tendem a
eclodir logo após um estressor (como um rompimento de um
relacionamento, a notícia de falecimento de um ente querido, uma discussão
calorosa com o pai), não despertam preocupação ou ansiedade em ter novos
ataques e, em contraste com a sensação de pavor do ataque de pânico, uma
crise conversiva geralmente cursa com indiferença afetiva quanto aos
próprios sintomas.

4.1. E aí? O que fazer?


O primeiro passo para estabelecer um tratamento de sucesso fundamenta-se
na construção de uma aliança terapêutica entre o médico e o paciente. Essa
aliança se desenvolve a partir de escuta ativa e psicoedução. Explico! A
compreensão empática das crises, desprovida de julgamentos morais ou de
desprezo da gravidade, deve ser o direcionamento durante a avaliação. É
necessário orientar o paciente quanto à natureza benigna e autolimitada dos
sintomas da crise e esclarecer que não há repercussão orgânica dos ataques e,
desse modo, desfazer crenças de que possa sofrer algum mal potencialmente
fatal.
Gatilhos potenciais para as crises, caso existam, devem ser identificados
e removidos. Com isso, cafeína, estimulantes (como “pré-treinos” e
energéticos), nicotina e situações estressantes devem ser evitados. O
paciente deve ser encorajado a melhorar a qualidade do sono e a praticar
exercícios físicos não extenuantes por 20 minutos pelo menos três vezes por
semana.

5. FARMACOTERAPIA
O objetivo do tratamento farmacológico inclui a prevenção de ataques de
pânico, reduzir ou eliminar a ansiedade antecipatória às crises, combater a
evitação fóbica e tratar comorbidades como a depressão maior. A tabela 1
ilustra os fármacos de primeira linha para o tratamento de transtorno de
pânico.

Tabela 1 - Fármacos de primeira linha para o tratamento de TP

Fármaco Dose inicial Faixa terapêutica

Paroxetina 10mg 20-60mg

Paroxetina XR* 12,5-25mg 25-75mg

Fluoxetina 5mg 20-60mg

Fluvoxamina 50mg 100-150mg

Sertralina 25mg 50-200mg

Citalopram 10mg 20-40mg

Escitalopram 5mg 10-20mg

Venlafaxina XR* 37,5mg 150-225mg

*XR: formulação de liberação controlada


Fonte: elaborada pelo autor.

Tão eficazes quanto os Inibidores de Recaptação Seletivos de Serotonina


(IRSS) e a venlafaxina, os antidepressivos tricíclicos (ADT) são deixados
como segunda linha no tratamento em razão de seu perfil desfavorável
quanto a efeitos adversos (vide capítulo “Antidepressivos”).
Não se observam dependência física ou tolerância com uso dos
medicamentos de primeira linha, todavia, em pacientes que usaram as drogas
por vários meses, fármacos com meia-vida mais curta (por exemplo,
paroxetina e venlafaxina) ou que tiveram uma interrupção abrupta do
tratamento, esses pacientes podem experimentar síndrome de abstinência,
caracterizada com náuseas, insônia, cefaleia, descoordenação (como tontura
ou vertigem) e irritabilidade, sintomas esses que são autolimitados em uma a
duas semanas. Espera-se, no geral, em casos de pouca ou ausência de
resposta, pelo menos 4 a 6 semanas para reajuste da dose. Embora uma
minoria, apenas, tenha remissão completa e permaneça sem recaídas nos
próximos anos após o término do tratamento, o desmame do fármaco pode
ser tentado em um ano após alcançados os objetivos terapêuticos.
Apesar de bem tolerados, os fármacos de primeira linha podem cursar
com efeitos adversos como sudorese, náuseas/vômitos, disfunção sexual,
boca seca, dispepsia, cefaleia, tremor, astenia, sonolência e insônia. Dentre
os efeitos colaterais, o aumento da ansiedade, inquietação ou mesmo a
indução de ataques de pânico são os mais limitantes nas primeiras semanas
de tratamento. Tratemos então de como contorná-los.
O clínico, tendo em vista a maior susceptibilidade dos pacientes com TP
a apresentarem efeitos indesejados com uso de antidepressivos, devem
iniciar com subdoses (em média, 50% da dose mínima eficaz) e reajustar até
a dose eficaz em uma a duas semanas. Outro ponto a se ponderar é a
associação de benzodiazepínicos (BDZ) no início do tratamento. Vamos nos
ater a eles, os BDZs.
Drogas que são sabidamente eficazes no transtorno de pânico, os
benzodiazepínicos foram realocados como adjuvantes no tratamento. Isso se
deve ao fato do risco de abuso do medicamento (principalmente em
pacientes com história de uso abusivo de álcool e outras drogas), e, com o
uso prolongado, o surgimento do fenômeno de tolerância e dependência
física. Contudo, a sua rápida ação antipânico não deve ser ignorada.
Conforme a tabela 2, os BDZs têm grande valia como adjuvantes aos
fármacos de primeira linha no início do tratamento para TP, graças à redução
da ansiedade já nos primeiros dias de uso em comparação à longa espera de
resposta de pelo menos 4 semanas com uso dos antidepressivos. Ao passo da
melhora clínica, em 4 a 8 semanas os BDZs devem ser gradualmente
descontinuados. Além, os benzodiazepínicos podem ser utilizados como
abortivos de crises de pânico. O fármaco mais estudado para esse fim é o
alprazolam, com igual eficácia na sua formulação oral ou sublingual.

Tabela 2 - Benzodiazepínicos para transtorno de pânico

Fármaco Dose inicial/média

Alprazolam 0,25-0,5mg, 3x/dia

Clonazepam 0,25-0,5mg, 2x/dia

Diazepam 2-5mg, 2x/dia

Lorazepam 0,25-0,5mg, 2x/dia

Fonte: elaborada pelo autor.

5.1. Tratamento não farmacológico


A psicoterapia é tão eficaz quanto o tratamento farmacológico. Pode ser
indicada isoladamente como primeira linha ou em combinação com os
fármacos discutidos no tópico anterior, a depender do desejo do paciente;
porém, sua efetividade só deve ser avaliada após sessões semanais por, pelo
menos, 8 semanas. Há ainda inconsistência de eficácia quanto às várias
abordagens psicoterápicas, mas a TCC (Terapia Cognitivo-Comportamental)
mostra-se consistentemente efetiva.
Outra opção de terapia para sintomas ansiosos de pânico é o mindfulness
(vide capítulo “Psicoterapia”). Essa modalidade de meditação evidencia-se
tão eficaz quanto as terapias comportamentais. Mas, vale ressaltar, que a
imensa maioria dos ensaios feitos com o mindfulness avalia a redução de
sintomas ansiosos e não transtornos ansiosos em si.
Uma peculiaridade no curso da doença é que pacientes apresentam
menos sintomas rebotes ao término do tratamento psicoterápico se
comparados ao fim do tratamento medicamentoso. Em verdade, a
combinação de fármacos e psicoterapia reduz recaídas.

5.2. Redescobrindo o caso (Pontos-Chave)


1 Sexo feminino

2 Idade de incidência

3 História de separação

4 Descarga simpática

5 Tempo de crise

6 Inesperado

7 Recorrência

8 Preocupação pós-crises

9 Comorbidade clínica comum

10 Sintoma cognitivo

Marília está tendo um ataque de pânico, e as crises estão recorrendo.


Condições médicas gerais, como crise de asma, devem ser descartadas por
meio do exame clínico. As mudanças de comportamento da paciente e sua
preocupação quanto às crises, além do tempo de sintomas, reforçam o
diagnóstico de transtorno de pânico.
O clínico que a atendeu deve tranquilizá-la, orientar que os sintomas que
ela sente são de origem psicogênica e não orgânica e que, por conseguinte,
não está infartando, mas tendo sintomas que simulam um infarto. É preciso
estimulá-la à prática de exercícios físicos e alertá-la quanto aos riscos de uso
abusivo de etílicos. Por fim, instruí-la quanto às formas de tratamento
possível: psicoterapia, mindfulness e farmacoterapia.

Exemplo de uma prescrição para Marília


Sertralina 25mg, 1 comprimido, via oral, após o café da manhã por 15
dias.
Após esse prazo, passar a tomar:
Sertralina 50mg, 1 comprimido, via oral, após o café da manhã.
+
Alprazolam 0,25mg, 1 comprimido, via oral, pela manhã e à noite. Em
caso de crise,
tomar 1 comprimido, sublingual.

Referências
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SIGLAS

• BDZ Benzodiazepínico
• DSM-5 Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais
• IRSS Inibidores de Recaptação Seletivos de Serotonina
• TAG Transtorno de Ansiedade Generalizada
• TCC Terapia Cognitivo-Comportamental
• TOC Transtorno Obsessivo-Compulsivo
• TEPT Transtorno de Estresse Pós-Traumático
• TP Transtorno de Pânico
1. CASO CLÍNICO
Renata, 20 anos, universitária, vem para atendimento após ter mudado de
moradia e seu novo endereço ser distante da sua universidade, para a qual
anteriormente era capaz de ir caminhando de casa. Atualmente, Renata tem
que fazer o trajeto de casa para a universidade de carro e relata que não há
outro meio de transporte e ninguém pode levá-la, sendo obrigada a ir
dirigindo. Renata refere que fica “aterrorizada” por ter que dirigir, sobretudo
em rodovias e em horários com muito trânsito. Até mesmo o pensamento de
entrar em um carro leva à preocupação de que pode bater o carro e morrer
em um acidente. Seus pensamentos são associados a um medo intenso e a
inúmeros sintomas somáticos, incluindo taquicardia, náusea e sudorese.
Embora Renata saiba que o medo é irracional e desproporcional, ela fica
extremamente assustada quando dirige em estradas movimentadas, tendo
que estacionar para vomitar com frequência.

Exame mental: paciente se apresenta muito preocupada com a situação.


Pede ajuda para conseguir controlar suas reações e superar seu medo de
dirigir.

2. DISCUTINDO O DIAGNÓSTICO
Fobia é uma espécie particular de medo, palavra que vem do grego phobia e
é, por sua vez, derivada da palavra phobos, nome de um deus grego que
significa “pânico, terror”. Segundo a lenda, esse deus assustava e provocava
medo intenso em seus inimigos por possuir uma face terrivelmente feia.
As fobias são reações exageradas de medo ou ansiedade em situações
circunscritas, que no momento representam pouco ou nenhum perigo real,
provocando uma evitação ou resistência em relação a essas situações. Em
geral, os indivíduos tendem a experimentar ansiedade ou pânico assim que
se defrontam com o estímulo fóbico, sendo esses sintomas limitados à
situação identificada.
Os critérios utilizados para o diagnóstico de fobia específica, de acordo
com o DSM-5, contemplam a existência de um medo ou ansiedade
acentuados acerca de um objeto ou situação (por exemplo, dirigir, alturas,
animais, tomar uma injeção, ver sangue), e quando o indivíduo está diante
deles, quase invariavelmente, há uma resposta imediata. Os sintomas
apresentados pelo indivíduo são desproporcionais em relação ao perigo real
imposto pelo objeto ou situação específica e ao contexto sociocultural, os
quais são ativamente evitados ou suportados com intensa ansiedade ou
sofrimento. O medo, a ansiedade ou a esquiva é persistente, geralmente com
duração mínima de seis meses, e causa sofrimento clinicamente
significativo ou prejuízo no funcionamento social, profissional ou em
outras áreas importantes da vida do indivíduo. Em crianças, esses sintomas
podem ser expressos por choro, ataques de raiva, imobilidade ou
comportamento de agarrar-se.
Situação de exposição pública ou medo de ter um ataque de pânico não
são características de fobias específicas, no entanto, a exposição ao objeto,
animal ou situação fobígena geralmente deflagra um estado de angústia, que
pode chegar a uma crise de pânico.
Os pacientes acometidos por fobias específicas podem sofrer com a
chamada ansiedade antecipatória, que é definida pelo fato de o indivíduo
ficar ansioso ou com medo somente por relembrar o alvo gerador de sua
fobia, apresentando comportamentos de fuga/esquiva para evitar as situações
fóbicas, o que pode causar comprometimento individual e interferir
significativamente na sua rotina diária, no seu funcionamento ocupacional,
nos relacionamentos interpessoais e nas atividades sociais. A evitação fóbica
é a consequência mais importante, devido ao impacto que tem na vida do
paciente, limitando sua liberdade.
Segundo o DSM-5, a fobia específica, pode resultar da associação de um
objeto ou da situação específicos com as emoções de medo e pânico, sendo
ocasionalmente desenvolvida após um evento traumático relacionado ao
objeto ou situação temida. No entanto, muitos indivíduos acometidos não
lembram o evento desencadeador da fobia e, geralmente, reconhecem o
caráter irracional e desproporcional de seus medos, não conseguindo o
controle sobre suas reações.
O diagnóstico inclui tipos distintos de fobia específica: tipo animal, tipo
ambiente natural (por exemplo, tempestades), tipo sangue-injeção-
ferimentos (por exemplo, agulhas), tipo situacional (por exemplo, carros,
elevadores, aviões) e outro tipo (para fobias específicas que não se
enquadram nos quatro tipos anteriores). O aspecto fundamental de cada tipo
de fobia é que os sintomas fóbicos ocorrem apenas na presença de um objeto
específico.

3. ASPECTOS SOBRE A EPIDEMIOLOGIA E


ETIOLOGIA
Nos Estados Unidos (dados no Brasil insuficientes), as fobias são um dos
transtornos mentais mais comuns, e estima-se que aproximadamente 5% a
10% da população seja afetada por esse transtorno perturbador e, por vezes,
incapacitante. De acordo com o estudo americano National Comorbidity
Survey Replication (NCS-R), as fobias específicas possuem 12,5% de
prevalência ao longo da vida. No estado de São Paulo, a prevalência é de
4,8%, sendo o transtorno mental mais comum entre as mulheres e o segundo
mais comum entre os homens, atrás apenas dos transtornos relacionados ao
uso de substâncias. Em geral, a prevalência é maior em adultos mais jovens
e em aqueles com baixo status socioeconômico. Os objetos e as situações
mais temidas nas fobias específicas são animais, tempestades, altura, doença,
ferimento e morte (listadas em frequência descendente de aparecimento).
A ocorrência de comorbidades psiquiátricas na fobia específica varia de
50% a 80% e os transtornos mais comuns que podem estar associados
incluem os de ansiedade, de humor e os relacionados ao uso de substâncias.
As fobias específicas tendem a ocorrer em famílias. Estudos demonstram
que 60% a 75% das pessoas afetadas têm pelo menos um parente em
primeiro grau com fobia específica do mesmo tipo; no entanto, os estudos
necessários para excluir uma contribuição da transmissão não genética ainda
não foram conduzidos.
Apesar de ser mais comum entre adolescentes e adultos jovens, os idosos
não estão livres desse transtorno, não sendo incomum apresentarem fobia de
doenças, com uma percepção ameaçadora de comorbidades sabidamente
sem risco, mas que lhe geram sofrimento e mobilizam suas ações, buscando
avaliações médicas repetidas, confirmações diagnósticas exageradas e
situações que podem levar a procedimentos desnecessários.

4. DIAGNÓSTICO DIFERENCIAL
Em relação às condições psiquiátricas no diagnóstico diferencial de fobia
específica, os transtornos de ansiedade ou humor são muito comuns. Os
médicos devem investigar transtorno de pânico, agorafobia e, até mesmo, a
esquizofrenia, pois os pacientes que a apresentam podem ter sintomas
fóbicos associados às suas psicoses. Entretanto, diferentemente dos pacientes
com esquizofrenia, aqueles com fobia específica têm consciência da
irracionalidade de seus medos e não apresentam sintomas psicóticos.
A diferenciação entre transtorno de pânico, agorafobia, fobia social e
fobia específica pode ser difícil em casos individuais. Em geral, porém,
pacientes com fobia específica tendem a experimentar medo ou ansiedade
imediatamente após entrarem em contato com o estímulo fóbico. Além
disso, a ansiedade ou o pânico na fobia simples são limitados a uma situação
específica; os pacientes, geralmente, não demonstram sintomas quando não
estão diante do estímulo fóbico ou quando não o antecipam.
O transtorno de pânico, por exemplo, não se baseia em uma situação
específica ou em um certo objeto relacionado e, geralmente, ocorre de
repente e espontaneamente. Pacientes com fobia específica podem
apresentar ataques de pânico, mas a presença desses ataques, quando
ocorrem, ligam-se diretamente às situações e/ou objetos temidos. Tomemos
como exemplo um paciente que tenha fobia específica a objetos cortantes.
Caso enfrente alguma situação em que esteja diante de uma faca,
possivelmente cursará (e somente nessas situações) com ataque de pânico,
ou seja, sempre são crises esperadas.
Na agorafobia, embora seja marcada por medo e ansiedade intensos
diante de situações temidas, os sintomas geralmente só ocorrem em
momentos determinados, como, por exemplo, o paciente pode ter medo que
algo de ruim aconteça consigo quando se encontra em locais fechados ou
espaços abertos, em uso de transporte público, ao sair sozinho de casa,
permanecer em filas ou mesmo estando em meio a multidões.
Na fobia social, o foco está no medo de situações sociais, incluindo
aquelas que envolvem avaliação e julgamento de outras pessoas ou apenas o
contato com estranhos, ou seja, os sintomas de ansiedade ocorrem em
situações sociais, como comer ou falar em público, participação em grupos,
conferências e festas.
Outras patologias a se considerar no diagnóstico diferencial de fobia
específica são hipocondria, TOC (transtorno obsessivo-compulsivo) e
transtorno da personalidade paranoide. Enquanto a hipocondria é o medo de
ter uma doença ou contrair doença grave, a fobia específica do tipo doença é
o medo de contrair qualquer doença, independentemente de sua gravidade
real, e esse medo trará reações desproporcionais inerentes às fobias simples.
Alguns indivíduos com TOC podem manifestar comportamentos parecidos
com os de uma pessoa com fobia específica, o que dificulta a diferenciação.
Por exemplo, enquanto pacientes com TOC podem evitar objetos cortantes
porque têm pensamentos obsessivos sobre machucar familiares, os com
fobia específica de objetos cortantes podem evitá-los por medo de se
cortarem. Ainda, o paciente com TOC do exemplo anterior possivelmente
terá comportamento compulsivo compensatório (por exemplo, rezar um pai-
nosso para afastar o pensamento obsessivo). Pacientes com transtorno da
personalidade paranoide têm um medo relacionado a traições de pessoas
próximas ou mesmo de serem perseguidos (sem crenças delirantes) de
alguma forma, por exemplo, o que difere da especificidade do objeto temido
na fobia simples.
As condições médicas não psiquiátricas que podem resultar no
desenvolvimento de uma fobia incluem uso de substâncias
(particularmente, alucinógenos e simpatomiméticos), tumores do sistema
nervoso central e doenças cerebrovasculares. Contudo, nessas condições,
os sintomas fóbicos, quando presentes, estarão acompanhados de alterações
no exame clínico e com dados na anamnese que reforcem as hipóteses de
origem orgânica.
Algumas pesquisas sugerem que indivíduos com fobia específica têm
uma probabilidade aumentada de terem doenças físicas e mostram que, além
de estar associada com outros transtornos mentais, dependendo do tipo de
fobia, pode estar associada a um aumento da probabilidade de desenvolver
condições físicas como doenças cardíacas, gastrointestinais, respiratórias,
artríticas, enxaquecas e doenças da tireoide.

4.1. E aí? O que fazer?


A autoexposição à situação temida é o princípio básico do tratamento.
Contudo, uma baixa porcentagem de pessoas afetadas por fobias específicas
procura tratamento. Possivelmente isso ocorre porque os estímulos fóbicos
podem ser simplesmente evitados, fazendo com que os sintomas não sejam
desencadeados.
O tratamento atual de escolha para fobias específicas é a terapia de
exposição. Nesse método, os terapeutas dessensibilizam o paciente mediante
uma série de exposições graduais, por meio de abordagens in vivo, de
imagem ou realidade virtual ao estímulo ou situações fóbicas, onde são
aprendidas várias técnicas para lidar com a ansiedade, incluindo
relaxamento, controle da respiração e abordagens cognitivas, as quais
buscam trabalhar o reforço da percepção de que o estímulo fóbico é, na
realidade, seguro. De acordo com a literatura, a terapia de exposição à
realidade virtual foi introduzida pela primeira vez há mais de duas décadas
para tratar o medo de altura e continua sendo uma opção de tratamento
viável para outras fobias específicas.
A hipnose, a terapia de apoio e a terapia familiar também podem ser
utilizadas no tratamento dos transtornos fóbicos e mostram bons resultados.
A primeira é utilizada para estimular à sugestão do terapeuta de que o objeto
fóbico não é perigoso e o medo é irracional, sendo possível ensinar a auto-
hipnose ao paciente como método de relaxamento ao enfrentar o objeto ou
situação fóbica. A importância da psicoterapia de apoio e a terapia familiar
se dá pelo fato de que podem ser úteis para ajudar o paciente a confrontar
ativamente o objeto temido durante o tratamento, além de incluir o auxílio
da família no manejo, também ajuda a compreender a natureza do problema
fóbico do indivíduo.
A farmacoterapia não é uma opção de tratamento comum para fobias
específicas, entretanto, os antagonistas dos receptores ß-adrenérgicos
(propranolol, atenolol, por exemplo) podem ser úteis, em especial quando a
fobia está associada com ataques de pânico ou em casos de fobia social
associada, sendo a eficácia demonstrada quando esses agentes são utilizados
de forma aguda antes de enfrentar uma situação fóbica. O uso de
benzodiazepínicos, a psicoterapia ou a terapia combinada dirigida aos
ataques também podem ser benéficas.

4.2. Redescobrindo o caso (Pontos-Chave)


1 Sexo feminino

2 Idade de incidência

3 Impossibilidade de evitar objeto temido

4 Situação temida

5 Ansiedade antecipatória

6 Medo desproporcional

7 Resposta somática imediata

Sabe-se que a imensa maioria dos pacientes com fobia específica não
procura atendimento, pois, evitando o objeto/situação temido, não padecem
de nenhum sofrimento. Todavia, Renata se defrontou com uma circunstância
em que seria inevitável escapar do seu temor. É importante ressaltar que a
fobia simples tem um caráter de ser irrefreável e desproporcional, e isso é o
que traz as limitações do transtorno. Ter “aversão” é totalmente diferente de
ter fobia simples!
A terapia de exposição pode ser indicada para a paciente do caso. Em
paralelo, o clínico pode optar por prescrever um betabloqueador para frear as
reações adrenérgicas da fobia de Renata enquanto ela dirige. O uso de
benzodiazepínicos não seria uma boa opção, pois pode haver
comprometimento de atenção e velocidade de reação, elementos
indispensáveis a condutores de veículos.

Exemplo de uma prescrição para Renata


Orientação para terapia de exposição
+
Propranolol 20mg, 1 comprimido, via oral, uma hora antes de dirigir

Referências
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2. Comportamento e psiquiatria clínica. 9. ed. Porto Alegre: Artmed; 2017.
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Virtual Reality Exposure Therapy for Phobias: A Systematic Review. Curr Psychiatry Rep.
2017; 19(7): 42. Doi:10.1007/s11920-017-0788-4.

SIGLAS

• CID-10 Classificação Internacional de Doenças


• DSM-5 Manual Diagnóstico e Estatísticos de Transtornos Mentais
• TOC Transtorno Obsessivo-Compulsivo
1. CASO CLÍNICO
Joana, 32 anos, policial militar do estado do Rio de Janeiro. Relata que há 1
ano foi vítima de um ferimento por arma de fogo no membro inferior direito
durante uma perseguição.
Afirma que se recuperou bem da lesão, porém, desde o dia do acidente
passou a apresentar pesadelos constantes sobre a perseguição, além de não
conseguir mais participar das buscas da polícia, pois isso traz lembranças
insuportáveis do trauma sofrido, com a sensação de reviver aquele evento.
Refere ainda ter se afastado dos colegas de trabalho, mostrando-se
desinteressada pela profissão que tanto amava, pois agora acredita que
jamais conseguirá ser a mesma policial de antes, tendo dificuldades,
inclusive, para se alegrar.
Também afirma ter começado a se assustar com situações cotidianas,
como a campainha da sua casa ou mesmo o toque de seu celular.

Ao exame mental: pouco inquieta, chorosa e hipervigil.

2. DISCUTINDO O DIAGNÓSTICO
A maioria das pessoas está sujeita a um evento traumático pelo menos uma
vez na vida, contudo, alguns fatores como ocupação e local de moradia,
definirão a probabilidade de exposição traumática (por exemplo: militares
como Joana são mais propensos a traumas que outras classes de
trabalhadores).
Nessa perspectiva, ser exposto a uma situação traumática não prediz
necessariamente o desenvolvimento de sintomas psiquiátricos. Uma parcela
da população poderá apresentar alguns sintomas de angústia a curto prazo,
que se dissiparão em algumas semanas, na maioria dos casos, sem a
necessidade de qualquer intervenção formal.
Entretanto, uma minoria, daqueles expostos a um trauma, desenvolverá
problemas de saúde mental a longo prazo, incluindo, mas não se limitando,
ao Transtorno de Estresse Pós-Traumático (TEPT), que consiste em um uma
condição que pode se desenvolver após a exposição a eventos traumáticos
extremos, como violência interpessoal, combates, acidentes com risco de
vida ou desastres naturais.
Dessa forma, podemos compreender que o TEPT se desenvolve quando
um evento excede os recursos psicológicos e as estratégias de enfrentamento
do indivíduo, podendo ser entendido como uma interação entre fatores de
exposição, características do evento que ocorreu e fatores de proteção.
Então, obviamente, para o diagnóstico de TEPT é obrigatória a exposição
ao trauma. Conforme o Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos
Mentais – 5. ed. (DSM-5),3 para configurar TEPT, a exposição traumática
deve se enquadrar em um dos itens a seguir (Critério A):

1. Vivenciar diretamente o evento traumático.


2. Testemunhar pessoalmente o evento.
3. Saber que um evento traumático ocorreu com familiar ou amigo
próximo (principalmente com pais, irmãos ou outros cuidadores,
quando se trata de crianças), sendo necessário que o evento tenha
sido violento ou acidental.
4. Exposição de forma repetida ou extrema a detalhes aversivos do
evento traumático (por exemplo, atuando no socorro aos envolvidos,
como no caso de bombeiros, policiais e profissionais da saúde).
Todavia, não se aplicando à exposição por meio de mídia eletrônica,
televisão, filmes ou fotografias, a menos que tal exposição esteja
relacionada ao trabalho.

Como citado, o TEPT pode ocorrer em decorrência de exposição


prolongada a eventos traumáticos, como abuso infantil e tortura, ou após
eventos isolados, sendo, então, um desafio predizer, depois de algum trauma,
quem desenvolverá esse transtorno.
Também é importante salientar que alguns eventos como bullying,
divórcio, morte de um animal de estimação e diagnóstico de câncer em um
familiar próximo não são considerados extremos o suficiente para precipitar
o TEPT, apesar de poderem resultar em sintomas quase idênticos. Por
“extremo”, podemos compreender como situações que trazem risco abrupto,
como situações violentas ou acidentais.
Agora vamos à lista de sintomas intrusivos associados ao evento
traumático (Critério B). É obrigatória a presença de pelo menos um destes
sintomas, iniciando após a ocorrência do trauma:

1. Lembranças intrusivas angustiantes, recorrentes e involuntárias do


evento traumático. Nota: crianças podem brincar de reencenar o
trauma repetidamente.
2. Sonhos angustiantes recorrentes relacionados ao evento traumático.
Nota: Em crianças, pode haver pesadelos sem conteúdo identificável.
3. Agir ou sentir como se o evento estivesse ocorrendo novamente (por
exemplo: reações dissociativas, como flashbacks), podendo ocorrer,
em um extremo, a perda completa de percepção do ambiente ao redor
– desrealização.
4. Sofrimento psicológico intenso ou prolongado ante exposição a
indícios ligados ao evento traumático, que simbolizam ou lembram o
trauma (por exemplo: ver alguém parecido com o assaltante que
colocou uma arma em sua cabeça).
5. Reações fisiológicas intensas a sinais internos ou externos que
simbolizam ou lembram o trauma.

Evitação persistente de estímulos associados ao evento traumático


(Critério C), iniciando após a ocorrência do evento, é mais uma
característica do TEPT, sendo necessário esforços para evitar um ou ambos
dos seguintes aspectos:

1. Recordações, pensamentos / sentimentos angustiantes associados ao


evento traumático.
2. Lembranças externas, como pessoas, lugares, atividades, objetos ou
situações diretamente ligadas ao trauma.

Também podem ocorrer alterações negativas em cognições e no humor


associadas ao evento traumático (Critério D), que começam ou pioram
depois da ocorrência de tal evento, conforme evidenciado por dois (ou mais)
dos seguintes aspectos trazidos pelo DSM-5:

1. Amnésia dissociativa: incapacidade de recordar algum aspecto


importante do evento traumático (não relacionada a outros fatores,
como traumatismo craniano, álcool ou drogas).
2. Crenças ou expectativas negativas persistentes e exageradas a
respeito de si mesmo, dos outros e do mundo (por exemplo: “sou
mau”, “não posso confiar em ninguém”, “o mundo é perigoso”, “todo
o meu sistema nervoso está arruinado para sempre”).
3. Cognições distorcidas persistentes a respeito da causa ou das
consequências do evento traumático que fazem o indivíduo culpar a
si mesmo ou os outros (por exemplo: “foi culpa minha ter sido
abusado(a) pelo meu tio”).
4. Estado emocional negativo persistente (por exemplo: medo, pavor,
raiva, culpa ou vergonha).
5. Redução acentuada do interesse ou participação em atividades
significativas (em crianças pode haver redução do brincar).
6. Sentimentos de distanciamento e alienação em relação aos outros.
7. Incapacidade persistente de sentir emoções positivas (como
felicidade, satisfação ou amor).

Além disso, outro critério para TEPT do DSM-5 consistem em


alterações marcantes na excitação e na reatividade associadas ao evento
traumático (Critério E), começando ou piorando após o evento, conforme
evidenciado por pelo menos dois dos seguintes aspectos:

1. Irritabilidade ou surtos de raiva (com pouca ou nenhuma


provocação).
2. Comportamento imprudente ou autodestrutivo.
3. Hipervigilância.
4. Resposta de sobressalto exagerada (por exemplo: alguém que, assim
como Joana, leva um susto muito grande com o simples toque do
telefone).
5. Problemas de concentração.
6. Perturbação do sono (por exemplo: dificuldade para iniciar ou manter
o sono, ou sono agitado).

Tais perturbações (Critérios B, C, D e E) descritas nos parágrafos


prévios devem durar mais de 1 mês (Critério F) – com duração variável;
mais de 50% dos casos se resolvem em 3 meses, mas alguns podem levar
mais de 1 ano. Nesse contexto, designamos como TEPT crônico quando os
sintomas persistem por mais de 3 meses.
A perturbação deve causar sofrimento clinicamente significativo e
prejuízo social, profissional ou em outras áreas importantes da vida do
indivíduo (Critério G) – em crianças, pode haver prejuízo na relação com
pais, amigos, irmãos ou outros cuidadores, além de prejuízos no
comportamento estudantil.
Além disso, a perturbação não deve ser efeito fisiológico direto de uma
substância (por exemplo: medicamento, álcool) ou a outra condição
médica (por exemplo: hipertireoidismo ou feocromocitoma) – (Critério H).
A presença de um trauma físico e/ou psicológico eclodindo um
transtorno mental, seja ele qual for, é regra, e, por isso, é de suma
importância para o clínico conhecer as características do diagnóstico do
TEPT e não confundir um estressor que funcione como start para um
transtorno mental como depressão ou um transtorno ansioso, em detrimento
ao trauma que acarrete as características clínicas de um TEPT.
Assim, podemos esquematizar os Es da clínica do TEPT como na Figura
1.

Figura 1 - Os E’s da clínica do TEPT


Fonte: elaborado pelos autores.

Ademais, é importante especificar se o TEPT tem expressão tardia, que


acontece quando todos os critérios diagnósticos não são atendidos até pelo
menos 6 meses depois do evento (embora a manifestação inicial e a
expressão de alguns sintomas possam ser imediatas).

3. ASPECTOS SOBRE A EPIDEMIOLOGIA E A


ETIOLOGIA
Podemos relacionar o desenvolvimento do TEPT a 2 eventos
neurobiólogicos – hiperativação da amígdala (grupo de neurônios que
desempenha um papel central no circuito cerebral que regula o medo),
incitando uma resposta de medo anormal; e atividade reduzida do córtex
pré-frontal medial (região responsável pela inibição da amígdala).
Resumindo: biologicamente, o TEPT resulta de um comprometimento na
capacidade de controle do medo.
Foram encontradas alterações neuroanatômicas no TEPT, incluindo
diminuição do volume do córtex pré-frontal, com diminuição da ativação
dessa estrutura ante a exposição a eventos traumáticos. Essa perda de
capacidade de inibição cortical da amígdala permite a ativação repetida
dessa estrutura e circuitos desregulados entre o córtex pré-frontal e o sistema
límbico. Por sua vez, o estresse provoca ativação límbica, o que inibe
funcionamento do córtex pré-frontal, reduzindo o bloqueio da amígdala e
resultando em uma resposta de medo complementar.
Também, o funcionamento reduzido do córtex pré-frontal pode explicar o
comprometimento na função executiva observado no TEPT, bem como
déficits cognitivos devido à diminuição do volume e disfunção no
hipocampo, provocando déficits específicos na aprendizagem e na memória.
Além do citado, o TEPT leva a alterações na resposta ao estresse no eixo
Hipotálamo-Hipófise-Adrenal (na sigla em inglês, HPA) e sistema nervoso
simpático, levando ao aumento da excitação, dos níveis de adrenalina e
noradrenalina, da pressão arterial e comportamento ansioso.
Indivíduos com trauma passado podem ter maior probabilidade em
desenvolver TEPT com um trauma subsequente. Isso pode ser explicado
com a ocorrência de uma reação fisiológica mais longa e mais forte frente à
antecipação ou exposição ao estresse naqueles previamente traumatizados.
Acontece devido à secreção aumentada de cortisol e pela densidade
aumentada de receptores em comparação com aqueles que não sofreram
trauma.
Sobre os aspectos epidemiológicos: o TEPT pode ocorrer em qualquer
idade a partir do primeiro ano de vida. A prevalência ao longo da vida fica
entre 1,9% e 8,8%. Como a maioria dos transtornos ansiosos, o TEPT
prevalece no sexo feminino, sendo duas vezes mais comum entre as
mulheres, em comparação aos homens , o que pode ser resultado de
exposição superior a experiências associadas ao TEPT (como abuso sexual,
estupro e múltiplas formas de violência que geralmente ocorre com
mulheres), mas também pode estar relacionado a fatores de risco específicos
do sexo (como a maior hereditariedade de risco mostrada em estudos
genéticos). Em suma: uma combinação de maior exposição e
vulnerabilidade.
Outro aspecto relevante é que a prevalência se mostra diretamente ligado
à severidade dos eventos traumáticos. A taxa dobra entre os refugiados de
áreas de conflito (até 60%), podendo chegar a mais de 50% entre
sobreviventes de estupro e atinge 19% dos veteranos de guerra. Um fato
curioso, é que as taxas de TEPT são mais baixas entre as vítimas de eventos
aleatórios, como catástrofes naturais e acidentes. Outrossim, quanto mais
exposições traumáticas, maior a probabilidade de o TEPT se manifestar de
forma precoce e persistente, além de maior gravidade.
Podemos separar os fatores de risco para o TEPT em 3 categorias
temporais em relação ao evento traumático: pré-traumáticos, peritraumáticos
e pós-traumáticos, como expostos no quadro 1.

Quadro 1 - Fatores de risco para TEPT

- Menor nível socioeconômico.


- Negligência dos pais.
Fatores pré-traumáticos - Doença psiquiátrica pessoal ou familiar.
- Sexo feminino.
- Baixo apoio social.

- Gravidade, intensidade, frequência e duração do


trauma.
Fatores peritraumáticos
- Gravidade inicial da reação pessoal ao trauma.
- Imprevisibilidade e incontrolabilidade do trauma.

- Falta de apoio social.


Fatores pós-traumáticos - Estresse.
- Falha na identificação e tratamento precoces.

Adaptado de: Kirkpatrick HA, Heller GM.7

Além do discutido, é interessante ressaltar que eventos traumáticos


também desempenham um papel na incidência de doenças psiquiátricas
graves, como depressão, transtorno bipolar, psicose, transtornos de
ansiedade e alcoolismo. Concomitante a isso, o TEPT também tem um efeito
adverso sobre a gravidade e a progressão dessas doenças.

4. DIAGNÓSTICO DIFERENCIAL
Muitas condições, além do TEPT, relacionadas a traumas são associadas a
reexperiência, como transtornos do humor (especialmente depressivos), luto
patológico, transtornos de ansiedade, transtornos psicóticos, abuso de
substâncias (particularmente álcool e drogas), transtorno somatoforme,
sintomas psicossomáticos e somáticos (incluindo lesões cerebrais
associadas), transtornos de conduta, mudanças de personalidade e
dificuldades de ajuste na vida pessoal e profissional. Detalharemos nos
parágrafos seguintes.
Lembremos que o TEPT é um transtorno psiquiátrico com forte
componente de ansiedade, dessa forma, outros transtornos de ansiedade
fazem parte de seu diagnóstico diferencial e serão listados a seguir, assim
como suas respectivas particularidades que os diferenciam do TEPT.

• Transtorno de ansiedade generalizada (TAG): assim como o


TEPT, apresenta sintomas de evitação, irritabilidade e ansiedade,
porém essas manifestações não se relacionam a um evento traumático
(e essa será a premissa para diversas justificativas a seguir). O
sintoma pilar no TAG é a ansiedade e a preocupação exagerada com
fatos diversos e corriqueiros, não sendo direcionado a algum trauma
específico, como no TEPT.

• Transtorno de pânico: apresenta sintomas de excitação e de


dissociação, mas, similarmente ao TAG, essas ocorrências não estão
associadas a um trauma específico e se dão em picos (ataques de
pânico). É possível e comum a existência de ataques de pânico no
TEPT, mas, quando presentes, esse ataques são sempre esperados –
ou seja, têm ligação direta com o trauma, geralmente por
enfrentamento de situações que rememorem o evento traumático.
• Transtornos de adaptação: aqui, o estressor pode ser de qualquer
gravidade ou tipo (como exemplo: perder o emprego, um divórcio) e
não necessariamente “extremos”, como debatido anteriormente.
Eventualmente, no transtorno de adaptação, pode-se satisfazer o
critério A para TEPT, mas não encontraremos todos os demais.

• Transtorno de ansiedade de separação: seus sintomas estão


claramente relacionados à separação do lar ou da família ao invés de
um evento traumático (por exemplo: uma criança que chora
implorando que seus pais não a deixem sozinha na escola, e depois
que eles vão embora, a única coisa que ela pensa é em reencontrá-
los).

• Transtorno obsessivo-compulsivo (TOC): analogamente ao nome


do transtorno, no TOC teremos pensamentos intrusivos recorrentes,
mas estes satisfazem os critérios de uma obsessão, e as compulsões
costumam estar presentes (por exemplo: alguém que tem o
pensamento obsessivo que seu corpo está sujo e por isso desenvolve
compulsão por lavar as mãos). Pensamentos obsessivos
(frequentemente lembranças obsessivas) no TEPT relacionam-se ao
conteúdo do trauma. A sintomatologia do TOC não mantém relação
estreita e direta com um evento traumático vivenciado.
• Transtorno de estresse agudo (ou reação aguda ao estresse): tem,
por definição, sintomas com duração de 3 dias a 1 mês, após o
trauma, sendo assim facilmente diferenciado do TEPT, que requer a
persistência dos sintomas por mais de 1 mês.

Outras nosologias que fazem parte do grupo de diagnósticos diferenciais


do TEPT são os transtornos da personalidade. No TEPT podem ocorrer
dificuldades interpessoais, porém elas têm seu início ou ficam extremamente
exacerbadas depois da exposição a um evento traumático, enquanto nos
transtornos de personalidade essas dificuldades são independentes de
qualquer exposição traumática.
A depressão maior é mais um importante diagnóstico diferencial, pois
pode suceder um trauma, porém eventos traumáticos não são pré-requisitos
obrigatórios. O transtorno depressivo maior (TDM) deverá ser
diagnosticado quando outros sintomas de TEPT estiverem ausentes, pois o
TDM não abrange nenhum sintoma dos critérios B ou C do TEPT nem uma
série de sintomas dos Critérios D ou E desse transtorno. Mais uma forma de
diferenciar TEPT e TDM é lembrar que nas ruminações depressivas o foco
são os sintomas depressivos e as implicações desses sintomas (na depressão
é comum encontrarmos ruminações de culpa – o paciente pode, por
exemplo, se culpar pela morte do pai – e ruminações niilistas – acreditar que
não vai passar no vestibular nunca, que é incapaz, que nada funciona em sua
vida – são outros exemplos). Já no TEPT, a ênfase é nas lembranças
recorrentes do evento, que normalmente incluem componentes
comportamentais sensoriais, emocionais ou fisiológicos.
Transtornos dissociativos, como a amnésia dissociativa, transtorno
dissociativo de identidade e transtorno de despersonalização-desrealização,
assim como o TDM, podem ou não ser precedidos pela exposição a um
evento traumático. Assim como podem ou não ter sintomas de TEPT
concomitantes. No entanto, quando os critérios plenos de TEPT também são
atendidos, o diagnótico comórbido deve ser considerado.
Não podemos esquecer que os flashbacks do TEPT devem ser
distinguidos de delírios, alucinações e outras perturbações da
sensopercepção que podem ocorrer nos transtornos psicóticos, nos
transtornos de humor com aspectos psicóticos, no delirium, nos transtornos
induzidos por substância/medicamento e nos transtornos psicóticos devidos a
outra condição médica.

4.1. E aí? O que fazer?


Sem o manejo correto, o transtorno de estresse pós-traumático pode se tornar
incapacitante, com sintomas que trazem grandes impactos negativos na vida
social do indivíduo, além de repercussões econômicas (ligadas ao abandono
estudantil e ao afastamento das atividades laborais, por exemplo). A baixa
adesão e a resistência ao tratamento ocorrem em pelo menos um terço dos
pacientes.
O TEPT permanece como uma condição de díficil tratamento, embora
existam evidências em benefício do tratamento farmacológico e terapias
focadas no enfrentamento do trauma. A abordagem desse transtorno requer
intervenção multimodal, geralmente incluindo medicação, diferentes
técnicas terapêuticas e manejo das comorbidades comumente associadas ao
transtorno citadas anteriormente.

5. FARMACOTERAPIA
Os inibidores seletivos da recaptação de serotonina (ISRS) constituem o
tratamento de primeira linha, com destaque para a paroxetina, a sertralina e a
fluoxetina, produzindo os melhores resultados em ensaios clínicos
controlados. Já a mirtazapina, apesar de apresentar uma eficácia
relativamente alta, não tem demonstrado boa aceitabilidade. A venlafaxina
tem sido utilizada como uma medicação off-label. Os antidepressivos devem
ser iniciados com doses baixas (em geral 50% da dose mínima eficaz) e
subida gradualmente nos dias subsequentes até atingirem as doses usuais
usadas para tratamento de depressão e ansiedade. Em geral, aguardam-se
pelo menos 4 a 6 semanas para avaliação de resposta. Para pacientes que têm
resposta parcial, pode ser tentado aumento da dose até a dose máxima
tolerada. Atingindo-se um platô de resposta parcial, mesmo após otimizada a
dose, pode-se associar tratamento farmacológico adjuvante como
antipsicóticos. Em pacientes com boa resposta à terapêutica, deve ser
mantida na mesma dose por pelo menos um ano antes de tentar retirar a
medicação.
Antipsicóticos atípicos, como a quetiapina, risperidona e aripiprazol, por
vezes têm sido aplicados para controle dos sintomas de reexperiências. Os
benzodiazepínicos também podem ser utilizados ocasionalmente, mas com
cautela, pois os indivíduos que sofrem de TEPT possuem risco aumentado
de dependência. O uso de benzodiazepínicos logo após eventos traumáticos
deve ser evitado.
Para tratamento adjuvante no controle de sintomas residuais de
hiperexcitação e distúrbios do sono (pesadelos), tem sido usada a prazosina,
um antagonista alfa-1 adrenérgico que atua através do bloqueio da atividade
noradrenérgica do sistema nervoso central.

5.1. Tratamento não farmacológico


A psicoterapia focada no trauma faz parte da primeira linha de tratamento. A
melhor evidência disponível é para terapia cognitiva comportamental (TCC)
focada no trauma, terapia de exposição ao trauma e o tratamento para
dessensibilização e reprocessamento por meio dos movimentos oculares (do
inglês: Eye Movement Desensitization and Reprocessing – EMDR).

5.2. Redescobrindo o caso (Pontos-Chave)

1 Sexo feminino

2 Ocupação de risco

3 Tempo de evolução (critério F)

4 Evento traumático (critéio A)

5 Sintoma intrusivo (critério B)

6 Evitação (critério C)

7 Alterações do humor (critério D)

8 Excitabilidade (critéio E)
Joana tem o diagnóstico de TEPT. Note que o quadro aponta para
sintomatologia ansiosa e depressiva, mas todos os sintomas giram em torno
do trauma, sejam os sintomas intrusivos, a evitação ou a excitabilidade. O
clínico deve averiguar a presença de comorbidades como o uso de
substâncias psicoativas ou transtornos ansiosos, pois o tratamento
farmacológico dependerá também disso.
Deve-se orientar a paciente a engajar-se num processo psicoterapêutico e
prescrever um antidepressivo. A intervenção em sintomas como pesadelos
ou reexperiências com prazosina e antipsicóticos, respectivamente, deve ser
feita se houver falência ou parcialidade de resposta ao tratamento de
primeira linha.

Exemplo de uma prescrição para Joana


Paroxetina 10 mg, 1 comprimido, via oral, após o café da manhã por 7
dias. Findando esse prazo, passar a tomar:
Paroxetina 20 mg, 1 comprimido, via oral, após o café da manhã.

Referências
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diagnosis and treatment: Table 1. British Medical Bulletin 2015; 114(1): 147-155.
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17. Cordioli AV, Gallois CB, Isolan L. Psicofármacos: consulta rápida. 5. ed. Porto Alegre:
Artmed; 2015.

SIGLAS

• TEPT Transtorno de Estresse Pós-Traumático


• DSM-5 Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais
• HPA Eixo Hipotálamo-Hipófise-Adrenal
• TAG Transtorno de ansiedade generalizada
• TOC Transtorno obsessivo-compulsivo
• TDM Transtorno depressivo maior
• ISRS Inibidores seletivos da recaptação de serotonina
• TCC Terapia cognitivo-comportamental
• EMDR Dessensibilização e reprocessamento por meio dos
movimentos oculares
1. CASO CLÍNICO
Margarida, 40 anos, após receber diagnóstico de hipertensão arterial
pulmonar (HAP) há pouco mais de um mês, vem apresentando diversas
limitações nas atividades cotidianas. Sente-se fraca para segurar seu próprio
filho, torna-se dispneica com facilidade, além de referir fadiga. Acredita ser
incapaz de cuidar de seu filho sozinha.
Relata choro fácil, ansiedade, pensa repetidamente em sua vida antes do
aparecimento dos sintomas, com desespero e desesperança, apresentando por
vezes ideação suicida. Não consegue ficar sozinha por se sentir insegura.
Apesar dos sintomas relatados, paciente diz que nos últimos dias está
“mais conformada” e que sintomas estão mais atenuados.

Exame mental: paciente um pouco chorosa, eutímica e persevera


falando sobre as limitações impostas pela hipertensão pulmonar.

2. DISCUTINDO O DIAGNÓSTICO
Este capítulo se dedica a falar de pacientes que cursam com sofrimento
importante e limitações geradas por situações adversas cotidianas, como
desemprego, divórcio ou reprovação acadêmica. Dessa forma, é de se
esperar que os transtornos de adaptação, também chamados de transtornos
de ajustamento (TA), estejam entre os transtornos mentais mais frequentes
na prática clínica.
Mas, afinal, o que são transtornos de adaptação ou ajustamento? Segundo
o Manual de Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais – 5ª edição
(DSM-5), os TAs se caracterizam pelo desenvolvimento de sintomas
emocionais ou comportamentais em resposta a um estressor ou
estressores identificáveis. Esses sintomas ou comportamentos devem
ocorrer dentro de três meses do início do estressor ou estressores (Critério
A). O estressor pode ser um único evento (p. ex., o término de um
relacionamento longo), ou pode haver múltiplos estressores (p. ex.,
problemas conjugais e financeiros). Os estressores podem ser recorrentes (p.
ex., repetidas reprovações em uma mesma matéria, desavenças recorrentes
com a família) ou contínuos (p. ex., uma doença dolorosa persistente com
incapacidade crescente, morar em área de alta criminalidade) e podem afetar
um único indivíduo ou uma família inteira, um grupo maior ou uma
comunidade (p. ex., um desastre natural). Alguns estressores podem
acompanhar eventos específicos do desenvolvimento (p. ex., ir para a escola,
deixar ou voltar para a casa dos pais, casar-se, tornar-se pai/mãe, fracassar
em metas profissionais, aposentadoria).
Nesse contexto, os sintomas ou comportamentos advindos do
estressor(es) devem ser clinicamente significativos, conforme pelo menos
um dos seguintes aspectos (Critério B):

1. Sofrimento intenso desproporcional à gravidade ou à intensidade do


estressor, considerando-se o contexto e fatores culturais que poderiam
influenciar a gravidade e a apresentação dos sintomas (p. ex.: o
divórcio, apesar de geralmente ser uma experiência marcante, não
tem o mesmo impacto para mulheres ocidentais, quando comparadas
a mulheres orientais, devido ao grande estigma que persiste sobre
esse tema nos países do Oriente).
2. Prejuízo significativo no funcionamento social, profissional ou em
outras áreas importantes da vida do indivíduo (p. ex.: uma mulher
que apresenta isolamento da família e amigos, além de queda no
desempenho no trabalho após descobrir uma gravidez indesejada).

Obviamente, a perturbação relacionada ao estresse não deve satisfazer os


critérios de outro transtorno mental e não é meramente uma exacerbação de
um transtorno mental preexistente (Critério C). E, ainda, os sintomas não
representam um processo de luto normal (Critério D), havendo a
possibilidade de transtornos de adaptação serem diagnosticados após a morte
de um ente querido quando a intensidade, a qualidade e a persistência das
reações de luto excedem o que se esperaria normalmente, considerando
normas culturais, religiosas e apropriadas à idade.
Ademais, uma vez que o estressor ou suas consequências tenham cedido,
os sintomas não persistem por mais de seis meses (Critério E). Em geral, se
o estressor for um evento agudo (como uma demissão), o início da
perturbação é imediata (em poucos dias), com breve duração (não mais que
poucos meses). Se o estressor e suas consequências persistirem, o transtorno
de adaptação pode manter-se presente e evoluir para uma forma persistente.
Em suma, o TA é uma resposta anormal (não adaptativa) autolimitada a um
estressor que causa comprometimento funcional.
Agora que temos as definições diagnósticas, podemos citar os diferentes
subtipos do TA:

1. Com humor deprimido: predominam choro fácil ou sentimentos de


desesperança.
2. Com ansiedade: prevalecem nervosismo, preocupação, inquietação
ou ansiedade de separação.
3. Com misto de ansiedade e depressão: por definição, predomina
uma combinação de depressão e ansiedade.
4. Com perturbação da conduta: por analogia, há predomínio de
perturbação do comportamento.
5. Com perturbação mista das emoções e da conduta: sintomas
emocionais (p. ex., depressão, ansiedade) e perturbação da conduta
são predominantes.
6. Não especificado: reações mal-adaptativas que não são classificáveis
como um dos subtipos específicos do transtorno de adaptação.

Embora os TAs tenham sido incluídos nas classificações psiquiátricas há


quase 70 anos, seus critérios diagnósticos, como podemos observar,
permanecem vagos e causam dificuldades aos profissionais de saúde mental.
No DSM-5 eles foram classificados no capítulo sobre transtornos
relacionados a trauma e a estressores pela primeira vez (o que pode aumentar
o interesse sobre esses transtornos). Apesar desse avanço, ainda podemos
citar diversos problemas com a classificação de TA. Não há, por exemplo,
uma delimitação clara sobre a distinção desses transtornos versus reações
normais ao estresse; continuam sendo uma categoria subsindrômica e seus
subtipos não são fortemente apoiados por evidências. Não há também
critérios de diagnósticos específicos em termos de números de sintomas ou
combinações destes, ao contrário da maioria das outras condições
classificadas no DSM-5. Sucintamente, não há medida para avaliar
normalidade versus patologia com confiabilidade ou validade de
instrumentos para os TAs.
Todas essas controvérsias contribuem para escassez de estudos sobre o
tema. Assim, apesar do desenvolvimento do quadro de transtorno de
adaptação após eventos impactantes da vida de um indivíduo, o TA
geralmente não é considerado como diagnóstico diferencial, uma vez que
sintomas semelhantes estão presentes em distúrbios mais conhecidos, como
o transtorno depressivo maior (TDM) e transtorno de ansiedade generalizada
(TAG).
Dessa forma, podemos dizer que o transtorno de adaptação é um
diagnóstico discreto, tanto clínica quanto cientificamente, muitas vezes
sendo negligenciado no meio acadêmico, recebendo críticas sobre a
vacuidade dos critérios diagnósticos.

3. ASPECTOS SOBRE EPIDEMIOLOGIA E


ETIOLOGIA
O TA impõe grandes repercussões em nível pessoal, social e financeiro,
sendo identificado como o sétimo transtorno mental mais diagnosticado em
um estudo envolvendo quase 5.000 psiquiatras de todo o mundo (que
simultaneamente o classificaram como o quinto mais problemático devido às
limitações de aplicação dos critérios diagnósticos previamente descritos).
Porém, sua prevalência não se limita à psiquiatria, visto que também são
observados em outras áreas médicas (como oncologia, geriatria e cuidados
paliativos).
Trata-se do distúrbio psiquiátrico mais frequentemente diagnosticado
entre membros das forças armadas e em crianças. Transtornos de adaptação
podem complicar o curso clínico de condições clínicas gerais (p. ex.: menor
adesão ao plano terapêutico; estada hospitalar mais prolongada).
A idade média dos indivíduos afetados fica entre 40 e 45 anos, no
entanto, esse dado pode ser enviesado, pois as amostras de estudos são
compostas principalmente por adultos. Já entre os adolescentes que
procuram atendimento psiquiátrico, encontrou-se uma prevalência de 31% e
uma duração média da doença próxima a 7 meses.
Foi demonstrado que o comportamento suicida ocorre mais
precocemente no curso dos TAs quando comparado com o TDM. A ideação
suicida ocorre com um limiar de sintomas mais baixo em pacientes com
transtornos de ajustamento, apresentando menor intervalo entre ameaças
suicidas e o suicídio, também quando comparados ao TDM. Os TAs trazem
um risco 12 vezes maior de êxito no ato suicida, comparado aqueles que não
possuem esse diagnóstico. Dentre os fatores que influenciam o suicídio nos
indivíduos com diagnóstico de TA estão a má qualidade do sono (pesadelos),
alexitimia (refere-se à falta de expressão por palavras das emoções) e falta
de espírito de cooperação.
Entre os estressores mais comumente relacionados ao desenvolvimento
de TAs, os mais citados são os problemas de saúde (como câncer, AIDS e
diabetes), com 50,7% dos pacientes submetidos à cirurgia cardiológica
diagnosticados com TAs na alta, passando para 30,6% após seis meses do
procedimento cirúrgico.
Situações relacionadas ao contexto profissional (como assédio moral,
perda de emprego e ambiente de trabalho negativo) e, em menor grau,
conflitos familiares e conjugais também estão entre os mais relacionados ao
surgimento de TA. Problemas profissionais, doença familiar, doença grave
ou acidente correspondem a estressores no transtorno de adaptação em
23,1%, 9% e 7,7 %, respectivamente. Indivíduos com circunstâncias de vida
desvantajosas costumam ser expostos a maior número de estressores,
podendo então estar sujeitos a um risco mais elevado de sofrer TAs.
Geralmente o perfil demográfico da doença é composto por mulheres
jovens e casadas (ou em coabitação) que vivem no campo, com um alto nível
de educação e exercendo uma profissão liberal.
Como mencionado, estudos sobre os TAs são escassos, faltando
pesquisas sobre muitos aspectos, principalmente sobre seus fundamentos e
tratamentos biológicos. A neuropsicologia dos TAs pode ser melhor
compreendida ao analisar os efeitos do estresse no sistema nervoso central
(SNC). Nesse contexto, o cérebro é o principal órgão de resposta ao estresse,
pois determina o que é considerado ameaçador e, portanto, estressante;
também controla o comportamento e as respostas fisiológicas frente ao
estresse. É provável que (pelo menos alguns) subtipos de TAs estejam
associados a alterações no eixo hipotálamo-hipófise-adrenal, assim como é
visto em outros distúrbios, a exemplo do TDM e TAG.

4. DIAGNÓSTICO DIFERENCIAL
A maioria dos transtornos mentais ou qualquer condição médica podem ser
acompanhados por TAs. O diagnóstico pode ser adjunto a um outro
transtorno mental apenas se esse último não explicar os sintomas particulares
que ocorrem em resposta ao estressor. Por exemplo, um indivíduo pode
desenvolver um transtorno de adaptação, com humor deprimido, após
reprovação acadêmica, e paralelamente ter diagnóstico de transtorno
obssessivo-compulsivo. Transtornos de adaptação frequentemente
acompanham doenças médicas gerais, podendo ser a principal resposta
psicológica do sujeito.
Na psiquiatria, geralmente há muita sobreposição de sintomas entre os
vários transtornos mentais. Como já mencionado, os TAs fazem parte do
grupo de transtornos relacionados a trauma e a estressores; assim, outras
condições desse grupo entram na lista de diagnósticos diferenciais. A seguir,
descreveremos suas distinções.
Transtorno de estresse pós-traumático (TEPT) e transtorno de
estresse agudo: nos transtornos de adaptação, o estressor pode ser de
qualquer gravidade, não sendo necessário atender às exigências, como
gravidade e do tipo, trazidas pelo Critério A do transtorno de estresse agudo
e do TEPT. TAs deverão ser diagnosticados em indivíduos que não tenham
sido expostos a um evento traumático (com as características do critério A
para TEPT), mas ainda assim exibam o perfil sintomático significativo.
Caso estressores precipitem sintomas que satisfaçam critérios para um
transtorno depressivo maior (TDM), o diagnóstico de transtorno de
adaptação não se aplica, pois a gravidade do perfil sintomático do TDM o
diferencia dos transtornos de adaptação.
Como já discutido, uma das principais questões referentes ao diagnóstico
dos TAs está na sua diferenciação das reações normais de estresse, que
entram na lista de diagnósticos diferenciais, pois é natural apresentar uma
perturbação frente a situações adversas, contudo, só podemos definir o
diagnóstico de TAs quando a magnitude de sofrimento exceder o que se
esperaria normalmente, sendo sempre conveniente considerar os aspectos
culturais do indivíduo (p. ex. alterações no humor, na ansiedade ou na
conduta, trazidas no critério diagnóstico B dos TAs), ou quando ocorre
prejuízo funcional. Essa diferenciação é de julgamento puramente clínico.

4.1. E aí? O que fazer?


A melhor abordagem terapêutica para TAs permanece incerta, dado o
número relativamente pequeno de ensaios controlados sobre o tema,
somando-se ao fato de se tratar de uma condição autolimitada que pode se
resolver espontaneamente antes mesmo da conclusão dos estudos.
Entretanto, com escassez de dados, sugere-se evitar o tratamento
farmacológico, priorizando uma abordagem psicoterapêutica, visto que há
tendência para remissão relativamente rápida dos sintomas, além de vários
autores demonstrarem ineficácia da terapia medicamentosa. No entanto,
pragmaticamente, se não houver resposta às intervenções psicológicas, os
tratamentos farmacológicos são usados para o controle dos sintomas.
Deve-se priorizar uma abordagem individualizada, com um plano
específico feito para cada paciente com base na avaliação clínica. Ensaios
clínicos controlados mostram resultados positivos dos agentes à base de
eufitose, kava-kava, valeriana e ginkgo biloba, todavia o modo de ação deles
não é claro.
Em contrapartida, vários agentes antidepressivos têm recebido suporte
limitado pelos estudos. A melhor evidência é para etifoxina (não disponível
no Brasil), um ansiolítico não benzodiazepínico com evidências preliminares
de atuação nos neurocircuitos e neuroquímica relevantes na psicopatologia
pós-traumática. Especificamente no transtorno de adaptação com ansiedade,
a etifoxina tem demonstrado superioridade frente a buspirona e
benzodiazepínicos.
Nesse contexto, também convém ressaltar que benzodiazepínicos quando
utilizados para TA podem causar síndromes de abstinência quando retirados.
Ademais, tianeptina, alprazolam e mianserina tiveram eficácia semelhante na
redução dos sintomas. Em pacientes com câncer e positivos para HIV com
TAs, a trazodona foi mais eficaz que o clorazepato.
Como já pontuado, atualmente a base de evidências para psicoterapias
direcionadas especificamente para os sintomas dos TAs é bastante fraca.
Nesse tocante, as intervenções psicológicas variam de abordagens de
autoajuda, técnicas de relaxamento, terapia on-line, terapia psicodinâmica,
terapia cognitiva comportamental, psicoterapia centrada na pessoa e
gestalterapia. Além das terapias tradicionais, pode-se recomendar meditação
(yoga) e terapia breve.
Uma das poucas intervenções específicas para TA é o programa de
terapia para transtorno de adaptação (adjustment disorder treatment
program), uma abordagem de solução de problemas, individual ou em
grupo, apresentando diminuição significativa dos sintomas de ansiedade e
raiva, com melhora no humor.

4.2. Redescobrindo o caso

1 Sexo feminino

2 Idade de incidência

3 Condição médica como estressor

4 Tempo de evolução

5 Sofrimento clinicamente significativo

6 Risco suicida

7 Evolução autolimita

8 Sem queda do humor importante


Alguns detalhes fazem a diferença na formulação diagnóstica de
Margarida. As principais delas são a evolução gradativa e espontânea para a
melhora e as características dos sintomas, que, de certa forma, orbitam o
estressor desencadeante.
No transtorno de ajustamento, sendo condição referida como uma má
adaptação a algum fator estressor, espera-se na maioria das vezes um
progresso sintomatológico benigno e autolimitado. Diferentemente de outras
condições psiquiátricas, o TA tende a ter sintomas que giram em torno do
fator desencadeante, seja isso evidenciado por comportamento ou discurso.
No caso da paciente Margarida, note que durante a entrevista ela fala por
várias vezes o quanto se sente limitada pela hipertensão pulmonar.
O clínico deve averiguar melhor a ideação suicida e certificar-se que há
um baixo risco para o ato. Diante da escassez de evidências, o julgamento e
a decisão clínica são ainda mais singulares em casos de TA do que em outros
transtornos psiquiátricos. Não há, no caso em questão, necessidade de
terapia medicamentosa. Pode-se optar por intervenção psicoterápica ou
aguardar a evolução dos sintomas para garantir a resolução completa nas
próximas semanas.

Exemplo de uma prescrição para Margarida


Orientações sobre o curso benigno do transtorno de adaptação
+
Expectante para averiguar resolução dos sintomas de forma
espontânea

Referências
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Adjustment Disorder in a Patient With Newly Diagnosed Pulmonary Arterial Hypertension: A
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13. Domhardt M, Baumeister H. Psychotherapy of adjustment disorders: Current state and future
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SIGLAS

• HAP Hipertensão Arterial Pulmonar


• DSM-5 Manual de Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais
– 5ª edição

• TA Transtorno de Adaptação ou Transtorno de Ajustamento


• CID-11 Classificação internacional de Doenças – 11ª edição
• TDM Transtorno Depressivo Maior
• TAG Transtorno de Ansiedade Generalizada
• SNC Sistema Nervoso Central
• HPA Eixo hipotálamo-hipófise-adrenal ou hipotálamo-pituitária-
adrenal
• TEPT Transtorno de estresse pós-traumático
Síndromes Psicóticas
A psicose é uma construção nosológica histórica feita entre os
séculos XIX e XX que servia de antonímia ao termo neurose. A
conotação mais próxima a que temos atualmente sobre a psicose se
deve às contribuições de Freud, Kraepelin e Bleuler. Enquanto a
teoria psicodinâmica enxerga a psicose como um diagnóstico
estrutural, a psiquiatria contemporânea, ancorada em manuais
diagnósticos – DSM-5 e CID-10 – contemplam a psicose com a
presença dos chamados sintomas psicóticos: alucinações, delírios,
discurso desorganizado, comportamento grosseiramente
desorganizado ou catatônico e sintomas negativos.
No capítulo “exame mental”, o leitor encontrará as definições
das alucinações, delírios e discurso (pensamento) desorganizado. O
comportamento desorganizado inclui uma gama de alterações
psicomotoras que vão desde atitudes pueris até a agitação intensa.
Dentre, podemos incluir as alterações da esfera catatônica como o
mutismo, o negativismo, o estupor e a excitação catatônica.
Os sintomas negativos são aqueles derivados das perdas da vida
mental em decorrência da deterioração psíquica nos pacientes
psicóticos. Incluem-se a perda da expressividade afetiva
representada pela diminuição na modulação do afeto, diminuição
da movimentação espontânea e da prosódia; temos como destaque
também a avolia – a perda das vontades e iniciativa psicomotora
para executar objetivos ou atividades com alguma finalidade. A
alogia ilustra a diminuição da produção do discurso espontâneo. A
anedonia é a redução ou incapacidade de sentir prazer. Por fim, a
falta de sociabilidade e a ausência no interesse em formar laços de
interação social marcam também os sintomas negativos.
Os sintomas negativos devem ser diferenciados de sintomas
depressivos; esses, em geral, diferem-se daqueles por serem
vivenciados de forma sofrida e acabam, por isso, gerando queixas.
Enquanto os sintomas negativos presentes na psicose têm cunho
mais passivo e tradicionalmente não mobilizam o paciente à
lamúria.
Outro aspecto de realce na psicose é a perda do contato com a
realidade marcada pela distorção evidente das percepções e do
mundo factual (pela presença de alucinações e delírios,
respectivamente).
Apesar do DSM-5 encarar a psicose como sintomas que podem
associar-se a várias condições psiquiátricas como transtornos de
personalidade, transtornos de humor, dentre outros, agrupamos
nesta seção nosologias que tem o quadro psicótico como base de
sua apresentação clínica, são elas: esquizofrenia, transtorno
psicótico breve (psicose breve), transtorno esquizofreniforme,
transtorno delirante, transtorno esquizoafetivo e psicose
relacionada ao uso de substâncias psicoativas.
1. CASO CLÍNICO
Walter, 18 anos, solteiro, vem para atendimento com os pais. Esses referem
que paciente vem apresentando discurso que é perseguido por alienígenas,
pois escuta-os conversarem entre si planejando uma emboscada. O quadro
vem se agravando nos últimos dois meses, mas estão certos que percebem o
paciente mais recluso, mais calado e com pouquíssima interação social há
pelo menos 8 meses. Acreditam que sintomas iniciaram após mudança do
único irmão do paciente para a capital.
Nega passado psiquiátrico. É tabagista há 6 meses. Nega uso de outras
substâncias psicoativas ou comorbidades clínicas. Genitor tem quadro
psicótico estabilizado há vários anos.
Nascido de parto normal, prematuro e com baixo peso. Personalidade do
paciente é descrita pelos pais como “tímido” e “introspectivo” mesmo antes
de toda a mudança comportamental relatada na história clínica. Abandonou a
escola no ensino fundamental, pois apresentava dificuldades em algumas
matérias. Os poucos amigos que tinha se desvencilharam do paciente nos
últimos meses. Nunca teve relacionamento amoroso e nunca teve emprego
formal (ajudava seu pai na agricultura).

Exame mental: inquieto, hipotenaz, discurso frouxo, delirante de cunho


bizarro e persecutório, solilóquios, sem insight.

2. DISCUTINDO O DIAGNÓSTICO
Ainda no século XIX, a denominação demência precoce surge do psiquiatra
Emil Kraepelin para nomear uma condição psicótica que acometia jovens
que cursava com degeneração das cognições e da personalidade. Em 1911, o
psiquiatra suíço Eugen Bleuer sugere a mudança de nomenclatura dessa
condição para esquizofrenia, um neologismo formado por dois radicais
gregos Skhízein (dividir/separar) + Phrén (mente).
A esquizofrenia é a maior causa de psicose e caracteriza-se pelo
aparecimento de disfunções no funcionamento psíquico normal
abrangendo dimensões sociais, relacionamento interpessoal,
comprometimento laboral e perda de produtividade, associado com uma
série de sintomas psicóticos, por um período contínuo, de pelo menos, 6
meses. Agora, acompanhe-me caso descrito acima: um jovem de 18 anos,
referido como uma pessoa “tímida”, que começou a apresentar um
afastamento social importante há mais de 6 meses e culminou na abertura de
sintomas psicóticos francos. Como podemos reconhecer os sintomas e
pensar em esquizofrenia?
Pelo DSM-V, para se firmar o diagnóstico de esquizofrenia é preciso que
o paciente feche 6 (do A ao F) critérios diagnósticos. O critério A para
esquizofrenia afirma que o paciente deve apresentar, por pelo menos um
mês, 2 dos sintomas a seguir (sendo que pelo menos um dos sintomas deve
ser o 1, 2 ou 3):

1. Delírios.
2. Alucinações.
3. Discurso desorganizado.
4. Comportamento desorganizado ou catatônico.
5. Sintomas negativos.

Caso haja intervenção terapêutica antes de completado um mês de


sintomas, e pela resposta à intervenção os sintomas remitirem, ainda assim o
critério A é preenchido.
Para uma melhor compreensão dos sintomas, dividimos eles em 3
grupos: sintomas positivos, sintomas negativos e sintomas cognitivos.
Os sintomas positivos envolvem os delírios, as alucinações e o discurso
desorganizado. Os delírios são crenças fixas e inabaláveis do paciente, que,
geralmente, são vistos como algo incompreensível por outros indivíduos da
mesma cultura. O principal exemplo que pode ser citado dentro do espectro
da doença são os delírios persecutórios, em que vemos um paciente que
acredita que está sendo perseguido por monstros, alienígenas, agentes
secretos ou mesmo seu vizinho. Outros delírios comuns são de referência, de
grandeza, erotomaníacos, niilistas, somáticos e de controle. As alucinações
são experiências perceptivas (alterações dos 5 sentidos – visão, audição,
paladar, tato e olfato) mas sem que ocorra um estímulo externo provocando
tais percepções (por exemplo: escutar a voz de Deus). As alucinações mais
comuns na esquizofrenia são as auditivas. Em relação ao discurso
desorganizado, observa-se, com maior frequência, um descarrilhamento ou
afrouxamento dos pensamentos.
Os sintomas negativos, muitas vezes, são os sintomas mais precoces, e
seu conjunto compõe a síndrome amotivacional. Inclui distanciamento
social, embotamento afetivo, anedonia (diminuição ou ausência de prazer),
diminuição da iniciativa e energia, além avolia (ausência de vontades).
Na esquizofrenia encontramos alterações das funções cognitivas e
executivas, como diminuição da velocidade de pensamento, da fluência da
linguagem, da compreensão, da memória de trabalho e declarativa, entre
outros sintomas que podem prejudicar a vida social e profissional do
paciente. É importante citar que não existe nenhum sinal ou sintoma
patognomônico da esquizofrenia.
A queda no funcionamento global manifestada em pelo menos uma área,
como trabalho, autocuidado, desempenho acadêmico e relacionamento
interpessoal, descreve o critério B.
O critério C inclui o tempo total de adoecimento que deve ser de pelo
menos 6 meses. Esse tempo engloba tanto sintomas ativos descritos no
critério A, bem como o tempo de pródromos e de sintomas residuais da
doença.
A ocorrência de quadros de humor (mania ou depressão psicóticas)
concomitantes com a psicose e que podem justificar esses sintomas
psicóticos, deve ser descartada, seja pela ausência de polarização do humor
ou, caso essa alteração do humor exista, que tenha curta duração em relação
ao tempo de atividade da doença. Esse é o critério D.
O critério E afirma que as alterações clínicas encontradas não podem ser
resultado de efeitos de alguma substância como drogas psicoativas ou
medicamentos.
O critério F é específico ao dizer que, se há história de transtorno do
espectro autista (TEA) ou de algum transtorno de comunicação, para se
adicionar o diagnóstico de esquizofrenia nesse paciente é preciso que ele
apresente necessariamente alucinações ou delírios, pois alteração
significativa do discurso já estará presente na sua condição de base.
A história natural da doença geralmente é insidiosa e ocorre com uma
fase de sintomas mais leves e restritos, chamada de fase prodrômica,
comumente ocorrendo na adolescência, manifestando um declínio da
função social e cognitiva, somados com sintomas negativos leves que
evoluem para o primeiro episódio com início subagudo de sintomas
psicóticos positivos associados com ausência de insight.

Figura 1 - Critérios diagnósticos da esquizofrenia

Fonte: American Psychiatric Association5.


3. ASPECTOS SOBRE EPIDEMIOLOGIA E
ETIOLOGIA
A esquizofrenia tem prevalência global entre 0,3% a 0,7%. As regiões com
maior número de casos são a Ásia Oriental e América do Sul, com 7,2
milhões e 4 milhões de pacientes, respectivamente.
A idade média de início dos sintomas psicóticos difere entre os sexos.
Para os homens a idade varia entre 15 a 25 anos, já nas mulheres inicia-se
dos 25 anos e vai até os 35 anos, com um segundo pico da doença ocorrendo
no período do climatério. Mesmo com essa diferença entre as idades, não há
diferença de prevalência entre os sexos. Os indivíduos do sexo masculino
apresentam um prognóstico pior, com rendimento escolar mais baixo, maior
risco de cronificação e sintomas negativos, além de prejuízos cognitivos
mais proeminentes; já nas mulheres, encontramos um início mais tardio, uma
taxa de remissão maior e maior frequência de sintomas psicóticos e de
humor.
Como já citado anteriormente, devido ao déficit cognitivo e social, os
pacientes com esquizofrenia estão mais sujeitos ao desemprego, dificuldades
em manter o autocuidado, os cuidados domésticos e a precisarem de maior
atenção dos familiares e de centros especializados à saúde. Por
consequência, comumente tornam-se sem-teto ou moradores de rua.
É habitual encontrarmos pacientes esquizofrênicos com doenças
secundárias, como ganho de peso, diabetes mellitus, síndrome metabólica,
doenças cardiovasculares ou pulmonares, condições essas geralmente
ocasionados pela falta de envolvimento do paciente na manutenção de sua
própria saúde ou por falta de cuidados. Acometimentos metabólicos também
se relacionam com o uso dos antipsicóticos, tabagismo ou dieta inadequada.
Dentro desse contexto, diversos estudos constataram que a expectativa de
vida dos pacientes que sofrem com esse transtorno é reduzida em,
aproximadamente, 10 a 20 anos, geralmente causado pelas condições
médicas associadas ou, na minoria das vezes, por tentativas de suicídio.
Suicídio pode ocorrer em 5% a 6% dos pacientes esquizofrênicos,
enquanto as tentativas acontecem pelo menos uma vez em até 20%. Os
fatores que levam ao suicídio estão geralmente ligados aos sintomas
negativos, maus-tratos, preconceito ou alucinações de comando. Os riscos de
suicídio são maiores após uma hospitalização ou após uma crise psicótica.
Outra causa importante de morbimortalidade em pacientes
esquizofrênicos é o uso abusivo de substâncias chegando à prevalência de
42%, sendo as principais tabaco, álcool e drogas ilícitas. É mais comum no
sexo masculino (48%) do que no sexo feminino (22%) gerando aumento das
hospitalizações, comportamento agressivo, encarceramento e aumento das
taxas de suicídio.
É possível prever o surgimento da esquizofrenia? Os estudos dos
chamados pacientes de alto risco para psicose propõem um agrupamento de
características que, em tese, estariam sujeitos a maior probabilidade de
adoecimento psicótico. Vulnerabilidade genética (como familiares de
primeiro grau com esquizofrenia), alterações sensoperceptivas ou de
pensamento que não alterem o juízo de realidade, queda no padrão de
sociabilidade, são alguns aspectos dos indivíduos chamados de alto risco
para psicose. Contudo, é preciso deixar claro que tais fatores são
inespecíficos e não são usados como preditores para psicose nem mesmo
pelo mais experiente psiquiatra. Permanecem em ambiente de pesquisa.
Pacientes esquizofrênicos com frequência têm histórico pré-mórbido de
regular ou baixo desempenho acadêmico, de serem mais introspectivos e até
referidos como “esquisitos”.
Existem diversos fatores ambientais que podem se relacionar com
predisposição para um primeiro episódio psicótico, mas até agora não
existem estudos que comprovem a veracidade desses. Podemos dividi-los em
dois grupos: fatores biológicos e psicossociais. Os biológicos abrangem
complicações maternas na gestação ou periparto que afetem o
neurodesenvolvimento precoce do paciente ou adversidades precoces, como
TEA, TCE (trauma cranioencefálico) e epilepsia. Já os fatores psicossociais
incluem a idade materna e paterna no nascimento do filho, violência
doméstica durante a infância, indivíduos criados em cidades grandes, entre
outros (Quadro 1).

Quadro 1 - Principais fatores de risco para desenvolvimento


de primeiro episódio psicótico

Fatores
- História Familiar De Psicose Ou Esquizofrenia
Genéticos
Fatores Fatores Complicações obstétricas (estresse materno, infecções maternas,
ambientais biológicos deficiências nutricionais, retardo do crescimento intrauterino)

Traumatismo craniano

Histórico de epilepsia

Doenças autoimunes

Quadros infecciosos severos

Filhos de pais mais velhos (> 40 anos) ou mais novos (< 20 anos)

Indivíduos nascidos e criados na cidade

Indivíduos nascidos no final do inverno ou no início da primavera

Fatores
Uso de cannabis durante a adolescência
psicossociais

Abuso persistente de drogas, como anfetaminas, metanfetamina e


cocaína

Abuso persistente de drogas, como anfetaminas, metanfetamina e


cocaína

Fonte: American Psychiatric Association5.

Não existe comprovação sobre os mecanismos etiopatogênicos da


esquizofrenia, mas alguns estudos obtiveram resultados que podem auxiliar
na explicação dos grupos de sintomas dentro do transtorno. Em alguns
estudos de neuroimagem que avaliaram o sistema nervoso post-mortem de
pacientes esquizofrênicos observou-se diminuição na massa cinzenta do
encéfalo, principalmente nos lobos temporais e frontal, além de
anormalidades na massa branca, que aparentemente aumentam com a
duração da doença. Em relação à neurobiologia da doença, que também
permanece pouco compreendida, observa-se uma disfunção na
neurotransmissão do circuito dopaminérgico, que pode explicar a causa dos
sintomas psicóticos (delírios e alucinações), e uma disfunção na sinalização
do glutamato, que está relacionada com os sintomas negativos e cognitivos
(para mais detalhes, ver capítulo Antipsicóticos).
Uma peculiaridade importante na esquizofrenia é o seu prognóstico. As
taxas de remissão dos sintomas psicóticos variam muito de paciente para
paciente, sendo que cerca de 10% a 20% dos pacientes alcançam desfecho
positivo de seu quadro e apenas 20% a 30% do total conseguem levar uma
vida normal e independente. Cerca de 50% dos casos possuem um
prognóstico ruim, com hospitalizações repetidas, surtos psicóticos
frequentes, episódios de humor (com destaque para episódios depressivos) e
tentativas de suicídio.

4. DIAGNÓSTICO DIFERENCIAL
O diagnóstico diferencial das síndromes psicóticas, na maioria das vezes,
deve ser ponderado durante o primeiro episódio psicótico. O clínico deve
estar vigilante para a possibilidade de condição não psiquiátrica, induzindo
sintomas psicóticos. No quadro 2, listamos elementos que, se presentes, deve
alertar o clínico para possibilidade de causa orgânica da psicose.

Quadro 2 - Fatores que sugerem causa não psiquiátrica para psicose

Cefaleia intensa

Febre

Convulsões

Sinais neurológicos

Rebaixamento/oscilação do nível de
consciência
Alterações/déficits cognitivos

Alucinações visuais, olfativas ou táteis

Início súbito

História de trauma cranioencefálico

Idade avançada

Uso de substâncias psicoativas

Fonte: Del-Ben CM, Rufino ACTBF, Azevedo-Marques JM, Menezes PR10.

Já no quadro 3 temos os principais diagnósticos diferenciais – clínicos e


psiquiátricos – da esquizofrenia.

Quadro 3 - Diagnósticos diferenciais de primeiro episódio


psicótico e de esquizofrenia

Condições Psiquiátricas
Condições Médicas Gerais

Epilepsia Transtorno Esquizofreniforme

Neoplasias cerebrais Transtorno Esquizoafetivo

Doenças cerebrovasculares Transtorno Psicótico Breve

Trauma Cranioencefálico Transtorno Delirante


Condições Psiquiátricas
Condições Médicas Gerais

Transtornos de Personalidade (esquizoide,


AIDS/HIV
esquizotípica, borderline)

Transtorno Depressivo Maior (TDM) e


Neurossífilis
Transtorno do Humor Bipolar (THB)

Lúpus Eritematoso Sistêmico Transtorno Obsessivo-Compulsivo (TOC)

Síndrome de Wernicke-Korsakoff Transtorno Dismórfico Corporal

Uso de substâncias (alucinógenos, alucinose


Transtorno de Espectro Autista (TEA)
alcoólica, barbitúricos, cocaína, entre outros)

Delirium Transtorno Factício e de Simulação

Transtorno de Comunicação

Fonte: elaborado pelos autores.

Para diferenciarmos os principais diagnósticos que se assemelham à


esquizofrenia, precisamos de uma boa avaliação clínica, com ênfase na
temporalidade dos sintomas, gravidade do quadro e evolução. Com essa
ideia, vamos avaliar os diagnósticos diferenciais psiquiátricos da
esquizofrenia.
Equívocos no diagnóstico de esquizofrenia acontecem com frequência
pela semelhança com outras condições psicóticas. No transtorno
esquizoafetivo e no transtorno bipolar observamos um episódio
depressivo maior ou maníaco que ocorre ao mesmo tempo em que os
sintomas na fase ativa da doença (sintomas positivos), ou sintomas de humor
que perduram durante todo o período dos sintomas psicóticos, o que já difere
nos critérios diagnósticos da esquizofrenia.
No transtorno esquizofreniforme e transtorno psicótico breve, temos
um espectro de sintomas semelhante aos da esquizofrenia, o que distingue é
a duração dos sintomas. Quando inferior a um mês, psicose breve; quando
superior a um mês, porém inferior a seis meses, transtorno
esquizofreniforme.
No transtorno delirante não encontraremos prejuízos importantes nos
nexos do discurso e não há evidente quebra ou mudança da personalidade. É
comum encontrarmos pacientes com transtorno delirante com exame mental
sem alterações, excetuando o juízo de realidade, que mostrará um delírio, em
geral, bem sistematizado e plausível. Delírios com conotação bizarra (por
exemplo: que envolvem alienígenas, teletransporte, viagens no tempo…)
afastam do diagnóstico de transtorno delirante e aproximam de
esquizofrenia.
Os sintomas de humor e negativos, algumas vezes, podem ser bastante
proeminentes na esquizofrenia, o que dá importância na diferenciação com
transtorno depressivo maior e transtorno bipolar com características
psicóticas ou catatônicas. Mas como podemos distinguir? Uma
característica é a relação temporal entre as alterações de humor e os sintomas
psicóticos. Em caso de os delírios ocorrerem apenas durante os episódios
depressivos ou maníacos, não é esquizofrenia! Os sintomas negativos
esquizofrênicos (avolia, anedonia, baixa sociabilidade, preferência por
atividades individuais, pouca fluência verbal) são difíceis de diferenciar, em
boa parte das vezes, com sintomas depressivos. Uma questão marcante é que
os sintomas negativos são vividos de forma egossintônica (sem
contrariedade ou sofrimento) pelo paciente esquizofrênico, enquanto
sintomas depressivos trazem intensa angústia ao paciente com depressão.
Caso haja, no paciente esquizofrênico, cognições depressivas (humor
deprimido, ideias suicidas, de culpa, menos-valia), além de outros
comemorativos para depressão, como alteração no padrão do apetite e sono,
o diagnóstico adicional de depressão deve ser feito.
Alguns transtornos de personalidade também fazem diagnóstico
diferencial com a esquizofrenia, principalmente os do grupo A, conhecido
como o grupo dos esquisitos ou excêntricos. Temos o transtorno de
personalidade esquizotípica e esquizoide, em que vemos um quadro com
alterações perceptivas e de pensamento mais brandos em comparação com
esquizofrênicos, além das características serem persistentes da
personalidade, com presença de insight. Outros transtornos de personalidade
relevantes para o diagnóstico diferencial, são os do grupo B, como o
transtorno de personalidade borderline (TPB), onde são comuns os
relatos de alucinações. Contudo, é comum o comportamento de manipulação
e de ganho de atenção nos pacientes com TPB.
No transtorno obsessivo-compulsivo e transtorno dismórfico
corporal, principalmente nos casos graves, os sintomas podem atingir
proporções que mimetizam delírios, observaremos também um insight
prejudicado ou ausente, semelhante à esquizofrenia. Podemos diferenciá-los,
no entanto, pela presença de obsessões proeminentes e compulsões (no
TOC), preocupações com a aparência e comportamentos com foco no corpo
(no transtorno dismórfico corporal).
No Transtorno de Estresse Pós-Traumático (TEPT), o paciente pode
apresentar uma hipervigilância de proporções paranoides e flashbacks dos
eventos traumáticos similares a alucinações. As possíveis alterações de
sensopercepção e a hipervigilância paranoide do TEPT estão sempre
relacionadas ao evento traumático prévio, diferente da esquizofrenia.
Os déficits sociais e interpessoais da esquizofrenia, também podem ser
encontrados em alguns transtornos como a TEA ou de comunicação. Mas
na esquizofrenia não vemos um quadro que se iniciou na infância, com
exceção de alguns raros casos de esquizofrenia precoce. Os sintomas
psicóticos positivos não estarão presentes, via de regra, nos pacientes com
TEA e nos transtornos de comunicação.
Outros quadros mentais que podem simular um episódio psicótico são o
abuso de substâncias psicoativas e o delirium, todavia, em ambos é
possível localizar uma causa que explique os sintomas, com relação
temporal entre o fator estressor (uso de substâncias ou alteração orgânica)
com o surgimento do quadro psicótico.
Também é possível que haja transtorno factício ou simulação, em que o
indivíduo imita voluntariamente os sintomas da esquizofrenia. No primeiro,
sem ganho secundário bem identificado e no segundo com um objetivo
evidente de ganhar algo (auxílio doença, por exemplo). A diferenciação
dependerá da habilidade do sujeito em espelhar os sintomas, sendo
necessário observar o histórico desse paciente para localizar incongruências
com o quadro clínico típico.

4.1. E aí? O que fazer?


O tratamento da esquizofrenia é bastante complexo e heterogêneo. Inclui o
tratamento farmacológico com antipsicótico para sintomas positivos e não
farmacológico para lidar com prejuízos gerais da doença, além de
psicoeducação permanente do paciente e familiares com objetivo de
melhorar a convivência entre os mesmos.

5. FARMACOTERAPIA
Os objetivos do tratamento farmacológico vão depender da fase da doença
em que o paciente se encontra. A primeira fase é o tratamento da psicose
aguda, geralmente implementada no primeiro episódio psicótico ou após
uma recaída psicótica importante. Requer atenção imediata da equipe de
saúde e objetiva aliviar os sintomas psicóticos graves e a agitação para
alcançar a remissão parcial ou completa. Sua duração fica em torno de 6
semanas. Boa parte das vezes, nessa fase, é necessária a internação
hospitalar (ver quadro 4).

Quadro 4 - Indicações para internação hospitalar


para pacientes esquizofrênicos

Comportamento desorganizado prejudicial à saúde

Fins diagnósticos

Estabilização da medicação

Segurança do paciente em casos de ideação suicida

Incapacidade de cuidar de suas necessidades básicas (alimentação, abrigo e


vestuário)

Fonte: Sadock BJ, Sadock VA5.

A segunda fase concentra-se na estabilização do quadro psicótico e na


manutenção da remissão dos sintomas ativos de psicose. As metas englobam
prevenir recaídas psicóticas, auxiliar na melhora de seu desempenho
cognitivo e evitar a falta de adesão aos medicamentos, cerca de 50% dos
pacientes deixam de usar os medicamentos em 1 a 2 anos de uso. O
tratamento deve ser continuado por tempo indeterminado.
O pilar da farmacoterapia é o uso dos antipsicóticos. Esses são
separados em primeira geração, ou típicos, e segunda geração, ou atípicos,
que diferem em suas vias de ações e nos efeitos adversos. Para
selecionarmos o melhor medicamento antipsicótico, devemos avaliar a
resposta prévia, observar que casos de intolerância ao medicamento ou de
falta de adesão devido a efeitos adversos são comuns. Considerar efeitos
adversos, posologia, sempre preferindo a via de administração mais
conveniente e que ofereça uma melhor aceitação pelo paciente.
Os antipsicóticos possuem um grande efeito nos sintomas positivos, na
agitação psicomotora, na agressividade e nas ideações suicidas. Mas não
apresentam importantes alterações nos sintomas negativos e cognitivos. O
paciente esquizofrênico pode ser beneficiado com uma combinação de
medicamentos antipsicóticos. Em pacientes com baixa adesão, pode-se tentar
o uso de antipsicóticos injetáveis de depósito. Na atenção primária e também
como antipsicótico de depósito mais acessível, temos o haloperidol
decanoato. Cada ampola de haloperidol decanoato (50 mg) equivale a uma
dose diária de haloperidol oral de 2,5 mg. Hipoteticamente, se temos um
paciente que use haloperidol 10 mg/dia oral, podemos substituir essa dose,
sem perda de eficácia, pelo haloperidol decanoato 20 0mg/mês (4
ampolas/mês). Não se deve aplicar mais que 3 ml (3 ampolas) no mesmo
local.

Quadro 5 - Principais antipsicóticos típicos

Fármaco Dose Inicial Doses Usais

Haloperidol 2,5-5 mg 10-20 mg

Clorpromazina 25-50 mg 300-600 mg

Fonte: elaborado pelos autores.

Os principais efeitos adversos agudos ligados aos antipsicóticos típicos


são os sintomas extrapiramidais (SEP), como parkinsonismo, distonia,
retardo psicomotor (neurolepsia) e acatisia. Discinesia tardia é um efeito
colateral decorrente do uso crônico de antipsicóticos caracterizado por
atetose e coreias. Para contornar os efeitos colaterais agudos podemos:
reduzir a dose do antipsicótico (estratégia válida apenas para pacientes
estáveis, na fase de manutenção), mudar para um antipsicótico atípico ou
adicionar um medicamento anticolinérgico ou betabloqueador. Quanto à
discinesia tardia, a melhor estratégia é a prevenção desse agravo utilizando a
menor dose possível do antipsicótico e optando pela administração de
antipsicóticos atípicos. Após instalada, a discinesia tardia tem prognóstico
ruim e a conduta será a troca do antipsicótico em uso por antipsicóticos de
menor potência dopaminérgica (vale a ressalva que não há menor eficácia
por isso), como quetiapina, olanzapina e, especialmente, a clozapina. Não
existe consenso na literatura quanto ao uso de anticolinérgicos já no início
do tratamento com antipsicótico. Em nossa prática clínica, optamos por
adicionar o anticolinérgico somente se surgirem sintomas motores, poupando
o paciente da exposição aos efeitos colaterais de mais uma droga. Para mais
detalhes, ver capítulo Transtornos induzidos por uso de medicamentos.
Anticolinérgicos são preferidos em caso de parkinsonismo ou distonia
aguda. Sua eficácia para tratamento de acatisia continua obscuro, mas pode-
se tentar nesses casos o uso de betabloqueadores de ação central como o
propranolol ou benzodiazepínicos. A prometazina também é rotineiramente
usada por conta da sua ação anticolinérgica (apesar de ser um anti-
histamínico).

Quadro 6 - Medicamentos para tratamento dos efeitos extrapiramidais

Fármaco Dose Inicial Faixa Terapêutica

Propranolol (acatisia) 20 mg 40-120 mg

Biperideno 2 mg 2-16 mg

Fonte: elaborado pelos autores.

Atualmente, no tratamento farmacológico da esquizofrenia, são


preferíveis os antipsicóticos atípicos, pois promovem maior adesão e menos
efeitos adversos motores. Os medicamentos de segunda geração causam
efeitos metabólicos importantes no paciente, como ganho de peso, elevação
dos níveis lipídicos e resistência à insulina, ocasionando um aumento do
risco cardiovascular. Para esses pacientes é necessário um monitoramento
contínuo dos níveis lipídicos e da glicose, e sempre orientar mudanças no
estilo de vida (MEV). Para maiores detalhes, ver capítulo Antipsicóticos.
Quadro 7 - Principais antipsicóticos atípicos

Fármaco Dose Inicial Doses Usuais

Clozapina 12,5-25 mg 300-600 mg

Olanzapina 5-10 mg 10-20 mg

Quetiapina 25-50 mg 300-800 mg

Risperidona 1-2 mg 2-10 mg

Ziprasidona 40 mg 80-160 mg

Aripiprazol 5-10 mg 10-30 mg

Fonte: elaborado pelos autores.

5.1. Tratamento não farmacológico


O objetivo do tratamento não farmacológico é aumentar as habilidades
sociais e práticas do indivíduo, além de sua autossuficiência para uma vida
independente. Faz parte a psicoeducação de familiares objetivando redução
do estresse e de possíveis situações problemáticas entre família e paciente.
As terapias psicossociais auxiliam na redução dos sintomas negativos e
na melhora do insight. Os pacientes podem se beneficiar de grupoterapias,
sendo familiar ou não. A psicoterapia individual pode ser tentada com
terapeutas experientes que consigam manejar as possíveis desconfianças
excessivas de pacientes paranoides ou mesmo a possibilidade de o terapeuta
ser enquadrado em algum delírio.
A Terapia Cognitivo-Comportamental (TCC) ajuda a melhorar as
principais alterações cognitivas do paciente e a reduzir a distratibilidade,
tornando essa modalidade de psicoterapia uma das mais utilizadas. Outras
terapêuticas incluem o treinamento de habilidades sociais, terapia vocacional
e treinamento cognitivo.
A família também deve ser abordada, como já citado anteriormente, com
o objetivo de ajudá-la a compreender e a aprender mais sobre a condição do
paciente, para reduzir o nível de hostilidade e/ou superproteção, diminuindo,
assim, o risco de recaídas e reinternações.
Para os familiares, é possível indicar a terapia de família, que possui
uma abordagem mais objetiva e intensiva, podendo ocorrer diariamente.
Ajuda os familiares a controlar sua intensidade emocional e seus medos
quanto aos sintomas psicóticos.
A inserção do paciente na comunidade deve ser gradual, respeitando seus
limites. Incentivar o paciente em participar de grupos na comunidade é um
plano que pode ser abordado, principalmente de grupos que realizam
atividades físicas, pois também pode auxiliar no combate aos efeitos
colaterais dos antipsicóticos atípicos.
O paciente esquizofrênico pode ser beneficiado com uma combinação de
medicamentos antipsicóticos utilizados em associação com psicoterapias e
MEV, reduz as taxas de recaídas e de hospitalização, além de aumentar a
qualidade de vida do paciente.

5.2. Redescobrindo o caso (Pontos-Chave)


1 Pico de incidência

2 Delírio (critério A)

3 Alucinações (critério A)

4 Tempo de psicose ativa (critério A)

5 Tempo total de doença (critério C)


6 Fator ambiental estressor

7 Comorbidade com uso de tabaco

Sem causa orgânica que justifiquem os


8
sintomas

9 História familiar positiva

10 Complicações periparto

11 Personalidade pré-mórbida

12 Baixo desempenho pré-mórbido

13 Discurso desorganizado (critério A)

Walter está numa crise psicótica aguda, marcada pela desorganização do


discurso, alucinações auditivas e delírios persecutórios/bizarros. Houve o
cuidado de descartar causas orgânicas como o uso de substâncias e história
ausente de doenças médicas gerais que pudessem justificar os sintomas
psicóticos. Várias são as nosologias que cursam com sintomas psicóticos,
contudo, perceba os detalhes que reforçam a hipótese de esquizofrenia:
delírios bizarros, alucinações auditivas que conversam entre si, história
familiar positiva, personalidade e vida social pré-mórbida compatíveis, além
do tempo de duração total de sintomas. Veja que, além dos dois meses de
psicose ativa, temos uma história de mudança comportamental que remonta
pelo menos 8 meses. O critério C do tempo de doença contempla os
pródromos.
Apesar de estar inquieto, Walter não apresenta agitação psicomotora e,
portanto, a contenção física ou química não é necessária no momento. É
preciso ponderar com os familiares a necessidade de internação,
considerando o desgaste da família no cuidado e a indispensabilidade de
vigilância constante caso opte-se pelo manejo ambulatorial. Sabendo da
gravidade do quadro, o clínico deve agendar retorno em pelo menos uma
semana, tempo que já se espera alguma ação antipsicótica (ação plena se dá
em até duas semanas). O uso de benzodiazepínicos, além de antipsicóticos,
será preciso, tendo em vista a melhora da inquietação a curto prazo com o
uso desses. Benzodiazepínicos são adjuvantes e por isso devem ser retirados
assim que possível, ainda na fase aguda do tratamento.

Exemplo de uma prescrição para Walter


Risperidona 2 mg, 1 comprimido, via oral, à noite
+
Diazepam 5 mg, 1 comprimido, via oral, pela manhã e à noite.

Referências
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2. Marder SR, Cannon TD. Schizophrenia. New England Journal of Medicine 2019; 381(18):
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SIGLAS
• DSM-5 Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais
• TDM Transtorno Depressivo Maior
• TB Transtorno Bipolar
• TOC Transtorno Obsessivo-Compulsivo
• TEA Transtorno do Espectro Autista
• TEPT Transtorno de Estresse Pós-Traumático
• TCC Terapia Cognitivo-Comportamental
• TPB Transtorno de Personalidade Borderline
• MEV Mudanças no Estilo de Vida
• SEP Sintomas Extrapiramidais
1. CASO CLÍNICO

Josefina, 28 anos, é levada por seus familiares para atendimento de urgência


no CAPS (Centro de Atenção Psicossocial). Referem que paciente está há
alguns dias apresentando “comportamento esquisito”. Foi encontrada
andando pela rua de seu bairro segurando uma faca, falando constantemente
que o apocalipse estava chegando e que todos iriam morrer. Nas últimas
semanas a paciente apresentava-se preocupada devido à morte de sua irmã
causada por Covid-19. Procurava informações constantemente sobre a
doença e expressava sua ansiedade para todos em sua volta, temendo
contrair ou que seus pais idosos contraíssem o vírus. Foi negado uso de
substâncias ilícitas ou lícitas. Sem história familiar de doenças psiquiátricas.
Exame físico geral revelou ausência de causas orgânicas que pudessem
explicar o ocorrido.

Exame mental: agitada, discurso descarrilhado e delirante de cunho


niilista, atitude alucinatória e sem insight.

2. DISCUTINDO O DIAGNÓSTICO
Havia, há várias décadas, um conceito chamado “psicose reativa”, em que
eram descritos casos de uma psicose benigna, de bom prognóstico e que
precisava de um fator traumático para acontecer, sendo os temas dos delírios
apresentados relacionados ao evento desencadeador. Atualmente, esse
transtorno foi renomeado como transtorno psicótico breve ou psicose breve.
No caso de Josefina, conseguimos observar um fator que pode ter ajudado a
desencadear seu quadro. Mas seria apenas isso que poderia dar indício de se
tratar de uma psicose breve? Quais outros sintomas podem nos ajudar no
diagnóstico? Com essas perguntas em mente, vamos discutir algumas
características do transtorno.
Psicose breve é um transtorno psicótico agudo e transitório,
caracterizado pelo início súbito de sintomas psicóticos que duram no
mínimo um dia e no máximo um mês, geralmente associado a um evento ou
fator estressor. Os sintomas cessam completamente dentro de um mês ou
após o uso de antipsicóticos, com uma recuperação completa dos níveis
funcionais do indivíduo. O significado de “início súbito” refere-se a uma
mudança do estado normal do indivíduo para um estado claramente
psicótico, em até duas semanas, e geralmente sem um período prodrômico.
De acordo com o DSM-5, para o diagnóstico de psicose breve é
necessário a presença de, pelo menos, um dos sintomas psicóticos a seguir:

1. Delírios.
2. Alucinações.
3. Discurso desorganizado.
4. Comportamento desorganizado ou catatônico.

Observe bem que, comparado com outras condições psicóticas, não se


tem a presença de sintomas negativos ou cognitivos. Contudo, sintomas de
humor e comportamentais estão fortemente presentes na psicose breve. Os
pacientes costumam vivenciar uma turbulência emocional importante ou
uma grande confusão mental, podendo apresentar uma volatilidade afetiva,
com uma mudança brusca de emoções e afetos, associados a um
comportamento estranho ou bizarro, gritos ou mutismo com olhar perplexo,
hipotenacidade e memória comprometida para eventos recentes.
Dentro desse contexto, o paciente também pode apresentar
comprometimento de atividades corriqueiras, como dificuldade em se
alimentar ou realizar tarefas básicas de higiene, podendo ser necessário uma
supervisão contínua de familiares. É nesse momento que devemos prestar
mais atenção ao paciente, pois há maiores chances de ocorrer ações
incentivadas por seus delírios, a exemplo de comportamento violento ou
suicídio.
Para o diagnóstico é necessário que o quadro não seja mais bem
explicado por qualquer outro transtorno psiquiátrico ou condição médica
geral. Muitas vezes, pode ser necessário exames complementares, como
eletroencefalograma, neuroimagem, dosagem de eletrólitos, glicemia de
jejum, dosagem das enzimas hepáticas e dosagem de hormônios tireoidianos,
que possam ajudar a afastar doenças clínico-neurológicas.
A psicose breve pode ter início após estressor evidente (quando os
sintomas se iniciam após um evento traumático de elevada relevância para o
paciente), sem estressor evidente, quando os sintomas não se iniciaram em
resposta a um evento traumático e, por último, com início no pós-parto
(psicose puerperal), quando os sintomas se iniciam durante a gestação ou
em até quatro semanas após o parto; nesse caso podemos ter uma possível
etiologia hormonal e tende a ser um quadro mais grave, muitas vezes
necessitando internação hospitalar. No Quadro 1 ilustramos alguns fatores
estressantes que podem precipitar uma psicose breve.

Quadro 1 - Possíveis estressores para psicose breve

Morte de familiar ou de alguém próximo

Acidente automobilístico grave ou outros acidentes graves

Desastres ambientais

Atividade militar na região

Guerras

Migração recente

Fonte: síntese elaborada pelos autores.

3. ASPECTOS SOBRE EPIDEMIOLOGIA E


ETIOLOGIA
A psicose breve é um transtorno incomum, apresentando uma variação de
sua ocorrência em diversas regiões no mundo, tornando a sua incidência e
prevalência exatas ainda desconhecidas. Populações que passaram por
grandes mudanças culturais (por exemplo, migrações) ou que foram
submetidas a desastres naturais possuem maior risco de desenvolver psicose
breve. O transtorno é mais frequente em indivíduos de classes
socioeconômicas mais baixas.
É mais comum em mulheres, podendo apresentar uma frequência até
duas vezes maior em comparação aos homens, por motivos ainda não
esclarecidos. Apesar de acometer qualquer idade, tem pico de incidência
entre a segunda e a terceira década de vida. Observam-se que indivíduos
com transtorno de personalidade, principalmente do grupo B (dramáticos),
por apresentarem dificuldades adaptativas no enfrentamento de
adversidades, têm uma maior predisposição a cursarem com psicose breve.
A etiologia e etiopatogenia ainda são desconhecidas. Mecanismos
psicológicos relacionados a enfrentamento inadequado a fatores traumáticos
possivelmente fazem parte – aparentemente não são os únicos causadores –
da geratriz de sintomas psicóticos breves.
O transtorno apresenta um bom prognóstico (vide Quadro 2), com
remissão completa dos sintomas em até um mês do início do quadro. Mas as
chances de recaídas são bastante comuns, principalmente após novos eventos
traumáticos, o que pode significar uma vulnerabilidade mental do indivíduo.
Por vezes, sintomas depressivos podem se iniciar após a resolução dos
sintomas psicóticos (fase depressiva pós-psicótica).

Quadro 2 - Fatores prognósticos da psicose breve

Ausência de história familiar ou pessoal de esquizofrenia ou psicose


breve

Bom Início súbito dos sintomas


prognóstico
Presença de gatilhos de estresse

Sintomas com curta duração

Pior Pacientes com outras síndromes psiquiátricas crônicas (por exemplo,


prognóstico esquizofrenia, transtornos de humor)

Fonte: adaptado de Sadock BJ; Sadock VA.4

4. DIAGNÓSTICO DIFERENCIAL
Diversas condições clínicas gerais e psiquiátricas podem mimetizar uma
psicose breve, principalmente porque o transtorno possui um início súbito e
evolução aguda. No Quadro 3, a seguir, observamos os principais
diagnósticos diferenciais da psicose breve.
Quadro 3 - Diagnósticos diferenciais de primeiro episódio
psicótico e de esquizofrenia

Condições Médicas Gerais Condições Psiquiátricas

Epilepsia Transtorno esquizofreniforme

Neoplasias cerebrais Transtorno esquizoafetivo

Doenças cerebrovasculares Transtorno psicótico breve

Trauma cranioencefálico Transtorno delirante

Transtornos de personalidade (esquizoide,


AIDS
esquizotípica, borderline)

Transtorno depressivo maior e Transtorno


Neurossífilis
bipolar

Lúpus eritematoso sistêmico Transtorno obsessivo-compulsivo (TOC)

Síndrome de Wernicke-Korsakoff Transtorno dismórfico corporal

Uso de substâncias (alucinógenos, alucinose Transtorno de espectro autista (TEA)


alcoólica, barbitúricos, cocaína, entre outros) Transtorno de comunicação

Delirium Transtorno factício e simulação

Fonte: Síntese elaborada pelos próprios autores

A distinção entre psicose breve e diagnósticos clínicos gerais baseia-se


nas informações obtidas na anamnese e no exame clínico, podendo ser
necessários alguns exames laboratoriais e de imagem, como comentado
anteriormente.
A apresentação predominantemente de sintomas psicóticos faz com que a
diferenciação com outros transtornos psicóticos seja bastante sutil. O
diagnóstico definitivo de psicose breve se dá após a resolução dos sintomas.
Os principais diagnósticos diferenciais que devemos ter em mente são as
demais nosologias que pertencem ao grupo das psicoses. A principal
peculiaridade que o transtorno psicótico breve apresenta é o seu tempo de
duração (mais de um dia, porém, menos de um mês), diferente da
esquizofrenia (que precisa ter curso maior que 6 meses) e transtorno
esquizofreniforme (com quadro maior que 1 mês e menor que 6 meses).
Outro fator de relevância é a ausência de uma fase prodrômica na psicose
breve, enquanto na esquizofrenia pode haver esse período.
O início de um quadro de um delírio (presente nos critérios diagnósticos
de psicose breve) pode ocasionar dúvida quanto ao diagnóstico de
transtorno delirante. Para diferenciarmos, precisamos observar a presença
de algum fator traumático relacionado e a cronologia dos sintomas. Outra
marca é a preservação das funções psíquicas no transtorno delirante
(excetuando o juízo de realidade), enquanto na psicose breve pode haver
uma desorganização do psiquismo de forma mais evidente, com alterações
do comportamento, sensopercepção, afetividade, consciência, atenção e
linguagem.
Na maioria das vezes, a psicose breve não apresenta quadros de humor
predominantes, mas sim uma labilidade afetiva intensa, associada com os
sintomas psicóticos. Por isso que a observação de sintomas depressivos ou
maníacos que ocorrem em conjunto com a fase ativa da psicose (com os
delírios e as alucinações) é motivo para pesquisarmos algum quadro de
humor associado, geralmente transtorno depressivo maior, transtorno
bipolar com características psicóticas e, até mesmo, transtorno
esquizoafetivo. A diferenciação reside na intensa agudez do quadro
psicótico breve e, novamente, na duração dos sintomas.
Os transtornos de personalidade do grupo A e do grupo B podem
apresentar episódios transitórios de psicose provocados por estressores,
principalmente em pacientes com transtorno de personalidade borderline.
Nesses transtornos, os sintomas psicóticos são transitórios e costumam durar
menos de um dia; além disso, é possível observar características marcantes
de transtornos de personalidade, como impulsividade ou prejuízo nas
relações interpessoais, que alertam para o diagnóstico de transtorno de
personalidade. Contudo, mesmo com diagnóstico prévio de transtorno de
personalidade, se os critérios para psicose breve forem cumpridos, o
diagnóstico comórbido deve ser feito. Lembremos que transtorno de
personalidade pode ser fator de risco para psicose breve.
A cronologia dos sintomas é um dos principais pontos que devemos
pesquisar durante o surgimento de sintomas psicóticos. Observar se o início
ocorreu após o uso de alguma substância – para excluirmos um provável
quadro de psicose por uso de substâncias – ou seguidamente a algum fator
clínico, principalmente em idosos, em que podemos suspeitar de um quadro
de delirium.

4.1. E aí? O que fazer?


O tratamento da psicose breve se inicia rotineiramente no ambiente de
urgência e emergência. Antes de prescrevermos o uso de algum
medicamento, devemos observar o estado dos sintomas e o nível de
periculosidade que o paciente apresenta para si e para os demais, analisando
a necessidade de internação hospitalar, pois o ambiente hospitalar pode ser
o local mais adequado para o tratamento. É preciso identificar possíveis
causas médicas gerais como epilepsia ou trauma cranioencefálico, ou o uso
de substâncias psicoativas, para o adequado suporte clínico.

5. FARMACOTERAPIA
Os objetivos do tratamento farmacológico são retirar o paciente da crise
aguda de sintomas psicóticos e evitar possíveis recaídas. No tratamento da
psicose breve o quadro é autolimitado, então, em menos de um mês os
sintomas terão sua resolução. Entretanto, os sintomas são graves boa parte
das vezes e requerem, por isso, intervenção imediata. Em ambiente de
urgência e emergência, podemos utilizar os antipsicóticos orais ou
parenterais (vide capítulo agitação psicomotora). Geralmente o uso dos
antipsicóticos retiram o paciente do estado psicótico agudo.
Após tranquilização inicial e investigação etiológica, é recomendado o
uso de antipsicóticos por um prazo de até 3 meses após a cessação dos
sintomas, com o objetivo de evitar possíveis recaídas. O emprego de
antipsicóticos de segunda geração é o mais indicado por seu menor
potencial de efeitos adversos e maior aderência ao tratamento.
Os benzodiazepínicos também podem ser utilizados nos pacientes em
estado psicótico agudo com o objetivo de diminuir a agitação psicomotora,
mas não são recomendados como tratamento a longo prazo, devido à sua
propensão à dependência.
6. TRATAMENTO NÃO FARMACOLÓGICO
Inicia-se após a estabilização do quadro psicótico e objetiva evitar falhas na
aderência, além de auxiliar em casos de recaídas ou sintomas residuais.
Psicoeducação para informar ao paciente e familiares sobre as
características benignas do quadro deve sempre ser executada. As
psicoterapias são estratégias que podem evitar recaídas e futuros novos
episódios psicóticos. Nas sessões psicoterapêuticas individuais, discute-se a
presença de possíveis estressores que podem ter desencadeado o episódio e é
realizada a proposição de estratégias de enfrentamento desses estressores.
A família deve ser abordada durante o processo, para orientações gerais e
engajamento em estratégias que evitem possíveis recaídas e falhas na adesão
da medicação. A família mantém um papel-chave dentro do processo de
reintegração psicológica e social do indivíduo. Para casos específicos, em
que haja uma clara disfunção intrafamiliar, a terapia de família deve ser
discutida e implementada.

6.1. Redescobrindo o caso (Pontos-Chave)

1 Sexo feminino

2 Idade de incidência
3 Evolução aguda
Comportamento
4
desorganizado
5 Delírio

6 Estressor evidente
Sem relação com substâncias
7
psicoativas

Sem relação com causas


8
médicas gerais

9 Desorganização do discurso

Delírio congruente com


10
estressor

11 Alucinações

Josefina encontra-se em uma crise psicótica aguda, marcada por delírios


niilistas e bizarros, relacionados ao fim do mundo, discurso frouxo e
comportamento desorganizado. É importante realçar que, apesar das
alterações de comportamento terem se iniciado há semanas (ansiedade e
preocupação), somente há poucos dias houve surgimento agudo de sintomas
psicóticos. Não há relação com o uso de substâncias ou a presença de
indícios orgânicos que justifiquem os sintomas. Em resumo: presença de
evento traumático recente, delírios relacionados ao evento, início agudo e
súbito, ausência de causas orgânicas justificáveis e epidemiologia
concordante com psicose breve.
De forma imediata, pela agitação psicomotora, pode ser feita contenção
química e física. Pelo risco que vem oferecendo para si e para terceiros,
Josefina deve ser internada. Apesar de a psicose breve ser a principal
hipótese diagnóstica, apenas o tempo e a evolução dos sintomas – que
devem ser inferiores a 30 dias – firmarão o prognóstico e confirmação o
diagnóstico.

Exemplo de uma prescrição para Josefina


Haloperidol 5mg + Prometazina 50mg: aplicar 1 ampola de cada
intramuscular imediatamente.
Após estabilizada a agitação:
Risperidona 2mg, 1 comprimido, via oral, à noite.
+
Clonazepam 2mg, meio comprimido, via oral, de 12/12h

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Schizophrenia Bulletin 2016; 42(6): 1395-1406.
14. Del-Ben CM, Rufino ACTBF, Azevedo-Marques JM, Menezes PR. Diagnóstico diferencial de
primeiro episódio psicótico: importância da abordagem otimizada nas emergências
psiquiátricas. Rev. Bras. Psiquiatr. 2010 Oct.; 32(Suppl 2): S78-S86.

SIGLAS

• CAPS Centro de Atenção Psicossocial


• DSM-5 Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais
• TOC Transtorno Obsessivo-Compulsivo
• TEA Transtorno do Espectro Autista
1. CASO CLÍNICO
Tereza Cristina, 30 anos, educadora física, comparece ao
atendimento com sua irmã. Esta relata que há 2 meses percebe
paciente com discurso e comportamento “estranhos”.
Acompanhante conta que paciente começou, de forma súbita, a falar
sozinha e a dizer que Donald Trump a persegue por meio do FBI.
Não sai de casa por acreditar que pode ser capturada e cobre as
janelas para “evitar que câmeras a filmem”. Quadro iniciado após
paciente se separar do esposo e perder emprego que mantinha há 7
anos numa academia.
Nega uso de substâncias psicoativas ou sinais clínicos de alguma
patologia.

Exame mental: paciente alheia e com olhar perplexo. Tem


discurso frouxo e delirante persecutório, mas com boa
modulação afetiva.

2. DISCUTINDO O DIAGNÓSTICO
Em 1939, o psiquiatra norueguês Gabriel Langfeldt propôs o termo
esquizofreniforme ao transtorno apresentado por um grupo
heterogêneo de pacientes com sintomas similares aos da
esquizofrenia, mas que os manifestavam com tempo menor de
duração e tinham bom prognóstico.
Não há ainda um desfecho claro para esse transtorno, visto que
sua relação com a esquizofrenia e os transtornos de humor ainda
não está elucidada. Apesar de a sua descrição ser conhecida há
décadas, ainda que sob diferentes estereótipos, o que talvez
justifique essa falta de clareza do transtorno esquizofreniforme
possivelmente incide na sua aparente baixa prevalência e na
dificuldade de interpretação, diferenciação e classificação dessa
patologia. É provável, inclusive, que muitos estudos tenham
resultados afetados pelo errôneo agrupamento desse transtorno com
outras doenças de natureza similar.
O transtorno esquizofreniforme possui as mesmas características
essenciais da esquizofrenia. O critério A do diagnóstico de ambas é
o mesmo e requer dois ou mais dos seguintes: delírios, alucinações,
discurso desorganizado, comportamento grosseiramente
desorganizado ou catatônico, e sintomas negativos.
A maior diferença entre essas patologias é que, no caso do
transtorno esquizofreniforme, a duração total da doença, incluindo
as fases prodrômica, ativa e residual, é de, pelo menos, um mês e
no máximo seis meses, configurando o critério B dos critérios de
diagnóstico. Se ultrapassar esse marco, trata-se de esquizofrenia ou
outro transtorno psicótico a ser investigado.
O critério C ressalta que os sintomas não preenchem critérios
para transtorno esquizoafetivo, transtorno depressivo ou transtorno
bipolar. Em outras palavras, não pode haver mania, depressão,
episódios com características mistas e, caso existam, qualquer
perturbação de humor deve estar presente durante apenas uma
minoria do tempo. Há ainda o critério D: a perturbação não é
atribuível aos efeitos fisiológicos de uma substância, como
medicamento ou droga de abuso, ou a outra condição médica. Há a
observação sobre especificar quanto à:

1. Com características de bom prognóstico – esse


especificador exige a presença de, pelo menos, duas das
seguintes características: início dos sintomas psicóticos
proeminentes em quatro semanas desde a primeira
mudança percebida no comportamento ou no
funcionamento habitual; confusão ou perplexidade; bom
funcionamento social e profissional pré-mórbido; ausência
de afeto embotado ou plano.
2. Sem características de bom prognóstico – esse
especificador é aplicado se duas ou mais entre as
características anteriores não estiveram presentes.
3. Classificação da gravidade atual – por meio de uma
avaliação quantitativa dos sintomas primários de psicose, o
que inclui delírios, alucinações, desorganização do
discurso, comportamento psicomotor anormal e sintomas
negativos. Cada um desses sintomas pode ser classificado
em relação à gravidade atual (mais grave nos últimos sete
dias), numa escala que vai de 0 (não presente) a 4 (presente
e grave). Mas o diagnóstico pode ser feito sem o uso desse
último especificador.
Esquema 1 - Diagnóstico e especificadores do transtorno
esquizofreniforme
Fonte: adaptado de American Psychiatric Association.5

Há duas situações possíveis para o diagnóstico de transtorno


esquizofreniforme: 1) quando um episódio da doença dura entre 1 e
6 meses e o paciente recupera-se dentro desse prazo; ou 2) quando o
indivíduo se encontra sintomático dentro do prazo de 6 meses
(tempo necessário para diagnosticar a esquizofrenia) e ainda não se
recuperou. Nessa última situação, o diagnóstico deve ser registrado
como “transtorno esquizofreniforme provisório”, visto que ainda
não é possível determinar se o paciente vai se recuperar no período
de seis meses ou se evoluirá com sintomas ativos ou residuais além
desse prazo. Reiterando que, se a perturbação persistir por mais de
seis meses, o diagnóstico deve ser mudado para esquizofrenia.
Apesar da potencial possibilidade de prejuízos social e profissional
se fazer presente, esses prejuízos não são necessários para um
diagnóstico de desordem esquizofreniforme.
Dentro do universo de características associadas que apoiam o
diagnóstico, tal qual na esquizofrenia, atualmente não existem
exames laboratoriais ou testes psicométricos para se firmar o
diagnóstico de transtorno esquizofreniforme.

3. ASPECTOS SOBRE
EPIDEMIOLOGIA E
ETIOLOGIA
Aproximadamente uma em cada mil pessoas desenvolve transtorno
esquizofreniforme durante sua vida. Aparentemente, o distúrbio
ocorre igualmente em homens e mulheres adultos jovens, na faixa
etária entre 18 e 24 anos. No entanto, os homens podem ser
atingidos mais jovens, enquanto nas mulheres a frequência é maior
entre 24 e 35 anos.
A incidência do transtorno esquizofreniforme em diferentes
contextos socioculturais é provavelmente similar à observada na
esquizofrenia. Nos Estados Unidos e em outros países
desenvolvidos, a incidência é baixa, possivelmente cinco vezes
menor que a da esquizofrenia. Nos países em desenvolvimento, a
incidência pode ser maior, em especial para o especificador “com
características de bom prognóstico”; em alguns desses contextos, o
transtorno esquizofreniforme pode ser tão comum quanto a
esquizofrenia.
Cerca de um terço dos indivíduos com diagnóstico inicial de
transtorno esquizofreniforme (provisório) recupera-se em seis
meses, e o transtorno esquizofreniforme é seu diagnóstico final. A
maioria dos dois terços restantes vai eventualmente receber um
diagnóstico de esquizofrenia ou transtorno esquizoafetivo. Aqueles
que apresentam recuperação comumente exibem características de
bom prognóstico (por exemplo, início agudo, pródromo breve, falta
de deterioração psicossocial e sintomas de humor proeminentes).
Em alguns casos, as pessoas com transtorno esquizofreniforme
também apresentam sintomas de depressão, o que aumenta o risco
de suicídio. O transtorno esquizofreniforme é uma categoria
heterogênea e com etiologia multifatorial. Os fatores possivelmente
envolvidos são genéticos, bioquímicos e ambientais, a exemplo da
esquizofrenia.

4. DIAGNÓSTICOS DIFERENCIAIS
Uma gama variada de transtornos mentais e condições médicas
pode se manifestar com sintomas psicóticos, que precisam ser
considerados como diagnósticos diferenciais do transtorno
esquizofreniforme. Os principais diagnósticos diferenciais são o
transtorno psicótico breve e a esquizofrenia. A atenção deve se
concentrar na duração do quadro (somatória de sintomas e
pródromo), no padrão de início e a presença de alterações de humor,
abuso de substâncias psicoativas e outras doenças médicas gerais
que possam cursar com sintomas psicóticos.

Figura 2 - Diagnósticos diferenciais do transtorno


esquizofreniforme
Fonte: elaborada pelos autores.

4.1. E aí? O que fazer?


O tratamento do transtorno esquizofreniforme é semelhante ao da
esquizofrenia, que tem como objetivos a redução dos sintomas e a
maximização da funcionalidade do paciente. Em relação aos
sintomas positivos, como delírios, alucinações, discurso
desorganizado e agitação psicomotora, os antipsicóticos são as
drogas de escolha. Pacientes com transtorno esquizofreniforme
costumam apresentar melhora mais rapidamente quando
comparados a pacientes esquizofrênicos. Diferentemente da
esquizofrenia, o tempo de uso dos antipsicóticos pode ser curto (em
média 6 meses) naqueles pacientes que têm total recuperação
sintomática e funcional. A hospitalização pode ser necessária em
pacientes que oferecem risco para si e/ou para terceiros.
Já no que diz respeito às intervenções psicoterapêuticas, a
necessidade de reabilitação e apoio psicossocial visa reduzir a
deterioração do funcionamento, embora tais prejuízos sejam pouco
presentes no esquizofreniforme. A orientação ocupacional ou
educacional também faz parte do manejo terapêutico. A psicoterapia
pode ser útil para a elaboração de insight quanto aos sintomas e o
controle sobre episódios futuros.
A psicoeducação de familiares se vale para esclarecimentos
quanto ao papel da medicação, dos sinais de alerta precoces
indicativos de retorno da psicose, o impacto da desordem no
contexto pessoal e na vida familiar, social e profissional, e da
importância de gestão psicossocial futura, incluindo intensa
reabilitação ocupacional.

4.2. Redescobrindo o caso


1 Idade de incidência

Atividade laboral e laços sociais pré-


2
mórbidos

3 Tempo dos sintomas

4 Sem pródromo

5 Atitude alucinatória

6 Delírio persecutório

7 Aparente confusão mental

8 Sem alteração do afeto

Tereza Cristina tem curso súbito de sintomas psicóticos após


estressores bem identificados. Com essa assertiva poderíamos
inferir um quadro psicótico breve, contudo, a evolução dos sintomas
ultrapassa um mês, inviabilizando tal diagnóstico. Transtorno
esquizofreniforme provisório (pois a paciente encontra-se
sintomática) é a condição apresentada pela nossa paciente. O curso
sem pródromo, a presença de sinais de perplexidade, a ausência de
alteração afetiva e o bom funcionamento pré-mórbido
(relacionamento, formação e manutenção de trabalho de forma
estável) conferem sinais de bom prognóstico, o que pode predizer
uma não evolução para esquizofrenia. O tratamento farmacológico
com antipsicótico deve ser iniciado e mantido até a remissão
completa dos sintomas. Caso haja total recuperação, inclusive
funcional, o clínico pode optar por interromper o tratamento de
forma gradual ao fim de 6 meses.

Exemplo de uma prescrição para Tereza Cristina


Aripiprazol 10 mg, 1 comprimido, via oral, por dia.
Referências
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disorder]. Vertex 2012; 23(104): 287-298.
1. CASO CLÍNICO
Paula, 48 anos, casada, chega sozinha ao atendimento na unidade
básica de saúde do seu bairro, referindo que exala um odor
desagradável e que, por onde passa, as pessoas comentam e evitam
a sua companhia devido a esse fato. Relata que apresenta o quadro
há 10 anos e coleciona inúmeros prejuízos em sua vida profissional
e pessoal, culminando, recentemente, com um pedido de demissão
por não suportar o constrangimento e os julgamentos a que se
submetia todos os dias no transporte coletivo. Sente-se inútil e não
tem mais interesse em interagir socialmente.
Não apresenta comorbidades. Nega tabagismo e etilismo, bem
como uso de drogas ilícitas. Trabalha como técnica de enfermagem
em uma UTI.

Exame mental: paciente apresenta importante labilidade


emocional, com choro constante durante a consulta e discurso
delirante somático.

2. DISCUTINDO O DIAGNÓSTICO
O transtorno delirante se caracteriza essencialmente pela presença
de um ou mais delírios que persistem por pelo menos um mês e, em
geral, são caracterizados por uma ideia fixa, monotemática e sem
conteúdo bizarro, além de não ocasionar deterioração da
personalidade do paciente. Os delírios giram em torno de fatos
possíveis de ocorrer na vida cotidiana, como traição conjugal ou
estar doente.
O termo transtorno delirante surgiu em 1987, após a revisão da
Terceira Edição do Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos
Mentais (DSM-III). A condição era frequentemente tratada e
intitulada como paranoia, termo considerado vago e inapropriado
por alguns pesquisadores. Foi por muitas vezes tratada como uma
forma de esquizofrenia.

a. De acordo com o DSM-5, os seguintes critérios legitimam


o diagnóstico do transtorno delirante:
b. A presença de um delírio (ou mais) com duração de um
mês ou mais.
c. O Critério A para esquizofrenia jamais foi atendido. Nota:
Alucinações, quando presentes, não são proeminentes e têm
relação com o tema do delírio (p. ex., a sensação de estar
infestado de insetos associada a delírios de infestação).
d. Exceto pelo impacto do(s) delírio(s) ou de seus
desdobramentos, o funcionamento não está acentuadamente
prejudicado, e o comportamento não é claramente bizarro ou
esquisito.
e. Se episódios maníacos ou depressivos ocorreram, eles
foram breves em comparação com a duração dos períodos
delirantes.
f. A perturbação não é atribuível aos efeitos fisiológicos de
uma substância ou a outra condição médica, não sendo mais
bem explicada por outro transtorno mental, como transtorno
dismórfico corporal ou transtorno obsessivo-compulsivo.
É importante ampliar a avaliação do quadro, levando em conta
também os sintomas relacionados à cognição, à depressão e à
mania, além das questões sociais que envolvem o paciente:
problemas conjugais, familiares e profissionais. Feito o diagnóstico,
é importante a identificação dos subtipos, que são eles:

• Erotomaníaco: o tema central do delírio é o de que outra


pessoa está apaixonada pelo indivíduo. Geralmente essa
outra pessoa tem status social mais elevado que o paciente
(ex.: patrão, pessoa famosa etc.).

• Grandioso: existe a convicção de ter algum grande talento


(embora não reconhecido), status ou ter feito uma
descoberta importante.

• Ciumento: há ideia fixa de que o cônjuge ou parceiro é


infiel.

• Persecutório: envolve a crença de que o próprio indivíduo


está sendo vítima de conspiração, enganado, espionado,
perseguido, envenenado ou drogado, difamado
maliciosamente, assediado ou obstruído na busca de
objetivos de longo prazo.

• Somático: esse subtipo aplica-se quando o tema central do


delírio envolve funções ou sensações corporais.

• Misto: esse subtipo aplica-se quando não há um tema


delirante predominante.

• Não especificado: esse subtipo aplica-se quando a crença


delirante dominante não pode ser determinada com clareza
ou não está descrita nos tipos específicos.

Indivíduos com transtorno delirante podem ser capazes de


descrever, de forma factual, que outras pessoas veem suas crenças
como irracionais; são incapazes, no entanto, de aceitar isso – pode
existir “insight dos fatos”, mas não um insight verdadeiro. Muitos
indivíduos desenvolvem humor irritável, que costuma ser
compreendido como uma reação às suas crenças delirantes.
7. ASPECTOS SOBRE
EPIDEMIOLOGIA E
ETIOLOGIA
A prevalência de casos foi estimada em 0,2%, com maior frequência
do subtipo persecutório, sendo o tipo ciumento o mais comum em
indivíduos do sexo masculino. As mulheres são mais acometidas do
que os homens em uma proporção de 4:3. O transtorno delirante
tende a acometer indivíduos na quarta e quinta décadas de vida com
idade média de 48,8 nos homens e 44,9 anos para as mulheres, e o
acometimento varia de 29 a 78 anos entre mulheres e 17 a 72 anos
para homens.
Os fatores de risco associados ao transtorno delirante são: sexo
feminino, deficiência auditiva, deficiência visual, isolamento social,
doenças cerebrais, ser solteiro, história familiar (principalmente de
transtornos psicóticos), sintomas depressivos e TCE (trauma
cranioencefálico).
Em geral, os pacientes com transtorno delirante acabam
desenvolvendo sintomas ansiosos que muitas vezes culminam em
depressão.

8. DIAGNÓSTICO DIFERENCIAL
Antes de se estabelecer o diagnóstico é de fundamental importância
levar em conta outras patologias que podem cursar com sintomas
psicóticos. Muitas vezes a diferença é sutil, e uma boa anamnese e a
avaliação do estado mental serão primordiais.
Na esquizofrenia, o paciente apresenta alucinações –
geralmente auditivas – de forma mais proeminente. Além disso,
frequentemente, o esquizofrênico tem maiores prejuízos sociais –
nos relacionamentos, nas atividades laborais, no autocuidado – e
tem alterações em várias funções mentais, como a presença de
neologismos, afrouxamento dos nexos do discurso, embotamento
afetivo e estereotipias. Em contrapartida, o paciente com transtorno
delirante não apresenta desintegração da personalidade e, por isso,
mantém as funções mentais (excetuando o juízo de realidade) de
forma intacta e tende a manter seu funcionamento próximo à
normalidade.
Casos graves de transtorno depressivo maior podem cursar
com delírios, falta de insight e pensamentos desorganizados.
Contudo, pacientes depressivos têm tais sintomas psicóticos apenas
na vigência do quadro de humor. Os delírios tendem a ter temática
congruente com a alteração afetiva (por exemplo: delírios de ruína
ou culpa). O mesmo raciocínio pode ser aplicado em pacientes com
transtorno bipolar, nos quais a presença de sintomas psicóticos
coincide com a presença da polarização do humor, além de também
serem congruentes com a afetividade (por exemplo: delírio de
grandeza ou místico/religioso na mania).
Pacientes com delírios e história de déficits cognitivos
progressivos ou agudos podem levantar a suspeita de transtorno
neurocognitivo (demência) e delirium, respectivamente. Tendem a
apresentar em pacientes com idade mais avançada (acima dos 60
anos) e têm história característica de prejuízo nas cognições. Em
caso do delirium há também indícios de causa orgânica para o
surgimento da psicose (por exemplo: sinais clínicos de infecção,
distúrbio metabólico, abstinência de alguma substância de uso
crônico ou intoxicação).

8.1. E aí, o que fazer?


O tratamento para o Transtorno Delirante ainda é um desafio para o
médico e para o paciente. Os resultados positivos descritos na
literatura, bem como na prática clínica, em geral, vêm do tripé:
antidepressivos, antipsicóticos e psicoterapia.
9. FARMACOTERAPIA
Os antipsicóticos sempre foram uma opção medicamentosa e por
muito tempo utilizados como monoterapia, com resultados pouco
expressivos. A Tabela 1 sintetiza os antipsicóticos utilizados
rotineiramente no tratamento do transtorno delirante. Na Tabela 2
ilustram-se os antidepressivos que são mais costumeiramente
prescritos. Deve-se realçar que a utilização dessa classe –
antidepressivos – pretende amenizar sintomas secundários (ansiosos
e depressivos) à repercussão da psicose na vida do sujeito.

Tabela 1 - Antipsicóticos para o tratamento de transtorno delirante


Antipsicótico Intervalo de dose

Risperidona 0,5–6mg

Olanzapina 10–20mg

Quetiapina 25–700mg

Clozapina 25–500mg

Amissulprida 100–400mg

Paliperidona 6–9mg

Pimozida 1–12mg

Flufenazina 12,5–25mg (depósito a cada 15 dias)

1–20mg / 25–150mg (depósito a cada


Haloperidol
mês)

Clorpromazina 150–300mg

Periciazina 5mg

Fonte: adaptado de Muñoz-Negro, Cervilla.10


Tabela 2 - Antidepressivos usuais para transtorno delirante
Antidepressivo Dose média

Paroxetina 60mg

Sertralina 50mg

Fluoxetina 20mg

Clomipramina 60–120mg

Fonte: adaptado de Muñoz-Negro, Cervilla.10

10. TRATAMENTO NÃO


FARMACOLÓGICO
A psicoterapia é parte fundamental no transtorno delirante. No
momento do diagnóstico o paciente deve ser orientado sobre tal
importância e que a regularidade das sessões é primordial para o
êxito. A terapia mais empregada tem sido a cognitivo-
comportamental, em que o terapeuta trabalha as crenças básicas do
paciente sobre si mesmo, seu mundo e outras pessoas, estimulando
sempre o insight.
Alguns estudos comparativos mostraram que terapias
individuais são mais efetivas do que em grupo e, nessa conjuntura,
faz-se essencial o estabelecimento de uma boa relação entre
paciente e terapeuta, bem como a identificação com a abordagem
utilizada.
O início do tratamento pode resultar em um aumento da
ansiedade e da irritabilidade devido às discussões que sempre vão
girar em torno dos delírios, que para o paciente são verdade
absoluta. A modificação das crenças disfuncionais leva à melhora
duradoura do humor e do comportamento do paciente.
10.1. Redescobrindo o caso

1 Sexo feminino

2 Idade de incidência

3 Crença delirante

4 Prejuízos relacionados ao delírio

5 Sintomas depressivos reativos

6 Atividades social e laboral preservadas

Paula, apesar de apresentar crença delirante, mantém suas


funções psíquicas praticamente intactas e, consequentemente, sua
vida segue com prejuízos apenas relacionados ao delírio. Não há
quebra da personalidade ou alterações significativas no
comportamento, como acontece em outras condições psicóticas
como a esquizofrenia. Por manter cognições preservadas, é comum
que haja sofrimento afetivo intenso devido às crenças delirantes. No
caso de Paula, um quadro depressivo comórbido se apresenta.
Além da introdução do tratamento medicamentoso, o clínico
deve formar aliança terapêutica para gradativamente despertar o
insight da paciente (tarefa nada fácil no transtorno delirante).
Orientar o início do tratamento psicoterápico faz parte do primeiro
manejo.

Exemplo de uma prescrição para Paula


Pimozida 4mg, 1 comprimido, via oral, à noite.
+
Fluoxetina 20mg, 1 comprimido, via oral, após o café da
manhã.

Referências
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Conceição do, Batista-Neves Susana Carolina, Miranda-
Scippa Ângela, Sampaio Aline Santos. Uso de fluoxetina no
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SIGLAS

• TCE Trauma Cranioencefálico


1. CASO CLÍNICO
Mário, 32 anos, vem para o atendimento com sua esposa. Ela relata que
o paciente vem há algumas semanas comprando excessivamente
(incluindo coisas desnecessárias e pelas quais não podem pagar), passa
o dia andando de moto em alta velocidade, praticamente não dorme,
fala muito e de forma acelerada, além de estar facilmente irritado.
Paciente refere que alienígenas implantaram um chip em sua cabeça e,
por meio dele, escuta-os conversando. Diz ainda que extraterrestres de
um planeta rival o perseguem.
Esposa diz que há 7 anos paciente vem tendo crises similares à atual
e que, mesmo nos intervalos intercrises, não tem funcionalidade laboral
e tem baixa interação social.
Mário foi então internado e evoluiu após algumas semanas com
melhora considerável do quadro. Alguns meses após internação, em
consulta de retorno, Mário permanecia convicto que estava com um
chip na cabeça e que era perseguido por aliens.

Exame mental: calmo, cooperativo, discurso de curso normal e


conexo, sem polarização do humor, afeto hipomodulado e delírio
bizarro/persecutório.

2. DISCUTINDO O DIAGNÓSTICO
Duas patologias psiquiátricas muito comuns e muito discutidas no meio
profissional e social são o Transtorno Afetivo Bipolar (TAB) e a
Esquizofrenia. Na prática clínica podemos, por vezes, nos depararmos
com pacientes portadores de um transtorno à parte, que pode simular
diagnósticos errôneos dos distúrbios supracitados; trata-se do chamado
Transtorno Esquizoafetivo.
O termo “esquizoafetivo” foi introduzido pelo psiquiatra russo
Jacob S. Kasanin em um artigo publicado no ano de 1933 e é utilizado
até os dias de hoje no meio profissional para definir esse distúrbio que
une em sua apresentação os sintomas de humor e os sintomas
psicóticos. Por mais que se assemelhe e se apresente como uma
“fronteira” entre a psicose e a afetividade, não podemos definir o
transtorno esquizoafetivo como sendo somente uma espécie de “fusão”
do TAB com a esquizofrenia. Essa condição deve ser encarada como
um diagnóstico à parte e que possui os seus critérios de forma
independente dos transtornos a que se assemelha.
O Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM-
5) nos traz como critérios diagnósticos os seguintes pontos:

• Deve haver um período ininterrupto em que haja


concomitantemente um episódio depressivo e/ou maníaco e o
critério A da esquizofrenia.

• Deve haver a presença de delírios e/ou alucinações por pelo


menos 2 semanas na ausência de episódio maníaco ou
depressivo vigente.

• Os sintomas afetivos devem estar presentes na maior parte da


duração da fase ativa da doença.

• Os sintomas psicóticos não podem estar relacionados ao uso


de substâncias ou a outras condições clínicas.

Ressalta-se que, como em muitas outras patologias, nem todos os


pacientes se apresentarão da mesma forma, para isso, os pacientes
esquizoafetivos são divididos em dois principais subtipos:

1. Subtipo bipolar: quando um episódio maníaco faz parte da


apresentação. Nesse subtipo pode existir a ocorrência de
episódios depressivos.
2. Subtipo depressivo: quando somente episódios depressivos
maiores fazem parte da apresentação, não havendo sintomas de
mania.

Quando falamos de sintomas negativos no paciente com transtorno


esquizoafetivo, podemos notar que esses sintomas, embora presentes, se
apresentam de forma mais amena quando comparados com outras
síndromes psicóticas como a esquizofrenia, por exemplo. Esses
pacientes podem cursar com prejuízo do funcionamento profissional e
no contato social, negligências consigo mesmo (apresentando um
autocuidado prejudicado), ausência de insight e comprometimento
cognitivo.
É necessário frisar que o diagnóstico de transtorno esquizoafetivo,
assim como muitos outros, deve ser sempre reavaliado pelo profissional
e, se necessário, reajustes na medicação e na abordagem devem ser
realizados. Estudos indicam, inclusive, que uma parcela dos pacientes
que recebem o diagnóstico de transtorno esquizoafetivo podem ter este
modificado para outro transtorno quando reavaliado, ou, ainda, podem
receber o diagnóstico de um transtorno concomitante. Ademais, nesses
indivíduos, tal cuidado de reavaliação deve ser realizado de forma mais
atenta, independentemente da suspeita ou da existência confirmada de
outra patologia, visto que o paciente esquizoafetivo pode necessitar de
uma abordagem diferenciada em momentos distintos do curso da
doença, ora para a psicose, ora para as alterações do humor que esse
paciente apresenta (mania ou depressão).
Um dos entraves vistos quando se fala sobre o diagnóstico correto
do transtorno esquizoafetivo consiste nos extremos entre o
subdiagnóstico desse transtorno e o diagnóstico equivocado dele.
Vejamos: alguns livros, artigos e periódicos podem tratar de forma sutil
o transtorno esquizoafetivo como sendo apenas um diagnóstico de
exclusão, ou seja, se o meu paciente apresenta sintomas de psicose com
mania e/ou depressão e não preenche todos os critérios necessários para
os principais transtornos associados a esses sintomas, ele é um paciente
esquizoafetivo. Muitas vezes esse tipo de associação pode não levar em
consideração os outros possíveis diagnósticos diferenciais e os critérios
diagnósticos que foram citados neste capítulo.
Já quando falamos do outro extremo, pesquisas apontam que no
meio profissional não é incomum que alguns médicos, na intenção de
amenizar o diagnóstico e evitar o estigma sofrido por pacientes
esquizofrênicos ou bipolares, diagnostiquem equivocadamente esses
indivíduos com transtorno esquizoafetivo, utilizando-se de padrões
enraizados ao invés de se ater aos critérios diagnósticos necessários.
Habitualmente, tais pacientes são diagnosticados com transtorno
bipolar ou esquizofrenia antes de serem finalmente diagnosticados com
transtorno esquizoafetivo.
Na maioria dos casos acredita-se que o transtorno esquizoafetivo
possui um prognóstico melhor do que a esquizofrenia e pior que o TAB,
todavia, pacientes esquizoafetivos com predominância de sintomas
esquizofrênicos têm um prognóstico pior quando comparados com
aqueles que têm predominância de distúrbios afetivos. Tais
considerações não se aplicam a todos os casos e devem ser avaliadas de
forma individual.

3. ASPECTOS SOBRE
EPIDEMIOLOGIA E ETIOLOGIA
Estima-se que menos de 1% das pessoas apresente o diagnóstico de
Transtorno Esquizoafetivo. Tratando-se da questão de gênero, a
prevalência é de 1:1 no subtipo bipolar, enquanto no subtipo depressivo
a prevalência é de 2:1, sendo o sexo feminino mais afetado. Pacientes
mais jovens tendem a manifestar o subtipo bipolar, enquanto pacientes
mais velhos tendem para o subtipo depressivo.
Como em muitos outros transtornos psiquiátricos, a etiologia do
transtorno esquizoafetivo se pauta em muitas hipóteses e poucas
conclusões. Alguns estudos sugerem como hipótese uma etiologia
genética, na qual pacientes com histórico familiar de esquizofrenia e
TAB estão mais sujeitos ao desenvolvimento de um quadro
esquizoafetivo, podendo a influência mutável dos genes contribuir com
o início e curso do quadro.
Já quando se fala de alterações neurológicas no paciente com
transtorno esquizoafetivo os estudos são ainda mais escassos. Alguns
sugerem que parte desses pacientes podem apresentar uma redução do
córtex pré-frontal e do hipocampo e, eventualmente, uma deterioração
neurocognitiva.
Por fim, estudos também sugerem que eventos de vida como perda
familiar, divórcios, ausência de figura materna durante a infância e
histórico de tentativas de suicídio podem influenciar no
desenvolvimento do transtorno. No entanto, tais asserções ainda
necessitam de mais pesquisas para confirmar os seus reais impactos no
curso patológico.
Devido à necessidade de mais estudos científicos, a real causa do
transtorno esquizoafetivo permanece desconhecida. Até o presente
momento, a hipótese de alterações genéticas associadas a fatores
ambientais aparenta ser a melhor aceita.

4. DIAGNÓSTICO DIFERENCIAL
Quando tratamos dos possíveis diagnósticos diferenciais do transtorno
esquizoafetivo, imediatamente pensamos nos dois principais: TAB e
esquizofrenia, dois distúrbios muito citados ao longo deste capítulo.
Contudo, outros transtornos comuns no meio profissional podem
apresentar semelhanças que podem causar confusão no diagnóstico de
pacientes esquizoafetivos. O Quadro 1 traz um resumo desses
principais diagnósticos.

Quadro 1 - Diagnósticos Diferenciais do Transtorno Esquizoafetivo


Transtorno afetivo bipolar

Esquizofrenia

Depressão psicótica
Transtorno psicótico breve

Transtorno esquizofreniforme

Transtorno por uso de substâncias

Psicose secundária a causas orgânicas

Fonte: elaborado pelos autores.

Primeiramente podemos questionar: o que existe no transtorno


esquizoafetivo que não existe no TAB ou na depressão psicótica? A
resposta seria o chamado componente esquizofrênico. Mesmo sabendo
que no TAB pode haver sintomas psicóticos, é necessário frisar que
estes se apresentam apenas na vigência de uma crise de humor (mania
ou depressão), enquanto no transtorno esquizoafetivo a psicose pode se
manifestar fora das crises de humor. Além disso, as crenças delirantes
do transtorno esquizoafetivo tendem a ser distintas dos delírios do TAB.
No transtorno esquizoafetivo comumente são bizarros e geralmente
acompanhados de pensamento desorganizado. Os sintomas psicóticos
no transtorno bipolar tradicionalmente são congruentes com o humor:
delírios místico-religiosos e de grandeza na mania, e de
ruína/niilista/culpa na depressão. Não raros são os episódios em que a
psicose no transtorno esquizoafetivo não conflua com o episódio de
humor corrente.
Já quando falamos da distinção entre o paciente com esquizofrenia
e o paciente esquizoafetivo, a principal característica que difere esses
transtornos é a alteração do humor. É mandatório que o paciente com
transtorno esquizoafetivo tenha manifestação de sintomas de humor,
seja para o polo da mania, seja para o polo da depressão. O paciente
esquizofrênico pode cursar com sintomas de humor durante o curso
patológico, entretanto, esses costumam ser mais breves, podendo
ocorrer na chamada fase prodrômica. Deve-se tomar cuidado no
processo de investigação diagnóstica para não confundir os sintomas
negativos da esquizofrenia com os sintomas de humor presentes no
esquizoafetivo. O mesmo vale para outros transtornos psicóticos, como
o transtorno psicótico breve e o esquizofreniforme; nesses
transtornos, a máxima de que os sintomas de humor não perduram
durante a maior parte do curso da doença como no esquizoafetivo
permanece.
Sempre que nos depararmos com um paciente com suspeita de
transtorno esquizoafetivo, devemos questionar durante a entrevista se
ele faz uso de substâncias, visto que esse uso pode induzir tanto
sintomas psicóticos quanto sintomas de humor. Estende-se esse
questionamento para transtornos psicóticos secundários a causas
orgânicas, um exemplo claro é a epilepsia, já que pacientes acometidos
por esses transtornos podem cursar com sintomas como alucinação e
ideias de referência. Lembrando que não podemos descartar a
existência de pacientes que possuem transtorno esquizoafetivo e fazem
uso de substâncias ou possuem alguma condição secundária. Investigar
cada caso e buscar a origem dos sintomas é fundamental para abordar
esses indivíduos da forma correta.

4.1. E aí? O que fazer?


O primeiro passo diante de um paciente com sintomas compatíveis de
transtorno esquizoafetivo é a realização de uma boa entrevista
psiquiátrica. Averiguar se o paciente preenche os critérios diagnósticos,
o seu histórico pessoal e familiar e os eventos de vida dele são
fundamentais para traçar uma conduta e um tratamento adequado para
esse paciente. Lembre-se sempre que o paciente esquizoafetivo
necessita ser reavaliado constantemente, visto que o curso patológico
pode ser modificado. Mudanças nas medicações, nas dosagens e nas
abordagens psicoterapêuticas podem ser necessárias e devem ser feitas
dependendo de cada caso.

5. FARMACOTERAPIA
Não existe tratamento medicamentoso específico para os pacientes
esquizoafetivos. Sendo assim, nos cabe tratar nesses indivíduos os
diagnósticos sindrômicos que eles apresentam. A sintomatologia do
transtorno esquizoafetivo é composta por três grandes síndromes: a
síndrome psicótica, a síndrome maníaca e a síndrome depressiva.
Logo, quando falamos de tratamento medicamentoso, deve vir em
nossa mente as três classes medicamentosas mais utilizadas para tratar
essas síndromes, ou seja, os antipsicóticos, os estabilizadores do
humor e os antidepressivos. A partir daí a conduta pode variar, entre
usar somente uma classe medicamentosa ou a combinação de duas ou
três. Lembrando sempre que o principal objetivo do tratamento
medicamentoso é o controle dos sintomas psicóticos e de humor. A
Tabela 1 traz um resumo das medicações que podem ser utilizadas no
tratamento do transtorno esquizoafetivo.

Tabela 1 - Medicações utilizadas no tratamento do transtorno


esquizoafetivo
Medicação Classe Posologia usual

Ziprasidona Antipsicótico atípico 80mg – 160mg

Olanzapina Antipsicótico atípico 5mg – 20mg

Risperidona Antipsicótico atípico 2mg – 6mg

Paliperidona Antipsicótico atípico 6mg – 12mg

Quetiapina Antipsicótico atípico 200mg – 800mg

Clozapina Antipsicótico atípico 300mg – 900 mg

Clorpromazina Antipsicótico atípico 300mg – 600mg

Aripiprazol Antipsicótico atípico 10mg – 30mg

Haloperidol Antipsicótico típico 5mg – 15mg

Lítio Estabilizador do humor 600 mg – 1800 mg

Anticonvulsivante/ Estabilizador do
Carbamazepina 400mg – 800mg
humor

Anticonvulsivante/ Estabilizador do
Valproato 500mg – 2000mg
humor
Medicação Classe Posologia usual

Fluoxetina Inibidor de recaptação de serotonina 20mg – 80mg

Sertralina Inibidor de recaptação de serotonina 55mg – 200mg

Amitriptilina Antidepressivo tricíclico 75mg – 250mg

Fonte: síntese elaborada pelos autores.

Estudos indicam que a primeira linha de tratamento de um paciente


com transtorno esquizoafetivo deve ser um antipsicótico em
monoterapia, preferencialmente aqueles que possuem ação nos
sintomas afetivos. Prioriza-se então nesses casos o uso de
antipsicóticos atípicos. Todos esses antipsicóticos são utilizados na
chamada fase aguda do tratamento, podendo também ser mantidos na
fase de manutenção. Seu uso também é recomendado por possuírem
efeitos estabilizadores de humor, necessários nos casos de ciclagem.
Na fase de manutenção do tratamento, a escolha da classe
medicamentosa a ser utilizada varia de acordo com o subtipo
apresentado. Geralmente no subtipo bipolar faz-se a associação de
antipsicóticos e estabilizadores do humor, enquanto no subtipo
depressivo associa-se os antipsicóticos aos antidepressivos.
Mesmo em pacientes com o subtipo depressivo, o uso de
antidepressivos ainda deve ser visto com cautela. Assim como no TAB,
existe o risco de medicações antidepressivas induzirem quadros
maníacos. É necessário frisar que ainda não existem evidências
suficientes que comprovem que a combinação de um antipsicótico com
um antidepressivo seja superior ao uso de um antipsicótico em
monoterapia.
Durante o tratamento na fase de manutenção, alguns pacientes,
mesmo em uso adequado das medicações, podem apresentar recaídas,
podendo ter uma refratariedade na sintomatologia afetiva. Além disso,
um antipsicótico que aparenta ter benefícios em casos refratários é a
clozapina.
Um tratamento não medicamentoso, mas que cabe ser citado aqui, é
o uso da eletroconvulsoterapia (ECT). A ECT pode ser útil em casos
refratários (que não melhoram sob medicação), mesmo com mudança
do esquema e em pacientes que apresentam instabilidade persistente
dos sintomas maníacos.

6. TRATAMENTO NÃO
FARMACOLÓGICO
Ainda não se sabe ao certo os reais efeitos de uma abordagem
psicossocial no paciente com transtorno esquizoafetivo. Alguns estudos
apontam benefícios da terapia familiar e da reabilitação cognitiva
nesses pacientes.
É necessário, diante de um paciente com um quadro com vários
desafios sociais, que a família esteja presente em todos os momentos,
desde o diagnóstico até a manutenção do tratamento. Tal apoio é
necessário inclusive para auxiliar o paciente a compreender o seu
quadro e realizar o tratamento de forma adequada. O profissional deve
visar sempre ser franco com o paciente e seus familiares na hora de
relatar o diagnóstico e o prognóstico do paciente, visto que ambos ainda
são dotados de incertezas. Buscar reinserir esses indivíduos na
sociedade no momento adequado também é de suma importância; um
treinamento de habilidades e uma reabilitação cognitiva podem ser úteis
nesse processo de reinserção.

6.1. Redescobrindo o caso (Pontos-Chave)


1 Quadro de mania

Critério A para esquizofrenia + delírios


2
incongruentes com o humor

Maior parte da doença com sintomas de


3
humor

4 Sem recuperação funcional

Sintomas psicóticos mesmo fora da crise de


5
humor

Mário apresenta claramente um quadro de mania psicótica. A


primeira hipótese diagnóstica nosológica, a priori, deve ser transtorno
bipolar. Contudo, algumas características da crise e da história
pregressa revelam dados que podem chamar a atenção para o
diagnóstico de transtorno esquizoafetivo. Tradicionalmente, o paciente
com TAB mantém sua funcionalidade de forma quase intacta nos
períodos intercrises; já o nosso paciente Mário revela um prejuízo no
seu funcionamento mesmo fora das crises, ao que poderíamos comparar
com os sintomas negativos da psicose. Outro ponto de destaque está no
conteúdo delirante da crise maníaca de Mário. Encontramos delírios
bizarros e persecutórios que são incongruentes com o humor. Por ora,
ainda não seria possível (mesmo que houvesse a suspeita clínica) firmar
o diagnóstico de transtorno esquizoafetivo, pois seriam necessários
sintomas psicóticos fora da crise de humor por pelo menos 15 dias.
Somente com o seguimento foi possível identificar que os delírios
permaneceram por meses, mesmo sem qualquer alteração de humor,
achado esse que é incompatível com o diagnóstico de TAB. Portanto, o
diagnóstico de transtorno esquizoafetivo passa a ser a principal hipótese
para Mário. Além do estabilizador de humor e antipsicóticos, Mário e
sua família devem ser orientados quanto ao diagnóstico, ao tratamento e
ao prognóstico.

Exemplo de uma prescrição para Mário


Carbonato de lítio 300mg, 1 comprimido, via oral, de 12/12h.
+
Olanzapina 5mg, 1 comprimido, via oral, à noite.

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estatístico de transtornos mentais – DSM-5. 5. ed. Porto Alegre:
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comportamento e psiquiatria clínica. 9. ed. Porto Alegre:
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7. Pagel T, Baldessarini RJ, Franklin J, Baethge C. Characteristics
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21(9): 680-690. doi:10.1016/j.euroneuro.2011.03.001.

SIGLAS

• DSM-5 Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos


Mentais

• ECT Eletroconvulsoterapia
• TAB Transtorno Afetivo Bipolar
1. CASO CLÍNICO
Adriano, 27 anos, desempregado. É trazido pelos familiares para
pronto-atendimento por apresentar inquietação, discurso pouco
desconexo, medo intenso por acreditar que está sendo perseguido
por policiais, além de apresentar movimentos de esquiva referindo
ver “monstros voadores”. Quadro tem algumas horas de evolução.
Familiares contam que paciente não dorme em casa há dois dias,
fazendo uso compulsivo de crack.
Afirmam que paciente faz uso de crack, inalantes e cocaína há 5
anos e que já teve diversas crises similares à atual, sempre após uso
intenso das substâncias supracitadas.

Exame mental: inquieto, perplexo, leve tremor de


extremidades, fala pouco acelerada e desconexa, apresenta
atitude alucinatória. Aspecto emagrecido, frequência cardíaca:
110 bpm, pressão arterial: 150x110.

2. DISCUTINDO O DIAGNÓSTICO
As substâncias com propriedades psicomiméticas, como cocaína,
anfetaminas, alucinógenos e Cannabis, são difundidas, e seu uso ou
abuso pode provocar reações psicóticas semelhantes a uma doença
psicótica primária. De maneira similar à psicose esquizofreniforme,
a psicose induzida por substâncias psicoativas (PISP) pode cursar
com alucinações, delírios, comportamento e discurso
desorganizado. Em jovens (14-18 anos), a dependência de
anfetaminas ou sedativos, bem como uso diário de Cannabis e
sedativos, está associada ao surgimento de sintomas psicóticos. O
uso de múltiplas substâncias diminui a idade do surgimento de
esquizofrenia e de outras psicoses do espectro da esquizofrenia.
Apesar de vários fatores etiológicos e fisiológicos, o
diagnóstico de transtorno psicótico induzido por substâncias é
clínico e, portanto, baseado predominantemente na história do
paciente, relatórios subjetivos e do exame do estado mental.
Segundo o DSM-5, deve haver pelo menos alucinação ou delírio,
sendo esses sintomas ocasionados durante ou logo após intoxicação
ou abstinência por uma substância ou após a exposição a um
medicamento. É obrigatório que tal substância/medicamento seja
capaz de produzir os sintomas psicóticos.
Tem-se como exigência também que não haja outra situação
clínica que explique melhor o surgimento dos sintomas psicóticos.
A perturbação não deve ocorrer apenas durante o curso de um
delirium. Caso haja evidências de um transtorno psicótico
adjacente (como, por exemplo, a persistência dos sintomas mesmo
após um mês de abstinência da substância), o diagnóstico de PISP
deve ser desconsiderado. É interessante perceber que as
alucinações e os delírios devem ter predominância no quadro
clínico e gravidade suficiente para requerer cuidados. Caso
contrário, o diagnóstico de intoxicação e abstinência passa a ser a
principal hipótese.

3. ASPECTOS SOBRE
EPIDEMIOLOGIA E ETIOLOGIA
As substâncias mais associadas a quadros psicóticos são os
estimulantes (anfetaminas, cocaína e crack), álcool, cannabis,
alucinógenos, inalantes e hipnóticos/ansiolíticos. Um fator de
confusão diagnóstica se refere ao fato que aproximadamente
metade dos pacientes com psicose primária também tem um
transtorno por uso de drogas e, aproximadamente, um terço desses
pacientes psicóticos apresentam distúrbios por uso de estimulantes.
A PISP é mais comum em jovens de áreas urbanas, e está
relacionada a resultados negativos, como deterioração da saúde
mental e aumento de autoagressão. O uso de metanfetaminas entre
pacientes com vulnerabilidade genética à psicose ou transtornos
psicóticos preexistentes, como esquizofrenia, pode precipitar o
surgimento ou exacerbar sintomas psicóticos.
Além disso, foi demonstrado que presença de abuso de
substâncias psicoativas no primeiro episódio de psicose associa-se
com o aumento de hospitalizações, a reduzida adesão ao
tratamento, a maior taxa de recaídas e o aumento nos custos do
serviço de saúde mental.

4. DIAGNÓSTICO DIFERENCIAL
Entender a diferença entre a psicose induzida por substâncias e a
psicose primária é fundamental para o manejo do curso e o
tratamento da doença. Saiba que os transtornos psicóticos
englobam várias nosologias que são distinguidas entre si pela
duração, pelo perfil dos sintomas e pela causa. Os transtornos
psicóticos primários, especialmente esquizofrenia e transtorno
esquizoafetivo, geralmente evoluem por meio de pré-morbido,
pródromo, curso progressivo e crônico do transtorno.

• Psicose primária: um diagnóstico primário de psicose é


dado apenas se não houver nenhuma evidência de uso ou
retirada de substâncias capazes de induzir psicose, se os
sintomas surgiram antes do uso dessas substâncias ou se
persistirem mais de 4 semanas após a cessação da
intoxicação aguda ou abstinência.
• Esquizofrenia: a psicose induzida por substâncias
psicoativas possui sintomas psicóticos mais incomuns,
como alucinações visuais e táteis, quando comparada à
esquizofrenia. Desorganização do comportamento e do
discurso são características mais presentes na
esquizofrenia. Os sintomas negativos (anedonia, abulia,
baixa interação social, embotamento afetivo) são mais
comuns na esquizofrenia.

• Psicose breve: envolve sintomas agudos, com mais de um


dia e menos de um mês de duração, com resolução
completa do quadro nesse período. Um episódio pode
surgir secundário a um trauma (situação de estresse), pós-
parto, entre outros. O evento precipitante do quadro não é
uma substância psicoativa.

• Transtorno esquizofreniforme: é semelhante à


esquizofrenia, entretanto, a duração é maior que um mês e
menor que seis meses, o que difere da esquizofrenia, que
possui duração maior que seis meses. Menos da metade
dos casos têm resolução espontânea e evolução para o
funcionamento habitual pré-mórbido. O restante evolui
para um outro transtorno psicótico, como esquizofrenia ou
transtorno esquizoafetivo.

Quadro 1 - Diagnósticos diferenciais das psicoses


Diagnóstico Sintomas Duração

Alucinações auditivas, prejuízos


Mais de 4 semanas após
Psicose primária cognitivos proeminentes e delírios
retirada de substâncias.
complexos.
Diagnóstico Sintomas Duração

Delírios, alucinações,
Esquizofrenia comportamento e discurso
Mais de 6 meses.
aguda desorganizados, e sintomas
negativos.

Delírios, alucinações,
Mais de 1 dia e menos de 1
Psicose breve comportamento e discurso
mês.
desorganizado.

Psicose presente por pelo


Transtorno Delírios, alucinações. Pode ter
menos 2 semanas sem alteração
esquizoafetivo sintomas maníacos e depressivos.
do humor concomitante.

Delírios, alucinações,
comportamento e discurso Maior que um mês e menor que
Esquizofreniforme
desorganizado, e sintomas 6 meses.
negativos.

Fonte: síntese elaborada pelos autores.

4.1. E aí? O que fazer?


Para o sucesso terapêutico, a substância que induziu os sintomas
deve ser identificada e paciente, orientado a retirá-la. Os pacientes
que apresentam risco de danos para si ou para terceiros podem
necessitar de hospitalização.
O tratamento com base em antipsicóticos é a principal via
terapêutica da psicose, pois eles diminuem os sintomas psicóticos e
reduzem as taxas de recaídas. A eficácia é similar entre as diversas
drogas do grupo, ponderando-se, então, o perfil de efeitos adversos
e as comorbidades apresentadas, para a escolha do antipsicótico
adequado. Os antipsicóticos de primeira geração (ou típicos) estão
mais associados a efeitos colaterais motores, como distonia e
parkinsonismo. Os antipsicóticos atípicos (ou de segunda geração),
apesar de apresentarem menor incidência de efeitos
extrapiramidais, estão associados à síndrome metabólica (para
maiores detalhes ver capítulo “Antipsicóticos”). As doses utilizadas
costumam ser menores que as habituais para psicoses primárias
(vide Quadro 2).
A medicação deve ser mantida até a cessação completa dos
sintomas (em geral, algumas semanas) e, caso o paciente
permaneça abstinente, a sua retirada deve ser realizada. Lembrar
que, mesmo após 4 semanas de interrupção do uso de substâncias
psicoativas, se houver ressurgimento dos sintomas psicóticos, o uso
de antipsicóticos por tempo indeterminado deve ser considerado e o
diagnóstico deixa de ser psicose induzida por substâncias
psicoativas.

Quadro 2 - Exemplos de antipsicóticos utilizados na PISP


Medicamento Dose inicial Doses usuais

Clorpromazina 25-50mg 100-400mg/dia

Haloperidol 2,5-5mg 2,5-10mg/dia

Risperidona 1-2mg 2-4mg/dia

Olanzapina 2-5-5mg 5-10mg/dia

Fonte: síntese elaborada pelos autores.

Referências
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amphetamines. Current Opinion in Psychiatry 2016; 29(4):
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Phase Primary Psychotic Disorders With Concurrent
Substance Use and Substance-Induced Psychoses. Arch Gen
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10. Chiang M, Lombardi D, Du J, Makrum U, Sitthichai R,
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treatment options. Human Psychopharmacology: Clinical
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11. American Psychiatric Association. Manual diagnóstico e
estatístico de transtornos mentais – DSM-5. 5. ed. Porto
Alegre: Artmed; 2014.
12. Sadock BJ; Sadock VA. Compêndio de psiquiatria:
ciências do comportamento e psiquiatria clínica. 9. ed. Porto
Alegre: Artmed; 2017.
SIGLAS

• DSM-5 Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos


Mentais

• PISP Psicose Induzida por Substâncias Psicoativas


Síndromes Somatoformes
Manifestações psicossomáticas são comuns na clínica geral,
seja por manifestações neuróticas como na ansiedade ou depressão,
seja em condições psicóticas como no transtorno delirante, por
exemplo. Porém, o grupo de pacientes somatizadores tem tais
manifestações sintomáticas como sua principal queixa acarretando
intenso sofrimento e prejuízos funcionais. É de fundamental
importância para o médico generalista o domínio do tema, tendo
em vista que esses pacientes costumam ser usuários frequentes de
ambulatórios não psiquiátricos, sejam em ambulatórios
especializados (ortopedistas, dermatologistas, cirurgiões plásticos,
geriatras, cardiologistas, reumatologistas, dentre outros) ou em
ambiente de atenção primárias à saúde e em pronto atendimentos.
De forma errônea, o público leigo e até médicos, menosprezam
a sintomatologia psicossomática atribuindo-a um valor menor pois
“não tem causa física” que justifique o acometimento ou que os
sintomas são “criação da cabeça” do paciente. Nessa perspectiva,
não raras são as vezes que esses pacientes são ridicularizados por
familiares, hostilizados pela equipe de saúde, além de serem
frequentemente invadidos por procedimentos e tratamentos
desnecessários.
Incluímos nesse capítulo o transtorno de sintomas somáticos,
transtorno de ansiedade de doença, transtorno conversivo,
transtorno factício e os transtornos dissociativos.
1. CASO CLÍNICO
Michelly, 20 anos, procura atendimento na Unidade Básica de Saúde (UBS)
com queixa de dor abdominal difusa, fadiga, dor nas pernas e insônia. Ela
relata que esses sintomas iniciaram após descobrir traição de seu marido, há
cerca de 2 anos. Fala que durante esse tempo os sintomas ocorrem
frequentemente, fazendo com que procurasse constantemente serviços de
saúde. Ela afirma que tem ido diversas vezes à Unidade de Pronto
Atendimento (UPA) do seu bairro, mas os médicos sempre a examinam e
falam que não tem nada, que tudo é “coisa da sua cabeça”. Acrescenta que
fez exames de sangue, endoscopia digestiva alta, tomografia e
ultrassonografia abdominal, os quais não evidenciaram alteração alguma.
Fala que sempre pega no seu abdome e percebe que “seu estômago está mais
alto e mais inchado”. Conta, ainda, que não tem mais vontade de assistir às
suas novelas e de cozinhar há 6 meses e que passa o dia deitada, não tem
mais prazer, nem disposição como antes para fazer atividades domésticas.
Tem se queixado cada vez mais das dores nas pernas. Diz que não vê mais
perspectiva na vida e que não sabe se vale a pena viver desse jeito. Solicita,
durante a consulta, que o médico faça uma nova guia para realização de
outra endoscopia, pois acredita que tem H. pylori.

Exame mental: paciente se apresenta bastante ansiosa, chorou diversas


vezes durante a consulta. Não responde a várias perguntas e
constantemente volta para o assunto de sua dor abdominal e de outras
queixas de sintomas físicos.

2. DISCUTINDO O DIAGNÓSTICO
O transtorno de sintomas somáticos (TSS) é uma entidade nosológica
caracterizada por apresentar uma gama de variados sintomas somáticos que
provocam intenso sofrimento, resultando em grande perturbação na vida
cotidiana. O diagnóstico do transtorno de sintomas somáticos é definido pelo
DMS-5 como sofrimento psíquico e prejuízo na vida diária de um indivíduo
com um ou mais sintomas somáticos. Em geral o paciente relata persistência
dos sintomas por um período de, no mínimo, 6 meses; no entanto, não
precisam estar presentes de forma contínua. Além disso, um entre os três
sintomas a seguir necessita estar presente:

1. Pensamentos desproporcionais acerca da gravidade dos seus


sintomas.
2. Ansiedade excessiva acerca da sua saúde e sintomas.
3. Gasto excessivo de tempo e energia relacionados a esses sintomas ou
a preocupações acerca de sua saúde.

Vale ressaltar que sintomas somáticos que não são mais bem explicados
por uma condição médica geral não é suficiente para que o diagnóstico seja
dado. Lembre-se: a base do diagnóstico é a aflição ou perturbação
significativa causada pelos sintomas somáticos. Muitas vezes, esses sintomas
podem vir associados a doenças clínicas, com o indivíduo referindo sintomas
que podem ser justificados por uma condição de base, no entanto, são
amplificados por um transtorno de sintomas somáticos comórbido. É
comum, também, a coexistência com sintomas depressivos e ansiosos,
podendo haver um diagnóstico comórbido de transtorno depressivo ou
ansioso com TSS em 70% dos casos.
Na prática clínica, principalmente na atenção primária à saúde, é
necessário ter estratégias para suspeitar de sintomas somáticos e realizar a
investigação. Por exemplo: múltiplas queixas (em geral, mais do que 5),
coexistência de sintomas depressivos ou ansiosos e relação temporal dos
sintomas com algum conflito em sua vida, falam a favor de transtorno de
sintomas somáticos. Os sintomas apresentados pelos pacientes podem incluir
desde sintomas mais localizados, como dor abdominal, até sintomas mais
inespecíficos, como fadiga. Associado a isso, apresentam um nível de
ansiedade elevada em relação a esses sintomas, acreditando que eles são
nocivos para sua saúde, assumindo um papel central na vida do indivíduo,
muitas vezes, prejudicando suas relações interpessoais.
O alto nível de utilização de serviços de saúde é marcante, procurando,
muitas vezes, mais de um profissional devido um ou mais sintomas. Porém,
na maioria das vezes, as intervenções costumam não melhorar os sintomas
ou podem até piorar. É comum a verificação constante no corpo em busca de
alterações físicas e evitação de atividades físicas por medo de que sua saúde
seja prejudicada.
São pacientes que, durante a consulta, dificilmente trazem outros
assuntos que não sejam seus sintomas e costumam achar que suas queixas
não estão sendo valorizadas quando o profissional sugere que os sintomas
não são indicativos de doença grave ou quando é sugerido procurar um
serviço em saúde mental.

3. ASPECTOS SOBRE EPIDEMIOLOGIA E


ETIOLOGIA
Sintomas somáticos são uma causa importante de procura de atendimentos
em pronto-atendimentos e emergências, e, menos comumente, visto em
contextos psiquiátricos. Dessa forma, é de suma importância que o clínico
saiba reconhecer e manejar a condição da melhor forma. O TSS pode causar
no indivíduo, além de sofrimento psíquico, prejuízos financeiros ou danos
por conta de tratamentos e de exames desnecessários, pois são pacientes que
procuram com frequência serviços de saúde e realizam exames ou
procedimentos por conta de suas queixas.
A prevalência do TSS é incerta, no entanto, é estimada entre 5-7% na
população geral, com predominância no sexo feminino. Podem surgir em
qualquer idade, porém, é mais comum entre os 20 e 30 anos de idade.
Os indivíduos com TSS têm uma tendência a amplificar as sensações
somáticas e têm baixo limiar a desconfortos físicos, gerando sintomas
somáticos. Existem algumas teorias que tentam explicar a origem do
transtorno em questão.
Alguns estudiosos falam que o modelo de aprendizagem social pode ser
aplicado nesse caso. Por esse modelo, os sintomas são uma forma que o
paciente encontra para lidar com uma série de problemas aparentemente
insuperáveis e acaba assumindo a postura de doente, com o intuito de ser
dispensado de obrigações e deveres.
Alguns fatores de risco estão implicados nesse processo, como: doença
crônica, traumas ou doença durante a infância e habilidades de
enfrentamento a adversidades pouco desenvolvidas.
Pacientes com predisposição para o transtorno, quando expostos a algum
fator precipitante, podem desenvolver sintomas somáticos. Alguns dos
fatores precipitantes são: doença clínica ou psiquiátrica de base, baixo
suporte social, morte de familiar próximo, separação e problemas
financeiros.
Os pacientes tendem a desenvolver um curso persistente, ou seja, por um
período maior que 6 meses e com sinais de gravidade, se continuarem sendo
expostos a estressores crônicos e se tiverem habilidades de enfrentamento
mal adaptativas e hábitos de vida não saudáveis, a exemplo do tabagismo, do
etilismo e do sedentarismo (Quadro 1).
O TSS normalmente tem curso crônico e recidivante, cujos episódios
podem durar de meses até anos, alternando com períodos de remissão.
Normalmente têm relação temporal com fatores estressantes vivenciados
pelo paciente. Em geral, tem bom prognóstico, com até 50% dos pacientes
tendo melhora significativa, sem recorrência dos sintomas.

Quadro 1 - Fatores predisponentes, precipitantes e perpetuadores do TSS

Fatores Fatores
Fatores perpetuadores
predisponentes precipitantes

Adversidades durante a infância Doenças


Estressores crônicos
(por exemplo, abuso sexual) (clínicas ou psiquiátricas)

Adversidades (perder o emprego ou Habilidades de


Doença crônica clínica ou
término de relacionamento, por enfrentamento mal
psiquiátrica durante a infância
exemplo) adaptativas

Habilidades de enfrentamento Hábitos de vida


Perda de suporte social
pouco desenvolvidas não saudáveis

Fonte: adaptado de Croicu C, Chwastiak L, Katon W.2

4. DIAGNÓSTICO DIFERENCIAL
Torna-se necessário nunca desvalorizar uma queixa trazida pelo paciente,
então cabe ao clínico descartar causas orgânicas, principalmente as
endocrinopatias, doenças reumatológicas, metabólicas e neoplásicas. Vale
ressaltar que o diagnóstico de fibromialgia ou de síndrome do intestino
irritável não é suficiente para o diagnóstico de TSS, pois teria que satisfazer
os critérios diagnósticos do TSS. No entanto, há uma forte correlação entre
eles, podendo haver o diagnóstico comórbido.
O transtorno de sintomas somáticos deve ser diferenciado dos sintomas
somáticos associados a outros transtornos psiquiátricos. Por exemplo, em um
episódio depressivo ou em um transtorno ansioso, o paciente pode ter
queixas somáticas. No entanto, só teria o diagnóstico de TSS caso esses
sintomas gerassem uma ansiedade e angústia considerável, fazendo o
paciente investir tempo e energia em relação a isso, conforme os critérios do
DSM-5. Nos casos em que o paciente obedecer aos critérios de ambos, ele
terá um TSS comórbido.
Outra doença muito confundida com o TSS é o transtorno de ansiedade
de doença. Nesse caso, o paciente não tem queixas somáticas de forma
predominante, o que prevalece é o medo de adoecer. No transtorno
delirante do tipo somático, as crenças e o comportamento acerca dos
sintomas somáticos são mais fortes, chegando a ter intensidade delirante,
além de outros sintomas psicóticos, o que não se aplica ao TSS. A seguir, o
Quadro 2 apresenta vários diagnósticos diferenciais do TSS.
Em relação ao transtorno factício, a principal diferença encontra-se no
fato de que, no TSS o paciente não provoca e nem simula os sintomas
relatados.

Quadro 2 - Diagnóstico diferencial do transtorno de sintomas somáticos

Sintomas somáticos de etiologia incerta não são


Outras condições médicas
suficientes para o diagnóstico de TSS.

Os sintomas somáticos associados à ansiedade ocorrem em


Transtorno de pânico
episódios agudos e fugazes.
Sintomas somáticos de etiologia incerta não são
Outras condições médicas
suficientes para o diagnóstico de TSS.

As preocupações são em torno de múltiplos eventos e


Transtorno de ansiedade
situações. O foco principal não está em sintomas somáticos e
generalizada
medo de doença.

Transtornos Pode haver sintomas somáticos, mas a sintomatologia central


depressivos está na alteração do humor (humor deprimido e anedonia)

Preocupação extensa em relação à saúde e ao medo de


Transtorno de ansiedade
adoecer, no entanto, com sintomas somáticos mínimos ou
de doença
inexistentes.

Gira em torno da perda de função (por exemplo, visão,


Transtorno conversivo movimentação de um membro) e sintomas
pseudoneurológicos.

Crenças e comportamentos associados aos sintomas


Transtorno delirante
somáticos são delirantes.

Transtorno dismórfico É excessivamente preocupado com um defeito percebido em


corporal suas características físicas.

Transtorno obsessivo
Pensamentos intrusivos e comportamentos repetitivos.
compulsivo

Fonte: Adaptada de American Psychiatric Association.¹

4.1. E aí? O que fazer?


O TSS tende a ser subdiagnosticado, pois os pacientes geralmente se
recusam ou negam atendimento psiquiátrico. Ou seja, é de suma importância
que o profissional da atenção primária à saúde saiba reconhecer e manejar
indivíduos com sintomas somáticos. É preciso, de início, estabelecer um
vínculo de confiança com o paciente, demonstrando empatia, evitando-se
falar que o “paciente não tem nada”. Uma boa forma de melhorar o vínculo é
programar consultas rotineiras, a fim de evitar que ele procure consultas de
emergência, gerando um aumento de sua ansiedade.
Então, cabe ao profissional acolher as queixas do paciente e explorá-las,
evitando perguntas muito invasivas e objetivas sobre os sintomas, preferindo
perguntas abertas, como: “o que você acha do que está sentindo?”, “me
conte melhor sobre isso”, “o que mais lhe incomoda no momento?”. Após
estabelecer um bom vínculo com o paciente, é importante investigar a
relação desses sintomas com estressores ambientais que o indivíduo possa
estar vivenciando e, além disso, questionar sobre possíveis sintomas
depressivos e ansiosos que o paciente apresente. Nunca esqueça de envolver
o paciente nesse processo, e estabelecer com ele as principais metas e
objetivos, incentivando-o a aprender a lidar com esses sintomas ao invés de
focar uma “cura”.
É fundamental que não sejam solicitados exames desnecessários, a não
ser que haja sinais objetivos da necessidade da solicitação. Deve-se,
também, evitar a polifarmácia e, quando possível, descontinuar medicações
com potencial de dependência, como opioides.
É necessário haver incentivo a um estilo de vida saudável, com
alimentação balanceada, prática de atividades físicas e evitar uso de bebidas
alcoólicas em excesso, por exemplo.
Como boa parte dos pacientes tem diagnóstico comórbido de depressão
ou ansiedade, é necessário, se for o caso, realizar o tratamento adequado
para esses transtornos. O tratamento pode ser farmacológico, ou por meio de
psicoterapia ou uma associação dos dois, a depender de cada paciente e da
gravidade dos sintomas. A Terapia Cognitivo-Comportamental (TCC)
demonstrou ser bastante eficaz nesses pacientes. O tratamento farmacológico
não deve ser utilizado, excetuando os pacientes que apresentam alguma
condição responsiva a medicações, como quadros de depressão e de
ansiedade. Em geral, as principais medicações utilizadas para esses casos
costumam ser antidepressivos, preferencialmente inibidores da recaptação de
serotonina e noradrenalina, como duloxetina, venlafaxina e desvenlafaxina.
Devido aos seus efeitos reguladores sobre a serotonina e noradrenalina, essas
medicações têm eficácia na dor crônica e neuropática, já sendo demonstrado
que pode diminuir sintomas somáticos também nos pacientes com esse
perfil.

4.2. Redescobrindo o caso (Pontos-Chave)


1 Sexo feminino

2 Idade de incidência

3 Várias queixas somáticas

4 Fator precipitante

5 Buscas recorrentes aos serviços de saúde

Sem evidência clínica ou de exames


6
complementares de doença orgânica

Preocupação excessiva com percepções


7
do próprio corpo

8 Quadro depressivo associado

9 Envolvimento excessivo com os sintomas


somáticos

Esse caso retrata tipicamente quadro de TSS. Percebe-se múltiplas


queixas inespecíficas que tem relação temporal com um estressor. Nota-se
que é uma paciente que investe tempo e energia com esses sintomas, indo
várias vezes a emergências e realizando exames sem indicação médica. Ela
apresenta-se com quadro depressivo comórbido (que ocorre na maioria dos
casos de TSS). A paciente deve ser acolhida por meio de escuta ativa,
orientada quanto à origem dos sintomas e quanto ao seu quadro depressivo.
Deve ser oferecida uma agenda pré-programada de consultas para
fortalecimento do vínculo e diminuir visitas recorrentes aos serviços de
urgência. Orientação quanto à psicoterapia também faz parte do projeto de
tratamento de Michelly.

Exemplo de uma prescrição para Michelly


Duloxetina 30mg, 1 comprimido, via oral, pela manhã, por 15 dias.
Após esse prazo, passar a tomar:
Duloxetina 60mg, 1 comprimido, via oral, após pela manhã.

Referências
1. American Psychiatric Association. Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders, Fifth
Edition (DSM-5). Arlington, VA: American Psychiatric Association, 2013.
2. Croicu C, Chwastiak L, Katon W. Approach to the patient with multiple somatic symptoms. Med
Clin North Am. 2014; 98(5): 1079-1095. doi:10.1016/j.mcna.2014.06.007.
3. Van Eck van der Sluijs JF, Ten Have M, Graaf R de, Rijnders CAT, van Marwijk HWJ, van der
Feltz-Cornelis CM. Predictors of Persistent Medically Unexplained Physical Symptoms:
Findings From a General Population Study. Front Psychiatry. 2018 Nov 20; 9: 613. doi:
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doi:10.3238/arztebl.2015.0279.
6. Liu Y, Zhao J, Fan X, Guo W. Dysfunction in Serotonergic and Noradrenergic Systems and
Somatic Symptoms in Psychiatric Disorders. Front Psychiatry. 2019; 10: 286. Published 2019
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7. Hilderink PH, Collard R, Rosmalen JG, Oude Voshaar RC. Prevalence of somatoform disorders
and medically unexplained symptoms in old age populations in comparison with younger age
groups: a systematic review. Ageing Res Rev. 2013; 12(1): 151-156.
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8. Holliday KL, McBeth J. Recent advances in the understanding of genetic susceptibility to
chronic pain and somatic symptoms. Curr Rheumatol Rep. 2011; 13(6): 521-527.
doi:10.1007/s11926-011-0208-4.
9. Emich-Widera E, Kazek B, Szwed-Białożyt B, Kopyta I, Kostorz A. Headaches as somatoform
disorders in children and adolescents. Ment Illn. 2012; 4(1): e9. Published 2012 May 28.
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10. Hausteiner-Wiehle C, Henningsen P. Irritable bowel syndrome: relations with functional,
mental, and somatoform disorders. World J Gastroenterol. 2014; 20(20): 6024-6030.
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11. Tófoli LF, Andrade LH, Fortes S. Somatização na América Latina: uma revisão sobre a
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Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1516-
44462011000500006&lng=pt. https://doi.org/10.1590/S1516-44462011000500006.
12. Burnett-Zeigler I, Schuette S, Victorson D, Wisner KL. Mind-Body Approaches to Treating
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14. Alexander F. Psychosomatic Medicine: Its Principles and Application. New York: Norton;
1950.

SIGLAS

• TCC Terapia Cognitivo-Comportamental


• TSS Transtorno de Sintomas Somáticos
• UPA Unidade de Pronto Atendimento
1. CASO CLÍNICO
Socorro, 60 anos, aposentada, acompanhada de seu esposo, vem ao
atendimento no serviço de psiquiatria encaminhada pelo seu
generalista. A paciente diz que não tem nada a fazer naquele
consultório e que só está lá para agradar seu médico, que, segundo
ela, “acredita que é psicológico, que está tudo na minha cabeça”.
Afirma que deve ter uma doença grave, pois “não se sente nada
bem”, o que a fez se consultar com seu médico mais de 10 vezes
nos últimos 6 meses. A paciente se queixa de ruídos estomacais
vagos, fasciculações nas pálpebras e punhos, além de ocasionais
dores de cabeça. O marido dela relata que a paciente pesquisava na
internet constantemente sobre doenças sérias e fatais, com grande
suspeita de ter alguma das doenças listadas. Levava até artigos
médicos quando ia se consultar com o generalista. O esposo refere
ainda que a esposa realizou muitos exames complementares e que se
sentia aliviada por um curto período de tempo depois dos resultados
negativos, mas logo voltava a pensar que estava doente e marcava
nova consulta.

Exame mental: paciente apresenta-se um pouco aborrecida e


impaciente, insistindo que tem certeza de que possui uma
doença grave e isso não é “coisa da cabeça”.

2. DISCUTINDO O DIAGNÓSTICO
O Transtorno de Ansiedade de Doença (TAD), anteriormente
chamado de hipocondria, termo que foi revisado pelo DMS-5 e
entrou em desuso devido à sua conotação depreciativa. É um
distúrbio psiquiátrico caracterizado pela preocupação excessiva de
ter ou desenvolver uma condição médica grave não diagnosticada.
As pessoas que apresentam esse transtorno experimentam sintomas
de ansiedade persistente e medo de desenvolver ou ter uma doença
médica séria. Os sintomas de medo e de ansiedade presentes no
TAD são desproporcionais e persistem apesar do exame físico
normal, dos exames laboratoriais sem alterações, do curso benigno
da doença alegada e da devida tranquilização por parte dos médicos,
podendo fazer os pacientes utilizarem de maneira demasiada os
serviços de saúde e passarem por cuidados médicos extensos,
submetendo-se a procedimentos invasivos para fins diagnósticos e
até cirurgias eletivas desnecessárias. Contudo, geralmente a busca
do paciente por exames ou avaliações não é suficiente para diminuir
o nível de tensão ou então produz efeito temporário.
As pessoas que sofrem de TAD apresentam um comportamento
caracterizado por dar uma atenção excessiva às sensações
corporais normais (como funções da digestão ou sudorese) e
interpretam essas sensações de maneira errônea, acreditando que
sejam fatores indicadores de uma doença grave, bem como a
presença de anormalidades no corpo, incluindo manchas na pele,
saliências e inchaços, contrações musculares e dores, que são mal
interpretados como evidência de doença orgânica.
O transtorno de ansiedade de doença, de acordo com o DSM-5, é
definido quando os pacientes apresentam preocupação em ter ou
contrair uma doença grave e um alto nível de ansiedade em
relação à saúde. O indivíduo fica facilmente alarmado a respeito do
seu estado de saúde pessoal, podendo estar associado ou não a
sintomas somáticos que costumam ser de intensidade leve. Além
disso, é comum a presença de comportamentos excessivos
relacionados à saúde, como exames físicos repetidos e idas
excessivas ao médico com a finalidade de procurar sinais de doença.
Entretanto, esses pacientes também podem exibir uma evitação mal
adaptativa, distanciando-se de consultas médicas e hospitais. No
caso dos pacientes que já apresentam alguma condição médica ou
possuem risco elevado de desenvolver uma doença, eles costumam
apresentar preocupação excessiva ou desproporcional. Para o
diagnóstico, é necessário quadro com duração de pelo menos seis
meses e ausência de achados patológicos nos exames médicos ou
neurológicos. É preciso, também, que a preocupação não esteja
associada a outros transtornos de ansiedade.
O TAD é tipicamente uma condição mental crônica, e os
pacientes com esse transtorno podem apresentar ansiedade sobre
saúde e doença não somente em si mesmos, mas também em relação
as pessoas ao seu redor. Além disso, os pacientes com esse
transtorno comumente estão pesquisando doenças que eles
imaginam ter, assimilando o pior das informações que encontram, às
vezes induzindo o que é referido como “Síndrome do Estudante de
Medicina” ou “Cibercondria”.
As complicações do TAD podem ter um impacto negativo na
qualidade de vida e nos relacionamentos interpessoais devido a
persistência da preocupação excessiva e da obsessão com a saúde
presenciada pelas pessoas ao redor. Podem causar problemas de
desempenho no trabalho e na realização de atividades de vida diária.
É comum o surgimento de problemas financeiros devido ao número
excessivo de consultas médicas e gastos hospitalares. Apesar disso,
indivíduos com TAD geralmente não veem suas preocupações como
sendo algo de origem psicológica e, portanto, podem rejeitar a
sugestão de consultar um profissional de saúde mental.

3. ASPECTOS SOBRE
EPIDEMIOLOGIA E ETIOLOGIA
A etiologia do transtorno de ansiedade de doença ainda é
desconhecida. Entretanto, acredita-se que diversos fatores podem
estar relacionados ao desenvolvimento desse distúrbio, como as
situações citadas a seguir.

1. Indivíduos que apresentam desconforto ao experimentar


sensações corporais normais e podem rotular as sutis
alterações corporais como patológicas.
2. Pessoas que foram criadas em uma família em que
preocupações sobre a saúde são frequentemente discutidas
ou se alguém na família apresentava uma preocupação
desproporcional em relação a um problema de saúde já
existente.
3. Pessoas que sofreram com uma doença grave na infância
ou que presenciaram uma condição médica séria que
acometeu seus pais ou irmãos.
4. Pacientes com transtornos de ansiedade subjacentes (por
exemplo, transtorno de ansiedade generalizada) também
têm um risco aumentado de desenvolver TAD.
5. Indivíduos que frequentemente pesquisam sobre doenças
ou que gastam um tempo exorbitante revisando materiais
relacionados à saúde na internet também podem apresentar
risco aumentado de desenvolver TAD.
O transtorno de ansiedade de doença é um diagnóstico
relativamente novo, sendo publicado pela primeira vez na 5ª edição
do DSM em 2013. Frente a isso, a prevalência ainda é amplamente
desconhecida e é mensurada por meio das informações relacionadas
à hipocondria. De acordo com o DSM-5, estimou-se que 25% dos
indivíduos previamente diagnosticados com hipocondria seriam
diagnosticados com transtorno de ansiedade de doença e 75%
atenderiam aos critérios para o transtorno de sintomas somáticos.
Um dos problemas com as definições anteriores de hipocondria
é que tinham a impressão de que, para ter o distúrbio, nenhuma
doença deveria estar presente; entretanto, percebeu-se que o
transtorno de ansiedade de doença está frequentemente associado a
ter uma comorbidade física. Além disso, outros dados mostram que
pessoas com TAD são mais propensas a frequentarem serviços
médicos gerais, mas não os psiquiátricos especializados. Na prática,
é muito comum a presença de TAD quando o indivíduo já apresenta
alguma doença e um dos fatores de risco comum é o início
repentino da doença médica (por exemplo, infarto do miocárdio),
que é tratado com sucesso, mas deixa o paciente muito preocupado
pelo risco de passar pelo problema novamente. Portanto, não
surpreende que as taxas de TAD sejam mais altas nos pacientes que
frequentam serviços de saúde do que nos que não frequentam.
O TAD geralmente começa entre o início e metade da idade
adulta e pode piorar com o passar dos anos. É comum ocorrer em
adolescentes e é raro em crianças. Em idosos, pode ocorrer
principalmente devido ao medo de ter algum quadro demencial com
prejuízo da memória. Não tem grandes diferenças em termos de
gênero, raça ou até mesmo estado civil. Em pessoas desempregadas
ou com menor escolaridade ocorre com maior frequência.
Geralmente, a maioria dos pacientes que desenvolvem o
transtorno e apresentam um bom prognóstico são: os que dispõem
de bom status socioeconômico; os que conseguem tratamento eficaz
para ansiedade ou depressão; os que tiveram início repentino dos
sintomas; os que não têm transtorno da personalidade comórbida ou
condição médica não psiquiátrica relacionada.

4. DIAGNÓSTICO DIFERENCIAL
Frequentemente, os pacientes com TAD são taxados como
“queixosos crônicos”, e não são realizados exames médicos mais
criteriosos. No entanto, o transtorno de ansiedade de doença deve
ser diferenciado de outras condições clínicas. O diagnóstico
diferencial inclui transtorno de sintomas somáticos, transtorno
obsessivo-compulsivo (TOC), transtorno de ansiedade generalizada
e transtorno dismórfico corporal.
O transtorno de ansiedade de doença diferencia-se do
transtorno de sintomas somáticos pelo fato de que, no primeiro,
há uma maior ênfase no medo de ter uma doença em detrimento de
uma preocupação com muitos sintomas, mas ambos podem existir
em graus variados em cada um dos transtornos. Pacientes com TAD
costumam se queixar de menos sintomas do que aqueles com
transtorno de sintomas somáticos, sendo a possibilidade de adoecer
a sua principal preocupação.
Em relação aos transtornos depressivos e de ansiedade, nos
quais também é muito comum os pacientes apresentarem medo de
adoecer ou de estar gravemente doente, se um indivíduo apresentar
todos os critérios diagnósticos para transtorno de ansiedade de
doença e para outro transtorno mental importante, como o
depressivo maior ou o de ansiedade generalizada, deverá receber os
dois diagnósticos. No caso dos pacientes com transtorno de pânico,
eles podem, a princípio, se queixar de que estão afetados por uma
doença (por exemplo, problemas cardiovasculares), mas uma
anamnese detalhada é capaz de revelar os sintomas clássicos de um
ataque de pânico, por exemplo. Na esquizofrenia e em outros
transtornos psicóticos, a presença de delírios somáticos ou
hipocondríacos pode ser diferenciada do TAD pela convicção
delirante, além da presença de outros sintomas psicóticos. Os
delírios somáticos de pacientes com esquizofrenia tendem a ser
bizarros. A diferenciação do TAD e do TOC se dá pela
singularidade das crenças e pela ausência de traços de
comportamentos compulsivos.
Quadro 1 - Diagnósticos Diferenciais de Transtorno
de Ansiedade por Doença
Condições psiquiátricas

Transtorno de adaptação

Ansiedade relacionada à saúde em resposta a uma doença grave

Transtorno de Sintomas Somáticos

Transtorno de Ansiedade Generalizada

Transtorno Dismórfico Corporal

Transtorno Depressivo maior

Transtorno Factício

Fonte: Adaptado de American Psychiatric Association.2

4.1. E aí? O que fazer?


A psicoterapia é o tratamento de primeira linha para o TAD. Dentre
as abordagens de psicoterapia, há evidências na literatura em
relação à terapia cognitivo-comportamental (TCC), um tipo de
psicoterapia que se concentra no tratamento das crenças
disfuncionais do paciente e modificação de comportamentos
desadaptativos. A TCC é capaz de abordar os hábitos do paciente de
verificar excessivamente o corpo e, por meio de estratégias como
psicoeducação, prevenção de exposição/resposta e gerenciamento
de estresse, proporcionar educação quanto às sensações normais e
suas variantes. Além disso, para o tratamento do TAD, também
podem ser instituídas terapia cognitiva baseada em mindfulness,
terapias em grupo e terapia de aceitação e compromisso. É
importante compreender que, mesmo com dados na literatura sobre
alguns tipos de abordagem com evidências para o TAD,
apsicoterapia é uma estratégia de tratamento preciosa,
independentemente da linha psicoterapêutica.
É necessário fornecer a garantia de que embora os aspectos
psicológicos sejam os mais explorados, a sua saúde física não será
negligenciada, garantindo que qualquer desconforto físico será
levado em consideração e que os pacientes não se sintam acusados
de que suas queixas estão “na cabeça” ou que eles estão apenas
imaginando seus sintomas. Ter postura empática e acolhedora,
construir um vínculo terapêutico sólido e ajudar o paciente a ter
uma visão diferente do processo de adoecimento é uma tarefa não
apenas do psicoterapeuta, mas também dos demais profissionais que
estiverem assistindo o paciente.
A terapêutica farmacológica é o tratamento de segunda linha
para o TAD. São eficazes para essa condição: antidepressivos
tricíclicos, com destaque para clomipramina e imipramina;
Inibidores Seletivos da Recaptação de Serotonina (ISRS), com
destaque para fluoxetina, fluvoxamina e paroxetina; Inibidores
Seletivos da Recaptação de Serotonina e Noradrenalina (ISRSNs).
Recomenda-se aos pacientes que respondem à terapia antidepressiva
que recebam tratamento de manutenção por pelo menos 6 a 12
meses.
A maioria dos pacientes requer uma combinação de psicoterapia
e de agentes farmacológicos. A farmacoterapia pode ser eficaz para
o alívio da ansiedade gerada pelo medo que o paciente tem de
desenvolver tal doença, principalmente, uma doença que implique
risco de morte, entretanto, a terapia farmacológica tem um papel
limitado no tratamento do paciente com TAD. Para um tratamento
com melhor eficácia e com maiores chances de remissão do
transtorno, é essencial proporcionar um programa psicoterápico
eficaz que seja aceitável para o paciente, a que ele dê importância e
do qual seja capaz de participar.
4.2. Redescobrindo o caso (Pontos-Chave)

1 Sexo feminino 4 Preocupação excessiva com a saúde

Interpretação errada e supervalorização de sensações


2 Sem ocupação laboral 5
corporais

3 Ausência de insight 6 Cibercondria

A paciente está apresentando um quadro de Transtorno de


Ansiedade de Doença (TAD). A duração dos sintomas da paciente,
seu medo, sua preocupação e a insistência excessiva em relação a
ter uma doença grave, associados ao histórico de idas repetidas ao
médico em curto período de tempo, sem alterações no exame físico
ou nos exames complementares, reforçam o diagnóstico. É
importante pesquisar com mais profundidade sintomas persistentes
de ansiedade, depressão, ideias obsessivas e pensamento delirante.
O psiquiatra que a atendeu deve tranquilizá-la e tentar explicar
que seus sintomas, provavelmente, são de origem psicogênica e não
orgânica, explanando que as sensações anormais que ela sente não
possuem uma base orgânica grave como ela acredita, tendo o
cuidado de não desvalorizar seus sintomas. É importante
conscientizar a paciente sobre sua condição, reconhecendo o medo
da doença e o sofrimento que ela vem sentindo, tentando propiciar
uma relação de confiança. O médico deve ainda avaliar e tratar
doenças médicas gerais diagnosticadas e as comorbidades
psiquiátricas, limitando os testes diagnósticos e referências aos
especialistas. Seria interessante agendar consultas regulares, com o
intuito de evitar a sobrecarga de emergências ou a procura por
outros médicos. Por fim, com o objetivo de melhorar a maneira da
paciente de lidar com o medo e prevenir que adote um papel de
doente, instruí-la quanto às formas de tratamento possível:
psicoterapia e farmacoterapia.

Exemplo de uma prescrição para Socorro


Citalopram 20mg/dia, meio comprimido, via oral, após o café
da manhã, aumentando a dose para 1 comprimido diário após
7 dias.

Referências
1. French JH, Hameed S. Illness Anxiety Disorder.
In: StatPearls. Treasure Island (FL): StatPearls Publishing;
2020.
2. American Psychiatric Association. Manual de diagnóstico e
estatística de transtornos mentais – DSM-5. 5. ed. Porto
Alegre: Artmed; 2014.
3. Newby JM, Hobbs MJ, Mahoney AEJ, Wong SK, Andrews
G. DSM-5 illness anxiety disorder and somatic symptom
disorder: Comorbidity, correlates, and overlap with DSM-IV
hypochondriasis, Journal of Psychosomatic Research 2017;
101: 31-37. doi: 10.1016/j.jpsychores.2017.07.010.
4. Chappell AS. Toward a Lifestyle Medicine Approach to
Illness Anxiety Disorder (Formerly Hypochondriasis). Am J
Lifestyle Med. 2018;12(5):365-369. Published 2018 Apr 27.
doi:10.1177/1559827618764649.
5. Tyrer P. Recent Advances in the Understanding and
Treatment of Health Anxiety. Curr Psychiatry Rep 20. 2018;
49. https://doi.org/10.1007/s11920-018-0912-0.
6. Scarella TM, Boland RJ, Barsky AJ. Illness Anxiety
Disorder: Psychopathology, Epidemiology, Clinical
Characteristics, and Treatment. Psychosom Med. 2019
Jun;81(5):398-407.
7. Hart J, Björgvinsson T. Health anxiety and hypochondriasis:
Description and treatment issues highlighted through a case
illustration. Bull Menninger Clin. 2010;74(2):122-140.
doi:10.1521/bumc.2010.74.2.122.

SIGLAS

• ISRS Inibidores Seletivos da Recaptação de Serotonina


• ISRSN Inibidores Seletivos da Recaptação de Serotonina
e Noradrenalina

• TAD Transtorno de Ansiedade de Doença


• TCC Terapia Cognitivo-Comportamental
• TOC Transtorno Obsessivo-Compulsivo
1. CASO CLÍNICO
Patrícia, 27 anos, solteira, chega na emergência do hospital
acompanhada de seu irmão, apresentando uma aparente crise
convulsiva que já durava 10 minutos. Quadro iniciado após término
de relacionamento.
Na avaliação médica, fez-se um eletroencefalograma de
emergência que não demonstrou anormalidades.
O acompanhante relata ser o primeiro episódio da paciente e que
ela não tinha história de doença neurológica prévia. Diz ainda que a
paciente já possui o diagnóstico prévio de transtorno de ansiedade
generalizada desde a sua adolescência, porém não faz o tratamento
farmacológico adequado, nem psicoterapia. O irmão diz que ela
sempre sofreu muito durante a infância porque seus pais eram
negligentes.
O médico optou por não fazer uso de anticonvulsivante e a
paciente acordou da crise minutos após a chegada na emergência,
relatando não lembrar o que houve.

Exame mental: a paciente não apresentou liberação


esfincteriana, não mordeu a língua e seus olhos estavam
fechados, dificultando o exame das pupilas devido à rigidez das
pálpebras.

2. DISCUTINDO O DIAGNÓSTICO
O termo “conversão” foi descrito inicialmente por Sigmund Freud,
durante o famoso caso de Anna O, uma jovem que apresentava
sintomas (aparentemente neurológicos) inexplicáveis para os
neurologistas da época. Suas queixas começaram após a perda do
pai por tuberculose. Casos como esses eram tratados pela teoria da
“histeria” do século XIX. Derivada da palavra grega Hysteron – que
significa “útero” –, a histeria, estudada desde Hipócrates na Grécia
Antiga, era tida como exclusiva do sexo feminino, pois existiriam
processos psicodinâmicos específicos da mulher que estariam
“lesionados”. Atualmente, pelo DSM-5, os sintomas histéricos
foram repaginados e são também conhecidos como sintomas
neurológicos funcionais e batizados de transtorno conversivo.
É comum a crença entre os médicos que o paciente está
simplesmente fingindo os seus sintomas, porém as queixas desses
doentes são frutos de conflitos inconscientes produzidos de forma
involuntária. Geralmente, é possível identificar um estressor que
desencadeia a crise. Em pacientes com histórias familiares de
sofrimento por alguma patologia, o doente pode manifestar,
inicialmente, os sinais e os sintomas que o familiar apresentou
durante seu processo adoecimento. No caso da Anna O, o sintoma
inicial foi uma tosse intensa, parecida com a do seu pai antes de
falecer, e, somente em seguida, apareceram os sintomas
neurológicos. É importante lembrar que existem culturas em que a
conversão não se configura doença, são sintomas que ocorrem em
rituais e que não causam sofrimento ou prejuízo funcional. Nesses
casos, os sinais e os sintomas são plenamente explicados por
ocorrerem dentro de um contexto cultural, logo o diagnóstico de
transtorno conversivo não pode ser considerado.
O DSM-5 coloca como critérios diagnósticos os seguintes:

a. Um ou mais sintomas de função motora ou sensorial


alterada.
b. Achados físicos evidenciam incompatibilidade entre o
sintoma e as condições médicas ou neurológicas encontradas.
c. O sintoma ou déficit não é mais bem explicado por outro
transtorno mental ou médico.
d. O sintoma ou déficit causa sofrimento clinicamente
significativo ou prejuízo no funcionamento social, profissional
ou em outras áreas importantes da vida do indivíduo ou requer
avaliação médica.

Além disso, o mesmo manual de classificação orienta que


especifiquemos se o transtorno consiste de episódio agudo
(sintomas presentes há menos de 6 meses) ou persistente (sintomas
ocorrendo há 6 meses ou mais) e, também, se há ou não estressor
psicológico identificável.
São comuns características psicológicas associadas em pessoas
com o transtorno conversivo, sendo importante o reconhecimento
dos ganhos primários e secundários para o auxílio do diagnóstico.
Precisa estar claro para o médico que o paciente busca
inconscientemente um ganho primário devido a conflitos internos da
sua própria psiquê. São complexos e insuportáveis para o paciente
que acaba por “convergir” esses conflitos em sintomas
pseudoneurológicos.
O DSM-5 atenta para alguns achados inconsistentes no exame
físico que auxiliam na identificação do transtorno conversivo, tais
como:

• Sinal de Hoover, no qual a fraqueza da extensão do


quadril retorna à força normal com flexão do quadril
contralateral contra resistência.

• Fraqueza acentuada da flexão plantar do tornozelo quando


testada no leito em um indivíduo capaz de caminhar na
ponta dos pés.

• Achados positivos no teste diagnóstico do tremor. Nesse


teste, um tremor unilateral pode ser identificado como
funcional se mudar quando o indivíduo estiver distraído
dele. Isso pode ser observado pedindo-se para o paciente
imitar o examinador fazendo um movimento rítmico com a
mão não afetada: ocorre mudança no tremor de tal forma,
que ele imita ou “embarca” no ritmo da mão não afetada,
ou o tremor funcional é suprimido, ou não mais assume um
movimento rítmico simples.

• Em ataques que se assemelham a epilepsia ou síncope


(ataques não epiléticos psicogênicos), a presença de olhos
fechados com resistência à abertura ou um
eletroencefalograma simultâneo normal (embora isso por si
só não exclua todas as formas de epilepsia ou síncope).

• Para sintomas visuais, um campo visual tubular (por


exemplo: visão em túnel).

Uma apresentação comum do transtorno conversivo nas


emergências hospitalares é a chamada “convulsão histérica”,
também chamada de convulsão psicogênica não epiléptica ou
convulsão conversiva. De fato, é difícil para um médico não
especialista que, ao se deparar com uma “convulsão”, não pense
imediatamente em condutas de urgência como diazepam
endovenoso ou hidantalização. Porém, essa é uma conduta que
exige cautela. No início da avaliação, com base na semiologia
médica, o médico deve perceber as características inconsistentes
com a apresentação do quadro convulsivo. Em seguida, deve
investigar o começo da crise e decidir se existem fatores sugestivos
de um processo psicogênico, podendo encontrar algum fator
estressor. É importante lembrar de sempre investigar o passado do
paciente, se teve quadros semelhantes anteriormente, se tem
diagnóstico de epilepsia (apesar que até 50% dos pacientes
epiléticos podem apresentar pseudocrises ao longo da vida) e até
mesmo de outros transtornos psiquiátricos. A seguir, um quadro
com algumas diferenças entre os tipos de convulsão.

Quadro 1 - Diferenciação entre crises epilépticas e convulsões


psicogênicas
Convulsão Epilética Convulsão Psicogênica

Olhos com as pálpebras abertas durante a Olhos com as pálpebras fechadas durante a
crise. crise convulsiva.

Início agudo e inesperado, paciente pode se Início gradual e duração prolongada, a queda
machucar seriamente durante a queda. é mais suave e amortecida, sem traumas.

Reflexo da córnea comprometido no pós-


Não existe alteração no reflexo da córnea.
ictal.

Resposta plantar extensora após a convulsão


Sem resposta plantar extensora.
tônico-clônica generalizada.

É comum a lesão por mordida simultânea da Raramente existe lesão na língua e, quando
língua (grave, lateral da língua) e presente, será na extremidade. Rara liberação
incontinência urinária no pós-crise. esfincteriana.

Respiração pós-ictal ruidosa e com aparente


Respiração normal, sem alterações.
dificuldade.

Abertura ocular fácil pelo médico, sem Abertura da pálpebra resistente, o médico
dificuldades. tem dificuldade em forçar a abertura ocular.

Fonte: elaborado pelos autores.

5. ASPECTOS SOBRE
EPIDEMIOLOGIA E ETIOLOGIA
Estima-se que sintomas neurológicos sem explicação orgânica clara
correspondam a cerca de 30% nos consultórios. Análises de
populações de pacientes neurológicos sugerem que cerca de 20%
dos pacientes nos ambulatórios de neurologia possuem sintomas de
conversão.
Os dados na população geral ainda são obscuros. No entanto, o
DSM-5 aponta que a prevalência de indivíduos com sintomas
conversivos persistentes é estimada em 2 a 5/100.000 por ano.
Outros estudos e diretrizes divergem e apontam uma incidência de 4
a 12/100.000 por ano em relação à população geral. Em se tratando
de estudos com pacientes psiquiátricos, a incidência aumenta para
11 a 22/100.000 por ano.
Observou-se uma predominância de 2 a 3 vezes maior no sexo
feminino, diferença que fica mais acentuada na infância. Mulheres
com transtorno conversivo têm chance maior de terem transtorno
de sintomas somáticos. Quanto aos homens, estudos mostraram
que os doentes estavam frequentemente envolvidos em acidentes de
trabalho ou eram militares. Exclusivamente no sexo masculino,
existe uma relação entre o transtorno conversivo e o transtorno de
personalidade antissocial. Em áreas rurais há maiores prevalências
do transtorno do que em áreas urbanas.
O início do transtorno costuma ser no fim da infância até o
início da vida adulta, em geral entre os 10 e os 35 anos. Fora dessa
faixa etária é raro e está mais relacionado a problemas neurológicos
orgânicos. Histórias de abuso e de negligência durante a infância
são fatores de risco para o transtorno conversivo. Outros fatores de
risco conhecidos são doenças neurológicas de base que causem
sintomas similares e traços de personalidade mal-adaptativos.
Comumente, os doentes com transtorno conversivo apresentam
comorbidades psiquiátricas associadas. Histórico pessoal de
depressão e de quadros ansiosos, sintomas somáticos e ataques de
pânico são frequentemente relatados. Estudos em hospitais
psiquiátricos mostram que até mesmo um quarto dos pacientes
possuem um transtorno de humor clinicamente significativo.
Transtornos de personalidade, especialmente os de personalidade
histriônica e dependente, são comuns entre os pacientes com
transtorno conversivo. Além disso, foi visto que outras condições
costumam estar associadas, como: síndrome do intestino irritável,
fibromialgia e dor pélvica crônica. Podem ocorrer, também, nos
episódios de conversão, sintomas dissociativos, sendo os mais
comuns: amnésia dissociativa, despersonalização e desrealização.

Figura 1 - Comorbidades no transtorno conversivo

Fonte: elaborada pelos autores.

Em relação ao prognóstico, alguns estudos sugerem que


intervenções precoces e em pacientes mais jovens estão
relacionadas a melhores resultados. Quando falamos do prognóstico
em adultos, os estudos mostram um desfecho geralmente
desfavorável, sugerindo que os sintomas neurológicos funcionais
possuem a tendência de permanecer ou até mesmo piorar com o
tempo. Os preditores mais relacionados a desfechos ruins foram as
crenças de não recuperação do próprio paciente, sintomas físicos e
não físicos associados e o recebimento de benefício financeiro
relacionado à doença. Comorbidades psiquiátricas associadas
também possuem forte relação com desfechos desfavoráveis,
mostrando uma forte correlação com outros distúrbios psiquiátricos,
principalmente os transtornos ansiosos. Vale salientar que a
conversão pode ser incapacitante em casos mais extremos.
Na faixa etária de infância e adolescência, foi observado que a
maioria dos casos tem duração mais curta, embora haja recaídas
com estressores individuais. A demora média do recebimento do
diagnóstico na infância costuma ser de duas semanas até cinco anos,
período no qual a criança é submetida a exames e intervenções
desnecessárias.

6. DIAGNÓSTICO DIFERENCIAL
O principal diagnóstico diferencial são as condições neurológicas.
O médico deve realizar exame clínico neurológico, levando em
consideração as várias doenças que podem explicar de forma
consistente os sintomas apresentados. Avaliação neurológica e
realização de exame físico (além de exames de neuroimagem
quando ainda restarem dúvidas) raramente localizará alguma
patologia orgânica, porém, deve-se ter em mente que doenças
neurológicas podem coexistir com o transtorno conversivo. Em caso
de progressão dos sintomas é preciso reavaliação propedêutica.
Com isso, é mandatório a exclusão de causas orgânicas, pois existe
a estimativa que 25% a 50% dos indivíduos que recebem o
diagnóstico de transtorno conversivo acabam, posteriormente,
recebendo o diagnóstico de enfermidades neurológicas ou não
psiquiátricas.
Sobre o paciente com predomínio de sintomas sensitivos e
motores, precisamos considerar o diagnóstico diferencial de
transtorno de sintomas somáticos. Nesses casos, é comum o
paciente se queixar de parestesias e paresias. Uma característica que
pode ajudar a diferenciar o transtorno de sintomas somáticos da
conversão é a possibilidade de várias queixas não serem ligadas ao
sistema nervoso.
Uma dificuldade comum para os clínicos é saber diferenciar um
quadro de transtorno factício com a conversão. Algo que pode
ajudar a distinguir os dois transtornos é a identificação de
comportamento fraudulento, como exames com resultados
incompatíveis com o quadro, marcas de injeção ou traumas com
justificativas suspeitas. Lembrando que o no transtorno factício o
paciente falseia ou simula sintomas de forma proposital.
Outra condição que pode se confundir com transtorno
conversivo e também com o factício é a própria simulação de
doença. Sua principal característica é o ganho secundário com o
processo de adoecimento. No ganho secundário, o paciente procura
fugir das suas obrigações ou receber algum ganho perceptível (ex.:
ganho financeiro) com o seu quadro, seja ele qual for.
Existe uma forte relação entre a dissociação e a conversão,
sendo comuns sintomas dissociativos em doentes com o transtorno
conversivo. Na dissociação, há uma perturbação da consciência que
pode ser manifesta com desmaios ou amnésias, por exemplo.
Pacientes com transtorno depressivo podem relatar uma sensação
de peso generalizada nos membros, ficando imóveis por vários dias
provocando confusão com sintomas pseudoneurológicos da
conversão. Pacientes com transtorno de pânico podem apresentar
sintomas neurológicos episódicos, principalmente tremores e
parestesias.

Quadro 2 - Diagnósticos diferenciais do transtorno conversivo


Os sintomas da doença
Doenças
Sintomas Pode coexistir com a neurológica de base
neurológicas
progridem conversão pode servir para a
orgânicas
conversão

Transtorno de Doença de Pode ocorrer Comportamento


sintomas caráter crônico apresentações excessivo
somáticos inespecíficas em vários característico
sistemas

Ganhos primários na
Fabricação status de enfermidade (por Evidências da
Transtorno
consciente dos exemplo: carinho dos falsificação do quadro
factício
sintomas familiares ou até mesmo de doença
atenção dos médicos)

Ganhos secundários
Fabricação óbvios com a doença (por Evidências da
Simulação de
consciente dos exemplo: fugir de falsificação do quadro
doença
sintomas responsabilidades ou de doença
ganho de dinheiro)

Sintomas de
Transtorno Geralmente sem
percepção Preocupações excessivas
Dismórfico alterações sensoriais
anormal com defeitos corporais
Corporal ou motoras
corporal

A confusão
ocorre, na Catalepsia depressiva,
Transtornos Fraqueza em todo o
maioria dos estado em que o paciente
depressivos corpo
casos, na fica totalmente imóvel
depressão grave

Doença Sintomas neurológicos Cada crise dura 30


Transtorno do
episódica e associados são geralmente minutos em média,
Pânico
aguda tremores e parestesias sendo raro passar disso

Fonte: elaborado pelos autores.

6.1. E ai? O que fazer?


Primeiramente, devemos ter a clareza que o tratamento do
transtorno conversivo é um processo complexo, pois envolve
diversas esferas da vida do indivíduo. O doente que apresenta
conversão possui conflitos intrapessoais importantes, o que exige do
profissional de saúde uma postura empática e sem julgamentos para
a construção de uma aliança terapêutica forte e longitudinal. Isso,
claro, inclui a aceitação do próprio paciente do seu quadro, pois a
negação da sua doença dificulta o tratamento e piora o prognóstico
nos adultos.
O profissional da saúde deve tentar um diálogo aberto com o
paciente, para que este se sinta acolhido e possa falar sobre seus
problemas. Deve-se investigar fatores predisponentes e precipitantes
relacionados ao transtorno.
As psicoterapias são estratégias terapêuticas válidas e podem
auxiliar, independentemente da abordagem específica. Dentre os
tipos de psicoterapia, os estudos clínicos randomizados mostram
fortes evidências da terapia cognitivo-comportamental para crises
conversivas não epiléticas. Essa modalidade visa apresentar ao
paciente técnicas de autogerenciamento, treinando suas respostas a
estressores específicos e ajudando nas suas identificações. Outras
modalidades de terapia também foram estudadas, porém em
pesquisas não randomizadas e com menor evidência.
O tratamento medicamentoso está indicado somente na vigência
de condições psiquiátricas comórbidas, como quadros depressivos
ou ansiosos.

6.2. Redescobrindo o caso (Pontos-Chave)


1 Sexo feminino

2 Idade de incidência

3 Tempo prolongado de crise

4 Fator estressor

5 Achados inconsistentes

6 Sem passado neurológico

7 Comorbidade psiquiátrica comum

8 Histórico de negligência parental

9 Sintoma dissociativo associado


É perceptível que Patrícia está apresentando um quadro de
convulsão psicogênica. Os achados clínicos inconsistentes com o
eletroencefalograma emergencial normal foram essenciais para o
diagnóstico rápido, além, claro, da expertise do profissional da
saúde em pensar nessa condição. O quadro era bastante florido, com
a epidemiologia clássica de uma paciente do sexo feminino na faixa
etária mais comum para o transtorno.
No caso em questão, é de extrema importância averiguar o
histórico prévio de doenças que possam explicar o quadro e também
comorbidades psiquiátricas. A história de negligência e de abuso é
um fator de risco de importância conhecida. Além disso, a
existência de sintomas dissociativos também ficou clara no caso em
questão. A instituição do tratamento farmacológico será orientada
para a comorbidade (transtorno de ansiedade generalizada), pois não
há evidência para tratamento medicamentoso para transtorno
conversivo. A paciente deve ser orientada a fazer seguimento
médico e psicológico.

Exemplo de uma prescrição para Patrícia


Paroxetina 20mg, 1 comprimido, via oral, por dia.

Referências
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Functional Neurological Symptom Disorder, and Chronic
Pain: Comorbidity, Assessment, and Treatment. Current Pain
and Headache Reports 2017; 21(6).
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estatística de transtornos mentais DSM-5. 5. ed. Porto Alegre:
Artmed; 2014.
3. Sadock BJ. Compêndio de Psiquiatria. 11. ed. Porto Alegre:
Artmed; 2017.
4. Conejero I, Thouvenot E, Abbar M, Mouchabac S, Courtet P,
Olié E. Neuroanatomy of conversion disorder: towards a
network approach. Reviews in the Neurosciences 2018;
29(4): 355-368.
5. Feinstein A. Conversion Disorder. Continuum: Lifelong
Learning in Neurology 2018; 24: 861-872.
6. Galli S, Tatu L, Bogousslavsky J, Aybek S. Conversion,
Factitious Disorder and Malingering: A Distinct Pattern or a
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7. Adams C, Anderson J, Madva EN, LaFrance Jr. WC, Perez
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disorder: now what? Practical Neurology 2018; 18(4): 323-
330.
8. O’Neal MA, Baslet G. Treatment for Patients with a
Functional Neurological Disorder (Conversion Disorder): An
Integrated Approach. American Journal of Psychiatry 2018;
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9. Duque PA, Vásquez R, Cote M. Transtorno conversivo en
niños y adolescentes. Revista Colombiana de Psiquiatría
2015; 44(4): 237-242.
10. Chen DK, Sharma E, LaFrance WC. Psychogenic Non-
Epileptic Seizures. Current Neurology and Neuroscience
Reports 2017: 17(9).

SIGLAS

• DSM-5 Manual Diagnóstico e Estatístico dos Transtornos


Mentais
1. CASO CLÍNICO
Manuela, 32 anos, ex-enfermeira chefe de um hospital local,
divorciada, vem ao atendimento médico de emergência acompanhada
de sua irmã. Paciente refere grande dor do tipo cólica, no flanco direto,
que irradia para o hipocôndrio direto e lombar, sem apresentar fatores
de melhora ou piora. Associado a esse quadro, refere ter medido a
temperatura oral em casa, constatando uma febre de 39,5°C.
Em seguida, o médico plantonista, ao tocar na paciente e perceber
sua pele fria, solicitou que ela colocasse o termômetro na região da
axila. A paciente prontamente o colocou e se ausentou do consultório
com termômetro sob o braço, dizendo que iria verificar se sua mãe
estava aguardando. Retornou ao consultório com termômetro marcando
o mesmo valor de 39,5ºC, mesmo já tendo relato de uso de antitérmico
em casa. Durante o atendimento, o pano que a paciente carregava
consigo caiu no chão e o médico, ao pegá-lo, percebeu que estava
molhado e quente. O sinal de Blumberg foi negativo. Tomografia e
ultrassonografia abdominais não mostraram nenhuma alteração.
Ao conversar com a irmã, o médico descobriu que essa era a terceira
vez da paciente em emergência durante 2 meses, sempre por sinais e
sintomas diferentes.

Exame mental: paciente se apresenta com fácies típicas de dor, em


posição antálgica em seu lado direito, gritando que sente muita dor
e que vai morrer pela incompetência dos médicos.

2. DISCUTINDO O DIAGNÓSTICO
O transtorno factício é uma entidade nosológica que foi caracterizada
pela primeira vez por Hector Gavin em 1835. Ele havia observado
pacientes que simulavam sinais e sintomas de doenças. O paciente com
esse transtorno foi descrito, inicialmente, como aquele que “quer obter
o conforto e a facilidade do hospital, evitando seus deveres”.
Durante os anos de estudo e discussão sobre o problema, muito tem
sido questionado sobre a razão dos sintomas serem passados de forma
tão dramática aos médicos. Já foi descrito também como síndrome de
Münchhausen, termo que foi consagrado em 1951 pelo médico Richard
Asher em um artigo para a revista Lancet, inspirado pelo famoso barão
alemão Hieronymus Friedrich Freiherr von Münchhausen, militar
conhecido pelo seu hábito de narrar suas histórias de guerra contra o
exército otomano, com feitos exagerados e de grande carga dramática.
Hoje, compreendemos que esse transtorno tem como pano de fundo
obter um ganho primário. Ou seja, um mecanismo de defesa
inconsciente, por meio do qual o paciente tem como motivação
participar do serviço de saúde e receber cuidados. Para diferenciarmos,
o ganho secundário consiste num “ganho palpável”, benefício
financeiro ou dispensa de obrigações (o que acontece na simulação).
No transtorno factício, não há ganho secundário. Aqui, os sintomas são
simbólicos, frutos de conflito psicológico inconsciente, e buscam
apenas estar numa posição de ser cuidado.
Os pacientes com esse distúrbio geralmente possuem conhecimento
técnico sobre os sintomas e, caso já tenham alguma patologia de base,
podem intensificar queixas de forma teatral e consistente. Pacientes
com comorbidades, como diabetes insulinodependente, podem injetar
em si doses mais altas de insulina para causar episódios de
hipoglicemia e necessitar de assistência em hospital. Nos casos em que
não possuem nenhuma patologia prévia e acabam “fabricando” os
sintomas, é comum uso de substâncias e medicamentos com o objetivo
de alterar os exames laboratoriais ou induzir doença em si. Alguns
pacientes podem adulterar exames de outras formas, como, por
exemplo, contaminando propositalmente exame de urina com fezes.
Até mesmo as queixas aparentemente incomuns, como alucinações
associados com sintomas autonômicos, podem ser resultado da mistura
de várias substâncias, como estimulantes, drogas ilícitas e fármacos.
O transtorno factício pode ser dividido em autoimposto e imposto
aos outros (conhecido anteriormente como transtorno factício por
procuração). Costuma ser de difícil manejo ao clínico generalista,
principalmente devido à falta de conhecimento para identificar e
manejar os sintomas exagerados, simulados ou induzidos pelo paciente.
O Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders (DSM-5)
coloca como critérios diagnósticos bem definidos no transtorno factício
autoimposto os seguintes itens:

1. Falsificação de sinais ou sintomas físicos ou psicológicos, ou


indução de lesão ou doença, associada a fraude identificada.
2. O indivíduo se apresenta a outros como doente, incapacitado
ou lesionado.
3. O comportamento fraudulento é evidente mesmo na ausência
de recompensas externas óbvias.
4. O comportamento não é mais bem explicado por outro
transtorno mental, como transtorno delirante ou outra condição
psicótica.

Saibamos que, além desses critérios, o médico, diante de um


paciente com transtorno factício, tem o dever de diferenciar entre
episódio único ou recorrente. Para manejo do quadro há necessidade da
ajuda dos familiares do doente, procurando entender os diversos
aspectos do paciente. Esses pacientes, com os sintomas e sinais
autoinfligidos e o seu complicado processo de adoecimento, podem
passar por diversas internações hospitalares até o esclarecimento real de
sua condição. Até mesmo médicos experientes podem não perceber de
modo fácil as pequenas diferenças entre o quadro factício do paciente
com uma situação real de uma outra doença.
Os sintomas e os sinais apresentados no transtorno podem ser
predominantemente físicos, psicológicos ou combinados. As
apresentações de caráter físico são as mais variadas possíveis, podendo
existir quadros fabricados em praticamente todos os sistemas do corpo.
O médico avaliador deve ter conhecimento dos exames laboratoriais
que possam excluir ou confirmar doenças orgânicas no doente. Em
muitos dos casos, principalmente pela demora nos reconhecimentos dos
casos factícios, o diagnóstico só é pensando quando acontece a
avaliação psiquiátrica. Quando sintomas psicológicos predominam,
aplica-se o conceito da pseudossimulação, que é definido pela
exacerbação da comorbidade preexistente ou por gerar um fator
confundidor que resulta em um diagnóstico psiquiátrico errôneo. Por
exemplo, imagine um paciente com transtorno factício simulando uma
síndrome psicótica pelo uso de substâncias alucinógenas, gerando
delírios e alucinações pela intoxicação. Isso poderia facilmente causar
impressão equivocada no médico avaliador. Casos de pseudossimulação
podem estar associados a transtornos mentais mais comuns também,
como quadros depressivos, em que os pacientes trazem relato verbal de
sintomas depressivos, amplificando, no discurso, os sintomas já
existentes e trazendo relato de novos.

Quadro 1 - Quadros físicos e psicológicos encontrados no transtorno


factício
Sinais e Sintomas Físicos Sinais e Sintomas Psicológicos

Endócrino: síndrome de Cushing, hipertireoidismo,


Depressão
hipoglicemia

Gastrointestinal: hemoptise, diarreia, colite ulcerativa Psicose e comportamento bizarro

Hematológica: anemia, anemia aplástica, coagulopatia Transtorno doloroso

Dermatológicas: queimaduras, escoriações, lesões Amnésia

Transtorno relacionado ao uso de


Neurológica: convulsões, plegias
substâncias

Fonte: Síntese elaborada pelos autores

A outra vertente desse problema é o transtorno imposto aos outros,


que possui uma linha tênue com o abuso físico e psicológico. O
paciente usa outra pessoa, geralmente crianças ou animal, para produzir
sinais e sintomas de forma intencional, embora a motivação seja
solucionar um conflito psíquico, inconscientemente (ganho primário).
Os critérios que o caracterizam, segundo o DSM-5, são:
1. Falsificação de sinais ou sintomas físicos ou psicológicos, ou
indução de lesão ou doença em outro, associada a fraude
identificada.
2. O indivíduo apresenta outro (vítima) a terceiros como doente,
incapacitado ou lesionado.
3. O comportamento fraudulento é evidente até mesmo na
ausência de recompensas externas óbvias.
4. O comportamento não é mais bem explicado por outro
transtorno mental, como transtorno delirante ou outro
transtorno psicótico.

É necessário frisar que o agente, e não a vítima, recebe o


diagnóstico. A vítima, no caso, recebe o diagnóstico de abuso. Um
aspecto importante do transtorno factício imposto aos outros é que, caso
seja reconhecido tardiamente, forma-se um padrão sucessivo de
comportamento fraudulento, agravando as violências sofridas pela
vítima. Este é o maior risco: quando o abuso físico e psicológico
permanece por muito tempo. Comumente, em crianças abusadas pelos
pais, encontram-se na vida adulta diversas comorbidades psiquiátricas,
como quadros graves de TEPT (transtorno de estresse pós-traumático) e
depressão. Além disso, pode haver internações hospitalares e risco de
morte da criança, consequência mais grave desse transtorno. Estima-se
que a taxa de mortalidade geral é de 6-9%. Esse quadro crônico de
abuso pode ser chamado também de Münchhausen por procuração.
Nessa situação, o cuidador assume, indiretamente, o papel de doente,
trazendo para si o processo de enfermidade e a necessidade do cuidado.
O transtorno factício tem um quadro de sinais e sintomas que são
fabricados e necessita de um manejo adequado, pois está associado a
alta morbidade e risco de morte. Isso se dá por conta dos danos
provocados no corpo do paciente ou no corpo da pessoa sob os
cuidados dele (por procuração) de modo repetitivo, tanto pelos meios
que usa para simular doença quanto pelos procedimentos invasivos e
cirúrgicos desnecessários a que é submetido. O prognóstico geral, na
maior parte dos casos, costuma ser reservado, mas faltam estudos
consistentes nesse quesito.

3. ASPECTOS SOBRE
EPIDEMIOLOGIA E ETIOLOGIA
Quanto à epidemiologia, há algumas divergências na literatura. No
entanto, é encontrado na maioria dos estudos que a prevalência geral da
síndrome de Münchhausen é maior no sexo masculino, geralmente em
homens de meia-idade, solteiros, com condição financeira desfavorável
e que se afastaram de suas famílias. Quanto aos casos de pacientes com
transtorno factício com predominância de sinais e sintomas físicos, as
mulheres são comumente mais atingidas do que os homens.
Geralmente, são mulheres entre 20 e 40 anos, com história de emprego
ou formação na área da saúde, mas podem ocorrer casos fora dessa
faixa etária.
Em relação à epidemiologia do transtorno factício por procuração, é
mais comum encontrarmos mulheres, cerca de 93% dos casos, que
cometem abusos contra bebês ou crianças pequenas na idade pré-
escolar. Geralmente, é a mãe ou responsável legal que comete a
agressão. Esses casos costumam ser mais raros ou pouco reconhecidos.
Falando sobre a etiologia do transtorno factício, relatos de casos
indicam uma possível relação da doença com abuso ou privação da
infância que resultaram em hospitalizações frequentes durante a
infância. Dentro desse contexto, a criança associa a hospitalização
como uma fuga de seus processos traumáticos internos e um ganho de
atenção que ela necessita e não está recebendo de outras formas.
Quando adulto, esse processo se torna uma compulsão em que o
indivíduo reforça um círculo vicioso de internações e autoflagelo. Esse
mecanismo faz o transtorno factício se tornar mais intenso e brutal com
o tempo, um circuito em que o indivíduo comete autoagressões para se
hospitalizar e, quando recebe alta, logo encontra outra forma de voltar
ao ambiente hospitalar.
Sabemos ainda que há subnotificação, o que se atribui,
principalmente, à dificuldade dos profissionais da saúde em identificar
o problema. Ainda sobre o DSM-5, ele coloca uma posição mais clara,
acredita-se que ao menos 1% dos pacientes em ambientes hospitalares
preencham os critérios do transtorno factício.

4. DIAGNÓSTICOS DIFERENCIAIS
Primeiramente, deve ser clara a diferença entre a simulação e o
transtorno factício. A simulação é um quadro fabricado de modo
consciente, cujos sinais e sintomas têm como objetivo algum ganho
secundário. Nesses casos, o processo de enfermidade possui
recompensas óbvias que são benéficas para o doente. Os tipos mais
comuns de recompensas observadas são as financeiras, fuga de
obrigações ou meramente obter comida e um lugar para dormir. Essa é
a maior diferença com o transtorno factício: a inexistência de um ganho
secundário bem definido. No espectro da doença, as recompensas são
sublimes e necessitam de total atenção para que o médico identifique os
ganhos primários. Geralmente, o doente se beneficia do estado de
doença ganhando o carinho e a atenção da equipe médica ou de outros
parentes.
Além disso, quando se fala em diagnósticos diferenciais não se pode
esquecer das demais síndromes somatoformes, em especial o
transtorno conversivo. A principal diferença com o transtorno factício
seria a sua característica de não ser uma alteração consciente do próprio
paciente. Ao contrário do transtorno factício, os sintomas não são
produzidos de forma fraudulenta. No entanto, a motivação de ambos
está relacionada à resolução de conflitos internos. De fato, essa é uma
diferença bastante subjetiva para o médico, mas é o um fator de
extrema importância durante a avaliação do doente.
Observe esse exemplo: você é o médico plantonista em uma
emergência, quando aparece uma mulher adulta de meia idade com
aparente convulsão tônico-clônica generalizada. O quadro começou
depois de uma briga intensa com o marido e, assim que os sintomas
iniciaram, os filhos a trouxeram rapidamente para o hospital. A conduta
seria fazer uso, imediatamente, de algum anticonvulsivante? Bem
difícil não se espantar e tomar uma conduta rápida, porém, esse é o
momento que você pode errar. Você pode estar diante de uma síndrome
conversiva, de uma convulsão verdadeira não provocada e de uma
convulsão verdadeira provocada por medicações (transtorno factício).
Em situações do gênero, todos esses diagnósticos devem,
obrigatoriamente, ser investigados com bastante cautela.
Como já dito, a característica de o sintoma ser fabricado de forma
consciente, ou não, ajuda na diferenciação do quadro. No transtorno
factício, costuma haver evidência da falsificação fraudulenta dos
sintomas, como marcas de injeções, reações adversas de medicamentos,
entre outros. No transtorno conversivo, os sintomas geralmente
ocorrem em associação temporal com algum estressor externo,
mostrando, assim, uma correlação clara entre o quadro apresentado e
situações estressoras vivenciadas pelo paciente. O médico deve sempre
investigar doenças prévias que possam explicar o quadro, por meio de
uma boa anamnese, detalhando a sintomatologia e tentando identificar
fatores associados.
Uma outra situação que necessita uma diferenciação é o transtorno
de sintomas somáticos, pois existem comportamentos comuns entre o
paciente somatizador e o factício. O comportamento até um pouco
teatral e a necessidade de atenção médica urgente na somatização pode
ser confundido com uma simulação, porém, vale ressaltar que o doente
somatizador é um ansioso crônico que não está de modo consciente
fabricando o sintoma.
Outra entidade que pode confundir o médico é o paciente com
transtorno de personalidade borderline. Nessas situações, pode
existir automutilação. Esses comportamentos são comuns no paciente
borderline, devendo ser considerados autoflagelos sem intencionalidade
suicida, que são sinais bem mais claros de sofrimento psíquico intenso
e não costuma ter objetivo algum de ganho pessoal.
Por último, por mais complexo que pareça, não se deve excluir a
presença de outros transtornos mentais não identificados ou até mesmo
condições médicas verdadeiras. Mesmo em pacientes com transtorno
factício, existe a possibilidade de que haja alguma doença física e que o
comportamento teatral do paciente exacerbe sua apresentação.
Ademais, outras condições mentais devem ser aventadas, podendo estar
associados diversos transtornos no paciente com transtorno factício. É
muito comum o paciente com o transtorno factício possuir alguma
história prévia de transtornos de humor (como depressão maior e
transtorno bipolar), transtornos de personalidade e transtorno por uso de
substâncias psicoativas. Dentre essas comorbidades, uma bastante
associada a pacientes com transtorno factício é o transtorno de
personalidade borderline.

Quadro 2 - Diferenças entre os diagnósticos diferenciais do transtorno


factício
Diagnósticos Diferenciais

Sintomas fabricados de
Sintomas neurológicos não
Transtorno forma inconsciente Sem recompensa
orgânicos (Exemplo:
conversivo (geralmente com algum óbvia
convulsão conversiva)
estressor prévio)

Sintomas gerais não


Sintomas explicados por causas Sintomas fabricados de Comportamentos
somáticos orgânicas (Exemplo: dor forma inconsciente sem recompensas
retroesternal)

Sintomas fabricados ou Sintomas fabricados de Recompensas óbvias,


Simulação
simulados forma consciente ganhos secundários

Paciente em
Transtorno de Automutilação não ocorre
Borderline sofrimento psíquico,
personalidade em conjunto com a fraude
geralmente, ansioso

Fonte: elaborada pelos autores.

4.1. E aí? O que fazer?


Deve-se procurar entender que o paciente com transtorno factício está
passando por sofrimento e a sua abordagem precisa ser acolhedora e
empática. Realize a comunicação do diagnóstico de forma clara e no
momento que julgar mais adequado, pois o conhecimento sobre o
problema por meio da psicoeducação é uma medida essencial para o
manejo adequado do transtorno e a melhora do prognóstico. É comum
que o paciente não se identifique e nem aceite o problema, culpando o
profissional de saúde pela sua condição. É estimado que apenas 17,2%
dos doentes reconhecem e aceitam os seus comportamentos como
simulações de doenças reais, e isso torna o tratamento um grande
desafio. Não há consenso na literatura sobre confrontar ou não o
paciente sobre a sua condição, o que pode dificultar a elaboração um
plano de cuidados específico.
Durante as consultas, a fim de auxiliar na recuperação do paciente,
pode ser necessário que ele seja encaminhado para a avaliação de um
psiquiatra. É importante, também, tratar as comorbidades psiquiátricas
associadas, fazendo com que o paciente apresente uma melhor
recuperação dos seus sintomas factícios. Outro ponto de extrema
importância na avalição do paciente é avaliação de risco de suicídio.
Ademais, é recomendado que, ao identificar um paciente com
transtorno factício, o médico avalie o paciente de forma integral,
reconhecendo os fatores biopsicossociais envolvidos no processo de
adoecimento e fortaleça o vínculo terapêutico com o paciente.
Quanto ao tratamento farmacológico do transtorno factício, não há
relatos consistentes de recomendação de prescrição de medicações. No
entanto, alguns estudos sugerem que os inibidores de recaptação de
serotonina possuem boa resposta na redução do comportamento
impulsivo quando este é um componente importante no transtorno.
Quando houver comorbidade psiquiátrica importante associada, deve
ser tratada com a medicação indicada para ela.

4.2. Redescobrindo o caso (Pontos-Chave)


1 Sexo feminino

2 Idade de incidência

3 Conhecimento técnico sobre os sintomas

4 Sinais do comportamento fraudulento

5 Comportamento recorrente

Processo dramático de adoecimento e


6 culpabilização dos médicos pela sua
condição

Manuela está fabricando seus sintomas, com uma apresentação de


dor dramática incomum e sem explicações orgânicas que expliquem seu
quadro. É notório que a paciente possui conhecimento técnico nos
sintomas que apresenta e comportamento recorrente e inconsistente.
Além disso, antes do diagnóstico de transtorno factício, é preciso
excluir todas as causas orgânicas que possivelmente possam causar os
sintomas. Os sinais de comportamento fraudulento e a culpabilização
dos médicos reforçam o diagnóstico, pois a paciente, ao ser questionada
dos seus sintomas, sente-se insegura e tenta descredibilizar o
profissional.
O médico plantonista deve ter cuidado ao abordar a paciente,
tentando ser empático e ter uma postura acolhedora com o doente. É
preciso estimular a consulta com o psiquiatra e o psicoterapeuta. Por
fim, caso o profissional perceba comportamento impulsivo
predominante no transtorno factício, pode-se usar de farmacoterapia a
classe do antidepressivos ISRS, outras comorbidades psiquiátricas
associadas são de manejo ao especialista.

Exemplo de uma prescrição para Manuela


Psicoeducação
+
Detalhar história para avaliar necessidade de psicoterapia e
farmacoterapia

Referências
1. American Psychiatric Association. Manual de diagnóstico e
estatística de transtornos mentais DSM-5. 5. ed. Porto Alegre:
Artmed; 2014.
2. Eastwood S, Bisson JI. Management of Factitious Disorders: A
Systematic Review. Psychotherapy and Psychosomatics 2008;
77(4): 209-218.
3. Wise MG, Ford CV. Factitious Disorders. Primary Care: Clinics
in Office Practice 1999, 26(2): 315-326.
4. Schrader H, Bøhmer T, Aasly J. The Incidence of Diagnosis of
Munchausen Syndrome, Other Factitious Disorders, and
Malingering. Behavioural Neurology 2019; 1-7.
5. Caselli I, Poloni N, Ielmini M, Diurni M, Callegari
C. Epidemiology and evolution of the diagnostic classification of
factitious disorders in DSM-5. Psychology Research and
Behavior Management 2017; 10: 387-394.
6. Galli S, Tatu, L., Bogousslavsky, J., & Aybek, S.
(2017). Conversion, Factitious Disorder and Malingering: A
Distinct Pattern or a Continuum? Frontiers of Neurology and
Neuroscience, 72-80.
7. Tatu L, Aybek S, Bogousslavsky J. Munchausen Syndrome and
the Wide Spectrum of Factitious Disorders. Frontiers of
Neurology and Neuroscience 2017; 81-86.
8. Yates GP, Feldman MD. Factitious disorder: a systematic review
of 455 cases in the professional literature. General Hospital
Psychiatry 2016; 41: 20-28.
9. Sousa Filho D, Kanomat EY, Feldman RJ, Maluf Neto A.
Munchausen syndrome and Munchausen syndrome by proxy: a
narrative review. Einstein (São Paulo), 2017; 15(4): 516-521.
10. Sadock BJ. Compêndio de Psiquiatria. 11. ed. Porto Alegre:
Artmed; 2017.
11. Schreier H. Munchausen by proxy. Current Problems in
Pediatric and Adolescent Health Care 2004; 34(3): 126-143.
SIGLAS

• DSM-5 Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos


Mentais

• TEPT Transtorno de Estresse Pós-Traumático


1. CASO CLÍNICO
Bruna, 24 anos, casada, comparece para o atendimento acompanhada de sua
genitora. Mãe refere que a paciente não se recorda dos últimos 3 anos e que,
há uma semana, Bruna fugiu de sua casa onde vivia com o marido, viajou de
transporte público para a cidade onde morava com sua mãe antes de se casar,
andou pelas ruas por 5 horas até ser parada por um policial. A genitora relata
ainda que notou lesões nos membros inferiores e nos seios da paciente, mas
que Bruna não sabe o que as causou.
Paciente tem história de tentativa de suicídio há 1 ano.

Exame mental: paciente refere insistentemente que é solteira e que


mora com a mãe. Quando questionada, informou seu endereço antigo
(da época de solteira) e negava recordar de eventos dos últimos 3 anos,
inclusive relatou que tinha 21 anos. Apresentava cicatrizes de
ferimentos em membros superiores e inferiores, hematomas na cabeça,
equimoses em seios e membros inferiores.

2. DISCUTINDO O DIAGNÓSTICO
O termo dissociar significa separar, desunir o que estava ligado. Nesse
contexto, os transtornos dissociativos são rupturas da integridade normal
de um ou mais grupos de processos mentais do indivíduo, como:
consciência, memória, identidade, percepção e controle motor. As
manifestações dos transtornos podem ser diversas e estão relacionadas com a
área afetada. Os sintomas surgem frequentemente como mecanismos de
defesa inconscientes em pessoas que vivenciaram situações traumáticas,
como negligência ou abuso infantil.
Os sintomas podem aparecer de forma súbita ou gradual e seu curso é
variável, permanecendo temporária ou cronicamente, variando entre os
demais transtornos dissociativos. Esses sintomas podem ser “positivos”,
quando ocorrem como intrusões que causam a descontinuidade na
experiência subjetiva do indivíduo, como, por exemplo, fragmentos de
identidade, despersonalização, desrealização. São “negativos” quando o
paciente perde a capacidade de acessar informações, como a memória, no
caso da amnésia dissociativa. É comum comportamentos suicidas e
autodestrutivos nos indivíduos que sofrem com esses transtornos. Por isso, é
importante questionar se há histórico de tentativa de suicídio ou de
automutilação.
Neste capítulo, abordaremos as principais subdivisões dos transtornos
dissociativos: amnésia dissociativa, transtorno de
despersonalização/desrealização e transtorno de dissociação de identidade.

3. TRANSTORNO DE
DESPERSONALIZAÇÃO/DESREALIZAÇÃO
Esse transtorno é caracterizado pela presença persistente de
despersonalização e/ou desrealização. Primeiramente, vamos definir esses
sintomas. Na despersonalização o paciente sente um distanciamento de si
próprio como um todo ou de alguns aspectos, do seu corpo, das suas
emoções, do seu pensamento ou de suas ações. Algumas vezes se sente
como um observador das suas próprias ações. São comuns que ele relate essa
sensação como: “me sinto fora do meu corpo”, “não consigo sentir os meus
sentimentos”, “meus pensamentos não parecem meus”, “estou anestesiado”,
“sinto que não controlo meus movimentos”.
A desrealização é caracterizada como um sentimento de irrealidade e
estranhamento com o ambiente ao redor. Os indivíduos vivenciam o mundo
com estranheza e, muitas vezes, apresentam distorções visuais subjetivas,
como, por exemplo, enxergam as pessoas e os objetos com embaçamento ou
névoa. Podem relatar a sensação de estar em um sonho ou vivendo em uma
bolha.
Além da despersonalização e da desrealização, ou de ambos, para o
diagnóstico desse transtorno dissociativo de despersonalização/desrealização
é necessário que o indivíduo permaneça com o teste de realidade intacto no
momento dos sintomas e que haja sofrimento clinicamente significativo que
afeta o funcionamento social, profissional ou em outras áreas da vida do
paciente. Também é importante ressaltar que os sintomas não sejam
causados por efeitos fisiológicos de substâncias ou por outra condição
médica ou por outro transtorno mental.
4. TRANSTORNO DISSOCIATIVO DE
IDENTIDADE
Por tratar-se de um transtorno complexo e que impressiona por suas
características, desperta muito interesse nas produções cinematográficas.
Nesse distúrbio, o paciente apresenta dois ou mais estados distintos de
personalidade, em que opiniões e preferências pessoais podem mudar
subitamente, repetidas vezes, além de relatarem que sentem seus corpos
diferentes.
No entanto, diferente de como esse transtorno é abordado nos filmes,
com comportamentos dramáticos e estados distintos bem elaborados, na
prática clínica e nos estudos analíticos observa-se que, na maioria dos
portadores desse transtorno, os sintomas dissociativos, como a
descontinuidade da identidade, não se apresentam abertamente por períodos
prolongados. Geralmente são sutis e discretos, por isso poucas vezes o
médico consegue observar na consulta a alternância de identidade. Nesse
caso, para o diagnóstico a investigação pode ser baseada em relatados de
familiares e amigos.
Os diferentes estados de identidades podem se sobrepor de forma
discreta e se manifestar como vozes internas, sendo importante distinguir de
alucinações auditivas presente nos transtornos psicóticos (vide tópico
“diagnóstico diferencial” mais adiante).
Além disso, para o diagnóstico é necessário que o paciente apresente
lacunas recorrentes na memória de eventos cotidianos que são incompatíveis
com esquecimento não patológico, como não lembrar de eventos importantes
da vida pessoal, por exemplo: memórias do casamento ou habilidades
adquiridas, como dirigir. Assim como os outros transtornos, os sintomas
resultam em sofrimento clinicamente significativo para o paciente e causam
prejuízos no âmbito social, familiar ou em outra área da vida do indivíduo. É
importante ressaltar que, para fins diagnósticos, essa perturbação não é
explicada por uma prática religiosa e não é decorrente de efeito fisiológico
de uma substância, a exemplo de lacunas ou alterações comportamentais
durante a intoxicação alcóolica. Também não pode ser explicado como
secundário a alguma outra condição médica.
5. AMNÉSIA DISSOCIATIVA
Na amnésia dissociativa, o indivíduo esquece informações importantes sobre
si mesmo, que são incompatíveis com o esquecimento não patológico. Os
pacientes com esse transtorno podem apresentar uma amnésia localizada, de
um evento específico da sua vida, ou, mais raramente, generalizada, de toda
a identidade. Esses sintomas causam um sofrimento significativo e prejuízo
na qualidade de vida, e não são acompanhados de lesões neurológias ou
médicas que os justifiquem, como sequelas de traumatismo craniano,
convulsões complexas parciais, nem são desencadeados por efeitos
fisiológicos de alguma substância psicoativa. No momento do diagnóstico,
deve-se excluir a presença de outro transtorno dissociativo, como de
identidade ou transtornos de estresse agudo.
O DSM-5 apresenta um especificador da amnésia dissociativa: a fuga
dissociativa. É importante ressaltarmos que essa condição também pode
estar presente no transtorno dissociativo de identidade. Nesse caso, o
paciente realiza viagem súbita, com incapacidade de recordar memórias do
seu passado, juntamente de um desejo de fuga. A duração desses episódios
geralmente é de minutos a horas, mas pode durar dias a meses.
Assim como os outros transtornos dissociativos, a amnésia dissociativa
costuma estar relacionada com traumas, sejam eles únicos ou repetidos,
como abuso sexual, experiências de combate, desastre natural, confinamento
em campos de concentração. A amnésia é potencialmente reversível e dura
geralmente por um período determinado. O paciente muitas vezes percebe os
seus sintomas, ao menos parcialmente.

6. ASPECTOS SOBRE EPIDEMIOLOGIA E


ETIOLOGIA
Os transtornos dissociativos afetam muitos indivíduos em todo o mundo.
Segundo alguns estudos eles podem estar presentes em 5,6% a 10% da
população geral. No entanto, ainda são poucas as pesquisas sobre a sua
prevalência em grandes populações. Acredita-se que esse número pode ser
ainda maior, pois, na prática clínica, muitos médicos não identificam esses
transtornos pela complexidade dos sintomas e pela associação com outras
condições.
Os sintomas são mais frequentes na adolescência e no início da vida
adulta, mas podem surgir nas outras faixas etárias, como na infância. Nesse
caso, o diagnóstico é um desafio, devido à dificuldade das crianças de
expressarem os sintomas subjetivos. Nos estudos realizados não foram
notadas diferenças da incidência entre os gêneros.
Apesar de alguns estudiosos trazerem poucas informações científicas
para a etiologia do transtorno, a hipótese diagnóstica mais aceita é o modelo
baseado em traumas. Nele, alguns indivíduos que vivenciaram experiências
traumáticas apresentam os sintomas dissociativos como uma resposta
protetora contra essas experiências, atenuando o impacto que essas vivências
representam para o indivíduo, alterando o estado contínuo da consciência,
sequestrando memórias traumáticas, por exemplo.
No século XX, estudos com soldados que lutaram na Primeira Guerra
Mundial, e depois outros estudos em outras guerras, como a Segunda Guerra
Mundial e a Guerra do Vietnã, relataram vários casos de indivíduos que
apresentavam sintomas dissociativos como: amnésia dissociativa, fuga
dissociativa, desrealização e despersonalização. Isso corroborou para a
principal hipótese etiológica desses distúrbios: os sintomas estão
relacionados com o trauma.

7. DIAGNÓSTICO DIFERENCIAL
Alguns sintomas dissociativos podem estar presentes em outros transtornos
mentais, o que causa um fator de confusão para o clínico no momento de
diagnosticar transtornos dissociativos. Portanto, para uma boa conduta é
importante conhecer os principais diagnósticos diferenciais desses
transtornos.
Além disso, não é raro que os transtornos dissociativos estejam
relacionados a outra condição psiquiátrica, como o transtorno obsessivo-
compulsivo (TOC), em que a literatura evidencia uma relação significativa
dos dois diagnósticos, principalmente naqueles pacientes com TOC,
apresentando sintomas graves e em casos refratários ao tratamento. Por isso,
na abordagem de um paciente com sintomas obsessivos-compulsivos, é
importante questionar sobre sintomas dissociativos e investigar histórico de
experiências traumáticas. Nesse contexto, é crucial distinguir pacientes que
apresentam os dois transtornos e pacientes que apresentam apenas
transtornos dissociativos. A ausência de outros sintomas obsessivos-
compulsivos, como pensamentos intrusivos e comportamentos repetitivos,
afastam o diagnóstico de TOC.
O transtorno de estresse pós-traumático (TEPT) é um importante
diagnóstico diferencial, pois ele pode apresentar sintomas dissociativos e
ambos estão relacionados a vivências traumáticas, representando um desafio
ao médico. Um sintoma comum em ambos é amnésia de parte ou de todo o
evento traumático específico, porém, em pacientes com amnésia
dissociativa, o sintoma se estende além do momento do trauma. No TEPT,
sintomas de intrusões, de evitação e o estado de identidade afastada do senso
de si e dos domínios das próprias ações também podem estar presentes,
concentrados no evento traumático no caso do TEPT.
Em algumas situações, pode ser difícil discernir entre os transtornos
psicóticos e os transtornos dissociativos, pois alguns sintomas dissociativos,
como fragmentação de identidade, alucinações visuais relacionadas a
eventos de traumas do passado (como flashbacks parciais), podem ser
confundidos com alucinações. Contudo, nos transtornos dissociativos há
presença de outros sintomas associados, como amnésia para o episódio.
Além disso, algumas experiências de despersonalização/desrealização, como
a sensação de estar morto, pode ser difícil de diferenciar de um delírio.
Nesse caso, a presença de um teste de realidade sem alterações corrobora
para o diagnóstico de transtornos dissociativos. O médico deve tentar
diferenciar se o paciente consegue identificar os seus sintomas como irreais
ou há convicção delirante, pois, geralmente, os pacientes com transtorno
dissociativo têm um insight razoável dos seus sintomas, sentindo, inclusive,
vergonha.
A amnésia pós-traumática devido a lesão cerebral pode causar dúvida
diagnóstica entre ela e a amnésia dissociativa, mas alterações em exames de
neuroimagem e sintomas focais, como alterações visuais e anosmia, apoiam
o diagnóstico de Lesão Cerebral Traumática (LCT). Ademais, diferente
dos sintomas dissociativos, a amnésia após LCT não está relacionada com
experiências de traumas psicológicos e ocorrem imediatamente depois de um
evento claro de trauma físico.
Transtornos factícios e simulação falseiam voluntariamente sintomas e
podem, eventualmente, mimetizar quadros dissociativos. O clínico deve
estar atento quanto à veracidade dos sintomas, quando há algum tipo de
vantagem, como benefícios financeiras ou jurídicas para o indivíduo, e
realizar uma investigação diagnóstica cuidadosa, pois alguns simuladores
confessam espontaneamente ou quando são confrontados.

7.1. E aí? O que fazer?


Primeiramente, para uma boa abordagem do caso, o médico deve estabelecer
uma boa relação com o paciente, demostrando empatia e segurança, para que
o paciente informe seus sintomas. Deve questionar ativamente sobre eventos
traumáticos e experiências da infância. Sempre que possível é importante
entrevistar pessoas próximas ao paciente, como familiares e amigos, pois
alguns transtornos dissociativos, como mudanças de padrões da identidade,
são mais bem percebidos por familiares.
Ademais, é crucial que o médico informe ao paciente sobre seu
transtorno e suas características, assim como o curso e os fatores que podem
desencadeá-lo. Orientar que não há patologia de ordem orgânica que esteja
causando os sintomas é fundamental.

8. FARMACOTERAPIA
Nos estudos avaliados, não foram notados benefícios significativos com
intervenções farmacológicas na maioria dos transtornos dissociativos. No
entanto, pode ser utilizado como tratamento coadjuvante no controle de
sintomas depressivos e ansiosos quando presentes.
No transtorno dissociativo de identidade, há relatos de benefício para
reduzir ansiedade e excitabilidade aumentadas em alguns pacientes por meio
do uso de Inibidores Seletivos da Recaptação de Serotonina (ISRS),
antidepressivos tricíclicos e neurolépticos atípicos, como risperidona,
quetiapina, ziprasidona e olanzapina. No transtorno dissociativo de
despersonalização/desrealização, estudos indicam que muitos ISRS, como a
fluoxetina, oferecem vantagens terapêuticas.

9. TRATAMENTO NÃO FARMACOLÓGICO


Os tratamentos não farmacológicos, como psicoterapia e hipnose, são a base
do tratamento dos transtornos dissociativos. Nesse caso, uma equipe
especializada e multiprofissional deve atuar em conjunto com o paciente e a
família, para um tratamento satisfatório.
A terapia cognitiva pode trazer benefícios no controle dos sintomas
dissociativos e ajudam a identificar eventos traumáticos que podem
proporcionar a recuperação de algumas memórias de forma controlada (no
caso da amnésia dissociativa).
A literatura cita a hipnoterapia como uma eficaz modalidade do
tratamento não farmacológico que pode atuar de várias formas com a
finalidade de conter e modular os sintomas dissociativos, principalmente os
graves. É importante ressaltar que o objetivo da hipnose na abordagem das
experiências traumáticas e dos sintomas dissociativos não é relembrar dos
eventos passados e, sim, estabilizar o paciente contra comportamentos
suicidas e autodestrutivos, modulando os sintomas graves, além de melhorar
sua qualidade de vida. Quando focado apenas nas recordações de memórias,
os sintomas podem ser agravados.

9.1. Redescobrindo o caso (Pontos-Chave)

1 Idade de incidência

2 Amnésia dissociativa

3 Fuga dissociativa

4 Possível violência como fator traumático

5 Histórico de tentativa de suicídio


Bruna apresenta um quadro muito típico de amnésia dissociativa com
fuga dissociativa. É importante buscar na história eventos ou experiências
traumáticos. No caso, o conteúdo da amnésia (esquecer os anos em que foi
casada) e as lesões na pele antigas e recentes sugerem que a paciente sofria
violência doméstica. O histórico de suicídio, comum nos transtornos
dissociativos, apoiam a principal hipótese diagnóstica.
Apoio psicoterápico, além de firmar aliança terapêutica, são os pilares
para o manejo do caso da paciente Bruna. Não há, a princípio, benefício no
uso de fármacos no caso.

Referências
1. American Psychiatric Association. Manual de diagnóstico e estatística de
transtornos mentais DSM-5. 5. ed. Porto Alegre: Artmed; 2014.
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SIGLAS

• TOC Transtorno Obsessivo-Compulsivo


• DSM-5 Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais
• TEPT Transtorno de Estresse Pós-Traumático
• LCT Lesão Cerebral Traumática
Os radicais “neuro” e “cognitivo” dão uma conotação que conferem
uma certa distância da psiquiatria. De fato, as condições listadas nessa
seção podem ter suas patologias e etiologias, em boa parte das vezes,
desvendadas pela investigação clínica. Os sintomas proeminentes
manifestam-se pela presença de alterações do comportamento pela
deterioração das funções mentais. Os domínios cognitivos afetados em
geral englobam a atenção, função executiva (planejamento, memória de
trabalho, tomada de decisão, entre outros), aprendizagem, memória,
linguagem, praxias, percepção visuoespacial e cognição social.
Dois capítulos compõem essa seção: uma condição aguda e de duração
limitada – o delirium, e outras de longa duração – as demências. O DSM-5
denomina, junto a outras condições, de transtornos neurocognitivos.
Preservamos os nomes demências e delirium pelo valor histórico e pela
capilaridade dos termos no meio médico e acadêmico.
1. CASO CLÍNICO
Rufino, 69 anos, casado, ensino médio completo. Vem ao atendimento
acompanhado da esposa, que refere que o paciente tem tido muitos
esquecimentos. Ela descreve que, em domicílio, a família percebe que
esses episódios de esquecimento vêm aumentando nos últimos anos.
Conta que o quadro se iniciou com esquecimento de recados, passou
para repetição de histórias em curto período de tempo, contando
novamente algum fato com o mesmo entusiasmo da primeira vez. Nega
alterações como desinibição e alucinações. Sem eventos
cardiovasculares prévios. Nega sintomas depressivos. A esposa relata
que atualmente não se sente segura de deixar o marido em casa sozinho,
devido à incapacidade de executar as tarefas cotidianas, como atender
ao telefone e fazer compras. Diz que ele não é como antes.

Exame mental: paciente esquece o nome do entrevistador, mesmo


tendo sido repetido mais de uma vez. Pergunta o motivo da
entrevista, pois afirma não “ter nada”. Por vezes, fala a mesma
afirmação repetidas vezes. A realização do Mini-Exame do Estado
Mental (MEEM) revelou pontuação de 15.

2. DISCUTINDO O DIAGNÓSTICO
As demências são também chamadas atualmente de transtornos
neurocognitivos maiores. São caracterizados pelo declínio global
associado ao déficit de uma ou mais funções cognitivas (agnosias,
apraxias, alterações de linguagem e de funções executivas). Essas
alterações interferem no desempenho laboral, social e familiar do
indivíduo acometido, causando limitações importantes para a sua vida
diária (fatos esses que interferem diretamente na autonomia do
paciente). É importante frisar que a demência se caracteriza por um
declínio cognitivo não presente ao nascimento ou no início da vida, e
sim após um nível de funcionamento alcançado anteriormente.
Dentre as causas mais frequentes dos quadros demenciais, podemos
citar a doença de Alzheimer (DA), a demência vascular (DV), a
demência por corpos de Lewy (DCL) e demência frontotemporal
(DFT).

2.1. Doença de Alzheimer


Caracteriza-se por um surgimento e evolução dos sintomas de forma
progressiva, comprometendo principalmente a memória. No início do
quadro, como o déficit de memória é leve, as atividades do dia a dia
ainda podem ser realizadas com relativa independência. Nos estágios
intermediários, além do déficit de memória, associam-se déficits mais
intensos nos outros domínios cognitivos, como linguagem, praxia,
atenção, funções executivas e orientação espacial. No estágio final da
doença, o indivíduo é totalmente dependente.
Para o diagnóstico de doença de Alzheimer, o paciente deve
apresentar todos os critérios a seguir:

• Uma deficiência clara da memória e da aprendizagem, com


base no exame neuropsicológico, principalmente pela amnésia
episódica.

• Um declínio progressivo da cognição, sem platô, sendo a


cognição social preservada até cursos mais graves da doença.

• Ausência de etiologia mista (não há outra doença


neurodegenerativa).

• Presença da mutação genética característica da doença de


Alzheimer, com base no teste genético.

Caso não possua todos esses critérios, classifica-se como uma


provável doença de Alzheimer.
2.2. Demência Vascular
As alterações cognitivas da demência vascular são muito mais variáveis
que as outras doenças, pois dependem dos substratos neurais atingidos
pelos eventos vasculares em cada caso. Em geral, predominam
sintomas de déficit de atenção, prejuízo de funções executivas e
processamento de informações.
Segundo o DSM-5, na demência vascular o déficit cognitivo deve
estar diretamente relacionado com um ou mais eventos
cerebrovasculares. Ocorre uma “degeneração em degraus”, com picos
de declínio de acordo com o acometimento vascular. Por conseguinte, a
alteração da neuroimagem deve ser correspondente ao déficit
apresentado, associada a uma história e exame físico compatíveis, ou
seja, proporcionais aos locais acometidos. Os sintomas não são mais
bem explicados por outras características clínicas.

2.3. Demência de Corpos de Lewy


O paciente geralmente apresenta uma flutuação dos déficits
cognitivos, alucinações visuais recorrentes e detalhadas, além de
sintomas parkinsonianos (como roda dentada, bradicinesia e tremor
em repouso) nas fases iniciais; a atenção, as funções executivas e as
habilidades visuoespaciais são os domínios cognitivos mais
comprometidos, com relativa preservação da memória, diferindo da
doença de Alzheimer. Contudo, com o evoluir da doença, essa diferença
tende a desaparecer.
O surgimento da demência por corpos de Lewy é insidioso e de
progressão gradual, o suficiente para atrapalhar as relações sociais ou
ocupacionais. Há uma combinação dos critérios centrais (cognição
oscilante, alucinações, sintomas parkinsonianos) com os critérios
subjacentes (distúrbio do sono REM, síncope e sensibilidade ao
neurolépticos). Outras características clínicas comuns são quedas
repetidas e síncope.

2.4. Demência Frontotemporal


A demência frontotemporal engloba déficits insidiosos e progressivos
no comportamento, nas funções executivas ou na linguagem devido à
atrofia progressiva dos lobos frontal e/ou temporal. Apresentam quadro
clínico caracterizado por alterações precoces de personalidade e de
comportamento, além de alterações de linguagem (redução da fluência
verbal, estereotipias e ecolalia). A memória e as habilidades
visuoespaciais encontram-se relativamente preservadas. Os sintomas
não são mais bem explicados por outro transtorno neurocognitivo.
Geralmente possui as duas variantes a seguir:

1. Variante comportamental: cursando com apatia, desinibição,


indiferença afetiva, alteração do padrão alimentar,
comportamento impulsivo.
2. Variante linguística: a qual apresenta-se com perda
significativa da capacidade semântica.

Como a demência frontotemporal progride, os sintomas das


variantes podem confluir. Alguns casos podem aparecer com alteração
da memória e aprendizagem com o decorrer da doença, mas são mais
raros.

3. ASPECTOS SOBRE
EPIDEMIOLOGIA E ETIOLOGIA
A prevalência dos quadros demenciais duplica a cada cinco anos após
os 60 anos, resultando em aumento exponencial com a idade. Estima-se
que esse valor seja de 5% na população acima de 65 anos, chegando a
40% dentre idosos com mais de 85 anos.
Dentre as causas de demências, a doença de Alzheimer é a mais
comum, ocupando mais da metade dos leitos das clínicas de repouso e
responsável por mais de 50% dos casos na faixa etária igual ou superior
a 65 anos. O segundo tipo mais comum é a demência vascular,
correspondendo a cerca de 10% dos casos, com dados de prevalência
encontrados entre 1,2% a 4,2% em indivíduos acima de 60 anos.
Todavia, é coerente lembrar que o risco para Demência Vascular é
muito relativo, podendo aumentar em até 40 vezes nos pacientes com
histórico de AVC (acidente vascular cerebral).
A demência por corpos de Lewy corresponde à terceira causa mais
frequente de demência; afeta 1-2 para cada 1.000 na população geral,
sendo que a prevalência também aumenta com a idade. Quando
mencionamos apenas as demências neurodegenerativas do sistema
nervoso central, a DCL sobe para a segunda colocação, perdendo
apenas para a DA.
Já a demência frontotemporal atinge o pico de incidência a partir da
sexta década de vida, mas há uma grande variação da idade para o
aparecimento dos sintomas, indo desde a segunda década de vida até a
nona década. A sobrevida varia de 7,5 a 12 anos, dependendo do
tamanho da lesão.
Com base no curso da doença, as demências são divididas em
degenerativas e não degenerativas (Quadro 1).

Quadro 1 - Demências degenerativas e não degenerativas


São associadas a processos patológicos que geram lesão
cerebral progressiva, como a doença de Alzheimer,
Degenerativas
demência com corpos de Lewy e demência
frontotemporal.

Acontecem devido a lesões cerebrais súbitas/agudas,


Não degenerativas
como a demência vascular e a lesão cerebral traumática.

Fonte: elaborada pelas autoras.

Além disso, as demências podem ser causadas por outras condições


médicas: causas neurológicas, neoplasias, infecções, distúrbios
nutricionais e até uso de substâncias. Podem ter evolução progressiva
ou estática, reversível ou não, dependendo da condição adjacente.
Na DA observa-se atrofia difusa dos sulcos corticais e aumento dos
ventrículos, juntamente aos quais há formação de placas senis, por meio
de emaranhados de neurofibrilas, os quais surgem anos antes de iniciar
o quadro clínico.
Acredita-se que a principal causa de demência vascular seja
inúmeros focos de doença vascular cerebral, o que promove o padrão
dos sintomas de demência, como o déficit cognitivo.

3.1. Diagnóstico Diferencial


O principal diagnóstico diferencial das demências é diferenciá-las entre
si e entre outras condições médicas, como hipotireoidismo,
metabolismo tóxico de medicações e infecções. No Quadro 2, está
listada a diferenciação entre as demências.

Quadro 2 - Diagnóstico diferencial entre as demências


Alzheimer Corpos de Lewy Vascular Frontotemporal

Início lento e Características


Alucinações precoces Evolução em
progressivo comportamentais
e ilusões “degraus”
Amnésia episódica proeminentes
Parkinsonismo Sintomas de acordo
Desorientação no (desinibição, alteração
Distúrbio com a lesão de base
tempo e no espaço do padrão alimentar)
comportamental do Incontinência
Ressonância com Deterioração
sono REM emocional
atrofia dos progressiva
Sensibilidade Doença
córtices parietais e Varia de acordo com o
neuroléptica grave cerebrovascular
occipitais tamanho da lesão

Fonte: síntese elaborada pelas autoras.

A diferenciação das demências para as causas médicas diversas


(reversíveis ou não) vai depender diretamente da anamnese, do exame
físico, dos exames laboratoriais e de imagem. Essas etapas são
importantes para distinguir a alteração da cognição na demência
daquela caracterizada por efeito de metabolismo tóxico por uso de
medicação ou por fator infeccioso, por exemplo.
O delirium é um importante diagnóstico diferencial, tendo em vista
que também cursa com importantes alterações cognitivas no idoso. O
delirium tem início rápido e curso reversível, o que difere nas
demências que costumam ser graduais. Há também oscilação do déficit
cognitivo no decorrer do dia. Outro ponto interessante é o rebaixamento
do nível de consciência presente no delirium e ausente na demência.
Na depressão no idoso, é comum que haja marcado déficit
cognitivo originado da queda do humor, proeminentemente desatenção
e amnésia, além de possível desorientação alopsíquica. A mimetização
do déficit cognitivo depressivo com quadros demenciais é conhecida
como pseudodemência depressiva. Na depressão, há uma tendência do
paciente queixar-se detalhadamente da perda de cognição e fazem
pouco esforço para realizar tarefas do cotidiano, com o padrão de
respostas “não sei” no MEEM (abordaremos esse instrumento de
triagem diagnóstica no próximo tópico). A perda de habilidade social
ocorre no início na depressão, enquanto na demência tal prejuízo
acontece após evolução do quadro.

3.2. E aí? O que fazer?


Durante a investigação de um paciente com suspeita de um quadro
demencial é de suma importância interrogar o acompanhante, pois na
maioria dos casos o paciente não tem percepção das suas dificuldades.
É ideal que o acompanhante seja um familiar ou amigo ciente dos
detalhes do quadro.
Durante a avaliação, devemos nos atentar às alterações de memória,
orientação e demais funções cognitivas. Avaliar também a capacidade
de realizar atividades da vida diária (AVDs): autocuidado, mobilidade,
alimentação, higiene pessoal; e atividades instrumentais da vida diária
(AIVDs): ir às compras, gerir o dinheiro, utilizar o telefone, limpar,
cozinhar e utilizar transportes.
Para eliminar vieses, é recomendado investigar ativamente sobre
sintomas depressivos precedentes ou simultâneos ao quadro cognitivo,
já que muitas vezes a depressão pode simular quadros demenciais
(pseudodemência depressiva).
Existem testes padronizados para avaliar as diferentes funções
cognitivas. Na prática clínica, o mais utilizado é o Miniexame do
Estado Mental (MEEM ou Minimental), sendo esse instrumento útil
para triar, estadiar e monitorar as demências.

Figura 1 - Formulário padrão para o MEEM


Fonte: Duncan et al.4

Quadro 3 - Nota de corte sugerida pelo Miniexame de Estado Mental


(MEEM)
Anos de escolaridade MEEM

<4 anos Menor ou igual a 17

>4 anos Menor ou igual a 24

Fonte: adaptado de Grigoli, Godinho, Ferreira, Almeida, Schuh, Kaye,


et al.15

Após a realização do MEEM, a depender do resultado e da suspeita


clínica de demência, é indicado encaminhar para uma avaliação
neuropsicológica em ambiente especializado. Durante o processo
investigativo, também se recomenda a solicitação de exames
laboratoriais e de neuroimagem estrutural. É importante mencionar que
os exames laboratoriais mandatórios na investigação etiológica de uma
síndrome demencial são: o hemograma, as provas de função tiroidiana,
hepática e renal, as reações sorológicas para sífilis/HIV e o nível sérico
de vitamina B12, podendo necessitar da solicitação de outros
indicadores laboratoriais específicos de acordo com sinais clínicos
sugestivos. Diferentemente da doença de Alzheimer, na demência
vascular, o MEEM como teste de triagem é pouco sensível, optando por
testes que priorizam o déficit de atenção e a função executiva.
Além disso, a agilidade para o diagnóstico contribui para o início
precoce de um tratamento adequado, favorecendo a melhora do
prognóstico. Tratamento iniciado em fases avançadas em geral é pouco
eficaz. O uso de benzodiazepínicos não é indicado, pois esses pacientes
costumam ser sensíveis, gerando um comportamento agressivo e
agitado.

4. TRATAMENTO NÃO
FARMACOLÓGICO
Medidas preventivas como dieta, exercícios e controle de doenças
adjacentes são importantes, principalmente na demência vascular. A
psicoeducação é essencial para que o paciente possa lidar com seu
déficit, de modo a manter o máximo de ações cotidianas possíveis. Aos
familiares também pode ser indicada psicoterapia, pois estes necessitam
lidar com diversos sentimentos, como culpa, exaustão e autossacrifício.

5. TRATAMENTO FARMACOLÓGICO
Os medicamentos utilizados na abordagem das demências em sua fase
inicial são os inibidores da acetilcolinesterase
(donepezila, galantamina e rivastigmina). Nos casos moderados a
graves, a memantina (um antagonista do receptor NMDA) deve ser
associada ao tratamento inicial. O tratamento descrito também pode ser
útil em paciente com demência de corpos de Lewy.
Todavia, na demência vascular, a terapia farmacológica é feita com
anti-hipertensivos, anticoagulantes e antiplaquetários, com o objetivo
principal de evitar novas lesões cerebrais.
Quando se trata da demência frontotemporal, são usadas
medicações sintomáticas para amenizar as alterações de
comportamento, sendo os antidepressivos e os neurolépticos os mais
utilizados.
É importante frisar que esses fármacos não impedem a progressão
da demência, mas podem melhorar os sintomas cognitivos.

Quadro 4 - Fármacos utilizados no tratamento da Doença de Alzheimer


Fármaco Dose inicial Dose terapêutica

Donepezila 5 mg 5-10 mg

Rivastigmina 1,5 mg 1,5-6 mg

Galantamina 8 mg 16 mg-24 mg

Memantina 10 mg 10-20 mg

Fonte: síntese elaborada pelas autoras.

5.1. Redescobrindo o caso (Pontos-Chave)

Diminui possibilidade de demências por corpos de


1 Idade de incidência 5
Lewy e DFT

2 Prejuízo da memória 6 Diminui possibilidade de DV

Diminui possibilidade de pseudodemência


3 Progressivo 7
depressiva
4 Amnésia para memória recente 8 Prejuízo nas AIVDs

Rufino possui diagnóstico provável de Doença de Alzheimer. O


examinador deve investigar possíveis condições clínicas que podem
cursar com prejuízos cognitivos mais agudos (descartar quadro
confusional agudo – delirium). Deve-se solicitar exames
complementares laboratoriais e de neuroimagem. O médico deve
orientar a família sobre o prognóstico do paciente e as limitações do
tratamento.

Exemplo de uma prescrição para Rufino


Donepezila 5 mg, 1 comprimido, via oral, uma vez ao dia por 15
dias.
Após esse, prazo, passar a tomar:
Donepezila 10 mg, 1 comprimido, via oral, uma vez ao dia.

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atenção primária baseadas em evidências. 4. ed. Porto Alegre:
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Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?
script=sci_arttext&pid=S0004-282X2006000300025&lng=en.
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Arteriosclerosis, Thrombosis, and Vascular Biology. 2019;
39:1542–1549.

SIGLAS

• AIVDs Atividades Instrumentais da Vida Diária


• AVDs Atividades da Vida Diária
• DA Doença de Alzheimer
• DCL Demência por Corpos de Lewy
• DFT Demência Frontotemporal
• DSM-5 Manual de Diagnóstico e Estatístico de Transtornos
Mentais

• DV Demência Vascular
• HIV Vírus da Imunodeficiência Humana
• MEEM Miniexame do Estado Mental
1. CASO CLÍNICO
Tarsízio, 71 anos, chega na emergência psiquiátrica com quadro de
agitação e sonolência em alternância. Apresenta diagnóstico prévio de
transtorno afetivo bipolar. Faz uso da medicação regularmente:
carbonato de lítio 600 mg/dia, clonazepam 0,5 mg/noite. Paciente chega
na unidade contido em maca trazido pelo SAMU. Familiar diz que
paciente iniciou quadro há 3 dias coincidindo com infecção urinária,
que vinha sendo tratada na unidade básica de saúde com ciprofloxacino
por 7 dias. Traz sumário de urina com sinais de infecção.

Exame mental: inquieto, sonolento, hipoprosexo, desorientação


alopsíquica e discurso confuso.

2. DISCUTINDO O DIAGNÓSTICO
A origem da palavra delirium é atribuída ao latim deliro-delirare, de-
lira, que significava “estar fora do lugar”. O termo foi usado na
literatura médica pela primeira vez por Celsus no século I d.C., para
descrever alterações mentais durante episódios de febre ou trauma
craniano. Entretanto, desde 500 a.C., Hipócrates já usava vários termos
(o mais comum era frenite) para descrever uma síndrome composta por
início agudo de alterações comportamentais, distúrbios do sono e
déficits cognitivos. No final do século XVIII, James Sims diferenciou
delirium de loucura, além de descrever as formas hipoativa e hiperativa
da doença.
No entanto, o significado permaneceu ambíguo até o início do
século XIX, já que era usado para designar loucura e também para
definir alterações mentais associadas às doenças febris. Após essa
época, o delirium passou a ser reconhecido como doença reversível da
cognição e do comportamento, associada à disfunção cerebral
decorrente de inúmeras alterações orgânicas.
O DSM-5 apresenta 5 critérios diagnósticos e subdivide o delirium
em 5 etiologias: intoxicação por substâncias, abstinência de substância,
induzido por medicamento, devido a outra condição médica, devido a
múltiplas etiologias. Deve ser especificado se o quadro é agudo (horas e
dias) ou persistente (semanas e meses). Especifica-se também o subtipo
clínico: hiperativo, hipoativo, nível misto de atividade.

Quadro 1 - Critérios diagnósticos do DSM-5


A Perturbação da atenção e da consciência.

Perturbação se desenvolve em breve tempo, representa uma mudança de atenção e da


B
consciência basais e tende a oscilar quanto à gravidade ao longo do dia.

C Perturbação adicional na cognição.

Critérios A e C não são mais bem explicados por nenhum outro transtorno
D
neurocognitivo preexistente, estabelecido ou em desenvolvimento.

Há evidências, a partir da história, do exame físico ou dos achados laboratoriais, de que a


perturbação é uma consequência fisiológica direta de outra condição médica, intoxicação
E
ou abstinência de substância, de exposição a uma toxina ou de que ela se deva a
múltiplas etiologias.

Fonte: adaptado de American Psychiatry Association.3

Detecção precoce parece ser um grande divisor de águas no manejo


dos casos. O instrumento mais descrito e mais recomendado é o CAM
(Confusion Assessment Method) e seu modelo para unidades intensivas
CAM-ICU (for Intensive Care Unit). Outros instrumentos podem e
devem ser usados para o manejo como escalas de avaliação cognitiva
como Miniexame do Estado Mental (MEEM) e Montreal Cognitive
Assessment (MoCA). Em situações mais específicas, outras escalas
podem ser usadas, como o Clinical Institute Withdrawal Assessment for
Alcohol (CIWA-Ar) na abstinência alcóolica ou Cognitive Assessment
Intrument (CASI), em doenças neurodegenerativas graves.

Quadro 2 - Confusion Assessment Method (CAM)


A Estado confusional agudo com flutuação marcante
B Déficit de atenção marcante

C Pensamento e discurso desorganizado

D Alteração do nível de consciência

Considera-se delirium na presença dos itens A e B mais C e/ou D.

Fonte: Lôbo RR, Silva Filho SRB, Lima NKC, Ferriolli E, Moriguti
JC.4

3. ASPECTOS SOBRE
EPIDEMIOLOGIA E ETIOLOGIA
Pode acometer mais de 50% de idosos hospitalizados. A incidência
eleva-se com a idade, déficit cognitivo, fragilidade, gravidade da
doença e comorbidades. A prevalência como um todo é baixa, mas
aumenta com idade, chegando a 14% entre pessoas com mais de 85
anos e atinge de 10% a 30% das pessoas idosas que vão a setores de
emergência. No entanto, é uma condição subdiagnosticada. Os setores
de emergência, unidades de cuidados intensivos e setores de pós-
operatório são locais essenciais para estabelecimentos de protocolos
para diagnóstico e manejo do delirium.

Quadro 3 - Incidências e prevalências do delirium


Grupo de pacientes Incidência e prevalência de delirium

40% - 55% de incidência em cirurgias de fratura de quadril em


Cirurgia de quadril
pacientes com mais de 65 anos.

32% de incidência em pacientes com 65 anos ou mais que


fizeram ponte aortocoronária.
Cirurgia cardíaca
Mais de 47% a incidência em pacientes que fizeram cirurgias
cardíacas gerais.

Clínica médica 15% - 20% de prevalência na admissão na enfermaria.

Emergência 5% - 10% de prevalência


Grupo de pacientes Incidência e prevalência de delirium

83% - 87% de incidência delirium em todos os pacientes


Unidades de admitidos.
cuidados intensivos 70% prevalência em pacientes com mais de 65 anos depois de
7 dias na unidade de cuidados intensivos.

40,5% dentro de 14 dias de estadia.


Instituições de longa
52,6% dos idosos experienciaram delirium durante sua
permanência
admissão.

Admissão hospitalar 10% - 15% durante a admissão.

Fonte: síntese elaborada pelos autores.

É de suma importância também identificar os fatores de risco para o


desenvolvimento do quadro de delirium. Quanto mais fatores
implicados, maior a chance do surgimento da condição (Quadro 3).

Quadro 4 - Fatores de risco para delirium


• Idade avançada
• Sexo masculino
Sócio
demográfico
• Institucionalizado
• Má nutrição
• Pouco contato com parentes
• Comprometimento cognitivo
Estado mental
• Depressão
• Doenças graves
• Benzodiazepínicos, agonistas dopaminérgicos,
Comorbidades antibióticos, anti-hipertensivos, narcóticos,
e medicamentos corticoides, e outros
• Polifarmácia
• Fraturas
• Febre
Funcionalidade • Hipotensão
e estado geral • Baixa acuidade visual ou auditiva
• Prejuízo na funcionalidade ou deficiência
Achados • Relação aumentada de creatinina/ureia
laboratoriais
• Alterações no sódio e no potássio
• Hipóxia

• Cirurgia torácica
Cirurgia e • Aneurisma aórtico reparado
Anestesia • Cirurgia de emergência
• Imobilidade no pós-cirúrgico
• Abuso de álcool
Outros
• Admissão em urgência
• Muitas admissões prévias em hospitais nos
últimos dois anos.

Fonte: síntese elaborada pelos autores.

4. DIAGNÓSTICO DIFERENCIAL
Transtornos psicóticos primários, afetivos bipolares, depressivos
com características psicóticas são condições psiquiátricas comuns que
podem mimetizar a clínica do delirium. A temporalidade tende a ser um
ponto-chave na diferenciação. O delirium tem evolução aguda e, em
geral, localiza-se uma quebra da homeostase implicada no surgimento
dos sintomas. Nos quadros psiquiátricos primários, a tendência é de
evolução mais insidiosa, com alterações de sensopercepção e
pensamento como sintomas centrais nas psicoses, e alterações da
afetividade como destaque nas condições afetivas (bipolar e depressão).
Possivelmente, os transtornos neurocognitivos (chamados
tradicionalmente de demências) são os diagnósticos diferenciais mais
importantes. No Quadro 5 destacamos as principais diferenças entre as
duas condições.

Quadro 5 - Diagnóstico diferencial entre demência e delirium


Características Delirium Demência
Características Delirium Demência

Início Agudo (em horas ou semanas) Lento e insidioso (meses ou anos)

Flutuante (dura geralmente uma Progressivo, com perdas


Curso
semana) cognitivas.

Reversibilidade Sim Não

Nível de consciência Rebaixado Normal

Fonte: adaptado de Dalgalarrondo.12

5. E AÍ? O QUE FAZER?


Talvez o primeiro passo seja sempre avaliar como está o plano de
prevenção de delirium do setor e do indivíduo. Temos poucos dados
que embasam intervenções que de fato previnam delirium. O uso
profilático de medicamentos, como diazepam, haloperidol e
melatonina, não tem benefício estabelecido.
O clínico deve investigar possíveis quebras da homeostase, como
mudanças recentes na medicação, desidratação, quedas, infecção,
excreções fisiológicas, função cognitiva e funcional prévia, uso de
álcool, histórico pregresso e comorbidades, ingesta de alimentos e água.
Avaliação de temperatura, pulso, frequência respiratória, pressão
arterial e saturação são dados iniciais e que auxiliam no diagnóstico. A
observação do estado mental é essencial, podendo ser usados
instrumentos de rastreio e aferição como Glasgow, MEEM, CAM, entre
outros. O exame físico, com destaque para os sinais neurológicos,
exame abdominal, ausculta cardíaca e pulmonar, pode ajudar a afastar
diagnósticos diferenciais. Exames complementares devem ser
direcionados para as principais hipóteses – sumário de urina e
urinocultura, hemograma completo, função renal, eletrólitos, glicose,
função hepática, radiografia de tórax, eletrocardiograma e enzimas
cardíacas podem ser incluídas em uma avaliação inicial –; enquanto
exames como culturas específicas, tomografia de crânio, punção
lombar, eletrocardiograma, função tireoidiana, dosagem sérica de
vitamina B12 e folato devem ser reservados para quadros mais
específicos.

6. TRATAMENTO NÃO
FARMACOLÓGICO
As ações não farmacológicas são essenciais no tratamento como na
prevenção do delirium. As medidas podem ser divididas em ambientais
e clínicas.

Quadro 6 - Medidas não farmacológicas para o manejo de delirium


Medidas ambientais Medidas clínicas

Iluminação durante o dia, janelas para


Estimular alimentação e hidratação.
visualizar o ambiente exterior.

Uso de aparelhos auditivos, óculos e outros aparelhos


Um paciente por quarto. que possam ajudar em alguma deficiência na
sensopercepção.

Ambiente o mais silencioso possível. Excreções fisiológicas presentes (evitar constipação).

Relógios e calendários disponíveis para Auxiliar na mobilização precoce e independência


os pacientes. funcional.

Encorajar visitas e engajamento de


Manejar desconforto da dor.
familiares e cuidadores.

Encorajar uso de objetos familiares. Avaliar qualidade e quantidade de sono.

Evitar cateteres e outros dispositivos invasivos


Evitar troca de leitos e quartos.
potencialmente desnecessários.

Fonte: síntese elaborada pelos autores.

7. TRATAMENTO FARMACOLÓGICO
O tratamento deve priorizar e corrigir o fator desencadeante. O uso
de fármacos não muda o curso da doença e deve ser usado para manejo
comportamental naqueles pacientes que demandam (pacientes
inquietos/agitados ou insones), ou seja, é utilizado nos subtipos
hiperativos e mistos. Usualmente, o haloperidol é a medicação mais
utilizada, nas doses iniciais de 0,25 mg a 1 mg (IM, oral). O clínico
deve estar atento aos riscos de sintomas extrapiramidais e
prolongamento do intervalo QT, primando, por isso, pela subida gradual
de dose e pela administração via oral.
As evidências de eficácia dos antipsicóticos atípicos para delirium
vem aumentando nos últimos anos, sendo uma opção com menor
associação com efeitos adversos motores quando comparados aos
antipsicóticos típicos. A risperidona, em doses iniciais de 0,25 mg a 1
mg/dia; a quetiapina, nas doses de 12,5 mg a 25 mg/dia; e olanzapina,
em doses de 2,5 mg até 10 mg/dia, são opções possíveis. O uso de
dexmedetomidina deve ser preferido aos benzodiazepínicos em
pacientes que usam ventilação mecânica.
No delirium tremens – condição que acomete pacientes com
abstinência alcoólica grave – ou no delirium provocado pela abstinência
de benzodiazepínicos, o uso de benzodiazepínicos é recomendado. No
delirium tremens, deve ser utilizado o diazepam 10 mg, via oral,
administrado de hora em hora, até o máximo de 60 mg/dia, ou o
lorazepam, via oral, na dose de 2 mg de hora em hora, até o máximo de
12 mg/dia. Nesses pacientes deve ser realizada a reposição de tiamina.
O haloperidol também pode ser usado nos pacientes mais agitados.
Metilfenidato, mianserina, inibidores acetilcolinesterase,
melatonina, estatina e ácido valproico são medicamentos não
recomendados devido à ausência de evidência para o delirium.

7.1. Redescobrindo o caso (Pontos-Chave)


1 Sexo masculino

2 Idade avançada

3 Flutuação do quadro

4 Fator de risco e confundidor

5 Início agudo

6 Quebra da homeostase

7 Alteração do nível de consciência

8 Desatenção marcante

9 Alteração do pensamento

O paciente Tarsízio apresenta características cruciais para se pensar


no quadro de delirium: fatores de risco, dos quais se destaca a idade
mais avançada; o início agudo de sintomas flutuantes; a alteração do
nível de consciência, da atenção e do pensamento; além de uma
evidente quebra da homeostase (infecção urinária). Além da internação
hospitalar em enfermaria clínica, Tarsízio deve receber tratamento
específico para debelar a infecção (provável causa-base do delirium),
além das medidas não farmacológicas para arrefecer os sintomas
psíquicos do quadro. Devido ao quadro de agitação, Tarsízio também é
candidato a receber farmacoterapia com antipsicótico. A dose pode ser
paulatinamente subida de acordo com a resposta e/ou surgimento de
efeitos adversos.

Exemplo de uma prescrição para Tarsízio


Haloperidol 1 mg, 1 comprimido, via oral, à noite.

Referências
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histórica. Rev Psiquiatr Clín. (São Paulo). 2005; 32: 97-103.
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Estatístico de Transtornos Mentais – DSM-5: estatísticas e
ciência humanas – inflexões e refelexões sobre normalizações e
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delirium entre pediatras intensivistas no Brasil. Einstein (São
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Older People. Melbourne, Victoria: Victorian Government
Department of Human Service, 2006.
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and Treatment of Delirium. Toronto: Canadian Coalition for
Senior’s Mental Health; 2006.
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Update [acesso em 26 out. 2020]. Disponível em:
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Evaluation and Management. American Family Phisician. 2014;
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imobilidade e Interrupção do Sono em Pacientes Adultos na UTI.
Critical Care Medicine. 2018; 46(9): 1-58.
17. Laranjeira R, Nicastri S, Jeronimo C. Consenso sobre a
Síndrome de Abstinência do Álcool (SAA) e o seu tratamento.
Revista Brasileira de Psiquiatria. 2000; 2(22): 62-71.

SIGLAS
• CAM Confusion Assessment Method
• CAM-ICU Confusion Assessment Method for Intensive Care
Unit

• MEEM Miniexame do Estado Mental


• MoCA Montreal Cognitive Assessment
• CIWA-Ar Clinical Institute Withdrawal Assessment for
Alcohol

• CASI Cognitive Assessment Instrument


Nessa seção estão os transtornos que surgem ainda no período do
desenvolvimento neuropsicomotor. Em geral, os primeiros sinais e sintomas
manifestam-se na infância mesmo antes da criança entrar na fase escolar.
Com frequência os sintomas giram em torno de atrasos nos marcos do
desenvolvimento ocasionando prejuízos no funcionamento pessoal, social e
acadêmico.
Embora o manejo requeira uma equipe multiprofissional especializada,
o clínico generalista deve estar apto a reconhecer tais condições o mais
precocemente possível para que não haja retardo no tratamento a fim de
minimizar os agravos de tais transtornos. Fazem parte desta seção os
diagnósticos mais presentes na vida profissional do generalista: deficiência
intelectual (reconhecida antigamente como retardo mental), transtorno do
espectro autista e transtorno de déficit de atenção/hiperatividade.
1. CASO CLÍNICO
Heitor, 9 anos, vem acompanhado dos pais. Eles procuraram
atendimento devido à orientação da professora, pois o paciente,
desde que entrou no colégio, tem dificuldade nas matérias, tendo
reprovado o ano escolar pela terceira vez só na última série. Ele tem
dificuldade em fazer amizade com seus colegas de turma e é comum
chegar em casa chorando devido ao bullying que sofre na escola. A
genitora relata que em casa, quando lhe é negado algo, ele apresenta
irritabilidade e agressividade. Tem boa relação com as pessoas da
sua família que frequentam sua casa. Ele necessita do auxílio dos
pais para tomar banho e se trocar, pois, ainda não sabe (ou faz
“malfeito”) fazer algumas atividades básicas de vida diária. A mãe
relata que ele andou aos 2 anos e 6 meses e falou com 4 anos.
A mãe, durante a gestação, apresentou descolamento prematuro
de placenta e parto prematuro. Heitor nasceu com 33 semanas e
necessitou de reanimação neonatal na sala de parto.

Exame mental: paciente tímido, afeto pueril (incongruente com


a idade) e discurso empobrecido também incompatível com a
idade.

2. DISCUTINDO O DIAGNÓSTICO
A primeira definição para essa condição foi feita em 1908 pela
Associação Americana de Retardo Mental (AAMR) e, desde então,
vem sofrendo diversas atualizações. Atualmente, o termo “retardo
mental” está em desuso, devido ao estigma, sendo substituída por
Deficiência Intelectual (DI). A AAMR optou, também, pela troca de
seu nome, atualmente conhecida como Associação Americana de
Transtornos Intelectuais e do Desenvolvimento (AAIDD).
A deficiência intelectual, em sua última definição pela AAIDD,
é uma incapacidade caracterizada por importantes limitações, tanto
no funcionamento intelectual quanto no comportamento
adaptativo, e se expressa nas habilidades conceituais adaptativas,
sociais e práticas, tendo início antes dos 18 anos. A definição desse
conceito é de fundamental importância social, pois os indivíduos
acometidos necessitam de suporte e auxílio para a realização de
diversas atividades, como na escola e em casa, a fim de garantir sua
acessibilidade, inclusão social, segurança e acesso à informação.
Saber identificar precocemente pacientes com alterações
sugestivas de DI (que já podem ser percebidas entre os 6 e 12 meses
de vida) é essencial para o médico generalista, pois, com o manejo
adequado, é possível aumentar significativamente a funcionalidade
desse paciente nas mais diversas áreas da vida, melhorando sua
autonomia. Para o diagnóstico, os três critérios a seguir devem ser
preenchidos (retirados do DSM-5):

1. Déficits em funções intelectuais como raciocínio, solução


de problemas, planejamento, pensamento abstrato, juízo de
realidade, aprendizagem acadêmica e aprendizagem pela
experiência confirmados tanto pela avaliação clínica quanto
por testes de inteligência padronizados e individualizados.
2. Déficits em funções adaptativas que resultam em fracasso
para atingir padrões de desenvolvimento e socioculturais
em relação à independência pessoal e responsabilidade
social. Sem apoio continuado, os déficits de adaptação
limitam o funcionamento em uma ou mais atividades
diárias, como comunicação, participação social e vida
independente, e em múltiplos ambientes, como em casa, na
escola, no local de trabalho e na comunidade.
3. Início dos déficits intelectuais e adaptativos durante o
período do desenvolvimento.
Um critério necessário para o diagnóstico é o prejuízo em
funções adaptativas, que podem ser caracterizadas como uma
limitação funcional em atividades diárias, como comunicação,
participação social e vida independente, na escola, em casa e na
comunidade. Essa avaliação pode ser feita pelo profissional de
saúde ao longo das consultas, analisando o desempenho social e a
compreensão das normas. O relato dos pais e da escola é de suma
importância para a avaliação.
O diagnóstico deve ser feito no período de desenvolvimento do
indivíduo. DI leve tende a ser diagnosticada mais tardiamente, já em
idade escolar, já a DI grave ou profunda é diagnosticada nos
primeiros anos de vida (identificando-se atrasos nos marcos de
desenvolvimento). Essa classificação de gravidade foi proposta pelo
DSM-5 e estratifica a DI desde leve até profunda e leva em
consideração a disfunção em atividades adaptativas (quadro 1). Vale
ressaltar que esses níveis de gravidade podem mudar ao longo do
tempo, a depender da melhora ou piora do quadro clínico e do
tratamento precoce.

Quadro 1 - Classificação quanto à gravidade


Nível de
Domínio Conceitual Domínio Social Domínio Prático
Gravidade

Comunicação,
Crianças em idade
conversação e
escolar: dificuldade no Precisa de apoio em
linguagem são mais
aprendizado de tarefas complexas. Pode
concretas e imaturas.
habilidades conseguir emprego em
Dificuldade da
acadêmicas. Adultos: funções que não
regulação da emoção e
Leve déficit na memória, enfatizem habilidades
do comportamento.
função executiva, conceituais. Necessita de
Compreensão limitada
pensamento abstrato e apoio para tomar
do risco em situações
uso funcional de decisões de cuidados de
sociais (risco de ser
habilidades saúde e decisões legais.
manipulada por
acadêmicas.
terceiros).
Nível de
Domínio Conceitual Domínio Social Domínio Prático
Gravidade

É capaz de alimentar-se,
Nos pré-escolares e vestir-se e higienizar-se,
Individuo apresenta
escolares, a linguagem após um período longo
diferenças marcadas em
e as habilidades para a aprendizagem. No
relação à linguagem e
desenvolvem-se trabalho, necessidade de
ao comportamento
lentamente. Nos apoio considerável de
social. Capacidade de
adultos o colegas e supervisores
tomar decisão é
desenvolvimento de para o manejo de
Moderado limitada. Há
habilidades é de nível expectativas sociais,
necessidade de apoio
elementar, com complexidade no
social e de
necessidade de apoio trabalho e
comunicação
para o emprego de responsabilidades
significativo para o
habilidades no auxiliares, como horário,
sucesso nos locais de
trabalho e na vida transportes, benefício de
trabalho.
pessoal. saúde e controle do
dinheiro.

Necessita de apoio para


todas as atividades
Alcance limitado de
cotidianas, como comer,
atividades conceituais.
vestir-se, higienizar-se.
Tem pouca
Precisa de supervisão em
compreensão de Linguagem falada é
todos os momentos,
linguagem escrita ou limitada, composta de
como necessidade de
de conceitos que palavras ou expressões
Grave assistência contínua nas
envolvam números. isoladas. Entendem
tarefas domésticas,
Os cuidadores discurso e comunicação
recreativas e
proporcionam grande gestual simples.
profissionais.
apoio para a solução
Comportamentos mal
de problemas ao longo
adaptativos, como
da vida.
autolesão, pode estar
presente.
Nível de
Domínio Conceitual Domínio Social Domínio Prático
Gravidade

Compreensão muito
limitada da
comunicação na fala e
As habilidades
nos gestos. Pode
conceituais envolvem Depende do outro para
entender algumas
mais o mundo físico todos os aspectos do
instruções ou gestos
do que os processos cuidado físico diário, de
simples. Há ampla
simbólicos. A pessoa saúde e de segurança.
Profunda expressão dos próprios
pode usar objetos de Ajudam com atividades
desejos e emoções pela
maneira direcionada domésticas simples,
comunicação não
para metas para o como levar pratos para a
verbal e não simbólica.
autocuidado, o mesa.
Aprecia os
trabalho e a recreação.
relacionamentos com
membros bem
conhecidos da família.

Fonte: Adaptado de American Psychiatric Association¹.

3. ASPECTOS SOBRE ETIOLOGIA


E EPIDEMIOLOGIA
A deficiência intelectual tem prevalência de 1% a 3%, sendo essas
taxas maiores em países em desenvolvimento. Tem maior número
de casos em indivíduos do sexo masculino, com proporção do sexo
feminino para o masculino de 0,7:1.
A deficiência intelectual é consequência de variadas causas
etiológicas e é necessário conhecê-las a fim de auxiliar no
diagnóstico. As causas podem variar desde genéticas até adquiridas.
Nas causas genéticas, pode haver doenças cromossômicas; dentre
essas, a síndrome de Down (trissomia do 21) responde pela maior
prevalência de DI. Indivíduos com síndrome de Down associam-se
à deficiência intelectual, que pode variar de leve até profunda
(sendo a maioria leve ou moderada). As principais alterações físicas
encontradas nos recém-nascidos são pescoço alado, crânio pequeno
e achatado, maçãs do rosto elevadas, macroglossia, hipotonia geral,
fissuras palpebrais oblíquas, um único sulco palmar transversal e
reflexo de moro fraco ou ausente. Além disso, podem cursar com
malformações cardíacas e tireoidopatias. Esses pacientes, em geral,
costumam ter mais déficits linguísticos, porém, apresentam maiores
facilidades em interações sociais.
Ainda entre as doenças cromossômicas, se destaca a síndrome
de Prader-Willi, que é ocasionada devido à deleção da porção
proximal do braço longo do cromossomo 15. Indivíduos com essa
síndrome possuem deficiência intelectual associada à obesidade, à
compulsão alimentar, a hipogonadismo, à baixa estatura e a mãos e
pés pequenos.
Outra desordem associada à deficiência intelectual é a síndrome
do X frágil, que resulta de uma mutação no gene FMR1 do
cromossomo X, e tem fenótipo típico, com cabeça e orelhas
grandes, baixa estatura, hiperextensão de articulações e macro-
orquisdismo pós-puberal. Essas alterações estão associadas a uma
deficiência intelectual, que pode variar de leve a moderada.
Uma doença genética de desordem de gene único é a
fenilcetonúria, que é uma condição autossômica recessiva simples.
Essa alteração causa um erro inato no metabolismo, onde a enzima
fenilalanina hidroxilase se encontra inativa e, consequentemente, a
fenilalanina não é convertida em paratirosina. A maioria das pessoas
com essa condição possui deficiência intelectual que é associada a
um quadro clínico variável, o qual é causado devido um excesso de
fenilalanina no organismo. Esses indivíduos cursam com fragilidade
da pele e cabelos, eczema, déficits motores e convulsões. É uma das
doenças que podem ser reconhecidas em testes de triagem neonatal
(teste do pezinho), e, ao ser identificada, deve ser confirmada com
testes adicionais.
As causas adquiridas de DI, com a melhoria das condições pré-
natal e perinatal, diminuíram com o tempo, enquanto as causas
genéticas ganharam uma importância maior. Dentre as causas
adquiridas, que são mais comuns em países em desenvolvimento,
destacam-se fatores ligados à gestação. Alguns exemplos são o
consumo de álcool e drogas, a desnutrição materna, principalmente
a anemia, diabetes descontrolado e infecções maternas.
A síndrome alcoólica fetal é uma doença que pode ocorrer
quando há consumo de álcool durante a gestação, podendo causar
diversas alterações no recém-nascido, como dismorfismo facial,
malformações cardíacas, deficiência intelectual, transtorno de
déficit de atenção/hiperatividade e transtornos de aprendizagem.
As infecções maternas no período pré-natal são causas
importantes de deficiência intelectual, dentre elas, a rubéola é a
principal causa de DI e malformações congênitas. As principais
alterações da rubéola são: malformação cardíaca, deficiência
intelectual, surdez, microcefalia e microftalmia. Quando contraída
no primeiro trimestre da gravidez, pode trazer consequências mais
graves ao feto.
Outra doença infecciosa que pode acarretar DI no feto quando
adquirida durante a gravidez é a citomegalovirose, em que o recém-
nascido pode cursar com hepatoesplenomegalia, icterícia,
microcefalia, calcificação intracerebral e deficiência intelectual.
Além das doenças já citadas, a sífilis e a toxoplasmose congênitas
também são causas importantes de deficiência intelectual.
Outras causas para a deficiência intelectual podem ser atribuídas
a complicações da gestação e do parto, como descolamento
prematuro da placenta, placenta prévia e prematuridade, que podem
causar anoxia no cérebro do recém-nascido.
Algumas causas adquiridas que ocorrem após o parto também
têm importância, como meningoencefalites e trauma
cranioencefálico, que ocorrem durante a infância e acarretam
sequelas que podem cursar com deficiência intelectual. Além
dessas, a falta de estímulo e a desnutrição grave durante o período
de desenvolvimento, principalmente nos 3 primeiros anos de vida,
podem causar deficiência intelectual leve.
Podemos classificar a etiologia de forma didática em causas pré-
natais, peri-natais e pós-natais, como mostra o quadro abaixo, que
também divide em causas genéticas e adquiridas (quadro 2).

Quadro 2 - Classificação da DI quanto à etiologia


Causa Tipo Exemplos

» Síndrome de Down
» Síndrome de Prader-Willi
» Síndrome de Klinefelter
» Síndrome do X frágil
» Galactosemia
» Fenilcetonúria
Genética » Mucopolissacaridoses
» Hipotireoidismo
» Síndromes neurocutâneas (esclerose tuberosa e a
Neurofibromatose).
» Malformações cerebrais, como microcefalia genética,
Pré-natal hidrocefalia e mielomeningocele
» Síndrome de Cornélia de Lange

» Deficiências, tais como deficiência de iodo ou ácido


fólico
» Desnutrição grave na gravidez
» Uso de substâncias como álcool (síndrome alcoólica
Ambiental fetal), nicotina e cocaína durante o início da gravidez
» Exposição a outros produtos químicos poluentes,
metais pesados, abortivos e medicamentos
» Infecções maternas, como rubéola, sífilis,
toxoplasmose, citomegalovírus e HIV
Causa Tipo Exemplos

» Complicações da gravidez
Terceiro » Doenças na mãe, tais como doenças cardíacas e
trimestre renais, diabetes
» Disfunção placentária

» Prematuridade severa
Peri-natal » Muito baixo peso ao nascer
Trabalho
» Asfixia ao nascer
de parto
» Parto difícil ou complicado
» Trauma de nascimento

Primeira
semana de » Septicemia, icterícia grave, hipoglicemia
vida

» Infecções cerebrais, como tuberculose, encefalite japonesa e


meningite bacteriana
Pós-natal
» Trauma craniano
» Desnutrição grave e prolongada

Fonte: Adaptada de XIaoyan K, Liu J.3

4. DIAGNÓSTICO DIFERENCIAL
Pessoas com deficiência intelectual podem cursar com algumas
comorbidades, das psiquiátricas as principais são: transtorno do
espectro autista, TDAH (transtorno de déficit de
atenção/hiperatividade), esquizofrenia, transtornos de humor e de
conduta. Pacientes com DI grave ou profunda apresentam maior
prevalência de epilepsia em comparação a população sem DI.
Em alguns casos, negligência infantil e maus-tratos podem ser
confundidos com a deficiência intelectual, pois podem causar um
retardo no desenvolvimento; porém, normalmente, é um atraso que
pode ser revertido com a retirada do estressor e com estímulo
adequado.
É de suma importância entender que a deficiência intelectual se
dá em todas as áreas evolutivas, então, ao se deparar com crianças
que apresentem deficiência isolada na comunicação, escrita ou
leitura, não significa que ela possui deficiência intelectual. Seguindo
esse mesmo raciocínio, crianças com transtorno de aprendizagem
em áreas específicas podem ter desempenho normal ou até mesmo
acima da média em outras áreas. Essas características nos ajudam a
diferenciar diagnósticos de transtornos específicos de aprendizagem
da DI.
O transtorno do espectro autista é um importante diagnóstico
diferencial, e, pode coexistir com a DI, ocorrendo em até 19,8% dos
pacientes com deficiência intelectual. Nesse grupo, as crianças têm
danos marcantes no relacionamento social e desenvolvimento
linguístico.

4.1. E aí? O que fazer?


Torna-se imprescindível que o clínico realize a prevenção primária
da DI na atenção básica, realizando um pré-natal de qualidade,
orientando acerca dos riscos do uso de álcool e drogas na gravidez,
realizando exames pré-natais, tratando possíveis infecções maternas
e prescrevendo suplementação quando necessária.
A prevenção secundária consiste no diagnóstico precoce da
condição, que pode ser realizado com os testes de triagem neonatal
(teste do pezinho) e com atendimentos de puericultura, onde pode
ser observado se há fenótipos ou atrasos no desenvolvimento e
crescimento.
Em relação ao prognóstico, o tratamento dificilmente vai
aumentar o nível intelectual do indivíduo, no entanto, é possível
que, com o manejo adequado, o paciente possa adquirir mais
capacidades em atividades adaptativas, alcançando, assim, mais
autonomia.
No ambiente educacional é necessário que a criança tenha
atenção individualizada e avaliações correspondentes ao seu nível
intelectual. Além disso, é essencial que ela tenha treinamento
específico em habilidades adaptativas, sociais e vocacionais, no
intuito de melhorar a qualidade de vida.
Pacientes com DI necessitam de abordagem multiprofissional,
como fisioterapia, a fim de estimular o desenvolvimento motor, em
casos em que pode haver atraso, e fonoaudiologia, a fim de tratar
distúrbios da linguagem. Outros profissionais, como psicólogo,
terapeuta ocupacional, educador físico e pediatra, também podem
ser necessários nesse processo.
A psicoeducação com os familiares é imprescindível, pois essas
crianças com DI necessitam de um ambiente de estímulo, apoio e
que incentive a autonomia. Os pais também podem se beneficiar de
apoio psicossocial.
A intervenção farmacológica é voltada, a priori, para
comorbidades psiquiátricas. Além disso, a farmacoterapia pode
atuar em sintomas como agressividade, hiperatividade ou falta de
concentração. Os antipsicóticos podem ser prescritos em caso de
inquietação e agressividade. Prefere-se os antipsicóticos atípicos
devido ao seu perfil mais favorável de efeitos adversos em
comparação aos típicos. Inicia-se com doses menores e pode ser
paulatinamente reajustada a dose até o efeito desejado. O uso de
anticonvulsivantes para melhora de comportamentos disruptivos
também pode ser útil, especialmente em pacientes com epilepsia
comórbida.

4.2. Redescobrindo o caso (Pontos-Chave)


Idade média do
1 diagnóstico em paciente
com DI leve
Representa um déficit
2
no domínio conceitual
Representa um déficit
3
no domínio social
Representa déficit no
4
domínio social
Representa déficit no
5
domínio prático
História de atraso do
6
desenvolvimento
7 História de hipóxia
neonatal, uma possível
etiologia

Heitor apresenta dificuldade no aprendizado, que resulta nas


reprovações recorrentes na escola. Associado a isso, tem uma
dificuldade em socializar-se na escola, e, por ter um comportamento
diferente, sofre bullying dos colegas. Apresenta baixa tolerância às
frustrações que se manifesta com a irritabilidade e agressividade. É
possível observar, também, que ele apresenta dificuldade em
atividades adaptativas como trocar de roupa e higienizar-se por
conta própria. Nos antecedentes há uma hipótese importante para a
etiologia, uma provável anóxia neonatal que pode ser a causa da
deficiência intelectual que ele apresenta.

Exemplo de prescrição
Risperidona (1 mg/ml), via oral, tomar 0,5ml à noite. Dose
pode ser paulatinamente aumentada de acordo com a resposta
ou surgimento de efeitos adversos.
+
Encaminhamento para avaliação e seguimento com
psicopedagoga e terapeuta ocupacional

Referências
1. American Psychiatric Association. Diagnostic and Statistical
Manual of Mental Disorders, Fifth Edition (DSM-5).
Arlington, VA: American Psychiatric Association; 2013.
2. Sadock BJ, Sadock VA, Ruiz P. Compêndio de psiquiatria:
ciência do comportamento e psiquiatria clínica. 11. ed. Porto
Alegre: Artmed; 2017.
3. Xiaoyan K, Liu J. Transtornos do
Desenvolvimento.Deficiência intelectual. Tratado de Saúde
Mental da Infância e Adolescência IACAPAP. Genebra:
International Association for Child and Adolescent
Psychiatry and Allied Professions, 2015. cap C1. p. 1-29.
4. Verma V, Paul A, Amrapali VA. Understanding intellectual
disability and autism spectrum disorders from common
mouse models: synapses to behaviour. Open Biol. 2019;
9:180265. Disponível em:
https://doi.org/10.1098/rsob.180265.
5. Duarte RCB. Deficiência intelectual na criança. Resid
Pediatr. 2018; 8(0 Supl.1): 17-25. doi: 10.25060/residpediatr-
2018.v8s1-04.
6. SchSchwartzman JS, Lederman VRG. Deficiência
intelectual: causas e importância do diagnóstico e intervenção
precoces. Inclusão [Internet]. 1º de dezembro de 2017;10(2).
Disponível em:
http://revista.ibict.br/inclusao/article/view/4028
7. Vasconcelos MM. Retardo Mental. J. Pediatr. (Porto Alegre)
2004; 80(2): suppl. 0.
8. Tanaka OU, Ribeiro EL. Ações de saúde mental na atenção
básica: caminho para ampliação da integralidade da atenção.
Cienc Saúde Coletiva 2009; 14(2): 477-486.
9. Thurm A, Farmer C, Salzman E, Lord C.State of the Field:
Differentiating Intellectual Disability From Autism Spectrum
Disorder. Front. Psychiatry 2019; 10:526. doi:
10.3389/fpsyt.2019.00526.
SIGLAS

• DI Deficiência Intelectual
• AAIDD Associação Americana de Transtornos
Intelectuais e do Desenvolvimento

• AAMR Associação Americana de Retardo Mental


• TDAH Transtorno do Déficit de Atenção e Hiperatividade
1. CASO CLÍNICO
Neilson, 5 anos, frequentando o Infantil V em escola pública. Comparece à consulta
acompanhado de sua mãe, a qual relata preocupação com o comportamento do
filho. Muitas vezes, ele aponta de forma vaga para objetos e quando a mãe não
consegue definir o que ele deseja, surgem agressões, inclusive a mãe mostra marcas
de mordidas em seu braço. É comum também o paciente se autoagredir ou se jogar
no chão. A maior angústia da genitora é não saber como ajudá-lo nos momentos de
crise, pois a criança não consegue expressar o que a incomoda. Queixa-se da
restrição alimentar de Neilson, pois aceita somente mingau ou gelatina. Gosta de
brincar sozinho, havendo mínima interação com outras crianças, e nas suas
brincadeiras, costuma agrupar brinquedos da mesma cor e fazer movimentos
aleatórios e repetitivos, além de ter um interesse exagerado por números.
É fruto de uma gravidez não planejada e não desejada, porém com gestação sem
intercorrências, sendo o pré-natal iniciado no 2º mês gestacional. Nascido de parto
vaginal eutócico e a termo, sendo o segundo de uma prole de 2 filhos.
Neilson apresentou um atraso no desenvolvimento da linguagem e nunca
demonstrou interesse por faces humanas. Aos 24 meses, era comum andar nas
pontas dos pés e apresentar movimentos pendulares laterais. Sua fala é marcada por
repetições de palavras de terceiros, em tom monótono, e usadas fora de contexto.
Não sabe pedir objetos.

Exame Mental: criança entra no consultório chorando e gritando alto nos


braços da mãe. Em seguida é colocado no chão e puxa a mão dela para levá-lo
a alguns brinquedos que estavam na sala. Permanece alheio à situação da
entrevista, não olhando nos olhos do entrevistador. Enquanto sua mãe chora por
estar angustiada, Neilson fica sorrindo para ela. As tentativas de interagir com o
paciente são frustradas, pois ele não responde aos chamados e apresenta olhar
vago. Em alguns momentos, a entrevista é interrompida pelos seus choros e
gritos, além de sons balbuciantes. Balança as mãos com frequência.

2. DISCUTINDO O DIAGNÓSTICO
Em 1943, Leo Kanner, psiquiatra austríaco, iniciou estudos sobre o autismo. Pela
primeira vez, descreveu onze casos do que denominou distúrbios autísticos do
contato afetivo. Kanner observou em seus estudos a presença de características
típicas nas crianças autistas. Dentre elas, as mais comuns eram os sintomas de
isolamento e a dificuldade de interação social desde o início da vida. Kanner
também observou alterações motoras, como maneirismos motores e estereotipias.
Além disso, essas crianças demonstravam desenvolvimento incomum da linguagem
caracterizado por reversão do pronome, ou seja, quando as crianças se referem a si
mesmos como “ele” ou pelo seu próprio nome. Alterações da linguagem que
também são comuns são a ecolalia e a repetição monótona de ruídos (balbucios).
No ano seguinte aos estudos de Kanner, Asperger descreveu casos de crianças com
boas habilidades verbais, mas com graves problemas de interação social e da
função motora. Essas crianças tinham interesses muito limitados, o que prejudicava
a aquisição de novas habilidades. Asperger definiu essa condição como “autismo”.
O autismo é um transtorno de desenvolvimento que se inicia logo nos primeiros
anos de vida, muitas vezes só sendo percebido quando as demandas sociais
aumentam. Entretanto, pode ser diagnosticado em qualquer faixa etária. As
características já citadas nos estudos de Kanner e Asperger não seguem uma
sequência fixa, mas em algumas crianças já se pode observar os sintomas logo após
o nascimento, como a falta de contato visual do lactente com a mãe durante a
amamentação. Quando bebês, essas crianças podem não apresentar o sorriso social
e carecem de postura antecipatória, como estender os braços para serem seguradas
quando uma pessoa da família se aproxima. Aos 12 meses, alguns gestos atípicos,
como a forma de manusear brinquedos e de enfileirar objetos, são comuns. Suas
brincadeiras podem ser monótonas e repetitivas, como bater, girar e ordenar
objetos.
As baixas capacidades de sintonização afetiva e reconhecimento de
expressões faciais dificultam ainda mais a interação e a reciprocidade social. Os
sorrisos imotivados e acessos de choro sem fator causal podem ocorrer, e isso traz
sofrimento aos pais, pois não sabem como ajudar ou não entendem o que causou a
mudança súbita do humor.
Em relação à linguagem, também é importante citar que algumas crianças usam
algumas palavras ou frases por um tempo e depois podem passar semanas a meses
sem utilizá-las, como se desaparecessem de seu vocabulário. Como já citado
anteriormente, é comum a presença de ecolalia ou de estereotipias verbais, frases
fora de contexto e a inversão de pronome, como, por exemplo: “Neilson quer
brincar” ou “ele quer comer gelatina”. Algumas crianças com transtorno do
espectro autista podem exibir genialidade, seja de uma forma global ou em áreas
específicas do conhecimento, com tendências a gosto expressivo por letras e
números.
Eventos que podem modificar a rotina e os hábitos da criança autista podem
trazer consequências, pois elas demonstram dificuldade intensa de mudança na sua
rotina. Alguns exemplos como mudança de casa ou de cidade, a chegada de uma
nova babá ou até mesmo mudança no horário do banho ou da escola podem
desencadear pânico, medo ou raiva intensa.
Para o diagnóstico de TEA (Transtorno do Espectro Autista), são necessárias
evidências de déficits na comunicação social recíproca e na interação social.
Esse prejuízo está presente de forma persistente e sustentada. O transtorno do
espectro autista também é caracterizado pela presença de padrões restritivos e
repetitivos de comportamento, de interesse ou de atividade. Nesse caso,
podemos incluir as estereotipias motoras simples, como balançar os braços ou
estalar os dedos; uso repetitivo de objetos, como enfileirar brinquedos e girar
moedas; e a fala repetitiva, como a ecolalia e uso estereotipado de palavras. Esses
sintomas, de acordo com o DSM-5, devem estar presentes precocemente no período
do desenvolvimento, mas podendo ser percebidos quando houver demanda social
importante que exceda as capacidades do indivíduo. Além disso, os sintomas
devem causar prejuízo importante no funcionamento social e profissional do
indivíduo. As manifestações não são explicadas por déficit intelectual ou por um
atraso global do desenvolvimento.

Figura 1 - Diagnóstico de TEA

Fonte: Elaborado pelos autores

Dado o diagnóstico de TEA, pode-se identificar um continuum que é


caracterizado por três níveis de gravidade. Esses níveis envolvem uma piora
crescente da comunicação e da interação social, além dos comportamentos restritos
e repetitivos. No nível 1 já é evidente algum prejuízo na comunicação, existindo a
dificuldade de iniciar uma interação social e respostas atípicas a uma proposta
social, passando a impressão de haver uma diminuição no interesse nas relações
sociais. Como exemplo, podemos citar uma pessoa que é capaz de falar frases
completas, mas falha quando tenta conversar com outras pessoas e as tentativas de
fazer amigos são estranhas ou malsucedidas. No nível 2, existem déficits marcantes
nas habilidades de comunicação social verbal e não verbal; deficiências sociais
aparentes; iniciação nas interações sociais limitada e respostas reduzidas ou
anormais a propostas sociais de outros. Por exemplo, uma pessoa que fala frases
simples, cuja interação é limitada a interesses especiais e que possui uma
comunicação não verbal marcadamente estranha. Já no nível 3, os déficits nas
habilidades de comunicação social verbal e não verbal causam graves prejuízos no
funcionamento com iniciação muito limitada nas interações sociais e resposta
mínima às propostas sociais de outras pessoas. Por exemplo, um repertório restrito
de palavras ou que raramente inicia a interação (muitas vezes com abordagens
incomuns), respondendo apenas a abordagens sociais muito diretas e concretas.

Quadro 1 - Níveis de gravidade do TEA


Nível de
Comunicação Social Comportamentos Restritos e Repetitivos
Gravidade

Extrema dificuldade de lidar com


Déficits graves; grande limitação em dar mudança; comportamentos
Nível 3 início a interações sociais; baixo nível de restritos/repetitivos causam acentuado
reciprocidade. prejuízo; grande angústia/dificuldade em
mudar de foco ou ação.

Dificuldade de lidar com as mudanças ou


outros comportamentos
Déficits marcantes nas habilidades de
restritos/repetitivos aparecem com
comunicação social verbal e não verbal;
frequência suficiente para serem óbvios
Nível 2 limitação em dar início a interações
para o observador casual e interferem no
sociais e respostas reduzidas ou anormais
funcionamento em diversos contextos;
a propostas sociais de outros.
angústia e/ou dificuldade em mudar de
foco ou ação.

Déficits na comunicação social causam


A inflexibilidade do comportamento
prejuízos visíveis; dificuldade em iniciar
causa interferência significativa no
interações sociais e exemplos claros de
funcionamento em um ou mais
Nível 1 respostas atípicas ou malsucedidas às
contextos; dificuldade de alternar entre as
propostas sociais de outras pessoas; pode
atividades; problemas de organização e
parecer que o interesse diminuiu nas
planejamento dificultam a independência
interações sociais.

Fonte: American Psychiatric Association.2


3. ASPECTOS SOBRE A EPIDEMIOLOGIA
E A ETIOLOGIA
O TEA vem aumentando consideravelmente sua prevalência nas últimas décadas.
Nos anos 2000, a incidência de TEA foi estimada em 1 para cada 150 crianças, já
em 2016 o National Health Center for Health Statistics estimou a prevalência de
TEA em 1 para cada 68 crianças. Esse aumento expressivo se deve, entre outros
fatores, ao aumento de triagem relacionado ao diagnóstico, pela melhora dos
critérios diagnósticos e pelas escalas cada vez mais precisas.
A prevalência no TEA parece ser 5 vezes maior em crianças do sexo masculino
do que no sexo feminino. Estudos de crianças com aneuplodia cromossômica
sexual descrevem um perfil funcional específico do sexo masculino que sugere
mais vulnerabilidade ao autismo.
A genética tem um papel importante na etiopatogenia do TEA. Múltiplos genes
parecem estar envolvidos no desenvolvimento do autismo. Acredita-se que a
etiologia genética é responsável por 50% a 90% dos casos de TEA. Irmãos de
paciente com TEA têm uma chance de até 8% de também desenvolver o transtorno.
Ao longo dos anos, constatou-se que a maioria dos pacientes com TEA apresentava
mutações raras com efeito deletério no funcionamento neuronal.
Os sintomas de TEA também podem estar presentes em até 10% das crianças
com cromossomopatias, como a Síndrome de Down, a Síndrome do X frágil e a
Síndrome de Rett. O risco genético pode ser modulado por fatores ambientais pré-
natais, perinatais e pós-natais em alguns pacientes. Foi relatado que a exposição
pré-natal à talidomida e ao ácido valproico aumenta o risco, enquanto estudos
sugerem que os suplementos pré-natais de ácido fólico em pacientes expostos a
drogas antiepilépticas podem reduzir o risco. Nascimento prematuro (<32 semanas)
e baixo peso ao nascer (<1.500 g) foram associados de forma independente a um
risco aumentado de TEA, embora não seja claro se esses fatores são causais ou
fatores de risco. No entanto, essas crianças devem ser monitoradas quanto ao TEA
durante os primeiros anos da primeira infância.
A história gestacional também tem papel essencial. Pesquisar história de
infecção gestacional, uso de anticonvulsivantes e de psicotrópicos, principalmente
no primeiro trimestre de gestação, se mostraram fatores de risco para
desenvolvimento de TEA. Porém, é importante salientar que um fator de risco
isolado não é preponderante para o desenvolvimento de TEA.
É importante também avaliar o histórico dos pais. A presença de doenças
psiquiátricas em um dos pais, em particular a esquizofrenia, está associada a um
risco aumentado para TEA. Além disso, um estudo de 2008, avaliou a idade dos
pais e sugeriu que crianças filhas de pais mais velhos (idade materna > 40 anos e
idade paterna > 50 anos) têm um risco isoladamente maior de desenvolver TEA.
Isso pode ser devido à teoria de que gametas mais velhos têm maior probabilidade
de portar mutações que podem resultar em complicações obstétricas adicionais,
incluindo a prematuridade. A associação entre TEA e o uso de vacinas não foi
encontrada.
O TEA na idade adulta representa um ônus econômico, principalmente naqueles
indivíduos que não conseguem ter um funcionamento independente, resultando em
maiores custos com assistência médica, educacional e redução da renda dos
cuidadores. Estima-se que até 30% dos adultos com TEA não conseguem formular
frases mais complexas e podem ter QI (quoeficiente de inteligência) na faixa da
deficiência intelectual. Esses indivíduos podem cuidar de necessidades básicas e
podem ter capacidade para trabalhar, mas provavelmente precisarão de apoio diário
de um familiar. A mortalidade tende a ser prematura, principalmente em
decorrência de comorbidades congênitas e neurológicas.
Nos EUA, apenas 25% dos indivíduos com TEA com inteligência média vivem
em suas próprias casas, com o restante morando com suas famílias até a meia-
idade. Casamento e relacionamentos íntimos de longo prazo ainda são raros.
Quanto às comorbidades psiquiátricas, existem mais de 16 condições ou
distúrbios diferentes frequentemente associados ao TEA, e incluem transtorno de
déficit de atenção e hiperatividade (TDAH), ansiedade, transtorno bipolar,
epilepsia, deficiência intelectual, transtorno obsessivo-compulsivo (TOC),
esquizofrenia e distúrbios do sono.
Há um alto índice de comorbidade entre TEA e TDAH. Estudos mostram que
entre 30% e 50% dos pacientes com TEA também apresentam sintomas de TDAH e
66% dos pacientes com TDAH também apresentam características de TEA. Ambos
os distúrbios geralmente incluem dificuldades de atenção, impulsividade e
hiperatividade. Tanto o TDAH quanto o TEA têm predisposição genética, são mais
prevalentes em meninos do que em meninas, são tipicamente diagnosticados
durante os anos pré-escolares e podem causar distúrbios comportamentais,
acadêmicos, emocionais e psicossociais que frequentemente comprometem as
atividades funcionais diárias. Estudos sugerem que indivíduos com TEA e TDAH
comórbidos têm uma qualidade de vida mais baixa e maior grau de
comprometimento funcional diário do que indivíduos que têm uma dessas
condições separadamente.
Até 80% das crianças com TEA também sofrem de transtornos de ansiedade. O
transtorno de ansiedade de separação tem a maior taxa de comorbidade com TEA
(38%), seguida por transtorno obsessivo-compulsivo (37%), transtorno de
ansiedade generalizada (35%) e fobia social (30%). Adolescentes com autismo de
alto funcionamento são mais propensos a sofrer de um transtorno de ansiedade,
uma vez que seu funcionamento cognitivo mais elevado pode torná-los mais
conscientes de seu ambiente e de sua percepção por parte dos colegas.
A síndrome de Tourette (ST) é um distúrbio do neurodesenvolvimento que afeta
os neurônios motores e é caracterizada pela persistência de movimentos motores
indesejados, breves, repetitivos e não rítmicos e um ou mais tiques vocais ou
fônicos. Embora menos bem documentado do que suas associações com TDAH,
depressão, ansiedade e transtorno bipolar, há evidências que sugerem que a ST
ocorre mais comumente em pacientes com TEA do que na população em geral. A
maior prevalência de TEA com ST em comparação com a população em geral
sugere que ambos os distúrbios podem compartilhar traços genéticos comuns ou
desequilíbrio semelhante da neurotransmissão sináptica.

4. DIAGNÓSTICO DIFERENCIAL
O autismo deve ser diferenciado inicialmente dos outros transtornos globais do
desenvolvimento, como a síndrome de Asperger e outros transtornos do
desenvolvimento, como deficiência intelectual e transtorno do desenvolvimento da
linguagem, além de alguns transtornos motores, como síndrome de Tourette e
transtorno do movimento estereotipado.
Uma criança com deficiência intelectual, apesar do início precoce de seus
prejuízos, geralmente não manifesta a gama de limitações na interação, na
comunicação e no repertório de interesses presentes no TEA. O principal aspecto
que pode diferenciar ambos os transtornos é que as crianças com deficiência
intelectual tendem a se relacionar com adultos e outras crianças de acordo com suas
idades mentais e utilizam a linguagem que têm para se comunicar. Indivíduos com
deficiência intelectual podem ter uma autoimagem negativa e baixa autoestima.
Experimentam desapontamentos frequentes por não conseguirem satisfazer as
expectativas dos familiares e da sociedade. O comportamento inadequado, como
retraimento social, é comum e pode levar a um isolamento social e a um senso de
inadequação, desencadeando, por fim, sentimentos de ansiedade, raiva e depressão.
Crianças com uma rotina de vida com estimulação inadequada podem evidenciar
um retardo motor e comprometimento intelectual que não costumam melhorar,
porém o nível de adaptação do indivíduo pode ser melhorado quando expostas a um
ambiente enriquecedor e estimulante. Escalas de avaliação neuropsicológica têm
grande utilidade na identificação de déficits intelectuais, devendo o paciente ser
encaminhado a um profissional habilitado.
A síndrome de Asperger é considerada o polo mais leve do espectro do
autismo. Essa síndrome, cujo nome homenageia a descrição feita por Hans
Asperger em 1944, engloba crianças com características autistas, exceto quanto à
linguagem, que está presente, acompanhada por um bom nível cognitivo. As
crianças com essa síndrome costumam utilizar palavras rebuscadas ou neologismos
e perseverar em assuntos específicos sem perceber se o interlocutor está interessado
em escutá-las. Podem ter dificuldades no contato social por terem uma
interpretação literal do que escutam e por não entenderem algumas sutilezas
subentendidas na comunicação. Seu repertório limitado de atividades pode fazê-las
se tornar “especialistas” em algum tema, como informática, história ou astronomia.
As estereotipias motoras são menos comuns.
A síndrome de Rett é um transtorno que tem causalidade genética definida
(mutação no gene MECP2, localizado no cromossomo X) e é estudada de forma
melhor como categoria fora do espectro do autismo, embora próxima a ele. É mais
comum em meninas e se caracteriza por um desenvolvimento normal, que pode ir
até os 24 meses de vida, seguido de perda dos movimentos voluntários das mãos,
estereotipias motoras (a mais típica é o movimento repetitivo de “lavagem de
mãos”, com os braços flexionados e as mãos se esfregando na altura do tórax), risos
imotivados, hiperventilação e desaceleração do crescimento do crânio.
Paulatinamente, o prejuízo motor vai atingindo o tronco e os membros inferiores,
fazendo com que a paciente pare de andar por volta do fim da adolescência, com
óbito antes dos 30 anos de idade. Apesar de apresentar algumas características
autistas, a paciente geralmente mantém certo grau de contato social e visual.
A avaliação fonoaudiológica é de extrema importância para descartar surdez
congênita ou prejuízo auditivo grave. Para diferenciar a surdez infantil ou prejuízo
auditivo devemos lembrar que ao contrário de crianças autistas, as surdas
geralmente interagem com seus pais e buscam o afeto destes. Algumas crianças
podem parecer apáticas, retraídas e com dificuldades na linguagem, porém é
importante avaliar se houve alguma alteração no ambiente físico ou trauma
emocional, como hospitalizações prolongadas e privação materna. Em geral,
quando expostas a um ambiente mais favorável, essas crianças seguem seu
desenvolvimento normal e melhoram sua comunicação.
Outro diagnóstico diferencial é o distúrbio específico de linguagem (DEL). As
crianças com esse distúrbio apresentam vários graus de dificuldades de linguagem
desde o início do seu desenvolvimento. São também quadros com grandes
variações e que frequentemente geram dificuldades sociais e de comportamento que
podem acarretar a necessidade de um diagnóstico diferencial com TEA. Períodos
relativamente curtos de terapia fonoaudiológica com foco no uso funcional da
linguagem facilitam esse diagnóstico, na medida em que as crianças com DEL
tendem a responder melhor à terapia, especialmente no que diz respeito à
adequação social e de comportamento, embora frequentemente as dificuldades de
linguagem sejam duradouras. O mutismo seletivo é uma condição em que as
crianças apresentam inibição para falar em situações sociais ou na presença de
estranhos, mas se comunicam por gestos ou expressões faciais e frequentemente
usam a linguagem no ambiente doméstico.
A esquizofrenia com início na infância é uma condição rara, geralmente
inicia-se após um período de desenvolvimento normal. Pode ser observado um
estado prodrômico, no qual ocorrem prejuízo social e crenças atípicas, que podem
ser confudidos com os déficits sociais do transtorno do espectro autista.
Alucinações e delírios estão presentes, porém não são elementos fundamentais do
TEA. Entretanto, deve-se atentar para o fato de que pessoas com transtorno do
espectro autista podem ter uma interpretação mais rígida quando perguntadas sobre
alucinações; por exemplo, a criança pode falar que escuta vozes quando está
sozinha, porém essas vozes podem vim da televisão.
No transtorno de déficit de atenção e hiperatividade (TDAH), a atividade
motora aumentada deve ser diferenciada do comportamento motor repetitivo e
estereotipado que pode ocorrer no transtorno do espectro autista. No TDAH, o que
mais caracteriza o quadro é a inquietude e a agitação, que costumam ser
generalizadas e não são caracterizadas como movimentos repetitivos ou tiques,
devendo ser diferenciada também do transtorno do movimento estereotipado e da
síndrome de Tourette. Além disso, indivíduos com TDAH e aqueles com TEA
podem exibir características similares em relação à desatenção e à disfunção social.
Entretanto, as crianças com transtorno do espectro autista podem apresentar falta de
envolvimento social, isolamento e indiferença à comunicação, enquanto aquelas
com TDAH podem ser rejeitadas pelos seus pares devido a um comportamento
impulsivo e inquieto. Tanto as crianças com TDAH como as crianças com TEA
podem apresentar ataques de raiva, porém são desencadeados por mecanismos
diferentes. Na criança com transtorno do espectro autista, os ataques de raiva
ocorrem devido à intolerância a mudanças, enquanto nas crianças com TDAH os
ataques de raiva surgem pela impulsividade ou autocontrole insatisfatório.
O transtorno do movimento estereotipado pode ser um sintoma do transtorno
do espectro autista. Nesse transtorno motor, o déficit na comunicação social e os
comportamentos e interesses repetitivos costumam estar ausentes, portanto essas
características consistem em uma forma de diferenciação entre os dois transtornos.

Quadro 2 – Diagnóstico diferencial do TEA


Condições genéticas Condições Condições Distúrbios de Transtorno do
neurológicas psiquiátricas linguagem movimento
Condições genéticas Condições Condições Distúrbios de Transtorno do
neurológicas psiquiátricas linguagem movimento

» Síndrome do X » Epilepsia e » Deficiência » Distúrbio » Transtorno


frágil outras intelectual específico do
» síndromes » TDAH de movimento
Neurofibromatose convulsivas. » Ansiedade linguagem estereotipado
» Síndrome de Rett » Depressão » Mutismo » Síndrome de
» Esclerose » TOC seletivo Tourette
Tuberosa » » Surdez
Esquizofrenia

Fonte: elaborado pelos autores.

4.1. E aí? O que fazer?


Quando o profissional de saúde atende uma criança com suspeita de transtorno do
espectro autista, ele acaba se deparando também com pais e familiares ansiosos e
preocupados, com dificuldades de lidar com a criança. Os principais sintomas que
levam ao estresse dos pais são a comunicação insuficiente e o comportamento dos
pacientes. Há um sentimento de desesperança e de desamparo nos pais quanto ao
possível diagnóstico de TEA, o que os leva a imaginar o sofrimento e as
dificuldades que os filhos enfrentarão durante a vida. A principal abordagem nesse
momento é fornecer um suporte aos pais, dar-lhes explicações básicas de forma
empática e responder a todas as dúvidas dos familiares e cuidadores. Muitas vezes,
já pode ter ocorrido uma peregrinação das famílias, visitando vários profissionais
de saúde e buscando apoio em hospitais, sem conseguirem respostas concretas
sobre o problema. Isso também influencia o adiamento do diagnóstico, que acaba
sendo raro em crianças menores de 3 anos. Vale ressaltar que o diagnóstico e a
intervenção precoces resultam em planos de intervenção e tratamento mais
adequados que permitirão uma melhor qualidade de vida para as crianças
diagnosticadas com TEA até atingirem a idade adulta.
Os planos de tratamento devem ser desenvolvidos para atender não apenas às
necessidades das crianças com TEA, mas também às demandas e aos interesses de
suas famílias. Algumas estratégias que ajudam as famílias a conviver com os
sintomas apresentados por crianças com TEA são o atendimento médico adequado,
o atendimento multidisciplinar, a busca por apoio social, como grupos de apoio para
pais, acesso a atividades de lazer e entretenimento, por exemplo. Todas essas
estratégias têm o objetivo de melhorar a qualidade de vida dos pais e familiares e
otimizar a formulação diagnóstica.
É essencial que os profissionais de saúde sempre assistam essas famílias,
fornecendo apoio e orientação para aqueles que vivem com uma criança
diagnosticada com TEA, intervindo sempre que necessário, oferecendo práticas
complementares e alternativas, pois é comum observar o longo período de
dedicação exigido por essas crianças. Em muitos casos, essa dedicação pode
resultar na diminuição das atividades laborais e de lazer e até na negligência dos
cuidados de saúde dos demais familiares.
É necessária uma escuta qualificada da família e do paciente em questão
(quando possível), incluindo dados sobre gestação, nascimento, primeiros anos de
vida, marcos de desenvolvimento; a configuração familiar (quem mora na casa,
laços familiares, relações com amigos, quem se ocupa prioritariamente do cuidado);
sua rotina diária (creche, escola ou grupo social, dia a dia, autonomia); sua história
clínica (intercorrências de saúde, hospitalizações); os interesses da pessoa e da
família de um modo geral; a queixa da pessoa e/ou da família.
Estudos na literatura demonstraram que o desempenho integrado de
profissionais como psicólogos, enfermeiros, médicos, fonoaudiólogos e professores
em dinâmica familiar resulta em melhoria da qualidade de vida e na capacidade dos
cuidadores de lidar com os sintomas dos pacientes com TEA. Nesse sentido, a
ligação em rede, a integralidade e a continuidade dos serviços de saúde podem
constituir um conjunto de referências capazes de acomodar essas crianças e suas
famílias.
Orientações como melhorar o ambiente físico, fornecer recursos visuais
agradáveis, como figuras, palavras ou símbolos, e fazer adaptações nesse ambiente,
considerando as sensibilidades sensoriais individuais à luz, o ruído e a cor das
paredes e dos móveis podem minimizar impactos negativos nas crianças com TEA,
melhorando sua qualidade de vida.
As crianças com prováveis sinais do transtorno devem ser avaliadas por equipe
multidisciplinar, como fonoaudiólogos e terapeutas ocupacionais. A avaliação
fonoaudiológica baseia-se na pesquisa de uma perda auditiva como contribuinte
para o atraso no desenvolvimento, além de avaliar déficits de linguagem
expressivos, receptivos e pragmáticos. Terapeutas ocupacionais avaliam déficits
motores finos e brutos, além de déficits de processamento sensorial e, a partir disso,
desenvolvem um plano terapêutico.
Na avaliação de uma criança com suspeita de TEA, escalas adequadas podem
ser usadas tanto para triagem quanto para fazer o diagnóstico correto de TEA, a fim
de melhorar o manejo clínico dos pacientes. Os instrumentos de avaliação podem
incluir entrevista com os pais e os cuidadores, entrevistas com os pacientes,
observação direta de pacientes e pesquisa detalhada do histórico familiar para TEA
ou outros transtornos do desenvolvimento neurológico. Entre as escalas
amplamente usadas para o TEA, estão as apresentadas nos Quadros 3 e 4.
Quadro 3 - Escala de Triagem de TEA
Escala de Triagem Características

O questionário é online e possui 23 perguntas, com respostas sim ou não, e


Modified Checklist
que deve ser respondido pelos pais e/ou cuidadores. A escala compreende
for Autism in
perguntas sequenciadas com respostas simples e, ao final, é fornecido um
Toddlers (M-
escore do total de pontos uma vez que o acesso é online. Esse total define
CHAT)
se a criança tem risco ou não na triagem para autismo.

Fonte: elaborado pelos autores.

Quadro 4 - Escalas de Diagnóstico para o TEA


Escala de
Características
Diagnósticas

A CARS é uma escala popular usada com frequência para auxiliar no


diagnóstico de TEA em crianças. Pode distinguir entre crianças com autismo e
Escala de crianças com outros distúrbios do atraso no desenvolvimento, como retardo
Classificação mental. Consiste em 15 itens que abrangem diferentes sintomas de TEA e
do Autismo na fornece uma comparação confiável dos comportamentos e das habilidades de
Infância uma criança afetada com o desenvolvimento esperado de uma criança saudável.
(CARS) Cada item é pontuado de 1 (comportamento normal) a 4 (comportamento
gravemente anormal). Pontuações entre 30 e 37 indicam TEA leve a moderado,
enquanto pontuações entre 38 e 60 indicam TEA grave.

A entrevista de diagnóstico para autismo revisada (ADI-R) é uma entrevista


baseada em perguntas para para pais e cuidadores de crianças e adultos com
Entrevista de
suspeita TEA. Contém 93 itens que avaliam diferentes comportamentos em
diagnóstico
diferentes idades, incluindo interação social recíproca, linguagem e
para autismo
comunicação, comportamentos ou interesses repetidos estereotipados e critérios
revisada (ADI-
para a idade de início. É pontuado de 0 (nenhuma evidência) a 3
R)
(comportamento extremamente prejudicado), leva de 2 a 3 horas para ser
concluído e só pode ser feito em crianças com mais de 2 anos.

Fonte: elaborado pelos autores.

Apesar da importância das escalas como instrumentos de triagem ou de


diagnóstico, os médicos não devem se guiar apenas pelos resultados dos testes. A
observação clínica combinada com os relatos dos pais e dos cuidadores são
consistentemente mais confiáveis do que os resultados das escalas isoladamente.
Nos casos em que os profissionais suspeitam de TEA na triagem, recomenda-se que
a criança seja encaminhada de forma precoce para intervenção com avaliação
multiprofissional, visando diagnosticar definitivamente o TEA, excluir condições
que imitam o transtorno (vide diagnóstico diferencial), identificar condições
comórbidas e determinar o nível de funcionamento da criança.
Quando os planos de diagnóstico e tratamento são estabelecidos, as famílias se
sentem confortadas. Para que um plano terapêutico seja bem desenvolvido, são
necessárias sugestões da equipe de saúde e decisões familiares, além do diagnóstico
bem-estabelecido. No entanto, existe uma demanda por um acesso mais fácil aos
cuidados de saúde, visando melhor qualidade de vida e menos ansiedade para os
pais.
É necessário que o atendimento seja realizado nos três níveis do sistema de
saúde por profissionais treinados para identificar e avaliar sintomas precoces em
crianças com TEA. Recursos humanos (treinamento e sensibilização de
profissionais de saúde e professores) e recursos materiais (investimento em
pesquisa para criação de ferramentas de diagnóstico mais específicas) devem ser
buscados para atender às necessidades dessas crianças e famílias que buscam o
diagnóstico e o tratamento de seus filhos.
É de extrema importância a formulação de um projeto terapêutico singular, que
é um direcionamento dos cuidados necessários para os pacientes e seus familiares.
Ele deve ser composto por ações dentro e fora do serviço de saúde e acompanhado
com frequência por profissionais, junto às famílias e pessoas com TEA. Deve-se
levar em conta os planos de vida e o processo de reabilitação psicossocial.

5. TRATAMENTO NÃO FARMACOLÓGICO


O início da interação da família com uma criança com diagnóstico de TEA os
obriga a enfrentar uma realidade que ainda é desconhecida, indicando o desafio de
ajustar seus planos e suas expectativas para o futuro, além da necessidade de se
adaptar à intensa dedicação e cuidado exigidos pelas necessidades específicas da
criança.
O tratamento que recebeu mais atenção historicamente nos Estados Unidos tem
sido a intervenção comportamental intensiva precoce. A forma mais conhecida
desse tratamento é a Análise de Comportamento Aplicada (ABA, na sigla em
inglês), mas existem muitas versões dessa abordagem. Eles estimulam a
brincadeira, a interação social e a comunicação por parte da criança. Esses
tratamentos geralmente são realizados por um professor ou terapeuta que trabalha
individualmente com uma criança, usando princípios de aprendizado para ensinar
habilidades de desenvolvimento infantil, como linguagem, imitação ou tarefas
cognitivas, como correspondência ou classificação. O tratamento geralmente é
realizado intensivamente em períodos de 15 a 20 horas ou mais por semana. Essas
intervenções também podem apoiar a compreensão dos pais, dos professores ou dps
colegas e aumentar a atenção conjunta, o engajamento e a comunicação recíproca
da criança.
Há evidências de que a musicoterapia pode ajudar crianças com TEA a
melhorar suas habilidades em algumas áreas específicas, como a interação social,
comunicação verbal, comportamento e reciprocidade socio-emocional, contribuindo
para aumentar as habilidades de adaptação social e promover a qualidade das
relações entre pais e filhos.
Para os adultos com TEA podem ser utilizadas intervenções psicológicas para
aperfeiçoar o funcionamento pessoal, incluindo o desenvolvimento das habilidades
necessárias para o acesso a transporte público, emprego e instalações de lazer. As
intervenções devem se concentrar no apoio ao acesso às atividades da comunidade
e no aumento da qualidade de vida do indivíduo. Além disso, abordagens
psicológicas podem ser usadas para ajudar na aceitação de suas dificuldades, tratar
condições concomitantes e ensinar habilidades específicas às necessidades do
indivíduo.
A terapia cognitivo-comportamental (TCC) pode ajudar adultos com TEA em
vários domínios. A TCC é eficaz no tratamento da ansiedade e no transtorno
obsessivo-compulsivo (TOC), além de apoiar adultos que têm dificuldades com
obtenção ou manutenção de emprego. Intervenções cognitivo-comportamentais
podem ser implementadas para apoiar indivíduos com TEA, ensinando habilidades
de tomada de decisão e solução de problemas.

6. TRATAMENTO FARMACOLÓGICO
Os medicamentos não devem ser utilizados como único recurso terapêutico para a
pessoa com transtorno do espectro do autismo. Sempre que possível, o médico deve
discutir a introdução de psicofármacos com outros membros da equipe responsável
pelo tratamento, que também devem participar da reavaliação periódica da
medicação. Da mesma forma, o momento de retirada da medicação deve fazer parte
do planejamento terapêutico, devendo ser negociado cuidadosamente com os
familiares, que muitas vezes temem pela piora do comportamento do paciente
quando este estiver sem utilizar o fármaco.
Quase sempre o uso de psicofármacos é acompanhado do surgimento de efeitos
colaterais. Alguns são leves e podem ser manejados com reduções na dosagem ou
mudança nos horários das tomadas. Outros, contudo, podem ser intensos e
desagradáveis, razão pela qual é necessário avaliar se os benefícios da medicação
não estão sendo anulados pelos problemas causados por ela e se não seria melhor
suspendê-la ou trocá-la por outra substância.
Atualmente, a farmacologia baseada em evidências no TEA limita-se ao
tratamento de comportamentos ou diagnósticos comórbidos, e não voltados para o
próprio TEA. Os antipsicóticos são uma alternativa de tratamento medicamentoso e
estão associados a uma melhora significativa dos comportamentos agressivos, da
irritabilidade, da ansiedade e da hiperatividade. Os antipsicóticos mais estudados no
TEA são a risperidona, aripiprazol e a olanzapina. Essas medicações também
podem produzir efeitos colaterais importantes, nos quais os mais importantes são
aumento do apetite, ganho excessivo de peso e resistência à insulina. As doses
estudadas da risperidona ficam entre 1,5 e 2mg/dia.
O aripiprazol, assim como a risperidona, é aprovada pelo FDA (Food and Drug
Administration) para uso em crianças e adolescentes com transtorno do espectro
autista. As doses usais ficam entre 5 e 15mg/dia. Os efeitos colaterais mais comuns
do aripiprazol são sedação, sialorreia e tremores, e isso pode contribuir para uma
maior taxa de descontinuação da medicação.
Quanto à associação entre TEA e o TDAH, o tratamento com drogas
psicoestimulantes tradicionais, como o metilfenidato e as anfetaminas, parece ser
benéfico no tratamento dos sintomas de TDAH em pacientes com TEA. Doses de
metilfenidato giram em 2,5 a 10 mg divididas em duas tomadas, pela manhã e ao
meio-dia. Quando utilizadas doses mais altas, a incidência de efeitos colaterais
aumenta, como irritabilidade, comportamentos estereotipados, problemas
gastrointestinais e de sono.
Medicamentos antidepressivos, especificamente os inibidores seletivos de
recaptação de serotonina (ISRS), são amplamente prescritos para pacientes com
TEA e o uso desses agentes tem aumentado constantemente, apesar das evidências
inconclusivas e, em muitos casos, fracas, que sustentam seus benefícios na melhoria
dos principais sintomas de TEA ou da depressão e ansiedade comórbidas.
Fluoxetina, sertralina, citalopram, escitalopram e fluvoxamina estão entre os ISRS
amplamente utilizados no TEA. Algumas evidências mostraram uma melhora
importante dos comportamentos repetitivos e agressivos dos pacientes com TEA.
Poucos estudos avaliaram a eficácia e a tolerabilidade da sertralina em pacientes
com TEA. Os antidepressivos são utilizados também para melhora dos movimentos
repetitivos e estereotipados.
O uso de agonistas do receptor alfa-2-adrenérgico, especialmente a clonidina,
está associado ao tratamento de comportamento agressivo, distúrbios do sono e
ansiedade, que são sintomas proeminentes em pacientes com TEA. Esses
medicamentos inibem a neurotransmissão de noradrenalina no tronco cerebral,
levando a uma diminuição da atividade simpática, da resistência periférica e,
portanto, estados decrescentes de hiperexcitação, de ansiedade e de espasmos
motores.
Quadro 5 - Fármacos para o tratamento do TEA
Classe Medicamento Doses Resultado Efeitos adversos

» Melhora da
0,5mg a irritação,
Risperidona
1,8mg/d agressividade, » Sedação,
temperamento sialorreia,
Antipsicóticos explosivo e sintomas
comportamento extrapiramidais e
5 a 15 autolesivo, ganho de peso.
Aripiprazol
mg/d estereotipias e
hiperatividade.

» Melhora nos
comportamentos
Aumento de energia,
repetitivos.
ISRS Fluoxetina 20mg/dia insônia, taquicardia,
» Melhora da diaforese, náusea.
ansiedade e da
irritabilidade.

7,5 a » Melhora da Irritabilidade, retraimento


50mg/dia
Psicoestimulante Metilfenidato hiperatividade e social, diminuição do
(duas
impulsividade. apetite, insônia.
tomadas)

- Melhoria na desatenção,
Agonista alfa-2- 1a4 hiperatividade, Sonolência, fadiga e
Clonidina
Adrenérgico mg/dia impulsividade e diminuição do apetite.
funcionamento global.

Fonte: síntese elaborada pelos autores.

6.1. Redescobrindo o caso (Pontos-Chave)


1 Sexo masculino

2 Manifestação nos primeiros anos

3 Déficit de comunicação

4 Acessos de raiva

5 Padrão restrito de interesses

6 Déficit de interação social

7 Movimentos estereotipados e repetitivos

8 Déficit na reciprocidade social

9 Ecolalia

No caso de Neilson, deve-se levar em consideração algumas características


importantes para o diagnóstico da criança. Podemos observar que Neilson apresenta
dificuldade em se comunicar com a sua genitora, inclusive levando-a pelo braço
quando quer alguma coisa. Apresenta também um déficit de interação social, com
restrição de interesses e atividades, como nas suas brincadeiras, nas quais fica
agrupando brinquedos da mesma cor. Além disso, é possível observar movimentos
estereotipados, pois fica balançando os braços com frequência. O paciente também
tem episódios de agitação e acessos de raiva quando há mudanças no curso de
atividades rotineiras, o que traz um sofrimento importante para os pais.
A criança deve ser avaliada por equipe multidisciplinar, com médico, psicólogo,
terapeuta ocupacional e fonoaudiólogo para dar início à estimulação precoce e ao
desenvolvimento de um projeto terapêutico singular para avaliar as necessidades de
Neilson e de sua família. Nesse momento, como já discutido, é importante atender
aos familiares de forma empática, orientando sobre os aspectos do transtorno, as
mudanças que devem ocorrer no ambiente do paciente e fornecendo explicações
para eventuais dúvidas. É fundamental que o profissional ofereça alternativas de
tratamento, que podem incluir intervenções psicossociais e desenvolvimento de
habilidades, com o objetivo de aumentar a capacidade de comunicação social e a
inserção de crianças com TEA na comunidade e a prevenção de comportamentos e
situações que possam trazer desconforto social, além do tratamento medicamentoso
e do tratamento de outras condições comórbidas.
Neilson não parece ter comportamentos conturbadores graves, sem os quais não
se justificaria uma prescrição de rotina. A risperidona poderia ser utilizada em
situações de reação a estressores.

Exemplo de uma prescrição para Neilson


Risperidona 1mg/ml, tomar 1 ml, via oral, em caso de crise de agitação.

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disorder among children aged 8 years — autism and developmental
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burden of autism spectrum disorders. Psychol Med 2015; 45: 601-13.
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hyperactivity disorder symptoms, adaptive functioning, and quality of life in
children with autism spectrum disorder. Pediatrics 2012; 130(Suppl. 2): S91-
S97.

SIGLAS

• ABA Applied Behavior Analysis


• DEL Distúrbio Específico de Linguagem
• DSM-5 Manual Diagnóstico e Estatísticos do Transtornos Mentais
• FDA Food and Drugs Administration
• ISRS Inibidores Seletivos de Recaptação de Serotonina
• QI Quoeficiente de Inteligência
• ST Síndrome de Tourette
• TAG Transtorno de Ansiedade Generalizada
• TCC Terapia Cognitivo Comportamental
• TDAH Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade
• TEA Transtorno do Espectro Autista
• TOC Transtorno Obsessivo-Compulsivo
1. CASO CLÍNICO
João Pedro, 8 anos, estudante do 2o ano do ensino fundamental, foi
levado pela mãe à consulta com o médico da atenção primária. A
enfermeira da triagem pediu que o paciente tivesse prioridade no
atendimento, pois estava correndo no saguão do Posto de Saúde e não
aceitava as ordens da equipe para sentar-se, passando a impressão que
estava “ligado na tomada”. Ao entrar no consultório, a mãe de João
Pedro conta que tem recebido frequentes reclamações da escola por
conta do comportamento de seu filho, além de seu baixo rendimento
escolar. Não fica sentado por muito tempo, saindo muitas vezes da sala
de aula e importunando os outros alunos. Raramente, tem cuidado com
seu material escolar, perdendo lápis e borrachas com frequência. A mãe
traz que tal comportamento assemelha-se quando o leva ao
supermercado, onde fica correndo pelos corredores, muitas vezes
derrubando produtos das prateleiras. Em casa, não permanece sentado
na frente da TV por muito tempo e há grande dificuldade para concluir
os deveres de casa, pois parece estar no “mundo da lua”. Não traz
queixas referentes ao apetite ou sono. Nega comorbidades clínicas. Avô
paterno portador de arritmia cardíaca. Pai hipertenso. Nega casos de
transtornos mentais na família.

Exame mental: paciente higienizado e com adequado aspecto


geral. Inicialmente, esteve sentado durante o atendimento por medo
de receber injeção, porém, ao longo da entrevista, vai ficando mais
inquieto. Recusa-se a sentar e com frequência interrompe a
entrevista pedindo algum brinquedo ou pedindo objetos que estão
sobre a mesa. Antes que as perguntas sejam concluídas, já traz
respostas. Pareceu estar disperso e alheio à situação da entrevista.

2. DISCUTINDO O DIAGNÓSTICO
A atenção é uma das funções mentais mais importantes na avaliação
psiquiátrica, nela, tenacidade e vigilância são analisadas e colocadas em
foco com as suas principais alterações psicopatológicas. Por vezes,
pode estar alterada para mais (em estados maníacos, por exemplo) ou
para menos (em estados depressivos, por exemplo).
Pelo caso acima, observa-se duas importantes funções mentais
alteradas: a atenção e a psicomotricidade. É comum que as crianças
tenham sua atenção voltada para situações que despertem seu interesse,
em detrimento de outras não tão interessantes, desde que isso não venha
a causar prejuízos no seu funcionamento acadêmico. O mesmo
raciocínio pode ser usado quando avalia-se a psicomotricidade. É
esperado que tenham mais energia para gastar, porém o contexto onde
ela se enquadra sempre deve ser avaliado.
A desatenção está presente em todos os seres humanos, afinal, quem
nunca “viajou” durante uma aula ou palestra? É comum que as pessoas
sintam-se distraídas em situações que possam exigir prolongado esforço
mental. Contudo, existem indivíduos que desde a sua infância sofrem
com a sua desatenção em excesso, vivenciando reprovações, notas
baixas e dificuldades de interação social, como o caso de João Pedro.
Atrelada à falta de atenção, esses pacientes também podem sofrer com a
chamada hiperatividade, ou seja, são extremamente enérgicos, tanto
corporal quanto mentalmente, e não conseguem manter a calma e o
foco diante de situações que exigem a sua quietude. Vale ressaltar que,
além dos sintomas de desatenção e hiperatividade, eles também podem
apresentar um quadro de impulsividade, tendo esses indivíduos uma
significativa alteração no seu ato volitivo. Pacientes impulsivos tendem
a cometer, muitas vezes, atos sem planejamento prévio e que podem
causar danos para si ou para terceiros.
Pessoas com o chamado Transtorno de Déficit de
Atenção/Hiperatividade (TDAH) costumam ser extremamente
estigmatizadas desde a sua infância. Por vezes, o diagnóstico errôneo
de inquietação, ansiedade, imaturidade etc. fazem com que esses
indivíduos não recebam o tratamento adequado para a sua condição e
sigam sofrendo as consequências do seu distúrbio até a vida adulta.
Crianças e adolescentes que recebem o diagnóstico de fato, estão
sujeitos, ainda, a sofrerem bullying ou sofrerem demissões (por
exemplo) quando adultos.
Cerca de 50% das crianças diagnosticadas com TDAH persistem
sintomáticas na vida adulta. Ao chegar nesta fase, esses pacientes
sofrem consequências mais graves, como o desemprego, o baixo
ingresso e permanência em universidades (costumam mudar
constantemente de curso ou fazer muitas trocas de disciplinas), as
dificuldades em manter relacionamentos afetivos e podem apresentar,
também, uma sensação de incapacidade, fato que prejudica a sua
autoestima e pode inclusive levar à coexistência de transtornos
depressivos.
Além dos entraves já citados, não é incomum a ocorrência de
acidentes e fatalidades em pessoas com TDAH. Portanto, não se assuste
se um dia chegar ao seu PSF ou ao seu serviço de Urgência e
Emergência, pacientes que, frequentemente, por desatenção ou
impulsividade, sofram ou provoquem acidentes domésticos,
automobilísticos e afins. Ao chegar um indivíduo nessas situações em
um ambiente assistencial, é de suma importância avaliar se há ou não
algum distúrbio, tanto neurológico quanto psiquiátrico, que possa
prejudicar a sua atenção ou a sua tomada de decisões.
As manifestações do TDAH nos primeiros 10 anos de vida
costumam tender mais para um quadro de hiperatividade, geralmente os
sintomas de desatenção são mais evidentes na adolescência e na vida
adulta. A hiperatividade costuma se manifestar nos adolescentes e nos
adultos como uma espécie de inquietação, muitas vezes concomitante
com um quadro de ansiedade. Em síntese, o TDAH é um quadro
prevalente ao longo de toda a vida e que traz significativos impactos
nas atividades de vida diária (AVD) dos seus portadores.
O Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM-
5)1 nos traz critérios diagnósticos simples de se observar na prática
clínica e fáceis de ser relatados na condução de uma boa entrevista.
Trata-se de um diagnóstico dimensional. Como citado no início
deste capítulo, qualquer pessoa pode ficar eventualmente desatenta,
assim como existem situações em que um indivíduo pode se apresentar
de forma hiperativa ou impulsiva; nas crianças isso pode ser ainda mais
evidente, visto que a infância é uma fase de desenvolvimento e
aprendizagem. Por isso, não é incomum que pessoas, ao lerem os
critérios diagnósticos do TDAH, acabem se identificando com um ou
outro. O que vai nos indicar, de fato, se o nosso paciente terá ou não o
transtorno será a quantidade e a frequência desses sintomas, bem como
os seus impactos na vida do portador. Vide quadro 1, a seguir.

Quadro 1 - Critérios Diagnósticos do TDAH


Desatenção Hiperatividade/Impulsividade

Não presta atenção em detalhes ou Mexe bastante as mãos e os pés ou se


comete erros por descuido. contorce na cadeira.

Tem dificuldade de manter a atenção Levanta da cadeira quando se espera


em tarefas ou atividades lúdicas. que permaneça sentado.

Parece não escutar quando alguém lhe Corre ou sobe nos objetos em
dirige a palavra. momentos inapropriados.

Não consegue brincar ou ter


Não segue instruções até o fim.
atividades de lazer de forma calma.

Tem dificuldade para organizar tarefas Não consegue ficar parado por muito
e atividades. tempo.

Evita se envolver em tarefas que


Fala em demasia.
exijam esforço mental prolongado.

Perde materiais necessários para Responde a perguntas antes de estas


tarefas e atividades. serem concluídas.

É facilmente distraído por estímulos Tem dificuldade para esperar a sua


externos. vez.

Interrompe ou se intromete em
É esquecido em relação a atividades
assuntos e atividades que não lhe
cotidianas.
dizem respeito.

Fonte: American Psychiatric Association¹.


Nesses critérios são avaliadas as três principais apresentações no
paciente com TDAH: a desatenção, a hiperatividade/impulsividade e a
combinação de ambas. É necessário que as crianças apresentem 6 ou
mais alterações de desatenção e/ou 6 ou mais alterações de
hiperatividade/impulsividade. Nos adolescentes/adultos, no mínimo 5
alterações em cada apresentação. O tempo que essas alterações devem
permanecer nesses indivíduos deve ser, no mínimo, de 6 meses.
Veremos mais adiante que a quantidade de alterações em cada
apresentação vai nos auxiliar a definir qual tipo de TDAH o nosso
paciente apresenta, pois, atente-se, nem sempre a desatenção e a
hiperatividade/impulsividade se apresentam juntas ou na mesma
intensidade.
E como eu observo esses sintomas? Vejamos: crianças ou adultos
que sofrem com a “desatenção patológica”, costumam não prestar
atenção em detalhes, cometendo, de forma frequente, erros por simples
descuidos. São pessoas que parecem não escutar quando alguém lhe
dirige a palavra (vivem no famoso “mundo da lua”). Além disso,
possuem dificuldades para organizar e concluir tarefas, isso porque são
frequentemente distraídos por estímulos externos e/ou pensamentos não
relacionados. O convívio social desses pacientes também pode ser
abalado pelo fato de muitos possuírem um certo esquecimento das
atividades cotidianas (cumprimento de obrigações), e serem tachados
como “irresponsáveis” devido a isso.
Já quando falamos da hiperatividade/impulsividade, veremos
indivíduos inquietos, que frequentemente mexem com as mãos e com
os pés ou ficam se contorcendo na cadeira. Eles não conseguem passar
muito tempo sentados em situações que exigem tal feito (como assistir
a aulas, fazer provas etc.). Quando crianças tendem a correr e subir nos
objetos em momentos inoportunos; tais atos costumam se manifestar na
vida adulta como uma sensação de inquietude constante, por isso é
muito difícil que eles consigam brincar ou ter algum lazer de forma
calma. A inquietação faz com que o portador de TDAH não consiga
permanecer muito tempo no mesmo lugar, tendo uma dificuldade para
esperar chegar a sua vez (como em filas, por exemplo). Muitas vezes
são conhecidos por falarem demais, responderem a perguntas antes de
estas serem concluídas e se intrometerem em conversas/atividades que
não lhes dizem respeito.
Além de possuírem claras apresentações de desatenção e/ou
hiperatividade/impulsividade, é necessário que esses pacientes
preencham os outros critérios:

1. Apresentação dos sintomas antes dos 12 anos de idade.


2. Manifestação dos sintomas em pelo menos 2 ambientes
diferentes.
3. Interferência dos sintomas no convívio social, funcionamento
acadêmico e profissional.
4. Não há outros transtornos mentais que possam justificar os
sintomas (por exemplo, transtornos psicóticos).

Em resumo, para dar o diagnóstico de TDAH é necessário o que se


apresenta na Figura 1.

Figura 1 - Diagnóstico de TDAH


Fonte: elaborado pelos autores.

Ressalta-se que o preenchimento correto desses critérios tem se


tornado cada vez mais importante, visto que o diagnóstico errôneo de
TDAH e o uso indevido de medicações para o tratamento desse
transtorno tem se tornado cada vez mais prevalente, principalmente em
estudantes e acadêmicos.
Como citado anteriormente, não existe somente um tipo de TDAH.
Os pacientes acometidos por esse transtorno podem ter as apresentações
de desatenção e hiperatividade/impulsividade de forma simultânea ou,
eventualmente, pender mais para um lado do que para o outro. Assim,
existem indivíduos com a chamada apresentação combinada, ou seja,
quando tanto os critérios para desatenção quanto os para
hiperatividade/impulsividade são preenchidos nos últimos 6 meses.
Aqueles em que somente os critérios para desatenção são preenchidos
nos últimos 6 meses são denominados com o subtipo chamado de
apresentação predominantemente desatenta. E, por fim, aqueles que
apresentam somente os critérios para hiperatividade/impulsividade
preenchidos, são classificados com uma apresentação
predominantemente hiperativa/impulsiva.
Caso esses critérios tenham sido preenchidos no passado, ou seja,
alguns não se manifestaram nos últimos 6 meses, podemos dizer que o
paciente se encontra em um estado de remissão parcial, esses sintomas
ainda podem voltar a ser manifestados e ainda causam danos no
envolvimento social do indivíduo.
O TDAH ainda pode se manifestar em diferentes intensidades. O
TDAH leve será quando o paciente manifestar poucos sintomas além
dos necessários para fechar o diagnóstico, e esses não vão causar
muitos problemas no seu cotidiano. Já o TDAH grave será dito quando
existir a apresentação de muitos sintomas e os danos causados no
cotidiano do paciente são grandes e evidentes (por exemplo, uma
criança que reprovou na escola ou um adulto que provoca constantes
acidentes automobilísticos). Existe ainda o TDAH moderado, quando
os sintomas e os prejuízos se apresentam de forma intermediária (entre
o leve e o grave).
É bom deixarmos claro que o diagnóstico de TDAH ainda é
estritamente clínico, não sendo utilizados exames laboratoriais ou
dados de exame físico para fechar o diagnóstico. Alterações em exames
de neuroimagem e na eletroencefalografia podem ocorrer em alguns
indivíduos, contudo, ainda são necessários mais estudos para verificar a
real origem dessas alterações.

3. ASPECTOS SOBRE A
EPIDEMIOLOGIA E ETIOLOGIA
Mundialmente, cerca de 5% das crianças apresentam o diagnóstico de
TDAH, metade desses, como citado anteriormente, ainda manifestam
os sintomas durante a vida adulta. Geralmente, seguindo o seu critério
diagnóstico, a manifestação sintomática se inicia antes dos 12 anos de
idade e o sexo masculino representa a maioria dos pacientes, com uma
proporção de cerca de 2:1 nas crianças e 1,6:1 nos adultos, segundo o
DSM-5. Foi verificado também que pacientes do sexo masculino
tendem a manifestar a apresentação predominantemente
hiperativa/impulsiva ou a apresentação combinada, enquanto pacientes
do sexo feminino tendem a manifestar a apresentação
predominantemente desatenta.
A etiologia de fato do TDAH ainda é desconhecida, entretanto,
alguns estudos defendem a hipótese de alterações genéticas e
neurofisiológicas, enquanto outros abordam os fatores ambientais e
psicossociais de forma mais evidente.
Neurofisiologicamente, verificou-se que, em alguns pacientes,
existe um déficit funcional de dopamina e noradrenalina, tal hipótese
concordaria com a atuação medicamentosa do metilfenidato e da
anfetamina no tratamento desses pacientes (veremos mais a frente como
é realizado o tratamento farmacológico). Entretanto, existem pesquisas
que também demonstram o oposto, notando a existência de uma
hiperatividade dopaminérgica e noradrenérgica nos portadores, a qual
estaria ligada diretamente com os sintomas de
hiperatividade/impulsividade. Uma menor maturação e redução do
volume do córtex pré-frontal, assim como uma redução do volume do
núcleo caudado e do cerebelo também foram encontradas em alguns
pacientes.
Ainda existem estudos que sugerem a correlação entre crianças
diagnosticadas com o TDAH e a presença do distúrbio em parentes de
primeiro grau, sugerindo a presença de genes específicos que podem
estar relacionados com o transtorno, como o gene transportador de
dopamina (DAT) e o gene que codifica o receptor de dopamina
(DRD4), contudo, segue, ainda, sem nenhuma confirmação.
Fatores ambientais, como o baixo peso ao nascer, o tabagismo
durante a gestação, o abuso infantil, a presença de múltiplos lares
adotivos, a exposição ao álcool no útero e a exposição a toxinas
ambientais também foram estudados, permanecendo sem conclusões.
Verificou-se também que relações conturbadas com os familiares no
início da infância podem chegar a influenciar no curso do TDAH, ainda
que sem relação causal com o transtorno.
Em suma, as razões etiológicas do TDAH ainda necessitam de mais
pesquisas e comprovações, de forma que possam auxiliar no
entendimento causal da patologia e, caso existam, nas estratégias de
prevenção para o transtorno.

4. DIAGNÓSTICO DIFERENCIAL
Não é incomum que crianças, adolescentes e até mesmo adultos
recebam o diagnóstico de TDAH quando, na verdade, são portadores de
outros transtornos ou possuem síndromes concomitantes. O
conhecimento dos possíveis diagnósticos diferenciais do TDAH
(Quadro 2) pelo médico generalista torna-se de fundamental
importância na prática clínica, principalmente quando se visa conduzir
corretamente esses pacientes.

Quadro 2 - Diagnósticos diferenciais do TDAH


Transtorno opositivo desafiador Transtorno explosivo intermitente

Síndrome de Tourette Transtornos específicos da aprendizagem

Transtorno do espectro autista Transtornos de ansiedade

Transtornos depressivos Transtorno afetivo bipolar

Transtorno disruptivo da desregulação do


Transtornos de personalidade
humor

Epilepsia Transtornos por uso de substâncias

Fonte: elaborado pelos autores.

O Transtorno Opositivo Desafiador (TOD) é um transtorno


externalizante que costuma se manifestar nos seus portadores como
uma extrema resistência em realizar tarefas escolares ou profissionais e
pela presença de atitudes opositoras, tendo esses indivíduos uma
significativa dificuldade em seguir comandos. Pacientes com esse tipo
de comportamento também tendem a apresentar uma dificuldade de
autocontrole, podendo manifestar quadros de agressões físicas e/ou
verbais. Diferentemente do TDAH, crianças com TOD podem
apresentar bom desempenho em atividades que exijam o seu domínio e
a sua autoridade. O diagnóstico pode se confundir quando, por
exemplo, essas crianças demonstram em sala de aula eventuais
dificuldades de concentração e comportamento agitado. Contudo,
enquanto os pacientes com TDAH se apresentam como desatentos e
hiperativos por não conseguirem manter o foco ou controlar a sua
agitação, os pacientes com TOD se recusam a se dedicar às atividades
escolares pela simples atitude da oposição. Tais comportamentos não se
manifestam somente na infância, sendo possível, na prática clínica, a
constatação de adultos com comportamentos sugestivos de TOD. Cerca
de 40% dos pacientes com TDAH possuem o TOD como comorbidade;
tal implicação pode exercer influência na hora do tratamento, tornando-
se extremamente importante observar a presença de sinais e sintomas
desse distúrbio nos portadores de TDAH.
Quando falamos de pessoas muito impulsivas e que junto dessa
impulsão trazem um quadro crônico de agressividade, podemos estar
diante do Transtorno Explosivo Intermitente (TEI). Pessoas
diagnosticadas com TEI costumam manifestar atitudes agressivas
reativas que, em sua maioria, são desproporcionais ao estímulo
apresentado. Tais acessos de fúria podem causar prejuízo social e, até
mesmo, judicial em seus portadores. O elo em comum deste transtorno
com o TDAH é a impulsividade. Entretanto, pessoas com TEI não
costumam apresentar quadros de desatenção, enquanto pessoas com
TDAH não costumam apresentar quadros de agressividade. A
coexistência dos dois transtornos pode se apresentar em alguns
pacientes.
Na chamada Síndrome de Tourette vemos a presença de tiques
motores e vocais involuntários. É comum a presença de coprolalia
(vocalização de palavras obscenas) e copropraxia (gestos obscenos).
Essa síndrome, assim como o TDAH, se encaixa nos chamados
transtornos do neurodesenvolvimento, ou seja, costumam apresentar os
seus primeiros sinais durante a infância. Ambas as síndromes podem se
manifestar com um quadro de inquietação (evidente no TDAH quando
falamos dos sintomas de hiperatividade), podendo trazer uma certa
confusão na hora do diagnóstico. Muitas vezes, é necessário que se
observe por um tempo os pacientes candidatos a um desses transtornos,
ademais, não podemos excluir a coexistência desses no mesmo
indivíduo.
Transtornos específicos da aprendizagem, como a dislexia, a
discalculia e a disortografia, podem se confundir muitas vezes com o
TDAH. Por vezes, pacientes com o tipo predominantemente desatento
podem apresentar sintomas de transtornos específicos da aprendizagem.
Contudo, deve-se observar se essas dificuldades escolares e/ou
acadêmicas são de fato consequências do TDAH ou uma síndrome
isolada. As diferenças entre os distúrbios é que, pacientes com dislexia,
por exemplo, costumam manifestar os sinais de desatenção somente em
sala de aula, enquanto no TDAH os pacientes apresentam os sintomas
em pelo menos 2 ambientes diferentes.
Alguns sintomas do Transtorno do Espectro Autista (TEA), estão
bastante interligados com os do TDAH. Em ambos os casos, os
pacientes podem apresentar quadros de desatenção, interferência nas
relações socias e hipercinesia. Assim como no TDAH, no TEA os
pacientes são de difícil manejo, necessitando que o profissional se
qualifique de paciência para abordá-los. É comum a confusão entre as
estereotipias no TEA e a inquietação presente no componente
hiperativo do TDAH. É interessante perceber que estereotipias são
movimentos automáticos e repetitivos associados a um descontrole da
atividade motora, já a hiperatividade não se trata da repetição de
movimentos de grupos musculares específicos, mas de um aumento na
psicomotricidade global com uma necessidade intensa de estar em
constante movimento. Apesar das semelhanças, podemos notar
diferenças claras entre os dois distúrbios. As dificuldades de interação
social, por exemplo, podem divergir nos dois casos; no TEA temos algo
mais voltado para uma disfunção social, enquanto no TDAH veremos
uma dificuldade no envolvimento social, ou seja, o paciente com
TDAH, por vezes, quer se envolver, contudo, o seu transtorno costuma
dificultar o seu modo de interagir com o meio. Pacientes com TEA
podem também ter o diagnóstico concomitante de TDAH. A junção dos
dois transtornos nos traz sintomas mais graves e um maior impacto nas
AVDs, fato que exige um aprimoramento na abordagem desses
indivíduos. A presença de sintomas autistas frente a um diagnóstico de
TDAH também pode estar relacionada com um aumento dos sintomas
ansiosos, depressivos e de oposição nesses pacientes.
Os conhecidos transtornos de ansiedade também possuem a sua
ligação com o TDAH, já que a intensa preocupação presente nesses
pacientes pode levar a um quadro de desatenção e/ou agitação.
Entretanto, tais sinais se diferenciam das manifestações do TDAH,
visto que as razões que fazem os seus portadores serem desatentos e
agitados costumam ser diferentes. Vale ressaltar que alguns estudos
demostram que os sintomas de ansiedade podem estar presentes de
forma comórbida em até 35% dos pacientes com TDAH.
Pacientes com transtornos depressivos, devido aos sintomas de
tristeza, hipobulia e anedonia, podem, por vezes, apresentarem-se de
forma desatenta. Contudo, tal quadro de desatenção cessa tão logo
ocorre a remissão do quadro, diferenciando da manifestação do sintoma
no TDAH, que tende a ocorrer de forma mais prolongada. Apesar de os
transtornos divergirem, pesquisas apontam que, consequentemente ao
estigma sofrido, portadores de TDAH tendem a desenvolver quadros
depressivos ao longo da vida.
Alguns sintomas da fase maníaca do Transtorno Afetivo Bipolar
(TAB), como inquietação, distração e aumento da fala, podem se
confundir com algumas manifestações do TDAH. Contudo, as
diferentes características do TAB e, principalmente, a sua fase
depressiva e o curso cíclico do transtorno podem nos ajudar a
diferenciar os dois diagnósticos. No quesito comorbidade, o TAB do
tipo 1 se apresenta de forma mais comórbida no TDAH quando
comparado ao TAB do tipo 2. O contrário, ou seja, a presença do
TDAH como comorbidade do TAB, também pode ocorrer. Estudos
afirmam, inclusive, que pacientes com TAB que possuem TDAH
tendem a ter uma manifestação sintomática mais precoce (antes dos 18
anos). Além disso, esses indivíduos costumam apresentar um pior curso
da doença, com episódios mais frequentes de mania e depressão, e
maior ocorrência de outras comorbidades, como ansiedade e transtornos
por uso de substâncias. É interessante observar que sintomas como a
diminuição da necessidade de sono e a elação do eu, não são sintomas
característicos do TDAH, podendo ser usados como sintomas-chave na
diferença. Trata-se de um diagnóstico difícil e que necessita de
observação a longo prazo.
Portadores do chamado Transtorno Disruptivo da Desregulação
do Humor (TDDH) podem chegar a preencher critérios diagnósticos
para TDAH, assim como podem possuir sintomas em comum com
outros transtornos, como o TOD e o TEI. Esses pacientes costumam ser
irritáveis e não toleráveis a frustrações. O que vai diferenciar de fato
um paciente com TDDH de um paciente com TDAH é a não
manifestação de sintomas de impulsividade e desatenção.
Um diagnóstico diferencial mais aplicável para pacientes
adolescentes e adultos são os transtornos de personalidade. Por
vezes, pode ser difícil definir se os sintomas de comportamento
desorganizado e intrusão social são devidos ao TDAH ou a um
transtorno de personalidade não diagnosticado. Entretanto, existem
diversos sintomas presentes em alguns transtornos de personalidade que
geralmente não são vistos em pacientes com TDAH, como a
automutilação não suicida e o medo do abandono. Nas crianças a
presença de transtornos de personalidade é mais rara, sendo necessário
o preenchimento de critérios diagnósticos para o transtorno por pelo
menos 1 ano para confirmar o quadro (com exceção do transtorno de
personalidade antissocial, o qual só pode ser diagnosticado em maiores
de 18 anos, segundo o DSM-5). Alguns estudos sugerem que os
transtornos de personalidade podem estar presentes em até 50% dos
adultos com TDAH, sendo mais frequentes os dos grupos B e C. Tal
fato implica o tratamento desses indivíduos, pois costumam apresentar
resposta reduzida ao tratamento medicamentoso e resistência nas
sessões de psicoterapia.
Apesar de pouco falado, a epilepsia também pode se encaixar nos
diagnósticos diferenciais do TDAH, principalmente quando este se
apresenta como comorbidade, visto que crianças com desordens do
sistema nervoso central estão mais propensas a desenvolverem um
quadro de TDAH. Cerca de 33% das crianças com diagnóstico de
epilepsia possuem quadro de desatenção compatível com os critérios
diagnósticos do TDAH. Contudo, muitas vezes pode ser difícil
distinguir se os sintomas de desatenção resultam da epilepsia em si ou
de um TDAH comórbido, visto que a própria doença pode causar
déficit atencional. O tratamento da epilepsia com o uso de
medicamentos como o fenobarbital, o topiramato e o ácido valproico
também podem causar prejuízos na atenção e sintomas de
hiperatividade. Mesmo sendo uma classe medicamentosa com uso
permitido, os psicoestimulantes devem ser usados com cautela em
pacientes com diagnósticos concomitantes de TDAH e epilepsia.
Devido ao impacto do transtorno na qualidade de vida dos pacientes
epilépticos, tratar o mesmo corretamente é fundamental.
Na prática clínica podemos presenciar alguns sintomas de TDAH
que foram induzidos pelo uso de medicamentos. Drogas como
neurolépticos, broncodilatadores e medicações de reposição hormonal
podem simular sintomas de desatenção e/ou hiperatividade. O uso de
substâncias ilícitas também pode mimetizar o quadro clínico do
TDAH, sendo necessário que o profissional investigue a existência ou
não desse quadro antes do uso abusivo.

4.1. E aí? O que fazer?


A primeira conduta a ser tomada diante de um paciente com suspeita de
TDAH é a busca de detalhes da sua história clínica que auxiliem na
elucidação diagnóstica. Ouvir o relato do paciente e dos seus familiares
é fundamental para averiguar o seu histórico evolutivo, principalmente
se o portador manifesta sintomas na adolescência ou na vida adulta.
Solicitar exames de neuroimagem e um eletroencefalograma (EEG)
pode ser útil para excluir outras etiologias para os sintomas. Todavia,
ressaltamos novamente que tal conduta não visa a confirmação
diagnóstica do TDAH. Pacientes com histórico pessoal ou familiar de
cardiopatias estruturais ou arrítmicas e hipertensão arterial devem ser
submetidos a uma avaliação cardiológica antes de iniciar o tratamento
medicamentoso.
O uso de uma abordagem multiprofissional com médico, psicólogo
e professores é de grande valia para conduzir o tratamento de crianças e
adolescentes com TDAH, visto que além do tratamento medicamentoso
esses pacientes precisarão de auxílio psicoterápico e acompanhamento
individual em sala de aula.

5. FARMACOTERAPIA
O tratamento medicamentoso costuma ser a primeira conduta diante de
um caso de TDAH, sendo o metilfenidato (MPH) a prescrição
medicamentosa mais comum e a droga de primeira escolha no
tratamento.
O MPH é prescrito frequentemente para uso a longo prazo, sendo
relatado na literatura pessoas que chegam a passar até 8 anos em uso
contínuo do medicamento; porém, muitos pesquisadores se preocupam
com os efeitos adversos desse uso prolongado.
O metilfenidato é uma droga psicotrópica, e, como tal, possui
potencial suficiente para induzir ou exacerbar sintomas
neuropsiquiátricos. Contudo, saber ao certo se o MPH apresenta efeitos
neuropsiquiátricos adversos durante ou após longa exposição é um
questionamento ainda difícil de ser respondido, pois muitos efeitos da
própria doença podem mimetizar tais adversidades. Um aumento da
gravidade do TDAH, por exemplo, pode tanto estar associado com a
terapia de longo prazo quanto a um alto nível de comorbidades ainda
não identificadas ou tratadas.
No que rege a segurança do uso do MPH, muitos estudos apontam
que os riscos são significativamente menores quando comparados com
os benefícios da droga, visto que crianças e adolescentes com TDAH
que não fazem uso do medicamento estão mais sujeitas a
comportamento suicida, a sintomas depressivos e a ocorrência de
acidentes.
O uso do MPH auxilia na redução de sintomas comórbidos, reduz a
incidência de comportamentos suicidas e também diminui os sintomas
de ansiedade e irritabilidade. Entretanto, também há comprovações de
quadros de tiques e transtornos psicóticos no uso a longo prazo desse
medicamento, devendo o profissional ter o devido cuidado e
acompanhamento, principalmente em grupos como crianças pré-
escolares, pacientes com quadros de tiques (como os portadores da
Síndrome de Tourette) e pessoas que fazem uso de substâncias.
A dosagem do MPH varia de 10 mg a 54 mg, em apresentações
simples, de liberação prolongada e de liberação modificada. O ajuste da
dose e o tipo de apresentação vai depender de cada caso. O tratamento
personalizado deve nortear o manejo do paciente com TDAH, sendo
necessário que o profissional acompanhe de perto os seus pacientes,
visto que os efeitos benéficos da dose inicial da medicação podem não
ser os mesmos dentro de algum tempo. Ajustes de dosagem e mudanças
de apresentação do medicamento devem ser estudados, avaliados e, se
necessários, feitos visando melhorar a evolução clínica dos pacientes. O
metilfenidato não deve ser usado em crianças menores de 6 anos.
Outros psicoestimulantes como a lisdexanfetamina e outros
derivados de anfetaminas e medicações não estimulantes como a
atomoxetina são considerados fármacos de segunda linha, e o seu uso,
apresentação e dosagens devem ser avaliados individualmente, tal qual
é feito com o MPH. Ressalta-se que indivíduos com TDAH e histórico
de abuso de substâncias possuem mais benefícios com o uso de
substâncias não estimulantes. Alguns antidepressivos como a
imipramina, a nortriptilina e a bupropiona, são considerados
escolhas de terceira linha. O anti-hipertensivo clonidina também tem o
seu uso off-label indicado para tratar o TDAH, sendo considerado um
fármaco de quarta linha. O quadro 3 resume quais medicações podem
ser usadas para o tratamento do TDAH.
Quadro 3 - Medicações usadas no tratamento do TDAH

Escolha Primeira Linha Segunda Linha Terceira Linha Quarta Linha

Imipramina
Lisdexanfetamina (2,5 a 5 mg por kg)
(30 mg a 70 mg)
Medicação Metilfenidato Nortriptilina Clonidina
(Dosagem) (5 mg a 54 mg) (1 a 2,5 mg por kg) (0,05 mg)
Atomoxetina
(10 mg a 60 mg) Bupropiona
(150 mg)

Fonte: síntese elaborado pelos autores.

Como o TDAH em adultos foi reconhecido recentemente, dados


específicos sobre o tratamento medicamentoso desses pacientes ainda
não são tão desenvolvidos quanto os tratamentos vigentes para crianças
e adolescentes. O tratamento farmacológico se apresenta eficaz, pelo
menos em curto prazo, para reduzir os sintomas do TDAH em adultos,
sendo o metilfenidato, ainda, a escolha de primeira linha. Derivados de
anfentamina como a lisdexanfetamina também apresentam resultados
favoráveis, assim como a atomexetina, que apresenta menores efeitos
comparada com as anfetaminas, mas não apresenta efeito reduzido
quando comparada com o MPH. O efeito do metilfenidato parece ser
reduzido em adultos quando comparados com crianças, enquanto as
anfetaminas não demonstram diferenças. Adultos também possuem
mais chance de descontinuação do tratamento a longo prazo em
comparação com crianças e adolescentes.
Possíveis efeitos adversos dos psicoestimulantes incluem
taquicardia, aumento da pressão arterial, redução do apetite e insônia.
Outro efeito relatado é a redução da altura esperada em crianças e
adolescentes que fazem uso prolongado do MPH. O uso da atomoxetina
em adultos pode apresentar adversidades como redução da libido,
disúria, hesitação urinária, disfunção erétil e problemas na ejaculação.
Algo pouco comentado na literatura habitual, mas que deve ser
levado em consideração, é o uso abusivo e indevido do metilfenidato e
de outras drogas psicoestimulantes, como as anfetaminas. Não é
incomum encontrar crianças, adolescentes e adultos que fazem uso
desses medicamentos sem necessidade patológica, apenas com o intuito
de “potencializar o cérebro”.
Estudos apontam que cerca de 29% dos estudantes universitários
diagnosticados com TDAH e que fazem uso de MPH relataram dar ou
vender o seu medicamento para terceiros. Também foi visto que até
50% dos universitários que referiam sintomas de TDAH pareciam ter
exagerado ao relatá-los. Em outro estudo, cerca de 20% dos adultos
entrevistados relataram deturpar os seus sintomas para conseguir
receituário médico.
Como o diagnóstico do TDAH é praticamente clínico, não é
incomum que pessoas que não possuem o transtorno se autoafirmem
com o mesmo perante o profissional e “preencham” os critérios
diagnósticos com o seu relato. Por isso é muito importante que o
médico avalie a fundo a história do seu paciente e, sempre que possível,
confirme o relato com familiares e pessoas próximas.
Medicações psicoestimulantes como o metilfenidato possuem maior
risco de abuso devido à sua atuação inibitória na recaptação de
dopamina em diversas regiões cerebrais. Efeitos de intoxicação e
potenciais riscos à saúde ligados ao uso abusivo do MPH incluem
aumento da energia, agitação, irritabilidade, taquicardia, redução ou
aumento da pressão arterial, problemas digestivos, perda do apetite,
perda de peso, nervosismo, insônia e, em casos graves, convulsões e
ataques cardíacos.
A escolha de um tratamento farmacológico ajustado às necessidades
dos pacientes melhora os resultados da intervenção terapêutica e evita
maiores consequências na vida adulta quando prescritos durante as
fases de desenvolvimento. Se possível, o tratamento farmacológico
deve ser unido a outras modalidades não medicamentosas, e essas
também devem ser adequadas para cada caso.
5.1. Tratamento não farmacológico
Tratamentos não farmacológicos possuem grande valia para auxiliar no
tratamento de condições comórbidas, como TOD, quadros de
agressividade e distúrbios emocionais.
Abordagens comportamentais, psicológicas e educacionais são
reconhecidas como essenciais no tratamento do TDAH tanto na
infância quanto na vida adulta. Entretanto, as evidências de melhora em
crianças são maiores quando comparadas com os pacientes adultos,
visto que são úteis no tratamento de sintomas de oposição, distúrbios
familiares e comprometimento da memória de trabalho. Apesar disso,
estudos recentes apontam benefícios na melhora dos sintomas de
TDAH adulto com o uso do mindfullness e da terapia cognitivo-
comportamental.
A educação parental também demonstra extrema importância na
condução do TDAH, visto que a convivência familiar pode tanto
auxiliar como retardar o processo de tratamento. Estudos sugerem que a
psicoeducação sobre o transtorno para os pais de portadores auxiliam
na melhora dos resultados, incluindo uma melhor adesão aos
tratamentos farmacológicos. Além de ajudar os pais a lidarem com os
seus sentimentos perante os sintomas apresentados pelos seus filhos. O
apoio escolar também é importante, devendo os professores se
adequarem às condições dos seus alunos e trabalharem com esses de
forma mais individualizada.

6. REDESCOBRINDO O CASO
(PONTOS-CHAVE)
1 Masculino

2 Idade menor que 12 anos

3 Interferência Escolar

4 Comportamento Hipertativo

5 Quadro de Desatenção

6 Manifesta sintomas em mais de 2 lugares

7 Ausência de outros transtornos

João Pedro preenche os critérios diagnósticos para TDAH. Exames


de neuroimagem e EEG podem ser úteis para excluir outras causas para
os sintomas. Dado o histórico familiar de arritmia cardíaca e
hipertensão, faz-se essencial uma avaliação cardiológica. A mãe deve
ser tranquilizada quanto ao quadro do filho e orientada sobre o
tratamento farmacológico e não farmacológico. É importante que a
instituição de ensino esteja ciente sobre o quadro da criança e busque
dar o devido suporte a ele em sala de aula. O clínico deve acompanhar
de perto a evolução do quadro e os possíveis ajustes na medicação.
Exemplo de uma prescrição para João Pedro
Como terapia de primeira linha:
Metilfenidato 10 mg – Meio comprimido 1 hora antes da escola ou
pela manhã.

Reavaliação com 7 dias, para reajuste para 10 mg/dia em dose única


ou dividido em duas tomadas diárias. Aumentos posteriores deverão ser
feitos com cautela e retornos breves semanais. Aumentos podem ser
feitos entre 5-10 mg/semana com dose máxima de 60 mg/dia. Uso a
partir dos 6 anos de idade.
A prescrição da apresentação de longa ação pode ser usada após
uma boa resposta ao tratamento inicial e sem efeitos colaterais
significativos, pois possibilita períodos maiores de estabilidade com
uma tomada diária.

Como terapia de segunda linha:


Lisdexanfetamina 30 mg – 1 cápsula pela manhã.

Reavaliação semanal até estabilização, podendo-se avaliar aumentos


semanais de 10-20 mg. Aumentos de dose seguem o raciocínio sobre
adaptação a efeitos colaterais. Dose máxima de 70 mg/dia.

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with ADHD: a meta-review. Evid Based Ment Health. 2017;
20(1): 4-11.

SIGLAS

• AVD Atividades de Vida Diária


• DAT Gene Transportador de Dopamina
• DRD4 Receptor de Dopamina D4
• DSM-5 Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos
Mentais

• EEG Eletroencefalograma
• MPH Metilfenidato
• PSF Programa Saúde da Família
• TAB Transtorno Afetivo Bipolar
• TDAH Transtorno de Atenção/Hiperatividade
• TDDH Transtorno Disruptivo da Desregulação do Humor
• TEA Transtorno do Espectro Autista
• TEI Transtorno Explosivo Intermitente
• TOD Transtorno Opositivo Desafiador
Síndromes Obsessivo-Compulsivas
Dois capítulos compõem essa seção: transtorno obsessivo-
compulsivo e os transtornos relacionados ao transtorno
obsessivo-compulsivo. Esse último inclui transtorno dismórfico
corporal, tricotilomania, transtorno de escoriação e transtorno
de acumulação.
Características clínicas, epidemiológicas e comorbidades entre
elas fazem com que essas condições psiquiátricas se aglomerem
nessa seção. Apesar de encontrarmos sintomas ansiosos com certa
frequência nesses transtornos, optamos por seguir o DSM-5 na
orientação de separá-las em uma seção específica.
Traços obsessivos e compulsivos são encontrados em maior ou
menor intensidade nos diversos transtornos dessa seção. Os aspectos
da obsessão e compulsão estão esquematizados na figura 1.

Figura 1 – Diferenças entre obsessões e compulsões


Fonte: elaborada pelo autor.
1. CASO CLÍNICO
Evandro, 22 anos, solteiro, acadêmico de biblioteconomia, vem para
consulta acompanhado de sua genitora. Relata que há 4 anos começou a
apresentar comportamentos repetitivos de arrumação, deixando objetos
perfeitamente enfileirados e organizados, como livros, embalagens de
alimentos e DVDs, de acordo com uma lógica métrica. Segundo o
paciente: “os objetos maiores enfileiro sempre atrás dos menores”. Esse
hábito, que antes consumia pouco tempo e era restrito apenas a seu
quarto, passou a durar várias horas e se estendeu por toda a casa,
causando conflitos familiares, pois o paciente reage com extrema
angústia e irritação quando vê algum item do domicílio “fora do lugar”.
Os outros moradores da casa tentam não deixar nada desorganizado,
para não incomodar o paciente, mas observam cada vez mais a piora do
comportamento. Evandro relata de forma tímida que também tem
pensamentos fantasiosos e desagradáveis de que se deixar algo fora do
lugar, alguém da família vai morrer, sendo o ritual de arrumação uma
forma de afastar essas “ideias ruins”.

Exame mental: humor ansioso, pensamento sem conteúdo


delirante, insight presente.

2. DISCUTINDO O DIAGNÓSTICO
O TOC (transtorno obsessivo-compulsivo) é um distúrbio caracterizado
por apresentar obsessões e compulsões. Não é um problema de saúde
recente, ainda no século XIX Freud descreveu o quadro de “neurose
obsessiva” com sintomas que se assemelham a afecção conhecida como
TOC atualmente.
Segundo o Manual Diagnóstico e Estatístico de transtornos mentais,
quinta edição (DSM-5), não há obrigatoriedade da presença de
obsessões e compulsões para ser feito o diagnóstico. Numa minoria de
casos, pode haver apenas um deles – obsessões ou compulsões. Uma
pausa para voltarmos um pouco aos conceitos básicos: o que são
obsessões e compulsões?
Obsessões são pensamentos perturbadores, que vêm contra a
vontade do paciente e causam sofrimento, muitas vezes gerando
ansiedade. O conteúdo desses pensamentos podem ser diversos, mas
com frequência envolvem temas tabus como sexo ou religião, atos de
agressividade indesejados, medos de doenças e eventos trágicos com
familiares. Muitas vezes o paciente é capaz de identificar esses
pensamentos como excessivos, irracionais e tentam ignorá-los ou
neutralizá-los com outros pensamentos. São, portanto, egodistônicos
(são contra os valores e os desejos do paciente), invasivos (surgem
mesmo sem gatilhos) e recorrentes (por mais que haja uma resistência
para não pensar, ainda assim esses pensamentos aparecem).
Compulsões são definidas como comportamentos repetitivos ou
atos mentais que o indivíduo se sente obrigado a executar, como rituais,
que geralmente representam um alívio em relação à obsessão,
reduzindo a angústia ou até mesmo com a finalidade de evitar um
acontecimento que o indivíduo teme. Todavia, não são prazerosas,
assim como a obsessão, também causam sofrimento ao paciente.
Exemplos típicos de compulsões são: lavagens repetitivas de mãos,
realização de atividades rotineiras inúmeras vezes (por exemplo, sair e
entrar de um cômodo). Identificar esses atos nem sempre é uma tarefa
fácil, algumas compulsões são praticadas mentalmente como orações,
repetir palavras sussurrando ou fazer contas mentais, representando,
desse modo, um desafio para o diagnóstico, tendo em vista que muitos
pacientes relutam em compartilhar esses comportamentos por vergonha.

Figura 1 - Diferenças entre obsessões e compulsões


Fonte: elaborado pelos autores.

Para ficar ainda mais claro: um paciente sai de casa e é acometido


pela dúvida de que pode não ter trancado a porta. Mesmo sabendo que
essa desconfiança é injustificável – no fundo, ele sabe que trancou a
porta (egodistonia), essa dúvida assume protagonismo no seu
pensamento (invasivo) e martela em sua cabeça (recorrente), até que ele
é impelido a voltar e checar se a porta realmente está trancada
(compulsão). Todos passamos por situações semelhantes. Todos
podemos ter pensamentos obsessivos. Continue lendo para saber o que
diferencia pensamentos obsessivos “normais” do transtorno obsessivo-
compulsivo.
Durante o transtorno, os conteúdos das obsessões e das compulsões
podem variar, podendo ter mais de um conteúdo no mesmo período, ou
seja, o paciente pode ter obsessão com conteúdo de contaminação e
simetria ao mesmo tempo, podendo evoluir com rituais de checagem,
por exemplo.
Além da presença das obsessões, compulsões ou ambas, para ser
feito o diagnóstico de transtorno obsessivo-compulsivo, segundo o
DSM-5, é necessário que esses sintomas afetem a qualidade de vida do
indivíduo, consumam o seu tempo (estar presente por mais de uma hora
do dia) e causem um sofrimento clinicamente evidente, com prejuízos
no âmbito familiar, profissional ou em outra área da sua vida.
Para fins diagnósticos, é importante que as perturbações não sejam
justificadas por efeitos fisiológicos de substâncias, como drogas ou
medicamentos ou mesmo por outra condição médica.
Apesar dos critérios diagnósticos bem estabelecidos, identificar o
transtorno obsessivo-compulsivo ainda é um desafio para muitos
médicos, não só devido à grande quantidade de diagnósticos
diferenciais, como também por muitos pacientes relutarem em pedir
ajuda. Com isso, não é raro que o diagnóstico do paciente com TOC
seja tardio. Alguns estudos afirmam que o tempo médio entre os
sintomas do TOC e o início do tratamento farmacológico é
aproximadamente 8 anos, o que aumenta a prevalência da doença.
Apenas 5% a 10% dos pacientes portadores de TOC apresentam uma
remissão espontânea dos sintomas obsessivos-compulsivos, uma parte
importante dos pacientes tem sintomas crônicos e disfuncionais,
principalmente quando o transtorno se inicia precocemente.

3. ASPECTOS SOBRE A
EPIDEMIOLOGIA E ETIOLOGIA
O TOC foi considerado a décima causa de incapacidade na população
mundial, com aumento da mortalidade e com diminuição da qualidade
de vida tanto dos pacientes como de seus familiares. Segundo estudos
realizados nos Estados Unidos (dados disponíveis do Brasil são
insuficientes), a prevalência do TOC ao longo da vida é de 1% a 3%. A
faixa etária mais comum do surgimento dos sintomas é dos 20 aos 29
anos, com picos no final da infância e no início da idade adulta,
enquanto o início dos sintomas em idades acima dos 40 anos não é
comum. Há poucas diferenças entre os gêneros, mas nos homens o
TOC costuma surgir mais precocemente, podendo acontecer inclusive
na infância.
Uma das primeiras hipóteses etiológicas relaciona-se com as vias
serotonérgicas. Tal teoria surgiu após a observação de que pacientes
tratados com clomipramina – um antidepressivo tricíclico potente
inibidor de recaptação de serotonina – tinham bons resultados
terapêuticos em relação aos outros antidepressivos tricíclicos. Após a
realização de ensaios clínicos, foi demonstrado resultados bem
estabelecidos da eficácia dos Inibidores Seletivos de Recaptação de
Serotonina (ISRS) no tratamento do TOC, corroborou para o
entendimento que a redução da atividade serotonérgica está relacionada
com a etiologia do distúrbio. Em contrapartida, após avanços de
estudos genômicos, de imagens, de estudos bioquímico do líquido
cefalorraquidiano foi proposta a hipótese que as vias glutamatérgicas
também estão relacionadas na etiologia do TOC.
Estudos envolvendo gêmeos levaram à hipótese de que fatores
genéticos contribuíam para o surgimento do TOC, principalmente
quando este ocorre de início mais precoce. Além disso, com avanços
dos estudos do genoma foi possível estabelecer associações entre a
etiologia e alguns genes que codificam proteínas da via neural
corticoestriatal. Por estudos de imagens cerebrais, como tomografia por
emissão de pósitrons e ressonância magnética funcional, evidenciou-se
que portadores de TOC apresentam um aumento da atividade nas
regiões do córtex orbitofrontal, do córtex cingulado anterior e dos
gânglios da base quando os sintomas estão em atividade; e há
diminuição dessa atividade após o tratamento e o controle da doença,
mostrando então algum envolvimento entre o TOC e as alterações da
via córtico-estriado-tálamo-cortical.

4. DIAGNÓSTICOS DIFERENCIAIS
Alguns sintomas do transtorno obsessivo-compulsivo estão presentes
em outras doenças, gerando um fator de confusão no momento do
diagnóstico. Por sua vez, cada doença tem suas características e
especificidades, como pontos-chaves que devemos identificar para nos
guiar no momento do diagnóstico.
Quadro 1 - Diagnósticos diferenciais de TOC
Transtornos de ansiedade

Transtornos psicóticos

Transtorno depressivo maior

Outros transtornos relacionados ao TOC

Tiques e movimentos estereotipados

Fonte: síntese elaborada pelos autores.

Nesse contexto, não é raro que nos transtornos de ansiedade


também exista pensamentos recorrentes e comportamentos de esquiva
(vale lembrar que o TOC já esteve inserido no capítulo de transtornos
ansiosos na edição anterior do DSM). Essa realidade não altera o fato
de que sintomas ansiosos estão presentes na doença, porém, diferente
dos transtornos ansiosos, no TOC os pensamentos recorrentes não se
restringem a preocupações da vida real, podem incluir conteúdos
bizarros e irracionais. Outra característica que auxilia na diferença
diagnóstica é a presença de rituais e compulsões, que muitas vezes
estão presentes no TOC e podem se relacionar com os pensamentos
obsessivos.
Os transtornos psicóticos também são considerados importantes
diagnósticos diferenciais do TOC e a distinção entre ambos nem sempre
é uma tarefa simples. Pois, como foi citado anteriormente, os conteúdos
das obsessões muitas vezes estão relacionados com medos irreais, o que
pode ser confundido com alucinações ou até mesmo delírios, comuns
em condições psicóticas. Ademais, a sobreposição de transtornos
psicóticos e TOC pode acontecer. Todavia, o indivíduo com TOC
geralmente consegue reconhecer seus próprios pensamentos como
falsos e, diferente dos sintomas do paciente psicótico, as obsessões não
são ideias com convicções fixas e não há alteração na sensopercepção
compatíveis com alucinações. Há casos, principalmente quando surgem
mais precoces, em que o paciente, mesmo identificando como sendo
seus próprios pensamentos, relatam que há vozes na sua cabeça. Para
tentar facilitar o diagnóstico, é importante diferenciar pensamento
obsessivo de alucinações auditivas, questionando as características
dessa voz realizando perguntas como: “esta voz está dentro ou fora da
sua cabeça?”.
O transtorno depressivo maior é uma doença com alta
prevalência, e, assim como o TOC, causa prejuízos em diversas áreas
da vida do paciente. Tornando-se fundamental diferenciá-las para uma
correta condução do caso. Em ambos os transtornos pode haver
pensamentos persistentes. No transtorno depressivo maior esses estão
de acordo com o humor e não são intrusivos como no TOC, bem como
a compulsão é uma característica que estará presente no TOC e não na
depressão.
Outros transtornos obsessivo-compulsivos e transtornos
relacionados englobam o transtorno dismórfico corporal, transtorno de
acumulação, tricotilomania e transtorno de escoriação (skin-picking);
esses também podem conter pensamentos excessivos e comportamentos
repetidos incontroláveis que tomam tempo e prejudicam a qualidade de
vida do indivíduo. No entanto, nesses casos o paciente tem obsessões e
compulsões limitadas ao seu transtorno. No transtorno dismórfico
corporal a preocupação relaciona-se apenas com a aparência e não em
evitar danos, típicas do TOC. Num paciente com tricotilomania, para
um correto diagnóstico, devemos questionar o motivo pelo qual ele
arranca seu cabelo. Se no caso esse sintoma se limita a arrancar os fios
de cabelo, sem obsessões, trata-se de tricotilomania, mas se a intenção
do ato é para se esquivar de um dano, como evitar que um familiar
adoeça, devemos pensar no diagnóstico de TOC.
Tiques e movimentos estereotipados. O tique se caracteriza por
um movimento motor ou vocalização súbita, que acontecem de forma
rápida, recorrente e não rítmica, como piscar os olhos ou pigarrear. Já
os movimentos estereotipados são comportamentos motores repetitivos,
aparentemente impulsivos e não funcionais, como morder-se ou bater a
cabeça. Tanto os tiques como os movimentos estereotipados são atos
menos complexos do que as compulsões e não têm o objetivo de
neutralizar um pensamento obsessivo. Mesmo assim o paciente pode ter
TOC e tiques comórbidos.

4.1. E aí? O que fazer?


O diagnóstico correto e precoce pode promover melhor prognóstico,
com menor impacto sobre a qualidade de vida do indivíduo, diminuindo
também a cronicidade dos sintomas.
O clínico, quando houver suspeita, deve inquerir ativamente sobre a
presença de sintomas do TOC de uma forma empática e sem
julgamentos, pois o conteúdo das obsessões tende a ser aversivo para o
paciente. Orientar o paciente e os familiares sobre os sintomas e a
evolução é de suma importância, pois pode impedir comportamentos
inadequados por parte das pessoas que convivem com o sujeito
portador de TOC, como, por exemplo, tentar se adaptar aos rituais do
paciente ou entrar em constantes atritos devido ao comportamento
compulsivo desse.
Além do diagnóstico de TOC, é importante investigar comorbidades
psiquiátricas que geralmente estão presentes em até metade dos
pacientes, sendo os transtornos ansiosos e a depressão maior os mais
comuns. A abordagem terapêutica desses outros transtornos melhora a
eficácia do tratamento.
Bom lembrar que os sintomas obsessivos-compulsivos podem ser
bastante refratários a intervenções tanto medicamentosas quanto
psicoterapêuticas, com 40%-60% dos pacientes ainda apresentando
sintomas residuais incapacitantes, mesmo com tratamento adequado.
Devido a esse cenário, a atenção especializada é o local mais
adequado para seguimento terapêutico da maioria dos pacientes, pois
oferece acompanhamento multidisciplinar, com associação de
psicoterapia, sendo o tratamento combinado (psicoterapia +
farmacoterapia) o mais eficaz. O paciente com TOC vai se beneficiar
com o início precoce da medicação, psicoeducação, investigação de
comorbidades e o devido encaminhamento.
5. FARMACOTERAPIA
A intervenção farmacológica é um importante pilar do tratamento do
TOC, capaz de mudar a história natural da doença, reduzindo seu
impacto na funcionalidade do paciente. Como foi citado, as vias de
neurotransmissores serotoninérgicas estão relacionadas com a etiologia
desse transtorno; nesse contexto, os Inibidores Seletivos da
Recaptação de Serotonina (ISRS) são considerados os fármacos de
primeira linha no tratamento do TOC, pois apresentam comprovada
eficácia e boa tolerabilidade, além de bons resultados em longo prazo.
Essas drogas atuam inibindo potentemente e seletivamente a receptação
da serotonina, permitindo que esse neurotransmissor permaneça por
mais tempo na fenda sináptica.
Apesar das diferenças entre as diversas drogas dessa classe
medicamentosa, os ensaios clínicos não evidenciaram diferenças
significativas em relação a eficácia entre os ISRS, por isso, apesar das
suas especificidades, todos esses fármacos podem ser usados no
tratamento do TOC. A tabela 2 ilustra os fármacos de primeira linha e
suas respectivas doses iniciais e a faixa terapêutica.

Tabela 2 - Fármacos de primeira linha para o tratamento de TOC.


Dose inicial Faixa terapêutica, Dose máxima
Fármaco
mg/dia mg/dia recomendada mg/dia

Fluoxetina 20 40 – 60 80

Fluvoxamina 50 100 – 300 300

Sertralina 50 50 – 200 200

Paroxetina 20 20 – 60 60

Citalopram 20 40 – 60* 80*

Escitalopram 10 20 – 40 40

*Doses acima de 40mg do citalopram foram associadas a aumento do


intervalo QT e seu uso pode trazer mais riscos do que benefícios.
Fonte: síntese elaborada pelos próprios autores.

O tratamento com paroxetina nas doses entre 20mg a 60mg


apresenta melhora dos sintomas, principalmente os relacionados a
fobias. A administração da fluvoxamina, quando usados em doses de
100 a 300mg ao dia, após 6 a 8 semanas, apresenta benefícios
significativos em relação aos sintomas fóbicos e à associação com
sintomas ansiosos. Já o citalopram tem evidências que além de reduzir
os sintomas obsessivos e comportamentos compulsivos, com doses
diárias de 60mg apresentam vantagens em paciente com TOC
refratário, mas a FDA (Food and Drug Administration) não recomenda
doses diárias acima de 40mg devido aos riscos cardiovasculares.
O escitalopram é o fármaco mais seletivo dos ISRS, apresentando
boa tolerabilidade e vantagens farmacocinéticas, com administração de
20mg diárias demonstrando vantagens em comparação ao placebo, em
12 semanas. A fluoxetina, nas doses de 40mg a 60mg ao dia apresenta
melhora dos sintomas associados a pensamentos obsessivos,
comportamento compulsivo por lavagem e melhora na qualidade de
vida, além de ser útil quando usada para prevenção de recorrência dos
sintomas. A sertralina com dose terapêutica de 50mg a 200mg ao dia
apresenta tolerabilidade e eficácia no TOC com predomínio dos
sintomas fóbicos, ansiosos e comportamento de esquiva.
É importante ressaltar que estudos com pacientes portadores de
TOC demonstraram que a resposta farmacológica dos ISRS está
relacionada com a dose administrada, sendo as doses mais altas mais
eficazes quando comparadas com doses mais baixas. A resposta
terapêutica dos ISRS pode ocorrer já na segunda semana do seu uso,
mas esse tempo pode variar de acordo com o fármaco e com as
características de cada paciente. Pacientes que apresentam outro
transtorno mental associado ao TOC podem ter uma resposta
terapêutica mais tardia. O benefício terapêutico dos ISRS pode demorar
até 12 semanas após o início do tratamento.
Outro medicamento que tem sua eficácia bem estabelecida para o
TOC é a clomipramina, um antidepressivo tricíclico que se diferencia
dos outros fármacos dessa classe por inibir de forma potente o
transportador de recaptação da serotonina, semelhante aos ISRS. Esse
medicamento foi a primeira droga que evidenciou benefícios
farmacológicos no tratamento de TOC, em doses de até 250mg/dia.
Porém, em comparação aos ISRS, a clomipramina tem maiores efeitos
adversos, incluindo arritmias e convulsões, quando usada em doses
mais elevadas. Seu uso isolado ou associado com um fármaco ISRS
demonstrou mais vantagens em casos de TOC refratário.
Os inibidores de recaptação de serotonina e noradrenalina
(IRSN) mostraram eficácia satisfatória e com melhor tolerabilidade
comparado a clomipramina. A venlafaxina pode ser usada com dose
média diária entre 150mg e 375mg. Essa classe não mostra
superioridade em pacientes refratários.
Em alguns casos, como citado anteriormente, os sintomas
obsessivos-compulsivos podem se associar com sintomas psicóticos.
Nesses casos e em pacientes com baixo insight, a associação do ISRS
com antipsicóticos (como o haloperidol, a quetiapina, a olanzapina e a
risperidona) pode ser tentada quando o tratamento isolado de primeira
linha não for suficiente.
Como o TOC pode ser refratário e crônico em uma parte importante
dos pacientes, estratégias de potencialização podem ser feitas. A tabela
3 ilustra as táticas farmacológicas de potencializar o tratamento para
TOC com maior evidência.

Tabela 3 - Estratégias de potencialização farmacológica para o TOC.


ISRS + Clomipramina

ISRS + antipsicótico atípico: olanzapina, risperidona, quetiapina, aripiprazol

Clomipramina + antipsicótico atípico: olanzapina, risperidona, quetiapina,


aripiprazol

Fonte: síntese elaborada pelos autores.


6. TRATAMENTO NÃO
FARMACOLÓGICO
A associação de psicoterapia e farmacoterapia, vem se mostrando como
padrão-ouro no tratamento dos pacientes com TOC, tanto em adultos
como no público infantojuvenil.
As técnicas psicoterapêuticas mais estudadas e com mais evidência
são as terapias comportamentais, cognitivas e de exposição e
prevenção de resposta. A abordagem da terapia de exposição e
prevenção de resposta consiste primeiramente em expor o paciente a
estímulos ou situações que provocam o medo ou pensamentos
obsessivos, por exemplo, mostrar ao paciente uma prateleira de livros
desarrumada, e então solicita-se ao paciente que ele se abstenha de
realizar a compulsão (arrumar todos os livros), prevenindo a resposta
ritualística. A prevenção de resposta ajudará o paciente a aprender que a
ansiedade se dissipará por conta própria, sem a necessidade da
compulsão, e, com o tempo, também identificará que as obsessões não
são perigosas e não terão desfecho catastrófico.
Outras medidas não farmacológicas mais drásticas, como
procedimentos neurocirúrgicos, podem ser necessárias em pacientes
graves e refratários há pelo menos 5 anos, que não responderam a pelo
menos 3 ensaios terapêuticos com medicações distintas com estratégia
de potencialização e ao menos 20 horas de terapia comportamental.

6.1. Redescobrindo o caso (Pontos-Chave)


1 Idade da incidência

2 Idade de início do sintoma

3 Compulsões

4 Tempo gasto com sintomas

5 Sofrimento com obsessões

6 Obsessões

Evandro apresenta transtorno obsessivo-compulsivo. Os


pensamentos fantasiosos e desagradáveis de que se não organizar os
objetos da casa alguém da família vai morrer configuram as obsessões.
Já as compulsões são os comportamentos ou rituais de arrumação que
vêm gerando perda de horas do seu dia a dia e problemas de
relacionamento familiar.
O clínico que atende deve orientar tanto o paciente quanto os
familiares sobre as características do transtorno, podendo já diminuir o
grau de animosidade entre o indivíduo que tem TOC e as pessoas com
quem convive, além de mostrar a importância do início e seguimento
terapêutico precoce, evitando piora do quadro. É interessante também
investigar comorbidades psiquiátricas como outros transtornos ansiosos
ou depressivos e até comportamento suicida.

Exemplo de prescrição para Evandro


Escitalopram 10mg, iniciar com metade do comprimido 1 vez ao
dia por 5 dias, aumentando a dose em 2 semanas para 10mg ao
dia. Após mais duas semanas, aumentar a dose para 20mg por dia.
+
Encaminhamento para psicoterapia.

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directions. Indian J Psychiatry. 2019; 61(Suppl 1): S85-S92.
doi:10.4103/psychiatry.IndianJPsychiatry-516-18.
32. Skapinakis P, Caldwell DM, Hollingworth W, Bryden P,
Finenberg NA, Salkovskis P, et al. A systematic review of the
clinical effectiveness and cost-effectiveness of pharmacological
and psychological interventions for the management of
obsessive–compulsive disorder in children/adolescents and
adults. Southampton (UK): NIHR Journals Library; 2016 Jun.
(Health Technology Assessment, n. 20.43.).

SIGLAS

• FDA Food and Drug Administration


• IRSN Inibidores de Recaptação de Serotonina e
Noradrenalina

• ISRS Inibidores Seletivos da Recaptação de Serotonina


• TOC Transtorno Obsessivo-Compulsivo
Este capítulo reúne condições que, segundo o DSM-5, tem
características clínico-epidemiológicas que confluem com o transtorno
obsessivo-compulsivo. São, a notar, o Transtorno Dismórfico Corporal
(TDC), a tricotilomania (transtorno de arrancar os cabelos), transtorno
de escoriação (skin picking) e transtorno de acumulação.

1. TRANSTORNO DISMÓRFICO
CORPORAL, TRICOTILOMANIA E
SKIN PICKING
1.1. CASO CLÍNICO 1
Cândida, 20 anos, solteira, acadêmica de nutrição. Comparece ao
consultório acompanhada da genitora. Sua mãe fala que Cândida, desde
os 14 anos de idade, queixa-se do formato de seu nariz, pois “ela acha
que ele é achatado demais”; associado a essa percepção, vem notando a
filha passar muito tempo se olhando no espelho, utilizando maquiagem
mais pesada para disfarçar a imperfeição percebida. Mesmo com várias
pessoas (inclusive outros médicos), não evidenciarem tal “defeito”; nos
últimos 6 meses a paciente vem com choro fácil, isolamento social e
abandono da faculdade, pois se acha “um monstro”. A paciente diz
também que durante a adolescência começou a apresentar
comportamento de arrancar os cabelos e cutucar a pele (principalmente
cicatrizes de acne), refere que geralmente tem esse comportamento
quando é tomada por sensações angustiantes ou quando está entediada.
Esses atos vêm causando prejuízos à sua aparência, o que reforça ainda
mais sua esquiva em sair e socializar-se.

Exame mental: inicialmente a paciente mostra-se desconfortável


com a consulta. Vem com camisas de mangas compridas, ansiosa,
pouco cooperativa, discurso organizado sem conteúdo delirante
aparente e juízo crítico da realidade preservado. Ao exame físico
não apresenta evidências de deformações no nariz, tem áreas de
rarefação capilar em couro cabeludo na região parietal esquerda e
áreas cicatriciais em face e membros superiores.

1.2. Discutindo o diagnóstico


O transtorno dismórfico corporal (TDC), a tricotilomania, o skin
picking e o transtorno de acumulação foram alocados pelo manual
diagnóstico e estatístico dos transtornos mentais em sua 5ª edição
(DSM-5), dentro do capítulo de transtornos relacionados ao transtorno
obsessivo-compulsivo (TOC), devido, principalmente, a evidências
crescentes em relação a validadores diagnósticos, utilidade clínica e
muita sobreposição entre elas no mesmo paciente, ou seja, um único
indivíduo pode ter ao mesmo tempo sintomas de todas essas patologias.
Mesmo assim, as características diagnósticas e tratamentos de cada
transtorno acima possuem diferenças. Para facilitar o entendimento
apresentaremos a seguir quadros com as principais características
clínicas do TDC, da tricotilomania e do skin picking, pois são mais
frequentemente comórbidas entre si, deixando o transtorno de
acumulação em uma sessão separada, por suas maiores
particularidades.

Quadro 1 - Principais características do TDC


Validadores Diagnósticos Comorbidades Características Clínicas
Validadores Diagnósticos Comorbidades Características Clínicas

1. Preocupação com um ou mais 1. Depressão 1. Qualquer parte do corpo


defeitos ou falhas percebidas na maior. pode ser alvo dessa
aparência física que não são 2. Fobia social. sensação de inadequação,
observáveis ou que parecem leves 3. TOC. mais comumente a pele, o
para os outros. 4. Transtornos nariz, os pelos e a massa
2. Em algum momento durante o relacionados a muscular.
curso do transtorno, o indivíduo substâncias. 2. Esses indivíduos
executou comportamentos geralmente tentam disfarçar
repetitivos (p. ex., verificar-se no os defeitos percebidos com
espelho, arrumar-se excessivamente, maquiagem pesada, por
beliscar a pele), ou atos mentais (p. exemplo.
ex., comparando sua aparência com 3. Podem buscar vários
a de outros), em resposta à especialistas médicos para
preocupação com sua aparência. tentar corrigir o defeito
3. A preocupação causa sofrimento percebido.
significativo, com prejuízo em áreas 4. Curso crônico, geralmente
como acadêmica, familiar, trabalho. iniciado antes dos 18 anos.
4. Podem apresentar insight
prejudicado e às vezes até crenças
delirantes.

Fonte: adaptado de American Psychiatric Association.2

Quadro 2 - Principais características da tricotilomania


Validadores Diagnósticos Comorbidades Características Clínicas
Validadores Diagnósticos Comorbidades Características Clínicas

1. Ato recorrente de arrancar 1. Depressão 1. Qualquer área corporal que tenha


o próprio cabelo ou pelos. maior. pilificação pode ser alvo do
2. Tentativas repetidas de 2. Skin picking. paciente. Áreas mais comuns são:
reduzir ou parar essa ação. couro cabeludo, sobrancelhas e
3. O comportamento traz cílios.
sofrimento e prejuízo 2. O paciente pode descrever gatilhos
significativos em várias para tal ação, como sensações de
áreas para o paciente, seja prurido no couro cabeludo,
social, acadêmica, familiar incômodo com a espessura ou
e até estética. comprimento do fio.
4. Esse comportamento não 3. Também temos gatilhos
é mais bem explicado por emocionais como: sentir-se
doença dermatológica ou ansioso/tenso, estar com raiva ou
outro transtorno mental, tédio.
como, por exemplo: tentar 4. A tricotilomania pode vir seguida
melhorar falhas percebidas de vários rituais como, tentar retirar
na aparência, que a raiz capilar intacta, manipular o
caracteriza o transtorno pelo tanto com as mãos como de
dismórfico corporal. forma oral, chegando até a engoli-lo.
5. Relutância em buscar atendimento
especializado.
6. Curso crônico com remissões e
recidivas se não tratado.

Fonte: adaptado de American Psychiatric Association.2

Quadro 3 - Principais características do skin picking


Validadores Diagnósticos Comorbidades Características Clínicas
Validadores Diagnósticos Comorbidades Características Clínicas

1. O ato recorrente de 1. TOC. 1. Pode ocorrer em qualquer área do


beliscar ou cutucar a 2. corpo, sendo mais frequentemente
própria pele, podendo Tricotilomania. na face, no braços e nas mãos.
ocorrer em qualquer área 3. Depressão 2. Tanto a pele saudável, quanto
do corpo, provocando maior. alterações dermatológicas estão
lesões. susceptíveis a serem
2. Tentativas frustradas de beliscadas/cutucadas, ocorrendo em
controlar ou interromper acnes, cicatrizes anteriores e regiões
esse ato. irregulares da pele.
3. O ato causa sofrimento 3. O paciente geralmente utiliza as
significativo ou prejuízos unhas para perpetrar o ato, porém
em várias áreas importantes podem usar também tesouras, pinças
para o indivíduo. e alfinetes.
4. O ato não se deve a 4. O comportamento de beliscar a
efeitos de substância ou de pele pode ser precedido de alguns
outro quadro gatilhos, como sentimentos de tédio,
clínico/psiquiátrico. raiva ou ansiedade.
5. Curso crônico com remissões e
recidivas se não tratado.

Fonte: adaptado de American Psychiatric Association.2

1.3. ASPECTOS SOBRE EPIDEMIOLOGIA E


ETIOLOGIA
Temos poucos estudos epidemiológicos sobre esses transtornos. O que
possuímos de maior evidência científica é que o TDC, a tricotilomania
e o skin picking têm um início dos sintomas durante a adolescência,
principalmente após a puberdade, com curso crônico de remissões e
recidivas. A prevalência na população geral é de 1,4-2% para esses
transtornos. Em relação ao gênero acometido, há maior prevalência no
sexo feminino, com quase 75% dos pacientes acometidos sendo
mulheres.
A etiologia parece ser multifatorial, com fatores genéticos,
neurobiológicos e psicossociais envolvidos, porém mais estudos são
necessários para evidenciar melhor a magnitude de cada fator.
• Fatores genéticos: pacientes skin picking têm mais familiares
com TOC que a população em geral. Vários estudos familiares
mostraram maior taxa do transtorno em parentes de 1º grau de
pacientes com tricotilomania, além de maior histórico familiar
de transtornos ansiosos e de humor.

• Fatores neurobiológicos: indivíduos com skin picking


apresentam disfunções em neurotransmissão serotoninérgica,
além de alterações no sistema de recompensa do cérebro, fatos
que também podem ser observados em alguns estudos que
investigam as causas do TDC e tricotilomania.

• Fatores psicossociais: histórico de negligência, abuso sexual


e outras situações traumáticas na infância são mais frequentes
em pessoas com TDC quando comparadas com a população
geral. Em relação à tricotilomania e ao transtorno de
escoriação (skin picking) o que temos de mais consistente
seriam as teorias neuropsicológicas e comportamentais, em que
evidencia-se que boa parte dos pacientes relatam breve alívio
de sentimentos aversivos (tristeza, ansiedade, tédio ou raiva)
ao arrancar o cabelo ou beliscar a pele, criando assim um
reforço para tal comportamento.

1.4. Diagnóstico diferencial


Mesmo sendo frequentemente comórbidos com outros transtornos
mentais, o transtorno de escoriação, o TDC e a tricotilomania devem
ser diferenciados de outras afecções psiquiátricas, para ganharmos em
eficácia no tratamento proposto.
Os principais diagnósticos diferenciais de cada transtorno serão
colocados em quadros separados para melhor entendimento.

Quadro 4 - Diagnósticos diferenciais do TDC


Diagnóstico Características clínicas

Importante ressaltar que se a pessoa realmente tem um defeito físico


importante ou bem perceptível, não devem ser diagnosticada com TDC.
Preocupação
Temos que ter cuidado na avaliação, pois pacientes com TDC podem
normal sobre um
acabar causando autolesões no intuito de “corrigir” sua aparência (por
defeito físico real
exemplo: manipular até causar ferimento em uma pequena acne, o que
gerará uma cicatriz visível).

Em indivíduos com transtorno alimentar, as preocupações desses


pacientes em serem gordos, devem ser considerados sintomas do
Transtornos
transtorno alimentar e não um transtorno dismórfico corporal. No
alimentares
entanto, algumas pessoas com TDC podem apresentar preocupações em
relação ao peso.

Outros transtornos
No TDC, os comportamentos repetitivos e os pensamentos intrusivos são
obsessivo-
sempre relacionados à aparência, diferente do TOC, que apresenta
compulsivos e
obsessões e comportamentos ritualísticos de vários conteúdos (limpeza,
transtornos
checagem, simetria).
relacionados

Pessoas com TDC podem apresentar sintomas depressivos secundários a


insatisfação com seus supervalorizados ou imaginados “defeitos físicos”.
Transtorno
Na depressão maior as ruminações, os pensamentos negativos, a
depressivo maior
desesperança e os sentimentos de inadequação abrangem mais conteúdos
do que apenas a aparência.

Evitar ativamente situações sociais pode ser comum no TDC, com


Transtornos de características semelhantes ao que acontece na ansiedade social, porém
ansiedade no TDC existe uma preocupação proeminente em relação à aparência,
que pode ser delirante, e comportamentos evitativos.

Indivíduos com TDC podem ter crenças delirantes sobre a aparência,


casos que devem ser diagnosticados como TDC com insight
Transtornos
ausente/crenças delirantes e não como transtorno delirante.
psicóticos
Esquizofrenia ou transtorno esquizoafetivo possuem maior
desorganização no pensamento e no comportamento.

Fonte: síntese elaborada pelo autor.

Quadro 5 - Diagnósticos diferenciais da tricotilomania e skin picking


Remoção/ O diagnóstico de tricotilomania não deve ser feito se a remoção dos
manuseio normal dos cabelos for feita por uma questão estética (tipos de cortes de cabelo).
cabelos Indivíduos podem enrolar ou brincar com o cabelo utilizando a mão, ou
podem também apenas mordê-los, sendo que esses comportamentos não
são critérios diagnósticos.

O TOC é caracterizado por pensamentos obsessivos intrusivos seguidos


de compulsões que podem envolver rituais como de simetria, fazendo o
paciente acabar arrancando o cabelo pela questão simétrica.
TOC e transtornos Compulsões de limpeza, como lavar e esfregar as mãos ou o corpo, em
relacionados indivíduos com TOC podem levar a lesões cutâneas, e beliscar a pele
pode ocorrer em indivíduos com transtorno dismórfico corporal, que o
fazem devido a preocupações com a aparência; nesses casos, o
transtorno de escoriação não deve ser diagnosticado.

Arrancar o cabelo ou cutucar a pele podem ser estereotipias de


Transtornos do
transtornos do neurodesenvolvimento, como Tourette, ou Prader-Willi,
neurodesenvolvimento
sendo mais observados em crianças.

O ato de arrancar o cabelo ou se lesionar podem ocorrer por causa de


Transtornos
alucinações ou delírios. Nesses casos os transtornos de escoriação e
psicóticos
tricotilomania não são diagnosticados.

Devemos aqui descartar condições dermatológicas (p. ex., alopecia


Outras condições androgenética, alopecia areata, inflamações de pele, eflúvio telógeno,
médicas líquen plano, escabiose). O uso de cocaína pode levar a sintomas de
beliscar a pele.

Não devemos dar o diagnóstico de skin picking se o comportamento é


Outros transtornos atribuído à intenção de ferir-se, que é característica da automutilação
não suicida.

Fonte: síntese elaborada pelo autor.

1.5. E aí? O que fazer?


O primeiro passo é criar um vínculo de confiança com esses pacientes.
A grande maioria chega ao médico apresentando vergonha, embaraço,
relutância e muitas vezes com sintomas ansiosos e depressivos, além de
uma parte importante não reconhecer seus comportamentos ou
pensamentos como inadequados, ou achar que seus sintomas não têm
solução. Menos de 25% desses indivíduos procuram ajuda
especializada. Lidar jocosamente ou de maneira pouco empática, ou
buscar de forma quase policialesca que o paciente admita que arranca o
próprio cabelo, ou que está ferindo sua pele, pode afastá-lo de uma
aliança terapêutica, além de piorar sua angústia. Também não devemos,
no caso do TDC, reforçar o pensamento supervalorizado do paciente
sobre uma imperfeição imaginada, como também não há ganhos em
solicitar que o indivíduo fique buscando avaliações estéticas.
Agir de forma empática é aceitar que o paciente está sofrendo com
aquela condição. Devemos orientar de forma clara sobre as
características dos transtornos, deixando em evidência que seus
sintomas não são desvios de caráter, mas sim condições que não são
prazerosas e trazem grande prejuízo funcional. Essa conscientização do
problema para o paciente, familiares, amigos e até outros profissionais
da saúde chama-se psicoeducação, e é um fator importantíssimo para o
tratamento dar certo.
Como comorbidades psiquiátricas são comuns nesses transtornos, é
importante fazermos a investigação diagnóstica, para melhorar as
chances de resposta terapêutica. Depressão e transtornos ansiosos são
frequentes, podendo muitas vezes precipitarem comportamentos
suicidas, o que deve motivar o clínico a inquerir ativamente sobre
pensamentos de morte ou ideação suicida.
O seguimento desses pacientes envolve decisões complexas e é
mais bem manejado com uma equipe multidisciplinar, especializada em
saúde mental. Porém, caso seja abordado pelo paciente e/ou sua família,
seja num consultório particular ou atenção primária à saúde, o clínico
pode se tornar um pilar importante no projeto terapêutico dessa pessoa.
As condutas mais assertivas seriam:

1. Escutar atenta e empaticamente os relatos do paciente e


familiares/acompanhantes.
2. Diagnosticar o transtorno principal e comorbidades clínicas e
psiquiátricas, investigando comportamento suicida.
3. Psicoeducação sobre o quadro para paciente e seus familiares.
4. Iniciar tratamento quando adequado.
5. Encaminhar para avaliação psiquiátrica e psicológica.
6. Acompanhar a evolução em conjunto com a equipe de saúde
mental.

1.6. Tratamento farmacológico


A farmacoterapia tem demonstrado efetividade para melhorar os
principais sintomas do TDC, diminuir sintomas depressivos, ansiosos e
reduzir o risco de comportamento suicida. Já para os transtornos de
escoriação e tricotilomania não há muitos ensaios clínicos com
medicações, e mesmo os existentes mostraram poucas evidências de
eficácia de qualquer classe medicamentosa, sobre os sintomas da
tricotilomania, ficando o uso da farmacoterapia mais indicada para o
tratamento de comorbidades psiquiátricas.
As medicações mais estudadas até o momento são antidepressivos
inibidores seletivos da receptação de serotonina (ISRS),
clomipramina (antidepressivo tricíclico), alguns antipsicóticos,
lamotrigina, naltrexona e n-acetilcisteína, que serão expostos de
forma mais específica na tabela abaixo.

Quadro 6 - Principais medicações que podem ser utilizadas


Transtorno Medicamentos

ISRS em monoterapia
como: fluoxetina,
sertralina, fluvoxamina, Associação e ISRS com
paroxetina, citalopram e antipsicóticos ainda
TDC Clomipramina
escitalopram. Geralmente carecem de maior
com doses maiores do evidência científica.
que as utilizadas na
depressão maior.
Transtorno Medicamentos

Apenas alguns ISRS


mostraram em alguns
estudos alguma melhora A lamotrigina não A naltrexona não tem
Skin picking dos sintomas; dentre eles mostrou evidência evidências sólidas de
os mais estudados são: sólida de eficácia. eficácia.
fluoxetina, citalopram e
escitalopram.

Antipsicóticos atípicos:
Até agora a N-
olanzapina, aripiprazol e
acetilcisteína um
quetiapina. No caso do
mucolítico é que vem
aripiprazol há um maior
Tricotilomania ISRS e clomipramina. mostrando resultados
risco de acatisia e no caso
mais promissores
da olanzapina e
como medicamento,
quetiapina, piora no perfil
na tricotilomania.
glicêmico e lipídico.

Fonte: síntese elaborada pelo autor.

1.7. Tratamento não farmacológico


Além da psicoeducação, a psicoterapia é um dos principais pilares no
tratamento desses pacientes, com maiores evidências de eficácia
quando é associada à farmacoterapia. A seguir, listamos as principais
abordagens e suas características.

Quadro 7 - Abordagens psicoterapêuticas


Abordagem
Características
terapêutica

Técnica com mais evidências científicas de eficácia. Consiste em


Terapia Cognitivo-
modificar cognições e comportamentos inadequados, que podem estar
Comportamental
levando à manutenção de um determinado transtorno psiquiátrico, para
(TCC)
comportamentos mais adaptados que causem menos sofrimento.
Abordagem
Características
terapêutica

Compartilha princípios essenciais da TCC, tem como objetivo reverter o


reforço positivo (arrancar o cabelo ou beliscar a pele para amenizar
Reversão de Hábitos condições emocionais desagradáveis). Ao concluir a terapia, os
pacientes aprendem a monitorar e aumentar efetivamente a consciência
de seu comportamento disfuncional.

Aborda a tendência dos pacientes com tricotilomania ou skin picking de


evitar pensamentos, sensações e emoções desagradáveis e aversivas
Terapia de Aceitação
(que os levam a puxar o cabelo ou beliscar a pele). Com a maior
e Compromisso
aceitação desses pensamentos negativos, os pacientes tendem a
apresentar menos comportamentos disruptivos.

Pode melhorar o prognóstico, quando associado a outras modalidades


de tratamento discutidas. É importante a elucidação do quadro para as
Suporte Social
pessoas que convivem com a paciente, podendo oferecer uma rede de
apoio maior, e deixar a convivência menos estressante para o indivíduo.

Fonte: síntese elaborada pelo autor.

1.8. Redescobrindo o caso (Pontos-Chave)

9
1 Sexo feminino

2 Idade de diagnóstico

3 Idade de início

Região comum de distorção de percepção


4
corporal

5 Comportamentos comuns no TDC

6 Imperfeições não ratificadas por terceiros

7 Tricotilomania

8 Skin picking

9 Gatilhos para comportamentos patológicos

10 Postura comum no atendimento

Cândida apresenta critérios para três transtornos: TDC, skin picking


e tricotilomania, geralmente comórbidos entre si. Fazer o diagnóstico e
avaliar possíveis outros transtornos mentais comórbidos é o ponto de
partida para iniciar o projeto terapêutico de forma mais assertiva.

Exemplo de uma prescrição para Cândida


Sertralina, 25mg, 1 comprimido pela manhã, por 7 dias com
aumento para 50mg, 1 comprimido ao dia pela manhã.
+
Encaminhamento para psicoterapia

2. TRANSTORNO DE
ACUMULAÇÃO
2.1. CASO CLÍNICO 2
Carlos Alfredo, 55 anos, divorciado, catador de lixo. Vem para consulta
acompanhado da irmã, que também é sua vizinha; ela relata que o
paciente apresenta desde os 30 anos de idade, quando começou a “catar
lixo”, uma dificuldade enorme em se desfazer de objetos que colhe,
mesmo que esses não tenham função nenhuma, como embalagens de
comida, papéis usados e pedaços de isopor. Devido a esse
comportamento ao longo dos anos, sua casa tornou-se praticamente
inabitável, pela quantidade de coisas que estão empilhadas nos
cômodos, causando até obstrução de passagens do domicílio. Como há
também proliferação de pragas (baratas e ratos) nas proximidades, os
vizinhos já começaram a ameaçá-lo, fazendo denúncias para a
vigilância sanitária. O paciente relata extremo sofrimento quando tenta
descartar o lixo, por achar que poderá utilizá-lo no futuro ou por
desenvolver uma relação sentimental com alguns pertences, inclusive
atrapalhando seus ganhos como catador de lixo.

Exame mental: triste, discurso com pobreza de conteúdo, sem


delírios aparentes, insight parcial.

2.2. Discutindo O Diagnóstico


O transtorno de acumulação foi recentemente reconhecido como
entidade patológica independente, alocada pelo DSM-5 nos transtornos
relacionados ao transtorno obsessivo-compulsivo. É caracterizado pela
dificuldade persistente de descartar ou se desfazer de pertences,
independentemente de seu valor real (revistas velhas, papéis riscados
ou embalagens de alimentos). Os pacientes não conseguem de nenhuma
forma vender, descartar, dar ou reciclar os objetos. Relatam como
principais dificuldades a utilidade percebida – “posso um dia utilizar
esse pedaço de arame enferrujado” – ou o valor estético – “essa lata de
refrigerante vazia é muito bonita” –, e até mesmo um apego sentimental
– “essa sacola rasgada já está comigo há tantos anos”.
Alguns pertences podem ser valiosos também, mas geralmente
ficam misturados com pilhas de itens considerados inúteis ou de valor
limitado. Na maioria dos casos também temos a aquisição excessiva por
compras, podendo também recolher coisas e até roubar em alguns
casos.
Os pacientes guardam intencionalmente os pertences e
experimentam grande sofrimento quando se deparam com a
possibilidade de descartá-los. Assim, os itens se acumulam em áreas e
cômodos, tirando a funcionalidade desses espaços. Por exemplo: a
pessoa não consegue mais utilizar a cozinha para preparar comida ou
dormir na cama que está cheia de coisas.
O nível de prejuízo na vida social, familiar, profissional e de higiene
é importante. Os locais onde são guardados os objetos ficam totalmente
desprovidos de um padrão mínimo de segurança, não sendo
infrequentes acidentes domésticos como incêndios, quedas e até picadas
de animais peçonhentos. Aqui podemos inferir que problemas judiciais
como ordem de despejos ou perda da guarda dos filhos são situações
enfrentadas por esses pacientes.
Resumindo e facilitando o entendimento, seguem os pontos cruciais
para o diagnóstico:

1. Dificuldade persistente de descartar ou se desfazer de


pertences, independentemente do seu valor real.
2. Essa dificuldade se dá devido a uma necessidade percebida de
guardar os itens e ao sofrimento associado ao descartá-los.
3. Os pertences se acumulam, obstruindo e congestionando áreas
de uso, fazendo com que essas áreas percam a funcionalidade
inicial (cozinha, quarto, garagem).
4. Importante prejuízo no funcionamento social, acadêmico,
profissional ou em outras áreas importantes da vida do
indivíduo, inclusive de prover um ambiente seguro para si e
terceiros.
5. Sempre devemos afastar causas clínicas (p. ex., lesões no
sistema nervoso central).
6. Afastar outras causas psiquiátricas que expliquem melhor o
comportamento de acumulação.

2.3. Aspectos Sobre Epidemiologa E Etiologia


Estudos em comunidades norte-americanas e europeias (não temos
dados disponíveis no Brasil), mostram prevalência de 2-6%, com maior
participação do sexo masculino, com maior frequência em indivíduos
mais velhos (55-94 anos). Os sintomas podem começar no final da
infância e início da adolescência, com interferência na vida do
indivíduo por volta dos 25 anos, com aumento gradativo dos prejuízos
ao longo dos anos.
A etiologia ainda é pesquisada, com vários fatores genéticos,
neurobiológicos, psicológicos e ambientais contribuindo para a gênese
e manutenção do transtorno.
Estudos de neuroimagem têm mostrado aumento do córtex pré-
frontal e do volume da substância cinzenta em cérebros de pacientes
com transtorno de acumulação. Porém, mais estudos precisam ser
realizados para comprovar essa associação. Danos aos córtices pré-
frontal ventromedial anterior e cingulado foram particularmente
associados à acumulação excessiva de objetos.
Já na investigação de alterações no genoma, estudos de gêmeos
mostram que aproximadamente 50% da variabilidade no
comportamento de acumulação deve-se a fatores genéticos aditivos.
Pessoas com transtorno de acumulação relatam eventos estressores e
traumáticos no passado, precedendo à patologia ou exacerbando-a.
Características relacionadas à personalidade, ao temperamento e às
funções cognitivas podem estar relacionadas ao quadro, como:
indecisão, dificuldade de organizar e planejar tarefas, perfeccionismo,
baixo limiar à frustração. O curso do transtorno na grande maioria das
vezes é crônico, com poucos relatos de melhoras e recidivas ao longo
dos anos.
2.4. Diagnóstico diferencial
O transtorno de acumulação pode ser comórbido com outros transtornos
mentais, principalmente sintomas de humor e ansiosos, com 75% dos
pacientes apresentando essa associação (principalmente com depressão
maior, fobia social e transtorno da ansiedade generalizada). Importante
ressaltar que até 20% desses pacientes têm critérios diagnósticos para
transtorno obsessivo compulsivo. Para podermos diferenciar melhor
essas comorbidades, apresentamos a seguir um quadro com os
principais diagnósticos diferenciais.

Quadro 8 - Diagnósticos diferenciais do transtorno de acumulação


Transtorno obsessivo compulsivo (TOC)

Outras condições médicas

Transtornos do neurodesenvolvimento

Transtornos do espectro da esquizofrenia e outros transtornos psicóticos

Depressão maior

Transtornos neurocognitivos

Colecionismo

Fonte: elaborada pelo autor.

Transtorno obsessivo-compulsivo. O transtorno de acumulação


não é diagnosticado quando os sintomas são decorrentes diretamente de
obsessões ou compulsões típicas, como medos de contaminação, de
ferimentos ou sentimentos de incompletude (perder a própria identidade
ou ter que documentar e preservar todas as experiências de vida)
presentes no TOC. O não descarte que pode ocorrer no TOC seria uma
maneira de o paciente não gastar tanto tempo em rituais de limpeza e
verificação (ter que lavar a mão várias vezes ao entrar em contato com
o lixo de casa por exemplo).
No TOC, o comportamento de acumulação é, em geral, indesejado e
angustiante, não trazendo prazer ou recompensa. Os itens acumulados
no TOC têm maior probabilidade de serem mais bizarros, como lixo,
fezes, urina, fraldas sujas ou comida estragada. Os dois diagnósticos –
de TOC e transtorno de acumulação – podem ser dados, caso os
critérios diagnósticos sejam preenchidos; ou seja, os sintomas dos dois
transtornos são independentes um do outro.

• Outras condições médicas. Os sintomas do transtorno de


acumulação podem surgir após lesões cerebrais traumáticas,
ressecção cirúrgica para tratamento de tumores do sistema
nervoso central, doença cerebrovascular, encefalites ou
condições neurogenéticas, como a síndrome de Prader-Willi.

• Transtorno do neurodesenvolvimento. Não diagnosticamos


o transtorno de acumulação se os sintomas estão ligados
diretamente a um déficit intelectual ou transtorno do espectro
autista.

• Esquizofrenia e outros transtornos psicóticos. Se os


sintomas de acumulação ocorrem em consequência de delírios
ou alucinações, não fazemos o diagnóstico de transtorno de
acumulação.

• Depressão maior. Nesse transtorno do humor a falta de


energia, o retardo psicomotor e a fadiga podem levar à
negligência com a higiene do espaço físico onde os pacientes
convivem. Nesse caso não diagnosticamos transtorno de
acumulação.

• Transtornos neurocognitivos. Os quadros demenciais


(Alzheimer, demência frontotemporal) podem levar a sintomas
de acumulação em seu quadro, por isso é importante datar
cronologicamente o início dos sintomas cognitivos e de
acumulação, que geralmente se iniciam no mesmo período. Já
o paciente com transtorno de acumulação tem histórico de
cronicidade em relação à dificuldade de descarte de itens que
possuem, lembrando que os sintomas, nesse último caso,
iniciam ainda na idade adulta jovem. Nos quadros demenciais
há também um prejuízo cognitivo importante, que traz mais
perdas funcionais comparadas àquelas pessoas apenas com
transtorno de acumulação.

• Colecionismo. Primeiramente o colecionismo não é um


transtorno, pois não traz sofrimento ou prejuízos. Além disso,
o ato de colecionar é organizado e sistemático, não causando,
por exemplo, obstrução de espaços funcionais de residências.

2.5. E aí? O que fazer?


Pacientes com transtorno de acumulação dificilmente buscam ajuda
médica, pois muitas vezes não têm total consciência da dimensão dos
prejuízos causados pelo acúmulo excessivo e indevido de pertences,
além de experimentarem extrema dificuldade em se desvencilhar de
seus itens, supervalorizando a utilidade desses. Geralmente só chegam
ao atendimento médico por alguma comorbidade clínica (p. ex.,
doenças infecciosas, acidentes com animais peçonhentos, quedas,
queimaduras) ou por transtornos psiquiátricos associados (p. ex.,
depressão, transtornos ansiosos).
O mais comum é tomarmos conhecimento sobre os atos desses
pacientes por meio de familiares, amigos e vizinhos. Não raras vezes,
também podemos nos deparar com esses indivíduos passando por
problemas judiciais, como ordens de despejo e perda de guarda dos
filhos.
Por todo o exposto, uma boa aliança terapêutica torna-se
imprescindível, facilitando o descarte de itens desnecessários, pois
crises ansiosas e depressivas podem ser desencadeadas quando o
paciente é “forçado” a se desfazer desses pertences. Não podemos
também estimular ou subestimar o comportamento de acumulação.
Devemos tentar de forma empática mostrar para esse indivíduo os
prejuízos reais e potenciais de seus atos. Por ser um quadro complexo,
o trabalho conjunto entre órgãos de assistência deve ser estimulado
(p. ex., atenção primária de saúde, centro de atenção psicossocial,
centros de referência de assistência social, poder judiciário, familiares).
Com o paciente aceitando o acompanhamento terapêutico, temos
algumas formas menos impactantes de descarte. O apoio psicológico e
de familiares no ato de se desvencilhar auxilia o indivíduo a se livrar
primeiramente dos itens com menos apego, tornando a tarefa menos
traumática. Caso seja viável, a venda de pertences autorizada pelo
paciente, pode ajudar na renda deste, reforçando seu comprometimento
em descartar os objetos.

2.6. Farmacoterapia
A literatura médica sobre tratamento farmacológico do transtorno de
acumulação ainda é muito escassa, com estudos ainda com pequeno
número de pacientes testados e sem evidências concretas de eficácia.
Dentre eles os mais estudados são os ISRS, a venlafaxina,
antipsicóticos, metilfenidato e naltrexona.

2.7. Tratamento Não Farmacológico


As técnicas terapêuticas que se mostram mais promissoras são a
terapia cognitivo-comportamental e a terapia de grupo, mostrando
melhora nos sintomas de acumulação com um período de tratamento
que varia entre 20-34 semanas nos estudos científicos.

2.8. Redescobrindo o caso (Pontos-Chave)


2.9. Caso clínico 2
1 Sexo masculino

2 Idade de incidência

3 Curso crônico

4 Prejuízo da funcionalidade e do espaço

5 Impactos na vida

Incapacidade de livrar-se dos objetos


6
acumulados

O paciente Carlos Alfredo sofre com transtorno de acumulação. Ao


longo de anos a sua dificuldade de descartar objetos, mesmo sem valor
ou função nenhuma, traz perda funcional do espaço onde habita,
conflitos com familiares e vizinhos e repercussões judiciais.
Tentar vincular com esse paciente para fazê-lo ter maior juízo
crítico sobre os seus atos é de extrema importância, e geralmente é o
primeiro passo para um projeto terapêutico bem-sucedido.
O mais adequado no momento da consulta seria orientar sobre a
patologia, pontuar prejuízos já causados e possíveis, se caso o
comportamento de acumulação persista, investigar comorbidades
psiquiátricas e clínicas e, por último, encaminhar para um serviço
especializado em saúde mental.
Exemplo de uma prescrição para Carlos Alfredo
Tratar possíveis comorbidades psiquiátricas.
+
Encaminhamento para avaliação e manejo psiquiátrico e
psicológico.

Referências
1. Nicewicz HR, Boutrouille JF. Body Dysmorphic Disorder
(BDD, Dysmorphobia, Dysmorphic Syndrome). In: StatPearls.
Treasure Island (FL): StatPearls Publishing; March 19, 2020.
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estatístico de transtornos mentais – DSM-5. 5. ed. Porto Alegre:
Artmed; 2014.
3. Singh AR, Veale D. Understanding and treating body
dysmorphic disorder. Indian J Psychiatry. 2019; 61(Suppl 1):
S131-S135. doi:10.4103/psychiatry.IndianJPsychiatry_528_18.
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disorder. Evid Based Ment Health. 2017; 20(3): 71-75.
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5. Hong K, Nezgovorova V, Uzunova G, Schlussel D, Hollander E.
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with body dysmorphic disorder: current status and future
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287-304. doi:10.1016/j.chc.2011.01.004.
7. Pereyra AD, Saadabadi A. Trichotillomania. In: StatPearls.
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2016; 173(9): 868-874. doi:10.1176/appi.ajp.2016.15111432.
9. Jafferany M, Patel A. Therapeutic Aspects of Trichotillomania:
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10. Schumer MC, Bartley CA, Bloch MH. Systematic Review of
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did the Picture Change since its Excision from OCD? Curr
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doi:10.2174/1570159X17666190124153048.

SIGLAS
• DSM 5 Manual Diagnóstico e Estatístico dos Transtornos
Mentais

• TOC Transtorno Obsessivo-Compulsivo


• TDC Transtorno Dismórfico Corporal
• ISRS Inibidores Seletivos da Recaptação de Serotonina
• TCC Terapia Cognitivo-Comportamental
Síndromes Relacionadas à
Personalidade
Acredita-se que a etimologia da palavra “personalidade” deriva
de um termo grego “persona” empregado para referenciar as
máscaras utilizadas por atores dramáticos na pretensão de
manifestar um funcionamento social superficial. Em paralelo, a
definição mais atual de personalidade consiste em um padrão
complexo de características psicológicas, matriz dos pensamentos e
emoções, externadas pelo comportamento. Dessa forma, seu
funcionamento é flexível e permite uma moldagem
comportamental para uma maior adequação social.
O DSM-5 designa o termo “transtorno” para explicitar a
complexa interação entre fatores biológicos, sociais, culturais e
psicológicos envolvidos na origem de uma determinada
perturbação mental. Pessoas que tem algum transtorno de
personalidade (TP) apresentam um funcionamento mal
adaptativo em consequência das interações das experiências
internas, pensamentos e emoções resultando em condutas
inesperadas ao contexto social e geradoras de prejuízos tanto nas
suas vidas quanto nas das pessoas ao seu redor. Em adição, tais
desajustamentos são observados em quesitos como empatia,
criação de vínculo, interpretação de situações sociais, capacidade
para o trabalho, inabilidade no controle das emoções, entre outros.
Então, o atendimento clínico pode ser difícil, o paciente pode
despertar reações emocionais intensas e exigir do profissional-
assistente habilidades de autocontrole, comunicação e tolerância.
Em relação a população geral, estima-se que até 15% dos
adultos dos Estados Unidos possua pelo menos um TP. A
prevalência TPs é elevada nos pacientes ambulatoriais
psiquiátricos, entretanto, a sua estimativa possui inúmeros
obstáculos como a reduzida literatura disponível, variabilidade de
qualidade dos estudos e heterogeneidade dos resultados.
No cotidiano, utilizamos dois sistemas para a classificação de
transtornos mentais como referência: a décima versão da
Classificação Internacional de Doenças (CID 10) e a quinta revisão
do Manual de Diagnóstico e Estatística (DSM-5). A última
referência será utilizada na construção desse capítulo.
O DSM-5 define seis critérios (A a F) para auxiliar no
diagnóstico dos transtornos de personalidade:

Tabela 1 - Critérios diagnóstico para transtorno de personalidade do


DSM V
A B C D E F

Não
Padrão Não é mais
Ocorre em É estável e atribuído ao
persistente de Leva ao bem
múltiplas surgiu pelo efeito de
funcionamento sofrimento explicado
situações menos no drogas ou
e desvio da ou prejuízos por outro
pessoais e início da outras
cultura importantes transtorno
sociais fase adulta condições
(FICA¹) mental
médicas

Fonte: Adaptado de American Psychiatric Association, 2014.


1
FICA: mnemônica que representa a necessidade de alteração em 2
dos 4 atributos: Funcionamento interpessoal, Impulsividade,
Cognição e Afetividade.

O critério A define que esse padrão de experiência interna e


comportamental não é algo transitório, é persistente e divergente da
cultura local. Em complemento, é necessário ser identificado em
duas ou mais áreas das apresentadas a seguir: funcionamento
interpessoal, controle de impulsos, cognição e afetividade.
O funcionamento interpessoal pode estar prejudicado e pode
ser identificado em várias situações do cotidiano, alguns exemplos
são apresentados a seguir:

• Exemplo 1: O paciente deseja o contato interpessoal e


não consegue devido receio de crítica, desaprovação ou
rejeição.

• Exemplo 2: O paciente pode ter relacionamentos


interpessoais instáveis alternando do completo encanto
visto na idealização para o desprezo ou repulsa como visto
na desvalorização.

• Exemplo 3: O paciente pode entender as relações


interpessoais como forma de obter ganhos pessoais sem
considerar o dano causado ao outro.

Já o controle da impulsividade ineficiente pode levar o


paciente a ter prejuízos na execução de um planejamento para o
futuro, descontrole em compras, sexo desprotegido, direção
irresponsável, podendo chegar até mesmo ao suicídio sem
planejamento prévio.
Quando é mencionada a área da cognição, considera-se a forma
de perceber e interpretar a si mesmo, outras pessoas e eventos.
Exemplos são apresentados a seguir:

• Exemplo 1: O paciente pode interpretar comentários


benignos como formas de abuso ou humilhação.
• Exemplo 2: O paciente pode achar que a partir de rituais
pode interferir em fenômenos naturais ou mesmo em
relações interpessoais (ou mesmo interpretar um incidente
como consequência de algo que fez).

• Exemplo 3: O paciente pode entender ser uma pessoa


especial, assimilando o outro como um admirador ou
servo.

A última área que pode estar prejudicada, a afetividade,


compreende várias vivências afetivas como o humor, emoções,
paixões, afetos e sentimentos, podendo assim, estar alteradas em
variação, intensidade, labilidade e adequação da resposta
emocional.
O diagnóstico de TP somente deverá ser realizado se esse
funcionamento mal-adaptado ocorrer em múltiplas situações e
ambientes como trabalho, casa e escola (Critério B). Além disso,
apresentar sofrimento pessoal significativo associado aos
insucessos nas atividades profissionais, sociais e outras áreas
(Critério C).
Geralmente, o diagnóstico é realizado na fase adulta, pois é um
período onde a personalidade está mais consolidada; entretanto, o
diagnóstico de TP pode ser dado antes dos 18 anos quando o
funcionamento mal adaptativo persiste por pelo menos um ano
(critério D), exceto no caso de transtorno de personalidade
antissocial que exige a idade mínima de 18 anos.
Os critérios E e F visam a exclusão de transtornos mentais, uso
de substâncias psicoativa ou outra condição médica que poderiam
provocar uma mudança comportamental.
O DSM-5 categoriza os 10 transtornos de personalidade em 3
grupos baseado nas semelhanças descritiva. Na tabela 2, fica
evidente a distribuição dos transtornos de personalidade e o ponto
central de cada um deles.

• Grupo A: parecem esquisitos ou excêntricos. É composto


pelos transtornos de personalidade paranoide, esquizoide e
esquizotípica. Estima-se uma prevalência de 5,7%.

• Grupo B: parecem dramáticos, emotivos ou erráticos. É


composto pelos transtornos de personalidade antissocial,
borderline, histriônica e narcisista. Estima-se uma
prevalência de 1,5%.

• Grupo C: parecem ansiosos ou medrosos. É composto


pelos transtornos de personalidade evitativa, dependente e
obsessivo-compulsiva. Estima-se uma prevalência de 6%.

O DSM-5 integra ainda como unidade diagnóstica a mudança


de personalidade devida a outra condição médica, outro transtorno
da personalidade especificado e transtorno da personalidade não
especificado. A primeira consiste na perturbação persistente da
personalidade acarretada por efeitos fisiopatológicos diretos de
uma condição médica, por exemplo, sequelas causadas por trauma
cranioencefálico ou acidente vascular encefálico, neoplasias,
epilepsia, doença de Huntington, doenças infecciosas, endócrinas e
autoimune com envolvimento do sistema nervoso central. A
segunda é empregada nas situações em que o clínico deseja
informar a razão específica pela qual a apresentação não satisfaz os
critérios para qualquer transtorno da personalidade especificado. A
última unidade diagnóstica é utilizada quando não se preenche os
critérios para qualquer transtorno de personalidade ou carece de
mais informações para o diagnóstico.
Tabela 2 - As principais características transtornos de personalidade
descrito no DSM-5 associadas à codificação do CID-10
Transtorno de
GRUPO CID10 Principal característica
personalidade

Padrão de desconfiança e de suspeita de


F60.0 Paranoide forma que as motivações dos outros são
interpretadas como malévolas

Padrão de distanciamento das relações


A F60.1 Esquizoide sociais e uma faixa restrita de expressão
emocional.

Padrão de desconforto agudo nas relações


F21 Esquizotípico íntimas, distorções cognitivas ou perceptivas
e excentricidades de comportamento.

Padrão de desrespeito e violação dos direitos


F60.2 Antissocial
dos outros.

Padrão de instabilidade nas relações


F60.3 Borderline interpessoais, na autoimagem e nos afetos,
com impulsividade acentuada.
B
Padrão de emocionalidade e busca de
F60.4 Histriônica
atenção em excesso.

Padrão de grandiosidade, necessidade de


F60.81 Narcisista
admiração e falta de empatia.

Padrão de inibição social, sentimentos de


F60.6 Evitativa (esquiva) inadequação e hipersensibilidade a avaliação
negativa.

Padrão de comportamento submisso e


C F60. 7 Dependente apegado relacionado a uma necessidade
excessiva de ser cuidado.

Obsessivo-
Padrão de preocupação com ordem,
F60.5 compulsiva
perfeccionismo e controle.
(anancástico)

F07.0 Mudança de personalidade devido a outra condição médica


Transtorno de
GRUPO CID10 Principal característica
personalidade

F60.89 Outro transtorno da personalidade especificado

F60.9 Transtorno da personalidade não especificado

Fonte: Síntese elaborada pelo autor

Enfim, o diagnóstico de TP deve ser realizado com o objetivo


claro e terapêutico, evitando a rotulação que fortalece o estigma
carregado por esses pacientes. Nos capítulos a seguir tais
transtornos serão abordados de forma mais detalhada.

SIGLAS

• TP Transtorno de Personalidade
• DSM-5 Manual Diagnóstico e Estatísticos do Transtornos
Mentais

• CID-10 Décima versão Classificação Internacional de


Doenças
1. CASO CLÍNICO
José Nunes, 35 anos, casado e empresário. Paciente vem à consulta
acompanhado de sua esposa. Ela refere que seu esposo apresenta um humor
irritável e desconfiança difusa e constante das pessoas. Relata também que
comumente ao voltar do trabalho José Nunes inicia um interrogatório sobre as
pessoas com quem ela interagiu, o tempo e o itinerário utilizados para a
realização de suas atividades, logo após, solicita seu celular e vasculha suas
redes sociais e aplicativos de conversa pessoal. A esposa afirma que o seu
marido não tem amigos, tem relação frágil com seus irmãos e o casamento é
marcado por acusações infundadas de traição. Cita, ainda, que há uma semana
José Nunes discutiu com o irmão, do qual é seu sócio, motivado pela suspeita de
desvio de dinheiro da empresa após queda dos lucros, resolvendo o conflito
após comprovado o balanço financeiro. A esposa relata ainda que o marido
vigia seus funcionários pelas câmeras buscando alguma atitude que alimente a
sua suspeita de que está sendo enganado, roubado ou difamado. Esposa conta
que soube pela sua sogra que o paciente durante o ensino médio desfazia
amizades acusando os amigos de “traição da sua confiança”.

Exame mental: o paciente encontra-se irritadiço, inquieto, tenso e


hipervigilante. Durante a consulta traz queixas ansiosas, questiona o sigilo
das informações passadas, acusa a esposa de taxá-lo de louco e procura
significados ocultos nas conversas do atendimento. Por várias vezes, José
Nunes justifica as afirmações da esposa com frases genéricas do tipo “as
pessoas estão apenas procurando uma brecha para se aproveitar”, “tenho
que tomar cuidado, o mundo é perigoso” e “não vou deixar os outros me
usarem”.

2. DISCUTINDO O DIAGNÓSTICO
O transtorno de personalidade (TP) é caracterizado por experiências internas e
comportamento que se desviam significativamente das expectativas culturais.
Esse padrão de funcionamento deve ser duradouro, com início na infância,
adolescência ou começo da fase adulta; é inflexível, ou seja, ocorre uma
inabilidade de flexibilizar o comportamento diante das diversas situações do
cotidiano, ocasionando prejuízos importantes pessoais, profissionais e sociais.
Vale ressaltar que não deve ocorrer exclusivamente durante o curso de
esquizofrenia, transtorno afetivo bipolar ou depressivo com sintomas psicóticos
ou outro transtorno psicótico e não é atribuível aos efeitos fisiológicos de outra
condição médica.
O Manual de Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM-5)
classifica os transtornos de personalidade nos agrupamentos A, B e C. O grupo
A inclui os pacientes que têm como característica personalidades excêntricas
e/ou são paranoicos, sendo descritos por outras pessoas como esquisitas. Esse
grupo engloba os transtornos de personalidade paranoide, esquizoides e
esquizotípicos. Em seguida serão apresentadas as características de cada
transtorno desse grupo.

3. TRANSTORNO DE PERSONALIDADE
PARANOIDE
Os pacientes com Transtorno da Personalidade Paranoide (TPP) têm como
traços a presença difusa de desconfiança e suspeita em suas relações pessoais.
Em função disso, possuem o comportamento irritadiço, esquivo ou hostil.
Segundo o DSM-5, para o diagnóstico desse TP, deve-se considerar os critérios
expostos no quadro a seguir.

Quadro 1 - Diagnóstico TPP com critérios reduzidos (DSM-5)

Padrão de desconfiança e suspeita difusa dos outros, de modo que suas motivações são interpretadas
como malévolas, indicado por quatro (ou mais) dos seguintes:

1. Suspeita, sem embasamento suficiente, de estar sendo explorado, maltratado ou enganado.

2. Preocupa-se com dúvidas injustificadas acerca da lealdade de amigos e sócios.

3. Reluta em confiar nos outros devido a medo infundado de que as informações serão usadas
maldosamente contra si.
Padrão de desconfiança e suspeita difusa dos outros, de modo que suas motivações são interpretadas
como malévolas, indicado por quatro (ou mais) dos seguintes:

4. Percebe significados ocultos humilhantes ou ameaçadores em comentários ou eventos


benignos.

5. Guarda rancores de forma persistente.

6. Percebe ataques a seu caráter que não são percebidos pelos outros e contra-ataca rapidamente.

7. Tem suspeitas recorrentes e injustificadas acerca da fidelidade do parceiro.

Fonte: adaptado de American Psychiatric Association.9

Indivíduos com TPP apresentam um comportamento de desconfiança


excessiva e suspeita em relação aos outros, embora não existam evidências
concretas que sustentem tal padrão de funcionamento. Essa resistência em
confiar nas outras pessoas se manifesta pelo receio de serem enganados, terem
suas informações pessoais partilhadas ou serem prejudicados. Por exemplo:
considerando um emprego em que os profissionais possuem a mesma função, o
paciente pode interpretar que as atividades mais difíceis são atribuídas para ele
visando o seu desgaste ou para provar a sua incompetência.
Esse grupo pode ainda achar que foi maltratado, lesado ou enganado por
outras pessoas em conversas amistosas, atacando os “insultos” percebidos, ou
mesmo permanecendo um longo período com sentimento de rancor e raiva.
Sendo assim, um sorriso descontraído ou uma oferta de ajuda pode ser
interpretado como intenção humilhante de ataque a sua imagem ou reputação.
São características ainda do TPP ciúme excessivo e suspeitas da fidelidade
do seu cônjuge ou parceiro sexual, sendo possível a tentativa do controle das
rotinas de seus parceiros por receio de serem traídos.
A combinação de tais características leva a um prejuízo funcional tão
importante, que é considerado um dos três TPs mais associado à redução da
qualidade de vida. Em complemento, foi o transtorno de personalidade mais
prevalente em uma amostra de pacientes de um centro de atendimento para
pessoas em situação de rua.
8. TRANSTORNO DA PERSONALIDADE
ESQUIZOIDE
O Transtorno da Personalidade Esquizoide (TPE) tem como característica
marcante o distanciamento significativo na formação de relacionamentos
sociais. De acordo com o DSM-5, para confirmar o diagnóstico desse
transtorno, o indivíduo deve seguir os critérios a seguir.

Quadro 2 - Diagnóstico TPE com critérios reduzidos (DSM-5)

Padrão difuso de distanciamento das relações sociais e uma faixa restrita de expressão de emoções
em contextos interpessoais, indicado por quatro (ou mais) dos seguintes:

Não deseja nem desfruta de relações íntimas.

Quase sempre opta por atividades solitárias.

Manifesta pouco ou nenhum interesse em ter experiências sexuais com outra pessoa.

Tem prazer em poucas atividades, por vezes em nenhuma.

Não tem amigos próximos ou confidentes que não sejam os familiares de primeiro grau.

Mostra-se indiferente ao elogio ou à crítica de outros.

Demonstra frieza emocional, distanciamento ou embotamento afetivo.

Fonte: adaptado de American Psychiatric Association.9

Pacientes com Transtorno de Personalidade Esquizoide, geralmente, não têm


interesse em relacionamentos íntimos, formar família ou fazer parte de um
grupo social. O isolamento é uma característica predominante do esquizoide, e
por isso são descritos por outras pessoas como “solitários”. Expressam, ainda,
pouco ou nenhum desejo de ter um parceiro, ou ter atividade sexual.
Indivíduos com Transtorno da Personalidade Esquizoide não investem nas
formações de vínculos próximos ou confidentes e quando os têm é provável que
seja com um parente de primeiro grau. Quando estão diante de reclamações e
crítica de outros, não parecem se incomodar com o que os demais pensam sobre
seu comportamento. Possuem também dificuldade em demonstrar suas
emoções, não sendo recíprocos aos gestos e às atitudes das outras pessoas,
sendo considerados na maioria das vezes como pessoas frias e distantes.

9. TRANSTORNO DA PERSONALIDADE
ESQUIZOTÍPICA
O Transtorno da Personalidade Esquizotípica (TPET) tem como característica
marcante padrão invasivo de déficits sociais e interpessoais, acompanhado por
agudo desconforto e reduzida capacidade para relacionamentos íntimos,
além de distorções cognitivas ou perceptivas e comportamento excêntrico.
Conforme o DSM-5, pacientes com esse TP terão o diagnóstico confirmado
quando apresentarem as características expostas no Quadro 3.

Quadro 3 - Diagnóstico TPET com critérios reduzidos (DSM-5)

Padrão difuso de déficits sociais e interpessoais marcado por desconforto agudo e capacidade
reduzida para relacionamentos íntimos, além de distorções cognitivas ou perceptivas e
comportamento excêntrico, indicado por quatro (ou mais) dos seguintes:

Ideias de referência.

Crenças estranhas ou pensamento mágico que influenciam o comportamento e são inconsistentes


com as normas subculturais.

Experiências perceptivas incomuns.

Pensamento e discurso estranhos.

Desconfiança ou ideação paranoide.


Padrão difuso de déficits sociais e interpessoais marcado por desconforto agudo e capacidade
reduzida para relacionamentos íntimos, além de distorções cognitivas ou perceptivas e
comportamento excêntrico, indicado por quatro (ou mais) dos seguintes:

Afeto inadequado ou constrito.

Comportamento ou aparência estranha.

Ausência de amigos próximos ou confidentes que não sejam parentes de primeiro grau.

Ansiedade social excessiva que não diminui com o convívio e que tende a estar
associada mais a temores paranoides.

Fonte: Adaptado de American Psychiatric Association.9

Entre os critérios de diagnóstico para o TPET, faz parte a presença de ideias


de referência, que se caracteriza por interpretação incorreta de incidentes
casuais e de acontecimentos externos, os quais acabam tendo um significado
atípico e especial. Esse comportamento é conhecido como ideias de referência, a
qual deve ser diferenciada de delírios de referência, pelas suas semelhanças,
mas este último quando presente é mantido com maior convicção. Os portadores
desse TP também apresentam crenças bizarras e esquisitas, pensamentos
mágicos e de superstição. Eles podem acreditar que têm poderes extraordinários
e especiais que lhes permitem detectar situações antes mesmo do ocorrido, além
do poder de ler a mente das outras pessoas. Essa persistência das crenças
bizarras e os pensamentos mágicos que influenciam o comportamento são
inconsistentes com as regras e convívio social. Podem apresentar ainda
alterações da percepção, relatando em algumas situações que há vozes e a
presença de outras pessoas, as quais só eles conseguem perceber. O discurso
costuma ser vago, incoerente e sem contexto. Tais sintomas não chegam a
caracterizar sintomas psicóticos, seja pela fugacidade nas alterações de
sensopercepção, seja pela falta de convicção delirante.
Outro importante critério desse transtorno é a desconfiança e a ideação
paranoide. Esses pacientes podem apresentar suspeitas que estejam sendo
assediados, perseguidos ou maltratados. São, ainda, incapazes de administrar
seus afetos adequadamente, não conseguindo manter relacionamentos bem-
sucedidos, de modo que muitas vezes interagem com as outras pessoas de
maneira inadequada e rígida. Os pacientes com transtorno de personalidade
esquizotípica costumam ter, ainda, um comportamento excêntrico, ou seja,
incomum, em função dos maneirismos, pela maneira estranha ou descuidada de
se vestir e trajar, pela sua distração e recusa às convenções sociais comuns, não
entendendo as dicas sociais habituais, assim interação com os outros de forma
inadequada ou rígida.
Os pacientes com esse TP, assim como os pacientes esquizoides, apresentam
dificuldade em ter amigos e confidentes, e quando possuem são os parentes de
1º grau. Esses indivíduos dispõem de pouca capacidade para relação íntima e
interpessoal e evitam situações sociais, mantendo contato com outras pessoas,
algumas vezes por obrigação, pois se sentem desconfortáveis e ansiosos,
especialmente quando isso envolve estranhos. Essa ansiedade social é
clinicamente significativa e provocada pela exposição a certas situações, nas
quais a pessoa age de maneira estranha, frequentemente levando ao
comportamento de esquiva.

10. ASPECTOS SOBRE EPIDEMIOLOGIA E


ETIOLOGIA
A estimativa da prevalência nos TPs é uma tarefa desafiadora em função do
reduzido material publicado na temática, ausência de padrão metodológico e
resultados não compatíveis com a projeção para a população geral. Quando
particularizamos os TPs específicos como TPP, TPE e TPET as informações
tornam-se menos sólidas.
No DSM-5, considerando subamostra do National Epidemiologic Survey on
Alcohol and Related Conditions, foi estimado 4,4% para TPP, 3,1% para TPE e
3,9% para TPET.
Volkert, Gablonski e Rabung10, em metanálise da prevalência de TPs em
adultos de países ocidentais, consideraram o grupo A com maior percentual, de
7,23%. Nesse estudo as prevalências de TPP, TPE e TPET foram
respectivamente 3,02%, 2,82% e 3,04%.

11. DIAGNÓSTICO DIFERENCIAL


• Transtorno por uso de substância: os pacientes com esse transtorno
apresentam uma dependência patológica e excessiva de substâncias, as
quais podem ocasionar incapacidade social e funcional. Para confirmar o
diagnóstico de um TP, o padrão de comportamento de ser estável, ter
início pelo menos a partir da adolescência ou do início da fase adulta,
ocorrer múltiplas situações sociais e ambientais e não ser atribuível a
uma substância. Portanto, o médico sempre deve avaliar se os sintomas
são devidos ao uso de substâncias ou se eles já existiam
independentemente dessas.
• Transtorno de Personalidade Obsessivo-compulsiva (TPOC): os
pacientes com TPOC buscam manter o controle de tudo e serem
inflexíveis. Podem apresentar semelhanças ao TPE no distanciamento
social. A diferença está nas motivações: no TPOC ocorre devido à
dedicação e à exigência de desempenho no trabalho, enquanto no TPE o
interesse para intimidade é ausente.
• Transtorno da Personalidade Evitativa (TPE): pode se assemelhar ao
TP paranoide, pois em ambos os pacientes apresentam medo de serem
magoados, e apresentam ainda uma desconfiança como consequência
disso. Porém, no TPE, o medo é uma emoção reconhecida pelo paciente,
já no TPP o paciente não reconhece o seu medo. Por exemplo, quando
exposto a uma ameaça, o paciente com TP evitativa foge, enquanto o
paranoide tenta se defender com contra-ataque.
• Transtorno da Personalidade Boderline: assemelha-se aos indivíduos
com TPP. Esses pacientes são restritos em relação ao afeto e em muitas
situações parecem não ter emoções. Apresentam um medo ao abandono,
porém reagem a este com sentimento de vazio emocional, fúria e
exigências.

11.1. E aí? O que fazer?


Um importante aspecto na abordagem dos pacientes com TP é a realização da
psicoterapia, que é considerado o tratamento padrão-ouro. A eficácia desse
tratamento depende de uma boa aliança terapêutica, com participação ativa do
profissional de saúde e colaboração do paciente.
Existem várias modalidades de psicoterapia, como: psicanálise, terapia
interpessoal, terapia cognitiva e a terapia cognitivo-comportamental (TCC). A
psicoterapia deve ocorrer em longo prazo e ser realizada por uma equipe
especializada e multiprofissional, incluindo psiquiatra, psicoterapeuta e
terapeuta de grupo, além de inserir a família como rede de apoio integrada. É
importante um trabalho conjunto do psiquiatra com o psicólogo, para troca de
informações sobre o paciente, pois pode existir manipulação feita pelo portador
do transtorno.
A abordagem terapêutica ao paciente com TPP é bastante difícil. Os
pacientes com esse TP apresentam resistência ao tratamento, por desconfiança,
hipersensibilidade a críticas, interpretações erradas de comentários e receio de
falar sobre sua intimidade. Normalmente, esses pacientes são levados à consulta
por um familiar ou quando apresentam sintomas depressivos/ansiosos.
Geralmente, o manejo desses pacientes ocorre por terapia de grupos e por
terapia cognitivo-comportamental, que é baseada em relação de confiança,
visando o controle da ansiedade e o desenvolvimento de habilidades sociais.
Ainda com o auxílio à psicoterapia, pode-se fazer uso de fármacos
antipsicóticos em baixas doses quando esses pacientes apresentam
descompensações com quadros psicóticos.
Assim como os portadores de TPP, os pacientes com transtorno de
personalidade esquizoide, raramente buscam tratamento. Ocasionalmente, esses
indivíduos procuram ajuda médica para problemas associados, como depressão
e ansiedade, ou são levados à consulta por outra pessoa, que geralmente é um
familiar. Dentre as abordagens úteis para pacientes esquizoides, a TCC é
considerada o método mais eficaz, pois o paciente aprende a reformular os
pensamentos e a diferenciar seus sentimentos quando são reais ou não. Assim,
começa a ter mudanças de comportamento, de sentimentos e emoções que
melhoram suas habilidades sociais e de relacionamentos.
Semelhante aos outros TPs citados, o portador de transtorno da
personalidade esquizotípica apresenta uma resistência à procura de ajuda
médica, e quando busca tratamento é por queixas como ansiedade, episódios
depressivos ou quando é levado por familiares. O tratamento geral para
indivíduos com esse TP é a psicoterapia como a terapia cognitivo-
comportamental (TCC) que objetiva a aquisição de habilidades sociais e o
controle da ansiedade. Essa terapia também aumenta a conscientização dos
pacientes em relação ao seu comportamento, auxiliando-os a desenvolver
mecanismos de defesa saudáveis, especialmente nos relacionamentos
interpessoais. Em alguns momentos, pode ser necessário o uso de antipsicóticos,
preferencialmente, os atípicos, como a risperidona e a olanzapina, que
diminuem os sintomas psicóticos. Antidepressivos também podem ajudar a
diminuir os sintomas ansiosos nos pacientes com transtorno de personalidade
esquizotípica.
Um importante aspecto da abordagem ao tratamento do paciente com
transtorno da personalidade refere-se à possibilidade de ele trazer a consciência
as suas operações, emoções e conflitos psicológicos. Geralmente há uma grande
resistência dos pacientes com transtornos de personalidade à mudança, mesmo
por meio das experiências de vida punitivas, tornando o tratamento um desafio.

11.2. Redescobrindo o caso (Pontos-Chave)


1 Desconfiança difusa dos outros

2 Suspeitas recorrentes e injustificadas acerca da fidelidade do cônjuge

3 Suspeitas sem embasamento de estar sendo enganado

4 Preocupação em relação à confiabilidade de sócios e amigos

5 Percebe significados ocultos ameaçadores em comentários ou eventos benignos

O primeiro ponto a ser considerado é que o comportamento não deve se


manifestar apenas após uso de substância, induzido por uma condição clínica
(por exemplo, trauma cranioencefálico) ou episódio agudo de outro transtorno
mental (por exemplo, sintomas psicóticos da esquizofrenia). O padrão de
funcionamento deve ser estável, inflexível, ocorrer em múltiplos ambientes e ter
prejuízos sociais, acadêmicos e profissionais. Vale a pena ressaltar que são
necessários prejuízos em duas das quatro áreas: cognição, afetividade,
funcionamento interpessoal e controle de impulsos.
O próximo passo seria observar o ponto central do TP, que no caso é padrão
de desconfiança e suspeita difusa dos outros, de modo que suas motivações são
interpretadas como malévolas. As outras características observadas no caso
permeiam o ponto central, como: suspeitas recorrentes e injustificadas acerca da
fidelidade do cônjuge; preocupação em relação à confiabilidade de sócios e
amigos; suspeita sem embasamento estar sendo enganado e percepção de
significados ocultos ameaçadores em comentários ou eventos benignos. Esse
padrão de funcionamento evidencia o diagnóstico de Transtorno de
Personalidade Paranoide.
É importante realizar a investigação de outros transtornos mentais (por
exemplo, transtornos ansiosos, depressivos e relacionados ao uso de
substâncias). Por fim, é importante realizar a psicoeducação, realizar orientações
sobre o diagnóstico, estimular o início da psicoterapia e introduzir a terapia
medicamentosa visando o tratamento das comorbidades, caso existam.

Exemplo de conduta para José Nunes


Encaminhamento para psicoterapia
Referências
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practice. Am Fam Physician. 2011; 84(11): 1253-1260.
2. Campbell RJ. Dicionário de psiquiatria. 8. ed. Porto Alegre: Artmed; 2009.
3. American Psychiatry Association. Manual diagnóstico e estatístico de transtornos mentais – DSM-
IV-TR. 4. ed. Porto Alegre: Artmed; 2002.
4. Caligor E, Kernberg O, Clarkin J. Psicoterapia dinâmica das patologias leves da personalidade. Porto
Alegre: Artmed; 2008.
5. Sadock BJ, Sadock VA. Compêndio de psiquiatria: ciência do comportamento e psiquiatria clínica. 9.
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6. Cramer, V., Torgersen, S., & Kringlen, E. (2006). Personality disorders and quality of life: A
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clients. Journal of Personality Disorders; 22(6): 573-588.
8. Gabbard G. Psiquiatria psicodinâmica. Porto Alegre: Artmed; 1992.
9. American Psychiatric Association. Manual diagnóstico e estatístico dos transtornos mentais – DSM-
5. 5. ed. Porto Alegre: Artmed; 2014.
10. Volkert J, Gablonski T-C, Rabung S. Prevalence of personality disorders in the general adult
population in Western countries: systematic review and meta-analysis. The British Journal of
Psychiatry 2018; 1-7..2018.202
11. Pervin LA, Cervone D, John OP. Personality: Theory and Research. 9. ed. California: Editora
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12. Ozer DJ, Benet-Martínez V. Personality and the prediction of consequential outcomes. Ann Rev
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16. Fariba K, Gupta V, Kass E. Personality Disorder. In: StatPearls. Treasure Island (FL): StatPearls
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17. Beck AT, Freeman P. Cognitive Therapy of Personality Disorders. New York: Guilford; 1990.

SIGLAS
• DSM-5 Manual de Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais
• TP Transtorno da Personalidade
• TPP Transtorno da Personalidade Paranoide
• TPE Transtorno da Personalidade Esquizoide
• TPET Transtorno da Personalidade Esquizotípico
• TCC Terapia Cognitivo-comportamental
1. CASO CLÍNICO
Roberta, 25 anos, solteira e estagiária de Direito, é levada à Unidade Básica
de Saúde por sua genitora após ter feito cortes superficiais na região dos
punhos. Paciente refere que há 2 dias Bruna, pessoa que a paciente conheceu
há 1 mês, a trocou quando optou por ficar com os pais ao invés de sair na
companhia dela. Após ser desmarcado o encontro, sentiu medo de ser
abandonada, raiva incontrolável e solidão, além de exacerbar sentimentos
crônicos de “vazio” e angústia intensa. Após esse turbilhão emocional
realizou cortes em punhos para “a dor física anestesiar a emocional”. Pensa
em sair do estágio, pois já perdera o controle diversas vezes, gritando com as
pessoas aos menores estímulos. Sua genitora relata trocas constantes de
emprego, ingestas de bebida alcoólica frequentes e múltiplos
relacionamentos em curto período temporal. Tem histórico prévio de dois
episódios de tentativas de suicídio, além de abandono paterno e abuso sexual
durante a infância.

Exame mental: paciente apresenta-se vestida em roupas extravagantes,


possui cabelos vermelhos-escuros e são visíveis as várias cicatrizes em
região anterior dos antebraços. Tinha atitude irônica, com mudança
constante do tom de voz, ora culpabilizando sua genitora de seus
problemas, ora tecendo críticas grosseiras. Durante consulta cita frases
como: “tenho raiva do mundo e não consigo controlar”, “As pessoas
sempre me frustram e assim perco interesses por elas” e “cortes aliviam
minha culpa, reduzem a minha raiva e punem este corpo estranho que
tenho”.

2. DISCUTINDO O DIAGNÓSTICO
Neste capítulo discutiremos os transtornos de personalidade (TP) do grupo
B, tidos como emocionais, dramáticos e/ou erráticos. A saber: transtorno de
personalidade antissocial, borderline e histriônico.
3. TRANSTORNO DE PERSONALIDADE
ANTISSOCIAL
O Transtorno de Personalidade Antissocial (TPA), também já descrito
anteriormente como psicopatia, sociopatia ou transtorno de personalidade
dissocial, é caracterizado pela incapacidade do paciente de se adequar às
normas do meio em que está inserido, às regras de convivência e às
obrigações sociais. De acordo com o DSM-5, para que o diagnóstico seja
confirmado, o paciente precisa ter idade mínima de 18 anos, ter
manifestado transtorno de conduta (TC) antes dos 15 anos, estar adotando
um comportamento que não ocorra apenas na vigência de esquizofrenia ou
de transtorno bipolar. Além de apresentar os critérios a seguir expostos.

Quadro 1 - Diagnóstico TPA com critérios reduzidos (DSM-5).

Padrão generalizado de comportamento de desconsideração e violação dos direitos de outras


pessoas desde os 15 anos em pelo menos três das seguintes situações abaixo:

1. Fracasso em se ajustar às normas sociais relativas a comportamentos legais;

2. Tendência à falsidade

3. Impulsividade ou fracasso nos planos feitos para o futuro

4. Irritabilidade e agressividade

5. Descaso pela segurança de si e dos outros ao seu redor

6. Irresponsabilidade reiterada

7. Ausência de remorso

Fonte: adaptado de American Psychiatric Association.18


O TPA é o único TP que não é diagnosticável na infância, diferentemente
dos outros TPs, que podem ser diagnosticados em indivíduos com menos de
18 anos, desde que as características perdurem por pelo menos um ano. O
curso natural da doença é que, em torno de 15 a 18 anos, o paciente tenha
sido diagnosticado com TC, e após os seus 18 anos permaneça com
alterações de comportamento, justificando os critérios para o diagnóstico de
TPA.
O que seria o TC? Trata-se de TC quando há um padrão repetitivo e
persistente de violação dos direitos básicos sociais ou das principais regras
de cada faixa etária. Os padrões de comportamento específico são divididos
em 4 categoriais: 1) agressão a pessoas e a animais; 2) destruição de
propriedade; 3) fraude ou roubo; ou 4) grave violação às regras
estabelecidas. Quanto mais precoce o início da manifestação do
comportamento alterado, maior é a gravidade do quadro, associando-se a
uma maior tendência à persistência do transtorno ao longo da vida.
Os pacientes com TPA parecem inicialmente normais, dóceis e
simpáticos socialmente. No entanto, suas histórias demonstram alterações do
funcionamento em várias áreas da sua vida, evidenciando o perfil de
falsidade, manipulação, insensibilidade e ausência de empatia. Comumente
manipulam, enganam e seduzem pessoas para a obtenção de dinheiro, sexo
ou poder, dificilmente criando vínculos afetivos ou manifestando sentimento
de culpabilidade ou de arrependimento.
São irresponsáveis, impulsivos, agressivos, irritáveis e muito propensos a
cometerem crimes, como destruir propriedades alheias, assediar outras
pessoas, roubar, ter ocupações ilegais, cometer agressões físicas, dirigir
veículos alcoolizados em alta velocidade e adotar atitudes de descaso pela
sua própria segurança e pela de terceiros. Frequentemente, são punidos
judicialmente pelos seus atos, apresentando dificuldade para ressocialização
e para aprendizagem da lição punitiva devido à sua incapacidade de sentir
culpa, abstendo-se de qualquer sofrimento psíquico ou constrangimento. A
sua expectativa de vida tende a ser menor, com tendência à morte violenta
prematura.
O médico psiquiatra ou clínico geral em atendimento psiquiátrico deve
estar atento às características do paciente com TPA, que, durante a
entrevista, pode apresentar-se calmo, confiante e excessivamente opiniático,
dificultando o diagnóstico inicialmente, afinal, são dotados da habilidade de
mentir ou manipular facilmente. Logo, pode ser importante que seja criada
uma situação de tensão durante a entrevista para que o diagnóstico se
evidencie. A sua procura espontânea ao profissional da saúde mental é
incomum; quando ocorre, tais pacientes visam ganhos secundários, como
benefícios assistenciais ou documentos que aliviem ou livrem de alguma
obrigação judicial. Sempre que possível, é importante também solicitar as
sorologias para as infecções sexualmente transmissíveis devido à tendência
de comportamento voltado à promiscuidade.
As análises fatoriais mostraram que os comportamentos agressivos
podem ser divididos em reativos e proativos. A agressão reativa é referente a
comportamentos desencadeados a partir de uma reação à provocação ou
frustração, enquanto a agressão proativa descreve ações que são realizadas
sem acompanhar emoções e que servem principalmente para atingir
objetivos individuais. A agressão reativa está associada à maior atenção
socioemocional, comportamental e à função cerebral frontal prejudicada,
enquanto agressão proativa está mais correlacionada com a delinquência,
com distúrbios perturbadores e com a psicopatia. Acredita-se que pacientes
com TPA são mais propensos a mostrar agressividade proativa, no entanto,
estudos mostraram que quando associado a outros TPs podem ser observadas
tanto agressividade reativa como proativa aumentada.
Entre vários estudos sobre o assunto, alguns sugerem a existência de
subgrupos do TPA, a fim de tornar o perfil diagnóstico do paciente mais
homogêneo pela definição de cada subgrupo, entre os quais são incluídos
TPA associado à psicopatia, ao uso de substâncias e ao transtorno do humor.
Apesar disso, os critérios amplos do DSM-5 ainda se sobrepõem,
considerando o comportamento ilegal e irresponsável como referencial para
a TPA.

8. TRANSTORNO DE PERSONALIDADE
BORDERLINE (TPB)
O TPB é definido pelo comportamento persistente de instabilidade das
relações interpessoais, da autoimagem e de afetos, associado a evidente
impulsividade, surgindo geralmente na vida adulta. É o TP mais
frequentemente atendido nas emergências, pois pode cursar com
comportamentos suicidas ou automutilantes, como observado no caso de
Roberta.
Pacientes com TPB apresentam medo intenso do abandono real ou
imaginado e esforçam-se exaustivamente para que isso seja evitado,
exigindo atenção, afeto e apoio das pessoas com as quais convive, inclusive
por meio de ações impulsivas, como automutilição e comportamentos
suicidas. A ideia de rejeição, perda ou separação pode levar a alterações na
autoimagem, no afeto, na cognição e no comportamento. Para eles, há um
grande desconforto em estar sozinhos e sofrem com a sensação de solidão
(mesmo na companhia de familiares), apresentando raiva inadequada e de
difícil controle diante de uma situação corriqueira; por exemplo, observamos
no caso de Roberta que ela apresentou uma reação desproporcional de raiva
e automutilação quando sua amiga cancelou um compromisso previamente
firmado. Diante disso, percebemos que os relacionamentos interpessoais
tendem a ser tumultuosos e hostis, principalmente pela acentuada
reatividade do humor, podendo resultar em explosões verbais, sarcasmos e
até mesmo agressão física.
Manifestam um padrão de relacionamentos instáveis e intensos,
apresentando uma importante ambivalência afetiva e oscilando rapidamente
entre amor e ódio sem uma justificativa real ou plausível. Esses indivíduos
distorcem seus relacionamentos classificando as pessoas como “totalmente
boa” ou “totalmente má”, sendo que uma mesma pessoa ora pode ser “boa”
ora pode ser “má”, migrando rapidamente da idealização para a
desvalorização. Além da instabilidade nos relacionamentos, pode apresentar
instabilidade persistente da autoimagem ou da percepção de si mesmo,
apresentando labilidade nos planos futuros com mudanças dramáticas de
metas, de valores, de aspirações vocacionais, de carreira profissional, de
identidade sexual, de tipos de amigos etc. Podem queixar-se de sentimento
crônico de vazio e de tédio.
São indivíduos impulsivos, podendo observar comportamentos de gastar
dinheiro ou apostar de forma descontrolada, abuso de substâncias lícitas ou
ilícitas, sexo desprotegido, direção irresponsável.
Esses indivíduos encontram-se no limiar entre a neurose e psicose,
podendo apresentar episódios psicóticos de curta duração e autolimitados,
fugazes e questionáveis no lugar de crises psicóticas totalmente clássicas.
São conhecidos como episódios micropsicóticos, podendo estar associados a
ideações paranoides transitórias ligadas a estresse ou sintomas dissociativos
(despersonalização) intensos. São pacientes imprevisíveis e que podem
apresentar comportamentos autodestrutivos, sendo evidenciados
principalmente em associação aos sintomas dissociativos ou em momentos
precipitados por ameaças de separação ou rejeição.
O TPB pode ser observado ainda na adolescência, sendo possível ser
diagnosticado em menores de 18 anos, desde que apresentem manifestações
clínicas clássicas por pelo menos um ano. Além disso, é comum que
associada ao diagnóstico de TPB ocorra concomitância com outros
transtornos psiquiátricos, como transtornos depressivos, bipolares,
alimentares, por uso de substância, déficit de atenção e hiperatividade, entre
outros. No Quadro 2 são expostos os critérios para TPB de forma reduzida
conforme DSM-5.

Quadro 2 - Diagnóstico para TPB com critérios reduzidos (DSM-5)

Padrão difuso de instabilidade das relações interpessoais, da autoimagem e dos afetos e de


impulsividade acentuada que surge no início da vida adulta e está presente em vários contextos,
conforme indicado por cinco (ou mais) dos seguintes:

1. Esforços desesperados para evitar abandono real ou imaginado.

2. Um padrão de relacionamentos interpessoais instáveis e intensos


(idealização/desrealização).

3. Perturbação da identidade.

4. Impulsividade em pelo menos duas áreas potencialmente autodestrutivas.

5. Recorrência de comportamento, gestos ou ameaças suicidas ou de comportamento


automutilante.

6. Instabilidade afetiva devido a uma acentuada reatividade de humor.

7. Sentimentos crônicos de vazio.

8. Raiva intensa e inapropriada ou dificuldade em controlá-la.


Padrão difuso de instabilidade das relações interpessoais, da autoimagem e dos afetos e de
impulsividade acentuada que surge no início da vida adulta e está presente em vários contextos,
conforme indicado por cinco (ou mais) dos seguintes:

9. Ideação paranoide transitória associada a estresse ou sintomas dissociativos intensos.

Fonte: adaptado de American Psychiatric Association.18

10. TRANSTORNO DE PERSONALIDADE


HISTRIÔNICA (TPH)
Antigamente, na Grécia Antiga, o TPH era conhecido como “histeria”
devido aos comportamentos marcados por dramatização, teatralidade e
expressão exagerada das emoções. São indivíduos que possuem
emocionalidade presumivelmente excessiva e são conhecidos como eternos
“carentes afetivos”, por estarem em constante busca por atenção por meio de
comportamentos exibicionistas, sedutores, manipuladores, entre outros.
Além disso, podem ter aparência extravagante, sexualmente provocativa e
comportamentos sedutores desproporcionais ao contexto em que estão
inseridos, não só nas relações românticas, mas como também de amigáveis,
profissionais e sociais, podendo ocorrer uma erotização de situações banais,
como consulta ao dentista ou ida à academia. Diante disso, dedicam muito
tempo, energia e dinheiro em cuidados com a aparência para impressionar
terceiros. Caso o indivíduo esteja envolvido em uma situação de grande
estresse, conflitos ou contrariedade, pode apresentar sintomas de conversão
motora, por exemplo, ficar paralisado, cego, anestesiado, entre outros.
Quando não obtém êxito em ser o centro das atenções ou em receber elogios,
sente-se desconfortável e desvalorizado, podendo apresentar ataques de raiva
e choro.
Indivíduos com TPH geralmente fazem tudo parecer mais importante do
que realmente é, exagerando seus sentimentos e pensamentos durante seu
discurso, expressando-se de forma impressionista e dramática. No entanto,
seu discurso é pouco estruturado, com poucos detalhes, argumentos vagos e
justificativas falhas. Apesar de apresentarem opiniões fortes, são facilmente
sugestionáveis, mudando de ideia ou adotando novas convicções
rapidamente quando influenciado por terceiros ou por modismo vigente.
Podem apresentar ainda alucinações auditivas e ilusões mnêmicas e
podem ter propensão a atos suicidas ou a encenação desses atos. Além disso,
a busca incessante por atenção pode causar danos a si próprio em diversas
esferas sociais, sendo guiado às situações que manifestam automutilação e
recusa de tratamento visando permanecer doente, gastos financeiros
excessivos na aparência física, entre outros.
Durante a entrevista clínica são cooperativos e entusiasmados, dedicando
esforços para chamar a atenção e agradar o entrevistador, por exemplo, por
meio de múltiplos elogios, do uso de uma linguagem pitoresca, de presentes,
de descrições dramáticas e exageradas de sintomas físicos e psicológicos que
são substituídos por novos sintomas a cada consulta, de choros inconsoláveis
em ocasiões sentimentais de importância menor, ataques de raiva repentinos,
entre outros. A mesma dinâmica que o paciente apresenta na sessão pode ser
observada de forma muito similar na família, no trabalho e nos diversos
outros contextos sociais. Observa-se gesticulações e exclamações durante o
seu discurso. No Quadro 3 são expostos os critérios para TPH de forma
reduzida conforme o DSM-5.

Quadro 3 - Diagnóstico para TPH com critérios reduzidos (DSM-5).

Padrão de emocionalidade e busca de atenção em excesso que surge no início da vida adulta e está
presente em vários contextos, conforme indicado por cinco (ou mais) dos seguintes

1. Desconforto quando não é o centro das atenções.

2. Relações pessoais marcadas por comportamento sexualmente sedutor, inadequado ou


provocativo.

3. Exibe mudanças rápidas e expressão superficial das emoções.

4. Usa reiteradamente a aparência física para atrair a atenção para si.

5. Discurso excessivamente impressionista e carente de detalhes.

6. Comportamento de autodramatização, teatralidade e expressão exagerada das emoções.

7. É sugestionável.
Padrão de emocionalidade e busca de atenção em excesso que surge no início da vida adulta e está
presente em vários contextos, conforme indicado por cinco (ou mais) dos seguintes

8. Considera as relações pessoais mais íntimas do que na realidade são.

Fonte: adaptado de American Psychiatric Association.18

9. TRANSTORNO DE PERSONALIDADE
NARCISISTA (TPN)
O termo “narcisismo” faz referência ao mito grego de Narciso, um jovem
bonito cujos pais, no nascimento dele, procuraram o oráculo Tirésias para
descobrirem o futuro de seu filho e souberam que ele teria uma vida longa
caso não visse o seu próprio rosto. Durante sua vida, despertou o amor de
muitas pessoas, inclusive de ninfas como Eco. No entanto, era arrogante e
indiferente ao amor dos outros. Sentindo-se desprezada, Eco recorreu ao
auxílio de Nêmesis, a deusa da vingança, que atraiu Narciso para um rio. Ao
abaixar-se para beber água, avistou a sua imagem refletida e ficou fascinado.
O jovem morreu afogado ao tentar tocar na imagem que via refletida. A
deusa então o transformou numa flor que leva seu nome.
O conceito de “narcisismo” foi descrito pela primeira vez sob a óptica da
psicanálise por Sigmund Freud como condição em que ocorre o
desenvolvimento da pulsão sexual pelo próprio corpo e o fortalecimento do
seu ego e desejo. Atualmente, de acordo como DSM-5, o TPN é
caracterizado por um padrão difuso de grandiosidade, necessidade de
admiração e falta de empatia que surge no início da vida adulta e está
presente em vários contextos.
Esses indivíduos possuem sentimento de autoimportância grandioso,
acreditando ser pessoas especiais e, por isso, esperam e acham que merecem
tratamento especial e privilegiado. Acreditam ter capacidades superiores à
população geral e supervalorizam suas conquistas em detrimento dos méritos
e do desempenho dos outros, podendo assumir um comportamento arrogante
e pretensioso. Diante disso, creem que só podem ser compreendidos por
outras pessoas especiais ou de condição elevada e apenas com elas devem se
socializar, não podendo ser compreendidos por pessoas comuns, pois não
teriam o conhecimento necessário para entendê-los. Possuem a sensação de
ter mais direitos que os outros devido ao tratamento especial que merecem,
por exemplo: acreditam que não precisam aguardar em filas, devem ser
atendidos de modo preferencial, devem ter acesso a áreas restritas.
Associado a isso, há uma falta de sensibilidade, de empatia e de
entendimento dos desejos e das necessidades dos outros, não enxergando o
quão danoso ou abusivos podem ser seus comentários, ou mesmo exigindo
dedicação das pessoas sem considerar o impacto que isso pode ter em suas
vidas. Apresentam frieza emocional, arrogância, esnobismo e falta de
interesse recíproco.
No entanto, apesar desse posicionamento de autoimportância e de
superioridade, possuem uma autoestima vulnerável e frágil às menores
críticas, exigindo uma admiração excessiva de outras pessoas e buscando
elogios, em geral com sedução. São invejosos e creem que os outros o
invejam; caso achem que isso não ocorreu, ficam extremamente perplexos e
desconfortáveis.
Há estudos que defendem a existência de dois subtipos básicos: TPN
grandioso e o TPN vulnerável. O subtipo grandioso inclui, obviamente,
grandiosidade manifesta, presença de agressão e ousadia. Já o subtipo
vulnerável apresenta hipersensibilidade e atitude defensiva. Essa
classificação ainda não é reconhecida no DSM-5. No Quadro 4 são expostos
os critérios para TPN de forma reduzida conforme DSM-5.

Quadro 4 - Diagnóstico para TPN com critérios reduzidos (DSM-5)

Padrão difuso de grandiosidade (em fantasia ou comportamento), necessidade de admiração e


falta de empatia que surge no início da vida adulta e está presente em vários contextos, conforme
indicado por cinco (ou mais) dos seguintes

1. Tem uma sensação grandiosa da própria importância.

2. É preocupado com fantasias de sucesso ilimitado, poder, brilho, beleza ou amor ideal.

3. Acredita ser “especial”, portanto, compreendido por pessoas em condições elevadas.

4. Demanda admiração excessiva.

5. Apresenta um sentimento de possuir direitos.


Padrão difuso de grandiosidade (em fantasia ou comportamento), necessidade de admiração e
falta de empatia que surge no início da vida adulta e está presente em vários contextos, conforme
indicado por cinco (ou mais) dos seguintes

6. É explorador em relações interpessoais.

7. Carece de empatia.

8. É frequentemente invejoso em relação aos outros ou acredita que os outros o invejam.

9. Demonstra comportamentos ou atitudes arrogantes e insolentes.

Fonte: adaptado de American Psychiatric Association.18

10. ASPECTOS SOBRE EPIDEMIOLOGIA E


ETIOLOGIA
O TPA está entre os TP mais frequentemente diagnosticados com
prevalências, variando de 1% a 4% na população geral e em até 8% em
amostras clínicas, sendo os homens 3 a 5 vezes mais diagnosticados do que
as mulheres. Em amostras de prisão, a prevalência pode chegar até 47%.
Verificou-se que o abuso de substâncias mostra uma correlação
significativa, enquanto educação e inteligência exibem uma correlação
negativa, com maior prevalência de TPA entre aqueles com QI mais baixo.
Embora a etiologia precisa seja desconhecida, assim como todos os outros
TPs, verificou-se que fatores genéticos e ambientais influenciam no
desenvolvimento do TPA. Vários estudos no passado mostraram estimativas
diferentes de hereditariedade, variando de 38% a 69%. Os fatores ambientais
que se correlacionam com o desenvolvimento do TPA incluem experiências
adversas na infância (abuso físico e sexual, além de negligência), juntamente
com a psicopatologia infantil (TC e TDAH). As interações de genes
específicos com o ambiente também têm sido uma área de estudo, com
evidências de variação no gene do receptor da ocitocina (OXTR),
contribuindo para as amplas faixas de comportamento.
O TPB é o mais prevalente do cluster B e acredita-se que seja também o
mais prevalente de todos os TPs, constituindo aproximadamente 15% a 28%
de todos os pacientes em ambulatórios ou em hospitais psiquiátricos, 6% das
consultas na atenção primária e 10% a 15% das emergências psiquiátricas,
sendo o TP mais atendido na emergência. Ocorre predominantemente no
sexo feminino, aproximadamente em 75% dos casos. Apesar de a etiologia
não ser bem estabelecida, estudos neurobiológicos defendem que ocorre uma
interação de genes sob estímulos ambientais que afetam as vias hormonais e
os neuropeptídios do cérebro, como maus-tratos na infância, abuso físico,
abuso sexual, violência doméstica e negligência parenteral.
Não existem dados recentes que descrevam com detalhes o TPH e o
TPN. Alguns estudos defendem que no TPH é mais comum no sexo
feminino, outros já acreditam que seja similar as taxas entres ambos os
sexos, não havendo consenso na literatura. A etiologia não é bem definida,
mas suspeita-se que deva ocorrer uma influência ambiental, principalmente
em indivíduos que foram vítimas de abuso sexual na infância, assumindo
inconscientemente um comportamento de busca por atenção externa para
suprir o sentimento de descaso e abandono do ato abusivo.
Já o TPN observa-se uma maior prevalência no sexo masculino (50% a
75%). A etiologia do TPN é multifacetada. Alguns estudos sugeriram uma
predisposição genética associada às influências ambientais, como agressão,
tolerância reduzida à angústia, alterações no afeto, sentimento de rejeição na
infância, e ego frágil durante a primeira infância. Elogios excessivos,
incluindo a crença de que uma criança pode ter habilidades extraordinárias,
também podem levar ao TPN.

11. DIAGNÓSTICO DIFERENCIAL


• Transtorno por uso de substâncias: é bastante comum a associação
dos TPs com os transtornos por uso de substância. Dessa forma,
quando se encontram em associação, só pode ser feito o diagnóstico
de TP se o padrão de funcionamento mal adaptado estiver presente na
infância e continuado na vida adulta. Caso não tenha certeza disso, o
TP não pode ser diagnosticado.
• Esquizofrenia e Transtorno Bipolar: caso o comportamento mal-
adaptado só seja observado durante o curso dessas patologias, não
pode ser feito o diagnóstico de TP. Para que seja diagnosticado um
TP deve ser considerada a persistência dessa “maneira de ser” em
múltiplos ambientes e contextos, e deve ter longa duração
(geralmente, início na adolescência ou quando adulto jovem). No
transtorno bipolar tem-se episódios de mania ou/e hipomania em que
a elação do eu e autoestima grandiosa pode assemelhar com o TPN,
porém, devemos considerar a caraterística episódica desse transtorno
de humor, além dos outros comemorativos presentes nos quadros
maníacos e não no TPN, como logorreia, aumento de energia,
diminuição da necessidade do sono e humor elevado.
• Transtornos depressivos: rotineiramente, os sintomas de tristeza
crônica e comportamento suicida do paciente borderline são
confundidos com o quadro depressivo. Deve atentar para o caráter
mais reativo do TPB, além da ausência de outros sintomas, como
hipobulia, anedonia e hiporexia, mais característicos da depressão. É
comum ocorrer em associação com os TPs, e quando as
características são evidentes de transtorno depressivo combinado ao
aumento dos prejuízos pessoal, profissional e social, os dois podem
ser diagnosticados.

• Comportamento criminoso não associado a um transtorno de


personalidade (CCNATP): é importante que ocorra o diagnóstico
diferencial com o TPA, lembrando que no CCNATP apresenta um
comportamento ilegal que visa ganhos e interesses individuais sem
apresentar traços de personalidade inflexíveis, persistentes e mal-
adaptativos como no TPA. A investigação na entrevista do
funcionamento pessoal durante a infância, adolescência ou início da
vida adulta podem auxiliar na realização do diagnóstico diferencial.
• Problemas de identidade: deve ser um diagnóstico diferencial do
TPB. Lembre-se que problemas de identidade podem ocorrer em
alguma fase do desenvolvimento, por exemplo, adolescência, mas
não configura um transtorno mental.

11.1. E aí? O que fazer?


A psicoterapia é utilizada como padrão-ouro para os TPs, e os fármacos
ficam reservados para o controle sintomático. A psicoterapia tem se
mostrado bastante eficaz no tratamento dos TPs, visto que estes são um
desvio do caráter do indivíduo, logo essa ferramenta se insere como um
modelo capaz de alterar os padrões de funcionamento psíquico, visando a
uma melhor adaptação do temperamento do indivíduo ao meio. Pode-se
utilizar diversas modalidades, como terapia interpessoal, terapia cognitiva e
a terapia cognitivo-comportamental.
Não existem guidelines, fluxogramas, algoritmos ou diretrizes que
mostrem de forma simplificada como conduzir os TPs, no entanto, o
primeiro passo sempre é manter uma boa relação médico-paciente. É de
suma importância uma equipe multidisciplinar e o acompanhamento
especializado com psiquiatra de forma contínua.
O TPA há muito tempo é reconhecido como uma das mais difíceis
psicopatologias para o manejo, visto que os indivíduos raramente procuram
ajuda, e quando em tratamento, os terapeutas relatam dificuldade em
estabelecer uma aliança e baixa compreensão e adesão ao tratamento. Foi
visto que a Terapia Cognitivo-Comportamental (TCC) mostrou uma melhora
discreta na inserção social e na diminuição das agressões físicas, mas
nenhuma melhora na raiva ou agressão verbal quando comparado a
indivíduos recebendo tratamento usual.
No TPB, foram destacadas 4 abordagens terapêuticas que diminuem os
índices de suicídios, automutilação, ansiedade e procura indiscriminada por
hospitais e por emergências: Terapia Comportamental Dialética (DBT),
Tratamento Baseado em Mentalização (MBT), Psicoterapia Focada na
Transferência (TFP) e Bom Gerenciamento Psiquiátrico (GPM).
No TPH, a psicoterapia de suporte é a modalidade recomendada de
tratamento, pois essa abordagem é considerada encorajadora, tranquilizadora
e não ameaçadora, visando reduzir o sofrimento emocional, melhorar a
autoestima e aprimorar as habilidades de enfrentamento do paciente, tudo
por meio de uma escuta atenta e compreensiva. A psicoterapia
psicodinâmica (conhecida como terapia orientada para o insight) também
provou ser uma abordagem bem-sucedida. A terapia de grupo e a terapia
familiar geralmente não são modalidades de primeira linha recomendadas no
tratamento do TPH.
Quanto ao TPN, evidenciou-se que a terapia de longo prazo e a
exploração da relação entre o terapeuta e o paciente tem mostrado melhores
resultados, com destaque para a abordagem TFP, reduzindo
significativamente a procura por emergência e a incidência de lesões
autoprovocadas.
A farmacoterapia é utilizada como coadjuvante, tendo como principal
objetivo o controle de sintomas nucleares e o tratamento de comorbidades.
As opções farmacológicas, como antipsicóticos e estabilizadores de humor,
podem auxiliar na regulação emocional, no controle de raiva, na
impulsividade e em sintomas psicóticos transitórios, além de antidepressivos
para o tratamento de sintomas depressivos e ansiosos. Ressaltando que a
prescrição de benzodiazepínicos deve ser evitada, pois é bastante recorrente
a associação dos TPs com o transtorno de abuso de substâncias. Além disso,
deve-se ter muita cautela na prescrição de antidepressivos tricíclicos e lítio
devido ao potencial risco de toxicidade. Em pacientes TPA, TPB, TPH e
TPN são evidentes os reduzidos números de estudos sobre a farmacoterapia
e ausência de consenso na sua utilização, apesar de comumente serem
prescritos psicofármacos na tentativa de controle de sintomas depressivos e
outros sintomas, como raiva, ansiedade e mudanças de humor.

11.2. Redescobrindo o caso (Pontos-Chave)


1 Relacionamentos intensos

2 Medo do abandono real ou imaginado

3 Raiva desproporcional

4 Sentimento de “vazio”

5 Automutilação não suicida

6 Reatividade do humor

7 Instabilidade

8 Negligência parenteral

9 Abuso sexual

Roberta apresenta critérios compatíveis com Transtorno de Personalidade


Borderline cursando com comportamentos suicidas e automutilantes
recorrentes. Deve-se investigar há quanto tempo vem apresentando e se
tiveram início na infância esses comportamentos persistentes de
instabilidade das relações interpessoais, da autoimagem e de afetos. Além
disso, deve-se fazer o diagnóstico diferencial com o Transtorno por Uso de
Substâncias, Transtorno Depressivo e Bipolar, entre outros. Perguntar de
forma ativa sobre ideação suicida.
No entanto, apesar da confirmação ou não temporal do diagnóstico,
devemos iniciar a abordagem terapêutica de Roberta. Lembre-se que a
psicoterapia é o principal pilar do tratamento, sendo recomendadas as
abordagens a seguir, que são as que têm mostrado diminuir a incidência de
automutilação e de comportamento suicida: DBT, MBT, TFP ou GPM.

Exemplo de conduta para Roberta


Encaminhamento para psicoterapia.
Referências
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2020]. In: StatPearls [Internet]. Ilha do Tesouro (FL): StatPearls Publishing; 2020 Jan [acesso
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antissocial. Rev. Psiquiatr. Rio Gd. Sul [Internet]. 2004 Apr [cited 2020 Aug 23]; 26(1): 78-85 .
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11. Neumann CS, Hare RD. Psychopathic traits in a large community sample: links to violence,
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18. American Psychiatric Association. Manual diagnóstico e estatístico dos transtornos mentais –
DSM-5. 5. ed. Porto Alegre: Artmed; 2014.

SIGLAS

• TP Transtorno de Personalidade
• DSM-5 Manual Diagnóstico e Estatísticos do Transtornos Mentais
• TPA Transtorno de Personalidade Antissocial
• TC Transtorno de Conduta
• TPB Transtorno de personalidade Borderline
• TPH Transtorno de Personalidade Histriônica
• TPN Transtorno de Personalidade Narcisista
• CCNATP Comportamento criminoso não associado a um transtorno
de personalidade
1. CASO CLÍNICO
Diana, 20 anos, solteira, vem à consulta acompanhada de sua irmã, que
descreve a paciente como uma pessoa com aparente medo em iniciar
conversas, evitação de ambientes não familiares, faltas na faculdade quando
há necessidade de expor sua opinião ou apresentar de forma oral algum
trabalho e recusa de convites para festas comemorativas de suas colegas,
apesar de demonstrar interesse. A acompanhante relata também que há sete
meses a irmã foi contratada para trabalhar na loja de uma tia, permanecendo
por apenas 4 meses, pois, segundo a paciente, tinha a sensação que era
incapaz para as atividades atribuídas e a exposição contínua a desconhecidos
geravam grande sofrimento pessoal. Diana admite ser muito tímida, ter
poucas habilidades em relações interpessoais e ter preocupações
constantemente com críticas, julgamentos e rejeições.

Exame mental: paciente permanece durante a consulta calada e de


braços cruzados, respondendo sempre com timidez e voz trêmula às
perguntas feitas pelo médico. Durante consulta cita frases como: “não
quero ser notada nos ambientes”, “posso não ser capaz de lidar e acabar
me machucando” e “não tenho como contribuir, pois sou sem graça”

2. DISCUTINDO O DIAGNÓSTICO
A personalidade é um conjunto de características individuais que envolve as
emoções, os pensamentos, as percepções e os comportamentos. Essas
características são constantes e estão associadas a uma variedade importante
de indicadores nos níveis individual, interpessoal e social, além de interferir
na saúde física e psicológica, na qualidade das relações com outras pessoas e
no desempenho profissional. Quando as características individuais são
inflexíveis, difusas, inesperadas pela sociedade e gera perda e sofrimento
pessoal e social, isso caracteriza um Transtorno de Personalidade (TP).
Indivíduos com esse diagnóstico apresentam o início das características na
adolescência ou no início da fase adulta, permanecendo estável ao longo do
tempo e gerando sofrimentos não só ao paciente, mas também com quem
mantém contato com ele.
O grupo C dos TPs, foco deste capítulo, engloba os Transtornos de
Personalidade Evitativa, Dependente e Obsessivo-Compulsiva, os quais têm
em comum características de ansiedade, cautela e medo.

3. TRANSTORNO DE PERSONALIDADE
EVITATIVA/ESQUIVA (TPE)
O Transtorno de Personalidade Evitativa (TPE), também conhecido como
Transtorno de Personalidade Esquiva, inclui os indivíduos que possuem
considerável inibição social e hipersensibilidade excessiva às críticas,
que geram prejuízos ao funcionamento social e profissional. Segundo o
DSM-5, o diagnóstico do TPE deve seguir os critérios a seguir.

Quadro 1 - Diagnóstico TPE com critérios reduzidos (DSM-5)

Padrão difuso de inibição social, sentimentos de inadequação e hipersensibilidade a avaliação


negativa, indicado por quatro (ou mais) dos seguintes:

1. Evita atividades profissionais que envolvam contato interpessoal.

2. Não se dispõe a se envolver com pessoas, exceto em certeza de boa recepção.

3. Reservado em relacionamentos íntimos.

4. Preocupa-se com críticas ou rejeição em situações sociais.

5. Limita-se em situações interpessoais novas.

6. Vê a si mesmo como socialmente incapaz, sem atrativos pessoais ou inferior aos outros.
Padrão difuso de inibição social, sentimentos de inadequação e hipersensibilidade a avaliação
negativa, indicado por quatro (ou mais) dos seguintes:

7. Resiste em assumir riscos pessoais ou envolver-se em novas atividades.

Fonte: adaptado de American Psychiatric Association.17

O paciente com Transtorno de Personalidade Evitativa é um indivíduo


que evita o contato interpessoal ou situações que o coloque em evidência,
como atividades em grupos, seminários etc. Essa esquiva é fundamentada no
medo de ser criticado, rejeitado e/ou julgado; sendo assim, apesar do
interesse nas relações sociais, há uma recusa constante a ambientes não
controlados e desconhecidos. Esses pacientes apresentam dificuldade de
fazer novas amizades e, quando fazem, é de restrita intimidade interpessoal,
necessitando de muitos reasseguramentos para certificar-se que não
receberão críticas ou não serão desaprovados. O indivíduo com TPE é
reservado e com muita dificuldade de conversar sobre si mesmo. É
geralmente descrito como “envergonhado”, “isolado”, “tímido” e “solitário”,
e que essas características fazem parte desde adolescência e que são
constantes e inflexíveis.
O médico observará, ao avaliar o paciente com TPE, um predomínio de
timidez e comportamento vigilante dos movimentos e das expressões dos
outros. Além disso, aparenta uma baixa autoestima, descreve-se como
incompetente, desagradável, incapaz e sensível a críticas. Em relação ao
relacionamento interpessoal, é comum o isolamento social, que consiste na
fuga de situações que julgam ser humilhantes.

8. TRANSTORNO DE PERSONALIDADE
DEPENDENTE (TPD)
O Transtorno de Personalidade Dependente (TPD) apresenta como
característica fundamental a dependência de outras pessoas. Esse
transtorno, assim como os outros, tem origem no início da vida adulta,
persistindo ao longo do tempo e em vários contextos. As características do
TPD, conforme o DSM-5, são descritas no quadro a seguir.
Quadro 2 - Diagnóstico TPD com critérios reduzidos (DSM-5)

Padrão de necessidade difusa e excessiva de ser cuidado que leva a comportamento de submissão
e apego, indicado por cinco (ou mais) dos seguintes:

1. Dificuldades em tomar decisões cotidianas sem reasseguramento dos outros.

2. Precisa que outros assumam responsabilidade em maior parte das áreas da vida.

3. Tem dificuldades em manifestar desacordo com outros.

4. Apresenta dificuldade em ter iniciativa em projetos.

5. Vai a extremos para obter carinho e apoio de outros.

6. Sente-se desconfortável quando sozinho.

7. Tem urgência em iniciar um novo relacionamento após término do anterior.

8. Preocupações irreais com medos de ser abandonado à própria sorte.

Fonte: adaptado de American Psychiatric Association.17

O paciente com TPD tem a necessidade constante de ser cuidado por


outras pessoas, necessidade essa que é alimentada por uma crença de
incapacidade funcional autônoma. Em complemento, designa para outra
pessoa o comando de decisões simples e até mesmo de impacto importante
na sua vida (como a escolha de uma faculdade ou emprego). Dificilmente
esse paciente terá a iniciativa de um projeto sem o devido amparo.
O indivíduo com TPD evita sempre discordar e fazer exigências aos seus
“apoiadores”, por receio de se mostrar mais competente que eles e por medo
de afastá-los. Assim, tem a tendência a aceitar a opinião dos outros de forma
passiva, mesmo que lhe ocasione uma situação desagradável. Diante do
medo de perder seu “apoio”, pacientes com TPD podem acabar aceitando
situações até mesmo de abusos (físico, verbal ou sexual) e de sacrifícios
exagerados, por medo de ficar sem o apoio da pessoa da qual é
“dependente”, mesmo quando não há nenhuma razão para isso.
Quando esse paciente se encontra só, ele se sente desamparado e com
medo infundado de não saber se cuidar. Sempre que rompe uma relação, seja
amorosa ou de amizade, procura urgentemente outra para substituir, pois
teme a solidão e ficar sem apoio e cuidado.

9. TRANSTORNO DE PERSONALIDADE
OBSESSIVO-COMPULSIVA (TPOC)
O portador de Transtorno de Personalidade Obsessivo-Compulsiva (TPOC)
tem como característica fundamental o perfeccionismo e a ênfase
exagerada na ordem, o que pode atrapalhar o cumprimento de tarefas,
devido à atenção excessiva a pequenos detalhes. Segundo o DSM-5, o
diagnóstico do TPOC deve seguir os critérios a seguir.

Quadro 3 - Diagnóstico TPOC com critérios reduzidos (DSM-5)

Padrão difuso de preocupação com ordem, perfeccionismo e controle mental e interpessoal à


custa de flexibilidade, abertura e eficiência, indicado por quatro (ou mais) dos seguintes:

1. É tão preocupado com detalhes, regras, listas, ordem, organização ou horários, que o
objetivo principal da atividade fica perdido.

2. Demonstra perfeccionismo que interfere na conclusão de tarefas.

3. É excessivamente dedicado ao trabalho e à produtividade em detrimento de atividades de


lazer e amizades.

4. É demasiadamente meticuloso e rígido quanto a assuntos de moralidade, ética ou valores.


Padrão difuso de preocupação com ordem, perfeccionismo e controle mental e interpessoal à
custa de flexibilidade, abertura e eficiência, indicado por quatro (ou mais) dos seguintes:

5. É incapaz de descartar objetos usados ou sem valor mesmo quando não têm valor
sentimental.

6. Reluta em delegar tarefas ou trabalhar com outras pessoas a menos que elas se submetam à
sua forma exata de fazer as coisas.

7. Adota um estilo miserável de gastos em relação a si e a outros.

8. Exibe rigidez e teimosia.

Fonte: adaptado de American Psychiatric Association.17

O paciente com Transtorno de Personalidade Obsessivo-Compulsiva é


inflexível, não aceitando realizar tarefas diferentes do seu modo. É comum a
vivência de atenção cuidadosa a regras, procedimentos, cronogramas ou
forma, a ponto de chegar a prejudicar o resultado final de uma atividade.
Frequentemente, decide realizar atividades solitariamente por acreditar que
os outros vão fazê-las de maneira errada ou não farão da forma que ele faria.
Por vezes, quando participam de trabalhos em grupo, exigem ou tentam
impor sua maneira de fazer. Dessa forma, sua liderança é marcada por
instruções meticulosas, frieza nas interações sociais, negação de assistência,
desconsideração de caminhos alternativos proposto por outros e verificação
do seguimento das suas instruções.
O paciente com TPOC preza sempre pelo perfeccionismo, podendo
causar disfunção e sofrimento significativo a esse indivíduo e outros do seu
convívio social. A busca da perfeição leva à não conclusão de seus projetos
em prazos anteriormente acordados e a negligência do lazer, da família e das
amizades sufocam outros domínios de sua vida, ocasionando, em alguns
casos, o colapso de múltiplas áreas simultaneamente. Quando dedica tempo
para atividades prazerosas, sente-se bastante desconfortável, a não ser que
tenha conseguido algum tipo de trabalho ou possa realizar alguma atividade
formalmente organizada.
Quando se trata de normas sociais (moralidade, ética ou outros valores),
é excessivamente rígido e inflexível, exige ainda que os outros também
sejam semelhantes a ele. Outra característica do TPOC é conter objetos
usados ou sem valor sentimental, por medo de precisar usar algum dia e não
ter. É, ainda, miserável e mesquinho e tem um padrão de vida inferior ao que
pode sustentar, acreditando que os gastos devam ser rigidamente controlados
para uma possível necessidade futura.

9. ASPECTO SOBRE EPIDEMIOLOGIA E


ETIOLOGIA
Segundo dados do National Epidemiologic Survey on Alcohol and Related
Conditions de 2001-2002, o Transtorno de Personalidade Obsessivo-
Compulsiva é um dos mais prevalentes na população geral, com prevalência
entre 2,1% e 7,9%. Esse distúrbio é mais prevalente em pessoas com maior
nível de educação e de renda mais alta. Já o Transtorno de Personalidade
Evitativa apresenta uma prevalência de 2,4%, sendo comum em pessoas com
fobia. O Transtorno de Personalidade Dependente é o menos prevalente
entre os distúrbios do cluster C, correspondendo a 0,6%, sendo mais comum
em vítimas de abuso conjugal.
Em relação à etiologia dos Transtornos de Personalidade, ainda não é
compreendida totalmente, porém, é provável que haja combinação de
múltiplos fatores genéticos e ambientais. Apesar da importância legítima do
fator genético, o ambiente tem relevante importância na manifestação de um
TP, como, por exemplo, experiências traumáticas e negativas da infância têm
associação à manifestação de características de TP na vida adulta.

10. DIAGNÓSTICO DIFERENCIAL


Alguns transtornos de personalidade apresentam semelhanças com outros
transtornos mentais, podendo levar a um diagnóstico errado. Há a
possibilidade de pacientes com outros diagnósticos psiquiátricos
comórbidos. A seguir, serão elucidados diagnósticos diferenciais dos
transtornos de personalidade do grupo C.
• Transtorno de personalidade borderline: esse TP se assemelha ao
transtorno de personalidade dependente, por ambos apresentarem
como característica medo do abandono. Contudo, o borderline reage
ao abandono com sentimentos de vazio emocional, raiva e
exigências. Já o portador de TPD reage ao abandono com calma e
submissão, buscando urgentemente um relacionamento substituto que
dê atenção e apoio.
• Transtornos de ansiedade: a agorafobia, por se caracterizar pela
ansiedade e pelo medo intenso presentes em situações que podem ser
de difícil escape, pode ser confundida com o TPE. Para
diferenciação, lembre-se que no paciente com personalidade evitativa
as características são constantes. Já na agorafobia, o medo ocorre em
determinadas situações, especialmente quando o paciente percebe que
a fuga é difícil. A ansiedade (fobia) social tem sintomas ainda mais
similares com o TPE. Ambos cursam com ansiedade e medo
relacionado ao julgamento dos outros ou desempenho, contudo, o
TPE tende a ter sintomas constantes, de longa duração, geralmente
iniciados ainda na adolescência. É a personalidade (o “jeito de ser”),
enquanto a fobia social tem caráter mais episódico.
• Transtorno de acumulação: pode ser confundido com o TPOC,
devido ao acúmulo de objetos. Entretanto, o transtorno de
acumulação deve ser cogitado quando há acúmulo extremo com
consequente obstrução ou congestionamento de áreas de uso a ponto
de esses ambientes perderem sua funcionalidade. Caso isso ocorro no
TPOC, o diagnóstico comórbido deve ser dado.
• Transtorno de Personalidade Narcisista (TPN): os indivíduos com
esse TP podem possuir como características o perfeccionismo, assim
como o indivíduo com TPOC. O que difere um do outro é que o
paciente com TPN acredita que são perfeitos, diferente TPOC, os
quais costumam ser autocríticos e não se acham perfeitos, estão
sempre buscando algo de errado no que fazem.

10.1. E aí? O que fazer?


Para que ocorra um tratamento de sucesso é fundamental ter uma boa relação
médico-paciente, configurar um ambiente que traga a sensação de segurança
para que o paciente possa expor suas questões e tenha acolhidas as suas
queixas.
A psicoterapia é considerada o tratamento de primeira linha para TP. Em
relação ao tratamento medicamentoso, não há medicamentos específicos
recomendados, sendo indicados psicofármacos para controle de sintomas-
alvo e tratamento de comorbidades presentes.
Os portadores de transtornos de personalidade apresentam um insight
limitado, ou seja, as características prejudiciais podem ser incorporadas ao
“jeito de ser”, e por isso não há iniciativa para procurarem ajuda médica com
tratamento especializado. Diante disso, um passo essencial no tratamento de
TP é começar de maneira não invasiva, fazendo perguntas amplas e que não
criarão um ambiente hostil e desconfortável ao paciente.
É relevante que o médico investigue os relacionamentos interpessoais,
seu funcionamento no ambiente de trabalho, seu padrão de formação de
vínculo, resposta afetiva e controle de impulsos. Para diagnosticar os
transtornos de personalidade é necessário avaliar criteriosamente o paciente,
sendo estratégia válida a coleta de informações com acompanhantes, pois
poderão fornecer relatos das características a longo prazo. É fundamental
saber qual faixa etária o paciente iniciou essas características, pois, como já
mencionado anteriormente, os TPs se iniciam na adolescência ou início da
fase adulta.
A psicoterapia, como descrito anteriormente, é a base do tratamento dos
TPs, cuja eficácia fundamenta-se em uma boa aliança terapêutica entre o
médico e o paciente. Há várias modalidades da psicoterapia: psicanálise,
terapia interpessoal, terapia cognitiva e a terapia cognitivo-comportamental.
A abordagem psicoterápica escolhida deve ser aquela que garanta um maior
envolvimento e aborde com sucesso as dificuldades do paciente.
Esse tratamento deve ser realizado por uma equipe especializada e
multiprofissional, incluindo psiquiatra, psicoterapeuta e terapeuta de grupo,
além de inserir a família como rede de apoio integrada. É importante, ainda,
um trabalho conjunto do psiquiatra com o psicólogo, realizando troca de
informações e reduzindo a manipulação e a autossabotagem feita pelo
paciente.
Geralmente, os indivíduos com TP apresentam uma resistência muito
grande à mudança, tornando o tratamento desafiador, mesmo quando o seu
comportamento inadequado ocasiona experiências de vida punitivas.
O envolvimento dos pacientes com TPE ao tratamento é difícil devido ao
medo excessivo de serem criticados e rejeitados, apresentando uma
resistência a criar e manter relacionamentos interpessoais. A psicoterapia
deve ser capaz de auxiliar no aprimoramento das habilidades sociais,
assegurando a esses pacientes seus laços de confiança e garantindo apoio nos
eventos interpessoais. As abordagens como a terapia cognitivo-
comportamental e a de grupo podem auxiliar e fortalecer o desenvolvimento
de estratégias e habilidades que reduzam os prejuízos da inibição social.
Pode-se fazer também uso de medicamentos, como inibidores da recaptação
de serotonina, quando o paciente apresentar comorbidades com transtornos
ansiosos.
Os pacientes com TPD, assim como a maioria dos portadores de TP, não
apresentam insight, assim, procuram ajuda médica apenas quando são
levados por familiares, frequentemente com queixas de sintomas depressivos
e ansiosos que estão presentes em consequência do comportamento
excessivo de dependência. A terapia de grupo é uma das formas de
psicoterapia realizada para esses pacientes, pois ela explora os medos dos
pacientes, aumenta o funcionamento de independência, aumenta a
autoestima e as habilidades sociais.
Técnicas cognitivas também podem auxiliar no manejo desse TP, pois
diminuem o excessivo controle e a mania de perfeição. Embora no início
haja resistência à terapia, principalmente a de grupo, quando adere ao
tratamento o paciente terá melhora do insight, favorecendo a aceitação em
experenciar novos afetos.

10.2. Redescobrindo o caso (Pontos-Chave)


1 Não se dispõe a se envolver com pessoas.

2 Reluta em se envolver em novas atividades, pois podem ser constrangedoras.

3 Evita atividades de contato interpessoal.

4 Vê a si mesmo como socialmente incapaz.

5 Preocupa-se com críticas ou rejeição em situações sociais.

Inicialmente, devem ser excluídas modificações comportamentais


induzidas por uso de substâncias, condição clínica ou episódio agudo de
outro transtorno. O padrão de funcionamento deve ser duradouro, rígido,
ocorrer em múltiplos ambientes e ter prejuízos sociais, acadêmicos e
profissionais. Vale destacar que são necessários prejuízos em duas das quatro
áreas: cognição, afetividade, funcionamento interpessoal e controle de
impulsos.
No caso é observado que o ponto central do transtorno é o padrão de
inibição social, sentimentos de inadequação e hipersensibilidade e avaliação
negativa. São observados, também, outros comportamentos satélites, como:
não se dispõe a se envolver com pessoas; reluta em se envolver em novas
atividades, pois podem ser constrangedoras; vê a si mesmo como
socialmente incapaz; evita atividades de contato interpessoal; preocupa-se
com críticas ou rejeição em situações sociais. Tais características reforçam o
diagnóstico de Transtorno de Personalidade Esquiva, sendo a principal
conduta o encaminhamento para psicoterapia.

Exemplo de conduta para Diana


Encaminhamento para psicoterapia

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DSM-5. 5. ed. Porto Alegre: Artmed; 2014.

SIGLAS

• TP Transtorno de Personalidade
• TPE Transtorno de Personalidade Evitativa
• TPD Transtorno de Personalidade Dependente
• TPOC Transtorno de Personalidade Obsessivo-Compulsiva
• CID-10 Código Internacional de Doença
• DSM-5 Manual de Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais
A junção dos radicais “psico” e “motor” dá noção de voluntariedade e
ligação entre o desejo e a execução do ato motor. O entendimento da
construção do ato volitivo, como descrito no capítulo “exame mental”, é de
suma importância para a compreensão dos capítulos seguintes. O ato
volitivo é constituído de 4 etapas: a intenção, onde há o predomínio do
interesse e desejo; o segundo passo é a deliberação, que julga os prós e
contras do ato para então seguir para a decisão e, finalmente, a execução.
Essas fases são seguidas em todos os atos motores voluntários: desde uma
caminhada no parque até uma jogada de xadrez.
As alterações que pervertem a sequência habitual do ato volitivo são
inúmeras e presentes na imensa maioria dos transtornos mentais.
Estereotipias, tiques, impulsos, compulsões são alguns exemplos dessas
alterações (mais bem esmiuçadas no capítulo “exame mental”). Nessa
seção, as condições apresentadas têm nas alterações psicomotoras os seus
sintomas-chave: a agitação psicomotora, síndrome ocasionada por
condições psiquiátricas e médicas gerais; a catatonia, outra síndrome de
apresentação com sintomas psicomotores graves; e os transtornos do
movimento induzidos por medicamentos.
1. CASO CLÍNICO
Jonatas, 32 anos, ensino fundamental incompleto, evangélico, vem ao
pronto-atendimento trazido por familiares. Estes contam que paciente vem
há pelo menos um mês apresentando discurso religioso (“orações fervorosas,
pregações incessantes em casa e na rua, grita, bate o pé no chão, sempre
falando que é o escolhido de Deus para salvar o mundo”). Sono reduzido e
insônia total nos últimos 3 dias. Anda por vários quilômetros, dia e noite,
pregando na rua. Quando os filhos tentaram intervir no comportamento, o
paciente tornou-se agressivo, motivo pelo qual o levaram para atendimento
médico de urgência.

Exame mental: atitude hostil, loquaz, agitado, ameaçador com a


equipe, humor disfórico e sem insight.

2. DISCUTINDO O DIAGNÓSTICO
A agitação psicomotora (APM) é definida como um estado em que a
atividade motora se encontra excessivamente aumentada, com movimentos
repetitivos, inquietação e sensação de tensão interna. Além disso, a APM
representa um risco adicional ao paciente, a acompanhantes e à equipe
médica, pois pode vir acompanhada de comportamento agressivo verbal e
físico, destruição dirigida ao ambiente, na qual o paciente impulsivamente
quebra qualquer objeto ao seu redor e apresenta autolesão com risco suicida.
A psiquiatria de modelo manicomial utilizou-se de diversas técnicas e
instrumentos restritivos para conter pacientes agitados, como, por exemplo:
lençol de contenção, camisa de força, casulo, cubículo/cela, correntes de
ferro, método de “gravata” e eletroconvulsoterapia (ECT) punitiva. Há
relatos da realização do “choque insulínico”, em que eram aplicadas altas
doses subcutâneas de insulina repetidamente até causar coma, seguido da
administração endovenosa de glicose para que o paciente acordasse. Outra
modalidade farmacológica utilizada era o “choque cardiozólico”, no qual
ocorria a indução de convulsões com aplicação endovenosa de 1 ml de
cardiozol em pacientes muito agitados.
3. ASPECTOS SOBRE EPIDEMIOLOGIA E
ETIOLOGIA
A APM é uma condição muito frequente nos serviços de emergência,
responsável por até 1,2 milhão de atendimentos nos Estados Unidos e
aproximadamente 24% dos atendimentos em serviços de emergência
psiquiátricas no Brasil. Entretanto, os dados sobre a epidemiologia da APM
são escassos, com prevalência estimada entre 4,3% e 10,0% nos serviços de
emergência psiquiátrica.
Por se tratar de diagnóstico sindrômico que tem como base
fisiopatológica as disfunções nos sistemas de neurotransmissão
dopaminérgico, serotonérgico, noradrenérgico e gabaérgico, é importante
pensar nos dois principais eixos etiológicos da APM – os quadros orgânicos
e psiquiátricos. Assim, este capítulo visa auxiliar o médico generalista nessa
competência.
A APM pode ser secundária a causas orgânicas de foco neurológico,
toxicológico, metabólico, endócrino, infeccioso ou reumatológico e que
apresentam alto potencial de morbimortalidade. Portanto, devem ser
rapidamente identificadas, investigadas e manejadas no atendimento de
emergência. A abordagem psiquiátrica da APM considera essa alteração da
psicomotricidade comum a diversos quadros, como transtornos do
neurodesenvolvimento, neurocognitivos, psicóticos, ansiosos, de humor, de
personalidade, dissociativos, somáticos, disruptivo, do controle de impulsos
e da conduta e nos relacionados a substâncias e transtornos aditivos.

4. DIAGNÓSTICO DIFERENCIAL
A apresentação típica do quadro é um paciente geralmente trazido por
terceiros, devido à alteração súbita do comportamento basal, com
inquietação, agitação e agressividade. A APM é um diagnóstico sindrômico
e a investigação de diagnósticos diferenciais é mandatória. O raciocínio
clínico dirigido às possíveis causas é fundamental para guiar a investigação
diagnóstica e manejo adequados. Várias condições orgânicas e psiquiátricas
podem estar envolvidas, conforme ilustrado no Quadro 1.
Identificar alterações sugestivas de doenças orgânicas de base, como
mudanças comportamentais agudas, idade ≥ 45 anos, sinais vitais alterados,
alteração do nível de consciência, história de trauma craniano, comorbidades
clínicas, cefaleia persistente, convulsões, alucinações visuais, dentre outros.
Excluídas as causas orgânicas, prossegue-se com avaliação do estado
mental do paciente e abordagem psiquiátrica sindrômica, sendo os principais
diagnósticos: síndrome catatônica, maníaca, ansiosa, psicótica, demencial e
relacionada ao uso e ao abuso de substâncias psicoativas. A apresentação do
quadro pode trazer informações mais características de determinada
síndrome. Por exemplo, a APM na síndrome psicótica ou maníaca é
caracterizada por alteração do pensamento e percepção da realidade,
enquanto nos transtornos de personalidade, a APM vem associada à baixa
tolerância a frustração ou impulsividade sem alterações do juízo crítico da
realidade.

Quadro 1 - Diagnóstico diferencial da APM

Diagnósticos diferenciais

Causas AVE, epilepsia, TCE, tumores cerebrais,


orgânicas Neurológicas delirium, demências
e distúrbios do movimento.

Uso de substâncias, efeito colateral de


Toxicológicas medicações, síndrome serotoninérgica e
síndrome neuroléptica maligna.

Distúrbios hidroeletrolíticos, hipoglicemia,


Metabólicas
hiperglicemia, hipóxia, hipovitaminose B12

Endócrinas Hipertireoidismo, tireotoxicose

Infecciosas Sepse
Diagnósticos diferenciais

Reumatológicas LES, vasculites, porfiria cutânea

Transtornos do
DI, TEA, TDAH
Neurodesenvolvimento

Transtornos Neurocognitivos Delirium e demências

Transtornos Ansiosos Transtorno de pânico

Transtornos de Humor Transtorno afetivo bipolar

Causas Transtornos de Personalidade Borderline, antissocial e histriônica


psiquiátricas
Transtornos Dissociativos Despersonalização, desrealização

Transtornos Somáticos Transtorno de sintomas somáticos

Disruptivo, do Controle de
TOD e transtorno explosivo intermitente
Impulsos e da Conduta

Transtornos Relacionados a Intoxicação e abstinência ao álcool,


Substâncias cannabis, opioides

AVE: acidente vascular cerebral; TCE: traumatismo cranioencefálico; LES:


lúpus eritematoso sistêmico; DI: déficit intelectual; TEA: transtorno do
espectro autista; TDAH: transtorno de déficit de atenção e hiperatividade;
TOD: transtorno opositor desafiante.

Fonte: elaborado pelos autores.

4.1. E aí? O que fazer?


No manejo da APM deve-se inicialmente garantir um ambiente com
infraestrutura adequada, para minimizar os impactos dos estímulos externos
no estado do paciente, assim como garantir equipamentos de emergência
para assistência de possíveis complicações, como parada cardiorrespiratória.
Além disso, é essencial garantir a segurança tanto do paciente como dos que
compartilham o mesmo espaço (equipe médica, outros pacientes e
acompanhantes). Deve-se evitar mobiliário e objetos que possam ser
quebrados e/ou usados como arma pelo paciente, assim como acesso rápido
para saída do profissional em contato direto com paciente em caso de risco
iminente não manejável.
A equipe deve ser qualificada para assistir o paciente agitado, de acordo
com protocolo institucional que especifique a função de cada membro.
Entretanto, um estudo revelou que a maioria dos médicos e profissionais de
saúde recebeu treinamento insuficiente ou informal para o manejo da APM,
e isso reflete em experiências de assédio moral, violência verbal e física no
ambiente de trabalho e estigmatização do paciente como violento e que
necessita de medidas punitivas.
A menos que o paciente esteja violento, o manejo comportamental da
APM é a primeira linha de tratamento. O médico deve empaticamente
avaliar a agitação como um componente clínico que causa sofrimento ao
paciente, deve apresentar-se, ouvi-lo atentamente, evitar fazer anotações,
contato visual prolongado ou ficar de costas para o paciente, manter
distanciamento físico, estabelecer limites quanto ao risco de agressão física e
normas institucionais, fazer intervenções verbais firmes, flexíveis e objetivas
que reforcem o senso de autonomia do paciente com atenção aos fatores de
risco para agressividade, que estão descritos na Figura 1. No Quadro 2 uma
síntese de fatores que predizem comportamento violento.

Figura 1 - Fatores de risco para agressividade


Fonte: elaborada pelos autores.

Quadro 2 - Preditores de comportamento violento

Postura Psicomotricidade Humor Risco Conduta

Não olha para Tentar


Inquieto.
o examinador abordagem
Tamborila os
Hostilidade ou o evita. amigável.
dedos. Aperta
(nível 1 de Pode estar Irritado. Alto. Convencer
uma mão contra
agitação) lacônico ou paciente a se
a outra. Morde
com tom de deixar
os lábios.
voz elevado. medicar.

Age de forma
intimidadora. Iniciar diálogo
Raivoso.
Faz ameaças com muita
Agressividade Quase agitado. Demonstra
verbais, fala Muito cautela.
(nível 2 de Esmurra parede, estar com
muitos alto. Interromper a
agitação gesticula muito. raiva de
palavrões, fala qualquer sinal
todos.
alto o tempo de piora.
todo.
Postura Psicomotricidade Humor Risco Conduta

Chances de
Agitado. Tem
Anda de um Furioso. sucesso com o
algo nas mãos
lado para Intenção de diálogo são
Violento para se defender
outro. Vai agir remotas.
(nível 3 de ou para agredir Iminente.
agredir/acabou violentamente Iniciar
agitação alguém. Quebra
de agredir contra imediatamente
objetos no
alguém. alguém. processo de
ambiente.
contenção.

Fonte: Forlenza OV, Miguel EC.22

Simultaneamente, é importante investigar a evolução da APM: o que


mudou no comportamento do paciente? Há quanto tempo? Qual o motivo da
ida à emergência naquele momento? Após coleta da história do paciente,
englobando história da doença atual, uso de substâncias, antecedentes
familiares, clínicos e psiquiátricos, é imprescindível a realização de exame
físico rápido – muitas vezes restrito à observação/inspeção devido à não
colaboração do paciente – com enfoque nos sinais vitais, sistema
cardiovascular, gastrointestinal e neurológico.
Neste momento, o médico deve considerar os diagnósticos diferenciais
citados na seção anterior, não sendo necessária a memorização de todas as
causas orgânicas de APM, mas que siga um raciocínio clínico para
investigação e tratamento adequados. Em alguns casos, exames laboratoriais
são solicitados de acordo com a etiologia mais provável, como função
tireoidiana (hipertireoidismo) ou dosagem de eletrólitos (hiponatremia e
hipocalemia). Se alterações neurológicas estiverem presentes, como sinais
focais, convulsões ou rebaixamento do nível de consciência, deve-se realizar
exame de neuroimagem.
Se as medidas de contenção verbal forem insuficientes, é recomendado o
uso de medicação com menor efeito sedativo e rápido início de ação, com
objetivo de acalmar o paciente e reduzir os riscos de comportamento
agressivo. As principais classes de medicamentos utilizadas para manejo
farmacológico da APM são os antipsicóticos e os benzodiazepínicos. O
Quadro 3 traz informações sobre os fármacos disponíveis no Brasil, as vias
de administração, a dosagem e os efeitos colaterais.

Quadro 3 - Manejo farmacológico da APM

Dose
Via de Dose
Classe Fármaco máxima Efeitos colaterais
administração (mg)
(mg) 24h

SEP, hipotensão, disfagia e


Oral 5-15 ND
alteração ECG

Haloperidol SEP, cefaleia, tontura e


Intramuscular 2.5-10 30
Antipsicótico sedação
1ª geração
Intravenosa* 5 20 SEP, hipotensão

Intramuscular e SEP, hipotensão,


Droperidol 2,5-10 10
intravenosa prolongamento do QT

SEP, disfagia, convulsão e


efeitos hemodinâmicos,
Risperidona Oral 2-3 8
náuseas, arritmias e
hipotensão

Oral SEP, disfagia, convulsão e


Asenapina 10 20
(sublingual) efeitos hemodinâmicos
Antipsicótico
2°geração
SEP, disfagia, convulsão,
Oral 10 30
arritmia, hipotensão, tontura
Olanzapina
SEP, sedação excessiva e
Intramuscular 10 ND
hipotensão ortostática

Ziprasidona Intramuscular 10-20 40 SEP, sedação excessiva

Benzodia- Clonazepam Oral 2 8


Amnésia, ataxia, sedação
zepínico
excessiva e efeito paradoxal
Diazepam Oral 10 60
Dose
Via de Dose
Classe Fármaco máxima Efeitos colaterais
administração (mg)
(mg) 24h

Depressão respiratória e
Intravenoso 40
hipotensão

Amnésia, ataxia, sedação


Lorazepam Oral 2-4 4
excessiva e efeito paradoxal

Intramuscular Até 15 ND
Sedação, depressão
Midazolam
respiratória
Intravenosa 2,5-10 ND

ND: não definido


SEP: sintomas extrapiramidais
ECG: eletrocardiograma
*Evitar essa via de administração pelo alto risco de arritmias.

Fonte: adaptado de Baldaçara L, Diaz AP, Leite V, Pereira LA, Santos RM,
Gomes Junior VP et al.19

Sempre que possível, o paciente deve ser envolvido na decisão do tipo de


medicação e via de administração. Nos quadros de agitação leve, em que é
possível esperar um pouco o início de ação da medicação, e se paciente for
colaborativo, a via oral (VO) é a primeira escolha. Caso contrário, a via
intramuscular (IM) é recomendada. Deve-se evitar a via intravenosa (IV),
principalmente se não for possível monitoração contínua dos parâmetros
clínicos do paciente, devido a maiores riscos de efeitos colaterais graves,
como depressão respiratória, arritmias cardíacas, prolongamento de intervalo
QT e morte súbita.
Os antipsicóticos de primeira geração são amplamente usados no manejo
da APM. O mecanismo de ação que ajuda a acalmar o paciente é incerto,
mas provavelmente em razão do bloqueio dopaminérgico D2, que reduz os
sintomas psicóticos, causa da agitação. O haloperidol é a medicação mais
comumente utilizada no tratamento agudo da APM, sendo que a dose via
oral pode ser repetida após 8h e a intramuscular de 30 em 30 minutos
(combinada com prometazina IM 25-50 mg ou midazolam IM 7,5-15 mg).
Vale ressaltar que a combinação, seja com a prometazina ou com
midazolam, deve ser feita apenas na primeira dose, nas doses subsequentes,
o haloperidol deve ser feito isoladamente para minimizar o risco de
depressão respiratória.
O droperidol tem o mesmo efeito nos receptores D2, e pode ser
administrado somente via parenteral (intramuscular e intravenosa).
Notadamente, essa classe é associada a sintomas extrapiramidais, como
distonia aguda e síndrome neuroléptica maligna, além de efeitos cardíacos
com risco aumentado para prolongamento do intervalo QT e síndrome de
Torsades des Pointes, principalmente quando administradas em altas doses
ou via IV.
Além do bloqueio dopaminérgico D2, os antipsicóticos de segunda
geração têm efeito antagônico nos receptores serotoninérgicos 5-HT2A,
histamínicos H1 e alfa-2. A maioria dos estudos indica que esses
medicamentos apresentam eficácia semelhante aos de primeira geração e
menor incidência de efeitos extrapiramidais. Risperidona VO na dose de 2
mg, em monoterapia ou combinada a lorazepam ou clonazepam VO na dose
de 2 mg, tem a mesma eficiência que haloperidol via IM. Olanzapina via IM
é tão efetiva quanto haloperidol via IM, e não deve ser combinada a
benzodiazepínicos. A apresentação sublingual da asenapina demonstrou
eficácia semelhante às apresentações de antipsicóticos via IM.
Os benzodiazepínicos atuam nos receptores do ácido gama-aminobutírico
(GABA) e tem efeito ansiolítico, hipnótico e sedativo, auxiliando na
tranquilização do paciente agitado. Benzodiazepínicos VO em monoterapia
não são eficientes na assistência ao paciente agitado. Há evidência para uso
de midazolam IM (7,5-15 mg) em monoterapia ou em associação com
haloperidol IM (2,5mg) no tratamento da APM. Diazepam, lorazepam e
clonazepam VO podem ser usados na agitação por intoxicação de cocaína e
abstinência alcoólica. Não se recomenda a administração de diazepam IM
devido à absorção errática.
Nos quadros de intoxicação por opioides e álcool, deve-se evitar o uso de
benzodiazepínicos, já que estes potencializam o efeito depressor no sistema
respiratório, enquanto o haloperidol tem melhor perfil de eficácia, segurança
e menores efeitos no sistema respiratório. No delirium, a causa-base deve ser
investigada e tratada. Se necessária abordagem farmacológica, preferir
antipsicóticos e evitar benzodiazepínicos, pois podem piorar o quadro.
Em idosos a principal etiologia de APM é o delirium, seguida por
transtornos de humor e ansiosos. Caso indicado tratamento com
antipsicótico, usar doses mais baixas e monitorar efeitos colaterais (risco de
queda e sedação). Nas gestantes com APM, priorizar medidas
comportamentais e ambientais sempre que possível. O uso de haloperidol em
monoterapia na menor dose terapêutica é considerado terapia farmacológica
de primeira linha nesse grupo.
Nos casos graves em que o paciente está agitado e agressivo e as medidas
ambientais, comportamentais e farmacológicas falharam, a contenção física
pode ser necessária para reduzir a agitação e os riscos do comportamento
agressivo do paciente a si e aos que estão no mesmo ambiente. Entretanto,
esse procedimento traz riscos ao paciente como danos psicológicos, com
sentimentos de medo e humilhação e complicações físicas que podem
resultar em morte, a exemplo de fraturas ósseas, desidratação e
rabdomiólise. Portanto, deve ser considerado como último recurso
terapêutico prescrito pelo médico, executado somente por profissionais
capacitados, com avaliação contínua dos sinais vitais, por curto período
(máximo 2h) e com respeito à dignidade do paciente (Quadro 4).

Quadro 4 - Contenção física

Deve ser determinada como medida protetiva e não punitiva.

Sempre deve ser feita em contexto do tratamento.

Sinais vitais devem ser checados rotineiramente (destaque para perfusão sanguínea).

Mínimo de 5 pessoas para realizar a contenção (uma para cada membro e a outra para tronco e
cabeça).

Quanto mais membros na equipe de contenção, melhor.

Uma vez que a contenção foi feita, a medicação deve ser administrada. Não se justifica conter e
não medicar.

As faixas de contenção devem ser de material resistente.


O paciente deve ser informado sobre o procedimento e razão de este estar sendo feito.

Conter em decúbito dorsal com a cabeceira elevada.

Uma vez iniciada a contenção, esta deve seguir até o fim. Não ceder a barganhas do paciente
durante o processo.

Não remover as contenções até que não haja mais risco.

Na remoção das faixas, iniciar pelo tórax, um membro inferior de cada vez e finalmente membros
superiores. Sempre avaliar comportamento entre uma remoção e outra.

Fonte: síntese elaborada pelos autores.

4.2. Redescobrindo o caso (Pontos-Chave)

1 Sexo masculino

2 Idade
3 Baixa escolaridade

4 Sinais de quadro maníaco

5 Sinais de comportamento violento iminente

Nesse caso, como se trata de um quadro de APM, em que o paciente


apresenta atitude hostil, pensamento delirante, humor disfórico,
psicomotricidade aumentada sem juízo de sua morbidade, que tem grande
potencial para evoluir para agressividade, a equipe cautelosamente deve
tentar as abordagens não farmacológicas. Se houver recusa do paciente ou
comportamento violento que comprometa a segurança de qualquer membro
da equipe ou pacientes e acompanhantes, o tratamento farmacológico se faz
necessário, e devido ao grau de APM, preferencialmente por via
intramuscular. Como último recurso, em caso de falha da terapia
medicamentosa, contenção mecânica, somente se estritamente necessária.

Exemplo de uma prescrição para Jonatas


Haloperidol 5 mg/ml + Prometazina 50 mg/2ml. Aplicar 1 ampola de
cada, via intramuscular.
+
Contenção mecânica se necessário (manter por no máximo 2 horas)
+
Avaliar sinais vitais a cada 30 minutos.

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23. Botega N. Prática Psiquiátrica no Hospital Geral – Interconsulta e Emergência. 4. ed. Porto
Alegre: Artmed; 2017.

SIGLAS

• APM Agitação Psicomotora


• AVE Acidente Vascular Cerebral
• DI Déficit Intelectual
• ECT Eletroconvulsoterapia
• GABA Ácido Gama Aminobutírico
• IM Intramuscular
• IV Intravenoso
• LES Lúpus Eritematoso Sistêmico
• ND Não Definido
• SEP Sintomas Extrapiramidais
• TCE Traumatismo Cranioencefálico
• TDAH Transtorno de Déficit de Atenção/Hiperatividade
• TEA Transtorno do Espectro Autista
• TOD Transtorno Opositor Desafiante
• VO Via Oral
1. CASO CLÍNICO
Antônio, 22 anos, dá entrada em unidade de internação psiquiátrica com
história que há 3 dias, após falecimento da irmã, passou a não se mover, por
vezes permanecendo em posições muito desconfortáveis, olhar fixo para o
teto, não comia mais e não tomava líquidos. Há pelo menos 1 ano vinha com
perda de vontade de realizar suas atividades habituais, dificuldades para
dormir e alterações na alimentação.
Tem diabetes mellitus tipo I. Pai com diagnóstico de transtorno bipolar.

Exame mental: paciente sem modulação do afeto, não faz contato


visual, não responde quando perguntado, sem movimentar-se durante
toda a avaliação. Ao ter o braço levantado pelo examinador, não oferece
resistência à mobilização e permanece com o membro suspenso contra a
gravidade.

2. DISCUTINDO O DIAGNÓSTICO
Em 1870, na Alemanha, o médico psiquiatra Karl Kahlbaum fez uma
associação entre alterações do comportamento motor, volição prejudicada e
doenças psiquiátricas; surgia então a primeira definição de catatonia na
história, chamada de melancolia atônica. Alguns anos depois, Bleuler e Emil
Kraepelin passaram a caracterizar tais alterações como pertencentes a um
quadro secundário, inicialmente chamados de dementia praecox e,
posteriormente, foi enquadrado dentro da esquizofrenia.
A partir daí, essa visão de que a catatonia ocorreria como consequência
da esquizofrenia passou a reinar na visão da academia, e várias propostas
diagnósticas se mantiveram no escopo da esquizofrenia e síndromes
psicóticas. Com o DSM-5, a catatonia passou a ser considerada condição que
poderia ser encontrada em várias enfermidades psiquiátricas e orgânicas.
Podemos definir catatonia como uma alteração importante da
psicomotricidade, no planejamento, na execução do movimento e na
modulação afetiva. Ela se caracteriza, segundo o DSM-5, pela presença de
pelo menos 3 dos seguintes sintomas:
1. Catalepsia – indução passiva de uma postura mantida contra a
gravidade.
2. Estupor – ausência de atividade motora.
3. Flexibilidade cérea – resistência leve ao posicionamento pelo
examinador.
4. Mutismo – resposta verbal ausente ou muito diminuída.
5. Negativismo – oposição ou resposta ausente a instruções ou
estímulos externos.
6. Postura – manutenção espontânea e ativa de uma postura contrária à
gravidade.
7. Maneirismo – caricatura esquisita ou circunstancial de ações
normais.
8. Estereotipia – movimentos repetitivos, infrequentes, não voltados
para um objetivo.
9. Agitação – não influenciada por estímulos externos.
10. Caretas.
11. Ecolalia – imitação da fala de outra pessoa.
12. Ecopraxia – imitação dos movimentos de outra pessoa.

Para facilitar a memorização, podemos dividir os sintomas em 4 grupos:

Postura, rigor, catalepsia, estupor,


Sinais motores
flexibilidade cérea

ambitendência, negativismo,
Alterações da vontade
obediência automática

Incapacidade de suprimir atividades Estereotipias, rituais, ecolalia,


motoras ecopraxia, maneirismos

Instabilidade autonômica Taquicardia, diaforese, hipertermia


Denominaremos a apresentação clássica, descrita anteriormente, como
catatonia estuporosa, marcada pelo mutismo, posturas, negativismo,
caretas e fenômenos de eco. A catatonia excitada se caracteriza por
aumento da atividade motora, com hipercinese, estereotipia, agitação,
impulsividade. Esse tipo de catatonia pode confundir-se com o delirium
hiperativo como diagnóstico diferencial sendo que ambos podem ocorrer
concomitantes. Uma outra entidade na classificação não pode ser esquecida:
a catatonia maligna, marcada por disautonomia global (aumento dos níveis
pressóricos, aumento das frequências cardíaca e respiratória, além de
diaforese). É uma emergência clínica e por isso medidas de suporte devem
ser tomadas com agilidade. Tem uma elevada taxa de mortalidade e o
laboratório é inespecífico, com leucocitose, aumento de CPK (creatina
fosfoquinase) e diminuição dos níveis séricos de ferro.

3. ASPECTOS SOBRE A EPIDEMIOLOGIA E A


ETIOLOGIA
Podemos imaginar que tal condição, apesar de ter grande importância
clínica, é pouco prevalente, certo? Errado! Estima-se que a catatonia tenha
uma prevalência de 10% dentre os pacientes psiquiátricos com quadros
agudos, variando conforme o diagnóstico: 30% na esquizofrenia, 43% nos
transtornos de humor e 25% estão associados a causas neurológicas.
A etiologia da catatonia ainda é fonte de incertezas e alvo de muitos
estudos. Dito isso, algumas hipóteses foram elaboradas para explicar a
origem dessa condição: alteração de neurotransmissores, alterações
anatomofuncionais e a teoria do medo.
Muito foi estudado a respeito da influência dos neurotransmissores na
gênese da catatonia, e alguns merecem destaque, são eles: a dopamina, o
glutamato e o GABA (ácido gama-aminobutírico).
Suspeitou-se de alterações dopaminérgicas, pois o uso de antagonistas
dopaminérgicos pode trazer sinais de rigidez e imobilidade e, em alguns
casos, os antipsicóticos podem piorar a catatonia. Contudo, não se observa
melhora com o uso de agonistas dopaminérgicos.
O glutamato, que por sua vez atua em receptores NMDA (N-Metil D-
Aspartato), mostra que tem um papel importante na etiologia da catatonia.
Foram observados sintomas catatônicos ao serem administrados agentes
antagonistas NMDA em pacientes saudáveis e, além disso, alterações de
comportamento e sintomas motores também foram evidenciados em
indivíduos com menor expressão desses receptores. É importante ainda citar
que a encefalite autoimune anti-NMDA pode se apresentar com
estereotipias, mutismo e rigidez semelhantes à catatonia.
Veremos adiante que o tratamento com agentes antagonistas GABAa são
eficientes e isso nos leva a crer na influência desse neurotransmissor na
fisiopatologia da doença. Estudos mostram diminuição da concentração de
receptores GABAa, associado a alterações de perfusão do córtex motor.
Apesar do uso de benzodiazepínicos serem comprovados na melhora dos
quadros agudos, os resultados para catatonia crônica são variáveis.
Apesar da dificuldade da avaliação anatomofuncional dos pacientes com
catatonia, a maioria dos estudos aponta para uma diminuição da atividade
nos córtex motores orbitofrontal, temporal e parietal. Observa-se melhora
dos sintomas motores e/ou de linguagem, associado ao aumento do fluxo
sanguíneo nessas regiões após a realização da eletroconvulsoterapia, um dos
tratamentos de escolha na catatonia.
Por fim, o medo pode estar implicado na gênese do quadro catatônico. É
notável a similaridade dos quadros catatônicos, com as síndromes tônicas
fóbicas desencadeadas em animais, como estratégia de defesa, o que nos
leva a pensar no comportamento catatônico como uma síndrome primária
ligada ao medo. Ao se recuperarem por completo, ou no período de melhora,
foram relatados os sentimentos de medo, ideias de morte, medo de um
perigo iminente, ansiedade intensa e angústia em grande parte dos pacientes
catatônicos. A efetividade do tratamento com o uso de benzodiazepínicos e
barbitúricos corrobora com essa teoria.
Os achados mostram que o prognóstico dos pacientes catatônicos, apesar
de variar conforme as causas, são bons. Há associação de um desfecho um
pouco mais desfavorável quando as alterações são conjuntas a quadros
psicóticos, quando comparados a alterações do humor. O tempo de doença
também deve entrar na conta, sabendo que quanto maior o tempo de
instalação, menor as chances de resposta. A remissão após uma intervenção
bem realizada acontece dentro de alguns dias ou poucas semanas.
4. DIAGNÓSTICO DIFERENCIAL
Algumas condições e síndromes neurológicas muito se assemelham com
sintomas catatônicos, e devem sempre ser levantadas como possibilidades
diagnósticas. Veremos a seguir algumas dessas.
Os sintomas extrapiramidais (SEP) perfazem fenômenos que incluem
rigidez, bradicinesia ou mesmo imobilidade, confundindo o examinador com
a síndrome catatônica. SEP pode acontecer em decorrência do uso de
fármacos como antipsicóticos e antidepressivos inibidores da recaptação de
serotonina. É importante avaliar corretamente a etiologia dos sintomas, visto
que o uso de benzodiazepínicos – usados no tratamento de catatonia – pode
piorar a lentificação encontrada nos SEPs. Ecolalia e ecopraxia podem
ocorrer na catatonia, mas não fazem parte dos sintomas extrapiramidais. Já
em SEP, encontraremos tremor e distonia, sintomas esses que não fazem
parte da catatonia.
Síndrome neuroléptica maligna (SNM) é uma emergência médica,
caracterizada por estado mental alterado, aumento do tônus muscular ou
rigidez franca, sistema nervoso autônomo desregulado, hiperatividade e
hipertermia. Ela pode ser confundida com a catatonia maligna, que também
se apresenta com sintomas disautonômicos. Na SNM, o agente causador
implicado é identificado como o uso de antagonistas dopaminérgicos (por
exemplo: antipsicóticos) nas últimas 72 horas. Nas duas situações – SNM e
catatonia – o uso de antipsicóticos deve ser prontamente suspenso e a terapia
de suporte para estabilização clínica deve ser instaurada.
O estado epiléptico não convulsivo (EENC) é clinicamente
indistinguível da catatonia do EENC. Na anamnese podemos encontrar
alterações psiquiátricas (distúrbios do humor ou psicose), além de uma
evolução mais longa na catatonia, em detrimento ao EENC. Um EEG
(eletroencefalograma) pode ajudar a caracterizar a epilepsia.
No estado vegetativo não há reconhecimento algum do paciente sobre si
ou sobre o ambiente ao seu redor, permanecendo não responsivo a estímulos
e com ciclo sono-vigília preservados. Normalmente são secundários a
traumas cranioencefálicos. A distinção com catatonia pode ser realizada com
a ajuda de RNM (ressonância nuclear magnética) e EEG.
O delirium é uma alteração na atenção e consciência que se desenvolve
dentro de um curto período e que tem como característica a flutuação do
quadro. Pode ser hiper ou hipoativa e ambas, catatonia e delirium, podem
coexistir. Na suspeita, devem sempre ser avaliados: o uso de medicamentos,
doença neurológica primária, doenças agudas, anormalidades metabólicas e
qualquer condição que interfira na homeostase.
Encefalite anti-NMDA é uma condição autoimune anti-receptor
NMDA. É uma das causas de catatonia. Os autoanticorpos se ligam
reversivelmente a dendritos pós-sinápticos, levando a um quadro de crises
convulsivas, sintomas disautonômicos, déficit da memória e aprendizado,
além de alterações do comportamento. O diagnóstico é realizado mediante
diversos exames laboratoriais, dentre eles, a detecção de IgG no líquor.

4.1. E aí? O que fazer?


Antes de mais nada, como em qualquer afecção médica, devemos estabilizar
o quadro clínico do paciente. É preciso ter em mente que tratamos de um
paciente com uma possível síndrome de imobilidade, desidratação,
desnutrição, alterações metabólicas e inflamatórias. Dito isso, o foco deve
ser inicialmente avaliação de sinais vitais, correção volêmica se necessário,
decidir se será administrado profilaxia para TVP (25% dos pacientes podem
evoluir com trombose), avaliar riscos musculoesqueléticos, possibilidade de
pneumonite aspirativa e úlceras por pressão.
Evitar o uso de antagonistas dopaminérgicos, sejam eles antipsicóticos
ou agentes antieméticos. Em um segundo momento, quando o paciente
estiver estável, melhorado do quadro catatônico, podemos reconsiderar o uso
dessas medicações.
O objetivo do tratamento é remissão total dos sintomas e a manutenção
da melhora. Os dados mostram recuperação total entre 60%-80% dos casos
em situação aguda (dados inconclusivos nos casos crônicos), variando de
acordo com a terapêutica escolhida.
Vimos que alterações de neurotransmissores podem explicar a etiogênese
da catatonia e dentre eles a deficiência de receptores GABAa é a mais
estudada. No tratamento inicial, portanto, os benzodiazepínicos são a
primeira escolha. Os benzodiazepínicos são alostéricos positivos do GABAa
e seu uso corrige a deficiência em receptores gabaérgicos no córtex
orbitofrontal, com boas respostas. A grande maioria dos estudos realizados
acerca do tratamento com essas medicações, foram realizadas com o
lorazepam – um benzodiazepínico com ação de curta duração – por possuir
uma maior afinidade de ligação com o GABAa.

4.2. Lorazepam
Recomenda-se realizar o teste do lorazepam, tanto para fins diagnósticos
(um teste positivo aumenta as chances de um diagnóstico correto de
catatonia), quanto terapêuticos. O teste é realizado com a administração
intravenosa de 2 mg de lorazepam e é dito positivo com uma melhora
significativa dos sintomas dentro de uma média de 30 minutos. Como a
apresentação parenteral é indisponível no Brasil, o uso oral pode ser
utilizado.
Pacientes com catatonia toleram bem o uso da medicação, sem sedação.
Por isso, as doses variam de 8 a 24 mg/dia. É recomendado começar com 1-2
mg a cada 4-12 horas e titular conforme resposta. De toda forma, devemos
ter cuidado sempre com sedação excessiva e diminuição do drive
respiratório. Apesar do lorazepam ser uma boa escolha, estudos também
tiveram bons desfechos com o uso de diazepam e clonazepam.

4.3. Antagonistas glutamatérgicos


A memantina é um agente antagonista do receptor NMDA e pode ser
utilizado como alternativa aos benzodiazepínicos associado à
eletroconvulsoterapia para melhora da resposta terapêutica. A amantadina
também pode ser utilizada e deve ser iniciada em 100 mg por dia e titulada
dentro de 3 a 4 dias até 600 mg, enquanto a memantina deve ser iniciada em
10 mg por dia e aumentada no mesmo período até 20 mg/dia.

4.4. Anticonvulsivantes
O ácido valproico age aumentando a responsividade ao GABA e pode ser
utilizado também como alternativa. Já o topiramato tem propriedades
antiglutamatérgicas e age de forma semelhante a amantadina e memantina
no controle dos sintomas da catatonia. O mecanismo de ação dos demais
anticonvulsivantes, permanece obscuro.

4.5. Eletroconvulsoterapia (ECT)


Aos pacientes que não responderam ao uso de benzodiazepínicos dentro de
uma semana, deve ser realizado um planejamento, se possível, para realizar a
ECT. Diante de uma apresentação maligna, sabendo da mortalidade de cerca
de 50%, a ECT deve ser considerada desde o início do tratamento. A taxa de
melhora completa ultrapassa 60%, tendo os sintomas melhorados com o
lorazepam ou não. Os protocolos podem variar, mas são estimados no
mínimo 6 sessões para melhora do quadro.

4.6. Antipsicóticos
Existe uma discussão a respeito do uso dos antipsicóticos nos quadros de
catatonia, mas orienta-se, na maioria dos casos, suspender a medicação.
Nota-se que tanto antipsicóticos de primeira geração quanto os atípicos
podem desencadear os sintomas e não se nota uma melhora ao utilizá-los no
processo terapêutico.

5. REDESCOBRINDO O CASO (PONTOS-


CHAVE)
1 Estupor

2 Postura

3 Negativismo

4 Possível depressão

5 História familia para transtorno de humor

6 Flexibilidade cérea

7 Catalepsia

O paciente encontra-se num quadro catatônico clássico. Apesar dos


transtornos de humor como depressão grave e transtorno bipolar serem os
maiores responsáveis por catatonia, causas orgânicas devem ser sempre
aventadas. Antônio é um paciente com diagnóstico de diabetes mellitus tipo
I e, por isso, alterações glicêmicas devem ser identificadas e corrigidas o
quanto antes. A recusa sistemática de alimentação e líquidos (e muito
provavelmente de medicações) torna imperativa a necessidade de internação
hospitalar.

Exemplo de uma prescrição para Antônio


Passagem de sonda (nasogástrica ou nasoenteral) para alimentação e
administração das medicações;
Soro fisiológico 0,9%, 2.000 ml, endovenoso, em 24 horas;
Lorazepam 2 mg, 1 comprimido, via sonda, de 6/6 horas;
Glicemia capilar de 4/4h;
Controle de diurese;
Aferir sinais vitais de 4/4h.

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SIGLAS
• BZD Benzodiazepínicos
• CPK Creatina Fosfoquinase
• GABA Ácido Gama-Aminobutírico
• ECT Eletroconvulsoterapia
• EEG Eletroencefalograma
• EENC Estado Epiléptico Não Convulsivo
• NMDA N-Metil D-Aspartato
• RNM Ressonância Nuclear Magnética
• SEP Sintomas Extrapiramidais
• SNM Síndrome Neuroléptica Maligna
1. CASO CLÍNICO
Conceição, 62 anos, com diagnóstico de transtorno afetivo bipolar, vem em uso
de haloperidol 5 mg/dia e carbonato de lítio 600 mg/dia. Queixa-se de
dificuldade nos movimentos como se estivesse “engessada”, com os “músculos
duros”. Além disso, refere tremor de repouso nos membros superiores. Quadro
de duas semanas que se iniciou após introdução das medicações supracitadas.

Exame mental: tremor de repouso bilateral de baixa frequência e alta


amplitude, lentificação dos movimentos e postura com tronco levemente
inclinado para frente, com braços balançando menos ao caminhar.
Apresenta ainda uma perda da mímica facial e não parece expressar
emoções.

2. INTRODUÇÃO
Neste capítulo, a estrutura tradicional adotada neste livro não será a mesma. Isso
se deve à variedade de condições associadas aos transtornos do movimento, e
por isso não podemos falar de um diagnóstico específico. Sigamos!
Muitas drogas terapêuticas e ilícitas podem causar distúrbios do movimento,
que variam de tremores a síndromes com risco de morte. Os medicamentos mais
comuns que causam esses efeitos colaterais são os antagonistas da dopamina,
principalmente antipsicóticos e antieméticos. Os pacientes costumam usar
combinações de medicamentos que podem causar mais de um distúrbio do
movimento, dificultando a identificação do medicamento culpado. Os
transtornos do movimento induzidos por drogas (TMID) podem ser
incapacitantes, em geral são subdiagnosticados e manejados inadequadamente.
Eles podem ser classificados cronologicamente, com base no tempo de início
após a ingestão do medicamento, como agudo, subagudo ou tardio.
O diagnóstico requer conhecimento dos distúrbios típicos do movimento e
das síndromes que podem ocorrer com diferentes classes de medicamentos,
além de seu curso. O reconhecimento precoce de um distúrbio do movimento
induzido por drogas é essencial para permitir uma intervenção imediata. Isso
inclui interromper o medicamento ofensivo, cuidados de suporte e, às vezes,
outro tratamento farmacológico.
O advento dos antipsicóticos atípicos levou à esperança de que a incidência
de distúrbios do movimento induzidos diminuiria significativamente ao longo
do tempo. No entanto, esse horizonte ainda não foi alcançado e os distúrbios do
movimento continuam sendo um problema significativo.

3. TRANSTORNOS AGUDOS DO MOVIMENTO


Os distúrbios agudos do movimento induzido por drogas ocorrem dentro de
minutos a dias após a ingestão. Eles incluem tremor, acatisia, distonia aguda,
síndrome neuroléptica maligna, síndrome serotoninérgica e distúrbio do
parkinsonismo-hiperpirexia. Os tratamentos encontram-se resumidos nos
quadros 2 e 3.

3.1. Tremor
O tremor está entre os distúrbios de movimento mais comuns e pode ocorrer
como efeito colateral de vários medicamentos (quadro 1). Os tremores são
tipicamente caracterizados por oscilações rítmicas de uma parte do corpo sobre
uma articulação e são melhor classificados pela situação em que ocorre
(detalharemos mais à frente). Muitas vezes é difícil determinar se um
medicamento causou um tremor ou simplesmente aumentou o tremor subjacente
de um paciente, dado que o tremor fisiológico é prevalente e ocorre em algum
grau na população geral. Além disso, os pacientes costumam tomar vários
medicamentos que podem causar ou exacerbar o tremor, sendo que a
identificação de um único medicamento como causador é difícil, senão
impossível.

Quadro 1 - Medicações relacionadas a tremores

Amiodarona

Antidepressivos

Agonistas b-adrenérgicos

Antagonistas da dopamina (p. ex.: antipsicóticos)

Ciclosporina

Lítio
Tacrolimus

Teofilina

Ácido valproico

Fonte: síntese elaborada pelos autores.

O tremor induzido por medicamentos (TIM) está frequentemente associado


temporalmente ao início da medicação e pode ocorrer mesmo em níveis
sanguíneos “terapêuticos”, bem como em estados tóxicos (por exemplo, lítio).
Os TIMs geralmente se manifestam como uma síndrome de tremor isolada ou às
vezes combinados com outros sinais sistêmicos ou neurológicos, e devem ser
diferenciados de outras síndromes de tremores não induzidos por drogas,
incluindo tremores essenciais e doença de Parkinson. A diferenciação do TIM
de outras formas de tremor é importante e requer uma história completa e exame
físico do paciente. Existem várias considerações importantes no diagnóstico
diferencial:

• exclusão de outras causas médicas de tremor (por exemplo,


hipoglicemia, hipertireoidismo);
• uma relação temporal com o início da droga é útil;
• uma relação dose-resposta (isto é, aumentar a dose da medicação piora o
tremor ou diminuir a dose melhora o tremor);
• falta de progressão do tremor, diferentemente dos tremores no tremor
essencial (TE) ou na doença de Parkinson (DP).

Existem vários fatores de risco para o TIM, sendo que a idade avançada é o
mais importante, talvez devido a vários problemas médicos tratados com
numerosos medicamentos.
Duas categorias principais de tremor são o tremor em repouso e tremor de
ação. O tremor em repouso (comum em doença de Parkinson ou parkinsonismo
induzido por drogas) ocorre quando a parte do corpo afetada não se encontra
sob efeito da gravidade e os músculos não estão contraídos (com o paciente
sentado, relaxado com os braços apoiados sobre uma mesa, por exemplo). O
tremor de ação, ao contrário, ocorre com movimento voluntário e pode ser
dividido em tremor postural e tremor cinético. O tremor postural ocorre
classicamente ao manter os braços em uma posição estendida contra a
gravidade. O tremor cinético inclui um tremor específico para tarefas e um
tremor terminal para movimentos direcionados a objetivos (tremor de intenção,
como pode ser visto ao se aproximar do alvo em testes dedo-nariz). Finalmente,
o tremor isométrico é um tremor cinético que ocorre com a contração muscular
ativa contra um objeto fixo. Duas outras características importantes de serem
avaliadas no tremor são a frequência e a amplitude.
A maioria dos tremores patológicos são predominantemente de ação, sejam
eles cinéticos ou posturais (ou frequentemente uma combinação de ambos).
Alguns medicamentos (especialmente lítio, antagonistas da dopamina e ácido
valproico) podem causar tremores em repouso, revelar deficiência de dopamina
pré-sináptica subjacente ou precipitar tremores em Doença de Parkinson (DP)
subclínica. O TIM também é tipicamente simétrico, mas no cenário do
parkinsonismo induzido por drogas (PID), uma apresentação com tremor de
repouso unilateral não é incomum.
Existem poucos dados sobre os mecanismos de como esses medicamentos
induzem tremores. O tremor fisiológico possui muitos componentes que podem
ser influenciados por medicamentos, alguns influenciando o componente central
(amitriptilina) e outros alterando o componente periférico (agonistas b-
adrenérgicos, ciclosporina etc.). Outros mecanismos incluem o bloqueio da
neurotransmissão dopaminérgica na via nigroestriatal por antagonistas da
dopamina.
Tremores psicogênicos podem ocorrer como manifestação de um distúrbio
psiquiátrico subjacente, como transtornos somatoformes ou factício. O
diagnóstico é baseado em sintomatologia incomum e outras pistas, como início
abrupto, inconsistências no padrão e características do tremor, remissões
espontâneas, resposta ao placebo e distração.
A seguir, listamos algumas medicações e classes associadas à indução de
tremor.

3.2. Amitriptilina
Um tremor postural pode levar à descontinuação da terapia com amitriptilina em
alguns pacientes. Numa parcela dos casos, tremores induzidos por amitriptilina
podem melhorar com o tempo enquanto os pacientes permanecem em terapia.
Embora a maioria dos TIMs deva-se a um mecanismo não caracterizado, parece
que a amitriptilina acentua o componente central do tremor fisiológico.

3.3. Inibidores seletivos de recaptação da serotonina (ISRS)


Embora numerosos distúrbios do movimento tenham sido relatados com ISRSs,
o tremor é provavelmente o distúrbio do movimento mais comum induzido por
esses medicamentos. Aproximadamente 20% dos pacientes em uso de ISRSs
desenvolvem tremor sem histórico prévio do sintoma. Tremores induzidos pela
fluoxetina são tipicamente posturais, surgem 1 a 2 meses após o início da terapia
e podem remitir dentro de 1 mês após a descontinuação da fluoxetina, por
exemplo, ou persistir por meses. O mecanismo para o tremor induzido por ISRS
é desconhecido, mas a hipótese é de que o tremor seja devido à estimulação de
receptores serotoninérgicos encontrados na oliva inferior, levando à
superestimulação dos neurônios talâmicos e corticais. O tremor pode surgir
também como uma manifestação precoce em casos leves e moderados da
síndrome serotoninérgica e é mais proeminente nas pernas. A síndrome de
abstinência do ISRS também é caracterizada por tremores, irritabilidade,
ansiedade e parestesias. Essa síndrome pode ocorrer durante a abstinência de
qualquer ISRS, mas provavelmente é mais comum em ISRSs com meias-vidas
mais curtas, como a paroxetina.

3.4. Lítio
O tremor induzido por lítio é talvez um dos TIMs mais comuns na prática
clínica e ocorre em cerca de 30% dos pacientes que fazem uso dessa medicação,
podendo ocorrer agudamente na primeira semana da terapia ou se
desenvolvendo dentro de semanas ou meses após o início da medicação. Para a
maioria dos pacientes em terapia crônica com lítio, o tremor é geralmente leve e
não incapacitante, ocorre com mais frequência em pacientes idosos, parece ser
mais comum em homens. É geralmente simétrico, não progressivo e pode piorar
durante atividades que exigem controle motor fino, como escrever.
O lítio pode causar tremor nos níveis tóxicos e terapêuticos. Apesar de ser
sinal de toxicidade, níveis elevados no sangue não são necessários para produzir
tremor. Na presença de tremor em pacientes tratados com lítio, história
completa, incluindo investigação de fatores precipitantes de intoxicação
(desidratação, por exemplo) e uso de medicamentos que interagem aumentando
os níveis de lítio (por exemplo, anti-inflamatórios não esteroidais e inibidores da
enzima conversora de angiotensina), exame físico, exames de sangue, incluindo
o nível sérico de lítio, são necessários para excluir a toxicidade do lítio.
Assim como no tremor induzido pela amitriptilina, o tremor induzido pelo
lítio pode melhorar com o tempo com a continuação da terapia. O lítio,
raramente, pode causar parkinsonismo em alguns pacientes, mas isso pode
melhorar com a redução da dose. Em casos de intoxicação, a toxicidade do lítio
geralmente diminui dentro de 3 a 4 dias após a sua descontinuação. No entanto,
se o uso do lítio continuar, tremor cerebelar devido a danos neuronais
irreversíveis – caracterizado por ataxia, disartria, nistagmo e tremor de intenção
– pode ocorrer.
O mecanismo exato do tremor induzido por lítio é desconhecido, mas a
redução da dose ou a descontinuação do fármaco geralmente leva a melhora. Os
antagonistas b-adrenérgicos podem ajudar no tratamento e o antagonista não
seletivo b-adrenérgico, propranolol, parece ser mais eficaz.

3.5. Ácido valproico (valproato de sódio)


Esse medicamento, assim como o lítio, causa um dos TIMs mais comuns na
prática. Até 80% dos pacientes tratados com valproato desenvolvem tremor, mas
apenas 25% se queixam; sendo as mulheres mais velhas as pacientes que mais
necessitam de tratamento. O tremor de ação é o mais comum, sendo geralmente
um tremor postural rítmico fino, semelhante ao tremor causado por
antidepressivos tricíclicos e ao tremor essencial. É possível também ocorrer
tremor em repouso.
Parece estar relacionado à dose e pode melhorar com a sua redução,
geralmente diminuindo em algumas semanas. A amplitude do tremor parece ser
mais pronunciada nas preparações de liberação imediata em relação às
preparações de liberação controlada. Se a redução da dose ou a mudança para
uma preparação de liberação controlada não for possível, a amantadina ou o
propranolol podem fornecer algum benefício para o tremor. O ácido valproico
também pode causar parkinsonismo com evidências de que pode ser tóxico para
os neurônios dopaminérgicos.

3.6. Antagonistas da dopamina (antipsicóticos)


O mecanismo que causa tremor parece ser devido ao bloqueio dos receptores de
dopamina, interrompendo a neurotransmissão dopaminérgica normal na via
nigroestriatal. O tratamento do TIM causado pelos antagonistas de dopamina
visa reduzir a dose do medicamento causador ou tentar eliminá-lo
completamente. Se isso não for possível, anticolinérgicos ou amantadina são
frequentemente usados para combater os sintomas.

4. ESTADOS DE ABSTINÊNCIA E TREMORES


INDUZIDOS POR TOXINAS
Tremores podem ocorrer nos estados de abstinência, principalmente de
benzodiazepínicos, etanol e opiáceos. A maioria dos tremores relacionados à
abstinência parece ser um tremor fisiológico agravado, assim como a maioria
dos TIMs. A exposição a níveis tóxicos de certas substâncias (por exemplo,
etanol, lítio etc.) por períodos mais longos pode levar a tremores permanentes,
especialmente se eles afetam o cerebelo, causando tremores de intenção que
podem ser bastante incômodos.

4.1. Tratamento
Em algumas situações, é prudente observar e aguardar após o início de um
novo medicamento, pois muitos TIMs podem se tornar menos incômodos para
um paciente ou até melhorar com o tempo. Como alternativa, uma preparação
de liberação controlada pode causar menos tremor em um paciente devido à
menor variabilidade do nível sérico. A grande maioria dos TIMs respondem à
redução da dose ou à interrupção do medicamento causador. Em alguns casos,
não é possível reduzir a dose do agente agressor e medicamentos adicionais
podem ser necessários para tentar tratar o tremor (Quadro 2).

Quadro 2. Conduta nos tremores induzidos por medicação

Causa do tremor Tratamento

Expectante
Amitriptilina
Redução da dose

Expectante
ISRS Redução da dose
Investigar síndrome serotonérgica

Investigar intoxicação
Lítio Redução da dose
Betabloqueadores
Ácido valproico Redução da dose
Trocar para liberação prolongada
Propranolol
Amantadina

Redução da dose
Antipsicóticos Anticolinérgicos
Amantadina

Fonte: síntese elaborada pelos autores.

4.2. Acatisia
É uma sensação de inquietação interna, irritabilidade e tensão, às vezes
percebida como ansiedade, sem necessariamente se manifestar com sinais
físicos, causada pelo uso de antagonistas da dopamina, inibidores seletivos da
recaptação da serotonina (ISRS), drogas antiepilépticas, antieméticos
(metoclopramida) e cocaína. Existem dois aspectos da acatisia: o relato
subjetivo de inquietação, especialmente relacionada às pernas, e as
manifestações objetivas de inquietação na forma de movimentos estereotipados,
incluindo movimentos de marcha, esfregar de mãos, bater nas coxas e balançar
do corpo. A acatisia aguda pode começar algumas horas ou dias após o início do
tratamento com antagonistas da dopamina e pode ocorrer em até 50% dos
pacientes em 1 mês. Existem diferenças notáveis na incidência anual de acatisia,
dependendo do medicamento utilizado: 4% para quetiapina ou olanzapina, 20%
com outros antipsicóticos de segunda geração (ASG), também chamados de
atípicos e 50% com haloperidol. Dentre os antipsicóticos atípicos, taxas
relatadas de acatisia são mais altas com asenapina, aripiprazol e lurasidona do
que com outros ASGs.
É importante entender que a acatisia aguda e a acatisia tardia (um problema
associado ao uso prolongado de antagonistas da dopamina) são
fenomenologicamente idênticas, mas são opostas em sua resposta ao tratamento
medicamentoso. A acatisia aguda geralmente melhora após a interrupção do
medicamento causador, enquanto na acatisia tardia há uma piora.
Anticolinérgicos, betabloqueadores, benzodiazepínicos, amantadina,
mirtazapina e clonidina também têm sido utilizados com eficácia variável e com
poucas evidências. Parece que uma dose baixa de propranolol é suficiente, com
doses usuais recomendadas na ordem de 60 mg/dia e mais raramente mais de
120 mg/dia. A clonidina, um agonista ɑ2-adrenérgico que reduz a atividade
noradrenérgica central, tem sido benéfico, mas efeitos colaterais como sedação
limitam seu uso.

4.3. Distonia aguda


As reações distônicas agudas ocorrem mais comumente após o uso de
antagonistas da dopamina, incluindo antieméticos (por exemplo,
metoclopramida) e antipsicóticos, sendo mais frequentes quando os
antipsicóticos de primeira geração (chamados também de típicos) são utilizados
(17% dos pacientes tratados com haloperidol) do que quando os antipsicóticos
de segunda geração são usados (<2% para indivíduos tratados com quetiapina e
clozapina). Essa reação, além do uso de antipsicóticos, foi descrita em
associação com outras classes de medicamentos, incluindo ISRS, bloqueadores
dos canais de cálcio e muitos outros medicamentos com diversos mecanismos
de ação. Esse é um TMID menos comum que parkinsonismo ou discinesia
tardia, afetando 2% a 3% dos pacientes expostos.
As distonias agudas se desenvolvem rapidamente após a administração do
medicamento (tratamento inicial ou aumento da dose), mesmo após uma dose
única. Cerca de metade dos pacientes experimenta os primeiros sinais de
distonia dentro de 48 horas após a ingestão do medicamento, na maioria dos
pacientes os sinais aparecem em até 5 dias do início da droga. Os fatores de
risco para distonia incluem sexo masculino, idade jovem (inferior a 30 anos),
alta potência e alta dose de antipsicóticos, predisposição familiar, tipo de doença
psiquiátrica subjacente, retardo mental, histórico de eletroconvulsoterapia,
abuso de cocaína e síndrome de imunodeficiência adquirida (AIDS).
As reações distônicas são variáveis em localização, gravidade e,
ocasionalmente, são dolorosas. O espasmo distônico agudo sustentado dos
músculos craniocervicais é típico, mas também podem ocorrer crises
oculogênicas, espasmo truncal causando opistótonos ou distonia de membros
com manifestações usuais de arqueamento das costas e extensão do pescoço.
Uma crise oculogênica é caracterizada pelo desvio do olhar conjugado que pode
durar minutos a horas, e podem ocorrer na distonia aguda e tardia. A distonia
pode ser focal, segmentar ou generalizada e, quando grave, pode comprometer a
fala, a deglutição e a respiração, podendo levar a complicações graves e
ameaçadoras à vida, incluindo subluxação das articulações e aspiração.
Uma hipótese para o mecanismo causador da distonia aguda é que a
hipofunção dopaminérgica resulta numa hiperatividade colinérgica relativa, o
que é apoiado por uma melhora consistente da distonia aguda com o uso de
drogas anticolinérgicas.
Reações distônicas agudas raramente têm sido relatadas com inibidores
seletivos de recaptação da serotonina (ISRS), opioides, metilfenidato,
rivastigmina, albendazol, gabapentina e cetirizina. Existem evidências de que as
distonias agudas podem ser evitadas pelo uso de medicamentos anticolinérgicos
e que esses medicamentos devem ser considerados de forma profilática em
pacientes com alto risco (pacientes jovens, usuários de cocaína e pacientes com
AIDS). Para o tratamento, o medicamento causador deve ser interrompido e
administrado um medicamento anticolinérgico intravenoso ou intramuscular
(difenidramina, benzotropina ou biperideno), com resposta dramática e rápida
com alívio em minutos, seguido por um curso curto de medicamentos
anticolinérgicos orais.

5. EMERGÊNCIAS DE DISTÚRBIOS DO
MOVIMENTO INDUZIDOS POR
MEDICAMENTOS
Existem três formas principais de TMIDs com manifestações sistêmicas que são
emergências com risco de morte: síndrome neuroléptica maligna, síndrome
serotoninérgica e síndrome de parkinsonismo-hiperpirexia. Eles têm início
agudo e compartilham características clínicas essenciais que afetam o estado
mental, os sintomas motores e as funções autonômicas e termorregulatórias.

5.1. Síndrome neuroléptica maligna


A síndrome neuroléptica maligna (SNM) consiste numa reação potencialmente
fatal a medicamentos antipsicóticos típicos e atípicos e outras drogas
bloqueadoras de receptores de dopamina, como antieméticos (por exemplo,
metoclopramida) e lítio. Ocorre secundariamente ao início ou ao aumento da
dose dos antagonistas da dopamina. Embora a maioria dos casos se desenvolva
dentro de 7 a 10 dias, a duração da exposição ao medicamento agressor e a
proximidade com o início da SNM são variáveis.
Os critérios diagnósticos do consenso Delphi incluem: exposição a um
antagonista da dopamina ou retirada de agonista da dopamina nas últimas 72
horas, hipertermia (> 38 °C em pelo menos duas ocasiões), rigidez, estado
mental alterado, creatina quinase elevada, instabilidade autonômica (incluindo
hipermetabolismo, isto é, taquicardia e taquipneia) e investigações negativas
para uma causa alternativa. Mudanças no estado mental e rigidez dos músculos
são características precoces, seguidas de febre e disautonomia; este último
manifesta-se inicialmente como taquicardia seguida de pressão arterial lábil. O
estado de alerta flutuante com agitação pode evoluir para mutismo, catatonia e
coma. As características “extrapiramidais” (parkinsonismo) incluem rigidez do
“cano de chumbo”, lentidão de movimentos, tremores e distonia. A elevação da
creatina quinase sérica reflete a rabdomiólise e é tipicamente > 1.000UI/L, mas
vários fatores, incluindo injeções intramusculares, agitação e restrições físicas,
podem aumentar a creatina quinase, assim, embora as elevações da creatina
quinase sérica sejam comuns, elas são inespecíficas e não patognomônicas. É
importante considerar e excluir as causas metabólicas, tóxicas, infecciosas e
cerebrovasculares mais comuns de encefalopatia. Uma análise metabólica
abrangente, gasometria, coagulograma, estudos de líquor e neuroimagem são
frequentemente necessários.
A patogênese exata da SNM não é totalmente clara, mas sugere-se
hipofunção dopaminérgica “central” e hiperatividade simpático-adrenérgica
“periférica”. Drogas envolvidas podem interromper as vias dependentes da
dopamina, incluindo vias centrais de termorregulação (hipertermia), via
nigroestriatal (rigidez, acinesia e tremor) e o sistema de ativação reticular
(alerta). As vias dopaminérgicas interagem com as vias serotoninérgicas,
colinérgicas e noradrenérgicas de forma central e periférica, o que pode explicar
a ativação simpática periférica que causa o estado hipermetabólico (taquicardia
e taquipneia) e a disautonomia.
Identificar populações de risco e manter um alto nível de suspeita clínica são
chaves na prevenção da morbidade e mortalidade. Pode ocorrer lesão
neurológica permanente se houver um atraso no reconhecimento ou tratamento.
O manejo envolve a interrupção imediata dos medicamentos agressores,
cuidados de suporte (que incluem cuidados intensivos se graves) e a
administração de um medicamento dopaminérgico, geralmente a bromocriptina.
O tratamento específico da SNM deve ser individualizado com base na
gravidade. Dantrolene é tradicionalmente defendido em casos graves. Para
pacientes com características catatônicas proeminentes quando outra terapia foi
ineficaz, a eletroconvulsoterapia pode ser considerada. A incidência e a
mortalidade da síndrome neuroléptica maligna podem ser diminuídas com a
substituição por ASG. Um episódio de SNM apresenta um risco
significativamente maior de novo episódio subsequente.

5.2. Síndrome serotoninérgica


A síndrome serotoninérgica resulta da toxicidade de fármacos serotoninérgicos
únicos ou combinados. Inibidores da monoamina oxidase, inibidores seletivos
da recaptação de serotonina, inibidores da recaptação de serotonina e
noradrenalina são os medicamentos mais comumente associados à síndrome
serotoninérgica. No caso dos ISRSs de meia-vida longa como a fluoxetina o
paciente pode estar em risco por várias semanas após a descontinuação do
tratamento se outra medicação serotonérgica é iniciada dentro desse período. As
características clínicas incluem: estado mental alterado, sinais de
hiperexcitabilidade do sistema nervoso central – distúrbios do movimento,
incluindo mioclonia, tremor, acatisia – hiper-reflexia, clônus, espasticidade ou
rigidez, convulsões e instabilidade autonômica, incluindo midríase, febre e
taquicardia. Problemas adicionais incluem convulsões, prolongamento do
intervalo QT, arritmias e síndrome da secreção inadequada do hormônio
antidiurético.
O início da síndrome ocorre tipicamente horas após uma exposição. As
apresentações refletem um continuum de toxicidade dependente da dose,
variando de delirium agitado transitório a uma crise hipertérmica indistinguível
da síndrome neuroléptica maligna. Interações entre os sistemas dopaminérgico e
serotoninérgico podem contribuir para as semelhanças entre a SNM e a
síndrome serotoninérgica. Vários metabólitos tóxicos e causas infecciosas de
encefalopatia devem ser descartadas com investigações laboratoriais
apropriadas, sendo a síndrome serotoninérgica um diagnóstico de exclusão.
A descontinuação dos medicamentos agressores e os cuidados de suporte
(que podem incluir cuidados intensivos) são de primeira linha no tratamento.
Sedação com benzodiazepínicos (lorazepam ou diazepam) são recomendados
para agitação e a ciproeptadina, um antagonista dos receptores de serotonina 5-
HT1A e 5-HT2A, pode ser útil na reversão dos efeitos serotoninérgicos. Muitos
casos se resolverão em 24 horas, mas a recuperação pode levar de 3 a 4 dias ou
ser mais longa, com o prognóstico sendo geralmente favorável.

5.3. Síndrome de parkinsonismo-hiperpirexia


A síndrome de parkinsonismo-hiperpirexia (SPH) ocorre após a redução abrupta
da medicação dopaminérgica na doença de Parkinson e nos distúrbios
relacionados. Envolve uma síndrome de piora significativa do parkinsonismo
(com ou sem encefalopatia), hiperpirexia, instabilidade autonômica e elevação
da creatina quinase. As características clínicas são as mesmas da SNM, e isso
pode incluir qualquer combinação de febre, rigidez, confusão e aumento da
creatina quinase; a distinção é que nenhum neuroléptico está envolvido. Os
sintomas podem começar dentro de 18 horas a 7 dias após a alteração no
medicamento dopaminérgico. Em comparação com a SNM, os pacientes com
SPH podem ter uma latência ligeiramente aumentada para o início dos sintomas.
A entidade deve fazer parte do diagnóstico diferencial em qualquer paciente
com doença de Parkinson com febre de origem desconhecida. O clínico deve
estar atento a situações em que pacientes idosos com DP percam doses da
medicação dopaminérgica (num internamento em que não foram acrescentadas
as medicações que ele fazia uso, por exemplo) e desenvolvam SPH. Também
pode ser precipitado por uma infecção ou outro distúrbio metabólico.
A base do tratamento inclui a retomada de medicamentos antiparkinsonianos
e, quando a descontinuação das medicações dopaminérgicas for necessária, isso
deve ser feito gradualmente. No geral, a SPH parece ter uma menor duração da
doença e um prognóstico melhor que a SNM.

Quadro 3 - Tratamento de TMID agudos

Distúrbio do movimento Tratamento

Interrupção da droga
Anticolinérgicos
Betabloqueadores
Acatisia Benzodiazepínicos
Clonidina
Amantadina
Mirtazapina

Distonia aguda Anticolinérgicos

Interrupção da droga
Medidas de suporte
Síndrome neuroléptica maligna Bromocriptina
Dantrolene
Eletroconvulsoterapia
Síndrome serotoninérgica Interrupção da droga
Medidas de suporte
Benzodiazepínicos
Ciproeptadina

Síndrome parkinsonismo-hiperpirexia Retomada dos antiparkinsonianos

Fonte: síntese elaborada pelos autores.

6. TRANSTORNOS SUBAGUDOS DO
MOVIMENTO
Os distúrbios do movimento subagudos induzido por drogas ocorrem dentro de
dias a semanas após a ingestão da droga.

6.1. Parkinsonismo
O parkinsonismo induzido por drogas (PID) é comum, geralmente ocorre em
pacientes tratados com antagonistas da dopamina e representa o distúrbio do
movimento iatrogênico mais grave em pessoas idosas. É mais comum em
mulheres e sua frequência aumenta com a idade. Eles podem se manifestar
dentro de alguns dias após o início da terapia neuroléptica e 90% dos casos
surgem em 3 meses. O PID é o tipo mais comum de parkinsonismo entre
pessoas com menos de 40 anos (com o avançar da idade, a Doença de Parkinson
assume uma posição de destaque) e os antipsicóticos típicos são a classe mais
comum de medicamentos associados ao parkinsonismo. Os ASGs, embora não
isentos de riscos, parecem apresentar um risco de parkinsonismo induzido por
drogas que é cerca de metade do valor dos APGs.
O parkinsonismo induzido por drogas se desenvolve ao longo de dias a
meses, mais comumente quando o medicamento é iniciado ou quando a dose é
aumentada. Pode até se desenvolver em pacientes que usam antagonistas de
dopamina há décadas, devido ao desenvolvimento da doença de Parkinson real
ou à maior suscetibilidade ao parkinsonismo induzido por drogas no cérebro
envelhecido. O PID é tipicamente caracterizado por bradicinesia, rigidez,
instabilidade postural e tremores de repouso, geralmente se apresenta como uma
síndrome rígida acinética simétrica, embora a assimetria possa ocorrer em até
30% dos casos e possui fraca resposta a medicamentos antiparkinsonianos
típicos, incluindo levodopa, agonistas da dopamina e anticolinérgicos. Existem
subgrupos no PID: alguns têm principalmente bradicinesia, outros têm tremor
predominante e em alguns os sintomas são mistos. Não há, porém,
características clínicas que possam distinguir de maneira confiável, o
parkinsonismo induzido por drogas da doença de Parkinson.
A prevenção do PID é o objetivo mais importante e, portanto, antagonistas
de dopamina devem ser administrados apenas quando necessário. Os ASGs
devem ser usados quando possível pela sua menor propensão a causar síndrome
extrapiramidal, incluindo PID. O uso de anticolinérgicos na profilaxia é
discutível e em altas doses podem causar confusão e dificuldade de memória. A
interrupção do medicamento agressor geralmente resulta em resolução completa
do distúrbio, mas pode levar vários meses ou até anos para ser resolvido após a
interrupção da droga. Pelo menos 10% dos pacientes com PID desenvolvem
persistente e progressivamente parkinsonismo importante, apesar da
descontinuação do agente infrator, o que pode representar um déficit
dopaminérgico neuronal pré-clínico.
Para o tratamento, pode-se tentar retirar ou reduzir os antagonistas da
dopamina (se possível) e monitorar o paciente por um período de pelo menos 6
meses. Em pacientes psiquiátricos que necessitem de uso crônico de
antipsicóticos é sugerida a troca para um medicamento com menor afinidade
pelos receptores D2, como ASG. Apenas a quetiapina e a clozapina
demonstraram não piorar o parkinsonismo, mas doses maiores de quetiapina e
de outros, como olanzapina, risperidona e aripiprazol podem causar PID. Se o
parkinsonismo persistir por mais de 6 meses após a descontinuação do
antagonista de dopamina, deve-se suspeitar de DP subjacente. Drogas
anticolinérgicas são frequentemente usadas com base em poucas evidências e
pequenos estudos, assim como o uso da amantadina. A levodopa não é
frequentemente usada no PID devido à potencial piora da psicose.
7. TRANSTORNOS TARDIOS DO MOVIMENTO
Os distúrbios do movimento tardios induzidos por medicamentos podem ocorrer
durante o tratamento ou dentro de 6 meses após a interrupção deste, e estão
presentes por pelo menos um mês. Deve haver duração mínima da exposição ao
medicamento por pelo menos três meses ou um mês em adultos com mais de 60
anos. Os medicamentos mais comumente implicados incluem antipsicóticos,
antieméticos e alguns antagonistas dos canais de cálcio com propriedades
bloqueadoras de receptores de dopamina (cinarizina e flunarizina).
Embora o risco relativo de síndromes tardias seja menor com antipsicóticos
de segunda geração (ASG) em relação a antipsicóticos de primeira geração
(APG), o risco não é desprezível e, como os ASGs são mais amplamente
prescritos, é provável que o número absoluto de novos casos de síndromes
tardias esteja aumentando.
Os distúrbios do movimento tardio incluem discinesias (tipicamente
orobucolingual), estereotipias, acatisia, distonia (focal, segmentar ou
generalizada), mioclonia, tremor, tiques e parkinsonismo tardio. O quadro 4
resume os tratamentos empregados nos transtornos do movimento tardios.

7.1. Discinesia tardia


A discinesia tardia (DT) se manifesta como movimentos repetitivos,
coordenados e aparentemente intencionais afetando principalmente a área
orofacial. Os movimentos orobucolinguais são frequentemente complexos e
aparecem como mastigação, desvios da mandíbula, abertura ou fechamento da
mandíbula, franzido ou estalado dos lábios ou movimentos anormais da língua.
Coreia pode ocorrer, mas geralmente no contexto da discinesia de abstinência,
que ocorre devido à redução ou descontinuação dos antagonistas da dopamina.
Para distinguir da discinesia da abstinência, na induzida pela medicação os
movimentos devem estar presentes por pelo menos 1 mês.
Fatores de risco para o desenvolvimento de discinesia tardia (DT), incluem
transtorno afetivo, idade avançada, sexo feminino, exposição acumulativa total
do medicamento, diabetes, abuso de álcool e cocaína, persistência do uso de
drogas neurolépticas após o desenvolvimento de DT, e uma história de
eletroconvulsoterapia. Muitos pacientes com DT apresentam uma combinação
de distúrbios do movimento, o que deve alertar o médico para a possibilidade de
um distúrbio do movimento induzido por drogas. Mais frequentemente, a
discinesia tardia é combinada com movimentos coreicos das mãos, dos dedos,
dos braços e dos pés ou com distonia.
Embora a fisiopatologia exata da discinesia tardia seja desconhecida, uma
das teorias comumente atribuídas é a da hipersensibilidade ao receptor de
dopamina (em particular ao receptor D2). Como a ativação da via indireta
resulta em escassez de movimentos, a estimulação/atividade do receptor D2 em
excesso inibe a via indireta, resultando em hipercinesia. Vários achados
sustentam essa teoria: a redução da dose de antagonista de dopamina pode
precipitar discinesia tardia (síndrome emergente de abstinência) ou agravar a
DT existente, enquanto aumentar a dose pode mascarar temporariamente os
sintomas, e discinesia induzida pela levodopa em pacientes com DP se
assemelham aos movimentos observados em DT.
Impedir o desenvolvimento de DT é um dos princípios mais importantes no
uso de antipsicóticos para doenças psiquiátricas e a necessidade da medicação,
bem como a dose, deve ser revisada periodicamente, mesmo em pacientes sem
sinais de DT, prezando-se sempre pela menor dose necessária. A cada 3 a 6
meses, os pacientes devem ser examinados quanto a sinais precoces de DT e, se
houver sinais, deve-se diminuir gradualmente o antipsicótico e mudar para um
atípico, o que pode impedir um agravamento, sendo preferida a clozapina. A
mudança para a monoterapia com clozapina é recomendada por apresentar
menor risco de efeitos colaterais em relação aos outros ASGs.
A discinesia emergente de abstinência pode ocorrer com a interrupção
abrupta do tratamento antipsicótico a longo prazo, principalmente em crianças, e
melhora com a retomada do medicamento; após reinício, a dose pode então ser
gradualmente reduzida. Assim, às vezes, é necessário retomar o medicamento
agressor ou mudar para um antipsicótico atípico. Uma variedade de drogas tem
sido usada no tratamento sintomático da DT, mas nenhuma é uniformemente
eficaz. Muitos medicamentos têm sido utilizados no tratamento sintomático,
mas são baseados em pequenos estudos. Agentes que destroem a dopamina,
como reserpina ou tetrabenazina, são os mais usados frequentemente. Outros
medicamentos incluem amantadina, benzodiazepínicos, baclofeno, ácido
valproico, donepezila, lítio, zonisamida, melatonina e zolpidem. Com base na
teoria de que o estresse oxidativo pode estar implicado na fisiopatologia da DT,
vários antioxidantes foram experimentados: vitamina E, vitamina B6 e Ginkgo
biloba. Os primeiros medicamentos especificamente indicados para o tratamento
da síndrome tardia foram os inibidores do transportador de monoamina
vesicular 2 (VMAT2) (valbenazina e deutetrabenazina), que foram aprovados
nos EUA em 2017 (ainda não disponíveis no Brasil).

7.2. Distonia tardia


A distonia tardia, uma forma menos comum, porém mais incapacitante, de
síndrome tardia, tende a ocorrer em homens jovens (aproximadamente 30 anos);
em comparação com a discinesia tardia, que ocorre principalmente em mulheres
idosas (aproximadamente 60 anos ou mais) e é manifestada como postura
anormal sustentada, às vezes com espasmos sobrejacentes que podem ser focais
(uma região do corpo), segmentares (regiões do corpo contíguas) ou
generalizadas. As manifestações distônicas tardias mais comumente envolvem
as mãos e a mandíbula. É importante destacar que drogas anticolinérgicas
tendem a piorar a discinesia tardia clássica, mas são benéficas na distonia tardia.
Para distonia tardia, as injeções de toxina botulínica podem ser uma opção,
mas também existem evidências escassas. A estimulação cerebral profunda do
globus pallidus interno tem sido usada para tratar distonia tardia grave e
discinesia refratária à terapia médica. Os tratamentos cirúrgicos devem ser
usados apenas para aqueles com movimentos intoleráveis que não respondem à
terapia médica e realizados em centros com médicos experientes.

7.3. Acatisia tardia


Em contraste com a acatisia aguda, a acatisia tardia não desaparece com a
descontinuação do antagonista de dopamina. A acatisia persistente é definida
como estar presente por pelo menos 1 mês quando o paciente estiver em uma
dose constante de um antagonista de dopamina e ocorre em cerca de 20% a 40%
dos esquizofrênicos em uso de antipsicóticos. Os fenômenos motores da acatisia
tardia são semelhantes aos da acatisia aguda, porém acredita-se que a
experiência subjetiva de angústia pode ser maior nessa em comparação com
aquela.
A acatisia tardia não responde consistentemente a nenhuma terapia
farmacológica e os pacientes expressam sintomas de angústia, violência e até
ideação suicida. Devido à alta taxa de prescrição, frequência e baixa
reversibilidade, as síndromes tardias são uma questão clínica importante e
recomenda-se a vigilância de todos os pacientes tratados com antagonistas da
dopamina.

Quadro 4. Tratamento dos TMID tardios

Distúrbio do movimento Tratamento

Discinesia tardia Clozapina

Toxina botulínica
Distonia tardia Estimulação cerebral profunda
Tratamento cirúrgico

Acatisia tardia Vigilância e prevenção

Fonte: síntese elaborada pelos autores.

8. REDESCOBRINDO O CASO (PONTOS-CHAVE)


1 Sexo feminino

2 Idade mais avançada

3 Antipsicótico típico

4 Rigidez

5 Característica do tremor

6 Bradicinesia

7 Hipomimia fácil

A paciente Conceição está com parkinsonismo induzido pelo uso de


psicotrópicos, mais especificamente o antipsicótico típico haloperidol. Como
estamos diante de uma paciente com transtorno bipolar, precisamos identificar
em qual fase da doença ela se encontra. Caso seja uma paciente de menor
gravidade, há muito tempo estável, é preciso se certificar se a litemia está na
faixa terapêutica (0,6 a 1,2 mEq/L) e então pode-se tentar a suspensão gradual
do antipsicótico. Julgando-se a necessidade do uso de um antipsicótico, deve-se
trocar o atual por um de segunda geração. Além de menor incidência de
parkinsonismo, o antipsicótico atípico tem ação estabilizadora de humor, o que
traria benefício adicional para Conceição. A associação duradoura com
anticolinérgicos, como o biperideno, é opção menos desejada considerando a
idade mais avançada da paciente e, por conseguinte, maior exposição a efeitos
adversos colinérgicos.

Exemplo de uma prescrição para Conceição


Suspensão do haloperidol
+
Olanzapina 2,5 mg, 1 comprimido, via oral, à noite, por 3 dias. Após esse
prazo, passar a tomar:
Olanzapina 5 mg, 1 comprimido, à noite.
+
Biperideno 2 mg, 1 comprimido, via oral, pela manhã por curto período
(enquanto durar o parkinsonismo).

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10. Martino D, Karnik V, Osland S, Barnes TRE, Pringsheim TM. Movement Disorders Associated
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receptor blocking agents: experience from a university-based movement disorder clinic. Tremor
Other Hyperkinet Mov. 2014; 4: 266.

SIGLAS

• APG Antipsicótico de Primeira Geração


• ASG Antipsicótico de Segunda Geração
• DP Doença de Parkinson
• DT Discinesia Tardia
• ISRS Inibidor Seletivo de Recaptação da Serotonina
• PID Parkinsonismo Induzido por Droga
• SNM Síndrome Neuroléptica Maligna
• SPH Síndrome de Parkinsonismo-Hiperpirexia
• TE Tremor Essencial
• TIM Tremor Induzido por Medicamento
• TMID Transtorno do Movimento Induzido por Droga
Além da busca por vencer os desafios da sobrevivência, a procura por
fontes de prazer imediato fez o homem buscar nas substâncias gratificação
extra, além das provisões de comida, abrigo e atividade reprodutiva. Os
efeitos prazerosos das substâncias psicoativas são capazes de aliviar,
momentaneamente, sensações angustiantes (ou mesmo intensificar
sensações já agradáveis) e servem ao homem como mecanismo de fuga, ou
de alento, em situações de estresse.
Não é apenas o uso de substâncias psicoativas que determina o
desenvolvimento de transtornos psiquiátricos. A engrenagem disfuncional
entre a substância, o sujeito e a relação entre esses e o meio social é que
deriva sintomas cognitivos, comportamentais e fisiológicos. Dentre as
condições psiquiátricas relacionadas às substâncias psicoativas, destacamos
nos capítulos dessa seção os transtornos por uso de substâncias (álcool,
tabaco e crack/cocaína), termo utilizado para substituir “dependência
química” (a expressão dependência química será ainda bastante utilizada no
decorrer dos capítulos devido sua enorme capilaridade no meio médico e
acadêmico).
O comportamento de dependência caracteriza-se pelo uso contínuo e
recorrente de alguma substância psicoativa, marcado pelo baixo controle
sobre esse uso, prejuízos psíquicos e sociais evidentes, riscos físicos e
psicológicos, além do surgimento de tolerância e abstinência.
O baixo controle é marcado pelas tentativas frustradas em parar ou
diminuir o consumo. É comum o surgimento de fissura (intenso desejo de
consumir a substância) e com isso, as atividades cotidianas margeiam a
obtenção e uso da droga, usando muito tempo do paciente em conseguir e
em consumir a substância.
Rompimentos nos laços sociais como fim de matrimônio, abandono dos
e pelos filhos, faltas ao trabalho (e desemprego), queda no rendimento
acadêmico, ou restrição nas atividades prazerosas, além de acidentes,
exposição a riscos de violência física e psicológica, são prejuízos usuais.
A tolerância refere-se à necessidade de consumir doses cada vez
maiores para se atingir o efeito que doses menores induziam previamente.
Isso se reflete no consumo cada vez mais intenso e frequente aumentando o
risco de todos os outros prejuízos listados acima. A abstinência acontece
quando a concentração da droga no organismo cai e precipita sintomas
físicos e mentais da sua ausência. Os sintomas são variados e diferem de
acordo com a substância implicada. Entretanto, a presença de tremores,
ansiedade, irritabilidade, sudorese e insônia é bastante comum nas mais
diversas substâncias psicoativas.
1. CASO CLÍNICO
Danúzio, 47 anos, veio para atendimento em unidade básica de saúde relatando
vontade de parar de beber etílicos. Tem o hábito de beber diariamente em
grandes quantidades. Refere “depressão” após divórcio, mas não vem tomando
as medicações prescritas anteriormente. Está desempregado e diz não ter ânimo
para trabalhar. Chora por não ter mais contato com os filhos e a ex-mulher.
Iniciou o hábito de beber na adolescência e vinha em uso diário de álcool nos
últimos dois anos, referindo tentativas frustradas de parar o uso.

Exame mental e físico: desidratado, apresentando dor abdominal difusa ao


palpar, sem sinais de gravidade, hipotímico, sem sintomas psicóticos.

2. DISCUTINDO O DIAGNÓSTICO
O álcool é uma substância psicoativa de referência bíblica. Está presente em
diversas culturas, mediando diferentes aspectos das relações humanas. Seu uso é
não só aceito, mas reforçado socialmente. Encontram-se representações
milenares, fazendo com que sua história se funda à própria história da
humanidade. Seu consumo guarda uma relação complexa com a saúde, restando
ainda incógnitas, mesmo diante dessa relação tão antiga com o homem. Há uma
melhora do humor a curto prazo e a supressão de emoções negativas, ajudando
o usuário a superar sensações como ansiedade e insegurança. O uso da
substância pode passar a ser condicionado pela busca desses efeitos, podendo,
se usada em excesso, se tornar uma maneira inadequada de lidar com as
demandas da vida, aumentando a probabilidade de beber regularmente.
O uso de álcool é reforçado não só pelos efeitos farmacológicos do etanol,
mas também por aprendizado e influência social, de acordo com as
circunstâncias que cercam o consumo. Até mesmo estímulos previamente
neutros, sem relação com o beber, como lugares, pessoas, músicas e objetos,
podem, se repetidamente pareados ao consumo de álcool, tornar-se estímulos
eliciadores do desejo de consumo da substância.
Uma vez que se manifeste uma condição de necessidade de uso da
substância, seja psicológica, associada a inabilidades de lidar com o mundo sem
um mediador psicoativo, seja biológica, por busca de efeitos prazerosos ou
esquiva de sintomas fisicamente desagradáveis de descontinuação, estabelece-se
uma relação patológica entre o sujeito e a substância, que reforça seu consumo
tanto pela busca dos efeitos agudos quanto para não experimentar os efeitos da
sua privação, podendo levar ao adoecimento e à cronicidade.
O álcool é, quimicamente, um depressor do Sistema Nervoso Central (SNC),
porém, em doses menores, tem efeitos euforizantes. Os efeitos esperados variam
não só com a dose, mas também com o volume de distribuição no organismo
(água corporal total, por ser bastante hidrofílico), com a tolerância individual e a
capacidade de metabolização. Níveis de alcoolemia como 400 mg/dL podem
levar ao coma em um bebedor iniciante, mas podem não o fazer em um bebedor
crônico.

Quadro 1 - Relação entre níveis de alcoolemia e sinais e sintomas

Alcoolemia (mg/dl) Efeitos

Aumento do ritmo cardíaco e respiratório.


Diminuição da atenção.
10-50 Comportamento incoerente ao executar tarefas.
Diminuição da capacidade de julgamento e perda de inibição.
Leve sensação de euforia, relaxamento e prazer.

Diminuição de atenção, julgamento e controle.


Reflexos mais lentos.
60-100
Dificuldade de coordenação e redução da força muscular.
Redução da capacidade de tomar decisões ou de discernimento.

Reflexos consideravelmente mais lentos.


Alterações do equilíbrio e do movimento.
100-150 Alteração de algumas funções visuais.
Dificuldade na fala.
Vômito, sobretudo se essa alcoolemia for atingida rapidamente.
Alcoolemia (mg/dl) Efeitos

Alteração da coordenação motora e do equilíbrio, com quedas.


Estado emocional exagerado (medo, aborrecimentos, aflição).
160-290
Distúrbio da sensação e da percepção de cores, formas, movimentos e
dimensões.

Letargia profunda.
300-390 Perda de consciência.
Estado de sedação comparável ao de uma anestesia cirúrgica.

Inconsciência.
Incontinência urinária e fecal.
> 400
Parada respiratória.
Morte, em geral provocada por insuficiência respiratória.

Fonte: adaptado de Rackkorsky LL, Zerbini T, Cintra RB.4

A quinta edição do Manual Diagnóstico e Estatístico dos Transtornos


Mentais (DSM-5) traz a seguinte classificação a respeito dos transtornos
relacionados ao uso de álcool, apresentada no Quadro 2.

Quadro 2 - Transtornos relacionados ao uso de álcool

Diagnóstico no DSM-5 Especificadores

Leve
Transtorno por Uso de Álcool Moderado
Grave

Com transtorno por uso, leve


Com transtorno por uso, moderado ou
Intoxicação por Álcool
grave
Sem transtorno por uso
Diagnóstico no DSM-5 Especificadores

Sem perturbações da percepção


Abstinência de Álcool
Com perturbações da percepção

Outros Transtornos Induzidos por Álcool


Transtornos psicóticos (I/A)
Transtornos bipolares (I/A)
Transtornos depressivos (I/A)
Transtornos de ansiedade (I/A) I – Com início na intoxicação
Transtorno obsessivo-compulsivo e A – Com início na abstinência
transtornos relacionados (I/A) P – Persistente
Transtornos do sono (I/A)
Disfunções sexuais (I/A)
Delirium (I/A)
Transtornos neurocognitivos (I/A/P)

Transtorno Relacionado
-
ao Álcool Não Especificado

Fonte: adaptado de American Psychiatric Association.19

O uso de álcool abrange um espectro amplo de comportamentos, que podem


diferir em frequência e intensidade de uso e em comportamentos e prejuízos
associados. Diversas definições, como “uso indevido”, “uso prejudicial”, “uso
pesado”, “uso arriscado”, “uso abusivo” e “uso nocivo” surgem ora para reduzir
o impacto social pejorativo de termos como “alcoólatra” ou “dependente”, ora
para auxiliar na identificação do nível de gravidade e no direcionamento do
tratamento. Essas definições costumam se confundir entre referências distintas,
mas, grosso modo, costumam ser usadas para definir os seguintes fenômenos:

1. Padrões de uso não saudável de forma geral, abrangendo todo o


espectro.
2. Padrões de uso com risco elevado de agravo.
3. Padrões de uso associados à existência de danos à saúde (física, psíquica
ou social).

O risco elevado de agravo à saúde está associado a ingerir mais do que as


quantidades episódicas, diárias ou semanais recomendadas, que costumam estar
imitadas a:

• 3 a 5 doses padrão por dia ou ocasião;


• 7 a 14 doses padrão por semana;
• Qualquer nível de consumo em situações específicas, como uso de
medicamentos que interagem com o álcool, condições médicas
agravadas pelo uso de álcool, ser menor de idade ou gestante, antes de
conduzir veículos ou máquinas.

O termo “dependência” (CID-10) está relacionado a uma síndrome


comportamental de maior gravidade, quando comparada ao “uso nocivo”
(Quadro 3). Esse entendimento é tácito. Porém, é equívoco pensar que a
síndrome de dependência é definida pela ocorrência de Síndrome de
Abstinência Alcoólica (SAA). Embora, na dependência de álcool, a ocorrência
de SAA seja bastante comum, esta não é uma condição sine qua non para o
diagnóstico daquela.
Ou seja, pode haver síndrome de dependência sem ter havido síndromes de
abstinência. Da mesma forma que desenvolver tolerância ou síndrome de
abstinência não é patognomônico do diagnóstico de uma síndrome de
dependência. Por exemplo, usuários de opioides para quadros de dor crônica
estão expostos aos riscos de desenvolver tolerância e, consequentemente,
síndromes de abstinência, dado o uso crônico, mas sem relação de dano, muito
mais de benefício e melhora da qualidade de vida.
Identificar um padrão problemático de uso, que compromete o
comportamento e a funcionalidade e que causa sofrimento clinicamente
significativo é a forma mais coerente de chegar ao diagnóstico de
“dependência”. É mais importante do que meramente enumerar critérios
diagnósticos. Nessa condição, um padrão compulsivo de uso se estabelece,
trazendo dificuldade de limitar a ingestão da substância, mesmo diante das
consequências adversas produzidas, sejam sociais, biológicas ou psicológicas.

Quadro 3 - “Uso nocivo” e “síndrome de dependência”, segundo a CID-10

Uso nocivo para a saúde (CID-10 F10.1): modo de consumo de uma substância psicoativa que é
prejudicial à saúde. As complicações podem ser físicas, como hepatite, por exemplo, ou psíquicas,
como episódios depressivos secundários a grande consumo de álcool.
Síndrome de dependência (CID-10 F10.2): conjunto de fenômenos comportamentais, cognitivos e
fisiológicos que se desenvolvem após repetido consumo de uma substância psicoativa, tipicamente
associado ao desejo poderoso de tomar a droga, à dificuldade de controlar o consumo, à utilização
persistente apesar das suas consequências nefastas, a uma maior prioridade dada ao uso da droga em
detrimento de outras atividades e obrigações, a um aumento da tolerância pela droga e por vezes, a
um estado de abstinência física.

Fonte: World Health Organization.20

É importante frisar que a denominação “dependência” adquiriu cunho


pejorativo, assim como ocorreu com diversas outras condições de saúde
marginalizadas socialmente. Diversos termos alternativos foram propostos na
expectativa de que se reduzisse o estigma carregado por essa nomenclatura,
porém, a enxurrada de conceitos, na prática, trouxe bastante confusão.
A evolução conceitual em torno do termo “dependência” também tenta
desfazer essa relação, não só para efeito social, mas também para destacar que o
espectro de problemas relacionados ao álcool tem gravidade variável e casos
menos graves também devem ser alvo de atenção. O diagnóstico de
“dependência”, reservado a casos graves, na prática, nos faz dar menor
importância e negligenciar iniciativas de cuidado que abranjam também a
população em risco e com quadros menos graves.
Trabalhar mais com conceitos abrangentes do que com listas de critérios
diagnósticos parece mais prático. O DSM-5 sugere uma “simplificação” do uso
dos critérios diagnósticos, juntando os 11 critérios possíveis para o diagnóstico
de transtorno por uso de álcool em quatro grupamentos gerais, conforme o
quadro a seguir, minimizando a dificuldade para identificar os quadros
patológicos.

Quadro 4 - Critérios diagnósticos para transtorno por uso de álcool

Grupamento geral Critério (DSM-5)


Grupamento geral Critério (DSM-5)

A substância é frequentemente consumida em maiores quantidades ou por um


período mais longo do que o pretendido.

Existe um desejo persistente ou esforços malsucedidos no sentido de reduzir


ou controlar o seu uso.
Baixo controle
Muito tempo é gasto em atividades necessárias para a obtenção, para o uso e
para a recuperação dos efeitos da substância.

Fissura ou um forte desejo ou necessidade de usar a substância.

Uso recorrente da substância, resultando no fracasso em desempenhar papéis


sociais importantes (trabalho, escola, casa etc.)

Uso continuado da substância, apesar de problemas sociais ou interpessoais


Deterioração social
persistentes ou recorrentes causados ou exacerbados por seus efeitos.

Importantes atividades sociais, profissionais ou recreacionais são


abandonadas ou reduzidas em virtude do uso da substância.

Uso recorrente da substância em situações nas quais isso representa perigo


para a integridade física.

Uso arriscado
O uso da substância é mantido apesar da consciência de ter um problema
físico ou psicológico persistente ou recorrente que tende a ser causado ou
exacerbado por ela.

Tolerância:
a. Necessidade de quantidades progressivamente maiores da substância para
alcançar a intoxicação ou o efeito desejado.
b. Efeito acentuadamente menor com o uso continuado da mesma quantidade
Critérios da substância.
farmacológicos
Síndrome de Abstinência:
a. Síndrome característica.
b. A própria substância ou uma substância quimicamente relacionada é
consumida para aliviar ou evitar os sintomas de abstinência.

Fonte: American Psychiatric Association.19


Quanto mais incluso nesses grupamentos estiver o sujeito na sua relação
patológica com o álcool, mais grave é sua condição.

3. ASPECTOS SOBRE EPIDEMIOLOGIA E


ETIOLOGIA
Pesquisas indicam uma relação causal entre o volume médio de consumo de
álcool e dezenas de agravos à saúde, entre afecções crônicas e agudas, incluindo
diversas neoplasias, condições neuropsiquiátricas, doenças cardiovasculares,
condições gastrointestinais, baixo peso ao nascer e lesões agudas (intencionais
ou não). Como exemplo, podemos citar cânceres de boca e orofaringe, de
esôfago, de fígado e de mama, depressão maior, epilepsia, transtornos por uso
de álcool, hipertensão, doença cardíaca isquêmica, doença cerebrovascular,
diabetes mellitus, cirrose hepática, acidentes automobilísticos, afogamentos,
quedas, envenenamentos, lesões autoinfligidas e homicídio.
Qualquer padrão de consumo de álcool está associado ao aumento de risco
de agravo à saúde. Embora haja alguma relação benéfica entre o álcool, doenças
cardíacas isquêmicas e diabetes tipo II, essa relação é restrita a padrões
específicos de consumo e não é extensível a outras condições crônicas nem a
nenhuma condição aguda, para as quais nenhum padrão de consumo provou ter
efeitos benéficos.
Quando avaliada a carga global das doenças relacionadas ao consumo de
álcool em termos de perda de anos de vida saudáveis (anos de vida perdidos por
morte prematura ou por incapacidade), qualquer padrão de consumo que
ultrapasse o equivalente a 10 g de álcool etílico puro por dia está associado ao
aumento de anos perdidos, e nenhum padrão de consumo está relacionado a
benefícios. A unidade de medida padrão de consumo de álcool varia entre 10 a
12 g de álcool etílico puro. O quadro a seguir mostra como pode ser feito esse
cálculo para 50 mL de vodca (teor alcoólico 40%).

Quadro 5 - Cálculo da massa de álcool contida em 50 mL de Vodka

Massa de álcool Volume da Teor alcoólico da Densidade do


= x x
etílico bebida bebida álcool etílico

Massa de álcool
= 50 ml x 0,4 x 0,789 g/ml
etílico
Massa de álcool = 15,78 g
etílico

Fonte: adaptado Carvalho AF, Heilig M, Perez A, Probst C, Rehm J.13

O modelo explicativo para o consumo prejudicial de substâncias tem no


álcool seu protótipo. Os desfechos intermediários e de longo prazo podem ser
esquematizados pela figura a seguir.

Figura 1 - Modelo explicativo para o consumo prejudicial de substâncias

Fonte: adaptada de World Health Organization.8

Quase metade da população mundial maior de 15 anos (43%) é usuária atual


de álcool. Nas Américas, essa taxa chega a 54,1%, perdendo apenas para a
Europa (59,9%). Quase metade de toda a bebida alcoólica é consumida na
forma de destilados (44,8%). O segundo tipo de bebida mais consumido é a
cerveja (34,3%), sendo esta a preferência nas Américas (53,8%).
Em 2016, o “Consumo Episódico Intenso”, definido pela OMS como 60 ou
mais gramas de álcool etílico puro em, pelo menos, uma única ocasião e, pelo
menos, uma vez por mês (esse limite é reduzido para mulheres) é encontrado
em mais de 60% dos bebedores atuais em vários países, com destaque para
Federação Russa, Bulgária, Polônia, Romênia, Angola e República Democrática
do o Congo. Taxas entre 45% e 60% podem ser encontradas na Austrália, na
Bolívia, no Brasil, no Paraguai e no Peru.
Em 2019, um inquérito nacional telefônico realizado nas 27 capitais
brasileiras verificou uma frequência de consumo episódico intenso nos últimos
30 dias de 18,8% (considerando a população geral maior de 18 anos, não apenas
os bebedores atuais), sendo maior em homens (25,3%) do que em mulheres
(13,3%). Em ambos os sexos, essa frequência diminui com a idade e aumenta
com o nível de escolaridade. A mesma pesquisa, realizada quase anualmente,
mostra um padrão estável, porém desfavorável, quanto ao consumo de álcool na
população maior de 18 anos entre 2006 e 2019.
Globalmente, o uso de álcool foi o principal fator de risco para mortes
prematuras, em 2016, na população de 15 a 49 anos, podendo ser atribuíveis ao
álcool 3,8% de mortes de mulheres e 12,2% de mortes masculinas. As três
principais causas de mortes atribuíveis ao álcool nessa faixa etária foram
tuberculose (1,4% do total), lesões na estrada (1,2% do total) e automutilação
(1,1% do total). Para populações com 50 anos ou mais, o câncer representou
uma grande proporção do total de mortes atribuíveis ao álcool em 2016,
constituindo 27,1% do total de mortes femininas e 18,9% das mortes de
homens.
A lacuna de tratamento para os transtornos relacionados ao uso de álcool
chega a mais de 75%. Ou seja, menos de um terço dos pacientes identificados
com problemas relacionados à substância recebem algum tratamento. A maioria
dos médicos de família e pediatras não questionam sobre o abuso de álcool
entre seus pacientes de forma universal, ou não os aconselham
consistentemente.
Sobre a etiologia e como o álcool interage com o organismo, podemos
comentar que ele atua como modulador alostérico positivo da neurotransmissão
GABAérgica, potencializando a neurotransmissão do GABA, principal
neurotransmissor inibitório do sistema nervoso central (SNC). Além disso, atua
na inibição da neurotrasmissão glutamatérgica, sendo o glutamato o principal
neurotransmissor excitatório central. O resultado dessa interferência são efeitos
inibitórios, que incluem sedação, lentificação, incoordenação motora, perda das
inibições e relaxamento.
Os efeitos do uso crônico e frequente de álcool nesses sistemas
neurotransmissores leva a uma redução do número de receptores GABA, e
aumento dos receptores de glutamato. É uma forma de “adaptação” do
organismo, que leva a uma menor sensibilidade fisiológica aos efeitos da
substância. Esse mecanismo está relacionado à tolerância do corpo à presença
do álcool.
Uma vez que haja redução da dose ingerida ou abstenção do uso da
substância, esse mecanismo, antes adaptado à presença constante de álcool,
passará, agora, a um estado hiperexcitado, devido a uma combinação de
neurotransmissão GABAérgica deficiente e glutamatérgica exacerbada.
O resultado dessa combinação ajuda a explicar os sintomas de
hiperexcitação do SNC durante uma síndrome de abstinência, em que podem
ocorrer diaforese, tremor, taquicardia, hipertensão, irritabilidade, delírios,
alucinações, convulsões e morte neuronal. Os receptores glutamatérgicos
NMDA estão envolvidos na morte neuronal relacionada à neurotoxicidade do
uso crônico de álcool e à síndrome de abstinência.

Quadro 6 - Vias de neurotransmissores relacionadas ao consumo de álcool

Via de neurotransmissor Efeito no SNC

Inibição do SNC, manifestando-se como sedação, perda de inibições e


GABAérgica
relaxamento.

Funções cognitivas reduzidas, déficit de atenção e regulação prejudicada


Glutamatérgica
do sono-vigília; fenômeno de blackout.

Opioide/Dopaminérgico Prazer, satisfação, aumento da busca por álcool.

Serotoninérgica Sensação de bem-estar e elevação do humor.

Endocanabinoide Incoordenação motora, dificuldade de raciocínio lógico.


Via de neurotransmissor Efeito no SNC

Redução no tempo de latência e duração do sono, inibição motora,


Neuroesteroides
modulação da neurotransmissão GABAérgica e glutamatérgica.

Fonte: adaptado de Costardi JVV, Nampo RAT, Silva GL, Ribeiro MAF,
Stella HJ, Stella MB, Malheiros SVP.5

3.1. E aí? O que fazer?


Há evidências de que intervenções de aconselhamento são eficazes para adultos
envolvidos em consumo de risco. O aconselhamento é eficaz na redução de
episódios de consumo pesado, das taxas semanais de consumo de álcool e na
adesão aos limites de consumo recomendados.
Na prática, o rastreamento regular para o uso de álcool deve fazer parte das
rotinas de rastreamento das unidades de saúde. As verificações podem ser
realizadas por qualquer membro da equipe multiprofissional ou por meio dos
testes autoadministrados. Com base no nível de consumo de álcool e na
presença de comorbidades, as intervenções podem começar com
aconselhamentos e orientações de mudança de hábitos e estilo de vida, visando
reduzir o consumo de risco. Em casos mais graves, quando as abordagens
iniciais forem malsucedidas, tratamento psicológico e farmacológico específicos
e intervenções em outros aparelhos de saúde devem ser consideradas e a equipe
multiprofissional deve dividir atribuições de forma a permitir o
acompanhamento mais próximo desses pacientes.
Apresentamos uma ferramenta para triagem do uso indevido de álcool no
ambiente de cuidados primários: Teste de Identificação de Transtornos por Uso
de Álcool (AUDIT). O AUDIT é o mais amplamente estudado para detectar o
uso indevido de álcool em unidades de atenção primária. Compreende 10
perguntas e requer aproximadamente 2 a 5 minutos para ser aplicado.

Quadro 7 - AUDIT

1. Com que frequência consome 6. Nos últimos 12 meses, com que


bebidas que contêm álcool? frequência precisou beber logo de
manhã para “curar” uma ressaca?
0 = nunca
1 = uma vez por mês ou menos 0 = nunca
2 = duas a quatro vezes por mês 1 = menos de uma vez por mês
3 = duas a três vezes por semana 2 = pelo menos uma vez por mês
4 = quatro ou mais vezes por semana 3 = pelo menos uma vez por semana
4 = diariamente ou quase diariamente

2. Quando bebe, quantas bebidas 7. Nos últimos 12 meses, com que


contendo álcool consome num dia frequência teve sentimentos de culpa
normal? ou de remorso por ter bebido?

0 = uma ou duas 0 = nunca


1 = três ou quatro 1 = menos de uma vez por mês
2 = cinco ou seis 2 = pelo menos uma vez por mês
3 = de sete a nove 3 = pelo menos uma vez por semana
4 = dez ou mais 4 = diariamente ou quase diariamente

8. Nos últimos 12 meses, com que


3. Com que frequência consome seis frequência não se lembrou do que
bebidas ou mais numa única ocasião? aconteceu na noite anterior por causa
de ter bebido?
0 = nunca
1 = menos de uma vez por mês 0 = nunca
2 = pelo menos uma vez por mês 1 = menos de uma vez por mês
3 = pelo menos uma vez por semana 2 = pelo menos uma vez por mês
4 = diariamente ou quase diariamente 3 = pelo menos uma vez por semana
4 = diariamente ou quase diariamente

4. Nos últimos 12 meses, com que 9. Alguma vez ficou ferido ou alguém
frequência se apercebeu de que não ficou ferido por você ter bebido?
conseguia parar de beber depois de
0 = não
começar?
1 = sim, mas não nos últimos 12 meses
0 = nunca 2 = sim, aconteceu nos últimos 12
1 = menos de uma vez por mês meses
2 = pelo menos uma vez por mês
3 = pelo menos uma vez por semana
4 = diariamente ou quase diariamente

5. Nos últimos 12 meses, com que 10. Alguma vez um familiar, amigo,
frequência não conseguiu cumprir as médico ou profissional de saúde
tarefas que habitualmente lhe exigem manifestou preocupação pelo seu
por ter bebido? consumo de álcool ou sugeriu que
deixasse de beber?
0 = nunca
1 = menos de uma vez por mês 0 = não
2 = pelo menos uma vez por mês 1 = sim, mas não nos últimos 12 meses
3 = pelo menos uma vez por semana 2 = sim, aconteceu nos últimos 12
4 = diariamente ou quase diariamente meses

0 a 7 - Consumo de Baixo Risco 16 a 19 - Uso Nocivo


8 a 15 - Uso de Risco 20 ou mais - Provável Dependência

Fonte: adaptado de Seth P, Glenshaw M, Sabatier JHF, Adams R, Du Preez V,


DeLuca N, Bock N.18

4. TRATAMENTO NÃO FARMACOLÓGICO


Apesar de uma proporção importante de transtornos relacionados ao uso de
álcool melhorar sem intervenção formal, o tratamento ideal sempre inclui, pelo
menos, abordagens não farmacológicas. Muito se publica a respeito de
tratamentos psicoterapêuticos, com notório destaque para as Terapias Cognitivo-
Comportamentais (TCC), que, deveras, para indivíduos ou grupos, têm
resultados positivos. Mas reproduzir os resultados de publicações implica dispor
de ambientes terapêuticos adequados e profissionais habilitados.
Essa não é a realidade da maioria dos ambientes terapêuticos para os
pacientes com problemas relacionados ao uso/abuso de substâncias psicoativas.
Os serviços não especializados não contam com pessoal treinado suficiente e a
maioria dos profissionais não está familiarizada com a aplicação de
intervenções psicoterapêuticas ou psicossociais. Porém, a incapacidade de
fornecer apoio psicológico especializado não deve ser justificativa para
negligenciar a prestação de cuidados ou a aplicação de alguma intervenção,
mesmo que menos formal ou apenas farmacológica, quando indicada.
4.1. Aconselhamento Comportamental (AC)
Nos contextos não especializados, o AC pode ser aplicado com bons resultados.
Consiste em encontros sistematizados com o paciente, em que se tratam,
especificamente, da sua forma de beber, dos agravos e/ou riscos a que está
submetido e das possíveis estratégias de tratamento e acompanhamento.
Há evidências adequadas de que o AC é eficaz na prevenção do consumo de
risco e na redução dos episódios de consumo excessivo de álcool em adultos,
reduzindo as taxas de consumo semanal e aumentando a adesão aos limites
recomendados.
O AC pode ter “intensidade” (tempo e frequência) variável, a depender da
necessidade e da possibilidade do paciente. Pode abranger um contato único ou
vários contatos, e a duração pode ser muito breve (até 5 minutos), breve (6 a 15
minutos), ou estendida (mais que 15 minutos). Parece ter melhor evidência de
efetividade o AC que envolve vários contatos breves (6 a 15 minutos).
As sessões podem incluir encontros presenciais ou a distância (internet,
telefone), materiais de autoajuda e ferramentas cognitivo-comportamentais de
mais simples aplicação, como elaboração de planos de ação, elaboração de
diários do hábito de beber, gerenciamento das situações de risco, habilidades em
lidar com o estresse, a raiva, ou os problemas cotidianos.
“AC Simples” para o beber de risco (AUDIT = 8-15)
Intervenção apropriada para pessoas que, mesmo não experimentando ou
causando danos, estão sob risco de desenvolver agravos devido ao uso regular
excessivo de álcool: doenças crônicas; lesões, violência, ou problemas legais;
mau desempenho no trabalho ou problemas sociais devido a episódios de
intoxicação aguda.
O clínico deve observar o número de doses padrão diárias ou semanais e
determinar se os limites de baixo risco estão sendo excedidos, além de avaliar a
quantidade e a frequência dos episódios de intoxicação. Esses pacientes devem
receber aconselhamento para evitarem beber até a intoxicação e se manterem
dentro dos limites de baixo risco. Apesar da nomenclatura, trata-se de uma
abordagem mais estruturada que um mero conselho amistoso.

Quadro 8 - Aconselhamento simples

AC Simples – passo a passo


Passo 1 – Introduza o assunto
Pode-se introduzir o assunto baseando-se nos resultados AUDIT:
“Examinei os resultados do questionário que você respondeu. Pelas suas respostas, considero que você
pode estar em risco de ter problemas relacionados ao álcool, caso continue bebendo nos níveis atuais.
Gostaria de ter alguns minutos para conversarmos sobre isso.”

Passo 2 – Forneça feedback e informação


• Informe que o resultado do teste está relacionado a um beber de risco.
• Informe sobre os outros resultados possíveis do teste, inclusive do beber de baixo risco.
Pode-se utilizar a ilustração a seguir (“pirâmide de bebedores”)

“A Pirâmide dos Bebedores descreve quatro tipos de bebedores. Enquanto muitas pessoas se abstêm
completamente de álcool, a maioria dos bebedores bebem com sensatez. A terceira área (bebedores de
alto risco) representa bebedores cujo uso de álcool pode causar problemas. A área superior representa
pessoas que têm problemas graves e que, possivelmente, sejam dependentes de álcool. Suas respostas
ao questionário indicam que você está na categoria de alto risco e que seu modo de beber representa
riscos para sua saúde e para outros aspectos da sua vida.”

• Esclareça os efeitos relacionados ao beber de alto risco


Pode-se utilizar a ilustração a seguir.

“Esta imagem mostra alguns problemas de saúde que podem ser causados pelo consumo de álcool de
alto risco. Você já experimentou algum desses problemas? O melhor caminho para evitá-los é reduzir a
frequência e a quantidade de seu consumo, ou mesmo se abster completamente.”
Passo 3 – Discuta a necessidade de parar de beber ou reduzir o consumo

Oriente parar de beber se o paciente:

• Teve tentativas de parar anteriores malsucedidas.

• Tem tremores matinais durante períodos de bebedeira.

• Tem pressão alta, doença hepática, apresenta gravidez, ou toma medicamentos que reagem com o
álcool.
Oriente reduzir o consumo se o paciente:

• Conseguiu beber em níveis de baixo risco na maior parte do tempo no último ano.

• Não sofre de tremores matinais.

• Tem interesse em beber em níveis de baixo risco.


“Você teve algum sinal de dependência de álcool, como náuseas ou tremores pela manhã, ou você
consegue beber grandes quantidades de álcool sem parecer bêbado? Se for esse o caso, você deve
considerar parar completamente. Se você não bebe excessivamente na maioria das vezes e não sente
que perdeu o controle sobre a bebida, então você deveria diminuir.”

Passo 4 – Discuta sobre limites sensatos com o paciente que prefere reduzir

O que é um limite de baixo risco?

• Não mais do que duas doses padrão por dia.

• Não beber, pelo menos, dois dias da semana.

• Há momentos em que até mesmo uma ou duas doses padrão podem ser demais:
» Ao dirigir ou operar máquinas.

» Durante a gravidez ou amamentação.

» Ao tomar certos medicamentos.

» Se tem certas condições médicas.


» Se não consegue controlar a bebida.
“Não é recomendado que você beba mais do que duas doses padrão por dia. Se essa quantidade lhe
provocar efeitos, você deve beber menos ainda. Para minimizar o risco de desenvolver dependência,
pelo menos, dois dias na semana devem ser de abstinência. Sempre evite beber até se embriagar. Às
vezes, duas ou três doses padrão em uma única ocasião podem levar à embriaguez. Além disso, existem
situações em que você nunca deve beber, como as listadas aqui.”
Passo 5 – Revise: o que é uma “dose padrão”? [Também ver o Passo 1]
Pode-se utilizar a ilustração abaixo:

“É essencial entender a quantidade de álcool contida no que você está bebendo. Assim, você poderá
contar quantas doses consome a cada dia e tentar permanecer dentro dos limites de baixo risco.”

Passo 6 – Conclua com encorajamento


“Agora você já sabe sobre os riscos associados e os limites sensatos. Há alguma dúvida? Estou
confiante de que você siga esses conselhos e reduza o seu consumo a limites de baixo risco. Se você
achar difícil e não conseguir reduzir, por favor, avise, volte para outra consulta. Poderemos conversar
sobre isso novamente.”

Fonte: adaptado de World Health Organization.21

“AC Breve” para o beber nocivo (AUDIT = 16 a 19)


Intervenção apropriada para pessoas que, provavelmente, já experimentam
prejuízos à saúde física, mental ou social devido ao álcool regular excessivo de
álcool ou a intoxicações frequentes. Vale lembrar que, em certos casos, mesmo
abaixo dessas pontuações, o AC breve também está indicado, como para
gestantes ou lactantes ou para pessoas em uso de medicamentos, para quem o
consumo de álcool em qualquer nível é contraindicado.
O AC breve, diferente do AC simples, é uma abordagem mais sistematizada
e focada. Seu objetivo é fornecer ao paciente elementos para mudar hábitos e
lidar com situações de risco. É uma ferramenta expandida que requer mais
conteúdo e mais tempo do profissional assistente. Baseia-se na avaliação rápida,
no envolvimento rápido do paciente e na implementação imediata de estratégias
iniciais de mudança. O profissional deve reservar tempo suficiente e o conteúdo
deve ser direcionado ao problema do paciente com o álcool.
Existem 4 elementos essenciais para o AC breve:

1. Conselho
Deve-se seguir os mesmos procedimentos descritos para o AC Simples
como forma de iniciar uma discussão sobre o álcool. Caso o paciente apresente
problemas específicos relacionados ao uso excessivo, eles devem ser
enfatizados pelo profissional. O discurso passa a ser baseado em danos
concretos, reduzindo o grau de abstração e aumentando a carga afetiva
relacionada ao hábito nocivo.
2. Avaliação do Estágio Motivacional (adapte o conselho)
A avaliação diagnóstica envolve uma ampla análise dos fatores que
contribuem para a gravidade e as consequências do beber excessivo e para a
perpetuação do comportamento. O estágio motivacional do paciente pode variar
de nenhum interesse em mudar (pré-contemplação) para o real início de um
plano de mudança (estágio de ação).

Quadro 9 - Estágios de prontidão para a mudança

Estágios de mudança e os elementos de AC Breve associados

Estágio Definição Elementos a serem enfatizados

O bebedor não considera a mudança


Feedback sobre os resultados
Pré- imediata. Pode não estar ciente do
da triagem e informações sobre os
contemplação dano real ou potencial à saúde se
perigos de manter o padrão de beber.
continuar bebendo neste nível.

Informações sobre os problemas


O bebedor pode estar ciente das associados.
consequências relacionadas ao uso Enfatizar os benefícios de mudar e o
Contemplação
de álcool, mas é ambivalente sobre a risco de adiar a mudança.
mudança. Discutir como escolher objetivos e dar
os primeiros passos.

Definir objetivos e metas.


O bebedor já decidiu mudar e tem
Preparação Reafirmar o compromisso de mudança.
planos para agir.
Encorajar.
Estágios de mudança e os elementos de AC Breve associados

Estágio Definição Elementos a serem enfatizados

O bebedor começou a reduzir ou Revisão dos conselhos, das metas e dos


Ação parar de beber, mas a mudança não objetivos.
se tornou um recurso permanente. Encorajar.

O bebedor alcançou o consumo


Manutenção moderado ou a abstinência de forma Incentivar, encorajar.
relativamente permanente

Fonte: adaptado de World Health Organization.21

Deve-se aconselhar de forma adequada ao nível de motivação do paciente,


sempre atento à possibilidade de recaída. Após uma recaída, o paciente pode
não retornar prontamente ao estágio de preparação ou ação. Pode mesmo
retornar a estágios pré-contemplativos, e o plano de tratamento deve ser
readaptado.
O padrão de feedback, informação, seleção de metas, aconselhamento e
incentivo devem ser ditados pelo estágio de mudança atual do paciente. O
estabelecimento de metas deve ser individualizado. É importante o
estabelecimento de metas factíveis, pois o não atingimento das metas pode gerar
frustração e ser motivo para recaídas.
3. Treinamento de habilidades
Os pacientes são convidados a desenvolver um plano para romper com o
hábito de beber que envolve:

• listar os benefícios esperados com a redução do hábito;


• listar as situações de alto risco para beber;
• elaborar estratégias para lidar com sentimentos desagradáveis, como
solidão, tédio e raiva;

• elaborar estratégias de enfrentamento para resistir ou evitar as situações


de alto risco;
• elaborar estratégias de enfrentamento para resistir ao uso compulsivo,
uma vez que tenha ocorrido um lapso.

4. Acompanhamento
O profissional deve sempre fornecer feedback e suporte na definição, na
realização e na manutenção de metas realistas, com exigência ajustada ao nível
de gravidade e capacidades do paciente. O projeto terapêutico deve ser pactuado
com o sujeito, considerando seu estado de saúde, suas dificuldades, suas
necessidades e seu contexto, também suas qualidades e potencialidades.
O profissional deve:

• ter uma postura compassiva, ética e equilibrada, sem autoritarismo, nem


permissividade;
• praticar uma escuta ativa e reflexiva sem fazer julgamentos de valor;
• estimular o protagonismo do paciente no processo;
• ajudar o paciente a se manter em progresso contínuo e a identificar
gatilhos e situações que podem levar a uma recaída.

Conforme os pacientes progridam em suas metas, a frequência do


monitoramento pode ser reduzida até a visitas semestrais ou anuais. Porém, se o
paciente, continuamente, tem dificuldades em alcançar ou manter os objetivos,
deve-se considerar intervenções em outro nível de atenção, encaminhamento a
serviços especializados, associação de farmacoterapia, ou metas de mais baixa
exigência. Se um serviço especializado não estiver disponível, aconselhamento
e monitoramento contínuos podem ser necessários.

Intervenções para o paciente dependente (AUDIT ≥ 20)


Evidências sugerem que o AC breve pode ser insuficiente como única
estratégia de tratamento para casos graves de dependência de álcool. Outras
intervenções, como farmacoterapia ou tratamento em centros psicossociais
especializados, como os Centros de Atenção Psicossocial (CAPS), serviços
ambulatoriais ou hospitalares, podem ser a melhor alternativa para pessoas que
atendem aos critérios diagnósticos de dependência de álcool, ou de suas
complicações clínicas.
Intervenções comunitárias
Embora não avaliadas formalmente com base em evidências, existem opções
de tratamento baseado em intervenções comunitárias com eficácia estabelecida,
baseada em resultados individuais, como os programas de 12 passos, praticado,
por exemplo, pelas comunidades de Alcoólicos Anônimos.

Quadro 10 - Abordagem prática aos pacientes

Como abordar os pacientes

Durante as sessões, certas posturas podem ajudar a estabelecer uma boa relação médico-paciente e
fortalecer o vínculo do paciente com o profissional e seu engajamento com o tratamento. As técnicas
contribuem, inclusive, para a eficácia em aplicar o AC:

1. Escute de maneira empática e sem julgamentos


Os pacientes, muitas vezes, não estão cientes dos riscos e, se estão, quase sempre têm dificuldades
em parar ou reduzir, caracterizando um consumo compulsivo. Portanto, não devem ser culpados,
nem punidos, por sua ignorância ou incapacidade. Ademais, o uso nocivo de substâncias, se visto
como uma autolesão, não deveria, eticamente, ser punível, mas tratável.

2. Seja firme, mas compassivo, sem ser autoritário


O profissional de saúde tem autoridade especial. Dentro da cultura universal, é dada fé pública ao
que afirma, por causa de seu conhecimento e treinamento, sabidamente, voltados para o bem-estar
das pessoas. O paciente deve ser abordado de forma pessoal, clara e objetiva, quando se tratar de
afirmar que seu consumo de álcool está acima dos limites desejáveis. Ser firme nas colocações e
sugestões, sem parecer autoritário, atrai a confiança do paciente que reconhece verdadeira
preocupação do profissional com sua saúde.

3. Desvie de posturas de negação sem confrontação


Alguns pacientes podem negar a gravidade do seu hábito e resistir a sugestões de redução do
consumo. Podem acreditar, inclusive, que os prejuízos causados pelo álcool na sua vida não estão
relacionados ao consumo excessivo da substância.
Dê o feedback das avaliações e certifique-se de que você fala com autoridade, mas sem
confrontamentos. Evite ameaças caso ele não aceite mudar. Não use termos pejorativos como
“alcoólatra” para se referir à condição dele como estratégia para motivá-lo a expressar preocupação.
Aponte para dados objetivos da realidade que sugerem que as coisas podem não ser tão positivas
quanto ele pensa e aborde os problemas sob a perspectiva do que ele próprio considera
problemático, associando, de forma coerente, os problemas ao uso excessivo de álcool.
Como abordar os pacientes

4. Facilite
Faça o paciente se sentir incluído no processo de mudança. Mais do que dizer ao paciente o que ele
deve fazer, procure envolvê-lo nas decisões e ouvir suas sugestões com interesse. É essencial dar
importância crítica às escolhas que o paciente faz dentro do projeto de tratamento, elas lhe farão
muito mais sentido e ele tenderá a aderir melhor ao plano de tratamento, seja o objetivo abstinência
ou redução do consumo.

5. Acompanhe
O acompanhamento periódico é essencial para uma boa prática clínica. Os retornos podem ser
agendados conforme a gravidade percebida do caso. Também podem ser realizados de acordo com o
período de tempo necessário para se averiguar o alcance de uma meta de tratamento. Se um paciente
está tendo sucesso, deve ser ainda mais encorajado. Se não, deve-se rever o plano de tratamento. Se
o insucesso for recorrente, deve-se considerar encaminhamento do caso.
Nos casos em que o uso prejudicial não pôde ser abandonado, independentemente do motivo,
mesmo que por vontade expressa do paciente, esse paciente deve ter mais oferta de cuidados, pois
está exposto a riscos constantes de desfechos adversos à sua saúde. Não desejar o tratamento
proposto para o consumo excessivo de álcool não quer dizer que não deseje (ou não “mereça”)
tratamento ou cuidados a respeito dos demais agravos.

Fonte: elaborado pelos autores.

5. MEDIDAS FARMACOLÓGICAS
As opções farmacológicas disponíveis para o tratamento do transtorno por uso
de álcool são escassas. Nenhum dos medicamentos é facilmente disponível no
âmbito do SUS para o tratamento do etilismo e seu custo pode ser elevado e
impeditivo. Dos medicamentos que têm aprovação, no Brasil, para serem
prescritos especificamente para o etilismo, apenas a naltrexona está, atualmente,
disponível. O dissulfiram era o outro representante da pequena lista, mas foi,
recentemente, descontinuado pelo fabricante.
Naltrexona: antagonista opioide de duas apresentações: comprimidos e
formulação de depósito (não comercializada no Brasil). O antagonismo opioide
interfere reduzindo a neurotransmissão dopaminérgica no sistema límbico,
atenuando os efeitos subjetivos prazerosos do álcool.
Um cuidado especial deve ser dado aos pacientes em uso crônico ou
dependência de opioides. O bloqueio do receptor pode precipitar um estado de
abstinência farmacodinâmico iatrogênico, impedindo, inclusive, o tratamento da
síndrome de abstinência, para a qual também são utilizados opioides.
O paciente sempre deve ser informado do mecanismo de ação do
medicamento, pois, eventualmente, poderá ser submetido a algum procedimento
que requeira analgesia com opioides, como em cirurgias, por exemplo.
É prescrita na dose de 50 mg, 1 comprimido, por dia, via oral. A dose
habitual é 50 mg/dia, mas pode ser elevada, a depender da resposta para 100
mg/dia após 1 semana do início.
Outros medicamentos, aprovados para outras indicações, podem, entretanto,
ser prescritos como tratamento “off-label”, por apresentarem evidências de
eficácia, embora menos robusta que os medicamentos acima.
Topiramato: medicamento com a recomendação mais robusta do grupo. A
principal restrição ao uso se dá por conta dos efeitos colaterais, pois tem a
vantagem de baixa ligação a proteínas e poucas interações medicamentosas. As
doses são variáveis, havendo relatos de efeito em doses de 50 mg/dia. As doses
médias estão entre 100 e 200 mg/dia. Iniciar com 25 mg com aumentos graduais
semanais de 25 mg até a dose almejada. A retirada deve ser gradual por conta
do risco de convulsões.
Baclofeno: medicamento antiespasmódico da musculatura esquelética de
ação medular. Promove estímulo à neurotransmissão GABAérgica via
receptores GABA-B, inibindo a liberação de glutamato e aspartato
(aminoácidos excitatórios). Sua prescrição no alcoolismo é apoiada
principalmente quando para pacientes com doença hepática. Iniciar com meio
comprimido (5 mg) 3 vezes ao dia. Aumentar a cada 3 a 5 dias, conforme
resposta e tolerabilidade. Os incrementos podem ser de 15 mg/dia. A dose
ótima, geralmente, varia entre 30 e 80 mg/dia. Doses maiores como 100 a 120
mg/dia podem ser administradas, porém com mais risco de efeitos indesejados,
como fraqueza muscular excessiva e quedas.
Ondansetrona: medicamento antiemético potente, antagonista seletivo de
receptores serotoninérgicos 5-HT3, que interferem na neurotransmissão
dopaminérgica mesocorticolímbica. As doses recomendadas são de 4 a 16
µg/kg, 2 vezes ao dia, o que representa doses muito baixas, uma vez que as
apresentações são de comprimidos orais ou solução endovenosa de 4 mg e 8
mg. As doses utilizadas têm sido de 4 mg a 16 mg/dia. Em hepatopatas, a dose
não deve ultrapassar 8 mg/dia.
Figura 2 - Esquema de manejo do paciente com transtorno por uso de álcool

Fonte: adaptado de Carvalho AF, Heilig M, Perez A, Probst C, Rehm J.13

5.1. Redescobrindo o caso (Pontos-Chave)


1 Ingesta recorrente e intensa

2 Prejuízos sociais

3 Perda de controle

4 Prejuízos físicos

5 Prejuízos psíquicos

O paciente Danúzio apresenta transtorno por uso de álcool marcado pela


incapacidade de controlar o seu uso de etílicos (uso intenso) e pelas intensas
perdas sociais, pelas repercussões na saúde física e psíquica. O paciente deve
receber cuidados clínicos para a correção da desidratação e melhora da dor, com
investigação para comorbidades clínicas associadas ao uso crônico de álcool,
especialmente hepatite alcoólica e pancreatite.
Deve-se avaliar o estágio de motivação do paciente e proporcionar um
aconselhamento adaptado. As ações, as metas e a programação de
acompanhamento devem ser adaptadas ao seu contexto. Dada a gravidade do
caso, seu tratamento poderá ser conduzido com o apoio de serviços
especializados e outros aparelhos da rede de saúde. Considerar também
acompanhamento psicológico, farmacoterapia para o tratamento da
comorbidade psiquiátrica, bem como farmacoterapia específica, visando
abstinência ou redução do consumo em médio e longo prazos.

Exemplo de uma prescrição para Danúzio


Naltrexona 50 mg, 1 comprimido, via oral, ao dia.

Referências
1. Tizabi Y, Getachew B, Ferguson CL, Csoka AB, Thompson KM, Gomez-Paz A, Ruda-Kucerova J,
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women’s mental health 2017; 20(3): 363-372.
SIGLAS

• AC Aconselhamento Comportamental
• CAPS Centros de Atenção Psicossocial
• DSM-5 Manual Diagnóstico e Estatístico dos Transtornos Mentais
• SAA Síndrome de Abstinência Alcoólica
• SNC Sistema Nervoso Central
• TCC Terapias Cognitivo-Comportamentais
1. CASO CLÍNICO
João Paulo, 23 anos, solteiro, mecânico, ensino médio incompleto, vem
acompanhado da genitora. Relata que desde os 15 anos iniciou uso
recreativo de cocaína aspirada, 2 vezes por mês. Ao começar a trabalhar e
ganhar o próprio dinheiro, por volta dos 21 anos, houve intensificação do
uso da cocaína aspirada, sendo agora a utilização 4 vezes por semana, o que
trouxe prejuízos na manutenção dos empregos, pois passava muito tempo
utilizando a sustância e se recuperando dos efeitos pós-uso, como sonolência
excessiva, irritabilidade e prejuízo da concentração. Por ter perdido poder
aquisitivo, passou a utilizar crack há 1 ano, passando para uso compulsivo
no 1º mês de contato com a droga, chegando a furtar objetos do lar, causando
conflitos com os pais. Tem padrão de uso diário no momento, pois refere que
precisa de doses maiores para ter o mesmo efeito euforizante, com também
efeitos mais intensos da intoxicação como pensamentos persecutórios e
crises ansiosas. Hoje está no 3º dia sem uso do crack, relatando intenso
desejo pelo uso, irritabilidade e fadiga. Reconhece os prejuízos causados
pelas substâncias e deseja ficar mais tempo em abstinência.

Exame mental: humor ansioso, tremores finos em membros superiores,


discurso pouco acelerado, sem conteúdo persecutório no momento, sem
atitude alucinatória, insight preservado.

2. DISCUTINDO O DIAGNÓSTICO
A palavra cocaína deriva da expressão khoka, que, na língua aimoré,
significa “a árvore”. É uma substância presente na planta Erythroxylon coca
encontrada na região dos Andes e utilizada em práticas culturais e religiosas
há mais de 4 mil anos. Há descrições de nativos que, desde essa época,
mascavam suas folhas, deparando-se com seus efeitos alucinógenos.
A extração do princípio ativo cocaína iniciou-se já no século XIX,
passando a ser comercializada com finalidades terapêuticas, por exemplo, no
uso em anestésicos. Logo expandiu-se seu uso recreativo nos Estados
Unidos e, posteriormente, no Brasil, levando à proibição da comercialização
em 1914 e 1921, respectivamente. O crack é constituído por uma mistura da
base livre da cocaína com bicarbonato de sódio, resultando em uma
substância pétrea, de cor marrom-amarelada, que se torna altamente volátil
quando aquecida.
De acordo com o DSM-5, o diagnóstico para transtorno por uso de
cocaína e/ou crack é possível quando o padrão de uso leva a sofrimento
clínico significativo, ocorrendo por um período mínimo de 12 meses
associado a, pelo menos, 2 dos seguintes critérios:

1. O estimulante é frequentemente consumido em maiores quantidades


ou por um período mais longo do que o pretendido.
2. Existe um desejo persistente ou esforços malsucedidos no sentido de
reduzir ou controlar o uso de estimulantes.
3. Muito tempo é gasto em atividades necessárias para a obtenção do
estimulante, em utilização ou na recuperação de seus efeitos.
4. Fissura ou um forte desejo ou necessidade de usar o estimulante.
5. Uso recorrente de estimulantes resultando em fracasso em cumprir
obrigações importantes no trabalho, na escola ou em casa.
6. Uso continuado de estimulantes apesar de problemas sociais ou
interpessoais persistentes ou recorrentes causados ou exacerbados
pelos efeitos do estimulante.
7. Importantes atividades sociais, profissionais ou recreacionais são
abandonadas ou reduzidas em virtude do uso de estimulantes.
8. Uso recorrente de estimulantes em situações nas quais isso representa
perigo para a integridade física.
9. Uso de estimulantes é mantido apesar da consciência de ter um
problema físico ou psicológico persistente ou recorrente que tende a
ser causado ou exacerbado pelo estimulante.
10. Tolerância, definida por qualquer um dos seguintes aspectos:
a. Necessidade de quantidades progressivamente
maiores do estimulante para atingir a intoxicação ou o efeito
desejado.
b. Efeito acentuadamente menor com o uso continuado
da mesma quantidade do estimulante.
11. Abstinência, manifestada por qualquer dos seguintes aspectos:
a. Síndrome de abstinência característica para o
estimulante.
b. O estimulante (ou uma substância estreitamente
relacionada) é consumido para aliviar ou evitar os sintomas de
abstinência.
Nota: os critérios 10 e 11 serão desconsiderados em indivíduos cujo uso
de medicamentos estimulantes se dá unicamente sob supervisão médica
adequada, como no caso de medicação para transtorno de déficit de
atenção/hiperatividade ou narcolepsia.
O que encontramos no paciente, caro leitor, é um perfil de uso crescente
de cocaína e/ou crack, havendo comportamento de busca da substância que,
conjuntamente com o tempo gasto pelo uso, passa a abandonar ou reduzir
atividades funcionais de lazer, além de atividades acadêmicas, laborais e
sociais. A fissura, um desejo fisiológico, muitas vezes intenso, para o uso da
substância é frequente. Tentativas de abandono são malsucedidas, mesmo
que o paciente esteja ciente dos danos à sua integridade física e mental, e
mesmo ciente que o uso pode colocá-lo em situações de risco à integridade
de sua saúde. Efeito de tolerância pode ocorrer, assim como a síndrome de
abstinência, levando-o a reiniciar o consumo para alívio do sofrimento.
A apresentação clínica da intoxicação aguda por uso de cocaína e crack
pode incluir taquicardia, aumento da pressão arterial, tontura, aumento da
temperatura corporal, midríase e aumento da atenção e da atividade
psicomotora. Pode apresentar ainda estado de euforia, insônia, redução do
apetite, sensação de pensamentos acelerados ou incoerentes. Após algumas
horas, efeitos como aumento da ansiedade, irritabilidade, fome, sensação de
fadiga e fissura podem surgir. Importante ressaltar que o álcool, quando
usando concomitantemente com a substância, potencializa os efeitos da
cocaína.
O uso crônico está associado a efeitos psicológicos, como, por exemplo,
desconfiança e hipervigilância, além de alucinações e delírios. Efeitos
cognitivos, como prejuízo da atenção e do processo de tomada de decisão,
podem estar presentes. Efeitos clínicos decorrentes do uso crônico são
hipertrofia ou dilatação do músculo cardíaco, taquiarritmias, aterosclerose e
apoptose de cardiomiócitos.
Efeitos clínicos da overdose são potencialmente letais, podendo-se citar:
isquemia e arritmias malignas, convulsões, aumento de risco de acidente
vascular encefálico.

3. ASPECTOS SOBRE EPIDEMIOLOGIA E


ETIOLOGIA
Em 2020, a UNODC (United Nations Office on Drugs and Crime), órgão
vinculado à ONU, divulgou resultados do relatório mundial sobre drogas.
Segundo o relatório, cerca de 19 milhões de pessoas no mundo fizeram uso
de cocaína no ano de 2018, correspondendo a 0,4% da população mundial
entre 15 e 64 anos. Na América do Sul, 2,8 milhões de pessoas utilizaram
cocaína no ano de 2018, correspondendo a cerca de 1,0% da população entre
15 e 64 anos. Na América do Sul, o Brasil possui o maior mercado de
cocaína e crack, com aproximadamente 1,5 milhão de usuários dessas
substâncias em 2018.
Segundo o III Levantamento Nacional sobre o Uso de Drogas pela
População Brasileira,5 a prevalência de uso de cocaína e crack entre pessoas
entre 12 e 65 anos na vida foi de 3,1% e 0,9%, respectivamente. A
prevalência de consumo nos últimos 12 meses foi de 0,9% para cocaína e
0,3% para o crack; nos últimos 30 dias foi de 0,3% para cocaína e 0,1% para
o crack.
Diversos modelos etiológicos já foram propostos para explicar os
transtornos por uso de substâncias. Alguns modelos mais antigos, como o
modelo moral, afirmavam que a escolha pessoal era a causa do uso, modelo
esse que influencia negativamente os profissionais de saúde, pacientes e
familiares, prejudicando o processo terapêutico.
Modelos biológicos têm ganhado força nas últimas décadas. Há
evidências claras de que o uso de substâncias estimula os sistemas de
recompensa cerebral, dando ao usuário a sensação de prazer. Com a
repetição do uso, o usuário passa a enfrentar efeitos de tolerância,
necessitando de doses maiores para perceber o mesmo efeito. Com a
descontinuação do uso passa a sentir efeitos de abstinência, conduzindo-o à
nova experimentação da substância para alívio dos sintomas.
Modelos genéticos também evidenciam a importância da influência
genética, quando, por exemplo, evidenciam maior probabilidade de uso de
substâncias entre gêmeos monozigóticos comparados com dizigóticos.
Há também modelos psicológicos que procuram explicar o uso de
substâncias, como modelos psicanalíticos e comportamentais. Esse último é
caracterizado pela presença de reforços negativos em relação ao uso
(sensação de prazer) e negativos (uso para alívio de efeitos de abstinência).

4. DIAGNÓTICO DIFERENCIAL
Os principais diagnósticos diferenciais estão descritos no quadro a seguir.

Quadro 1 - Diagnósticos diferenciais e características clínicas

Diagnóstico diferencial Características clínicas

A abstinência a cocaína e seus derivados pode trazer sintomas


Transtornos mentais semelhantes à depressão maior. A intoxicação pode cursar com
primários sintomas psicóticos, maníacos e ansiosos. Importante caracterizar
cronologicamente e associar os sintomas ao uso das substâncias.

A dor precordial em pacientes com uso de cocaína/crack pode ser


devida a infarto agudo do miocárdio. A avaliação clínica nesses
Dor precordial casos é importante, com solicitação de eletrocardiograma,
hemograma completo, função renal, eletrólitos e
creatinofosfoquinase.

Fonte: síntese elaborada pelos autores.

4.1. E aí? O que fazer?


O tratamento dos pacientes com transtorno por uso de cocaína/crack envolve
a investigação das demandas do indivíduo, que geralmente são complexas e
com prejuízos em várias esferas: clínica, social, familiar, laboral e judicial.
Sendo assim, devemos ter em mente que o tratamento não pode ser
totalmente contemplado por um único serviço de cuidado. Queremos deixar
claro que o cenário ideal seria a comunicação e sintonia intersetorial (centro
de apoio psicossocial, atenção primária, centros de referência de assistência
social, emergência médica, Ministério Público), criando uma rede de
proteção tanto para os pacientes como seus familiares, com planos
terapêuticos bem específicos para cada pessoa.
O objetivo principal é promover abstinência ou redução do consumo das
substâncias. Estratégias de redução de danos devem ser tentadas, tais como
evitar compartilhar com outros usuários o cachimbo ou a lata, usar
preservativos para evitar doenças sexualmente transmissíveis (alguns podem
se prostituir para manter o uso), utilizar a droga em ambiente mais seguro,
fazer avaliações clínicas e psiquiátricas com maior frequência.
O tratamento tem algumas particularidades, dependendo do estado
clínico do paciente: intoxicação aguda por cocaína/crack ou dependência. Na
intoxicação aguda deve-se garantir ambiente protegido com monitoração,
averiguar o uso associado de outras substâncias, reverter quando necessário
os efeitos causados pela droga (agitação psicomotora, crises ansiosas,
sintomas psicóticos), estabilizar efeitos físicos da substância (intercorrências
cardíacas, elevação pressórica, convulsões). Já na dependência utiliza-se
diversas estratégias farmacológicas e psicossociais, que vamos descrever
mais adiante.
O clínico, ao se deparar com um usuário de cocaína/crack, deve:

1. Ouvi-lo com empatia e evitar julgamentos relacionados aos atos do


paciente.
2. Reconhecer que o indivíduo e seus familiares estão em sofrimento.
3. Reforçar positivamente o ato do paciente em buscar ajuda para sua
condição.
4. Fazer avaliação clínica detalhada, com solicitação de exames
laboratoriais e imagem quando necessários.
5. Avaliar comorbidades psiquiátricas e iniciar o tratamento quando
necessário.
6. Encaminhar para serviços especializados quando disponíveis (Centro
de Atenção Psicossocial – Álcool e outras Drogas) ou para avaliação
psiquiátrica e psicológica.

5. TRATAMENTO FARMACOLÓGICO
Muitas medicações têm sido avaliadas em relação à eficácia no tratamento
para dependência de cocaína e crack, porém, poucas substâncias têm
mostrado resultados clinicamente significantes. Na tabela a seguir há a
descrição das substâncias com maior evidência de eficácia, assim como
doses iniciais e máximas.

Tabela 1 - Medicações que podem ser utilizadas na dependência de


cocaína/crack

Fármaco Dose inicial Dose máxima

Dissulfiram 250 mg 500 mg/dia

Topiramato 25 mg 300 mg/dia

Fonte: síntese elaborada pelos autores.

O dissulfiram é uma medicação classicamente aprovada e utilizada na


dependência de álcool. No tratamento para dependência de cocaína e crack
mostrou resultados positivos quando comparado com placebo. Seu efeito
consiste na aversão que gera ao uso de cocaína, reduzindo o reforço positivo
ao uso da substância.
O uso de topiramato está associado ao aumento do tempo de abstinência,
além de redução de intensidade e freqüência de fissura por uso da
substância.
Os quadros de intoxicação podem ser autolimitados, mas a intervenção
farmacológica se faz necessária quando há agitação psicomotora ou risco de
auto ou heteroagressividade. Fármacos de escolha nessa ocasião são
benzodiazepínicos, que podem ser administrados por via oral, intramuscular
(somente midazolam) ou endovenoso, associado ou não ao uso de
haloperidol por via intramuscular.

6. TRATAMENTO NÃO FARMACOLÓGICO


Os métodos não farmacológicos para tratamento podem variar muito em
termos de eficácia, a depender do paciente. Lembramos que o principal
objetivo seria capacitar o paciente e apoiá-lo a manejar melhor o seu padrão
de uso construindo estratégias de redução de danos, incluindo a abstinência.
As formas mais utilizadas são: entrevista motivacional, prevenção de
recaídas e treinamento de habilidades sociais, e suas principais
características são descritas na tabela a seguir.

Quadro 2 - Principais métodos não farmacológicos de tratamento

É um programa de técnicas e estratégias, cujo objetivo é capacitar o


paciente a fazer o gerenciamento de situações de risco e estados emocionais
Prevenção de
que levam ao uso da substância. Aqui pode-se utilizar técnicas de terapia
recaídas
cognitivo-comportamental, podendo ser aplicado tanto individualmente
quanto em grupos de apoio.

As habilidades sociais são caracterizadas por comportamentos que o


indivíduo possui para lidar com várias demandas interpessoais. O usuário
Treinamento de geralmente perde esse repertório, podendo ficar mais isolado, com ajuste
habilidades psicológico mais empobrecido e com comportamentos menos assertivos
sociais diante de fatores estressores, levando ao uso de substâncias. É importante
avaliar esses prejuízos e fortalecer estratégias de enfrentamento de forma
objetiva.

Pode ser utilizada para aumentar a motivação para a mudança do


Entrevista comportamento problema, no caso, o uso de substâncias, suprimindo os
motivacional comportamentos disfuncionais e desenvolvendo padrões mais adaptativos.
As estratégias são mais persuasivas, empáticas e apoiadoras.

Fonte: síntese elaborada pelos autores.

Quadro 3 - Estágio motivacionais

Estágio Definição Elementos a serem enfatizados


Estágio Definição Elementos a serem enfatizados

O usuário não considera a mudança Feedback sobre os resultados


Pré- imediata. Pode não estar ciente do
contemplação dano real ou potencial à saúde se da triagem e informações sobre os
continuar usando a droga. perigos de manter o uso.

Informações sobre os problemas


O usuário pode estar ciente das associados.
consequências relacionadas ao uso Enfatizar os benefícios de mudar e o
Contemplação
da substância, mas é ambivalente risco de adiar a mudança.
sobre a mudança. Discutir como escolher objetivos e
dar os primeiros passos.

Definir objetivos e metas.


O usuário já decidiu mudar e tem Reafirmar o compromisso de
Preparação
planos para agir. mudança.
Encorajar.

O usuário começou a reduzir ou Revisão dos conselhos, das metas e


Ação parar de fumar, mas a mudança não dos objetivos.
se tornou um recurso permanente. Encorajar.

O usuário alcançou o consumo


Manutenção moderado ou a abstinência de Incentivar, encorajar.
forma relativamente permanente.

Fonte: World Health Organization.8

6.1. Redescobrindo o caso (Pontos-Chave)


1 Padrão inicial de uso
2 Aumento do padrão de uso

3 Prejuízo laboral

4 Tempo dedicado ao uso


5 Sinais de abstinência

6 Prejuízos sociais

7 Tolerância

8 Fissura
O paciente João Paulo apresenta transtorno por uso de substância (crack
e cocaína) caracterizados por aumento do padrão de uso com efeitos de
tolerância, prejuízos laborais e sociais, sintomas de abstinência, fissura,
apesar de reconhecer os prejuízos causados por essas substâncias. No
momento do exame o paciente relata estar há 3 dias sem uso, apresentando-
se ansioso, com discurso acelerado e tremores finos em membros superiores,
evidenciando possível quadro de abstinência.
O paciente deve ser escutado com empatia, passar por avaliação clínica e
anamnese detalhada em ambiente calmo e protegido, e ser medicado se
necessário. Após estabilização, apresentá-lo às diversas estratégias para o
tratamento da dependência e encaminhá-lo para serviço especializado, como,
por exemplo, os Centros de Atenção Psicossocial – Álcool e outras Drogas
(CAPS AD). A depender do suporte social e interesse do paciente, a
internação hospitalar pode ser necessária. Vale lembrar que pacientes em uso
compulsivo de cocaína/crack, expostos a riscos e sem insight, podem ter sua
internação feita de forma involuntária.

Exemplo de uma prescrição para João Paulo


Topiramato 25 mg, 1 comprimido, via oral, à noite por 7 dias. Após
esse prazo, passar a tomar:
Topiramato 25 mg, 2 comprimidos, via oral, à noite. (Se necessário
aumentar a dose em 50 mg a cada 7 dias).

Referências
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neuropsicológica e de risco. Terapias psicológicas, farmacologia e reabilitação. Ambientes de
tratamento. São Paulo: Casa Leitura Médica; 2010.
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8. World Health Organization. (2001). Brief intervention for hazardous and harmful drinking : a
manual for use in primary care / Thomas F. Babor, John C. Higgins-Biddle. World Health
Organization

SIGLAS

• ONU Organização das Nações Unidas


• UNODC United Nations Office on Drugs and Crime
1. CASO CLÍNICO
Luiz, 58 anos, ensino fundamental incompleto, acompanhado no centro de
saúde da família por hipertensão e diabetes tipo 2, atualmente fumando 40
cigarros por dia, tabagista de 60 anos/maço. Solicita prescrição de um
“adesivo”, que uma vizinha usou quando cessou o tabagismo. Já tentou parar
de fumar diversas vezes, porém se queixa de irritabilidade, inquietação e
fissura intensa, e não permaneceu mais de 24 horas sem fumar. Fuma o
primeiro cigarro em menos de 30 minutos após acordar. Fuma mais quando
se sente preocupado, triste ou quando está com os amigos em rodas de
conversa, e não resiste a um cigarro após o cafezinho.

2. DISCUTINDO O DIAGNÓSTICO
O tabagismo é uma doença crônica caracterizada pela dependência de
nicotina dos produtos contendo tabaco. O componente psicoativo do tabaco
é a nicotina, que afeta o sistema nervoso central (SNC) por meio do
agonismo em receptores nicotínicos de acetilcolina (neurotransmissor
endógeno). Partículas de fumaça carregam a nicotina para os pulmões, onde
é rapidamente absorvida pela circulação venosa pulmonar.
Aproximadamente 25% da nicotina inalada alcança o fluxo sanguíneo, por
meio do qual atinge o cérebro. A transdução de sinais nos receptores
nicotínicos é rápida, uma vez que são canais de íons controlados por ligante,
fazendo com que a nicotina produza seus efeitos em segundos.
Os receptores nicotínicos estão densamente presentes em núcleos de
neurônios dopaminérgicos na via mesocorticolímbica, estimulando esses
neurônios a liberarem dopamina em estruturas do sistema límbico,
sinalizando uma experiência prazerosa. Esse sistema é o responsável por
estimular comportamentos naturais, essenciais para a sobrevivência e
mediados por recompensa, como comer e praticar atividade sexual, por
exemplo. A ativação do sistema límbico pela nicotina faz com que seu uso
seja repetido. A possibilidade de autoadministração e o prazer associado
podem levar a um comportamento impulsivo-compulsivo, como acontece
com outras substâncias psicoativas capazes de produzir dependência.
Outros constituintes da fumaça do cigarro, em menor proporção, podem
contribuir para a dependência de nicotina. Os produtos de condensação do
acetaldeído na fumaça do cigarro inibem a atividade das
monoaminaoxidases A e B, responsáveis pelo metabolismo da dopamina. Há
evidências de que a inibição das monoaminaoxidases, reduzindo o
metabolismo da dopamina e elevando seus níveis extracelulares, contribui
para a dependência do fumo, uma vez que o comportamento compulsivo
pode estar associado a essa “busca” pela elevação do neurotransmissor.
A exposição repetida à nicotina leva a neuroadaptações, como a
dessensibilização e o aumento do número de receptores nicotínicos.
Acredita-se que essas alterações desempenhem um papel na tolerância à
substância (doses maiores necessárias para produzir o mesmo efeito). O
estado adaptado à presença suprafisiológica do agonista se desestabiliza
quando o indivíduo cessa o uso, produzindo um estado de privação, levando
a sintomas de abstinência, como uma espécie de “readaptação”.
A combinação de efeitos prazerosos e sintomas de abstinência estão na
base do comportamento dependente de nicotina. O efeito hedônico atua
como reforço positivo (elemento pelo qual o comportamento tende a se
repetir) e a esquiva dos sintomas de abstinência, como reforço negativo
(elemento pela ausência do qual o comportamento tende a se repetir). O uso
da substância produz efeitos positivos sobre o humor, sendo associado a
alívio de sensações desagradáveis, como ansiedade, raiva e angústia, e o
comportamento passa a ser condicionado também pela busca desses efeitos.
Além das sensações físicas e psíquicas, muitos hábitos cotidianos passam
a ser associados ao momento de fumar, como falar ao telefone, alimentar-se,
tomar café, após o banho, sair ou chegar em casa ou no trabalho, dirigir. O
uso de cigarros nesses momentos chega a ser um ato automático. Durante as
tentativas de cessação, os fumantes costumam perceber que essas situações
funcionam como verdadeiros “gatilhos” que “disparam” o ato de fumar.
Tanto a quinta edição do Manual Diagnóstico e Estatístico dos
Transtornos Mentais (DSM-5) quanto a CID-10 trazem critérios gerais para
os diagnósticos relacionados ao uso de substâncias psicoativas. As
definições são “substâncias específicas” apenas para as síndromes de
intoxicação aguda e de abstinência, que diferem substancialmente de uma
substância para outra.
O tabagismo se comporta um pouco diferente da dependência de outras
substâncias psicoativas. Isso ocorre em virtude de, com o uso habitual, não
produzir síndrome de intoxicação, nem alterações do estado de consciência
nas síndromes de abstinência, além de ser uma substância regulamentada e
de uso permitido. Essas características amenizam o impacto social negativo
atribuído à substância em ambientes sociais.
O resultado disso é que alguns dos comportamentos listados para o
diagnóstico de dependência podem ser pouco percebidos, como, por
exemplo: “muito tempo necessário para a obtenção ou uso”; “fracasso em
cumprir obrigações importantes no trabalho, na escola ou em casa”;
“abandono ou redução de atividades sociais, profissionais ou recreacionais
importantes”.
Na abstinência, os sintomas atingem o pico nos três primeiros dias de
cessação do tabagismo e desaparecem nas próximas três a quatro semanas.
Os sintomas de supressão da nicotina podem incluir: humor depressivo ou
disfórico; irritabilidade, frustração, raiva e ansiedade; aumento de apetite e
ganho de peso.

Quadro 1 - Transtorno por uso de tabaco (DSM-5)

A. um padrão problemático de uso de tabaco, levando a comprometimento ou sofrimento


clinicamente significativo, manifestado por pelo menos dois dos seguintes critérios, ocorrendo
durante um período de 12 meses:

1. O tabaco é frequentemente consumido em maiores quantidades ou por um período mais


longo do que o pretendido.

2. Desejo persistente ou esforços malsucedidos no sentido de reduzir ou controlar o uso de


tabaco.

3. Muito tempo é gasto em atividades necessárias para a obtenção ou o uso de tabaco.

4. Fissura ou um forte desejo ou necessidade de usar tabaco.

5. Uso recorrente de tabaco, resultando em fracasso em cumprir obrigações importantes no


trabalho, na escola ou em casa (p. ex., interferência no trabalho).
A. um padrão problemático de uso de tabaco, levando a comprometimento ou sofrimento
clinicamente significativo, manifestado por pelo menos dois dos seguintes critérios, ocorrendo
durante um período de 12 meses:

6. Uso continuado de tabaco apesar de problemas sociais ou interpessoais persistentes ou


recorrentes causados ou exacerbados pelos seus efeitos (p. ex., discussões com os outros
sobre o uso de tabaco).

7. Importantes atividades sociais, profissionais ou recreacionais são abandonadas ou reduzidas


em virtude do uso de tabaco.

8. Uso recorrente de tabaco em situações nas quais isso representa perigo para a integridade
física (p. ex., fumar na cama).

9. O uso de tabaco é mantido apesar da consciência de ter um problema físico ou psicológico


persistente ou recorrente que tende a ser causado ou exacerbado por ele.

10. Tolerância, definida por qualquer um dos seguintes aspectos:


a. Necessidade de quantidades progressivamente maiores de tabaco para atingir o
efeito desejado.
b. Efeito acentuadamente menor com o uso continuado da mesma quantidade de
tabaco.

11. Abstinência, manifestada por qualquer dos seguintes aspectos:


a. Síndrome de abstinência característica de tabaco (consultar os Critérios A e B
do conjunto de critérios para abstinência de tabaco).
b. O tabaco (ou uma substância estreitamente relacionada, como nicotina) é
consumido para aliviar ou evitar os sintomas de abstinência.

Fonte: World Health Organization.15

Quadro 2 - Abstinência de tabaco (DSM-5)


A. Uso diário de tabaco durante um período mínimo de várias semanas.

B. Cessação abrupta do uso de tabaco, ou redução da quantidade de tabaco utilizada, seguida, no


prazo de 24 horas, por quatro (ou mais) dos seguintes sinais ou sintomas:
1. Irritabilidade, frustração ou raiva.
2. Ansiedade.
3. Dificuldade de concentração.
4. Aumento do apetite.
5. Inquietação.
6. Humor deprimido.
7. Insônia.

C. Os sinais ou sintomas do Critério B causam sofrimento clinicamente significativo ou prejuízo


no funcionamento social, profissional ou em outras áreas importantes da vida do indivíduo.

D. Os sinais ou sintomas não são atribuíveis a outra condição médica nem são mais bem
explicados por outro transtorno mental, incluindo intoxicação por ou abstinência de outra
substância.

Fonte: World Health Organization.15

12. ASPECTOS SOBRE EPIDEMIOLOGIA E


ETIOLOGIA
Uma avaliação comparativa dos principais fatores de risco para morte
prematura e anos vividos com incapacidade em 195 países e territórios entre
1990 e 2017 classifica o hábito de fumar como o segundo comportamento
mais associado a perda de anos saudáveis, com 7,10 milhões de mortes
atribuíveis e 182 milhões de anos de vida perdidos ajustados por
incapacidade. Nesse quesito, fica atrás apenas da pressão arterial sistólica
elevada, e poderá ser responsável por mais 8 milhões de mortes até 2030.
Doença cardiovascular aterosclerótica, câncer de pulmão e doença
pulmonar obstrutiva crônica (DPOC) são as três principais causas de
mortalidade atribuível ao fumo.
Fumar causa exposição a mais de 7 mil substâncias tóxicas, incluindo,
pelo menos, 70 agentes cancerígenos conhecidos, que podem afetar quase
todos os sistemas de órgãos do corpo humano. O risco de morte e doenças
relacionadas ao tabaco aumenta com o número de cigarros fumados, e o
dano está presente mesmo com o uso de poucos cigarros por dia. Um
fumante regular, ao longo da vida, perde, em média, 10 a 11 anos de vida
para o tabaco.
A exposição ambiental ao fumo passivo também está associada a um
maior risco de câncer e doenças cardiovasculares e outros danos à saúde. O
tabagismo é um fator de risco para infecções, não apenas do trato
respiratório, além de outras afecções, como osteoporose, distúrbios
reprodutivos, eventos adversos pós-operatórios e retardo na cicatrização de
feridas, úlceras duodenais e gástricas e diabetes tipo 2. A nicotina
desempenha um papel menor no risco de outras doenças, exceto no
desenvolvimento da própria dependência ao fumo, sendo esse fenômeno
atribuível principalmente a essa substância.
Considerando as 27 capitais do Brasil, a frequência de adultos (maiores
de 18 anos) fumantes foi de 9,8%, sendo maior no sexo masculino (12,3%)
do que no feminino (7,7%). No total da população, a frequência de fumantes
tendeu a ser menor entre os adultos jovens (antes dos 25 anos de idade) e
entre os adultos com 65 anos e mais. A frequência do hábito de fumar
diminuiu com o aumento da escolaridade, e foi particularmente alta entre
homens com até oito anos de estudo (16,8%).
É comum, mesmo motivados a parar de fumar, que alguns tabagistas só
consigam cessar o uso por algumas horas. Dos que tentam cessar por conta
própria, 80% voltam a fumar dentro do primeiro mês e, a cada ano, apenas
3% dos fumantes param de fumar com sucesso. São taxas desanimadoras e,
infelizmente, a quantidade de pessoas – principalmente crianças e
adolescentes – que diariamente se tornam fumantes quase corresponde à taxa
de abandono, fazendo com que a prevalência do tabagismo diminua muito
lentamente ao longo dos anos.

12.1. E aí? O que fazer?


É importante que o clínico compreenda que os efeitos estimulantes de
nicotina produzem melhora na atenção, no aprendizado, no tempo de reação
e na capacidade de resolver problemas. Além disso, induz prazer, eleva o
humor e abranda sentimentos negativos, reduz o estresse e a ansiedade,
melhora a concentração, o tempo de reação e o desempenho de certas
tarefas. O paciente percebe tudo isso. Não se deve negar tais fatos, mas os
enfraquecer e contrabalancear com os aspectos negativos da dependência.
Durante as consultas, todo profissional de saúde deve questionar
ativamente sobre o uso de cigarros e todos os tabagistas devem ser
advertidos sobre os benefícios do abandono do hábito de fumar,
independentemente da idade, de comorbidades ou de problemas de saúde
que tenham. O aconselhamento médico (ver a seguir) aumenta a
probabilidade de abandono de 6.9% para 14.7% e deve ser ofertado a todos
os fumantes, e não apenas àqueles que estão motivados a parar.
O tratamento comportamental não farmacológico deve ser ofertado a
todos os fumantes e, para os que têm indicação de tratamento
medicamentoso, a combinação com o suporte comportamental produz taxas
mais altas de abandono do tabaco do que qualquer tipo de tratamento
isolado.
Dada a associação com múltiplas comorbidades, é essencial avaliar a
presença de outros distúrbios clínicos, neurológicos ou psiquiátricos. Além
disso, a possibilidade de farmacoterapia no tratamento torna necessária a
avaliação da indicação/contraindicação dos medicamentos. Transtornos
convulsivos, depressivos, psicóticos, hipertensão, doença cardíaca instável,
arritmias, asma, distúrbios da articulação temporomandibular ou problemas
dentários podem ser elementos que ajudam a direcionar melhor o tratamento.
A US Preventive Services Task Force (USPSTF) recomenda, em
pacientes assintomáticos, o rastreamento de câncer de pulmão e aneurisma
de aorta abdominal.

• Rastreamento de câncer de pulmão: deve ser feito com tomografia


de tórax em pacientes entre 55 e 80 anos, tabagistas ou ex-tabagistas
que cessaram o tabagismo em até 15 anos, com carga tabágica de,
pelo menos, 30 anos/maço[1]. O rastreio anual deve ser suspenso tão
logo o paciente ex-tabagista complete 15 anos sem fumar.
• Rastreamento de aneurisma de aorta abdominal: a recomendação
varia dependendo do sexo, da idade, do tabagismo e da história
familiar. Para homens fumantes (ou com história de tabagismo) entre
65 e 75 anos, o rastreio é realizado com ultrassonografia, uma única
vez. A ultrassonografia também deve ser realizada em mulheres
fumantes (ou com história de tabagismo), entre 65 e 75 anos.

[1]
A carga tabágica é calculada multiplicando a quantidade de maços (contém 20 cigarros)
fumadas por dia e a quantidade de anos fumando: 2 maços/dia durante 15 anos corresponde a
30 anos/maço (equivalente a 30 anos, fumando 1 maço por dia).

13. TRATAMENTO NÃO FARMACOLÓGICO


A seguir, destacamos 4 passos fundamentais no manejo não farmacológico
de pacientes tabagistas.

Passo 1: Questionar
O clínico deve questionar sobre o hábito de fumar, fazer o diagnóstico de
tabagismo, dar feedback da avaliação, estimar o grau de motivação do
paciente em parar de fumar. Uma avaliação abrangente inclui a determinação
da frequência de uso, os produtos utilizados, o grau de dependência e o
histórico de tentativas de abandono (incluindo métodos utilizados e sua
eficácia). É fundamental identificar os “gatilhos”, que são um obstáculo
importante na cessação do tabagismo. Com o tempo, os fumantes ficam
condicionados a esses gatilhos. Fumar torna-se automático nesses momentos
e é imprescindível planejar estratégias para superá-los.

Passo 2: Aconselhar
O aconselhamento profissional (Quadro 3), especialmente quando feito pelo
profissional médico, aumenta a chance de cessação do tabagismo. Quanto
mais intensiva a abordagem, maiores são as taxas de sucesso. Tanto a
abordagem individual quanto a em grupo são eficazes.
Quadro 3 - Estágios de mudança e os elementos de aconselhamento
associados

Estágio Definição Elementos a serem enfatizados

O fumante não considera a


Feedback sobre os resultados
Pré- mudança imediata. Pode não estar
da triagem e informações sobre os
contemplação ciente do dano real ou potencial à
perigos de manter o tabagismo.
saúde se continuar fumando.

Informações sobre os problemas


O fumante pode estar ciente das associados.
consequências relacionadas ao uso Enfatizar os benefícios de mudar e o
Contemplação
de cigarros, mas é ambivalente risco de adiar a mudança.
sobre a mudança. Discutir como escolher objetivos e dar
os primeiros passos.

Definir objetivos e metas.


O fumante já decidiu mudar e tem Reafirmar o compromisso de
Preparação
planos para agir. mudança.
Encorajar.

O fumante começou a reduzir o


Revisão dos conselhos, das metas e
consumo ou parar de fumar, mas a
Ação dos objetivos.
mudança não se tornou um
Encorajar.
recurso permanente.

O fumante alcançou o consumo


Manutenção moderado ou a abstinência de Incentivar, encorajar.
forma relativamente permanente

Fonte: World Health Organization.15


Passo 3: Auxiliar
Após determinar a prontidão do paciente, o clínico deve auxiliar no
planejamento das ações e iniciar da farmacoterapia. Os pacientes pré-
contemplativos devem receber aconselhamento e esclarecimento constantes
sobre os efeitos deletérios do tabaco e os contemplativos devem ser
auxiliados no planejamento dos primeiros passos para a parada dos cigarros.
O melhor momento para iniciar a farmacoterapia é quando o paciente está
em Preparação-Ação. Estabelecer um dia específico para a cessação total dos
cigarros (dia “D”) é uma boa estratégia para colocar os pacientes em Ação.
Existem duas formas de cessar o tabagismo: parada abrupta (cessação total
dos cigarros no dia “D”) e parada gradual (reduzir uma fração de cigarros
fumados a cada dia até cessar completamente no dia “D”, ou adiando a hora
do primeiro cigarro do dia até cessar completamente).
É importante que o dia de parar não seja muito distante para não gerar
acomodação e abandono da estratégia. Também pacientes muito ansiosos em
parar de fumar devem ser advertidos da importância de perceber seus
gatilhos e ter estratégias bem estabelecidas para contorná-los, e isso pode
requerer alguns dias de reflexão e planejamento antes da parada total.
Independentemente da forma escolhida, qualquer dos fármacos pode ser
utilizado, mesmo as terapias de reposição de nicotina durante uma tentativa
de parada gradual.

Passo 4: Acompanhar
As taxas de abstinência a longo prazo são baixas. O acompanhamento
longitudinal é essencial na tentativa de melhorar os índices de sucesso a
longo prazo. Muitas vezes, são necessárias várias tentativas para obter
remissão sustentada (maior que 12 meses). A maioria dos pacientes não
permanece completamente abstinente até o terceiro mês e uma reavaliação
nesse período é essencial para ajustes no tratamento ou pronto reinício após
recidivas.

14. FARMACOTERAPIA
Antes de avaliar qual o fármaco utilizar, deve-se avaliar a indicação ou não
de tratamento medicamento. Ele trará benefício no alívio dos sintomas de
abstinência, que são apenas um dos diversos fatores que levam o sujeito a
fumar. Tabagistas que não desenvolvem sintomas de abstinência não têm
benefícios superiores aos riscos com o uso dos medicamentos. Nesses casos,
deve-se atuar para modificar os hábitos e as associações que o sujeito faz
entre o cigarro e os eventos do cotidiano. Alguns quesitos podem ajudar a
avaliar a presença (ou possibilidade) de sintomas de abstinência:

1. Pontuação superior ≥ 5 no Questionário de Tolerância Fagerström.


2. Número de cigarros por dia maior do que 10.
3. Tempo até o primeiro cigarro ≤ 30 minutos.
4. Descrição atual de sintomas de abstinência.

O Questionário de Tolerância de Fagerström é uma ferramenta


amplamente utilizada para estimar o nível de tolerância e a possibilidade e
gravidade de uma síndrome de abstinência. O questionário tem 6 itens, é de
rápida aplicação e ajuda a decidir sobre a indicação do tratamento
medicamentoso. Pontuações acima de 5 indicam possibilidade de sintomas
mais graves e maior dificuldade de se manter abstinente apenas com o
tratamento comportamental.

Questionário de Tolerância de Fagerström

1. Em quanto tempo depois de acordar você fuma o primeiro cigarro?


(3) Dentro de 5 minutos
(2) Dentro de 6 a 30 minutos
(1) Dentro de 31 a 60 minutos
(0) Depois de 60 minutos

2. Você acha difícil ficar sem fumar em lugares onde é proibido (por
exemplo, na igreja, no cinema, em bibliotecas e outros)?
(1) Sim
(0) Não

3. Qual o cigarro do dia que traz mais satisfação?


(1) O primeiro da manhã
(0) Outros

4. Quantos cigarros você fuma por dia?


(3) Mais de 30
(2) De 21 a 30
(1) De 11 a 20
(0) Menos de 10

5. Você fuma mais frequentemente pela manhã?


(1) Sim
(0) Não

6. Você fuma mesmo doente quando precisa ficar na cama a maior parte do
tempo?
(1) Sim
(0) Não

7. Avaliação do resultado (grau de tolerância = soma dos pontos)


0-2: muito baixo
3-4: baixo
5: médio
6-7: elevado
8-10: muito elevado

O tratamento farmacológico abranda significativamente a intensidade dos


sintomas de abstinência, tornando menos difícil permanecer sem fumar. Mas
é importante alertar o paciente que as fissuras e os sintomas podem
acontecer mesmo durante o uso de medicamentos e que ele deve estar
preparado para enfrentá-los.
Fumantes de poucos cigarros (menos que 10 cigarros por dia) podem não
desenvolver sintomas de abstinência e não ter benefícios superiores aos
riscos com o uso dos medicamentos, porém a farmacoterapia ainda é uma
possibilidade, avaliada caso a caso. Para fumantes de mais de 10
cigarros/dia, o uso de fármacos aumenta de 2 a 3 vezes a chance de sucesso.
O tratamento dura, geralmente, 6 a 14 semanas (média 8 a 12 semanas),
podendo ser mais curto em dependências mais leves, ou tão prolongado
quanto 12 meses em casos mais graves e selecionados.
Para a população em geral, as terapias de primeira linha são a Terapia de
Reposição de Nicotina (TRN), a vareniclina e a bupropiona. O tratamento
farmacológico visa reduzir os sintomas de abstinência da nicotina, tornando
mais fácil parar de fumar.
A segunda linha de tratamento inclui a nortriptilina, que demonstrou
eficácia moderada no auxílio à cessação do tabagismo para indivíduos que
não podem usar um agente de primeira linha. Com a nortriptilina, os
pacientes foram mais propensos a relatar efeitos colaterais, incluindo boca
seca, maior ganho de peso e sedação.
Para a maioria dos pacientes, monoterapia farmacológica é suficiente. A
associação de medicamentos é uma opção com bons resultados, mas com
mais riscos de efeitos colaterais e interações medicamentosas. Uma escolha
mais racional seria reservar o tratamento combinado para fumante com
resposta parcial à medicação inicial. As combinações de medicamentos
parecem, inclusive, ser mais eficazes do que a monoterapia, mas ainda não
há corpo de evidências para que essa seja uma recomendação inicial.
As combinações entre TRNs (adesivos mais gomas ou pastilhas) e TRNs
com bupropiona ou nortriptilina são associações já estudadas e de bons
resultados. Nicotínicos de ação rápida (goma ou pastilhas) podem ser
utilizados como uma boa estratégia para controle das fissuras e melhorar os
resultados.

Quadro 4 - Tratamentos farmacológicos de primeira linha para o tabagismo

Droga Adesivo de Nicotina (7 mg, 14 mg, 21 mg)

21 mg para fumantes de mais de 10 a 25 cigarros/dia.


Dose
14 mg para fumantes de menos de 10 a 20 cigarros/dia.
Droga Adesivo de Nicotina (7 mg, 14 mg, 21 mg)

Aplique 1 adesivo a cada 24 horas.


Pode-se iniciar mesmo durante reduções graduais.
Administração
Rodiziar o sítio de aplicação.
Reduzir a dose a cada 2 a 4 semanas até suspensão em 12 semanas.

Irritação na pele, insônia, sonhos vívidos.


Efeitos
Pacientes com doenças cardiovasculares instáveis podem ter desfechos
Adversos
adversos.

Vantagens Fornece nível de nicotina estável.

Se removido antes de dormir, leva de 30 minutos a 3 horas após a reaplicação


Notas
para atingir níveis eficazes.

Droga Goma de Nicotina (2 mg e 4 mg)

2 mg se o primeiro cigarro é fumado após 30 minutos após acordar.


Dose 4 mg se o primeiro cigarro <30 minutos após acordar.
Máximo: 24 gomas/dia.

1 goma a cada hora conforme necessário.


Beber água para limpar a mucosa. Não comer e beber durante o uso, nem
Administração usar durante o uso.
Reduzir gradualmente o uso nas próximas seis semanas, por um período
mínimo de tratamento de três meses.

Geralmente devido à mastigação excessivamente vigorosa.


Efeitos
Irritação na boca, aftas, dor na mandíbula, azia, soluços ou náuseas.
Adversos
Gosto desagradável.

O usuário controla a dose de nicotina.


Vantagens Substituto oral para cigarros.
Pode ser usado como adjuvante no controle de fissuras (2 mg).
Droga Goma de Nicotina (2 mg e 4 mg)

Difícil para usuários de dentadura.


A nicotina é liberada com a mastigação e absorvida pela mucosa oral.
Mastigar até sentir dormência ou amargor e repousar no vestíbulo. Repetir o
Notas
processo por 30 min.
Bebidas ácidas (por exemplo, café, refrigerantes) devem ser evitadas antes e
durante o uso de goma de mascar.

Droga Pastilha de Nicotina (2 mg e 4 mg)

2 mg se o primeiro cigarro ≥30 minutos após acordar.


Dose
4 mg se o primeiro cigarro <30 minutos após acordar.

1 pastilha a cada 1 a 2 horas, conforme necessário.


Coloque a pastilha na boca e deixe-a dissolver por 30 minutos. Não mastigar.
Máximo:
Administração
5 pastilhas / 6 horas
20 pastilhas / dia
Reduzir gradualmente o número de pastilhas por dia em seis semanas.

Irritação na boca ou úlceras, soluços, azia ou náusea, vômito, dor abdominal,


Efeitos
dor de cabeça e palpitações.
Adversos
Gosto desagradável.

Vantagens O usuário controla a dose de nicotina.

Substituto oral para cigarros.


Notas Pode ser usado por fumantes com dentição ruim ou com dentaduras.
Sem comer ou beber por 30 minutos antes e durante o uso.

Droga Vareniclina

Dose Comprimido de 0,5 mg (início) e 1,0 mg (manutenção).


Droga Vareniclina

0,5 mg/dia por 3 dias, depois 0,5 mg duas vezes ao dia por 4 dias, a seguir 1
mg duas vezes ao dia.
Administração Iniciar 1 a 2 semanas antes da data de parar.
É preferível parar abruptamente de fumar. A redução gradual é uma
alternativa.

Efeitos Náusea, insônia, sonhos anormais (vívidos, incomuns ou estranhos), dor de


Adversos cabeça, erupção cutânea (≤3%).

Ação dupla: alivia os sintomas de abstinência de nicotina e reduz a sensação


Vantagens
prazerosa associada ao fumo.

Dose reduzida na insuficiência renal grave.


Evitar em pacientes com doença psiquiátrica instável, ou histórico de ideação
Notas suicida, ou transtorno de estresse pós-traumático.
Monitorar os sintomas neuropsiquiátricos.
Custo muitas vezes impeditivo.

Droga Bupropiona

150 mg comprimido (liberação lenta).


Dose
150 mg e 300 mg (liberação sustentada).

Iniciar 150 mg/dia e aumentar para 300 mg/dia no 4º dia. Parar de fumar
entre 1 a 2 semanas após o início.
Administração É preferível parar abruptamente de fumar. A redução gradual é uma
alternativa.
Comprimidos de liberação lenta: 300 mg divididas em duas tomadas.

Insônia, agitação, boca seca, dor de cabeça.


Efeitos
Dose mais baixa (150 mg/dia) é uma opção para pacientes que não toleram a
Adversos
dose completa.

Vantagens Reduz o ganho de peso pós-cessação.


Droga Bupropiona

Monitorar para sintomas neuropsiquiátricos.


Notas
Contraindicado em pacientes com distúrbios convulsivos ou predisposição.

Fonte: adaptado de Paik, Kang, Durey, Kim, Kim.19

Em caso de recaída, o paciente deve ser incentivado a fazer outra


tentativa de parar de fumar, com aconselhamento direcionado e aprimorado,
além de tratamento medicamentoso com possibilidades de combinação de
fármacos. A recaída ocorre, muitas vezes, por falhas nas estratégias
comportamentais, que devem ser reavaliadas, reforçadas e corrigidas. Outras
vezes, ocorrem por sintomas de abstinência, ganho de peso ou alterações de
humor que consideradas intoleráveis.

Os pacientes devem ser lembrados de que a maioria dos fumantes que


permanecem abstinentes a longo prazo, geralmente, lançaram-se em várias
tentativas anteriores. Um estudo estimou que 72% dos fumantes não
permaneciam abstinentes até o terceiro mês. Trinta e cinco a 40% dos
pacientes que atingem a abstinência recidiva entre os anos 1 e 5 após o
abandono. Quase dois terços dos fumantes que recidivam relatam querer
parar de fumar novamente dentro dos primeiros 30 dias. Se um tratamento
farmacológico anterior foi útil, mesmo que parcialmente, ou
temporariamente, recomenda-se a mesma terapia com a possibilidade de
reforço com medicações adjuvantes.

Figura 1 - Fluxograma de manejo do tabagismo


Fonte: elaborada pelos autores.

7.1. Redescobrindo o caso (Pontos-Chave)

1 Idade maior que 55 anos


Carga tabágica maior que 30 anos/maço
2
(mais que 10 cigarros/dia)

3 Tentativas prévias frustradas

4 Sinais de abstinência

5 Primeiro cigarro ao levantar

Ato de fumar associado a hábitos cotidianos


6
e ao alívio de sentimentos negativos

Luiz tem critérios suficientes para o diagnóstico de dependência de


tabaco e de síndrome de abstinência. Os seguintes elementos auxiliam na
indicação do tratamento medicamentoso: fuma quantidade elevada de
cigarros, demonstra sintomas de abstinência presentes e tem pelo menos 5
pontos no Questionário de Fagerström. Quaisquer dos tratamentos
farmacológicos de primeira linha seriam opções. Ressalvas ao uso da
bupropiona quanto ao risco de elevar a pressão arterial como efeito adverso.
Buscar manter os níveis pressóricos controlados. Quaisquer das
possibilidades de redução, gradual ou abrupta, seriam aplicáveis. A
orientação do uso do medicamento em relação ao momento de parar os
cigarros depende do fármaco escolhido: TRN, recomenda-se parar ao iniciar
o medicamento. Bupropiona ou vareniclina, recomenda-se iniciar o
medicamento 1 a 2 semanas antes de cessar os cigarros.
O paciente deve receber aconselhamento ajustado ao seu grau de
motivação e contexto: percebe-se prontidão para a ação, quando a prescrição
medicamentosa é mais conveniente. Deve ter o auxílio do profissional na
orientação dos primeiros passos para cessar o tabagismo, como definição de
um dia “D”, por exemplo. O aconselhamento deve conter orientações sobre a
identificação de gatilhos, como hábitos e associações de sentimentos
negativos com o fumo. Deve ser estimulado a elaborar estratégias para se
esquivar ou contornar situações gatilho sem a necessidade de fumar.
Um retorno deve ser agendado antes do 3º mês de tratamento para
reavaliação e possíveis ajustes no projeto terapêutico. Se a abstenção estiver
sendo difícil, associações medicamentosas e prolongamento do tempo de
tratamento podem ser tentados.
Dada a idade e a carga tabágica, deve ser rastreado para câncer de
pulmão por meio de TC de baixa dosagem. Não há indicação para
rastreamento de aneurisma de aorta abdominal.

Exemplo de uma prescrição para Luiz


Bupropiona 150 mg, 1 comprimido, via oral, pela manhã, por 4 dias.
Após esse prazo, passar a tomar:
Bupropiona 150 mg, 2 comprimidos, via oral, pela manhã.
+
Orientar suspensão do uso de tabaco após 15 dias.

Referências
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SIGLAS

• DPOC Doença Pulmonar Obstrutiva Crônica


• SNC Sistema Nervoso Central
• TRN Terapia de Reposição de Nicotina
A alimentação, comportamento essencial e até banal, toma contornos,
assim como qualquer atividade humana, desnaturalizados: para o homem,
suprir necessidades nutricionais não é o suficiente, é preciso sabor, desejo
despertado desde o cheiro até o visual. Portanto, além do aspecto nutritivo,
onde os mecanismos metabólicos, endócrinos e bioquímicos controlam a
saciedade e a fome, a alimentação assume uma dimensão afetiva sendo o
alimento fonte de prazer ou de ligação relacional (mãe e filho na
amamentação, por exemplo), dimensão social e cultural marcada na
trajetória humana como um traço presente em qualquer ritual (casamento,
aniversários, cerimônias diversas, entre outros). Nessa dimensão também
encontramos as regras e tabus entrelaçados com os costumes alimentícios.
Os transtornos alimentares destacam-se pela perturbação no
comportamento relacionado à alimentação culminando em prejuízos físicos,
psíquicos e sociais. O envolvimento patológico com a comida pode se
assemelhar com o encontrado em condições associadas ao uso de
substâncias psicoativas.
Nessa seção, destacamos as principais categorias diagnósticas pela sua
relevância epidemiológica e clínica para o generalista. São elas: anorexia
nervosa, bulimia nervosa e transtorno de compulsão alimentar.
1. CASO CLÍNICO
Lívia, 15 anos, trazida ao consultório pelos pais devido à perda de peso
importante nos últimos 6 meses. Paciente apresenta-se. Pais relatam que a
paciente tem constantes desmaios e tontura. No mesmo período da perda de
peso, passou a apresentar isolamento social. Não deseja mais sair com as
amigas, evita as refeições com a família e passa a maior parte do tempo trancada
no quarto. Vem tendo dificuldades no sono e sente-se sempre triste.

Exame físico e mental: paciente apresenta-se vestindo um casaco, duas


blusas por baixo e uma calça jeans, apesar do clima quente onde mora. É
bastante emagrecida, com muitos pelos finos em antebraço. Peso de 45kg e
1,62m de altura. Durante entrevista sem a presença dos pais, paciente
revela se sentir “cheia, inchada”, mas que deve ficar melhor quando chegar
na meta de 40kg. Relata que costuma ficar longas horas em jejum após
algumas refeições, chegando a ficar mais de 24h sem se alimentar.

2. DISCUTINDO O DIAGNÓSTICO
A Anorexia Nervosa (AN), devido à grande influência da mídia na última
década, pode ser vista de forma errônea por muitos como uma patologia da
modernidade que acomete quase que exclusivamente pessoas que estão
envolvidas com o ramo da beleza. No entanto, temos descrições dessa doença
desde a Idade Média. Rudolph M. Bell, em seu livro Holy Anorexia ou Anorexia
Sagrada, publicado em 1985, relata a história de 260 santas italianas que
apresentaram comportamento anoréxico por acreditarem que a prática de jejum
era uma forma de purificação espiritual do corpo. Um relato de caso bastante
conhecido é o de Santa Catarina de Siena, que aos 15 anos iniciou um quadro de
inanição alimentar, preces e comportamentos autopunitivos após a morte de sua
irmã e durante os planejamentos de seu futuro casamento, evoluindo com um
estado psicológico de intensa vigília e experiências místicas que resultou em seu
falecimento aos 32 anos.
O termo anorexia deriva do grego “an-”, que significa deficiência ou
ausência, e “orexis”, apetite. No entanto, essa não é a melhor forma de definir
essa patologia. Sabe-se que tais pacientes não apresentam perda de apetite, mas
sim uma recusa persistente em se alimentar, ignorando a fome, com a única
finalidade de emagrecer.
Quais são os critérios diagnósticos atuais? A anorexia nervosa pode ser
sintetizada no esquema a seguir.

Figura 1 - Diagnóstico de anorexia nervosa

Fonte: Elaborado pelos autores

Perceba que não é difícil entender os principais critérios diagnósticos, visto


que eles se encontram entrelaçados. Geralmente esses pacientes abrem o quadro
clínico com restrição alimentar (que pode ser apenas com o intuito inicial de
perder peso associado ou não a algum evento estressor, como luto, término de
relacionamento, divórcio dos pais etc.). Nesse momento inicial, começam
evitando apenas alimentos que consideram mais calóricos. No entanto, vão
evoluindo para restrições cada vez maiores e de diversos grupos alimentares.
Vão estipulando metas cada vez maiores, evidenciando o primeiro critério
diagnóstico: restrição persistente da ingesta calórica. O paciente evolui com um
peso significativamente baixo, normalmente padronizado pelo IMC<18,5 (IMC
é um parâmetro que deve ser avaliado no contexto de idade, gênero e trajetória
do desenvolvimento). Além da restrição alimentar, alguns pacientes podem
apresentar ainda comportamentos como prática de atividade física excessiva,
uso de diuréticos, laxantes ou indução de vômitos, sempre na tentativa de
acelerar a perda de peso.
Essa restrição alimentar intensa, com controle rígido das calorias ingeridas e
com monitorização do peso, evolui para um medo intenso em ganhar peso,
caracterizando o segundo critério. Alguns pacientes se sentem acima do peso,
mesmo que estejam cada vez mais magros. Podem se preocupar excessivamente
com determinadas partes do corpo em particular, como glúteos, abdome, braços,
quadril etc., evidenciando o terceiro critério: perturbação na percepção do
próprio peso ou da própria forma.
Esses pacientes normalmente não apresentam a percepção de que seus
comportamentos ou sintomas são nocivos à sua saúde. Portanto, em grande
parte dos casos, quem leva os pacientes ao atendimento médico são familiares,
preocupados com a perda de peso intensa.
Podem apresentar ainda atitudes como esconder alimentos em
armários/banheiros/roupas, dividir o alimento em pequenas porções, evitar
comer na presença de outras pessoas, mastigar lentamente pequenas quantidades
de comida, insistir que estão acima do peso ideal, interesse extremo sobre
culinárias, dietas especiais, vegetarianas ou bizarras, preparar seus pratos de
forma inflexível e obsessiva, ter grande conhecimento sobre calorias dos
alimentos e sobre nutrição, acreditar que a gordura consumida se transforma
imediatamente em gordura corporal.
Além disso, lembre-se sempre que a desnutrição pode causar importantes
complicações clínicas, sendo necessário fazer uma investigação ativa dos
principais sintomas, além de exame físico completo, visto que os pacientes
negam os sintomas ou não os relatam de forma espontânea. Alguns
sinais/sintomas observados são fadiga, queda de cabelo, intolerância ao frio,
constipação e dor abdominal (maiores detalhes na seção Complicações
Clínicas).
Vamos apresentar agora em uma tabela os critérios do DSM-5 já discutidos
aqui para que você possa fixar os conceitos de forma mais clara e sistemática.

Quadro 1 - Critérios diagnósticos DSM-5 – Anorexia nervosa

Critério A: Restrição da ingesta calórica em relação às necessidades, levando a um peso corporal


significativamente baixo no contexto de idade, gênero, trajetória do desenvolvimento e saúde física.
Peso significativamente baixo é definido como um peso inferior ao peso mínimo normal ou, no caso
de crianças e adolescentes, menor do que o minimamente esperado.

Critério B: Medo intenso de ganhar peso ou de engordar, ou comportamento persistente que


interfere no ganho de peso, mesmo estando com peso significativamente baixo.

Critério C: Perturbação no modo como o próprio peso ou a forma corporal são vivenciados,
influência indevida do peso ou da forma corporal na autoavaliação ou ausência persistente de
reconhecimento da gravidade do baixo peso corporal atual.

Fonte: American Psychiatric Association.2

A AN pode ser classificada em dois subtipos clínicos: anorexia nervosa tipo


restritiva (AN-R) e anorexia nervosa tipo compulsão alimentar purgativa (AN-
CP).

Quadro 2 - Classificações DSM-5 (subtipos clínicos)

Durante os últimos três meses, o indivíduo não se envolveu em


episódios recorrentes de compulsão alimentar ou comportamento
Anorexia nervosa tipo purgativo (i.e., vômitos autoinduzidos ou uso indevidos de laxantes,
restritiva (AN-R) diuréticos ou enemas). Esse subtipo descreve apresentações nas quais a
perda de peso seja conseguida essencialmente por meio de dieta, jejum
e/ou exercício excessivo.

Anorexia nervosa tipo Nos últimos três meses, o indivíduo se envolveu em episódios
compulsão alimentar recorrentes de compulsão alimentar purgativa (i.e., vômitos
purgativa (AN-CP). autoinduzidos ou uso indevido de laxantes diuréticos ou enemas).

Fonte: American Psychiatric Association.2

Calma, não se assuste! Sei que o Quadro 2 é grande, mas é mais fácil do que
você imagina. Foi visto que existem dois padrões diferentes que a AN pode
apresentar-se: o subtipo restritivo é quando o indivíduo não se envolveu de
forma regular em um comportamento de comer compulsivamente ou de
purgação e já o subtipo purgativo o paciente apresentou episódios recorrentes de
compulsão alimentar purgativa, ambos nos últimos 3 meses.
Pacientes com anorexia nervosa perdem muito peso e a situação tende a se
agravar cada vez mais com o avançar da doença. Diante disso, de acordo com o
IMC da paciente podemos classificar a gravidade em leve (IMC > 17 kg/m2),
moderada (IMC 16-16,99 kg/m2), grave (IMC 15-15,99 kg/m2) e extrema (IMC
<15 kg/m2).

3. ASPECTOS SOBRE A EPIDEMIOLOGIA E A


ETIOLOGIA
A AN foi o primeiro transtorno alimentar descrito na literatura e é o transtorno
com maior taxa de mortalidade dentre todos os transtornos psiquiátricos. Diante
disso, observamos a importância de estudar e entender essa patologia devido à
sua gravidade clínica. Grande parte dos óbitos que ocorrem são em decorrência
do suicídio e das complicações clínicas geradas pela desnutrição.
É uma doença rara, que acomete principalmente o sexo feminino em uma
faixa etária jovem (geralmente se inicia aos 15 anos). Apesar de ser mais
frequente em indivíduos de classe média a alta, tem sido observado um
crescente índice na população de baixa renda. A AN apresenta maiores taxas de
prevalência em profissões ligadas à estética, à valorização e ao estudo do corpo,
como bailarinas, atletas, profissionais da moda, atrizes e atores, estudantes de
medicina, nutrição e psicologia.
É extremamente comum a concomitância da AN com outras comorbidades,
como transtorno depressivo maior (TDM), transtorno bipolar, transtorno
obsessivo-compulsivo (TOC), transtorno de ansiedade e transtorno de
personalidade, com destaque para o transtorno de personalidade borderline.
Muitos indivíduos relatam a presença de sintomas ansiosos ou de outros
sintomas psiquiátricos antes mesmo do aparecimento da AN. O TOC e o
transtorno de personalidade obsessiva-compulsiva estão mais relacionados à AN
do tipo restritiva, enquanto o transtorno de personalidade borderline à AN do
tipo purgativa. A prevalência é tão comum, que em cerca de 65% dos casos de
AN ocorre a associação com TDM e até 75% concomitante com um transtorno
de ansiedade. Tornando-se de suma importância que essas comorbidades sejam
abordadas no tratamento.
O quadro de desnutrição e métodos compensatórios para o controle de peso
(como vômitos induzidos, uso indiscriminado de laxantes e de diuréticos)
podem causar sérias repercussões clínicas que sempre devem ser avaliadas.

• Alterações metabólicas: observa-se um quadro de hipercolesterolemia e


hipoglicemia. A hipercolesterolemia pode ser decorrente da redução dos
níveis de T3 e da globulina carreadora de colesterol e/ou da diminuição
da excreção fecal de ácidos biliares e colesterol. A hipoglicemia tanto
pode ocorrer após jejuns prolongados, como em resposta a um episódio
de compulsão alimentar seguido de vômito.
• Distúrbios hidroeletrolíticos: são as complicações mais frequentes e
que oferecem maior risco para o paciente. Pode ocorrer hipocalemia
(devido a vômitos, abuso de medicamentos depletores de potássico,
como diuréticos), hiponatremia (consequência da grande ingesta de água
ou das oscilações do hormônio anti-diurético – ADH), hiperfosfatemia e
hipomagnesemia.
• Alterações endócrinas: decorrentes da desnutrição grave. Desenvolvem
desregulação dos níveis hormonais tireoidianos e sexuais, como baixo
nível de hormônio luteinizante, de hormônio folículo-estimulante, de
estrogênio, de progesterona, aumento da secreção do cortisol, do
hormônio do crescimento, da prolactina etc. As mulheres podem cursar
com amenorreia, sugerindo disfunção hipotalâmica primária, com
redução dos ovários para estados pré-puberais, redução das mamas,
diminuição da libido, atrofia das paredes vaginais e dispareunia. Nos
homens, ocorre a redução da testosterona com o surgimento do
hipogonadismo e posterior disfunção sexual.
• Alterações cardiovasculares: os pacientes podem apresentar
taquicardia (em resposta à desidratação), bradicardia (em decorrência da
hiperatividade vagal ou alterações do T4 e T3), hipotensão arterial,
intervalo QT prolongado, baixa voltagem do complexo QRS, alterações
do segmento ST, ondas T e U alteradas em distúrbios hidroeletrolíticos,
diminuição da função sistólica do ventrículo esquerdo, prolapso da valva
mitral, entre outras alterações.

• Alterações oftalmológicas: pode cursar com o surgimento de catarata,


atrofia do nervo óptico, degeneração da retina e diminuição da acuidade
visual.

• Alterações hematológicas: pode evoluir com pancitopenia (anemia,


leucopenia, neutropenia e trombocitopenia). Entre as anemias, pode-se
destacar a anemia da doença crônica (normocítica e normocrômica),
como também anemias carenciais do tipo ferropriva (microcítica e
hipocrômica) e por deficiência de vitamina B12 e ácido fólico
(megaloblástica).
• Alterações dos fâneros e bucomaxilares: observa-se uma pele pálida,
seca, sem brilho e, por vezes, coberta por uma fina camada de pelos
(lânugos), cabelos finos, ralos, quebradiços e avermelhados, unhas
frágeis e quebradiças, cáries dentárias, queilose, hipercarotenemia,
calosidade nos dedos ou no dorso das mãos (sinal de Russell),
acrocinesia, entre outras alterações.
• Alterações renais: de forma bastante simplificada, as alterações no
hormônio ADH e a ingesta de líquidos de baixa caloria resulta em
alterações da concentração urinária, em redução da osmolaridade da
medula renal e em diminuição da concentração ureia, que pode evoluir
para insuficiência renal e azotemia pré-renal. Além disso, os níveis
elevados de oxalato de cálcio e a desidratação crônica podem predispor
para a formação de cálculos renais.
• Alterações gastrointestinais: pode cursar com retardo do esvaziamento
gástrico, redução da motilidade intestinal, constipação, prolapso retal,
dilatação gástrica, alteração da função hepática, hipertrofia das glândulas
parótidas e submandibulares, esofagite, hematêmese (devido síndrome
de Mallory-Weiss), entre outras alterações.

Acredita-se que a AN tenha etiologia multifatorial, participando:

• Fatores genéticos: a AN tem caráter fortemente familiar e estima-se que


a hereditariedade varie de 28% a 74%. As taxas de transtorno alimentar
entre parentes de primeiro grau são 4 vezes maiores que a população
geral. Além disso, observa-se maior incidência em gêmeos
monozigóticos.
• Fatores neurobiológicos: observa-se na neuroimagem de um paciente
AN aguda uma redução global da substância cinza e branca do cérebro,
aumento do líquido cefalorraquidiano, diminuição do hipotálamo à
esquerda, diminuição na área de recompensa localizada nos gânglios da
base e no córtex somatossensorial. Acredita-se que a distorção da
imagem corporal ocorre devido a alterações na funcionalidade do córtex
parietal posterior, relacionado ao componente perceptivo, e do córtex
pré-frontal e da amígdala, relacionada ao componente afetivo de
distorção da imagem corporal.
• Fatores de desenvolvimento: acredita-se que algumas fases do
desenvolvimento do indivíduo possam influenciar o aparecimento da
AN, como eventos perinatais, como prematuridade; dificuldades de
alimentação e sono na infância; personalidade emergente com traços
associados à ansiedade, à depressão, ao perfeccionismo e ao espectro
autista, entre outras causas.
• Fatores ambientais: prática de dietas rígidas, traumas e abusos durante
a infância ou adolescência, separação dos pais, perdas de pessoas
próximas, mudanças e/ou disfuncionalidades na dinâmica familiar,
proximidade da menarca, profissão relacionada a estética, culto ao corpo
e pressão sociocultural.

4. DIAGNÓSTICO DIFERENCIAL
Realizar o diagnóstico diferencial pode ser bastante difícil nesses pacientes
devido à falta de insight e negação dos sintomas. Sempre deve-se descartar
inicialmente causas orgânicas que possam levar à perda de peso intensa, como
câncer, infecções (HIV, tuberculoses etc.), síndromes consumptivas, doenças
gastrointestinais, hipertireoidismo, entre outras. Após isso, realizar diagnóstico
diferencial com outras patologias psiquiátricas.

• Depressão moderada/grave: possui muitos sintomas em comum com a


AN, como perturbações do sono, crises de choro, sentimento de tristeza
profunda, ruminações obsessivas e pensamentos suicidas ocasionais. Na
depressão ocorre perda do apetite (quando apresentação típica), enquanto
na AN não ocorre diminuição do apetite. Apenas nos estágios severos da
AN que ocorre uma ausência de apetite. Além disso, pacientes com
depressão não apresentam perda excessiva de peso nem medo intenso de
ganhar peso.
• Síndrome de Cotard: ocorre quando o paciente apresenta uma crença
irreal, fixa e irremovível de que estaria morto, logo, não haveria
necessidade de alimentar-se. Já na AN, a restrição alimentar é motivada
pelo medo intenso de engordar e pela distorção corporal.
• Fobias alimentares: é definida pelo medo patológico e intenso de
determinado tipo de alimento ou medo de se engasgar com o alimento,
levando a uma restrição alimentar e consecutiva perda de peso. Logo, ao
contrário da AN, a perda de peso é motivada por outros fatores.
• Transtorno obsessivo-compulsivo (TOC): é comum observamos
pacientes com AN apresentando comportamentos semelhantes a TOC,
como rigidez alimentar e uma preocupação excessiva nas calorias em
todas as refeições. Contudo, apesar de poder receber diagnóstico
concomitante, os comportamentos relacionados à alimentação na AN
visam a perda de peso, enquanto no TOC eles têm por objetivo o alívio
de pensamentos obsessivos (checagem, por exemplo)
• Quadros delirantes: cursa com a crença de que pode ser envenenado
por meio dos alimentos, recusando qualquer tipo de alimentação. Diante
disso, perceba que a motivação da restrição alimentar é diferente da
motivação da AN.
• Transtorno do Espectro Autista: apresenta três características
importantes: seletividade, recusa alimentar e indisciplina ao alimentar-se.
Esses pacientes têm preferência por alimentos específicos; quando esse
repertório de alimentos é bem pequeno, pode haver carência nutricional
ou desnutrição calórico-proteica. Perceba, mais uma vez, que a restrição
alimentar é ocasionada por diferentes fatores que ocorre na AN.
• Pica: desejo e ingestão intencional de uma ou mais substâncias não
alimentares e não nutritivas, como terra (geofagia), gelo (pagofagia),
sabão, papel, tecido, cabelos, de forma persistente, durante um período
mínimo de um mês. Torna-se grave ao cursar com complicações, como
deficiência de micronutrientes e minerais, distúrbios hidroeletrolíticos,
obstrução intestinal, entres outros. Na AN pode haver, por exemplo, o
consumo de lenços de papel, sendo que tem como objetivo final o
controle do apetite para, dessa forma, não se alimentar e não ganhar
peso. Logo, percebemos que as motivações são bem diferentes da Pica.

• Transtorno Alimentar Restritivo Evitativo (TARE): caracteriza-se


pela incapacidade em manter suas necessidades nutricionais devido a
comportamentos de esquiva ou restrição alimentar por falta aparente de
interesse na alimentação ou em alimentos, esquiva baseada nas
características sensoriais do alimento ou por preocupação acerca de
consequências aversivas alimentares. Quando comparados a AN,
pacientes com TARE geralmente são mais novos, apresentam mais
tempo de doença após o diagnóstico e são mais propensos a ter mais
complicações clínicas. TARE tem maior comorbidade com autismo e
déficit cognitivo, no entanto, menor comorbidade com o TDM. Mas,
seguindo a mesma linha de raciocínio, a principal diferença entre essas
patologias é a motivação da perda de peso, pois, no TARE, não
apresentam medo de ganhar peso, pelo contrário, alguns pacientes
podem até apresentar o desejo de engordar.
• Bulimia nervosa: transtorno relacionado a episódios de compulsão
alimentar após uma sensação de perda de controle seguido de algum
método que tenta compensar o excesso de calorias ingerido (como
indução de vômitos, uso de laxantes ou jejuns prolongados). A anorexia
nervosa e a bulimia nervosa são diagnósticos excludentes. Enquanto a
AN necessita de baixo peso para seu diagnóstico, a maioria dos pacientes
com BN apresentam-se com peso normal ou com leve excesso de peso.
Essa é a principal diferença entre a BN e a AN tipo purgativa.
• Ortorexia nervosa (ON): não é um diagnóstico reconhecido pelas
classificações oficiais atuais. A ON tem como característica principal a
ingesta de alimentos saudáveis e nutritivos, no entanto, torna-se um
comportamento patológico ao ser rígido, perfeccionista e ao ter intensa
interferência no funcionamento do paciente, que passa grande parte de
seu tempo se preocupando com a qualidade de sua comida. No entanto,
diferente da AN, esses pacientes não apresentam preocupação excessiva
com o peso ou com a imagem corporal, mas sim com a qualidade do
alimento que ingerem.
4.1. E aí? O que fazer?
Inicialmente é de extrema importância criar um bom relacionamento médico-
paciente, pois esses indivíduos possuem ausência de insight e muita aversão ao
tratamento pelo medo de que sejam obrigados a comer mais do que ele deseja. É
importante que o paciente esteja acompanhado de algum familiar durante as
avaliações e o tratamento, uma vez que costumam esconder ou omitir muitos
dos comportamentos inadequados para perder peso. A abordagem da AN deve
ser multidisciplinar, incluindo, no mínimo, um psiquiatra, um psicólogo e um
nutricionista, de preferência com experiência na área. É bom sempre estar atento
às comorbidades psiquiátricas – que podem aparecer concomitantes – e às
complicações clínicas sistêmicas.
Mais de 40% das pessoas que realizam o tratamento apresentam remissão
completa da doença. Além disso, existem evidências que mostram uma janela
crítica nos estágios iniciais (< 3 anos do início dos sintomas), no qual a
intervenção torna-se mais eficaz. Sendo de suma importância que os
profissionais da saúde, em todos os níveis, sejam competentes para diagnosticar
a AN de forma precoce.
O tratamento geralmente ocorre em ambiente ambulatorial, mas alguns
pacientes apresentam indicação de tratamento hospitalar. As principais
indicações são: falha no tratamento ambulatorial; agravamento do quadro
nutricional, com intensa perda de peso (>20% em 6 meses) ou desnutrição grave
(IMC < 15 kg/m2); complicações clínicas sistêmicas (arritmias cardíacas,
hipotensão, taquicardia postural, hipocalemia, anemias graves etc.); negação da
doença, sintomas psiquiátricos graves e ideação suicida.

5. TRATAMENTO NÃO FARMACOLÓGICO


A psicoterapia é recomendada como primeira linha no tratamento da AN e tem
como objetivo suspender as práticas purgativas e restritivas, normalizar o padrão
alimentar e desconstruir crenças distorcidas sobre a alimentação e sobre a
imagem corporal. As atuais diretrizes não elegem nenhuma abordagem
psicoterápica como superior em adultos, no entanto, a abordagem de terapia
familiar sistêmica e, em alguns casos, associada a terapia individual, tem se
mostrado superior em criança e adolescentes, considerada padrão-ouro nessa
faixa etária. A abordagem mais estudada foi a terapia cognitivo-
comportamental, com grande eficácia principalmente em pacientes adultos.
Outras abordagens que se mostraram eficazes foram a psicoterapia
psicodinâmica focal, gerenciamento clínico de suporte especializado.

6. FARMACOTERAPIA
A farmacoterapia tem um papel secundário no tratamento da AN e não deve ser
feita de forma isolada. Ainda não foram identificados medicamentos que
produzam uma melhora definitiva dos sintomas da AN. Por muito tempo
acreditava-se que os inibidores seletivos da recaptação de serotonina (ISRS)
poderiam melhorar o ganho de peso ou prevenir recaídas, no entanto, essa
eficácia não foi comprovada. A olanzapina (antipsicótico atípico) tem sido
estudada na redução dos sintomas de preocupação excessiva e de ansiedade da
AN, porém com resultados inconsistentes.
O tratamento das comorbidades psiquiátricas é de extrema importância para
a melhora do quadro alimentar. Devido à alta prevalência de patologias
psiquiátricas concomitantes à AN, é quase uma regra que os pacientes acabem
usando algum psicofármaco. Importante lembrar que esses terão papel nas
comorbidades, não no transtorno alimentar em si.

7. MANEJO NUTRICIONAL
O acompanhamento com um nutricionista é essencial para a melhora do quadro
em casos de AN. A área que mais demonstrou eficácia no tratamento dos
transtornos alimentares foi a nutrição comportamental. Um ramo da nutrição
que associa técnicas diversas, algumas baseadas na terapia cognitivo-
comportamental. Engajar o paciente em uma boa relação com a comida auxilia
no aumento do repertório alimentar e na diminuição ou extinção do medo
mórbido de ganhar peso.
Pacientes cujo quadro de desnutrição acarrete algum risco clínico iminente
devem ter seu tratamento em ambiente hospitalar. Avaliar com precisão
parâmetros nutricionais, balanço hídrico, eletrólitos, peso pré-mórbido e
evolução da perda de peso. Dependendo do peso do paciente, da idade, de
comorbidades e da gravidade dos comportamentos purgativos, as
recomendações de ganho variam de 500 a 1.400g/semana. Sempre ter o auxílio
dos profissionais da nutrição.
Deve-se ter cuidado com uma complicação grave chamada de síndrome de
realimentação, que ocorre quando o paciente gravemente desnutrido é
realimentado, ocasionando uma mudança do padrão de gliconeogênese em
jejum para uma intensa liberação de insulina induzida por carboidratos. Essa
mudança leva a uma rápida captação intracelular de potássio, fosfato e
magnésio, resultando em uma grave hipocalemia que pode ser fatal. Para que
isso seja prevenido, recomenda-se uma realimentação de 6.000 kJ/dia,
aumentando em 2.000 kJ/dia a cada 3 dias, até uma ingestão adequada de
alimentos. Portanto, durante a fase inicial de realimentação, os eletrólitos devem
ser monitorizados regularmente, principalmente o potássio.

7.1. Redescobrindo o caso (Pontos-Chave)

1 Sexo feminino

2 Idade de incidência

3 Critério A

4 Repercussão clínica da desnutrição

5 Baixo peso

6 Distorção da imagem corporal

7 Restrição alimentar severa


Lívia apresenta quadro compatível com anorexia nervosa suptipo restritivo.
A distorção corporal, ou seja, o fato de sempre achar que está “gorda”
independentemente do peso que tenha leva a comportamentos disfuncionais na
tentativa de sempre estar perdendo peso, como restringir a alimentação o
máximo possível. Esses comportamentos desencadeiam sintomas clínicos
(episódios de síncope, tontura) associado a sintomas psicopatológicos
(isolamento social, perda de atividades sociais). Tais comportamentos podem
desencadear outros transtornos mentais associados, principalmente episódios
depressivos.
Notar que a paciente apresenta baixo peso (IMC=17,1), mesmo quando
corrigido para a idade. Esses pelos finos e despigmentados, chamados de
lânugos, que nascem no antebraço e no dorso, são normais no recém-nascido,
mas somem com o crescimento. Contudo, podem retornar em situações
relacionadas com a desnutrição. O excesso de roupas pode ocorrer devido ao
frio que a perda de peso excessiva acarreta ou para tentar esconder o
emagrecimento e evitar julgamentos de terceiros.
Lívia tem, de forma comórbida, quadro depressivo. O caso deve ser
acompanhado a princípio ambulatoriamente com equipe multidisciplinar com
psicólogo, psiquiatra e nutricionista.

Exemplo de uma prescrição para Lívia


Sertralina 25mg, 1 comprimido, via oral, após o café da manhã, por 15
dias. Após esse prazo, passar a tomar
Sertralina 50mg, 1 comprimido, via oral, após o café da manhã

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controlled trial. The Lancet 2014: 383(9912): 127-137.
SIGLAS

• AN Anorexia Nervosa
• AN-R Anorexia nervosa tipo restritiva
• AN-CP Anorexia nervosa tipo compulsão alimentar purgativa
• TDM Transtorno Depressivo Maior
• TOC Transtorno Obsessivo-Compulsivo
• ON Ortorexia Nervosa
• TCC Terapia do tipo Cognitiva-Comportamental
• ISRS Inibidores Seletivos da Recaptação de Serotonina
1. CASO CLÍNICO
Bianca, 16 anos, é levada contra sua vontade à consulta com psiquiatra
pelos seus pais, que referem que ela tem apresentado comportamentos
um pouco “estranhos” ultimamente. Passa longos períodos no banheiro
após as refeições, além de encontrarem frequentemente embalagens de
“salgadinhos” vazias embaixo de sua cama. A paciente, de forma
relutante, conta que algumas vezes tem episódios em que come grandes
quantidades de comida, de forma rápida e descontrolada. Esses
episódios tiveram início há 4 meses, e que sempre se sente culpada
depois, indo ao banheiro para induzir vômitos.

Exame mental: ao admitir sintomas, começa a chorar e refere


sentir vergonha disso tudo, que não consegue se abrir com seus pais
e amigos, e que iniciou isso após ter sido rejeitada por algumas
amigas na escola e ter sido chamada de “gordinha”.

2. DISCUTINDO O DIAGNÓSTICO
A expressão “bulimia nervosa” deriva dos termos “fome de boi”, em
grego, e “envolvimento nervoso”, em latim, fazendo referência à
compulsão alimentar característica do transtorno, a provável relação
com a ansiedade do indivíduo e ao sentimento de culpa que ocorre após
a ingestão exacerbada.
A bulimia nervosa (BN) é um transtorno alimentar caracterizado por
episódios recorrentes de compulsão alimentar que devem ocorrer, no
mínimo, uma vez por semana nos últimos 3 meses, associado ao uso
recorrente de comportamentos compensatórios inadequados para
impedir o ganho de peso, e com uma autoavaliação fortemente
influenciada pela forma e peso corporais do indivíduo.
Para uma melhor compreensão, vamos discutir o que é considerado
uma compulsão alimentar. A compulsão alimentar é caracterizada pela
ingestão de uma quantidade de alimentos maior do que a maioria dos
indivíduos consumiria no mesmo período de tempo, por um período de
tempo determinado, geralmente dentro de duas horas, e uma sensação
de falta de controle, de não conseguir parar de comer. É geralmente
desencadeada por uma situação estressora ou afeto negativo.
Esses episódios tradicionalmente não se limitam a um contexto, ou
seja, o paciente pode começar a ingestão dentro de um restaurante e
continuar em sua residência. A compulsão está mais associada à
quantidade de comida consumida do que pela fissura por um tipo de
nutriente específico, sendo que a maioria dos pacientes pode ingerir
algum alimento que evitaria em circunstâncias normais. Na prática
clínica, os pacientes podem ingerir qualquer tipo de alimento durante as
compulsões, desde industrializados até alimentos hipocalóricos.
Normalmente o fazem com a comida que está de mais fácil acesso
devido à urgência durante a sensação de perda de controle sobre o
comer.
Após o episódio de compulsão alimentar, o paciente apresenta um
alívio temporário de seus sintomas de perda de controle, mas é seguido
de uma sensação de culpa ou frustração, o que desencadeia tentativas
inapropriadas de compensar a ingesta excessiva para impedir o ganho
de peso. Essas tentativas são o que chamamos de compensação. Os
métodos compensatórios incluem uma grande variedade de
comportamentos. Quando eles são relacionados com alguma forma de
“retirar” algo do corpo, chamados de purgação, sendo os principais o
uso de medicamentos (laxantes ou diuréticos) e vômitos autoinduzidos
(por meio da estimulação do reflexo do vômito com os dedos ou
objetos próximos), que ocupam 90% dos métodos utilizados. Isso
explica a confusão de que, por vezes, os termos compensação e
purgação são usados como sinônimos. Mas perceba que não o são, toda
purgação é uma compensação, mas o inverso não é verdadeiro. Existem
outros métodos, como realizar jejum prolongado ou excesso de
exercício físico, que não se enquadram no conceito de purgação.
No Quadro 1 encontram-se métodos compensatórios observados
com frequência na prática clínica e no Quadro 2 observamos a
classificação quanto à sua frequência e à sua gravidade.
Quadro 1 - Exemplos de métodos compensatórios
Vômitos autoprovocados

Uso indevido de laxantes e diuréticos

Uso de enemas

Uso de hormônios tireoidianos

Omissão ou diminuição das doses de insulina (em pacientes diabéticos)

Jejum prolongado

Excesso de exercícios

Fonte: síntese elaborada pelos próprios autores.

Quadro 2 - Classificação quanto à frequência e à gravidade


do comportamento compensatório
Leve 1 a 3 episódios de comportamentos compensatórios por semana.

Moderado 4 a 7 episódios de comportamentos compensatórios por semana.

Grave 8 a 13 episódios de comportamentos compensatórios por semana.

Extremo ≥ 14 episódios de comportamentos compensatórios por semana.

Fonte: American Psychiatric Association.7

Os indivíduos com bulimia nervosa enfatizam de forma excessiva a


forma ou o peso corporal em sua autoavaliação, sendo algo bastante
característico na história clínica e uma das principais características
dentro dos transtornos alimentares em geral. Durante a entrevista
psiquiátrica, é importante observar certos aspectos dentro da história
contada pelo paciente, pois certos pontos da anamnese da bulimia
nervosa são comuns à anorexia nervosa, como o medo mórbido do
paciente em ganhar peso, desejo de perder peso rapidamente e seu alto
nível de insatisfação com o corpo. É importante citar que os episódios
de bulimia nervosa não podem ocorrer durante episódios característicos
de anorexia nervosa.
A avaliação dos pacientes com bulimia nervosa se dá
principalmente em reconhecer o transtorno e diferenciá-los dos outros
transtornos alimentares que possuem sinais e sintomas semelhantes,
principalmente anorexia nervosa e transtorno compulsivo alimentar.
Durante a consulta psiquiátrica, a história clínica deve ser obtida do
paciente e dos familiares presentes, pois é bastante comum que esses
indivíduos escondam seus sintomas por vergonha. Normalmente são
levados à consulta por seus familiares por causa de sinais que podem
ser considerados “suspeitos”, como passar um tempo prolongado no
banheiro após as refeições, encontrar pacotes vazios ou restos de
comida dentro do quarto do paciente ou até mesmo queixas de que “a
comida está desaparecendo rápido”.
Dentro da consulta, devem ser obtidas informações da frequência
dos episódios de compulsão alimentar, o tempo que passa durante os
episódios, o tipo e a quantidade de comida ingerida, os sentimentos do
paciente antes e após as refeições, além de quais métodos
compensatórios utiliza e a sua frequência. O transtorno não possui um
exame físico muito relevante, mas existem alguns sinais que nos
orientam a pensar na realização de vômitos autoinduzidos frequentes,
como a perda do esmalte dentário, associado ou não ao aumento das
cáries, e a presença de calos nos dedos e no dorso das mãos (sinal de
Russell).
Os métodos purgativos são as principais fontes de complicações
dentro da bulimia nervosa. Vamos discutir as principais delas dentro do
espectro de dois dos métodos mais observados, vômitos autoinduzidos
e uso de laxantes. Os vômitos autoinduzidos provocam uma série de
efeitos adversos, geralmente decorrentes de sua prática em longo prazo.
Dentro do sistema gastrointestinal, a repetição da prática pode
ocasionar uma doença do refluxo gastroesofágico persistente, com
sintomas de disfagia e dispepsia, e promove lesões no esôfago,
desencadeando hematêmese devido à síndrome de Mallory-Weiss,
lacerações esofágicas ou, em casos mais raros, ruptura esofágica. Na
boca, é possível observar dentes desgastados com perda do esmalte
dentário (perimólise) e erosão da dentina devido à exposição
prolongada ao ácido gástrico, além de mucosite oral e inflamação dos
lábios (queilite). Um sinal característico desse método é o aumento das
glândulas parótidas (sialadenose), mas é importante lembrar que não é
um sinal patognomônico. Os efeitos mais severos encontrados são as
anormalidades hidroeletrolíticas e ácido-básicas, as maiores
responsáveis pela mortalidade do transtorno. As principais observadas
são hipocalemia e alcalose metabólica, devido à perda de potássio pelo
vômito e aumento da secreção de aldosterona pela perda líquida.

Figura 1 - Principais complicações dos vômitos autoinduzidos de


repetição

Fonte: elaborado pelos autores. Crédito: Débora Lobo.

O outro mecanismo importante é o abuso de laxantes. As principais


complicações envolvem efeitos locais, como prolapso retal, diarreia,
hemorroidas, hematoquezia e efeitos metabólicos, sendo os principais a
hipocalemia e a acidose metabólica hiperclorêmica, diferente da
alcalose metabólica causada pelos vômitos autoinduzidos de repetição.
Porém, o efeito mais severo que o uso prolongado e excessivo de
laxantes pode desencadear é a síndrome do colón catártico. Ela é
desencadeada pelo estímulo contínuo da peristalse pelos laxantes,
deixando o cólon incapaz de movimentar o material fecal, causando
constipação grave. Os pacientes que passam por um uso prolongado de
laxantes podem desencadear uma certa dependência, pois a parada
súbita de tais medicamentos ocasionam uma lentificação da peristalse
gástrica e edema (principalmente em membros inferiores, podendo
evoluir para generalização), dando a falsa impressão ao paciente que
está engordando, fazendo-o preferir voltar ao uso de laxantes.
Com os tópicos já discutidos neste capítulo, compreendemos que a
condição se trata de um círculo vicioso. O paciente, preocupado com
seu peso, pode iniciar uma dieta restritiva severa e, muitas vezes,
súbita, o que o torna incapaz de controlar o desejo de comer. Assim,
uma situação estressora pode servir como gatilho para o início de um
episódio de compulsão alimentar. O paciente começa a se sentir
culpado por ter comido mais que o planejado e inicia o comportamento
compensatório, e assim o ciclo se repete.

Fluxograma 1 - Ciclo dos sintomas da bulimia nervosa


Fonte: Albuquerque Filho.21

3. ASPECTOS SOBRE
EPIDEMIOLOGIA E ETIOLOGIA
A BN é um dos transtornos alimentares mais comuns, mais prevalente
até que a anorexia nervosa. O risco de uma pessoa desenvolver a
doença na vida é de 0,9% a 3%, possuindo uma prevalência de 1,16%
dentro da América Latina, e de 2% no Brasil. Suas maiores chances de
desenvolvimento ocorrem no final da adolescência e início da fase
adulta, com uma idade média de início entre 16 a 17 anos, e com uma
maior frequência nas mulheres (10:1 em relação aos homens).
O transtorno é desenvolvido, geralmente, em indivíduos com um
histórico de obesidade, mas não é comum a BN ocorrer em pacientes
que atualmente se encontram obesos. Além desses elementos, existem
diversos outros fatores de risco importantes que podem ser citados,
entre eles está a preocupação excessiva com o peso, a baixa autoestima,
indivíduos que sofreram abuso sexual ou físico na infância, pacientes
que tiveram maturação puberal precoce, genitores com história de
transtorno alimentar, transtornos psiquiátricos não tratados, dentre
outros. No Quadro 3, observamos os principais fatores de risco para
BN.

Tabela 3 - Fatores de risco para bulimia nervosa


Preocupações excessivas com o peso

Transtorno de ansiedade social ou transtorno de ansiedade generalizada na


Fatores
infância
Psicológicos/
Psiquiátricos
Sintomas depressivos

Baixa autoestima

Internalização de um ideal corporal magro


Fatores
ambientais
Indivíduos que sofreram abuso sexual ou físico na infância

Histórico de obesidade infantil


Fatores
Genéticos / Maturação puberal precoce
Fisiológicos
Transmissão familiar do transtorno

Fonte: síntese elaborada pelos autores.

Como citado anteriormente, pacientes com histórico de outros


transtornos psiquiátricos possuem maior risco de desenvolver BN. É
bastante comum observarmos comorbidades psiquiátricas com o
transtorno alimentar. Os principais são: transtornos de ansiedade (53%
dos casos), transtornos de humor (35% dos casos), principalmente
transtorno depressivo maior, transtorno de déficit de
atenção/hiperatividade (30%), transtorno opositor-desafiador (11%),
transtorno obsessivo-compulsivo (7%), transtornos de personalidade,
sendo o principal borderline, além de estar associado a maiores chances
de abuso de álcool e outras drogas. As chances de comportamento
suicida e de automutilação não suicida são elevadas na bulimia nervosa,
sendo o suicídio uma grande causa de mortalidade dentro do espectro
da BN.
A etiologia da BN está associada a um conjunto de fatores. Dentre
eles, podemos citar fatores biológicos, associados com o aumento da
produção de neurotransmissores do prazer (serotonina) durante o
episódio de compulsão alimentar. Fatores sociais que dependem da
capacidade do indivíduo de responder a pressões sociais relacionados à
forma e ao peso corporais, além de poder estar associada a
comorbidades familiares como depressão. Por último, fatores
psicológicos, como em pacientes mais irritados e impulsivos,
relacionados ou não à dependência de álcool e à labilidade emocional.
Esses fatores atuam em conjunto e contribuem para a prevalência e a
gravidade do transtorno.
Uma peculiaridade importante dentro do espectro da bulimia
nervosa é o seu prognóstico. Apresenta taxas elevadas de recuperação
parcial e completa em comparação com a anorexia nervosa, com
melhores resultados se empregado o tratamento adequado. Mas em
casos em que o tratamento não for instituído, o curso da doença tende a
ser crônico ou intermitente, com períodos de remissão alternando com
recorrências de compulsão alimentar. Há chances de mudanças de seu
diagnóstico para anorexia nervosa, mas ocorre em uma minoria dos
casos, aproximadamente 10% a 15%, e provavelmente evoluirão para
uma alternância constante entre os dois transtornos, ou seja, passarão
por períodos com BN e por outros com anorexia nervosa. No Quadro 4,
encontram-se os principais fatores prognósticos que sugerem um bom e
um mau desfecho para o transtorno.

Quadro 4 - Fatores prognósticos na bulimia nervosa


Bom Prognóstico Mau Prognóstico
Bom Prognóstico Mau Prognóstico

Início tardio da doença


Ênfase excessiva na forma e peso corporal
Início precoce do tratamento pelo indivíduo

Sintomas de curta duração História de abuso sexual ou físico

Relacionamento familiar acolhedor Relacionamento familiar disfuncional

Frequência reduzida dos sintomas Pouca motivação ou baixa autoestima

Ausência do uso de laxativos Presença de automutilação não suicida

Relacionamentos sociais próximos Presença de transtornos de personalidade

Resposta terapêutica adequada e dentro


de 1 mês de seu início

Fonte: síntese elaborada pelos autores.

4. DIAGNÓSTICO DIFERENCIAL
Há evidências de que a bulimia nervosa pode aumentar o risco de
comorbidades clínicas nos pacientes, incluindo aquelas relacionadas à
obesidade, como diabetes mellitus do tipo 2 e a hipertensão arterial
sistêmica. No entanto, também pode ser confundida com outras doenças
que são caracterizadas por vômitos ou convulsões, sendo necessário
descartar doenças endócrinas, gastrointestinais e as neurológicas, como
convulsões equivalentes a epilepsia, tumores do sistema nervoso
central, síndrome de Klüver-Bucy ou síndrome de Kleine-Levin.
As características patológicas manifestadas pela síndrome de
Klüver-Bucy, que é extremamente rara e pode não ser identificada no
início, são agnosia visual, lamber e morder, exame de objetos por meio
da boca, incapacidade de ignorar qualquer estímulo, alteração do
comportamento sexual (hipersexualidade) e dos hábitos alimentares,
principalmente, por meio da hiperfagia. A síndrome de Kleine-Levin
consiste em hipersonia periódica, que dura de 2 a 3 semanas, e
hiperfagia, sendo mais comum em homens do que em mulheres e, como
na BN, o início costuma ocorrer durante a adolescência.
Cerca de 15% dos pacientes que sofrem com BN também podem
apresentar múltiplos comportamentos compulsivos comórbidos,
caracterizados como uma expressão da falta de autocontrole. Isso inclui
abuso de substâncias (como álcool e psicoestimulantes), falta de
capacidade de se controlar em diversos âmbitos, como na administração
do próprio dinheiro, resultando em compras impulsivas e compulsivas;
e comportamentos desviantes, como roubos ocasionais; tendências de
autoagressão, de súbitas explosões de raiva e emoções caóticas.
Dentre as comorbidades psiquiátricas, os transtornos do humor,
como depressão e transtorno bipolar, e os transtornos de ansiedade são
os de maior prevalência. Estudos sugerem que entre 46% a 89% dos
pacientes apresentam humor deprimido em algum momento de sua
evolução clínica. Muitos pacientes podem apresentar aspectos da
personalidade que satisfazem os critérios de um ou mais transtornos
da personalidade, em especial o borderline.
Observa-se que pode haver semelhanças entre transtornos
alimentares, principalmente relacionadas à supervalorização da
autoavaliação por meio do peso e da imagem corporal. É importante
notar que, em alguns casos, os comportamentos de compulsão seguidos
de algum método compensatório são comuns tanto na BN quanto na
anorexia nervosa. No entanto, os pacientes com anorexia nervosa
apresentam baixo peso (IMC<18,5), enquanto que os que possuem
bulimia nervosa apresentam peso normal ou sobrepeso.

4.1. E aí? O que fazer?


O tratamento de um transtorno alimentar deve ser individualizado,
baseando-se na gravidade dos sintomas, no curso da doença, na
existência de comorbidade psiquiátrica, na disponibilidade de apoio
psicossocial e/ou familiar, na motivação do paciente para o tratamento,
no acesso a programas de tratamento especializado e estabilidade
clínica. Assim como todos os outros transtornos alimentares, o ideal é
que o tratamento seja realizado por uma equipe multidisciplinar
composta, no mínimo, por membros da psiquiatria, nutrição e da
psicologia, todos com experiência na área.
Em alguns casos, existe indicação para hospitalização, como quando
em anormalidades eletrolíticas significativas, arritmias graves, rápida e
persistente perda de peso, apesar da terapia ambulatorial e condições
médicas ou psiquiátricas graves comórbidas, incluindo ideação suicida
ativa.

5. FARMACOTERAPIA
Em relação à terapia farmacológica, os medicamentos antidepressivos
revelaram-se úteis para o tratamento da compulsão na bulimia nervosa.
Estudos sugerem que os inibidores seletivos da recaptação de
serotonina (ISRS), como a fluoxetina, podem ser benéficos na
diminuição da frequência de compulsão alimentar e, consequentemente,
das purgações (lembrando que as purgações ocorrem como uma forma
de compensar os episódios compulsivos – vide fluxograma 1). Esse
efeito terapêutico independe da presença de transtorno do humor. Além
disso, outros medicamentos, como a lisdexanfetamina e o topiramato,
também têm sido úteis e mostraram efeitos benéficos no tratamento
desse transtorno alimentar.
A maioria dos antidepressivos têm sido efetivos em dosagens mais
elevadas que o usual. Dosagens eficazes da fluoxetina podem chegar a
60mg ou 80mg ao dia para redução das compulsões alimentares. No
geral, evita-se o uso de antidepressivos que sabidamente aumentam o
peso, como tricíclicos (amitriptilina, por exemplo) ou mirtazapina.
Também se evita o uso de bupropiona que, apesar de tratar episódios
compulsivos, é conhecido por baixar o limiar convulsivo. Não é
recomendado devido a associação com distúrbios hidroeletrolíticos em
paciente com bulimia após episódios de vômito.
6. TRATAMENTO NÃO
FARMACOLÓGICO
O sucesso do tratamento depende do desenvolvimento de uma aliança
terapêutica com o paciente, do envolvimento da família do paciente e
de uma estreita colaboração da equipe de saúde. A psicoterapia é o
tratamento padrão-ouro nos casos de transtornos alimentares. A terapia
familiar é a que demonstra maior benefício em crianças e adolescentes,
e a terapia cognitivo-comportamental com atendimento individual é a
que apresenta melhor evidência em adultos. Quanto ao
acompanhamento nutricional, a nutrição comportamental é a área que
demonstra maior expertise para o tratamento de transtornos alimentares,
evitando a realização de dietas padronizadas, principalmente de cunho
restritivo.

6.1. Redescobrindo o caso (Pontos-Chave)

1 Sexo feminino

2 Idade de incidência

3 Compulsão alimentar

4 Tempo de evolução
5 Sentimento de culpa

6 Reação para evitar ganho de peso

7 Insight presente

8 Rejeição como fator desencadeador

Bianca desenvolveu um quadro de bulimia nervosa. O caso acima


apresenta características que reforçam o diagnóstico, além do tempo de
evolução (>3 meses) e a autoavaliação indevidamente influenciada pelo
julgamento da forma e do peso corporal. A paciente apresenta episódios
recorrentes de compulsão alimentar, apresentando ingestão excessiva de
alimentos em um curto espaço de tempo, sensação de falta de controle
sobre o comportamento alimentar durante o episódio e culpa após
episódio. Além de comportamento compensatório recorrente (vomitar
após as refeições) como forma de evitar o ganho de peso. É importante
descartar comorbidades clínicas e investigar a presença de distúrbios
metabólicos ou hidroeletrolíticos, bem como avaliar o estado mental da
paciente com o intuito de pesquisar outras comorbidades psiquiátricas
para avaliar a gravidade do transtorno e seus sintomas.
O psiquiatra que a atendeu deve explicar do que se trata o transtorno
alimentar em questão para a paciente e seus pais. Orientá-los sobre a
importância do acompanhamento psicoterápico com apoio da família e
terapia em grupos temáticos. Informá-los de que o tratamento
combinado (farmacoterapia, reabilitação nutricional e psicoterapia) é o
mais eficaz e deve ser feito por uma equipe multiprofissional,
constando, no mínimo, de atendimento psiquiátrico, psicológico e
nutricional. Por fim, é importante conscientizá-los de que o objetivo do
tratamento é regularizar o padrão alimentar, abolir as restrições e
purgações e garantir uma orientação nutricional, pensando na saúde e
no bem-estar físico e mental da paciente.

Exemplo de uma prescrição para Bianca


Fluoxetina 20mg, 1 comprimido ao dia, via oral, após o café da
manhã, por 15 dias. Após esse prazo, fazer progressão da dose à
critério do clínico com dose alvo habitual: 60mg/dia.
Associar psicoterapia (terapia familiar) e nutrição
comportamental.

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SIGLAS

• BN Bulimia Nervosa
• DSM-5 Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos
Mentais

• IMC Índice de Massa Corpórea


1. CASO CLÍNICO
Letícia, 22 anos, diabética, comparece à consulta em posto de saúde
preocupada por estar engordando muito. Refere que era uma criança
“gordinha” e sofria bullying na escola por esse motivo. Na adolescência,
começou a se preocupar excessivamente com a aparência de seu corpo.
Sentia-se feia e triste por ser a única de suas amigas que ainda não tinha um
namorado. Relata que nos últimos 3 meses vem comendo mais do que seu
habitual, até mesmo quando está sem fome, o que vem piorando cada vez
mais seu controle glicêmico.
Paciente refere que, muitas vezes, enquanto assiste a um programa de
TV, em poucos minutos, come cerca de 3 pacotes de biscoito, sem nem
perceber. Diz ainda que procura evitar almoçar na frente de seus colegas de
trabalho, por vergonha da quantidade que come.
Relata que, mais ou menos, 4 a 5 vezes por semana, há episódios nos
quais come em grande quantidade, com a sensação que não consegue parar
de comer. Nega realizar exercícios físicos ou métodos purgativos para
compensar a quantidade de comida ingerida.

Exame mental: atitude inibida, chorosa e obesidade (IMC: 31).

2. DISCUTINDO O DIAGNÓSTICO
Durante muito tempo, indivíduos obesos foram considerados como
pertencentes a um grupo homogêneo, baseado apenas em uma característica
comum: o peso. Ignorava-se, assim, possíveis diferenças comportamentais
que poderiam ter sido as desencadeadoras da obesidade. Foi exatamente a
relação entre obesidade e um padrão patológico de alimentação que instigou
os médicos e pesquisadores a começarem a estudar a ideia de um transtorno
alimentar que envolveria compulsão alimentar sem a presença de métodos
compensatórios.
Como é possível observar, Letícia, a paciente do nosso caso clínico,
apresenta um padrão patológico de comportamento alimentar. A paciente
apresenta episódios de compulsão alimentar, às vezes sem a sensação física
de fome, associada ao sentimento de perda de controle, sem a utilização de
métodos compensatórios. Para fins de diagnóstico, é importante que a
gente saiba diferenciar a compulsão alimentar do transtorno de compulsão
alimentar (TCA).
De maneira simplificada, um episódio de compulsão alimentar pode ser
descrito como a ingestão, em um curto período de tempo, de grande
quantidade de comida, associado ao sentimento de perda de controle. Esses
episódios diferem dos eventuais exageros alimentares, quando as pessoas
comem mais do que precisam ou deveriam, mas não apresentam outras
características específicas da compulsão alimentar, como a falta de controle
e os sentimentos negativos.
No DSM-5, o TCA caracteriza-se por episódios recorrentes de
compulsão alimentar que devem ocorrer, em média, ao menos uma vez por
semana durante três meses, e não são seguidos por métodos
comportamentais compensatórios. A ingestão de alimentos deve ocorrer
em um período de até duas horas, numa quantidade de alimentos maior do
que outras pessoas consumiriam em circunstâncias análogas. Durante os
episódios de compulsão alimentar, o indivíduo come mais rápido do que o
normal até se sentir “desconfortavelmente cheio”, não estando fisicamente
com fome. Ademais, são relatados sentimento de desgosto de si mesmo,
tristeza ou culpa em seguida; comer sozinho por vergonha do quanto se
come e sensação de falta de controle sobre o ato de comer também são
comportamentos encontrados.
Diferentemente da bulimia nervosa, onde uma compulsão é claramente
concluída por comportamento purgativo, no TCA, não há um término
lógico; consequentemente, a duração tem sido designada num período de
duas horas, uma solução claramente arbitrária.
O antecedente mais comum da compulsão alimentar é o afeto negativo.
Envolver-se em comportamento excessivo para aliviar um estado emocional
negativo foi identificado como o principal domínio da alimentação
compulsiva. Outros gatilhos incluem estressores interpessoais, restrições
dietéticas, sentimentos negativos relacionados ao peso corporal, à forma do
corpo e ao alimento e tédio.
Em relação à imagem corporal no TCA, comedores compulsivos obesos
frequentemente preocupam-se mais com a forma e o peso corporal que os
obesos sem compulsão, e possuem uma forma mais negativa de vivenciar a
imagem corporal. Além disso, apresentam maior predisposição para fazer
dieta.
Além da ingesta alta de alimentos em duas horas e sensação de perda de
controle, a compulsão alimentar no TCA deve ter pelo menos 3 dos
seguintes aspectos:

1. Comer mais rapidamente do que o normal.


2. Comer até se sentir desconfortavelmente cheio.
3. Comer grandes quantidades de alimento na ausência da sensação
física de fome.
4. Comer sozinho por vergonha do quanto se está comendo.
5. Sentir-se desgostoso de si mesmo, deprimido ou muito culpado em
seguida.

3. ASPECTOS SOBRE A EPIDEMIOLOGIA E A


ETIOLOGIA
Dentre os transtornos alimentares, o transtorno de compulsão alimentar é o
mais prevalente, ocorrendo em cerca de 2%-5% da população adulta. Com
relação a mulheres e homens adultos, a prevalência é de 1,6% e 0,8%,
respectivamente, com idade média do início do transtorno de 25,4 anos.
Segundo a Organização Mundial de Saúde (OMS), apenas 38,3% dos
pacientes com TCA recebem tratamento.
Essas taxas elevam-se quando populações específicas de obesos são
investigadas e, quanto maior o grau da obesidade, maior a prevalência do
transtorno. Entre os pacientes obesos que procuram tratamento clínico para
perda de peso, os índices de prevalência do TCA variam de 5% a 30%. A
prevalência do transtorno em populações latino-americanas de obesos em
programas para perda de peso varia de 16% a 51,6%, e de 11% a 49% em
pacientes obesos à espera de cirurgia bariátrica.
A associação de transtornos alimentares com diabetes é amplamente
reconhecida na literatura. Pesquisas sugerem que 10%-40% dos indivíduos
com diabetes mellitus tipo 2 preenchem critério para algum transtorno
alimentar, sendo o transtorno de compulsão alimentar o mais comum,
seguido pela bulimia nervosa. Além da diabetes, outras condições clínicas
também foram associadas ao TCA em uma maior proporção, em relação
aos indivíduos sem o transtorno, tais como fibromialgia, síndrome
metabólica, hipertensão, síndrome do intestino irritável, distúrbios do sono
e menarca precoce.
Alguns estudos evidenciaram a presença de transtornos alimentares em
pacientes adultos com déficit de atenção e hiperatividade (TDAH). A
prevalência de transtornos alimentares em pacientes com TDAH é estimada
em torno de 12%, enquanto a prevalência de sintomas de TDAH entre
indivíduos com transtorno alimentar tem sido indicada entre 5% e 17%.
Nos dois casos, a prevalência é maior do que na população em geral. O
TCA também é associado a outras comorbidades psiquiátricas, como
transtornos do humor (49%), ansiedade (41%) e transtorno por uso de
substância 22%.
Apesar de ser o transtorno alimentar mais prevalente, a etiologia do
TCA permanece pouco estudada, e as características neurobiológicas
subjacentes do distúrbio são pouco conhecidas, mas provavelmente se
devem a fatores biológicos, psicossociais e genéticos. Estudos sugerem que
os indivíduos com TCA apresentam maiores vieses cognitivos atencionais
referentes à alimentação, diminuição da sensibilidade à recompensa e
alteração da ativação cerebral em regiões associadas à impulsividade e
compulsividade, em relação aos indivíduos sem o transtorno. Tanto a
impulsividade quanto a compulsividade são formas de inflexibilidade
cognitiva.
As bases neurobiológicas do impulso para comer e da regulação do
apetite estão intimamente ligadas ao hipotálamo e às conexões dos núcleos
hipotalâmicos com os circuitos de recompensa. Diversas substâncias
apresentam-se envolvidas no sistema de regulação do apetite, como o
neuropeptídeo Y, grelina, orexina, leptina e outros. Dessa forma, o
hipotálamo atua como um centro de controle, modulado por um conjunto
complexo de circuitos cerebrais e substâncias reguladoras do apetite e do
impulso de comer.
Situações que aumentam a serotonina intrassináptica ou ativam
receptores serotoninérgicos podem produzir saciedade, assim como a
diminuição da serotonina intrassináptica pode promover aumento do
consumo alimentar e ganho de peso. Já a dopamina tem o potencial de
inibir o apetite. Então, teoricamente, um aumento da atividade
dopaminérgica poderia favorecer a recusa alimentar, bem como a
diminuição da atividade dopaminérgica poderia desencadear
comportamentos de compulsão alimentar.
Fatores de risco para TCA podem estar ligados a certas experiências
adversas na infância, morbidade psiquiátrica dos pais, obesidade infantil e
críticas adversas sobre forma, peso e alimentação. Alguns fatores de risco
para bulimia nervosa também são pertinentes para TCA, como passado de
provocação relacionada ao peso, bem como história de pais com distúrbios
alimentares.

4. DIAGNÓSTICO DIFERENCIAL
Com relação aos diagnósticos diferenciais, outras causas de hiperfagia e
compulsão alimentar devem ser descartadas, como, por exemplo, bulimia
nervosa, obesidade, comportamento beliscador, síndrome do comer noturno,
transtornos do humor, síndromes genéticas (como a de Prader Wili), entre
outros.
Na bulimia nervosa ocorre comer compulsivo recorrente, porém com
comportamentos compensatórios inapropriados (por exemplo, purgação e
exercício excessivo). A história natural da bulimia geralmente revela a
ocorrência de dietas e perda de peso, enquanto que os comportamentos
prévios do TCA são mais variáveis. Apresentam maiores níveis de restrição
alimentar comparados aos portadores de TCA.
A obesidade é uma doença endócrina e metabólica e não um distúrbio
do comportamento alimentar. Não apresentam episódios de compulsão
alimentar como regra. Lembrar que o TCA pode ocorrer em indivíduos com
peso normal e indivíduos obesos.
O comportamento beliscador (Grazing) consiste na ingestão repetida
e não estruturada de pequenas quantidades de alimentos por um período
mais longo, fora de refeições e lanches planejados e/ou não em resposta a
sensações de fome ou saciedade.
A síndrome do comer noturno caracteriza-se pela ingesta de um
grande volume de alimentos no período noturno. Geralmente é associado à
anorexia matinal ou dificuldades para dormir. Outras características
clínicas: comer em resposta a afetos negativos, comer até ficar
desconfortavelmente cheio, comer sozinho e sentimentos correspondentes
de depressão ou culpa após um episódio excessivo.
Nos transtornos do humor podemos encontrar alterações no
comportamento alimentar. O aumento da ingesta no contexto de um
episódio depressivo maior pode ou não estar associado à perda de controle.
Compulsão alimentar e outros sintomas da ingestão desordenada também
podem ser vistos em associação com transtorno bipolar. Vale salientar que
se os critérios diagnósticos para transtorno depressivo maior ou transtorno
bipolar e os critérios de TCA forem preenchidos, ambos os diagnósticos
deverão ser dados.
Na adição por comida há um consumo de maior quantidade de
alimentos que o pretendido, controle reduzido sobre alimentação, apesar de
consequências, “food craving” (desejo intenso de consumir um alimento
específico), desregulação emocional e aumento da impulsividade.
No comer emocional acontece ingesta de alimentos em resposta a uma
emoção, geralmente negativa (estresse, tristeza, ansiedade etc).

4.1. E aí? O que fazer?


O tratamento do TCA não é baseado apenas no emagrecimento. Primeiro
abordamos a compulsão e, daí, espera-se que a perda de peso seja uma
consequência das mudanças na relação com o corpo e a alimentação. Deve-
se avaliar a presença ou não de comorbidades psiquiátricas ou clínicas. A
associação com quadros depressivos, e/ou ansiosos, por exemplo, pode
exigir a prescrição medicamentosa específica.

5. FARMACOTERAPIA
O tratamento farmacológico do TCA deve ser considerado nos casos
moderados a graves e objetiva o controle da impulsividade alimentar. Inclui
os antidepressivos, os estabilizadores do humor e, mais recentemente, a
lisdexanfetamina, aprovada em 2018 pela ANVISA para o tratamento do
transtorno. Para escolher um ensaio medicamentoso para o tratamento do
paciente, levamos em consideração a gravidade da doença, a presença de
comorbidades e as contraindicações.
Lisdexanfetamina é uma droga da classe dos psicoestimulantes que foi
aprovada nos EUA para o tratamento de TCA moderado ou grave. O
mecanismo de ação ainda não está completamente esclarecido, mas envolve
o bloqueio da recaptação de dopamina e noradrenalina nos receptores pós-
sinápticos, resultando em um aumento dos níveis dessas monoaminas na
fenda sináptica, o que, por sua vez, pode facilitar a transmissão
dopaminérgica e noradrenérgica. A dose inicial recomendada é 30mg/dia,
com aumento de 20mg até a dose alvo de 50 a 70mg/dia ser alcançada.
Inibidores seletivos de recaptação de serotonina são os
antidepressivos mais frequentemente usados no tratamento do TCA, como
mostra a tabela 1.

Tabela 1 – Lista dos inibidores seletivos de recaptação


de serotonina no tratamento do TCA

Redução da frequência de compulsões e diminuição do


Fluvoxamina 50-300mg
IMC

Redução da frequência de compulsões, da gravidade da


Sertralina 50-200mg
doença e diminuição do IMC.

Fluoxetina 60mg Melhora do quadro geral

Escitalopram >30mg Redução do IMC e da gravidade do quadro

Fonte: síntese elaborada pelos autores.


IMC: Índice de Massa Corpórea

Outra opção para o tratamento são os inibidores da recaptação da


serotonina e noradrenalina. A venlafaxina foi efetiva para reduzir peso,
IMC e gravidade da doença, no entanto, não apresentou melhora na redução
de episódios de compulsão em comparação ao placebo. Já a duloxetina na
dose de 60-120mg/dia, além de reduzir peso e IMC, foi capaz de melhorar
sintomas depressivos e episódios de compulsão alimentar.
Com relação à bupropiona, um inibidor da receptação da dopamina e
noradrenalina, tem eficácia no tratamento do TCA na redução da compulsão
alimentar, do peso e do IMC.
Os anticonvulsivantes são utilizados no tratamento de distúrbios do
controle de impulso, que seria o principal motivo para a sua eficácia no
tratamento do TCA. Entretanto, medicações como valproato e fenitoína
podem levar ao aumento do apetite, o que iria contrabalancear seu efeito
positivo no controle de impulso. O topiramato, na dose de 200 a 300mg/dia,
pode reduzir episódios de compulsão alimentar e induzir perda de peso. No
entanto, não melhora sintomas depressivos.

6. TRATAMENTO NÃO FARMACOLÓGICO


A maioria dos guidelines indica como primeira linha de tratamento para
transtorno de compulsão alimentar terapias psicológicas específicas, sendo
a terapia cognitivo-comportamental (TCC) a mais recomendada.

6.1. Tratamento psicoterápico


Muitos pacientes com TCA não percebem seu problema central e não
conseguem identificar os “gatilhos” para a compulsão. As atitudes
associadas à alimentação, como perda de controle do impulso sob estresse,
insatisfação corporal e preocupações excessivas com a forma do corpo,
presentes no TCA, podem ser modificadas de forma significativa com o uso
da TCC. Alguns sintomas psicopatológicos gerais associados ao TCA,
como baixa autoestima, níveis de depressão, ansiedade e dificuldades no
funcionamento interpessoal, também mostram melhora com uso da TCC,
independentemente da associação medicamentosa.
A terapia dialética comportamental (TDC), inicialmente
desenvolvida para o tratamento do transtorno de personalidade borderline,
foi adaptada para o tratamento de transtornos alimentares, com o foco na
habilidade de regular emoções de maneira saudável. A TDC consiste em
quatro elementos estruturais: terapia individual, habilidades de grupo,
chamadas do terapeuta e grupo de consulta para terapeutas.
A intervenção do mindfulness para transtornos alimentares vêm
demonstrando eficácia. O conceito de mindfulness, ou em português,
atenção plena, pode ser definido como “uma prática dirigida à percepção e à
ampliação da consciência dos processos internos, tais como experiências
físicas, sensações, sentimentos, eventos mentais e flutuações”. Tem como
princípio a aceitação das experiências, com foco nas sensações internas,
tratando-se de um estado contemplativo. Alguns desses estudos apontam
que a atenção plena pode ser eficaz na melhora do estresse relacionado ao
comer excessivo, na redução da compulsão alimentar, na redução do
estresse psicológico e no desenvolvimento do bem-estar e na melhora de
outros sintomas de transtornos alimentares.

6.2. Tratamento nutricional


O foco do tratamento do terapeuta nutricional, em relação ao TCA, deve
englobar as questões psicoeducativas, visando à adequação nutricional
gradativa a fim de adaptar as quantidades e melhorar a qualidade da
alimentação. Deve haver a promoção de uma mudança de comportamento,
por meio de estratégias para eliminar as compulsões alimentares, ajudando
o paciente a manter uma alimentação equilibrada e ter boa relação com a
comida e o corpo.
6.3. Redescobrindo o caso (Pontos-Chave)

1 Sexo feminino

2 Idade de incidência

3 Comorbidade comum

4 Aumento de peso

5 Preocupação quanto à sua autoimagem

6 Grande ingesta de alimentos em pouco tempo

7 Vergonha de comer em público

8 Perda de controle

9 Sem método compensatório


10 Presença de obesidade

A paciente supracitada é do sexo feminino, o qual é o mais prevalente,


tem como comorbidade diabetes mellitus tipo II, o que é comum no TCA.
Refere ganho de peso, fato também comum nessa patologia. É descrito,
inclusive, associação do TCA com sobrepeso e obesidade. Apesar de não ser
uma característica marcante, a preocupação com autoimagem, mais comum
no sexo feminino, pode acontecer por ocasião do ganho de peso e se deve a
inúmeros fatores, como a influência social e da mídia. Paciente apresenta tal
alteração de 4 a 5 vezes por semana, preenchendo o critério de
temporalidade. A ingesta de grandes quantidades durante um curto período
de tempo, a vergonha de comer em público e a perda de controle são três das
cinco características para definir um episódio compulsivo. Um fator
importante e diferenciador da bulimia nervosa é a ausência de métodos
compensatórios.
Sempre que nos depararmos com o diagnóstico de TCA, o primeiro
passo será dedicar-se à psicoeducação e aos métodos de tratamento não
farmacológicos. A paciente supracitada deverá ser encaminhada para
acompanhamentos psicoterápico e nutricional. O acompanhamento da
equipe multidisciplinar deve focar os fatores diretamente ligados à
compulsão alimentar.

Exemplo de uma prescrição para Letícia


Lisdexanfetamina 30mg, 1 comprimido, via oral, pela manhã.
Após 15 dias, aumentar doses para 50mg/dia.
+
Encaminhamento para terapia nutricional
+
Encaminhamento para psicoterapia

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SIGLAS
• IMC Índice de Massa Corpórea
• OMS Organização Mundial de Saúde
• TCA Transtorno de Compulsão Alimentar
• TCC Terapia Cognitivo-Comportamental
• TDC Terapia Dialética Comportamental
• TDAH Transtorno de Déficit de Atenção/Hiperatividade
1. CASO CLÍNICO
Andréa, 47 anos, queixa-se de insônia, que começou aos 35 anos, quando
sua filha era recém-nascida e os cuidados com ela interrompiam muito o seu
sono. Com o tempo, o sono da filha melhorou, mas o dela não. Ela costuma
se deitar por volta das 23 horas e refere conseguir dormir logo, mas acorda
em torno de 3 horas da manhã e não consegue voltar a dormir. Relata que
permanece deitada “esperando vir o sono” e preocupada em ter que ir
trabalhar no dia seguinte indisposta, por não ter conseguido dormir; até que
por volta das 5 horas da manhã “se cansa” e resolve se levantar para iniciar
suas atividades do dia. Refere que se sente fadigada e com dificuldade de
concentração no seu trabalho como professora ao longo do dia, o que tem lhe
deixado irritada. Já tentou vários medicamentos com sucesso variável e
efeitos adversos. Refere já ter feito uso de melatonina, clonazepam e
zolpidem, mas apresentou resposta apenas no início e ao acordar sentia-se
“grogue” e permanecia exausta. Já foi orientada quanto à higiene do sono e
tem a seguido de forma satisfatória. Ela se exercita regularmente, fazendo
caminhada por 30 minutos, cerca de 5 vezes na semana, não fuma e toma
meio copo de vinho 3 noites por semana. Nega outras queixas e
comorbidades.

Exame mental: paciente se apresenta aborrecida e com sinais físicos de


cansaço. Fala espontaneamente que está farta pela situação atual.
Solicita que o seu problema seja resolvido o quanto antes.

2. DISCUTINDO O DIAGNÓSTICO
A pressão cada vez maior para se ter sucesso em competições e no mundo
acadêmico faz muitas pessoas negligenciarem o tempo dormido. Contudo,
sono é um processo fisiológico vital com importantes funções restauradoras
em diversas áreas, como na saúde mental, cardiovascular e metabólica. O
sono restaurador depende de duas variáveis de fácil identificação: a
quantidade e a qualidade do sono. A insônia decorre da perturbação de um
ou ambos os fatores, sendo o distúrbio do sono mais prevalente no mundo. É
uma das preocupações de saúde mais encontradas na prática clínica, com
taxas que variam entre 25% e 33% da população mundial que tem alguma
queixa em relação ao sono.
A insônia pode originar-se de alguma condição específica, como refluxo
gastroesofágico, dores crônicas, hábitos disfuncionais em relação ao sono,
depressão, ansiedade, apneia obstrutiva do sono ou ser uma entidade à parte:
o transtorno de insônia crônica.
Dessa forma, existem diversos cenários, e é importante os conhecermos.
As queixas de insônia podem se iniciar após o curso de uma doença
específica, como um transtorno depressivo maior, e melhorarem após a
instituição do tratamento para tal doença, mas em muitos pacientes a insônia
pode se tornar tão impactante, que gera um quadro comórbido de transtorno
de insônia crônica. Tal entidade merece um tratamento à parte, caso
contrário, pode se perpetuar como sintoma residual e contribuir para recidiva
do quadro psiquiátrico. Todavia, em pacientes não deprimidos, os sintomas
de insônia podem servir de fator preditor para o início de um quadro de
humor. Note a alternância da gênese de cada entidade.
Figura 1 - Esquema de perpetuação da insônia

Fonte: elaborada pelos autores.

Assim, a insônia pode constituir um sintoma, quando associada a outras


condições médicas, psicológicas, sociais ou ambientais ou ser o transtorno
de insônia crônica, quando a queixa sobre a insônia constitui a própria
doença. Pode-se dizer que o parâmetro que diferencia a insônia “sintoma” da
insônia “transtorno” é a dimensão do impacto clínico que essa alteração
promove no paciente, sendo que um pode evoluir em outro.
Os sintomas da insônia podem ser divididos em diurnos e noturnos. Os
sintomas noturnos são, de certa forma, os definidores da doença. Os insones
costumam referir dificuldade para iniciar, manter ou retomar o sono após
despertares noturnos. É típica do insone a angústia em relação ao próprio
sono, perfeitamente ilustrada com o paciente deitado na cama, preparado
para dormir, que persiste acordado e preocupado. Já os sintomas diurnos,
mais numerosos e variáveis, correspondem às consequências da perturbação
do sono. Eles incluem fadiga, irritabilidade, mal-estar, esquecimento,
dificuldade de concentração, déficit de atenção, perda de motivação e humor
deprimido.
A insônia pode ser um problema situacional, recorrente ou persistente. A
insônia aguda é frequentemente associada a eventos ou alterações na
programação do sono (por exemplo, jet lag – alterações de fuso horário – ou
turno de trabalho) e geralmente remite quando o evento precipitante
diminuiu ou desapareceu, durando dias ou semanas. Para alguns indivíduos,
entretanto, distúrbios do sono podem persistir mesmo depois que a causa
inicial desapareceu, e o transtorno de insônia geralmente dura meses ou
anos.
A insônia, sendo um quadro multidimensional, já foi definida por
diferentes critérios diagnósticos e recebeu vários tipos de classificações,
sendo as mais utilizadas atualmente a Classificação Internacional dos
Transtornos de Sono (International Classification of Sleep Disorders –
ICSD), em sua 3ª edição no ano 2014, e o Manual Diagnóstico e Estatístico
de Transtornos Mentais (DSM-5), na 5ª edição, publicado em 2013. De
maneira geral, os critérios incluem dificuldade persistente para o início, a
duração, a consolidação ou a qualidade do sono, que resulta em algum tipo
de prejuízo diurno. O diagnóstico de transtorno de insônia é realizado
quando há dificuldades para dormir por mais de 3 noites por semana e tem
sintomatologia que dura mais de 3 meses.

Quadro 1 - Diagnóstico de insônia crônica.

Insatisfação com quantidade e qualidade do sono

Iniciar Manter Despertar Precoce

Comprometimento Diurno
Comprometimento Diurno

Social Ocupacional Educacional Comportamental

Ocorrendo

3 vezes ou mais por semana

Estando presente

3 meses ou mais no ano

Fonte: adaptado de American Psychiatry Association.³⁴

Não se esquecer de um detalhe importante e que também se encontra nos


critérios diagnósticos: o quadro de insônia crônica só pode ser levantado se
tivermos uma oportunidade adequada para que o sono aconteça. Repousa aí
um grande “divisor de águas” para sermos bons avaliadores. Questionar
sobre as condições relacionadas ao dormir, como qualidade da cama,
calmaria e temperatura no ambiente vão lhe ajudar a conhecer a dinâmica de
vida do paciente.
Além disso, esse quadro não pode ser mais bem explicado ou não ocorre,
exclusivamente, durante o curso de outro transtorno do sono, efeitos
psicológicos de uma substância ou outro transtorno mental e condição
médica geral.
O diagnóstico da insônia é essencialmente clínico com base em uma
avaliação criteriosa da saúde física e mental, devendo conter uma completa e
detalhada anamnese clínica e psiquiátrica que englobe uma história
pormenorizada do sono, incluindo os hábitos diurnos e noturnos.
A anamnese deve conter, inicialmente, perguntas que incluam as queixas
presentes na definição da insônia para determinar se a insônia é inicial, de
manutenção, se há despertar precoce ou mesmo associação de mais de uma
delas. Avalia-se também o prejuízo das atividades do dia seguinte e o quanto
o prejuízo do sono afeta a funcionalidade do paciente nas atividades laborais
e nas relações interpessoais.
Para uma maior compreensão do quadro, deve-se avaliar o horário que o
paciente se deita para dormir, a que horas dorme e o que faz nesse intervalo.
Atenção especial deve ser dada a sintomas noturnos associados – roncos,
respiração bucal, apneias, dispneia, refluxo gastroesofágico, nictúria,
disfunção erétil, sonambulismo, bruxismo, movimento de pernas e eventos
de paralisia do sono.
As atividades diurnas e os comportamentos podem fornecer informações
para possíveis causas e consequências da insônia. A presença de cochilos
diurnos e sua duração, horário e tipo de trabalho, a influência do prejuízo do
sono no desenvolvimento dele, estilo de vida (sedentarismo, atividade física
e horário da realização, exposição à luz), qualidade de vida, humor, fadiga,
prejuízo cognitivo, exacerbação de condições comórbidas e uso de
substâncias lícitas (medicamentos, cafeína, bebidas alcoólicas e nicotina) e
ilícitas devem ser cuidadosamente avaliadas. Em particular, o consumo de
álcool é uma estratégia de autotratamento desadaptativo comum em
pacientes com insônia e pode contribuir para dificuldades de manutenção do
sono.
Uma abordagem interessante é pedir para que o paciente descreva uma
noite de sono habitual, especificando horário em que se deita, horário em
que acorda, atividades que realiza no leito (leituras, assistir televisão, uso de
computador etc.) e demais aspectos do sono. Se o paciente tem parceiro que
dorme junto, informações do companheiro podem ajudar a identificar sinais,
sintomas e comportamentos noturnos que podem contribuir com as queixas.

Quadro 2 - Investigação clínica da insônia

Durante O Dia Antes De Deitar-Se Durante A Noite

Horário habitual Despertares


Horário de acordar
de deitar-se (quantidade e tempo)
Durante O Dia Antes De Deitar-Se Durante A Noite

Cochilos
Rotina antes de deitar-se Roncos
(quantidade e tempo)

Uso de substâncias Uso de medicamentos Sintomas respiratórios

Estilo de vida Ambiente do quarto Sonhos e pesadelos

Comprometimento diurno Alimentação à noite Atividades motoras

Sonolência Latência para início de sono Satisfação com o sono

Fonte: adaptado de Schutte-Rodin S, Broch L, Buysse D, Dorsey C, Sateia


M.³

O exame físico deve incluir medidas de peso, altura, índice de massa


corporal (IMC), circunferência do pescoço, pressão arterial sistêmica e
frequência cardíaca. A avaliação de todos os sistemas não deve ser
menosprezada, devendo se considerar, inclusive, a indicação de exames
complementares que avaliem a condição clínica do paciente.
Alguns questionários podem ser úteis para avaliar de forma subjetiva a
gravidade do transtorno, mas não são necessários de rotina. Suas vantagens
incluem o baixo custo e a facilidade de aplicação, além de serem validados
para o português. O questionário mais usado é o Índice de Gravidade de
Insônia (IGI), mas outros utilizados incluem o Índice de Qualidade do Sono
de Pittsburgh (PSQI) e a Escala de Sonolência Excessiva de Epworth (ESE).
Já na avaliação objetiva contamos com a actigrafia, equipamento portátil
semelhante a um relógio que registra diversos aspectos do dia do paciente,
como atividade muscular, temperatura corporal e ambiental e luzes. Com
todos esses dados é possível prever a quantidade, os momentos de sono e
vigília ao longo do dia, auxiliando em diagnósticos diferenciais. A
polissonografia é o exame padrão-ouro para diagnóstico de transtornos do
sono; apesar disso, sua solicitação não é rotineira para insônia, mas pode-se
lançar mão em pacientes resistentes aos tratamentos.
3. ASPECTOS SOBRE A EPIDEMIOLOGIA E
ETIOLOGIA
A prevalência mundial do transtorno de insônia pode variar de 3,9% a 22,1%
(com média aproximada de 10%), a depender dos critérios diagnósticos
utilizados. Estudos transversais estimam uma prevalência de insônia entre
10% e 50% dos pacientes da atenção primária à saúde. Essa condição está
associada a significativos custos monetários diretos e indiretos. Nos Estados
Unidos, esses custos representam 13,6% dos dias de afastamento do trabalho
com ônus econômico bruto estimado em US$ 107,5 bilhões por ano.
Fatores de risco consistentes para insônia incluem aumento da idade,
sexo feminino, distúrbios comórbidos (clínicos, psiquiátricos e uso de
substâncias), turno de trabalho e, possivelmente, desemprego e menor nível
socioeconômico. A insônia é aproximadamente 1,5 vez mais comum em
mulheres do que em homens. Dificuldade de iniciar o sono é mais comum
em adultos jovens, enquanto dificuldades de manutenção do sono são mais
comuns em adultos de meia-idade e idosos.
Na etiopatogenia da insônia existem vários modelos fisiopatológicos,
sendo boa parte deles com base no chamado modelo “3P” de insônia, que
postula que fatores predisponentes, precipitantes e perpetuadores são
envolvidos na etiologia da insônia. Vamos falar um pouco sobre eles.
Os fatores predisponentes são os mais próximos da genética, dependem
da hiperatividade do sistema de despertar (mecanismos de resposta ao
estresse), hiperatividade do eixo hipotálamo-hipófise-adrenal, aumento da
ativação do sistema nervoso autônomo, anormalidades nos mecanismos de
homeostase do sono-vigília, anormalidades no ritmo circadiano e
anormalidades nos mecanismos intrínsecos do controle do sono-vigília.
Os fatores precipitantes frequentemente envolvem grandes modificações
na vida do paciente, com alterações no ambiente e na rotina, como morte de
um familiar, problemas conjugais ou mudança no emprego. Já as
características cognitivas e mudanças comportamentais (por exemplo, tempo
prolongado na cama, medo de não conseguir dormir, cochilar para recuperar
o sono perdido) são estratégias de enfrentamento não adaptativas que podem
agir como perpetuadores da insônia.
Indivíduos com insônia são mais propensos a ter uma história familiar do
mesmo distúrbio (pelo menos 30% têm uma história familiar positiva), o que
sugere uma vulnerabilidade genética, um fator ambiental comum ou um
componente de aprendizado. A busca por genótipos específicos identificou
vários genes candidatos. Mutações foram identificadas nos genes CLOCK,
genes que codificam a subunidade ß3 do receptor GABAA e genes do
transportador de serotonina.

4. DIAGNÓSTICO DIFERENCIAL
Como falamos no início, os sintomas de insônia podem vir oriundos de
diversas condições. Somos compelidos a realizar uma boa investigação a fim
de proporcionarmos a melhor assistência ao paciente insone. Discutiremos as
mais relevantes a seguir.

Quadro 3 - Diagnósticos relacionados à insônia.

Causas de Insônia Condições Relacionadas

Transtornos de humor

Psiquiátricas Transtornos de ansiedade

Uso de substâncias psicoativas

Apneia obstrutiva do sono

Transtornos do Sono Síndrome das pernas inquietas

Transtorno do ritmo circadiano

Arritmias
Cardiovascular
Doença cardíaca congestiva

Doença pulmonar obstrutiva


Pulmonar
Asma
Causas de Insônia Condições Relacionadas

Úlcera péptica

Gastrointestinal Doença do refluxo gastroesofágico

Síndrome do intestino irritável

Demência

Doença de Parkinson

Neurológica Epilepsia

Cefaleia

Acidente vascular cerebral

Genitourinária Hipertrofia prostática

Hipotireoidismo

Endocrinológica Hipertireoidismo

Diabetes mellitus

Musculoesquelética Fibromialgia

Gravidez
Ginecológicas
Menopausa

Fonte: adaptado de Bacelar A.²

Transtornos mentais, especialmente transtorno depressivo maior,


transtorno afetivo bipolar e transtornos de ansiedade, são
frequentemente acompanhadas por sintomas de insônia, inclusive fazendo
parte dos seus critérios diagnósticos. Na depressão, a insônia pode
apresentar-se simultaneamente com a dificuldade para iniciar, manter ou
findar precocemente o sono. A dificuldade de manter o sono é o tipo de
insônia mais comum na depressão. No transtorno de ansiedade generalizada
geralmente há a presença de dificuldade em iniciar o sono e também em se
manter dormindo.
A insônia pode piorar ou contribuir para recidiva de um transtorno
mental, principalmente depressão e ansiedade, evidenciando uma relação
bidirecional entre essas condições. Além disso, ideação suicida e tentativas
de suicídio podem ser desfecho independente de outros fatores de
confundimento em portadores de insônia.
Quando falamos sobre os transtornos do sono, dificuldade para dormir
não é sinônimo de insônia crônica. Um quadro relativamente comum é o
relato de insônia de manutenção, com diversos despertares ou de sono não
reparador, acompanhada ou não das queixas de roncos, engasgos e
sonolência diurna. Na apneia obstrutiva do sono temos eventos recorrentes
de obstrução parcial ou total da via aérea superior durante o sono, gerando
dessaturações de oxi-hemoglobina e despertares noturnos. A apneia também
pode contribuir para o desenvolvimento de quadros depressivos com
aumentos constantes de risco, a depender da gravidade do quadro de
obstruções respiratórias. Além da boa investigação clínica e física,
necessitamos do exame de polissonografia para o diagnóstico. Escalas como
o Questionário STOP-Bang são de fácil preenchimento e podem auxiliar o
médico no diagnóstico.
Alguns pacientes portadores da síndrome das pernas inquietas sentem
insônia no início da noite associada a desconfortos nos membros que
também os despertam pela madrugada. Esses desconfortos melhoram com a
movimentação e pioram ao repouso ou quando o paciente está deitado. No
transtorno do ritmo circadiano os pacientes vão ter dificuldades para
iniciar o sono e grandes dificuldades de se levantar pela manhã (no tipo
atraso de fase), ou terão sonolência no início da noite, com despertar ainda
pela madrugada, se assemelhando a um quadro de insônia com despertar
precoce (no tipo avanço de fase). Quando podem dormir livremente, como
em períodos de férias, pouco referem queixas relacionadas ao sono. O diário
do sono é a principal ferramenta diagnóstica, pois nela o paciente aponta
seus horários habituais de sono e vigília. A actigrafia também pode ser usada
para monitorar a resposta terapêutica.
4.1. E aí? O que fazer?
O tratamento da insônia depende de suas características e deve ser
individualizado. Os seus objetivos são: melhoria da qualidade e da
quantidade de sono e melhoria dos sintomas diurnos relacionados. O
tratamento é recomendado quando a insônia crônica tem um impacto
negativo significativo na qualidade do sono, saúde, condições comórbidas ou
função diurna. Antes de considerar as opções terapêuticas, o paciente e o
médico devem discutir as metas de tratamento.
Medidas gerais terapêuticas para insônia incluem tratamento de
condições médicas e psiquiátricas comórbidas, modificar medicamentos e
substâncias que interferem no sono e melhorar o ambiente de sono.
Tanto a estratégia farmacológica quanto a Terapia Cognitivo-
Comportamental para Insônia (TCC-I) são eficientes para o tratamento da
insônia a curto prazo. Apesar disso, há uma preferência pela TCC-I como
primeira linha, pois apresenta resultados mais sólidos na resposta de médio e
longo prazos e menores riscos de efeitos colaterais. O tratamento
farmacológico deve ser a escolha principal diante da impossibilidade de
acesso à TCC-I, não adesão ou falha terapêutica.

5. TRATAMENTO NÃO FARMACOLÓGICO


Conforme já mencionado, a TCC-I é a base da terapia para insônia crônica, e
sua eficácia permanece incontestável. Há, no entanto, grandes dificuldades
de acesso a essa modalidade de tratamento. Para sanar essa problemática,
alguns programas administrados pela internet com base na TCC-I foram
desenvolvidos, alcançando bons resultados, como melhora significativa na
eficiência do sono, gravidade da insônia, tempo total de sono, latência do
início do sono e tempo de vigília após o início do sono, além de melhoras
mantidas durante um longo período de acompanhamento.
As intervenções psicológicas para insônia visam mudar comportamentos
na programação do sono, crenças e preocupações que podem perpetuar a
insônia. A TCC-I inclui higiene do sono, terapia de controle de estímulos,
restrição de sono e de tempo na cama, técnicas de relaxamento,
reestruturação cognitiva, intenção paradoxal – redução da ansiedade
antecipatória, terapia cognitiva sobre os transtornos de percepção
inadequada do sono.
Quadro 4 - Medidas de higiene do sono

Dormir o tempo necessário para se sentir descansado (usualmente 7-8h nos adultos)
e posteriormente levantar-se da cama.

Evitar olhar constantemente para as horas ao deitar-se.

Evitar excesso de líquidos ou refeições “pesadas” à noite.

Evitar cafeína, nicotina e álcool quatro a seis horas antes de ir para a cama e minimizar o seu uso
diário.

Manter um ambiente calmo, escuro, seguro e confortável no quarto quando for se deitar.

Evitar um ambiente ruidoso, e prepará-lo com luz e temperatura adequada durante o sono.

Evitar o uso prolongado de televisão, tablet, computadores ou smartphones antes de dormir.

Tentar resolver as “preocupações” antes de se deitar.

Deitar e acordar todos os dias à mesma hora (±30min), incluindo fins de semana.

Evitar exercício vigoroso três a quatro horas antes de se deitar.

Evitar dormir durante o dia, especialmente se durar mais que 30 minutos.

Fonte: adaptado de Stepanski EJ, Wyatt JK.48

É importante destacar que na psicoterapia é preciso algum tempo para


obter resultados, mas, uma vez aparecendo, esses efeitos são mais
duradouros em comparação com a farmacoterapia. A terapia cognitivo-
comportamental para insônia pode ser eficaz mesmo em pacientes com
comorbidades e também como tratamento combinado com medicamentos,
onde se mostra até mesmo mais eficaz do que o tratamento isolado.
Com relação à prática de exercícios físicos, os pacientes geralmente são
aconselhados a fazer regularmente para melhorar a qualidade do sono. Esses
benefícios parecem ocorrer apenas após a prática de exercício aeróbio
moderado (exemplo: caminhada) e não para exercícios aeróbicos intensos
(exemplo: corrida) ou exercícios de resistência moderados (exemplo:
musculação).

6. FARMACOTERAPIA
O tratamento farmacológico deve limitar-se à insônia de curto prazo e não é
recomendado rotineiramente, como vimos, para o manejo dos casos
crônicos, enquanto a TCC-I é preferida e constitui o tratamento de primeira
linha. Apesar disso e conforme o último Consenso Brasileiro sobre Insônia,
existem três condições em que o tratamento farmacológico deve ser a
primeira escolha:

1. Impossibilidade de acesso à TCC-I.


2. Não adesão à TCC-I.
3. Falha terapêutica da TCC-I.

Quando indicado, a escolha do fármaco deve ser individualizada


conforme características e objetivos de tratamento, presença de
comorbidades, respostas prévias ao tratamento, disponibilidade, segurança,
preferência do paciente e considerações de custo.
Sabendo do fraco nível de evidência científica dos fármacos atualmente
disponíveis, a decisão também deve se apoiar em medicamentos com menor
efeito sedativo diurno e baixo potencial de dependência, bem como menos
efeitos adversos. A avaliação sequencial do paciente insone lhe ajudará a
verificar tudo isso. Assim, muitas escolhas serão de uso off-label, em que
ocorre quando as evidências para tal ainda não estão completas.
A farmacoterapia deve ser cautelosamente aconselhada aos idosos devido
às interações medicamentosas e aos efeitos adversos. As dosagens
recomendadas podem ser menores que as habitualmente utilizadas para
adultos e a preferência será de fármacos com meia-vida mais curta.
Uma ampla variedade de medicamentos está disponível. Vamos
descrever suas características e os detalhes de seus usos.

6.1. Antidepressivos sedativos


Dos antidepressivos sedativos, a doxepina é a única com aprovação do FDA
para o tratamento do transtorno da insônia. Essa medicação parece ser uma
boa alternativa, principalmente para pacientes com dificuldades de
manutenção do sono. Em doses acima de 25 mg, apresenta efeitos
anticolinérgicos e antiadrenérgicos desagradáveis, mas em doses de 6 mg ou
menos, é bem tolerada com um perfil de poucos efeitos colaterais.
Mirtazapina, trazodona e amitriptilina são boas opções off-label para
o tratamento do transtorno da insônia crônica, com efeito sedativo em doses
mais baixas do que no tratamento de depressão. Apesar da escassez de
estudos comprovando a eficácia dessas drogas para a insônia crônica, alguns
fatores poderiam justificar o uso individualizado, como o baixo risco de
dependência, a frequente relação de depressão e insônia e o risco de
depressão em pacientes insones não tratados.
Efeitos terapêuticos significativos em pacientes com doença de
Alzheimer e insônia são descritos com o uso da trazodona, havendo
descrição inclusive de melhora cognitiva leve.

6.2. Agonistas seletivos de receptores benzodiazepínicos


Os Agonistas Seletivos de Receptores Benzodiazepínicos (ASRBz) são
medicamentos utilizados tanto para insônia de início do sono quanto para
insônia de manutenção, e incluem drogas como zolpidem, zopiclona e
eszopiclona. Possuem baixo potencial de abuso e dependência, mas que
aumentam conforme a dose e o tempo de uso. Devem ser administrados já ao
deitar-se para evitar incidência de parassonias.
Quanto à farmacocinética, todos os ASRBz são rapidamente absorvidos
(0,5 a 2h), o que representa sua capacidade de acelerar o início do sono. Em
contraste, eles diferem amplamente em meias-vidas, o que interfere na
presença de efeitos residuais. Para iniciar o sono, os medicamentos com
meia-vida curta são os mais indicados, como o zolpidem, que possui meia-
vida muito curta e reduz de forma eficaz o tempo de latência do sono, sem
causar sedação residual importante durante o dia. A formulação sublingual
desse medicamento possui absorção rápida (durante os primeiros 15 a 20
minutos). No caso dos pacientes com dificuldade de manutenção do sono ou
despertar precoce, drogas de ação mais longa (cerca de 5-6 horas), como
eszopiclona ou zopiclona, podem ajudar com esses sintomas.

Benzodiazepínicos
Os benzodiazepínicos disponíveis no Brasil não são recomendados para o
tratamento da insônia, pela ocorrência de efeitos adversos como sonolência,
tontura, fadiga, insônia de rebote, risco de quedas, abuso e dependência,
declínio cognitivo e rápida perda de eficácia hipnótica. Apesar disso, ainda
são frequentemente prescritos.
Em uma eventual circunstância em que possa ser necessário o uso,
recomenda-se discutir os riscos e os benefícios com o paciente, sendo que a
prescrição deve ser por tempo limitado, com controle de dosagem e
monitoramento do tratamento que inclua o planejamento da retirada. A
descontinuação desses medicamentos deve basear-se em redução lenta e
gradual da dose, apoiando os pacientes com aconselhamento, TCC-I ou
medicamentos alternativos.

6.3. Antipsicóticos
Os antipsicóticos não são recomendados para o tratamento do transtorno da
insônia crônica até que novas evidências estejam disponíveis, porém, vários
medicamentos antipsicóticos são usados off-label, particularmente
clorpromazina, clozapina, olanzapina e quetiapina. Pelo seu uso bem
estabelecido em outras doenças psiquiátricas e neurológicas, as propriedades
hipnóticas dos antipsicóticos podem ser úteis para o tratamento da insônia
comórbida a essas doenças. Entretanto, ao prescrever, é essencial considerar
possíveis efeitos adversos, como ganho de peso, síndrome metabólica,
sintomas extrapiramidais e aumento dos movimentos periódicos de pernas
durante o sono.

6.4. Agonistas melatoninérgicos e melatonina


A ramelteona é um hipnótico agonista melatoninérgico com maior
afinidade para os receptores MT1 e pouco em MT2 sendo, apesar da fraca
evidência, recomendada para o tratamento da insônia inicial. Possui efeito
mais significativo na indução do sono e pouca ação para a manutenção, o
que seria previsto devido à sua meia-vida curta de 1 a 2 horas. Não
demonstrou potencial para indução de insônia rebote, sintomas de
abstinência, potencial para abuso ou dependência, comprometimento
cognitivo ou motor, tornando-se uma opção terapêutica em pacientes com
história prévia de abuso de substâncias e em pacientes idosos.
A melatonina, por sua vez, tem seu papel bem estabelecido no
tratamento dos transtornos do ritmo circadiano, mas ausência de resposta
significativa no transtorno de insônia. Queixas de insônia em idosos e em
crianças com espectro autista parecem melhorar com o uso exógeno dessa
substância.

6.5. Anticonvulsivantes
Esses fármacos não são recomendados para o tratamento do transtorno da
insônia até que novas evidências estejam disponíveis. Pelo seu papel
importante no tratamento da dor, síndrome das pernas inquietas, movimentos
periódicos dos membros, fibromialgia e ansiedade, as propriedades
hipnóticas da pregabalina e da gabapentina podem ser úteis para o
tratamento da insônia comórbida a essas doenças.

6.6. Anti-histamínicos
Os anti-histamínicos, entre eles prometazina, hidroxizina e difenidramina,
apresentam efeitos sedativos e são utilizados para sintomas de insônia por
serem “de fácil acesso”, sem sequer necessitar de receituário médico.
Parecem ter uma eficácia pequena a moderada no tratamento da insônia e a
tolerância a essas substâncias se desenvolve rapidamente. Além disso, os
efeitos adversos diurnos, especialmente, sedação, prejuízo da função
cognitiva, tontura e ganho de peso, desencorajam a recomendação dessa
classe de fármacos para o tratamento da insônia.

6.7. Fitoterápicos
Apesar de alguns estudos sugerirem possíveis efeitos benéficos e segurança
no uso de fitoterápicos como passiflora e valeriana, não há evidências
suficientes para concluir que tenham qualquer benefício para tratamento da
insônia.

6.8. Antagonista da orexina


Suvorexanto é o primeiro antagonista dos receptores da orexina aprovado
nos Estados Unidos em 2014 para uso no tratamento da insônia, mas ainda
indisponível no Brasil. As evidências sobre o uso dessa medicação são fracas
e positivas apenas para o tratamento da insônia de manutenção.

Quadro 5 - Medicamentos para tratamento de insônia

Fármaco Dose Meia-Vida Efeitos Colaterais

Antidepressivos sedativos

25-
Amitriptilina 10-28hs Tontura, sonolência, vertigem, boca seca,
100mg
constipação, retenção urinária, arritmias,
hipotensão e ganho de peso
Doxepina 3-6mg 8-24hs

Tontura, sedação, vertigem, aumento do apetite,


Mirtazapina 15-45mg 20-40hs
raramente alterações sanguíneas

Tontura, vertigem, sonolência, hipotensão postural,


Trazodona 25-150mg 7hs
priapismo

Agonistas seletivos do receptor benzodiazepínico

Zolpidem VO 5-10mg 2,5h

Zolpidem SL 5mg 2,5h


Parassonias, tontura, vertigem, cefaleia, amnésia e
sintomas gastrointestinais
Zopiclona 7,5mg 5h

Eszopiclona 2-3mg 5h

Anticonvulsivantes

300- Sonolência, tontura, ataxia, tremor, diplopia,


Gabapentina 5-7hs
600mg turvação visual, edema periférico

Pregabalina 50-150mg 6h Sonolência, tontura, ataxia, edema periférico

Antipsicóticos
Fármaco Dose Meia-Vida Efeitos Colaterais

Sonolência, tontura, tremor, agitação, astenia, boca


Olanzapina 2,5-10mg 21-54hs
seca, dispepsia, hipotensão, ganho de peso

Ganho de peso, síndrome metabólica e síndrome


Quetiapina 25-200mg 6hs
das pernas inquietas

Agonista do receptor de Melatonina

Ramelteona 8mg 2,6h Sonolência, tontura e fadiga

Antagonista da Orexina

Suvorexanto 10-20mg 12hs Sonolência, cefaleia, fadiga, boca seca, tosse

VO: Via Oral


SL: Sublingual
Fonte: adaptado de Bacelar A.²

6.9. Redescobrindo o caso (Pontos-Chave)


1 Sexo feminino

2 Fator precipitante

3 Característica da insônia

4 Prática disfuncional

5 Sintomas diurnos

6 Higiene do sono

O quadro de insônia crônica instalou-se na paciente Andréa há pelo


menos 12 anos. Com a incapacidade de manter o sono pela madrugada,
Andréa apresenta um despertar precoce. Guarde essa característica, pois ela
é fundamental para se entender a falência da terapia farmacológica
empregada até então e para uma melhor prescrição. Os hábitos da paciente e
as repercussões da insônia foram devidamente investigados. Psicopatologia
associada como depressão, transtornos ansiosos e uso problemático de
substâncias psicoativas deve ser descartada.
A melatonina deve ser empregada em pacientes com transtorno do ritmo
circadiano e não insônia crônica, como foi feito para a paciente Andréa. O
clonazepam ou qualquer outro benzodiazepínico deve ser evitado para
paciente com insônia crônica pelos efeitos adversos pertinentes à classe,
como o risco de dependência e tolerância. Zolpidem, devido à sua meia-vida
curta, é uma boa opção para insônia inicial (não é o caso da Andréa).

Exemplo de prescrição para Andréa


Encaminhamento à psicoterapia cognitivo-comportamental para
insônia.
Orientações e correções de práticas de sono disfuncionais.
Reforço das medidas de Higiene do sono.
Trazodona 50mg, 1 comprimido, via oral, antes de deitar-se.

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54. Forsan MA. O uso indiscriminado de benzodiazepínicos: uma análise crítica das práticas de
prescrição, dispensação e uso prolongado. 25 f. Trabalho de Conclusão de Curso
(Especialização em Atenção Básica em Saúde da Família), UFMG – Universidade Federal de
Minas Gerais, Campos Gerais, 2010.

SIGLAS

• ASRBz Agonistas Seletivos de Receptores Benzodiazepínicos


• IMC Índice de Massa Corporal
• TCC-I Terapia Cognitivo-Comportamental para Insônia
Este capítulo se dedica a auxiliar o generalista a tomar condutas de
forma imediata em urgências e emergências psiquiátricas. Não faz
parte dos objetivos do capítulo esmiuçar conceitos, epidemiologia ou
comorbidades. Por meio de tabelas e figuras, o clínico tem acesso a
informações imprescindíveis para um diagnóstico e condutas ágeis. A
ideia aqui é de acesso rápido às informações para a tomada de decisão
instantânea. Caso tenha interesse, o leitor tem acesso ao detalhamento
de cada uma das condições apresentadas neste capítulo no transcorrer
do livro.

1. DIFERENCIAR CAUSAS
PSIQUIÁTRICAS DE CAUSAS
ORGÂNICAS
Alterações de comportamento como alucinações, excitação maniforme,
sintomas depressivos ou agitação psicomotora podem ser decorrentes
de desordem de origem neurológica, metabólica, infecciosa ou
autoimune. O clínico deve estar atento a sinais que possam indicar
origem não psiquiátrica dos sintomas.

Quadro 1 - Diferenciação entre sintomas psiquiátricos de origem


orgânica
Início insidioso.
Início na idade adulta.
Sinais sugestivos de causa
Alterações de pensamento, afetividade, volição e vivência do
psiquiátrica
Eu.
História familiar de transtorno mental.

Sinais sugestivos de causa Início súbito.


orgânica Extremos de idade (crianças ou idosos).
Presença de febre.
Convulsões.
Cefaleia intensa.
Rebaixamento do nível de consciência.
Sinais focais.
Flutuação dos sintomas.
Sinais de infecção.
Alterações metabólicas.
Uso de substâncias psicoativas.

Fonte: elaborado pelo autor.

2. AGITAÇÃO PSICOMOTORA
Ao se deparar com um paciente agitado em um serviço de saúde, o
clínico deve se certificar que o paciente não está com algum objeto que
possa ser usado como arma. O contato com o paciente de forma
empática e acolhedora deve ser a premissa, levando-se em
consideração os preditores de comportamento violento (Quadro 2). Em
seguida, deve estabelecer minimamente a possibilidade de os sintomas
apresentados serem de origem orgânica ou não (ver Quadro 1).
Sendo possível o manejo com medicações orais, essa estratégia
sempre deve ser preferida. Em caso de pacientes violentos, serão
necessárias as contenções física (tabela 3) e química (tabela 4).

Quadro 2 - Preditores de comportamento violento


Postura Psicomotricidade Humor Risco Conduta

Não olha para Tentar


Inquieto.
o examinador abordagem
Tamborila os
Hostilidade ou o evita. amigável.
dedos. Aperta
(nível 1 de Pode estar Irritado. Alto. Convencer
uma mão contra
agitação) lacônico ou paciente a se
a outra. Morde
com tom de deixar
os lábios.
voz elevado. medicar.

Age de forma
intimidadora. Iniciar diálogo
Raivoso.
Faz ameaças com muita
Agressividade Quase agitado. Demonstra
verbais, fala Muito cautela.
(nível 2 de Esmurra parede, estar com
muitos alto. Interromper a
agitação) gesticula muito. raiva de
palavrões, fala qualquer sinal
todos.
alto o tempo de piora.
todo.
Postura Psicomotricidade Humor Risco Conduta

Agitado. Tem Chances de


Anda de um algo nas mãos Furioso. sucesso com o
lado para para se defender Intenção de diálogo são
Violento
outro. Vai ou para agredir agir remotas.
(nível 3 de Iminente.
agredir/acabou alguém. Está violentamente Iniciar
agitação)
de agredir quebrando contra imediatamente
alguém. objetos no alguém. processo de
ambiente. contenção.

Fonte: Adaptado de Forlenza OV, Miguel EC.4

Quadro 3 - Contenção física


Deve ser determinada como medida protetiva e não punitiva.

Sempre deve ser feita em contexto do tratamento.

Sinais vitais devem ser checados rotineiramente (destaque para perfusão sanguínea).

Mínimo de 5 pessoas para realizar a contenção (uma para cada membro e a outra para tronco e
cabeça).

Quanto mais membros na equipe de contenção, melhor.

Uma vez que a contenção esteja feita, a medicação deve ser administrada. Não se justifica
conter e não medicar.

As faixas de contenção devem ser de material resistente.

O paciente deve ser informado sobre o procedimento e a razão para este estar sendo feito.

Conter em decúbito dorsal com a cabeceira elevada.

Uma vez iniciada a contenção, esta deve seguir até o fim. Não ceder a barganhas do paciente
durante o processo.

Não remover as contenções até que não haja mais risco.

Na remoção das faixas, iniciar pelo tórax, um membro inferior de cada vez e finalmente
membros superiores. Sempre avaliar comportamento entre uma remoção e outra.

Fonte: elaborada pelo autor.


Quadro 4 - Fármacos utilizados no manejo da agitação psicomotora
Dose
Via de Dose
Classe Fármaco máxima Efeitos colaterais
administração (mg)
(mg) 24h

SEP, hipotensão,
Oral 5-15 ND disfagia e alteração
ECG
Haloperidol
SEP, cefaleia, tontura
Intramuscular 2.5-10 30
Antipsicótico 1ª e sedação
geração
Intravenosa* 5 20 SEP, hipotensão

SEP, hipotensão,
Intramuscular
Droperidol 2,5-10 10 prolongamento do
e intravenosa
QT

SEP, disfagia,
convulsão e efeitos
Risperidona Oral 2-3 8 hemodinâmicos,
náuseas, arritmias e
hipotensão

SEP, disfagia,
Oral
Asenapina 10 20 convulsão e efeitos
(sublingual)
hemodinâmicos
Antipsicótico 2ª
geração SEP, disfagia,
Oral 10 30 convulsão, arritmia,
hipotensão, tontura.
Olanzapina
SEP, sedação
Intramuscular 10 ND excessiva e
hipotensão ortostática

SEP, sedação
Ziprasidona Intramuscular 10-20 40
excessiva

Benzodiazepínico Clonazepam Oral 2 8 Amnésia, ataxia,


sedação excessiva e
Diazepam Oral 10 60 efeito paradoxal
Dose
Via de Dose
Classe Fármaco máxima Efeitos colaterais
administração (mg)
(mg) 24h

Depressão
Intravenoso* 40 respiratória e
hipotensão

Amnésia, ataxia,
Lorazepam Oral 2-4 4 sedação excessiva e
efeito paradoxal

Até
Intramuscular ND
15 Sedação, depressão
Midazolam respiratória
Intravenosa* 2,5-10 ND

ND: não definido


SEP: sintomas extrapiramidais
ECG: Eletrocardiograma
*Evitar essa via de administração pelo alto risco de arritmias
Fonte: adaptado de Baldaçara L, Diaz AP, Leite V, Pereira LA, Santos
RM, Gomes Junior VP, et al.5

3. DELIRIUM
O delirium, também chamado de síndrome confusional aguda, é
caracterizado por perturbação da consciência e da atenção, que
acontece de forma aguda, tem curso autolimitado e reversível (desde
que sanados os fatores precipitantes), além de flutuação dos sintomas
ao longo do dia. Tais sintomas são, em geral, decorrentes de alguma
alteração na homeostase, como intoxicações, abstinências ou alguma
condição médica geral. Em síntese, listamos a seguir quadros que
auxiliam no diagnóstico rápido do delirium (CAM), no manejo não
farmacológico e farmacológico do delirium, sendo esse último
indicado apenas para pacientes com inquietação, agitação ou insônia.

Quadro 5 - Confusion Assessment Method (CAM)


A Estado confusional agudo com flutuação marcante

B Déficit de atenção marcante

C Pensamento e discurso desorganizado

D Alteração do nível de consciência

Considera-se delirium na presença dos itens A e B mais C e/ou D.


Fonte: Lôbo RR, Silva Filho SRB, Lima NKC, Ferriolli E, Moriguti
JC.6

Quadro 6 - Medidas não farmacológicas para o manejo de delirium


Medidas ambientais Medidas clínicas

Iluminação durante o dia, janelas para


Estimular alimentação e hidratação.
visualizar o ambiente exterior.

Uso de aparelhos auditivos, óculos e outros


Um paciente por quarto. aparelhos que possam ajudar em alguma
deficiência na sensopercepção.

Excreções fisiológicas presentes (evitar


Ambiente o mais silencioso possível.
constipação).

Relógios e calendários disponíveis para os Auxiliar na mobilização precoce e na


pacientes. independência funcional.

Encorajar visitas e engajamento de familiares e


Manejar desconforto da dor.
cuidadores.

Encorajar uso de objetos familiares. Avaliar qualidade e quantidade de sono.

Evitar cateteres e outros dispositivos invasivos


Evitar troca de leitos e quartos.
potencialmente desnecessários.

Fonte: síntese elaborada pelo autor.

Tabela 1 - Manejo farmacológico do delirium


Medicamento Doses iniciais
Medicamento Doses iniciais

Haloperidol 0,5-1 mg

Risperidona 0,5-1 mg

Quetiapina 12,5-25 mg

Olanzapina 2,5-5 mg

Diazepam* 10 mg de 1/1h (máximo de 60mg)

Lorazepam* 2 mg de 1/1 (máximo de 12mg)

*drogas preconizadas apenas para o delirium tremens.


Fonte: elaborado pelo autor.

4. INTOXICAÇÃO POR
SUBSTÂNCIAS PSICOATIVAS
Em um ambiente de urgência, em nosso meio, as substâncias mais
implicadas são o álcool, o crack/a cocaína e a maconha. No Quadro 7,
sinais e sintomas que diferenciam os diversos tipos de intoxicação
aguda; e no Quadro 8 a conduta nas intoxicações por substâncias
psicoativas.

Quadro 7 - Intoxicação aguda por substâncias psicoativas


Álcool Cocaína/crack Maconha
Álcool Cocaína/crack Maconha

• Euforia
• Hiperatividade
• Alterações na percepção de
• Desinibição
• Hálito etílico espaço, cor, sons e tempo
• Aumento da
• Fala pastosa • Euforia leve
autoestima
• Euforia • Sensação de bem-estar
• Estimulação sexual
• Prejuízo na • Relaxamento
• Descarga
atenção, • Riso fácil
adrenérgica
coordenação • Dificuldades de
generalizada
motora e coordenação motora,
• Disforia
julgamento memória de curto prazo e
• Impulsividade
• Náuseas e vômitos concentração
• Excitação
• Hipotermia • Aumento do apetite
psicomotora
• Alteração da • Hiperemia conjuntival
• Diminuição da
consciência • Boca seca
necessidade do
• Hipotensão postural
sono
• Prejuízo na crítica

Fonte: adaptado de Quevedo J, Carvalho AF.3

Quadro 8 - Manejo da intoxicação por substâncias psicoativas


Diminuição da exposição a estímulos externos.

Averiguar quais substâncias foram utilizadas (doses, via de administração, última dose).

Remover substâncias do organismo (considerar lavagem gástrica ou aumento da excreta).

Administrar antagonistas farmacológicos (p. ex.: naloxona para intoxicação por heroína).

Medidas de suporte (hidratação em pacientes desidratados, reposição de glicose nos


hipoglicêmicos, entre outros).

Fonte: adaptado de Quevedo J, Carvalho AF.

5. SÍNDROME DE ABSTINÊNCIA
ALCOÓLICA
A síndrome de abstinência do álcool (SAA) pode se iniciar já nas 6
horas após o último uso de etílicos. É caracterizada por
hiperestimulação autonômica, o que justifica a manifestação dos seus
sintomas excitatórios (Quadro 9). É uma condição autolimitada que
dura em média 7 dias. Deve ser estratificada em síndrome de
abstinência leve/moderada ou grave (Figura 1) para o correto manejo
(Quadro 10). A indicação para internação hospitalar deve levar em
consideração: gravidade dos sintomas, presença de psicose, insucesso
em terapias prévias, presença de rede de apoio social e familiar, além
de condições clínicas.

Quadro 9 - Quadro clínico da síndrome de abstinência alcoólica


• Tremores de • Aumento da pressão
extremidades arterial
• Náuseas e vômitos
• Ansiedade • Insônia
• Inquietação
• Sudorese • Alteração do humor
• Taquicardia • Cefaleia

Fonte: Diehl A, Cordeiro DC, Laranjeira R.7

Figura 1 - Instrumento de avaliação de gravidade da síndrome


de abstinência alcoólica (CIWA-Ar)
SAA leve: pontuação de 0 a 9; SAA moderada: pontuação de 10 a 18;
SAA grave: pontuação maior que 18.
Fonte: Diehl A, Cordeiro DC, Laranjeira R.7

Quadro 10 - Manejo da SAA


Gravidade Conduta

• Manejo ambulatorial
• Estimular hidratação oral
SAA leve / • Dieta livre
moderada • Reposição de tiamina*
• Diazepam 20 mg/dia, com desmame em uma semana OU Lorazepam 4
mg/dia, com desmame em uma semana (para pacientes hepatopatas graves)

• Manejo hospitalar
• Dieta branda (se confusão mental, manter dieta zero)
• Hidratação venosa
SAA grave • Reposição de tiamina*
• Diazepam 10 mg, de hora em hora, de acordo com os sintomas (até no
máximo 60 mg/dia) OU Lorazepam 2 mg, de hora em hora (até no máximo
12 mg/dia).

*Tiamina, 1 ampola/dia, por 7 a 15 dias. Após esse prazo, administrar


tiamina 300 mg/dia, via oral, por tempo indeterminado (a critério
clínico).
Fonte: Diehl A, Cordeiro DC, Laranjeira R, 2019.7

6. CRISE SUICIDA
Paciente com comportamento suicida pode apresentar-se no
atendimento com ideação, planejamento ou recente tentativa de
suicídio. O clínico deve realizar avaliação dos fatores de risco (Quadro
11) para a tomada de conduta adequada (Quadro 12). Não há fórmula
simples para identificar com precisão o risco suicida, devendo o
clínico estar atento, dentre outros aspectos, à intensidade da ideação, à
presença ou não de planejamento, à somatória dos fatores de
risco/proteção e à presença de suporte familiar e social. Essa
estimativa norteará a decisão quanto à conduta imediata a ser
estabelecida.

Quadro 11 - Fatores de risco e de proteção para suicídio


Fatores de Risco Fatores Protetores

Apoio da família e
Tentativa de suicídio prévia
de outras pessoas significativas

Doença psiquiátrica Crenças religiosas, culturais e étnicas

Alcoolismo e abuso de drogas Envolvimento na comunidade

Sexo masculino Rede social significativa

Desemprego Acesso a serviços e cuidados de saúde mental

Dor crônica, cirurgia recente, doença terminal

Abuso e outros eventos adversos na infância

História familiar de suicídio

Ser solteiro, viúvo ou separado

Isolamento social

Alta hospitalar recente

Fonte: Mari JJ, Kieling C.8

Quadro 12 - Manejo da crise suicida


Teor do risco Conduta

• Estabelecer vínculo.
• Evitar comentários críticos, reprovações ou julgamentos morais e
Baixo risco religiosos.
• Encaminhar para reavaliação e seguimento em serviços de saúde
mental.
Teor do risco Conduta

• Estabelecer vínculo.
• Evitar comentários críticos, reprovações ou julgamentos morais e
religiosos.
• Encaminhar para reavaliação e seguimento em serviços de saúde
mental, desde que atenda às seguintes exigências:
1. Disponibilidade de suporte familiar capaz de manter
Médio risco acompanhamento constante 24 horas por dia até próxima reavaliação.
2. Comprometimento em iniciar tratamento psiquiátrico disponível.
3. Estabelecimento de um “contrato de vida”, que se caracteriza pelo
compromisso sincero e empático por parte do paciente de não tentar
suicídio e de procurar atendimento de emergência ou ajuda caso
perceba agravamento da ideação suicida.
Se não for possível o cumprimento dessas exigências, considerar como alto
risco.

• Estabelecer vínculo.
• Evitar comentários críticos, reprovações ou julgamentos morais e
Alto risco
religiosos.
• Internação hospitalar.

Fonte: síntese elaborada pelo autor.

4. ATAQUE DE PÂNICO
Os ataques de pânico se caracterizam por crises ansiosas paroxíticas,
fugazes (30 a 60 minutos, em média) e com vários sintomas somáticos
simpáticos (tremores, boca seca, visão turva, sensação de asfixia ou
sufocamento, aperto no peito, desconforto abdominal, calafrios, ondas
de calor, parestesias, desrealização e despersonalização).
Tradicionalmente, o paciente acredita que está morrendo (ou variações
como “infartando”, “tendo um derrame”), ficando louco ou perdendo o
controle de si.
Após descartadas as condições clínicas que mimetizam o quadro,
como infarto agudo do miocárdio, o clínico deve tranquilizar o
paciente e pode optar por prescrever um benzodiazepínico oral, em
baixa dosagem, para abortar a crise de pânico (Tabela 2).

Figura 2 - Ataque de pânico

Fonte: elaborada pelo autor.

Tabela 2 - Fármacos usados para


abortar crises de pânico
Fármaco Dose

Alprazolam 0,25-0,5 mg

Clonazepam 0,25-0,5 mg

Diazepam 2-5 mg

Lorazepam 0,25-0,5 mg

Fonte: elaborada pelo autor.


5. CRISE CONVERSIVA
DISSOCIATIVA
Nos ambientes de atendimento emergencial, rotineiramente o médico
se depara com manifestações que se assemelham a condições
neurológicas, como síncopes, afonias, cegueiras, paresias e plegias,
mas que são de origem psicogênica. Damos destaque nesse tópico à
crise pseudoepiléptica, que pode confundir o mais experiente dos
clínicos, mimetizando um uma convulsão verdadeira.

Quadro 13 - Diferenciação entre crises epilépticas e convulsões


psicogênicas
Convulsão epilética Convulsão psicogênica

Olhos com as pálpebras abertas durante a Olhos com as pálpebras fechadas durante a
crise. crise convulsiva.

Início agudo e inesperado, paciente pode se Início gradual e duração prolongada, a queda é
machucar seriamente durante a queda. mais suave e amortecida, sem traumas.

Reflexo da córnea comprometido no pós-ictal. Não existe alteração no reflexo da córnea.

Resposta plantar extensora após a convulsão


Sem resposta plantar extensora.
tônico-clônica generalizada.

É comum a lesão por mordida simultânea da Raramente existe lesão na língua e quando
língua (grave, lateral da língua) e presente, será na extremidade. Rara liberação
incontinência urinária no pós-crise. esfincteriana.

Respiração pós-ictal ruidosa e com aparente


Respiração normal, sem alterações.
dificuldade.

Abertura ocular fácil pelo médico, sem Abertura da pálpebra resistente, o médico tem
dificuldades. dificuldade em forcar a abertura ocular.

Fonte: elaborado pelo autor.

Referências
1. Dalgalarrondo P. Psicopatologia e Semiologia dos Transtornos
Mentais. 3. ed. Porto Alegre: Artmed; 2019.
2. Botega N. Prática Psiquiátrica no Hospital Geral – Interconsulta
e Emergência. 4. ed. Porto Alegre: Artmed; 2017.
3. Quevedo J, Carvalho AF. Emergências psiquiátricas. 3. ed.
Porto Alegre: Artmed; 2014.
4. Forlenza OV, Miguel EC. Compêndio de Clínica Psiquiátrica.
São Paulo: Editora Manole, 2012.
5. Baldaçara L, Diaz AP, Leite V, Pereira LA, Santos RM, Gomes
Junior VP et al. Brazilian guidelines for the management of
psychomotor agitation. Part 2. Pharmacological approach. Braz.
J. Psychiatry (São Paulo) 2019 Aug.; 41(4): 324-335.
6. Lôbo RR, Silva Filho SRB, Lima NKC, Ferriolli E, Moriguti
JC. Delirium. Medicina (Ribeirão Preto) 2010; 43(3): 249-57.
7. Diehl A, Cordeiro DC, Laranjeira R. Dependência química:
prevenção, tratamento e políticas públicas. 2. ed. Porto Alegre:
Artmed; 2019.
8. Mari JJ, Kieling C. Psiquiatria na Prática Clínica. Barueri, SP:
Manole; 2013.
9. Aguiar AMA, Azevedo CA, Ferretjans, R. Manejo do suicídio
pelo médico generalista na atenção primária. Revista Eletrônica
Parlatorium (Ano IV) 2015 jul.-dez.; 9(2).
10. American Psychiatric Association (APA). Practice Guideline
for the Assessment and Treatment of Patients With Suicidal
Behaviors. American Psychiatric Association, 2010.
11. Sadock BJ, Sadock VA. Compêndio de psiquiatria: ciências do
comportamento e psiquiatria clínica. 9. ed. Porto Alegre:
Artmed; 2017.
12. Locke AB, Kirst N, Shultz CG. Diagnosis and management of
generalized anxiety disorder and panic disorder in adults. Am
Fam Physician. 2015; 91(9): 617-624.
13. Breilmann J, Girlanda F, Guaiana G, et al. Benzodiazepines
versus placebo for panic disorder in adults. Cochrane Database
Syst Rev. 2019; 3(3):CD010677. Published 2019 Mar 28.
14. Galli S, Tatu L, Bogousslavsky J, Aybek S. Conversion,
Factitious Disorder and Malingering: A Distinct Pattern or a
Continuum? Frontiers of Neurology and Neuroscience 2017; 72-
80.

SIGLAS
• CAM Confusion Assessment Method
• SAA Síndrome de Abstinência do Álcool
1. INTRODUÇÃO
Antes de iniciar o estudo dos transtornos mentais e das modalidades de
tratamento, é importante ter uma noção geral dos mecanismos de
neurotransmissão e da forma como atuam os neurotransmissores. Muitas
dessas substâncias vão atuar tanto no sistema nervoso central como em
outros sistemas, exercendo funções diversas. Tais funções poderão ser
citadas, mas o foco deste capítulo está em fazer uma correlação entre a
biologia cerebral e a farmacologia. Muitos conceitos importantes serão
apresentados e o leitor deve estar familiarizado com eles. Os
neurotransmissores serão apresentados de forma objetiva, relacionando-os
com a clínica dos transtornos mentais. E, por fim, será feita uma breve
explanação sobre a fisiopatologia geral dos transtornos psiquiátricos.

Termos frequentes usados em psicofarmacologia


a. Neurônios: células que compõem o sistema nervoso, responsáveis
por conduzir, receber e transmitir os impulsos nervosos através do corpo,
fazendo com que esse responda aos estímulos do meio. Podem ser pré e
pós-sinápticos.
b. Potencial de ação: estímulo elétrico gerado pela inversão da
polarização elétrica de membrana celular.
c. Estímulo externo: luz, estresse, comida, brinquedo, violência,
paisagens, terapia, etc.
d. Estímulo nervoso: propagação do impulso elétrico (potencial de
ação) pelas redes neuronais.
e. Canais iônicos: estruturas transmembrânicas pentaméricas ou
tetraméricas que controlam a entrada e a saída de íons das células (K+,
Ca2+, Na+, Cl-). Podem ser controlados por ligantes ou sensíveis à
voltagem.
f. Fenda sináptica ou sinapse: espaço existente entre o terminal
axônico do neurônio pré-sináptico e dendritos receptores do neurônio pós-
sináptico.
g. Recaptação: quando o neurotransmissor retorna ao neurônio pré-
sináptico, ligado a uma proteína transportadora após exercer sua ação,
impossibilitando sua reutilização provisória.
h. Enzimas: proteínas ativas com função de inativar ou destruir o
neurotransmissor.
i. Citocromo P450: sistema enzimático de metabolização hepática ou
intestinal (interações medicamentosas). Exemplos: CYP1A2, CYP2C9,
2CYPD6, CYP3A4 e CYP2C19.
j. Transdução de sinais: cascata de eventos que ocorre após o
estímulo elétrico neuronal e culmina com a síntese de proteínas no núcleo
do neurônio.
k. Psicofármaco ou substância psicoativa: qualquer produto que
tenha ação (inibidora ou ativadora) direta ou indireta nos neurônios.
l. Agonistas: molécula que ocasiona mudanças na estrutura do
receptor, desencadeando reações estimuladoras, como a transdução de
sinais através do sistema de mensageiros.
m. Agonistas parciais: apesar de desencadear uma reação
estimuladora no receptor, esta não chega a ser total, porém não mantém
em um estado de inatividade total, como um bloqueador.
n. Antagonistas ou bloqueadores: apesar de ocasionar mudanças
estruturais no receptor, não há desencadeamento de uma resposta plena,
mantendo o receptor em um estado de repouso, o que evita estados de
hiperexcitação na presença excessiva de agonistas.
o. Agonistas inversos: ocasiona inatividade do receptor por meio de
uma mudança na conformação estrutural do receptor, tornando-o
totalmente inativo e inibindo a transdução de sinais, ou seja, fazem o
oposto do agonista.
p. Sítios alostéricos: locais do canal iônico onde uma substância pode
ligar-se para atuar de forma sinérgica com um neurotransmissor
(aumentando ou diminuindo a atividade iônica).
q. Receptores: alvo de ação de uma substância psicoativa, onde vai se
ligar para exercer suas funções, podendo ser dentro, na superfície ou fora
da célula. Sua função será exercida de acordo com a especificidade pelo
ligante, sua localização no cérebro e o subtipo.
r. Transportadores vesiculares: vesículas celulares que transportam
neurotransmissores até o local de ação, protegendo-os da ação de enzimas.
s. Transportadores proteicos: proteínas que se ligam aos
neurotransmissores e levam-nos aos locais de ação ou facilitam sua
entrada na célula.
t. Neurotransmissão: transmissão, propagação ou envio do sinal
nervoso por intermédio da liberação de substâncias químicas
(neurotransmissores) nas sinapses nervosas.
u. Neurotransmissores: são substâncias químicas produzidas
pelos neurônios com a função de biossinalização. Por meio deles é
possível enviar informações a outras células e estimular a continuidade de
um impulso. São exemplos de neurotransmissores: serotonina,
acetilcolina, gaba, dopamina, noradrenalina e glutamato.
v. Farmacocinética: a farmacocinética estuda a absorção, a
distribuição, a biotransformação ou metabolização e a excreção das
drogas. Esses fatores, associados à dosagem, determinam a concentração
da droga nos seus locais de ação e, dessa maneira, a intensidade dos seus
efeitos em função do tempo. Em resumo, é o que o organismo faz com as
drogas.
w. Farmacodinâmica: estuda os efeitos das drogas ou fármacos nos
organismos, seus mecanismos de ação e a relação entre a dose do fármaco
e efeito.
x. Autorreceptor: é um tipo de receptor localizado nos terminais
axônicos pré-sinápticos, cuja função é estabelecer um feedback negativo
na secreção específica do neurotransmissor na fenda sináptica.

NEUROTRANSMISSÃO
Tudo começa com o ambiente, de onde vem a maioria dos estímulos. Seja a
luz solar, algum odor, um toque, a companhia de uma pessoa querida, a
dificuldade em estabelecer um diagnóstico, o falecimento de um familiar etc.
Todos esses estímulos externos vão gerar respostas internas (prazer,
felicidade, angústia, frustração, tristeza etc.). Por meio de vias aferentes (dos
receptores periféricos para o sistema nervoso central – SNC), esses
estímulos vão gerar respostas químicas mais periféricas que se converterão
em estímulo elétrico e se propagarão até o cérebro, gerando respostas
neuronais. Tais estímulos são recebidos no SNC pelos dendritos de algum
neurônio pré-sináptico e por meio de mecanismos de integração com
sistemas de mensageiros (primeiros, segundos e terceiros ou quartos) e
canais iônicos, ocorrerá a decodificação em cascatas bioquímicas, que vão
atuar diretamente no núcleo neuronal, mais especificamente sobre o DNA,
estimulando ou inibindo a produção de enzimas que darão origem aos
neurotransmissores nos terminais axonais. Enquanto o estímulo elétrico
continua se propagando pela superfície do neurônio pré-sináptico (por
geração de diferenças de potencial na membrana plasmática), sempre em um
sentido único (dos dendritos até o terminal axônico), as enzimas
responsáveis pelos processos químicos dos neurotransmissores seguem no
interior do axônio, até se acumularem no terminal axônico e, aproveitando-
se dos substratos existentes nesse local, darão origem aos
neurotransmissores, os quais são armazenados em vesículas. Quando o
estímulo elétrico alcança o terminal axonal, ocorre a fusão das vesículas que
contêm neurotransmissores com a membrana celular, e o seu conteúdo é
liberado na fenda sináptica. Nesse momento, três situações poderão ocorrer
com o neurotransmissor:

1. Ligar-se ao seu receptor no dendrito do neurônio pós-sináptico


(serotonina ao receptor 5HT2A, por exemplo).
2. Ser recaptado e degradado por sua respectiva enzima (acetilcolina
pela acetilcolinesterase, por exemplo).
3. Ligar-se ao seu autorreceptor, havendo controle da secreção do
neurotransmissor por ele mesmo.

A primeira situação permitirá a propagação do estímulo, gerando algum


tipo de resposta. As outras duas servirão como mecanismo de controle para
evitar uma atividade excitatória (ou inibitória) excessiva. Lembre-se que
estímulos internos podem ter ação direta sobre os neurônios (hormônios e
outros neurotransmissores, por exemplo). Além disso, é importante lembrar
que as sinapses podem ser químicas (liberação de moléculas) ou elétricas
(transmissão direta do impulso elétrico).

Figura 1 - Estrutura morfológica do neurônio


Fonte: Bear, Connors, Paradiso.13

Figura 2 - Propagação do potencial de ação (estímulo nervoso)


Fonte: Brandão.14
Figura 3 - Representação da fenda sináptica

Fonte: Toda Matéria.15

Neurotransmissores
A integração entre os diversos componentes do SNC se dá por meio de
circuitos neurais, tendo como célula básica os neurônios. Esses vão se
comunicar entre si por meio das sinapses, que podem ser tanto de natureza
química quanto elétrica. No primeiro tipo, a excitação do neurônio pós-
sináptico se dá pela liberação de substâncias sinalizadoras, conhecidas como
neurotransmissores, que podem ser simples aminoácidos ou moléculas mais
complexas (neuropeptídeos). A função que o neurotransmissor vai exercer
dependerá do tipo de receptor ao qual se ligará, bem como à área cerebral
onde atuará. Os receptores pós-sinápticos podem ser ionotrópicos (canais
iônicos) ou metabotrópicos (ligados à proteína G). O efeito dos receptores
metabotrópicos demora mais para surtir algum efeito, já que envolve
mecanismos para transcrição gênica, contudo, são mais duradouros. Para
evitar uma hiperexcitabilidade, existem dois mecanismos protetores: a
degradação enzimática e a recaptação.

Principais neurotransmissores
Glutamato (L-Glutamato)
É tido como o principal neurotransmissor excitatório, pois a ligação com
seus receptores ionotrópicos (AMPA, NMDA e cainato) vai desencadear a
despolarização da membrana neuronal. É sintetizado no SNC a partir da
glicose e não atravessa a barreira hematoencefálica. Os receptores
glutamatérgicos ligados ao AMPA têm quatro subunidades GluR1-4, sendo
que a subunidade GluR2 é mais permeável aos íons de sódio que as demais.
A degradação do glutamato pela glutamato-desidrogenase nas células gliais
libera glutamina, sendo utilizada para produzir mais glutamato e GABA.
Já os receptores NMDA possuem sete subunidades: NR1, NR2A-D e
NR3A-B, sendo os únicos que precisam de dois agonistas diferentes para sua
ativação, pois somente a ligação do glutamato não é suficiente para abrir o
canal iônico. Estando este aberto, ocorre o aumento do influxo de cálcio e
sódio. A entrada de cálcio permite a ativação de inúmeras enzimas, estando
relacionado a muitas formas de plasticidade neuronal, afetando diretamente
o aprendizado e a memória. Em situações de estresse, como AVE isquêmico
e epilepsia, esses receptores têm sido associados com um mecanismo de
dano ao SNC conhecido como excitotoxicidade.
Os receptores do tipo cainato possuem cinco subunidades GluK1-5, os
quais parecem ter uma função apenas modulatória e não representam um
alvo importante para psicofármacos. Apresentam potencial terapêutico como
anticonvulsivantes e analgésicos. Além dos receptores ionotrópicos, existem
8 famílias de receptores metabotrópicos do glutamato (mGluR), exercendo
um papel modulatório, onde regulam a excitabilidade neuronal, a
transmissão sináptica e a plasticidade neural. Oito tipos de mGluR foram
identificados e classificados em três grupos: Grupo I (mGluR1, mGluR5),
Grupo II (mGluR2, mGluR3) e Grupo III (mGluR4, mGluR6, mGluR7,
mGluR8). Os receptores do grupo I estão envolvidos na plasticidade
sináptica e nos mecanismos neuroprotetores e neurodegenerativos, enquanto
os grupos 2 e 3 têm papéis complexos na regulação da liberação e
plasticidade de neurotransmissores. Todos os três grupos são acoplados à
proteína G e podem estar envolvidos na regulação da transcrição gênica e
nas interações neuronais gliais. Os mGluRs interagem com receptores
ionotrópicos de glutamato, receptores GABA, canais iônicos, proteínas de
estrutura de Homer e Shank, além de outros sistemas neuronais. Os mGluRs
têm efeitos rápidos e de longo prazo, atuando direta e indiretamente em
vários sistemas neuronais e gliais. Os receptores mGluR1 e mGluR5
interagem com NMDARs, enquanto os receptores mGluR2 e mGluR3
interagem com AMPARs, ligando os receptores metabotrópicos e
ionotrópicos de maneiras que ainda não foram totalmente compreendidas.
Há evidências de que os mGluRs de astrócitos são necessários para a
neuroproteção. Embora menos atenção tenha sido dada aos papéis dos
receptores metabotrópicos, esses têm sido implicados na fisiopatologia dos
transtornos de humor e transtornos psicóticos.
A encefalite antirreceptor NMDA é uma doença autoimune em que os
anticorpos se voltam contra receptores NMDA. Nessa doença, os pacientes
desenvolvem uma síndrome clínica característica que consiste em três fases
diferentes. No entanto, é importante estar ciente de que existe uma certa
sobreposição de sintomas nessas fases. A maioria dos pacientes relata
sintomas prodrômicos, como cefaleia, febre baixa, náuseas, vômitos, diarreia
ou doenças consistentes com uma infecção do trato respiratório superior.
Dentro de algumas semanas, novos sintomas aparecem e, na maioria das
vezes, são neuropsiquiátricos na forma de alucinações visuais ou auditivas,
delírios, ansiedade, mania, alterações de personalidade, catatonia, confusão e
perda de memória, bem como ataques epilépticos. Essa fase dura
aproximadamente 1 a 3 semanas. O predomínio dos sintomas psiquiátricos é
a razão pela qual até 75% dos pacientes são vistos pela primeira vez por
psiquiatras e/ou internados em enfermarias psiquiátricas. Na última fase,
ocorrem as complicações neurológicas óbvias, em que distúrbios do
movimento, alterações da consciência, instabilidade autonômica e
hipoventilação central são particularmente proeminentes. Os distúrbios do
movimento ocorrem mais frequentemente na forma de discinesias
(especialmente orofacial), distonia, coreoatetose, rigidez muscular e
mioclonia. A instabilidade autonômica é mais frequentemente expressa em
arritmias, hiper/hipotensão, hiper/hipotermia, hiperidrose e hipersalivação.
Também ocorre hipoventilação com necessidade de suporte ventilatório. Em
combinação com os sintomas típicos, a detecção de anticorpos IgG contra a
subunidade NR1 do receptor NMDA é diagnóstica de encefalite
antirreceptor NMDA. A análise de anticorpos pode ser realizada no soro ou
no fluido espinhal. O tratamento de primeira linha consiste em: esteroides,
imunoglobulina intravenosa (IVIG) ou reposição de plasma.

GABA (ácido γ-aminobutírico)


Trata-se de um neurotransmissor que, após ligar-se ao seu receptor, promove
uma alteração na sua conformação (ativação), o que permite o influxo de
íons cloreto para o meio intracelular com consequente hiperpolarização da
membrana neuronal, o que bloqueia ou lentifica a passagem do impulso
nervoso. Devido a isso, o GABA é tido como neurotransmissor inibitório
universal. Em alguns estados patológicos, o GABA pode permanecer mais
tempo que o necessário ligado ao seu receptor, ocasionando um bloqueio
completo da neurotransmissão. É produzido a partir do glutamato pela
glutamato descarboxilase, e sua metabolização ocorre nas células gliais pela
GABA-transaminase, liberando succinato.
Os receptores GABAA são ionotrópicos, sendo seletivos ao ânion cloreto
e composto por 5 subunidades α, β, γ e ρ, que se misturam entre si (2α2β1γ,
por exemplo, figura 4), gerando inúmeras propriedades diferentes. É na
subunidade α que se encontra o sítio onde se ligam medicamentos
benzodiazepínicos. Na presença de um ligante, esses canais abrem e fecham
de forma repetida. Os benzodiazepínicos (ligam-se a um sítio alostérico no
receptor GABAA) aumentam a frequência de abertura, enquanto que
barbitúricos aumentam o tempo de abertura do canal. Ou seja, tanto
benzodiazepínicos quanto barbitúricos têm propriedades anticonvulsivantes.
Diferente dos benzodiazepínicos clássicos, os medicamentos com
características hipnóticas, como o zolpidem, a zopiclona e a eszopiclona
atuam mais especificamente na subunidade GABAAα1). O álcool possui
sítio de ligação nesse receptor.
Os receptores GABAB são metabotrópicos sendo encontrados nos
terminais pré-sinápticos, onde sua função é mais modulatória, inibindo a
liberação de outros neurotransmissores. Os antagonistas do receptor
GABAB parecem ser interessantes como uma via para o tratamento da
depressão, embora seja de grande importância avaliar os efeitos dos
moduladores alostéricos negativos em modelos de depressão.
Figura 4 - Receptor GABAA

Fonte: Tohmé.16

Noradrenalina
Trata-se de uma catecolamina sintetizada nos neurônios noradrenérgicos a
partir de mecanismos enzimáticos que envolvem a tirosina e DOPA e, na via
final, pela ação da dopamina-β-hidroxilase. A noradrenalina é inativada no
meio intracelular pela MAO (monoamina oxidase) após ser recaptada da
fenda sináptica. Vale ressaltar que a produção de noradrenalina (e de outras
catecolaminas) não é exclusiva do SNC, ocorrendo também perifericamente.
A maior concentração de corpos celulares noradrenérgicos se encontra no
locus cœruleus, apresentando extensões axonais para quase todas áreas
cerebrais (exceto para o núcleo estriado dorsal), cerebelo e medula espinal.
Esse neurotransmissor vai agir em receptores α e β adrenérgicos, os quais
possuem vários subtipos. A família α1 é vista com mais frequência nos vasos
e na membrana pós-sináptica, tem características excitatórias, além de serem
metabotrópicos. Atuam na modulação do medo, memória, aprendizado e
respostas motoras. No locus cœruleus, atuam nas flutuações da atenção e no
ritmo circadiano. A família α2 engloba os subtipos α2A, α2B e α2C,
presentes tanto em zonas pré-sinápticas quanto pós-sinápticas e também são
metabotrópicos. Exercem as seguintes funções:

• Receptores α2 -adrenérgicos: analgesia, hipotermia e sedação.


A

• Receptores α2 -adrenérgicos: contração vascular.


B

• Receptores α2 -adrenérgicos: comportamento motor, humor e


C

memória.

Os receptores β-adrenérgicos estão envolvidos com a atividade cardíaca


(β1), relaxamento de musculatura lisa (β2), ações nas vesículas biliar e
vesical (relaxamento da bexiga) e na gordura marrom, como termogênese e
lipólise (β3). Os tipos β1 e β2 são encontrados no cérebro, mas não tem
função bem definida. O bloqueio β pode ter ação no alívio da ansiedade
aguda.

Dopamina
Assim como outras catecolaminas, a dopamina é sintetizada a partir da
tirosina e sua via final envolve a descarboxilação da L-DOPA pela dopa
descarboxilase, sendo armazenada em vesículas dos neurônios
dopaminérgicos. Após sua ação na fenda sináptica, a dopamina é recaptada
para o neurônio pré-sináptico e degradada pela MAO ou pela COMT
(Catecol-O-Metiltransferase). Vale ressaltar que a MAO é apenas
intracelular, mas a COMT também pode ser encontrada no plasma. As vias
dopaminérgicas cerebrais são aquelas que se relacionam diretamente aos
efeitos terapêuticos (mesolímbica e mesocortical) e adversos (nigroestriatal e
tuberoinfundibular) dos neurolépticos. Alguns medicamentos atuarão
inibindo a recaptação de dopamina na fenda sináptica, tornando-a mais
disponível para atuação. Outros vão atuar diretamente no seu receptor,
podendo ocasionar tanto antagonismo como agonismo parcial. As funções da
dopamina envolvem controle da vida afetiva, sistemas de recompensa,
aspectos diversos da cognição, regulação do sono, alimentação, atenção,
olfato, visão, regulação hormonal, regulação simpática, ereção peniana e da
motricidade voluntária. Tem sido comprovado que disfunções na
neurotransmissão dopaminérgica estão relacionadas com diversas desordens
psiquiátricas, como o TDAH (transtorno de déficit de
atenção/hiperatividade), adicção a drogas, esquizofrenia e transtornos
afetivos. Existem 5 tipos conhecidos de receptores dopaminérgicos e todos
são metabotrópicos. Os receptores D1 e D5 são dependentes da atividade da
adenilato ciclase, enquanto os receptores D2, D3 e D4 inibem a atividade da
mesma enzima. Supõe-se que a psicose surja em função de uma
hiperatividade relacionada a receptores D2. Sabendo disso, antagonistas dos
receptores D2 ocasionariam melhora dos sintomas psicóticos, porém
poderiam induzir o ato de comer em excesso, por promover estados sensíveis
à recompensa. Além da recompensa alimentar, a sinalização dopaminérgica
estriatal parece interagir com a sinalização da insulina e também pode afetar
a tolerância à glicose. De acordo com isso, a depleção de dopamina e
diminuição da sinalização D2 no estriado ventral podem estar relacionadas à
resistência insulínica em indivíduos saudáveis. O SNC e os órgãos
periféricos, como o pâncreas, são os dois níveis principais de regulação
metabólica. Eles têm conexões neuroendócrinas bidirecionais e expressam
receptores de neurotransmissores. O balanço energético (ingestão de
energia/gasto de energia), a função do tecido adiposo, a secreção de insulina
e a sensibilidade à insulina são seções importantes da regulação metabólica
adequada. Os antipsicóticos, por atuarem nos receptores de dopamina,
podem alterar esse sistema e induzir disfunções metabólicas.

Serotonina
A serotonina (5-hidroxitriptamina ou 5-HT) é uma indolamina e participa de
inúmeros processos mentais, estando envolvida com modulação do humor e
emoções, agressividade, impulsividade, funcionamento sexual, apetite,
memória, ansiedade, sono etc. É sintetizada nos neurônios serotoninérgicos
dos núcleos da rafe (e na periferia, pelas células enterocromafins do
intestino) a partir da hidroxilação do anel aromático do triptofano pela
triptofano hidroxilase, a qual possui dois tipos: neuronal (tipo 1) e não
neuronal (tipo 2). A 5HTP-descarboxilase finaliza a síntese de serotonina. É
produzida nos terminais axonais e armazenada em vesículas. Após ser
recaptada da fenda sináptica, a serotonina é degradada pela MAO
(principalmente pela MAO-A), gerando o ácido 5-hidroxi-indolacético (5-
HIAA), que pode ter os níveis detectados na corrente sanguínea. As
projeções dos neurônios serotoninérgicos têm ampla distribuição por todo
SNC. Além disso, os receptores serotoninérgicos têm papel em vários
sistemas corporais, sendo encontrados em diversos órgãos do corpo. Existem
7 famílias de receptores (5-HT1-7), sendo que a família de receptores 5-HT3
é a única ionotrópica. Os seguintes receptores serotoninérgicos são
conhecidos atualmente: 5-HT1 (1A, 1B/1D, 1E, 1F), 5-HT2 (2A, 2B, 2C), 5-
HT3, 5-HT4, 5-HT5 (5A, 5B), 5-HT6 e 5-HT7.
A homeostase do sistema serotonérgico é assegurada por autorreceptores
serotoninérgicos (5-HT1A, 5-HT1B, 5-HT1D). A serotonina possui um
transportador seletivo chamado SERT, o qual é alvo de vários
medicamentos. Além disso, vários antidepressivos têm um efeito
complementar ao ativar os receptores serotoninérgicos pós-sinápticos.
Dentre os diferentes subtipos de receptores serotoninérgicos, a ativação dos
subtipos dos receptores 5-HT1A, 5-HT1B, 5-HT1D, 5-HT2B e 5-HT4
facilitaria a ação sobre determinados sintomas da depressão, enquanto a
ativação dos subtipos 5-HT2A, 5-HT2C, 5-HT3, 5-HT6 e 5-HT7 teria
efeitos opostos sobre outros sintomas da doença. O antidepressivo ideal
teria, portanto, uma propriedade agonista dos receptores 5-HT1A, 5-HT1B,
5-HT1D, 5-HT2B e 5-HT4 e antagonista dos receptores 5-HT2A, 5-HT2C,
5-HT3, 5-HT6 e 5-HT7 para obter uma boa eficácia nos vários sintomas que
constituem os transtornos depressivos. Em suma, imaginando a atuação do
antidepressivo ideal, ele seguiria os efeitos nos receptores serotoninérgicos,
conforme consta no Quadro 1.

Quadro 1 - Receptores serotoninérgicos e sua modulação para se obter um


efeito do tipo antidepressivo ideal
Receptor 5-HT1A Agonista

Receptor 5-HT1B Agonista

Receptor 5-HT2A Antagonista


Receptor 5-HT2B Agonista

Receptor 5-HT2C Antagonista

Receptor 5-HT3 Antagonista

Receptor 5-HT4 Agonista

Receptor 5-HT6 Antagonista

Receptor 5-HT7 Antagonista

Fonte: David, Gardier.8

Receptores 5-HT1 (5-HT1R) localizam-se tanto em neurônios pré-


sinápticos serotoninérgicos quanto pós-sinápticos não serotoninérgicos, e
assim como receptores 5-HT2C (5-HT2CR) são largamente difusos no
cérebro, parecendo exercer funções de excitabilidade neuronal. Uma
relevante relação de modulação que os receptores serotoninérgicos exercem
sobre os receptores dopaminérgicos tem sido um importante alvo das
pesquisas farmacêuticas no tratamento de vários transtornos mentais. Os
receptores 5-HT2C sofrem edição pós-transcricional no pré-mRNA, gerando
diversidade entre suas transcrições no RNA, sendo que uma edição seletiva
pós-transcricional pode estar envolvida na fisiopatologia dos transtornos
psiquiátricos por meio do comprometimento das interações da proteína G.
Além disso, podem influenciar a resposta terapêutica a agentes como
antipsicóticos atípicos. O desenvolvimento de drogas que visam
especificamente os receptores 5-HT2C permitirá uma melhor compreensão
de seu envolvimento na fisiopatologia de transtornos psiquiátricos, incluindo
esquizofrenia, ansiedade e depressão. Farmacologicamente, os receptores
5HT2C têm a capacidade de gerar vias de transdução do sinal de resposta
diferenciadas, dependendo do tipo de agonista de receptor 5HT2C.
Receptores 5-HT2B são encontrados no coração e no fundo gástrico.
Receptores 5-HT3 são visualizados desde o tronco cerebral e áreas corticais
cerebrais até o trato gastrintestinal, local esse onde se encontram os
receptores 5HT4 também. Os demais receptores 5-HT5-7 tiveram sua
descoberta mais recente, e suas funções ainda não são bem conhecidas.
Sabe-se que os receptores 5-HT5A são exclusivos do SNC, e supõe-se que
tenham algum papel na motricidade e na ansiedade. Receptores 5-HT6 estão
mais presentes no núcleo caudado e parecem ter um papel mais relacionado
à cognição, no aprendizado e no controle do apetite. O sistema
serotonérgico, por sua presença tanto na periferia quanto no SNC, é alvo de
diversas classes terapêuticas, desde medicamentos antienxaquecosos até
antidepressivos e ansiolíticos, passando por antieméticos ou pró-cinéticos.
No SNC, o 5-HT (serotonina) permanece um neurotransmissor intimamente
ligado à atividade de drogas antidepressivas. O aumento da
neurotransmissão 5-HT, via bloqueio da recaptação ou inibição da MAO, ou
a potencialização de seus efeitos por um antagonista do autorreceptor 5-
HT1A seletivo, participa diretamente dessa atividade. A complexidade
característica da rede serotonérgica central com suas projeções a partir da
rafe permite-lhe, por meio da regulação de outros sistemas de
neurotransmissão como o glutamato, GABA ou norepinefrina e dopamina,
modular todas as regiões do SNC. Sabendo que esses diferentes sistemas
desempenham um papel na fisiopatologia dos episódios depressivos, a
modulação dos subtipos de receptores de serotonina pode ser uma via
terapêutica promissora.

Acetilcolina
A acetilcolina (ACh) é um neurotransmissor sintetizado pela ação
catalisadora da colina acetiltransferase na reação entre a colina e acetil-CoA,
cujos produtos são acetilcolina e CoA, ocorrendo nos terminais nervosos.
Sua degradação é feita pela acetilcolinesterase. A sua atuação se dá através
de receptores muscarínicos e nicotínicos.
Receptores nicotínicos são ionotrópicos e estão presentes tanto no SNC
quanto no sistema nervoso periférico. Acredita-se que os receptores
neuronais nicotínicos tenham uma estrutura pentamérica composta por dois
tipos de subunidades. Os receptores musculares são compostos por quatro
subunidades: 2α, 1β, 1γ e 1ε, cada um com 4 domínios transmembrana,
sendo que o domínio M2 é o poro permeável a cátions.
Os receptores muscarínicos se dividem em duas famílias de receptores
metabotrópicos. A família M1 compreende os subtipos M1, M3 e M5; e a
família M2 compreende os subtipos M2 e M4. Ambas as famílias vão
modular de forma direta ou indireta a abertura de canais iônicos. A família
M1 fecha canais de potássio, enquanto a família M2 inibe os canais de cálcio
voltagem dependentes.
A acetilcolina atua na aquisição de novas informações e pela ativação do
sistema hipotálamo-hipófise em situações de estresse, desencadeando
respostas emocionais e fisiológicas. Além disso, contribui no processo de
assimilação de comportamentos. A degeneração do sistema colinérgico
associa-se com o desenvolvimento de síndromes demenciais.

Neuropeptídeos
Diferente do neurotransmissores clássicos, esta classe é sintetizada
diretamente no núcleo do neurônio por meio da transcrição do DNA e
tradução do RNAm, sendo então armazenados no complexo de Golgi e
transportados dentro de vesículas pelo canal axônico até chegar nas
terminações axônicas, onde sua liberação na sinapse requer estímulo elétrico
mais prolongado ou repetido, ou seja, precisam de uma atividade sináptica
mais sustentada. Após serem liberados na fenda sináptica e atuarem em
receptores de membrana, eles sofrem clivagem por peptidases existentes na
própria membrana celular neuronal, permitindo maior tempo de ação e maior
alcance. As pesquisas envolvem o papel dos neuropeptídeos em doenças
como drogadição, esquizofrenia, transtornos de humor, dores crônicas,
transtornos ansiosos, transtornos alimentares e autismo. Alguns exemplos de
neuropeptídeos: encefalinas, endorfinas, substância P, neuromedina B,
peptídeo intestinal vasoativo etc.

FISIOPATOLOGIA DOS TRANSTORNOS


MENTAIS
Por mais que se tente resumir como se iniciam os transtornos mentais, ainda
é um campo bastante indefinido da psiquiatria e das neurociências. Os
avanços são constantes, mas ainda há importantes limitações. Um modelo
bastante aceito, mas que mesmo assim apresenta limitações, é o de Diátese
Gênica – Estresse, em que o transtorno mental seria um somatório entre
uma predisposição genética com presença de fatores ambientais favoráveis
ao surgimento do transtorno e características de personalidade propícias.
• Fatores genéticos: alterações na migração, diferenciação, maturação
dos neurônios, bem como na sinaptogênese; produção anormal de
enzimas degradadoras de monoaminas; alterações nos transportadores
de neurotransmissores; disfunção na transdução de sinais; alterações
na plasticidade sináptica; alterações na síntese e transporte de
proteínas axônicas e dendríticas; falha nos mecanismos
compensatórios cerebrais; hiper ou hipofunção de receptores,
alterações na expressão de neurotransmissores etc.

• Fatores ambientais: drogas, intercorrências gestacionais, infecções,


estresse crônico, traumas, abuso moral e sexual, desnutrição etc.

• Fatores de personalidade: baixa resiliência, intolerância a estresse,


improdutividade, déficits cognitivos etc.
Referências
1. Stahl SM. Psicofarmacologia: bases neurocientíficas e aplicações práticas. Tradução de Patricia
Lydie Voeux; revisão técnica de Irismar Reis de Oliveira. 4. ed. Rio de Janeiro: Guanabara
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2. Chagraoui A, Thibaut F, Skiba M, Thuillez C, Bourin M. 5-HT2C receptors in psychiatric
disorders: A review. 2015.
3. Kapczinski F, Quevedo J, Izquierdo I, et al. Bases biológicas dos transtornos psiquiátricos: uma
abordagem translacional. Porto Alegre: Artmed; 2012.
4. Schechter LE, Qian L, Smith DL, Zhang G, Shan Q, Platt B, et al. Neuropharmacological
Profile of Novel and Selective 5-HT6 Receptor Agonists: WAY-181187 and WAY-208466.
2007.
5. Siafis S, Tzachanis D, Samara M, Papazisis G. Antipsychotic Drugs: From Receptor-binding
Profiles to Metabolic Side Effects. 2017.
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7. Beaulieu J-M, Espinoza S, Gainetdinov RR. Dopamine receptors – IUPHAR Review 13. 2014.
8. David DJ, Gardier AM. Les bases de pharmacologie fondamentale du système
sérotoninergique : application à la réponse antidépressive [The pharmacological basis of the
serotonin system: Application to antidepressant response]. Encephale. 2016 Jun; 42(3): 255-
63. French. doi: 10.1016/j.encep.2016.03.012. Epub 2016 Apr 23. PMID: 27112704.
9. Engen K, Agartz I. Anti-NMDA-reseptorencefalitt. 2016.
10. Beaulieu J-M, Gainetdinov RR. The Physiology, Signaling, and Pharmacology of Dopamine
Receptors. 2011.
11. Blacker CJ, Lewis CP, Frye MA, Veldic M. Metabotropic Glutamate Receptors as Emerging
Research Targets in Bipolar Disorder. 2017.
12. Jacobson LH, Vlachou S, Slattery DA, Li X, Cryan JF. The Gamma-Aminobutyric Acid B
Receptor in Depression and Reward. 2018.
13. Bear MF, Connors BW, Paradiso MA. Neurociências: desvendando o sistema nervoso. Porto
Alegre: Artmed; 2008.
14. Brandão C. Sistema nervoso [acesso em: 15 out. 2020]. Disponível em:
https://www.slideshare.net/CristinaBrandao/sistema-nervoso-73674560.
15. Toda Matéria. Sinapses [acesso em: 15 out. 2020]. Disponível em:
https://www.todamateria.com.br/sinapses/.
16. Tohmé V. A transmissão GABAérgica [acesso em 15 out. 2020]. Disponível em:
https://medium.com/mundo-molecular/a-transmissão-gabaérgica-de34c82188fd.
SIGLAS

• 5-HT Serotonina
• ACh Acetilcolina
• AMPA Ácido α-amino-3-hidroxi-5-metilisoxazol-4-propoiônico
• COMT Catecol-O-Metiltransferase
• CoA Coenzima A
• DNA Ácido Desoxirribonucleico
• GABA Ácido γ-aminobutírico
• IVIG Imunoglobulina Intravenosa
• L-DOPA 3,4-di-hidroxi-l-fenilalanina
• MAO Monoamina oxidase
• NMDA N-metil-D-aspartato
• Na+ Cátion Sódio
• RNAm Ácido Ribonucleico Mensageiro
• SNC Sistema Nervoso Central
• SNP Sistema Nervoso Periférico
• TDAH Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade
A descoberta acidental das propriedades antipsicóticas da clorpromazina
– primeiro antipsicótico lançado no ano de 1952 – revolucionou a prática
psiquiátrica, sendo a primeira droga com ações terapêuticas na psicose,
inaugurando um grupo que viria a ser chamado de antipsicóticos típicos. Nos
últimos 70 anos foram lançados dezenas de antipsicóticos (AP) no mercado,
porém, há de se destacar que todos oferecem a mesma eficácia clínica para
tratar sintomas psicóticos positivos (alucinações e delírios), com exceção do
antipsicótico atípico clozapina – de eficácia superior – que discutiremos em
momento oportuno.
Como vamos expor adiante, os antipsicóticos têm ação complexa em
vários receptores serotonérgicos, muscarínicos, histamínicos, adrenérgicos e
dopaminérgicos. Contudo, o que se destaca, em tese, na sua ação
antipsicótica, é o antagonismo nos receptores de dopamina D2,
responsáveis por causarem neurolepsia – um alentecimento dos processos
psíquicos e motores. Por isso são também chamados de neurolépticos.
A melhora inicial com o uso dos antipsicóticos acontece na ansiedade e
na agitação. Os efeitos nas alterações de pensamento acontecem mais
lentamente, sendo que a melhora mais significativa geral acontece nas
primeiras duas semanas de uso.
Ainda no fim da década de 1950, a clozapina foi sintetizada como a
primeira representante do grupo dos antipsicóticos atípicos – drogas que não
causam (ou causam menos) efeitos neurolépticos em doses terapêuticas.
Como o nome sugere, a grande indicação clínica dos neurolépticos é o
tratamento de sintomas psicóticos positivos, porém, a gama de uso – seja off-
label ou não – abrange: esquizofrenia, transtorno bipolar, transtornos do
espectro psicótico como psicose breve, transtorno delirante e transtorno
esquizoafetivo; depressão resistente, demências, transtorno obsessivo
compulsivo, agressividade, transtorno do espectro autista, transtornos do
neurodesenvolvimento, transtornos do movimento e transtornos do sono.
Antes de adentrarmos nos tópicos farmacológicos e clínicos dos
antipsicóticos, para facilitar a digestão de um assunto um tanto labiríntico,
torna-se indispensável entender a teoria dopaminérgica da esquizofrenia. Tal
teoria, clássica e até simplista, dá bases didáticas para o entendimento do
funcionamento terapêutico e do surgimento de efeitos adversos relacionados
ao bloqueio dopaminérgico dos AP.
1. HIPÓTESE DOPAMINÉRGICA DA
ESQUIZOFRENIA
Somente após a descoberta dos antipsicóticos tentou-se encontrar como,
farmacologicamente, uma droga atuava melhorando alucinações e delírios.
Alguns achados indiretos de disfunção dopaminérgica em pacientes
esquizofrênicos embasaram a teoria. Vamos pausar aqui e formar base
teórica antes de prosseguir! Precisamos falar sobre as vias dopaminérgicas e
a função fisiológica de cada uma delas. Acompanhe pela figura 1.

Figura 1 - Vias dopaminérgicas encefálicas


(a) – via dopaminérgica nigroestriatal. (b) – via dopaminérgica mesolímbica.
(c) – via dopaminérgica mesocortical. (d) – via dopaminérgica
tuberoinfundibular. (e) – via dopaminérgica sem função fisiológica
elucidada. CPFDL: córtex pré-frontal dorsolateral; CPFVM: córtex pré-
frontal ventromedial.

Fonte: Stahl SM.4

Existem 5 vias dopaminérgicas no encéfalo. Uma delas (e), tem origem


em várias regiões como mesencéfalo e hipotálamo e projeta-se para o
tálamo. Por não ter função fisiológica bem esclarecida, deixemo-la de lado
na nossa discussão e gastemos nossa atenção e dedicação às outras 4 vias.
A via que tem seus corpos neuronais se originando da substância negra
para os núcleos da base e estriado, talvez seja a via mais famosa da família –
a via nigroestriatal (a). É famosa por estar na gênese da doença de Parkinson
e, portanto, faz parte do sistema nervoso extrapiramidal e controla a
motricidade. A segunda via projeta-se de uma área chamada tegmentar
ventral (no mesencéfalo) para o nucleus accumbens (no sistema límbico). É
a via mesolímbica (b). Postula-se que essa via tenha relação direta com
emoções como sensação de prazer e euforia. A via mesocortical (c) também
nasce da área tegmentar ventral e direciona-se para diversas áreas do córtex
pré-frontal. Há uma relação estreita dessa via com processos cognitivos,
afetivos e funções executivas. A última via, a tuberoinfundibular, dirige-se
do hipotálamo para adeno-hipófise e faz controle de secreção de prolactina.
Enfim, do que trata a hipótese dopaminérgica da esquizofrenia? O
excesso de atividade dopaminérgica na via mesolímbica seria o responsável
pelo surgimento dos sintomas alucinatórios e delirantes em qualquer
condição associada a esses sintomas. Além disso, essa hiperatividade
dopaminérgica pode ter relação com agitação e agressividade nesses
pacientes. A origem desse aumento da ação de dopamina pode ter origem
pela disfunção glutamatérgica no córtex pré-frontal e no hipocampo.
Contudo, essa hiperatividade dopaminérgica não é observada nas outras
vias – tuberoinfundibular e nigroestriatal – e, ao contrário, observa-se déficit
da ação da dopamina na via mesocortical. Com calma sigamos: a depleção
dopaminérgica, especificamente, nas projeções para o córtex pré-frontal
dorsolateral (na via mesocortical) teria relação com os sintomas cognitivos e
alguns sintomas negativos observados na esquizofrenia; já a hipoatividade
de dopamina nas projeções para o córtex pré-frontal ventromedial (também
parte da via mesocortical) resultaria nos sintomas afetivos e noutros
sintomas negativos esquizofrênicos. Em suma:

• Atividade dopaminérgica (via mesolímbica) Sintomas positivos


• Atividade dopaminérgica (via mesocortical) Sintomas negativos e
cognitivos

2. ANTIPSICÓTICOS TÍPICOS
Volte para o tópico anterior se não o entendeu; a compreensão dele é
fundamental para o que se segue. Tendo o domínio da hipótese
dopaminérgica da esquizofrenia, o entendimento da ação terapêutica e o
aparecimento de efeitos indesejados dos antipsicóticos flui com facilidade.
Os AP típicos (também conhecidos como convencionais ou de primeira
geração) têm ação antagonista nos receptores dopaminérgicos D2. De fato,
esse antagonismo dopaminérgico é característica fundamental de todos os
antipsicóticos independentes da sua geração. Pois bem, recordemos que a
primeira família de AP deriva de um achado acidental e não há de se esperar
seletividade de um acidente. Aonde quero chegar: lembre-se que o excesso
de atividade dopaminérgica na esquizofrenia (ou em qualquer condição que
curse com psicose) restringe-se à via mesolímbica, no entanto, o bloqueio
dopaminérgico dos antipsicóticos convencionais NÃO é seletivo para essa
via, atingindo, portanto, todas as vias dopaminérgicas encefálicas. Quais as
consequências?
O antagonismo D2 na via mesolímbica resultará na eficácia da droga em
diminuir alucinações e delírios pelo decréscimo da atividade dopaminérgica.
Daí também se deriva o efeito de neurolepsia, já que esse bloqueio
dopaminérgico atinge o centro de prazer no nucleus accumbens, ocasionando
mais apatia, anedonia, pouca motivação em interação social. A neurolepsia é
também gerada pelo bloqueio dopaminérgico que atinge a via mesocortical –
via essa já deficiente de atividade dopaminérgica. O resultado é o
agravamento dos sintomas negativos, afetivos e cognitivos da esquizofrenia
com o uso de antipsicóticos típicos.
Seguindo a não seletividade do antagonismo D2 dos antipsicóticos de
primeira geração, chegamos à via nigroestriatal. Como já falado, essa via
tem relação estreita com a motricidade. O uso de AP induz distúrbios do
movimento, os sintomas extrapiramidais (SEP). De forma mais aguda causa
parkinsonismo (tremor, rigidez, bradicineia, sinal da roda denteada,
sialorreia e diminuição da mímica facial), distonia (alteração no tônus
muscular associado à torção muscular lenta, sustentada e muitas vezes
dolorosa), acatisia (inquietação subjetiva e motora) e síndrome neuroléptica
maligna – SNM (condição rara que cursa com hipertermia, rigidez muscular
intensa e difusa, sintomas desautômicos e confusão mental). Com o bloqueio
dopaminérgico crônico, há um rearranjo e um consequente aumento (up-
regulation) de receptores D2, o que provocará os chamados movimentos
discinésicos tardios induzidos por neurolépticos – ou simplesmente
discinesia tardia. É caracterizada por movimentos de coreia e/ou atetose, que
ocorrem numa incidência de 5% a cada ano de uso de antipsicóticos típicos.
Para mais detalhes desses e de outros distúrbios do movimento, sugerimos a
leitura do capítulo Transtornos do movimento induzidos por medicamentos.
Por fim, temos o bloqueio da via tuberoinfundibular, que ocasionará um
aumento da secreção de prolactina (os neurônios dopaminérgicos inibem a
secreção da prolactina e, estando bloqueados, deixam de inibi-la). Na clínica,
observaremos a presença de galactorreia, amenorreia e até disfunção sexual
(quadro 1).

Quadro 1 - Efeitos do antagonismo D2

Vias dopaminérgicas Efeito esperado

Diminui sintomas positivos


Via mesolímbica
Piora dos sintomas negativos

Via mesocortical Piora dos sintomas negativos, cognitivos e afetivos


Via nigroestriatal Parkinsonismo

Acatisia

Distonia

Síndrome neuroléptica maligna

Discinesia tardia (com uso crônico)

Galactorreia

Via tuberoinfundibular Amenorreia

Disfunção sexual

Fonte: elaborado pelo autor.

Os efeitos provocados pelos antipsicóticos não se restringem às ações


dopaminérgicas. Com potências de antagonismo diferentes entre si, os APs
típicos têm ação anti-histamínica H1 causando aumento de peso e
sonolência; de bloqueio ɑ1-adrenérgico provocando hipotensão ortostática,
tontura e leve sonolência; e, pelo antagonismo colinérgico muscarínico M1,
pode induzir boca seca, turvação visual, constipação e retenção urinária.
Mediado por essa ação colinérgica, alguns antipsicóticos tem menor
potencial de cursarem com SEP. Aqui abro um parêntese.
Por que o antagonismo colinérgico diminuiria a incidência de sintomas
extrapiramidais? Os neurônios dopaminérgicos da via nigroestriatal fazem
conexão com neurônios colinérgicos de forma que a dopamina liberada inibe
a secreção de acetilcolina, estabelecendo uma relação de balança: quando
uma está em “baixa” o outro está em “alta”. O bloqueio dopaminérgico,
portanto, aumenta a liberação de acetilcolina induzindo os distúrbios
cinéticos já falados nesse capítulo. É de se prever então que a ação
anticolinérgica traga a relação de balança de volta ao equilíbrio, amenizando,
assim, os efeitos extrapiramidais. Sintetizando: ação anticolinérgica na via
nigroestriatal ameniza sintomas extrapiramidais.
De forma que nos sirva para um melhor entendimento, podemos dividir
os antipsicóticos típicos entre os grupos de alta potência e baixa potência. A
potência em questão se refere à afinidade do antipsicótico pelo receptor D2.
As implicações práticas dessa divisão é que AP de baixa potência necessita
de doses maiores do que os de alta potência, sem que isso interfira na sua
eficácia (ambos partilham da mesma eficácia clínica). Uma segunda
consequência é a de que os antipsicóticos de alta potência tendem a induzir
mais efeitos adversos relacionados ao bloqueio D2 e os de baixa potência
relacionam-se mais com efeitos colaterais ligados aos outros receptores
(muscarínicos, ɑ1-adrenérgicos e histamínicos).
Importante clarificar que antipsicóticos de alta potência podem induzir
efeitos adversos mediados por efeitos colinérgicos, adrenérgicos e
histamínicos (numa menor frequência que os de baixa potência), bem como
os AP de baixa potência podem induzir efeitos de bloqueio dopaminérgicos
também em menor frequência que os antipsicóticos de alta potência.

Figura 2 – Efeitos adversos segundo a potência dos antipsicóticos


Fonte: elaborada pelo próprio autor

3. ANTIPSICÓTICOS ATÍPICOS
Essa subdivisão dos antipsicóticos é chamada de atípica (ou de segunda
geração) devido à sua capacidade de produzir menos efeitos extrapiramidais
(e menos hiperprolactinemia) em doses clinicamente eficazes em
comparação aos AP convencionais. Essa classe tem como característica
farmacológica o fato de, além de bloquear os receptores D2, antagonizam
também os receptores 5HT2A (receptores de serotonina). Essa ação nesses
receptores serotonérgicos é de crucial importância, como veremos adiante,
para a redução de SEP e da secreção de prolactina, sem que haja perda de
eficácia nos sintomas psicóticos positivos.
Primeiro vamos à diminuição de SEP mediada pelos receptores 5HT2A. O
estímulo serotonérgico nesse receptor, no fim de uma cascata neuronal
complexa, inibe a liberação de dopamina no estriado. Ao passo que o seu
bloqueio fará o contrário: libera dopamina nessa região cerebral. Note que,
apesar de manter o bloqueio dopaminérgico na via nigroestriatal a exemplo
dos AP típicos, o bloqueio 5HT2A dos antipsicóticos atípicos promove uma
liberação de dopamina que acaba tendo função compensatória. O resultado
clínico é que os AP de segunda geração causam menos efeitos
extrapiramidais, mantendo a mesma eficácia em reduzir alucinações e
delírios. Essa cadeia está mais bem desmembrada no esquema a seguir.

Figura 3 – Ação serotonérgica na liberação de dopamina

Fonte: elaborada pelo próprio autor


DA: Dopamina

E como o antagonismo 5HT2A diminui a incidência de


hiperprolactinemia? Como a dopamina, a serotonina, na via
tuberoinfundibular, tem papel na liberação de prolactina. Enquanto a
dopamina inibe a secreção, a serotonina estimula a liberação de prolactina.
Pensemos: quando do uso de um AP convencional bloqueamos a dopamina
na via tuberoinfundibular, estimulamos a liberação de prolactina. Contudo,
no uso de AP atípico, a ação serotonérgica de bloqueio do receptor 5HT2A
inibe a secreção de prolactina. O resultado clínico é a menor incidência de
hiperprolactinemia (amenorreia e galactorreia).
Importante reconhecer que esse aumento da atividade dopaminérgica nas
vias nigroestriatal e tuberoinfundibular não acontece na via mesolímbica
pois, se isso ocorresse, teríamos piora dos sintomas psicóticos como
debatido no tópico hipótese dopaminérgica da esquizofrenia.
Além das ações dopaminérgicas e serotonérgicas apresentadas há pouco,
os AP atípicos possuem mais espectros de ações em outros sítios
farmacológicos que conferem a eles várias propriedades e usos clínicos:

• Ação antidepressiva: a quetiapina e a ziprasidona apresentam ação


de inibição na recaptura de serotonina. A quetiapina, clozapina, o
aripiprazol e a risperidona tem ação antagonista nos receptores ɑ2-
adrenérgicos que é o mecanismo antidepressivo da mirtazapina (vide
capítulo Antidepressivos).
• Ação antimaníaca: todos os antipsicóticos têm ação antimaníaca, o
destaque para os atípicos por sua maior eficácia comprovada.

• Ação ansiolítica: é crescente o uso e as evidências de ações dos APs


atípicos na ansiedade, seja como potencializadores no tratamento
padrão, seja usado em monoterapia, como a quetiapina. O mecanismo
por trás dessa função não está esclarecido, mas pode ter relação com
as ações sedativas desses fármacos.
• Ação sedativo-hipnótica: a sedação dos antipsicóticos atípicos tem
basicamente três mecanismos distintos: atividade anti-histamínica
(clozapina, quetiapina e olanzapina), atividade anticolinérgica
(clozapina, quetiapina e olanzapina) e o antagonismo ɑ1-adrenérgico
(clozapina, quetiapina e risperidona).

• Ação cardiometabólica: a princípio, o antagonismo dos receptores


histamínicos e 5HT2C desencadeia uma cascata de aumento de peso,
levando à obesidade, em seguida resistência insulínica, dislipidemia e
diabetes, com desfecho em eventos cardiovasculares. Contudo, pode
haver um mecanismo em um receptor desconhecido no fígado,
musculoesquelético e tecido adiposo, que aumenta,
independentemente da relação com o peso, taxas de triglicerídeos e
resistência insulínica. Essa atividade cardiometabólica desperta a
necessidade do clínico em monitorar peso, índice de massa corpórea
(IMC), taxas de triglicerídeos e glicemia de jejum antes (para
identificar taxas basais) e durante o tratamento. Esse efeito danoso
cardiometabólico dos AP atípicos pode ser gradado da seguinte
forma:
Baixo risco metabólico: aripriprazol, ziprazidona e lurasidona.

Médio risco metabólico: risperidona, paliperidona e quetiapina.

Alto risco metabólico: clozapina e olanzapina.

3.1. E NA PRÁTICA?
Elencamos quatro antipsicóticos convencionais e sete antipsicóticos atípicos,
com forte presença na nossa praxe clínica, para aprofundarmos mais um
pouco nos seus aspectos práticos que são tão caros para o médico
generalista.

4. ANTIPSICÓTICOS TÍPICOS
4.1. Haloperidol
O haloperidol é um antipsicótico convencional de alta potência do grupo das
butirofenonas. Tem meia-vida de 15 a 37 horas na sua formulação oral e,
com isso, pode ser administrado em dose única diária. A dose usual para
episódio agudo de esquizofrenia gira em torno de 10-15 mg/dia. O
haloperidol pode ser usado para tranquilização rápida na sua forma
parenteral intramuscular. A apresentação da ampola é de 5 mg e pode ter sua
dose repetida a cada 30 minutos em caso de ausência de resposta com o
máximo de 6 aplicações (30 mg).
A sua formulação de depósito – haloperidol decanoato – atinge pico
plasmático em 3 a 9 dias e tem meia-vida de 21 dias; apesar de, por
comodidade posológica, poder ser aplicado uma vez por mês. Devido à
latência para atingir pico plasmático, quando prescrito o haloperidol
decanoato, a dose oral deve ser mantida por uma a duas semanas antes de ser
suspendida. Perceba que essa não é uma formulação a ser usada na urgência,
pois, para evitar efeitos colaterais prolongados, é preciso que se saiba qual a
dose oral tolerada pelo paciente e, em seguida, converter essa dose oral em
dose de depósito. Cada ampola de haloperidol decanoato (50 mg) equivale a
uma dose diária de haloperidol oral de 2,5 mg. Hipoteticamente, se temos
um paciente que use haloperidol 10 mg/dia oral, podemos substituir essa
dose, sem perda de eficácia, pelo haloperidol decanoato 200 mg/mês (4
ampolas/mês). Não se deve aplicar mais que 3 ml (3 ampolas) no mesmo
local.

4.2. Clorpromazina
A clorpromazina é um antipsicótico típico de baixa potência do grupo das
fenotiazinas. Tem meia-vida de 24 horas. Pelo seu efeito sedativo, há
preferência de administração de maior parte da dose à noite. Doses usuais
para tratamento antipsicótico em esquizofrênicos ficam entre 300 mg a 600
mg, contudo, a progressão da dose deve ser gradual para evitar hipotensão,
tontura ou sonolência severa. A clorpromazina injetável intramuscular se
mostra eficaz para controle de agitação psicomotora na dose de 50 mg, com
vantagens de ser uma medicação acessível e com poder sedativo. Porém,
vem sendo deixada de lado dos guidelines para agitação pelo risco de
complicações cardiovasculares com destaque para a hipotensão.

4.3. Periciazina
É uma fenotiazina de baixa potência. Sua meia-vida varia de 6 a 12 horas.
As doses usais para tratamento antipsicótico fica entre 15 e 30 mg. Pode ser
dividida em 2 tomadas, sendo a maior parte da dose à noite, pela sua ação
sedativa. A sua apresentação líquida é muito utilizada em nosso meio para
crianças com agitação e agressividade. São duas concentrações diferentes, de
1% e 4%. Cada gota da concentração de 4% equivale a 1 mg.

4.4. Tioridazina
Também um antipsicótico de baixa potência do grupo das fenotiazinas, a
tioridazina tem meia-vida de 24 horas. Tem equivalência de dose com a
clorpromazina (cada 100 mg equivalem a 100 mg da clorpromazina) e, com
isso, sua faixa terapêutica antipsicótica é de 300 mg a 600 mg. Uma
particularidade é o seu efeito arritmogênico, podendo induzir alargamento no
intervalo QT ou mesmo arritmias ventriculares e, por isso, é importante o
acompanhamento com eletrocardiograma no início do tratamento e a cada
reajuste importante de dose. Assim como a clorpromazina, a sua progressão
de dose deve ser gradual.

5. ANTIPSICÓTICOS ATÍPICOS
5.1. Aripiprazol
O aripiprazol é o único dessa lista a ter ação agonista parcial dopaminérgica
(para mais detalhes vide o capítulo Farmacologia aplicada à psiquiatria).
Tem meia-vida de 75 horas. Causa significativamente menos sintomas
extrapiramidais comparados a AP típicos e à risperidona, bem como causa
comparativamente menos alterações de colesterol e ganho de peso em
comparação com quetiapina, risperidona, clozapina e olanzapina. Também
tem baixo risco de hiperprolactinemia.
O aripiprazol pode ser utilizado em monoterapia para mania, mas
aparentemente tem pouca eficácia da depressão bipolar. No entanto, pode ser
usado como adjuvante em depressão unipolar com dose que varia entre 5 a
10 mg/dia. Na esquizofrenia, as doses usuais variam de 10 a 30 mg. Seu uso
está bem indicado para transtorno do espectro autista para problemas
comportamentais e irritabilidade.

5.2. Ziprasidona
A ziprasidona tem meia-vida de 7 horas. Deve ser administrada com dose
fracionada em pelo menos duas vezes e sempre deve ser usada com a
alimentação (pelo menos 500 calorias) para melhorar sua absorção. A dose
média para tratamento antipsicótico é de 80 a 160 mg/dia. Pelo seu potencial
de alargamento QT, recomenda-se a monitorização do ritmo cardíaco com
eletrocardiograma.
Existe a formulação parenteral intramuscular para tranquilização rápida.
A dose é de 10 mg, que pode ser repetida a cada hora ou mesmo 20 mg por
aplicação com repetição da dose a cada 2 horas. A dose máxima é de 40
mg/dia.
5.3. Lurasidona
A lurasidona foi recentemente lançada no Brasil com certo entusiasmo, pois
se juntou ao pequeno grupo de drogas que podem tratar depressão bipolar
em monoterapia. Tem meia-vida de 18 horas e sua absorção pode aumentar
em até duas vezes se ingerida com refeição em comparação se for
administrada em jejum. Sua dose para esquizofrenia varia de 40 a 120
mg/dia. Para depressão bipolar, a dose inicial é de 20 mg, podendo chegar a
120 mg/dia.

5.4. Risperidona
É o antipsicótico atípico de menor custo, todavia, dos listados aqui, é o
atípico que mais se relaciona com efeitos extrapiramidais e
hiperprolactinemia, especialmente em doses maiores que 6 mg/dia. Sua
meia-vida chega a 24 horas. As doses usuais ficam em torno de 2 a 8 mg/dia,
trazendo pouco benefício quando ultrapassam a dose de 10 mg. Atentar para
início gradual devido a seu potencial hipotensor pela ação em receptores ɑ1-
adrenérgicos. Assim como o aripiprazol, a risperidona está indicada pelo
FDA (Food and Drug Administration) para tratamento de irritabilidade e
alterações de comportamento no autismo.
Existe a formulação de depósito com meia-vida de 3 a 6 dias e com
eliminação que chega até 8 semanas. As doses usuais ficam entre 25 a 50 mg
aplicadas a cada 2 semanas. A formulação oral deve permanecer por 3
semanas após aplicada a primeira dose da apresentação de depósito.

5.5. Quetiapina
A quetiapina tem um perfil farmacológico complexo que lhe confere um
espectro de ação e usos clínicos diversos. Sua meia-vida é de 7 a 12 horas. A
quetiapina pode ser utilizada como hipnótico-sedativo em doses menores (25
a 100 mg) na formulação de liberação imediata; como estabilizador de
humor, em monoterapia, com ação antimaníaca ou antidepressiva em doses
médias de 300 mg/dia e como antipsicótico em doses médias de 400 a 800
mg/dia. A quetiapina também vem se firmando como opção em monoterapia
para o tratamento de transtorno de ansiedade generalizada nas doses entre 50
e 150 mg/dia na formulação de liberação prolongada. A apresentação de
liberação prolongada, por apresentar maior estabilidade sérica, deve ser
preferida também para tratamento antipsicótico e estabilizador de humor. É
utilizada também como potencializador antidepressivo nas depressões
unipolares. Pelo seu efeito sedativo e hipotensor, quando prescrita
ambulatoriamente, deve ter subida paulatina de dose (entre 50 e 100 mg/dia
até dose almejada). A incidência de transtornos do movimento com a
quetiapina são raros mesmo em doses altas. É comum o aumento de peso e a
sedação.

5.6. Clozapina
A clozapina é o único antipsicótico que se mostra superior a qualquer outro
AP. Tem meia-vida de 10 a 17 horas e, por isso, deve ter sua dose
fracionada, com sua maior parte concentrada à noite devido efeito sedativo.
Deve ser iniciada com dose de 25 mg e ter sua dose aumentada de forma
paulatina de 25 em 25 mg a cada dois dias até chegar em 100 mg/dia. A
partir daí, sua dose deve subir de 50 em 50 mg a cada dois dias até pelo
menos 300 mg/dia. Sua faixa terapêutica usual é de 300 a 600 mg/dia;
podem existir pacientes que necessitem de doses de até 900 mg/dia. A
clozapina é a única droga capaz de reduzir suicídio em pacientes
esquizofrênicos. Não induz efeitos extrapiramidais significantes, não eleva
prolactinemia e não induz discinesia tardia.
Está indicada para casos refratários (quando há falência de pelo menos
outros dois antipsicóticos). A sua indicação tem essa restrição devido a
efeitos colaterais potencialmente fatais. Além de diminuir o limiar
convulsivo, ela relaciona-se com cardiotoxicidade e agranulocitose. Pela
agranulocitose, que pode ocorrer em 0,5% a 2% dos pacientes, todo paciente
que faz uso de clozapina deve ter monitorização hematológica com
hemogramas semanais pelas primeiras 18 semanas (70% dos casos de
agranulocitose acontecem nessas 18 semanas iniciais de tratamento – vide
quadro 2). Após esse período, os hemogramas passam a ser repetidos
mensalmente enquanto o paciente fizer uso da droga. Se houver leucopenia,
a clozapina deve ser descontinuada progressivamente ao longo de até 2
semanas, a menos que haja risco iminente de agranulocitose.
Quadro 2 - Monitoramento hematológico da clozapina

Em qualquer fase do Leucócitos > 3.500/mm3


Manter o tratamento
tratamento Neutrófilos > 2.000/mm3

Leucócitos < 3.500/mm3, > 3.000/mm3


18 semanas iniciais
Aumentar alerta Neutrófilos < 2.000/mm3, > 1.500/mm3
(dois hemogramas
por semana) Leucócitos < 3.000/mm3, > 2.500/ mm3
Após 18 semanas
Neutrófilos < 1.500/mm3, > 1.000/mm3

Leucócitos < 3.000/mm3


18 semanas iniciais Neutrófilos < 1.500/mm3
Interromper o Plaquetas < 50.000/mm3
tratamento
Leucócitos < 2.500/mm3
Após 18 semanas
Neutrófilos < 1.000/mm3

Não utilizar a Em qualquer fase do Leucócitos < 2.000/mm3


clozapina novamente tratamento Neutrófilos < 500/mm3

Fonte: Carvalho, Nardi, Quevedo.22

5.7. Olanzapina
A olanzapina tem meia-vida média de 33 horas. É o antipsicótico que mais
induz ganho de peso e um dos menos descontinuados. É indicada, para além
de transtornos psicóticos, como antimaníaco e, em combinação com a
fluoxetina, pode ser opção como tratamento para depressão bipolar. As doses
para esquizofrenia e transtorno bipolar em fase aguda ficam entre 7,5 mg a
20 mg/dia
A sua formulação injetável para controle de agitação psicomotora fica
em média de 10 mg por dose, podendo ser repetida a cada 2 horas até o
máximo de 30 mg.
Quadro 3 - Antipsicóticos (principais representantes)

Composto Dose diária habitual (mg) Variação da dose possível (mg)

Típicos

Clorpromazina 200-800 25-2000

Flufenazina 2-20 0,5-30

Tioridazina 150-600 20-800

Haloperidol 2-20 1-100

Perfenazina 8-32 4-64

Periciazina 15-30 5-300

Pimozida 2-6 1-10

Tiotixeno 5-30 2-30

Trifluoperazina 5-20 2-30

Atípicos

Aripiprazol 10-15 5-30

Amisulprida 400-800 100-1200

Clozapina 150-450 12,5-900

Lurasidona 40-160 20-160

Olanzapina 5-10 2,5-20

Quetiapina 300-500 25-750

Risperidona 2-8 0,25-16


Ziprasidona 80-160 20-160

Fonte: adaptado e modificado de Graeff, Guimarães; Cordioli, Gallois,


Isolan.3, 9

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SIGLAS

• AP Antipsicóticos
• FDA Food and Drug Administration
• IMC Índice de Massa Corpórea
• SEP Sintomas extrapiramidais
• SNM Síndrome Neuroléptica Maligna
O desenvolvimento das drogas antidepressivas iniciou no começo da
década de 1950, a chamada década de ouro da psicofarmacologia, com a
descoberta acidental tanto dos inibidores da monoaminoxidase (IMAOs)
quanto dos tricíclicos.
Na década de 1950, foi observado que pacientes com tuberculose que
faziam tratamento com iproniazida apresentavam, como “efeito colateral”,
uma elevação do humor. Devido a esse efeito da medicação, estudos
subsequentes foram realizados com pacientes deprimidos, mas que não
tinham tuberculose, tendo sido observada melhora dos sintomas em 70%
dos pacientes. A partir daí, deu-se início ao uso dos IMAOs para o
tratamento de pessoas com transtorno depressivo maior (TDM).
Paralelamente ao estudo da iproniazida, ainda na década de 1950,
estavam sendo estudadas as propriedades de uma nova droga para o
tratamento da esquizofrenia, criada a partir da modificação da estrutura da
clorpromazina. Apesar de a substância não se mostrar eficaz para melhorar
os sintomas psicóticos dos pacientes, foi observada melhora nos sintomas
depressivos e retardo psicomotor em pacientes com diferentes tipos de
transtornos psiquiátricos, após 6 semanas de terapia. Assim, no final dos
anos 1950, surgiu a imipramina, o primeiro antidepressivo tricíclico
(ADT) aprovado para o tratamento da depressão.
Com a descoberta da imipramina e iproniazida, foi observado que, por
meio de seu mecanismo de ação, a concentração de dois neurotransmissores
– serotonina e noradrenalina (NA) – aumentavam em certas áreas do
cérebro, melhorando a depressão. Devido a esse fato, foi aventada a
hipótese de que o TDM poderia estar relacionado à deficiência de
serotonina ou noradrenalina em locais específicos do cérebro, o que ficou
conhecido como teoria monoaminérgica da depressão, a qual será discutida
mais a frente neste capítulo.
Durante cerca de 30 anos, os ADTs foram considerados a primeira linha
de tratamento para o TDM, até o final da década de 1980, com o advento da
fluoxetina, o primeiro inibidor seletivo da receptação da serotonina (ISRS),
aprovado pelo FDA para o tratamento de depressão.
Comparado à época em que sua indicação original deu o nome a essa
classe de medicamentos, os antidepressivos se tornaram uma categoria
complexa e heterogênea, tendo, nos dias atuais, indicações que vão muito
além do tratamento da depressão, tais como: transtorno do pânico,
transtorno da ansiedade generalizada, transtorno obsessivo-compulsivo
(TOC), transtorno do estresse pós-traumático, bulimia nervosa, transtorno
disfórico pré-menstrual; além de outras condições clínicas, como dor
neuropática, fibromialgia, fogachos em mulheres pós-menopausa, profilaxia
para migrânea e cefaleias tensionais, entre outros.

1. HIPÓTESE MONOAMINÉRGICA DA
DEPRESSÃO
O advento da iproniazida e da imipramina na segunda metade do século 20
permitiu não somente um tratamento eficaz para a depressão, mas também
o surgimento de algumas hipóteses a respeito da influência das monoaminas
na etiologia da depressão. Nos anos 1960 e 1970, ganhou força a teoria de
que uma deficiência noradrenérgica ou serotoninérgica em algumas áreas do
cérebro seria a base dessa patologia. Com a descoberta da ação inibitória da
iproniazida na monoaminoxidade (MAO), surgiu a primeira dessas teorias,
a hipótese catecolaminérgica. Essa hipótese sugeria que uma queda nos
níveis de noradrenalina na fenda intrassináptica estaria associada à
patologia da depressão.
Posteriormente, pesquisas demonstraram que a administração de
triptofano (precursor da serotonina) a animais depressivos, potencializava a
ação dos IMAO. Outro achado importante, foi a descoberta da ação dos
ADTs na recaptação da serotonina, o que levou ao surgimento da teoria
serotoninérgica da depressão, a qual dizia que níveis deficientes de
serotonina em certas regiões do cérebro levariam à depressão. Com o
surgimento da fluoxetina, essa teoria ganhou mais força.
No entanto, estudos mais recentes sugerem que a hipótese das
monoaminas precisa ser revisada, visto que não é uma simples depleção de
monoaminas que leva à depressão. Isso porque, dentre outros fatores, níveis
baixos de monoaminas em indivíduos saudáveis não gera sintomas
depressivos. Além disso, a diminuição de monoaminas ou de triptofano não
pioram os sintomas em indivíduos depressivos.
Assim, a hipótese revisada das monoaminas sugere que a sua depleção
desempenha um papel modulador, de modo a influenciar outros sistemas
neurobiológicos (por exemplo, sinalização intracelular ou outros sistemas
de neurotransmissores e neuropeptídeos) ou então que tem maior influência
no contexto de estressores.

2. CARACTERÍSTICAS GERAIS DOS


ANTIDEPRESSIVOS
Classicamente, os antidepressivos bloqueiam um ou mais dos
transportadores de monoaminas (serotonina, noradrenalina e/ou dopamina).
Esse mecanismo de ação dos antidepressivos nos transportadores de
monoaminas pode elevar rapidamente os níveis de monoaminas em
algumas áreas do cérebro. Apesar de essencial, esse mecanismo não explica
a demora para se obter resposta clínica (de 2 a 4 semanas, em média).
Então, o que estaria ligado a esse atraso na resposta clínica?
Vamos tentar explicar essa questão de uma forma mais prática. Um
sujeito em um episódio depressivo apresenta uma depleção de
neurotransmissores, o que torna seus receptores supersensíveis ou
suprarregulados. Quando iniciamos o tratamento desse indivíduo com um
antidepressivo, teoricamente, sofrerá reversão dessa suprarregulação
patológica. Dessa forma, quando existe um aumento agudo dos
neurotransmissores na fenda sináptica, por meio do bloqueio da MAO ou
das bombas de recaptação das monoaminas, vai ocorrendo uma
infrarregulação adaptativa e dessensibilização dos receptores de
neurotransmissores pós-sinápticos. O intervalo de tempo necessário para a
adaptação dos receptores é consistente com os efeitos clínicos tardios dos
antidepressivos e também com o desenvolvimento de tolerância aos efeitos
colaterais dos antidepressivos.

2.1. Classificação Dos Antidepressivos


Os antidepressivos podem ser classificados de maneiras distintas, podendo
ser categorizados de acordo com a estrutura química (como os ADTs) ou as
propriedades farmacológicas (como os ISRS). No caso da classificação
pelos mecanismos de ação, acabou-se por originar um agrupamento
arbitrário de antidepressivos em um conjunto chamado “antidepressivos
atípicos”, para fazer referência àqueles que possuem mecanismos próprios e
únicos individualmente. Nesse subgrupo, encontram-se, portanto, os
antidepressivos com diferentes mecanismos de ação, os quais não são
classificados em outros subgrupos.
Neste capítulo, vamos utilizar as três formas de classificação, de acordo
com o que é mais comum na prática clínica.

2.2. Antidepressivos tricíclicos


Apesar de terem grande eficácia, os ADTs passaram a ter uso em menor
escala, em especial pelo advento de antidepressivos mais modernos e
potencialmente menos tóxicos, como os ISRS. Como seu mecanismo de
ação ainda era desconhecido na época da descoberta, os tricíclicos
receberam esse nome devido à estrutura química, que consiste em três anéis
benzenos e uma cadeia lateral.
Os ADTs atuam inibindo a recaptação da serotonina e noradrenalina na
fenda sináptica, o que leva ao aumento dos níveis desses
neurotransmissores. Eles podem ser subdivididos em duas categorias,
segundo a sua estrutura: aminas terciárias (possuem dois grupos metilas na
cadeia lateral) e aminas secundárias (com um grupo metila na cadeia
lateral). No quadro a seguir é possível observar as principais características
de cada uma delas.

Quadro 1 - Antidepressivos tricíclicos segundo grupos metila na cadeia


lateral

Aminas Secundárias Aminas Terciárias

Atuam mais na recaptação de noradrenalina Atuam mais na recaptação de serotonina

Mais efeitos colaterais (anticolinérgicos e anti-


Menos efeitos colaterais
histamínicos)

Ex.: nortriptilina, desipramina Ex.: amitriptilina, clomipramina, imipramina


Fonte: Silva e Galdino.7

Além de atuarem bloqueando a recaptação da noradrenalina e da


serotonina, os ADTs atuam ainda no bloqueio de receptores ɑ1 e ɑ2
adrenérgicos pós-sinápticos; no bloqueio de receptores muscarínicos pós-
sinápticos; no bloqueio dos receptores H1 pós-sinápticos da histamina e
canais de sódio sensíveis à voltagem. Dessa forma, seus efeitos colaterais
estão relacionados ao seu sítio de ação, como pode ser visto no quadro a
seguir.

Quadro 2 - Efeitos colaterais dos ADT

Receptor Envolvido Efeito Colateral Observado

Bloqueio de alfa-1 Tontura, sedação e hipotensão

Bloqueio H1 Sedação e ganho de peso

Bloqueio M1 Boca seca, constipação, sedação e visão turva

Bloqueio de canais iônicos Arritmias e convulsões (especialmente em overdose)

Fonte: Silva e Galdino.7

As principais contraindicações ao uso dos tricíclicos são: infarto agudo


do miocárdio recente (3 a 4 semanas), bloqueio de ramo cardíaco, glaucoma
de ângulo estreito, prostatismo e íleo paralítico.
Os ADTs, em casos de overdose, podem bloquear uma série de
receptores, como os de serotonina, alfa-adrenérgicos periféricos,
histamínicos e muscarínicos, tanto na periferia quanto no sistema nervoso
central. Os efeitos mais comuns são: hipotensão, taquicardia, febre, pele,
boca seca, diminuição do peristaltismo e confusão mental, além de
prolongamento do intervalo QT devido ao bloqueio do canal de potássio, o
que pode causar torsades de pointes.
Antes de iniciar um ADT, é importante conversar com o paciente a
respeito dos efeitos colaterais mais comuns e explicar que a resposta ao
tratamento não é esperada antes de 4 semanas, depois de se atingir a dose
terapêutica; por sua vez, para o tratamento da insônia, o efeito pode ser
imediato. Caso não haja melhora dos sintomas depressivos em 6 a 8
semanas, deve-se considerar aumentar a dose ou considerar trocar a
medicação, em caso de ausência de resposta.
Normalmente, os ADTs possuem efeitos colaterais pouco tolerados
pelos pacientes, principalmente em doses maiores. Então, o que fazer com
relação aos efeitos colaterais? Esperar, esperar e esperar. Se os efeitos
persistirem, pode-se tentar diminuir a dose ou considerar trocar por outra
classe de antidepressivos.

2.3. Inibidores Seletivos da Recaptação da Serotonina


Os ISRS são antidepressivos frequentemente utilizados como primeira
linha, devido à sua eficácia, tolerabilidade e relativa segurança em casos de
overdose. Suas indicações clínicas vão além do TDM, abrangendo
transtornos de ansiedade, TOC, transtorno disfórico pré-menstrual,
transtornos alimentares, entre outros.
Os efeitos colaterais dos ISRS são relativamente benignos, devido à sua
seletividade. Nenhum ISRS afeta, significativamente, receptores ɑ-
adrenérgicos, muscarínicos ou histamínicos, com a exceção da paroxetina,
que tem uma fraca ação antagonista dos receptores muscarínicos. No
Quadro 3, é possível observar os efeitos colaterais mais comuns aos ISRS.
Assim como o próprio nome sugere, o mecanismo de ação dos ISRS
envolve a inibição seletiva do transportador de serotonina (SERT), a qual
está relacionada tanto aos efeitos terapêuticos quanto aos colaterais dessa
classe de antidepressivos. No entanto, embora os seis ISRS compartilhem
do mesmo mecanismo de ação, os pacientes reagem de maneiras diferentes
a um ISRS em relação a outro. Essas diferenças não são observadas em
grandes ensaios clínicos, mas são percebidas pelos médicos em sua prática
clínica, quando pacientes apresentam resposta clínica a um ISRS, mas não a
outro. Então, se os ISRS atuam inibindo o SERT, o que explicaria essa
diferença? Ainda não existe uma explicação aceitável para isso, mas
acredita-se que existem ligações secundárias feitas pela serotonina que
gerem tamanha especificidade, visto que não há dois ISRS com
características farmacológicas secundárias que sejam idênticas. Muitas
vezes, só um ensaio empírico de diferentes ISRS é que mostrará a droga
mais adequada para um paciente.
Alguns ISRS podem levar à síndrome de descontinuação, quando
interrompidos abruptamente (não costuma ocorrer com a fluoxetina, por
causa de sua meia-vida longa). Essa síndrome é caracterizada por critérios
clínicos que englobam tanto aspectos somáticos (tonturas, vertigem,
sensações de choque, parestesias, fadiga, dor de cabeça, náuseas, tremor,
diarreia e distúrbios visuais) quanto sintomas psicológicos, como ansiedade,
insônia e irritabilidade, que causam grande aflição e angústia.

Quadro 3 - Efeitos colaterais dos ISRS

Náuseas, vômitos, dispepsia, dor abdominal, diarreia, perda de


Gastrointestinais
apetite, perda ou ganho de peso

Ativação Do Sistema Ansiedade, agitação, inquietação, nervosismo, insônia, tontura,


Nervoso Central (SNC) sonolência, ciclagem para mania

Neurológicos Cefaleia, tremores

Autonômicos Sudorese

Diminuição da libido, retardo no orgasmo ou anorgasmia, retardo


Disfunção Sexual
ejaculatório

Ideação suicida, rash cutâneo, artralgia e linfadenopatia, edema


Pouco Frequentes
de face e mãos

Fonte: Stahl SM.13

Com relação ao uso de ISRS em pacientes deprimidos com transtorno


ansioso comórbido, é recomendado que se inicie a medicação com metade
da dose sugerida. O ajuste da dose será feito de acordo com a resposta do
paciente, tolerabilidade e urgência clínica.
Existem seis antidepressivos que fazem parte da classe dos ISRS
(fluoxetina, fluvoxamina, sertralina, citalopram, escitalopram e paroxetina).
Mais à frente neste capítulo, vamos nos dedicar a falar com um pouco mais
de detalhes sobre três deles, que são bastante utilizados no dia a dia:
fluoxetina, sertralina e escitalopram.

2.4. Inibidores da Receptação da Serotonina e Noradrenalina


(IRSN)
Os IRSN combinam a inibição substancial do SERT com vários graus de
inibição do transportador de noradrenalina e, devido a esse mecanismo,
também são chamados de “duais”. Apesar do que sugere o nome, talvez se
possa considerar que os IRSN tenham “duas ações e meia”, pois, além de
reforçar a noradrenalina e a serotonina, aumentam também os níveis de
dopamina no córtex pré-frontal.
Na prática clínica, são indicados para o tratamento de TDM, transtornos
ansiosos e dores crônicas como: neuropatia diabética e fibromialgia. Além
disso, também tem sido demonstrada eficácia no tratamento do transtorno
dismórfico corporal, TOC, transtorno disfórico pré-menstrual e sintomas
vasomotores da menopausa (fogachos).
Os principais duais utilizados na prática são a venlafaxina, a
desvenlafaxina (um metabólito ativo da venlafaxina) e a duloxetina. A
primeira apresenta um potencial mais serotoninérgico em doses baixas e, à
medida que a dose vai aumentando, apresenta potencial também
noradrenérgico. Já a segunda apresenta maior potencial noradrenérgico.
Enquanto isso, a duloxetina tem, ligeiramente, mais ação serotoninérgica
que noradrenérgica.
No quadro e na tabela a seguir, podemos ver os efeitos colaterais e
outras informações adicionais com relação aos duais.

Quadro 4 - Efeitos colaterais dos IRSN

Gastrointestinais Náuseas, vômitos, diarreia, perda de apetite

Ativação do Snc Ansiedade, nervosismo, insônia, tontura, sonolência, ciclagem para


mania (raro)

Neurológicos Cefaleia, tremores

Autonômicos Sudorese, aumento da PA

Diminuição da libido, retardo no orgasmo ou anorgasmia, retardo


Disfunção Sexual
ejaculatório

Fonte: Stahl SM.13

Tabela 1 - Inibidores da Recaptação de Serotonina e Noradrenalina

Dose Dose
Apresentações Dose Tempo de ½
Medicamento Inicial Terapêutica
Disponíveis Máxima Vida
Usual Usual

Comprimidos de
Desvenlafaxina 50 mg 50 mg 200 mg 11h
50 e 100mg

Cápsulas de 30 e 30 mg a 30 mg a 60
Duloxetina 120 mg 12h
60mg 60 mg mg

5h (Obs.: 11h
Cápsulas de
37,5 mg 75 mg a para o
Venlafaxina 37,5, 75 e 225mg
a 75 mg 225mg metabólito
150mg
ativo)

Fonte: síntese elaborada pelos autores.

2.5. E Na Prática?
Vamos agora aprofundar um pouco a discussão sobre alguns dos
antidepressivos mais utilizados na prática clínica. Elencamos, para isso,
dois tricíclicos, três ISRS, um dual e três atípicos, falando um pouco dos
seus aspectos práticos mais importantes para o médico generalista.

2.6. Amitriptilina
A amitriptilina atua bloqueando a receptação da serotonina e noradrenalina,
mas com maior potencial sobre o bloqueio da serotonina. Também tem ação
importante sobre receptores colinérgicos, ɑ-1-adrenérgicos e histamínicos
tipo H1. Comparada a outros tricíclicos, é bastante sedativa, além de estar
associada a aumento de peso e efeitos anticolinérgicos.
Para o tratamento da depressão, as doses usuais variam de 75 a
300mg/dia. Recomenda-se iniciar com 25mg/dia e aumentar 25mg a cada 3
dias, até uma dose de 100mg.

2.7. Nortriptilina
É o metabólito ativo da amitriptilina, sendo aproximadamente 2 vezes mais
potente que outros ADTs. Atua bloqueando predominantemente a
noradrenalina nos neurônios pré-sinápticos, levando ao aumento desse
neurotransmissor na fenda. Tem ação majoritariamente noradrenérgica, com
atuação menos intensa nos receptores ɑ-1-adrenérgicos e histamínicos tipo
H1.
Para o tratamento da depressão, deve-se iniciar com uma dose de 25mg,
à noite, devido ao seu poder sedativo, e aumentar a cada 2 dias (ou
intervalos maiores, se o paciente for idoso). As doses usuais para depressão
variam de 75 a 150mg/dia.
A nortriptilina também é indicada no tratamento para cessação de
tabagismo. Geralmente, recomenda-se o uso entre duas a cinco semanas
antes de o paciente interromper o fumo, sendo iniciada na dose de
25mg/dia, aumentando gradualmente (a cada 3-7 dias) até uma dose de 75-
100mg (ou o máximo tolerado pelo paciente).
Na tabela a seguir, podemos observar algumas informações adicionais a
respeito da nortriptilina e amitriptilina.

Tabela 2 - Antidepressivos tricíclicos

Dose Dose
Apresentações Dose Tempo de
Medicamento Inicial Terapêutica
Disponíveis Máxima ½ Vida
Usual Usual
Dose Dose
Apresentações Dose Tempo de
Medicamento Inicial Terapêutica
Disponíveis Máxima ½ Vida
Usual Usual

Comprimidos de
Amitriptilina 25mg 75 a 300mg 300mg 21h
10mg, 25 e 75mg

Cápsulas/comp de 10,
Nortriptlina 25mg 50 a 150mg 150mg 12 a 56h
25, 50 e 75mg

Fonte: Stahl SM13, Cordioli AV, Gallois CB, Isolan L.16

2.8. Fluoxetina
A fluoxetina atua não somente inibindo a recaptação de serotonina, como
também inibindo a recaptação de noradrenalina (apesar de ser clinicamente
relevante só quando administrada em doses altas), além de ter ações
antagonistas de 5HT2C. Essa ação antagonista de 5HT2C é que leva aos
efeitos terapêuticos e de tolerabilidade da fluoxetina. Além disso, o
antagonismo sobre o 5HT2C é geralmente ativador, o que faz com que
vários pacientes, já na primeira dose da fluoxetina, percebam um efeito
energizante e de redução da fadiga, havendo também melhora na
concentração e na atenção. Esse mecanismo talvez seja mais apropriado
para pacientes deprimidos que apresentam redução do afeto positivo,
hipersonia, retardo psicomotor, apatia e fadiga. Por sua vez, essa
propriedade da fluoxetina pode ser menos adequada para pacientes ansiosos
ou deprimidos que apresentem insônia e agitação, devido ao fato que eles
podem apresentar um efeito ativador indesejado, levando até mesmo a
ataques de pânico, caso tomem um agente que os ative ainda mais.
Além disso, o antagonismo de 5HT2C também contribui para o efeito
antibulimia em doses mais altas de fluoxetina, sendo, por isso, o único ISRS
aprovado para o tratamento desse transtorno alimentar.
Para o tratamento de depressão, as doses usuais de fluoxetina variam de
20 a 40 mg/dia. É recomendado iniciar com 20 mg/dia, que já pode ser a
dose eficaz. Grande parte dos pacientes deprimidos apresentam alguma
resposta depois da segunda semana de uso. Outros começam a apresentar
resposta somente após a quarta semana. Entretanto, se até a sexta semana
não houver resposta alguma, é pouco provável que ela ocorra.
A fluoxetina também tem ação comprovada no tratamento de
transtornos ansiosos, TOC, bulimia nervosa e no transtorno disfórico pré-
menstrual.

2.9. Sertralina
Além do bloqueio do SERT, a sertralina também inibe a ligação aos
receptores sigma-1 (σ1) e, fracamente, o transportador de dopamina (DAT),
cuja relevância clínica não é conhecida, embora possa melhorar a energia, a
motivação e a concentração.
Já as ações σ1 da sertralina ainda não são bem conhecidas, mas sabe-se
que podem contribuir para seus efeitos ansiolíticos e também podem ser
úteis nos pacientes com depressão psicótica, em comparação com alguns
outros ISRS.
A sertralina, inicialmente, foi lançada para o tratamento da depressão.
Posteriormente, foi vista sua eficácia em várias outras condições como:
transtorno obsessivo-compulsivo, transtorno do pânico, estresse pós-
traumático, fobia social, entre outros.
Como iniciar o tratamento com a sertralina? Para quadros de depressão
ou TOC, a dose inicial recomendada é de 50mg/dia, devendo-se esperar
algumas semanas (3-4 semanas), antes de aumentar a dose. Já para
transtornos ansiosos, deve-se iniciar com 25mg/dia, recomendando-se
dobrar a dose após uma semana de uso. Se for necessário aumentar a dose
posteriormente, também é preciso esperar cerca de 3 a 4 semanas.

2.10. Escitalopram
O escitalopram é o isômero da molécula de citalopram, a qual foi
intencionalmente modificada em laboratório, a fim de diminuir os efeitos
colaterais desta, sendo o mais grave o prolongamento do intervalo QT. Os
parâmetros farmacocinéticos indicam que 10mg de escitalopram equivalem
a 20mg de citalopram.
Além disso, o escitalopram é o ISRS, cujas ações farmacológicas são
quase todas explicadas pela inibição pura do SERT. Ele é considerado,
talvez, o ISRS mais bem tolerado, com as menores taxas de interações
medicamentosas.
Essa medicação mostrou-se eficaz no tratamento da depressão, dos
transtornos ansiosos e do TOC. Ademais, alguns estudos demonstram que o
escitalopram tem maior eficácia em relação a outros antidepressivos, como
citalopram e fluoxetina, além de ter maior tolerabilidade que a duloxetina.
Para pacientes deprimidos, inicia-se com a dose de 10mg/dia pela
manhã. Para pacientes com transtorno de ansiedade, sugere-se iniciar com
metade da dose, por cerca de 4 a 5 dias e após passar para 10 mg/dia. Em
pessoas acima de 60 anos, a dose sugerida é de 5 mg/dia.
Na tabela a seguir, podemos observar algumas informações adicionais a
respeito dos ISRS que acabamos de discutir:

Tabela 3 - Antidepressivos ISRS

Dose Dose Tempo


Apresentações Dose
Medicamento Inicial Terapêutica de ½
Disponíveis Máxima
Usual Usual Vida

Comprimidos de 10, 15 e
Escitalopram 20mg. Solução oral 10mg 10 a 20mg 30mg 27 a 32h
20mg/mL

Comprimidos/cápsulas de
2a3
Fluoxetina 10 e 20mg. Solução oral 20mg 20 a 60mg 80mg
dias
20mg/mL

Comprimidos de 25, 50,


Sertralina 50mg 50 a 200mg 300mg 26 a 32h
75 e 100mg

Fonte: Stahl SM.13

2.11. Venlafaxina
A venlafaxina inibe a recaptação de serotonina e, em menor grau, a de
noradrenalina (2 a 3 vezes menos). À medida que a dose é elevada, o efeito
noradrenérgico aumenta. Além disso, como já mencionado anteriormente,
também inibe a recaptação de dopamina, entretanto, em menor grau ainda.
O que a diferencia de outras drogas que também possuem essas
propriedades é o fato de não bloquear receptores colinérgicos,
histaminérgicos e ɑ-adrenérgicos (como os tricíclicos).
A venlafaxina parece produzir uma rápida down-regulation de
receptores ß-adrenérgicos, após a administração de dose única. Essa
característica vem sendo associada à velocidade maior de início da
atividade antidepressiva, comparativamente com outros antidepressivos.
Normalmente, a venlafaxina é iniciada com uma dose de 37,5mg em
pacientes depressivos ou ansiosos. Se a dose for bem tolerada, é aumentada
após 4 a 7 dias, para 75mg/dia. Se o paciente não apresentar resposta, pode
ser aumentada em 75mg após 2 a 4 semanas, até um máximo de 225mg/dia.
A descontinuação abrupta da venlafaxina deve ser evitada, em função de
sintomas de descontinuação.

2.12. Bupropiona
Atua como antagonista dos receptores de noradrenalina e dopamina. É uma
boa alternativa para pacientes com sintomas de anergia e anedonia. Como a
bupropiona eleva os níveis de duas monoaminas ativadoras, pode, algumas
vezes, aumentar os sintomas ansiosos.
É utilizada no tratamento da depressão, déficit de atenção e
hiperatividade, dependência de tabaco, hipotência sexual e obesidade. As
contraindicações incluem: bulimia nervosa, anorexia nervosa, uso de IMAO
nas últimas duas semanas. Por diminuir o limiar convulsivo, não deve ser
utilizada em pacientes com epilepsia nem em associação a outras
medicações que diminuam o limiar convulsivo.
Normalmente, inicia-se com a dose de 150 mg/dia. Se não houver
resposta após 2 a 4 semanas de tratamento, a dose pode ser aumentada para
150mg, duas vezes ao dia. Os efeitos colaterais da medicação podem ser
melhor visualizados na tabela 4.
Tabela 4 - Efeitos colaterais da bupropiona

Gastrointestinais Constipação, náusea, perda de peso, anorexia, dor abdominal

Ativação do SNC Insônia, tontura, agitação, tremor, tinnitus

Neurológicos Cefaleia

Autonômicos Sudorese, aumento da PA

Fonte: Stahl SM.13

2.13. Mirtazapina
Seu principal mecanismo de ação é o bloqueio dos receptores ɑ-2-
adrenérgicos. Atua ainda bloqueando receptores serotoninérgicos e
histaminérgicos. No entanto, diferentemente dos duais, a mirtazapina exerce
esse efeito por um mecanismo independente do bloqueio dos
transportadores de monoaminas. Esses dois mecanismos, o bloqueio do
transporte de monoaminas e o antagonismo ɑ2, são sinérgicos, o que faz
com que seu bloqueio simultâneo proporcione uma desinibição muito mais
potente desses dois neurotransmissores quando comparado ao bloqueio por
apenas um mecanismo.
Assim, a mirtazapina costuma ser combinada com um dual para o
tratamento de casos de depressão que não respondem ao dual isoladamente.
Alguns autores chamam essa combinação de “combustível para foguetes da
Califórnia”, por sua ação antidepressiva poderosa.
Usualmente se inicia a mirtazapina com 15 mg à noite (pelo seu efeito
sedativo). Para pacientes que não respondem após 2 a 4 semanas de
tratamento, deve-se aumentar a dose para 30 mg, até uma dose máxima de
45 mg. Os efeitos colaterais da medicação podem ser mais bem
visualizados na tabela 5

Tabela 5 - Efeitos colaterais da mirtazapina


Gastrointestinais Constipação, aumento do apetite, ganho de peso

Neurológicos Sedação, tontura, sonhos estranhos, confusão

Cardiovascular Hipotensão

Fonte: Stahl SM.13

2.14. Trazodona
A trazodona apresenta um bloqueio poderoso dos receptores
serotoninérgico 5HT2A, bloqueio dose-dependente do receptor 5HT2C e do
transportador da serotonina. Além disso, também bloqueia os receptores
ɑ1-adrenérgicos e tem uma propriedade singular de antagonismo dos
receptores de histamina 1 (H1).
Em altas doses, a trazodona satura o SERT, promovendo ações
antidepressivas. Por sua vez, em doses mais baixas, o fármaco perde as
ações antidepressivas, mas conserva ações antagonistas nos receptores
5HT2A, ɑ1 e H1 e sua eficácia hipnótica correspondente. Na tabela 6 há
algumas informações adicionais da trazodona.

Tabela 6 - Trazodona

Apresentações disponíveis Comprimidos de 50, 100 e 150mg

Dose Inicial Usual 100mg

Dose Terapêutica Usual 200-500mg

Dose Máxima 600mg


Apresentações disponíveis Comprimidos de 50, 100 e 150mg

Liberação imediata: 5 a 9h
Tempo de ½ Vida
Liberação lenta: 11h

Uso Recomendado Pelo Fda Depressão

Insônia (primária e secundária)


Uso Off-Label
Ansiedade

Overdose Sedação, vômitos, priapismo, falência respiratória, convulsões

Náuseas, vômitos, constipação, hipotensão, síncope, tontura,


Efeitos Colaterais
sedação, cefaleia, tremores, incoordenação

Fonte: Stahl SM.13

Referências
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effects – UpToDate. UpToDate. 2020. p. 1-15.

SIGLAS

• IMAO Inibidor da Monoaminoxidase


• TDM Transtorno Depressivo Maior
• ADT Antidepressivos Tricíclicos
• ISRS Inibidor Seletivo da Recaptação da Serotonina
• FDA Food and Drug Administration
• TOC Transtorno Obsessivo-Compulsivo
• DA Dopamina
• SERT Transportador de Serotonina
• IRSN Inibidor da Recaptação da Serotonina e Noradrenalina
• SNC Sistema Nervoso Central
A definição de um estabilizador de humor permanece confusa na literatura.
De forma geral, podemos afirmar que um estabilizador de humor tem função
de melhorar estados hipotímicos (levando à eutimia) e/ou melhorar hipertimias
(levando à eutimia), sem induzir o polo oposto do humor. Os estabilizadores
podem ser divididos em três: lítio, anticonvulsivantes e antipsicóticos
atípicos. Este capítulo tem como objetivo a discussão do uso do lítio e dos
anticonvulsivantes como estabilizadores (os antipsicóticos são mais bem
descritos em capítulo próprio).

1. MECANISMOS DE AÇÃO
O lítio foi a primeira medicação descoberta com função para estabilizar e
evitar oscilações de humor. O uso de lítio para o manejo do transtorno bipolar
foi publicado pela primeira vez em 1949, mas não obteve a aprovação da Food
and Drug Administration (FDA) dos EUA até 1970. A utilização tardia do lítio
no mercado norte-americano é atribuída aos relatos de grave intoxicação e
morte que levaram à retirada da comercialização desse medicamento no início
da década de 1950.
Perspectivas históricas postularam que os distúrbios de humor surgem de
mudanças iônicas e alterações na permeabilidade da membrana, o que leva a
prejuízos diretos na excitabilidade e na transmissão neurais. Dado que o lítio
era uma das poucas opções para tratamento do transtorno bipolar, foi
documentado que os efeitos do lítio incidem em muitos sistemas de
neurotransmissores e neuromoduladores, incluindo os sistemas
monoaminérgicos, serotoninérgicos, colinérgicos e GABAérgicos.
O lítio modifica o transporte de sódio nas células nervosas e
musculares. Ele altera o metabolismo dos neurotransmissores, especificamente
catecolaminas e serotonina. Pode alterar a sinalização intracelular via sistemas
de segundos mensageiros pela inibição do monofosfato de inositol. Essa
inibição, por sua vez, afeta a neurotransmissão pelo sistema de segundo
mensageiro do fosfatidilinositol. O lítio também diminui a atividade da
proteína quinase C, que altera a expressão gênica associada à
neurotransmissão. O lítio parece aumentar as proteínas citoprotetoras e
possivelmente ativa a neurogênese e aumenta o volume da substância
cinzenta.
O mecanismo de ação do ácido valproico ou valproato de sódio (ambos
têm como composto estável o divalproato de sódio) se estabelece de duas
maneiras: agindo sobre os níveis de GABA (ácido Y aminobutírico) no
sistema nervoso central, bloqueando os canais iônicos dependentes de
voltagem e também inibindo a histona deacetilase. A atividade inibitória
GABAérgica prejudicada é a fisiopatologia estabelecida da iniciação e
propagação das crises convulsivas, visto que o controle dessa via é um alvo
potencial para drogas antiepilépticas. O ácido valproico também pode exercer
efeitos reduzindo o disparo de alta frequência dos neurônios pelo bloqueio dos
canais de sódio, potássio e cálcio dependentes de voltagem. Além disso,
o ácido valproico afeta os sistemas de sinalização que interferem de forma
semelhante no metabolismo do inositol e do araquidonato. O uso
de valproato de sódio desempenha um papel na expressão de vários genes
envolvidos na sobrevivência celular, na regulação da transcrição, na
homeostase de íons, na transdução de sinal e em modificações do
citoesqueleto. Tanto o efeito bioquímico imediato quanto as influências
gênicas de longo prazo podem explicar o efeito clínico
do ácido valproico como anticonvulsivante e como estabilizador de humor.
A carbamazepina é indicada pelo FDA para episódios agudos maníacos e
mistos no transtorno bipolar I. A carbamazepina é responsável por uma
modulação dos canais de sódio dependentes de voltagem (VGSC), causando
inibição dos potenciais de ação e diminuição da transmissão sináptica.
Os pesquisadores propuseram que a carbamazepina mantém o canal de sódio
em estados inativados, fazendo com que menos canais se abram e, portanto,
inibe a geração de potenciais de ação. A carbamazepina também se liga a
outros canais iônicos dependentes de voltagem, como os canais de cálcio.
O mecanismo de ação da lamotrigina não é totalmente compreendido.
Acredita-se que a lamotrigina se liga seletivamente aos canais de sódio,
estabilizando as membranas neuronais pré-sinápticas e inibindo a liberação de
glutamato. Há uma teoria de que a lamotrigina pode interagir com canais
dependentes de cálcio ativados por voltagem, contribuindo para sua ampla
faixa de atividade.

1.1. E na prática?
Carbonato de lítio
O lítio é administrado por via oral na forma de comprimido. Está disponível
nas formulações de liberação controlada de 450 mg ou em de liberação
imediata em comprimidos de 300 mg. A dose inicial pode ser 600 mg/dia
divididos em duas tomadas.
O lítio é bem absorvido, se liga minimamente às proteínas séricas e não é
metabolizado pelo fígado, sendo excretado pelos rins em aproximadamente 24
horas. Compete com o sódio para a reabsorção nos túbulos proximais e, por
essa razão, uma dieta pobre em sódio, perda de sódio ou desidratação pode
levar a um aumento na reabsorção de lítio, aumentando seu nível sérico. As
concentrações plasmáticas máximas são alcançadas dentro de 1-2 horas, com
preparação de liberação imediata ou dentro de 4-5 horas com formulações de
liberação prolongada. A meia-vida média do lítio é de aproximadamente 28
horas no cérebro e 16 horas no soro. É essencial monitorar periodicamente os
níveis de lítio no sangue, pois ele exibe uma janela terapêutica estreita, o que
implica risco de toxicidade. Embora a titulação dos sais de lítio varie
gradualmente de acordo com a resposta do paciente e tolerabilidade, os níveis
séricos de 0,6-1,2 mEq/L são os mais indicados para a terapia de manutenção.
No entanto, concentrações mais altas como 1,0-1,5 mEq/L podem ser
necessárias para a terapia aguda. O risco de efeito tóxico agudo de lítio é
aumentado quando os níveis séricos ultrapassam 2,0 mEq/L, particularmente
em indivíduos com comprometimento da função renal, alterações cardíacas ou
disfunções tireoidianas. O monitoramento deve ser feito pelo menos 5 dias
após a estabilização da dose. É preciso que haja jejum de 12 horas (com
tolerância de até 2 horas para mais ou para menos) da tomada do lítio antes da
coleta do exame. Em seguida, é preciso a verificação dos níveis de lítio sérico
a cada 6 meses, em caso de crises, surgimento de sinais de intoxicação ou após
reajuste de dose. Também é importante monitorar os pacientes quanto à
desidratação e reduzir a dose quando houver sinais de infecção, sudorese
excessiva ou diarreia.
Os efeitos terapêuticos evidenciam-se cerca de 1 a 3 semanas após
introdução do lítio. Uma única dose noturna pode ser considerada para
minimizar os efeitos colaterais em pacientes estabilizados. Doses mais baixas
e níveis séricos mais baixos de lítio são preferíveis em pacientes idosos. Se os
pacientes não mostrarem uma resposta adequada, o médico deve considerar o
aumento. A descontinuação rápida aumenta o risco de recaída. Algumas
medicações aumentam os níveis séricos de lítio, incluindo diuréticos
(especialmente tiazídicos), anti-inflamatórios não esteroidais, como
ibuprofeno e inibidores da COX-2, além dos inibidores da enzima de
conversão da angiotensina. O metronidazol aumenta os níveis de lítio ao
diminuir sua depuração renal. Carbamazepina, fenitoína e metildopa podem
aumentar a toxicidade do lítio.

Quadro 1 - Efeitos adversos do lítio

Cardíacos SNC Renal Hematológico Endócrino Gastrointestinal Outros

Diabetes
Bradicardia Confusão insipidus Leucocitose Bócio Diarreia Acne
nefrogênico

Hiper-
Achatamento Anemia Erupção
reflexia Poliúria Náuseas
de onda T aplásica na pele
Tremores

Bloqueios Fala Dor Ganho


Polidipsia
AV arrastada abdominal de peso

Fonte: síntese elaborada pelos autores.

No início e no seguimento do tratamento com lítio, é essencial a vigilância


da função renal e tireoidiana. Em pacientes com mais de 50 anos de idade, um
eletrocardiograma também é necessário. Deve-se monitorar o peso, níveis
glicêmicos e lipidêmicos.
A intoxicação pelo lítio pode causar nefrite intersticial, arritmia, síndrome
do seio nasal, hipotensão, anormalidades da onda T e bradicardia. Raramente,
pode causar pseudotumor cerebral e convulsões. Não há antídoto para a
intoxicação e o tratamento consiste principalmente na hidratação e na
interrupção do uso do medicamento. Deve-se evitar qualquer diurético. Se o
paciente apresentar disfunção ou insuficiência renal grave, ou estado mental
severamente alterado, está indicada diálise.

Ácido valproico
A dose inicial para o tratamento da mania aguda é 250 mg 3 vezes ao dia. O
aumento deve ser gradual de 250 mg por dia ou a cada dois dias para evitar
sedação excessiva. Para a forma de liberação prolongada, a dose inicial é de
25 mg/kg uma vez ao dia, progredindo de forma rápida até 60 mg/kg/dia na
tentativa de atingir o efeito desejado.
O uso de ácido valproico pode apresentar múltiplas reações adversas
graves, como hepatotoxicidade, alucinações, suicídio, psicose, síndrome de
Stevens-Johnson, hiponatremia, SIADH (síndrome da secreção inapropriada
do hormônio antidiurético), pancreatite, trombocitopenia, pancitopenia,
mielossupressão, hipotermia, anemia aplástica, sangramento, eritema
multiforme, síndrome do ovário policístico, pseudoatrofia cerebral,
encefalopatia e coma. A interrupção abrupta da droga pode causar convulsões
de abstinência.
As reações mais comuns que foram relatadas em pacientes que usam ácido
valproico são cefaleia, dor abdominal, sonolência, tontura, trombocitopenia,
astenia, náusea, vômito, diarreia, tontura, tremor, alterações de peso, alopecia,
constipação, labilidade emocional, insônia, petéquias, equimoses, nervosismo,
alterações do apetite, elevação de ALT e AST, zumbido, visão turva, nistagmo,
fotossensibilidade, mialgia e dispneia.
O ácido valproico é contraindicado em pacientes com doenças hepáticas
graves, insuficiência hepática significativa, hipersensibilidade aos
componentes do medicamento e classe de medicamentos, distúrbios do ciclo
da ureia, distúrbios mitocondriais ou suspeitos de distúrbios em pacientes <2
anos de idade e gravidez.
Além disso, o uso de ácido valproico requer cautela em pacientes com
menos de 2 anos de idade, idosos, insuficiência renal, distúrbios cerebrais
orgânicos, distúrbios metabólicos congênitos, mielossupressão e doença
hepática.
Pode causar malformações congênitas graves, como defeitos do tubo
neural e menores escores de QI após a exposição intraútero. Além disso, a
exposição intraútero ao ácido valproico se correlaciona com um risco
aumentado de transtornos do espectro autista em crianças.
Os testes da função hepática devem ser monitorados no início e depois
com frequência, especialmente durante os primeiros seis meses de tratamento.
O nível sérico do medicamento (nível terapêutico para epilepsia: 50 a 100
mcg/ml e para mania 50 a 125mcg ml) e níveis tóxicos: >175 mcg/ml. Como
o valproato se liga às proteínas, é importante testar os níveis livres na presença
de hipoalbuminemia.

Carbamazepina
A carbamazepina está disponível em comprimidos convencionais de 200
mg. A dosagem inicial é de 200 mg duas vezes ao dia em adultos e 100 mg
duas vezes ao dia em crianças menores de 12 anos.
Os efeitos colaterais mais comuns da carbamazepina incluem tonturas,
sonolência, ataxia, náuseas e vômitos. De forma mais rara, alguns estudos
mostraram um aumento significativo na incidência de reações dermatológicas,
como síndrome de Stevens-Johnson, erupções maculopapulares e reação
medicamentosa com eosinofilia e sintomas sistêmicos (síndrome DRESS).
Outros efeitos colaterais graves incluem depressão do sistema nervoso central,
hepatotoxicidade, toxicidade renal e hiponatremia. A hiponatremia é leve,
transitória e reversível. Devido à atividade anticolinérgica leve,
a carbamazepina pode aumentar o risco de delirium na população idosa. Esse
efeito também pode causar retenção urinária, aumento da pressão intraocular e
constipação.
Esse medicamento é teratogênico e é um medicamento da categoria D na
gravidez. Os médicos só devem usá-la se os benefícios superarem o risco
aumentado de malformação congênita. Essas malformações incluem espinha
bífida, defeito craniofacial, malformação cardiovascular, hipospádia e atrasos
no desenvolvimento. O nível plasmático é reduzido durante a gravidez,
provavelmente relacionado ao aumento do metabolismo. A
carbamazepina pode atravessar a placenta e também pode ser transferida por
meio do leite materno. Carbamazepina tem um efeito teratogênico
relativamente baixo em comparação ao ácido valproico.

Lamotrigina
Os comprimidos de lamotrigina estão presentes na apresentação de 25 mg, 50
mg e 100 mg. Para o transtorno afetivo bipolar tipo I a dose de manutenção
recomendada é de 200 mg a 400 mg. A titulação da dose deve ser lenta: iniciar
com 25 mg com aumentos sucessivos de 25 mg a cada duas semanas.
Alcançando a dose de 100 mg/dia, a progressão se segue com aumentos de 50
mg também a cada duas semanas até a dose almejada. A subida paulatina
diminui o risco do desenvolvimento da síndrome de Stevens-Johnson. A
dosagem de lamotrigina requer alteração se for administrada
concomitantemente com carbamazepina, fenitoína, fenobarbital, rifampicina,
atazanavir e ácido valproico.
Se for necessário interromper a lamotrigina, isso deve ser feito de forma
gradual ao longo de duas semanas, se possível. Existe a possibilidade de
convulsões de abstinência ao interromper a lamotrigina de forma abrupta.
A lamotrigina pode causar erupções cutâneas graves. A gravidade da
erupção varia, mas inclui o risco de síndrome de Stevens-Johnson. Quase
todos os casos de erupção cutânea ocorrem 2 a 8 semanas após o início da
lamotrigina. Também deve ser mencionado que a descontinuação da
lamotrigina pode não impedir que uma erupção se torne fatal, e a educação do
paciente deve incluir o monitoramento contínuo da erupção para melhora após
a descontinuação da medicação.
A avaliação do sexo, da idade e do uso de anticoncepcionais são essenciais
para a consideração de iniciar a lamotrigina. Embora alguns estudos em
humanos não tenham demonstrado um risco aumentado de malformações
congênitas durante a terapia com lamotrigina durante a gravidez, os estudos
em animais mostraram que existe esse risco. A lamotrigina está presente no
leite materno e é detectável no sangue de bebês amamentados. Os sintomas da
lamotrigina em bebês incluem dificuldade de sucção, sonolência, erupção na
pele e apneia. Esses sintomas podem melhorar com a descontinuação da
lamotrigina.

Figura 1 - Índice de polaridade do humor

Fonte: Vieta E, et al.10


Quadro 2 - Agentes aprovados pelo FDA para mania bipolar aguda e
depressão bipolar

Medicamento Uso na Mania Uso na Depressão Comentários

Lítio Sim Sim Ação antissuicida.

Carbamazepina Sim Não Indutor do CYP450.

Valproato Sim Não Boa opção nos estados mistos.

Requer aumento lento


Lamotrigina Não Sim
(risco de Stevens-Johnson).

Risperidona Sim Não Risco de SEP.

Importante nos episódios agudos e


Quetiapina Sim Sim
na manutenção.

Olanzapina Sim Não Risco de síndrome metabólica.

Bom perfil metabólico; risco de


Aripiprazol Sim Não
acatisia.

Lurasidona Não Sim Acatisia e sedação.

Fonte: Vieta E, et al.10

Referências
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disorders: updated systematic review and meta-analysis. BMJ. 2013 Jun 27; 346: f3646.
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Treatment of Bipolar Disorder. Int J Mol Sci. 2018 Jul 23; 19(7).
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bipolar depression: a systematic review and meta-analysis. J Affect Disord. 2010 Aug; 124(3):
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disorder during treatment with lithium and divalproex. JAMA. 2003 Sep 17; 290(11): 1467-73.
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9. Lindström L, Lindström E, Nilsson M, Höistad M. Maintenance therapy with second generation
antipsychotics for bipolar disorder – A systematic review and meta-analysis. J Affect Disord. 2017
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10. Vieta E, Berk M, Schulze TG, Carvalho AF, Suppes T, Calabrese JR, et al. Bipolar disorders.
Nature Reviews Disease Primers 2018; 4. https://doi.org/10.1038/nrdp.2018.8

SIGLAS

• ALT Aspartato Aminotransferase


• AST Alanina Aminotransferase
• CYP450 Citocromo P450
• SEP Síndrome Extrapiramidal
• TAB Transtorno Afetivo Bipolar
• SIADH Síndrome da Secreção Inapropriada do Hormônio
Antidiurético

• VGSC Canais de Sódio Dependentes de Voltagem


1. INTRODUÇÃO
É comum o uso de benzodiazepínicos (BZDs) na prática clínica, seja na atenção
básica à saúde, seja nos centros de atenção psicossocial ou nos hospitais. Neste
capítulo vamos estudar sobre as indicações, os tipos, a farmacodinâmica e os
possíveis efeitos adversos de curto e de longo prazo que essas medicações
podem ocasionar nos pacientes. Desde já, qualquer um dos leitores vai se
deparar em algum momento com pacientes que fazem uso delas, que já as
tomaram ou que tem indicações de iniciar essas medicações por alguma
sintomatologia psiquiátrica. Não podemos esquecer-nos dos familiares e dos
amigos que se apresentam para solicitar uma “receitinha azul”, que já fazem uso
há muito tempo e não podem ficar sem ele. Nesse momento respire fundo e
lembre das informações importantes que encontrará nesta leitura.
No início da década de 1960, o clordiazepóxido foi introduzido na prática
médica e foi visto com muito entusiasmo pela comunidade científica da época.
Isso em decorrência principalmente do seu início rápido de ação, sua eficácia
como sedativo e hipnótico e aos seus poucos efeitos colaterais em comparação a
medicamentos anteriormente muito prescritos: os barbitúricos. Desde então, os
benzodiazepínicos foram eleitos como os substitutos dos barbitúricos, estes
representados principalmente pelo hidrato de cloral, medicação que produzia um
alto nível de toxicidade e inúmeros casos de overdose. Em pouco tempo, com a
descoberta dos efeitos ansiolíticos dos benzodiazepínicos, esses começaram a
ser utilizados e prescritos em larga escala para quadros de depressão, ansiedade,
insônia e doenças neuromusculares. Dessa forma, na década de 1970, os BZDs
já eram as medicações mais prescritas em todo o mundo, chegando a números
exorbitantes, como mais de 2 bilhões de doses de diazepam apenas nos Estados
Unidos em um único ano, por exemplo.
Mais de 5% da população americana recebeu prescrição de um
benzodiazepínico em um ano, sendo a maior taxa de uso entre as mulheres de
mais de 80 anos (11,9%). A prescrição por mais de quatro meses de BZDs
aumenta conforme a idade, em que a grande maioria dessas prescrições é
oriunda de médicos não psiquiatras. Estimativas apontam, ainda, que os BZDs
são responsáveis por cerca de 50% de toda a prescrição de psicotrópicos.
Com o crescente uso, por vezes indiscriminado, foi-se notando propriedades
danosas relacionadas aos benzodiazepínicos e desde a década de 1980
associações e comunidades médicas produzem diretrizes e recomendações
acerca do uso controlado dessas medicações. Na prática clínica, os
benzodiazepínicos são prontamente lembrados quando o assunto é o tratamento
de transtornos mentais, pois eles podem ser utilizados em diversas situações
clínicas, nas quais podemos citar o Transtorno de Pânico (TP), a insônia e a
Síndrome de Abstinência Alcóolica (SAA). Isso se deve por seus conhecidos
efeitos sedativos e hipnóticos, anticonvulsivantes, ansiolíticos e como
relaxantes musculares. Entretanto, apesar do amplo campo de utilização dos
benzodiazepínicos, devemos ficar atentos para os efeitos adversos e para as
consequências da utilização de longo prazo e abusiva dessas medicações.
A dependência e a tolerância são as duas principais consequências do uso
prolongado dos benzodiazepínicos, e vamos explicar sobre esses efeitos logo
adiante. Além disso, essas substâncias podem ser mal utilizadas, inclusive como
drogas de abuso. A superdosagem aguda caracteriza-se por excesso de sedação
com comprometimento do estado mental e redução da estabilidade postural e
dos reflexos, além do potencial risco de depressão respiratória, que pode levar
ao coma e, excepcionalmente, à morte.
Os médicos prescritores devem levar em consideração diversos fatores ao se
iniciar um benzodiazepínico, dentre eles o perfil do paciente, histórico de uso
prévio de medicações e o período recomendado de medicalização para
determinada problemática. É importante orientar e dar informações relevantes
para os familiares acerca do uso desses remédios, alertando para os possíveis
abusos, o controle do seu uso e a vigilância em pacientes com risco aumentado
para suicídio.
Já os hipnóticos não benzodiazepínicos, também chamados de drogas Z e
agonistas seletivos de receptores benzodiazepínicos, parecem ligar-se ao
receptor GABA-A sem provocar graus tão grandes de tolerância e dependência
quando comparados aos benzodiazepínicos tradicionais. Boa parte dos
representantes se ligam apenas à subunidade alfa-1 do receptor GABA-A. Essa
característica confere a reconhecida ação sedativa desses fármacos, além de
possíveis efeitos anticonvulsivantes e amnésicos.
O surgimento dessa nova classe foi um marco na farmacologia, em que se
expandiu com rápida aceitação da classe médica e sendo desenvolvido em
diversas apresentações, indo desde comprimidos sublinguais até sprays orais.
Atualmente as prescrições de drogas Z excedem 285 milhões de dólares nos
Estados Unidos e 40 milhões no Reino Unido.
Os efeitos colaterais relacionados ao uso desses fármacos estão em constante
atualização. Efeitos cognitivos, como déficits mnêmicos, psicomotores, como o
aumento do risco de quedas e acidentes, fadiga, tolerância e dependência são
algumas de suas potenciais consequências danosas. Tais achados serviram de
incentivo para a agência americana Food and Drug Administration (FDA) exigir
a impressão de avisos de advertência aos pacientes tanto nas caixas quanto nas
bulas dos hipnóticos não benzodiazepínicos, além da recomendação de uso de
doses mais baixas para o público idoso.

2. FARMACODINÂMICA
Os benzodiazepínicos e as drogas Z atuam como moduladores alostéricos
positivos no local de ligação do GABA-A, potencializando seu efeito inibitório.
Os primeiros se ligam inespecificamente às subunidades alfa-1, alfa-2 e alfa-3
do receptor GABA-A pós-sináptico e com as subunidades do tipo gama. Já os
segundos possuem maior afinidade por um subconjunto das subunidades alfa,
principalmente o subtipo de receptor alfa-1. A ligação dela é responsável pelos
efeitos hipnóticos e cognitivos, enquanto a ligação às subunidades alfa-2 e alfa-3
é responsável pelos efeitos ansiolíticos, anticonvulsivantes e miorrelaxantes.
Como falado anteriormente, os benzodiazepínicos têm propriedades
hipnóticas, sedativas e ansiolíticas. Essas propriedades são o resultado do
aumento da atividade do principal neurotransmissor inibitório no sistema
nervoso central, ácido gama-aminobutírico (GABA). Os benzodiazepínicos se
ligam aos receptores no complexo receptor GABA-A, causando efeitos
inibitórios em todo o cérebro, incluindo sonolência e comprometimento
cognitivo, redução de sintomas afetivos desagradáveis, como medo e ansiedade
(sistema dopaminérgico mesolímbico), comprometimento da memória e ações
anticonvulsivantes (hipocampo) e comprometimento do equilíbrio, controle
motor, tônus muscular e coordenação (cerebelo e outras áreas motoras). Os
BZDs atuam em associação aos receptores GABA, aumentando o canal
inibitório de cloro na membrana pós-sináptica, levando à potencialização do
GABA-A endógeno, potencializando os efeitos inibitórios cerebrais. Os BZDs
dependem da disponibilidade de GABA endógena para sua atuação inibitória.

Figura 1 - Ações dos benzodiazepínicos e drogas Z


Fonte: elaborada pelos próprios autores.

Quadro 1 - Efeitos farmacodinâmicos e uso clínico dos BZDs

Ação principal Encontrado principalmente Uso clínico

Sedação Tálamo, córtex e cerebelo Insônia

Ansiedade
Ansiolítico e Sistema límbico, neurônios motores e
Abstinência alcoólica
miorrelaxamento corno dorsal da medula espinhal
Espasmo muscular

Anticonvulsionante Sistema límbico e córtex Convulsões

Amnésia Hipocampo Indução anestésica

Fonte: Gleeson D.9

3. FARMACOCINÉTICA
Os benzodiazepínicos são rapidamente absorvidos por via oral. Após a ingestão,
os efeitos de pico ocorrem dentro de 30 minutos a 2 horas (vide quadro 2). Os
medicamentos mais lipossolúveis (por exemplo, diazepam) entram no sistema
nervoso central mais rapidamente. Os benzodiazepínicos variam na velocidade
com que são metabolizados e vários mecanismos diferentes estão envolvidos.
Dependendo de sua estrutura metabólica, os benzodiazepínicos podem ser
classificados entre os de ação curta, média ou longa.
O midazolam, por exemplo, é considerado um benzodiazepínico de início de
ação rápida, entre 2 a 10 minutos, dependendo da via de administração, e de
meia-vida curta, com duração de algumas horas, e especialmente útil em casos
de sintomas de insônia inicial. Por sua vez, o diazepam é um benzodiazepínico
de ação prolongada, com meia-vida de 24 a 36 horas, e é uma droga útil para
sintomas de insônia intermediária ou para insônia terminal. Contudo, o efeito
residual pode causar sonolência diurna, sintomas cognitivos e motores. Agentes
BZDs de meia-vida intermediária ou longa produzem efeitos ansiolíticos no dia
seguinte, sendo, portanto, indicados para os casos com sintomas de ansiedade.
Apesar de a alta prevalência de sintomas de insônia na sociedade e do uso de
hipnóticos ser frequente, existem poucos estudos de longo prazo comprovando a
segurança do uso em tratamento de manutenção.
Para a maioria dos benzodiazepínicos, a meia-vida de eliminação é
significativamente maior que a duração da ação clínica. Como são rapidamente
redistribuídos no tecido adiposo após a absorção, os efeitos clínicos visíveis
desaparecem após algumas horas. No entanto, os medicamentos podem
continuar a exercer efeitos sutis e, com doses repetidas, ocorre acúmulo no
tecido adiposo. Devido à liberação lenta do tecido adiposo, os
benzodiazepínicos podem ser detectados nos testes de urina semanas a meses
após a interrupção do uso de benzodiazepínicos.

Quadro 2 - Doses, meia-vida e início de ação dos BZDs

Nome Nome Velocidade de ação; Meia-


Apresentações Comentários
Genérico Comercial pico de concentração vida

Bifásico: Risco de
fase acumulação
rápida 3 devido a
Rápido horas; metabólitos de
Diazepam Valium 5 e 10mg
(30-90 minutos) meia- ação prolongada
vida de (temazepam,
20 a 48 desmetildiazepam,
horas oxazepam)
Nome Nome Velocidade de ação; Meia-
Apresentações Comentários
Genérico Comercial pico de concentração vida

0,25mg, 0,5 Aumento do risco


Apraz / Rápido/Intermediário 6 a 25
Alprazolam mg, 1 mg e 2 de abuso devido
Frontal (20 a 40 minutos) horas
mg ao início rápido

Maior risco de
Rápido abuso devido à
Bromazepam Lexotan 3mg e 6mg 20 horas
(30 min a 4 horas) maior solubilidade
lipídica

Usar com cautela


0,25mg, Intermediário 5 a 30
Clonazepam Rivotril em pacientes com
0,5mg, 2mg (2 a 3 horas) horas
doença hepática

Preferido para
pacientes com
Intermediário 12 a 16
Lorazepam Lorax 1mg e 2mg insuficiência
(2 horas) horas
hepática, pois não
possui metabólitos

Rápido 10 a 25 Possui metabólitos


Flunitrazepam Rohypnol 1mg e 2mg
(20 – 30 min) horas ativos

Rápido 1a3 Utilizado em


Midazolam Dormonid 7,5mg e 15mg
(20 a 90 minutos) horas sedação anestésica

Fonte: Prescribing drugs of dependence in general practice, Benzodiazepines.13

Tabela 1 - Hipnóticos Não Benzodiazepínicos

Agente Faixa de Dose (mg) Meia-vida (h) Pico de Ação

Zolpidem 5 a 10 mg 2,5h a 3 h 1 a 2 horas


Agente Faixa de Dose (mg) Meia-vida (h) Pico de Ação

Zopiclona 3,75 mg a 7,5 mg 5ha6h 1,5 h a 2 h

Eszopiclona 1 a 3 mg 6h a 7 h 1 a 1,5 h

Zaleplon 5 a 25 mg 1h 0,7 a 1,4 h

Fonte: Gunja N.14

Os benzodiazepínicos são metabolizados pelo fígado e excretados por via


renal. O metabolismo pode estar comprometido em pacientes com doença
hepática e renal. Lorazepam, oxazepam e temazepam são metabolizados por
glucuronidação e, portanto, não produzem metabólitos ativos. Esses raramente
são suscetíveis a interações medicamentosas, embora seus efeitos sedativos
permaneçam sinérgicos. Alguns outros benzodiazepínicos sofrem metabolismo
pelo sistema enzimático hepático do citocromo P450 (CYP450) 3A4, e muitos
são inibidores fracos das enzimas CYP. Portanto, esses BDZs podem ter
interações significativas com outros medicamentos que são metabolizados por
essas vias enzimáticas.
O zolpidem é o representante mais emblemático dos agonistas seletivos de
receptores benzodiazepínicos, com absorções que variam a depender da
apresentação, como os comprimidos de liberação imediata, os de liberação
prolongada, os sublinguais e spray oral. O zolpidem tem ação curta, induz e
mantém o sono e apresenta poucos efeitos colaterais diurnos. Já a zopiclona é
um medicamento com uma duração de ação curta ou intermediária com ação
hipnótica proeminente em indução e manutenção do sono. Por último, o
zaleplon possui ação mais curta que os demais.
O zolpidem, a zopiclona e o zaleplon sofrem extenso metabolismo hepático
por uma variedade de isoenzimas do citocromo P450 (CYP), por mecanismos
como oxidação e hidroxilação com uma quantidade pequena de substâncias
eliminadas por via renal. Possuem meia-vida de, respectivamente, 0,5 a 2,5
horas, 5 horas e 1 hora.

4. EVENTOS ADVERSOS
4.1. Efeito residual
Esse é um fenômeno que está intimamente relacionado com a meia-vida e doses
usadas de benzodiazepínico e drogas Z. Geralmente os BZDs de meia-vida mais
longa ou doses que ultrapassam a faixa terapêutica dos BZDs de maia-vida curta
costumam oferecer um risco maior para a ocorrência de efeitos residuais. Além
desses, são também fatores determinantes a idade do paciente, doses repetidas,
doenças hepáticas e renais. Os efeitos residuais podem incluir sedação,
sonolência, alteração de memória (como amnésia anterógrada), raciocínio lento
e transtornos de atenção. Especialmente com as drogas Z, os efeitos adversos de
parassonia (como comer dormindo, falar durante a noite, atividade sexual
durante o sono e dirigir durante o sono), amnésia e alucinações foram
amplamente reportadas ao longo das décadas.

4.2. Tolerância
É comum o paciente que já faz uso de um benzodiazepínico por um tempo mais
prolongado relatar que a medicação já não faz mais o mesmo efeito de antes e
procurar o atendimento médico com a intenção que o profissional aumente a
dose do fármaco. Nesse momento, não devemos simplesmente renovar uma
receita com uma dosagem maior ou com mais comprimidos; é nosso objetivo
orientar esses pacientes acerca do estágio em que aquele tratamento se encontra,
buscando realizar psicoeducação para evitar a dependência e reavaliar a
necessidade de continuação desse medicamento.
A tolerância é um fenômeno farmacodinâmico que tem relação diretamente
proporcional à capacidade de ligação à subunidade alfa-1 do receptor GABA e à
perda progressiva dos efeitos terapêuticos após um período de tempo de uso da
medicação em doses terapêuticas. Há necessidade de doses progressivamente
maiores e/ou em espaços de tempo menores para obter os mesmos efeitos
desejados.
A tolerância aos fármacos se desenvolve pelo uso repetido das medicações.
As concentrações plasmáticas de BZDs e seus metabólitos no estado
estacionário são atingidas após cerca de cinco meias-vidas de eliminação,
geralmente alguns dias a duas semanas após o início da terapia. Alguns dias
depois de chegar a um estado estável de concentração plasmática, os pacientes
podem começar a experimentar uma perda de efeito dos benzodiazepínicos,
devido a uma variedade de mecanismos neuroadaptativos e fisiológicos.
A tolerância aos diferentes efeitos dos benzodiazepínicos se desenvolve em
diferentes velocidades e em diferentes graus e pode nunca ser completa. O grau
de tolerância difere entre os pacientes. Uma alta proporção de pacientes com
epilepsia desenvolve tolerância aos efeitos anticonvulsivantes dentro de algumas
semanas. Isso é semelhante aos pacientes com distúrbios de espasticidade e os
efeitos relaxantes musculares.
Tal efeito também é presente nos agonistas seletivos de receptores
benzodiazepínicos, onde se observa o aumento na procura por atendimentos de
emergência por efeitos adversos relacionados ao uso prolongado e excessivo de
comprimidos ou relacionados à parada abrupta de algum representante dessa
classe. Além disso, já existem diversos relatos de casos de pacientes que usaram
doses superiores a 1.200 por dia de zolpidem.

4.3. Síndrome de abstinência


É o conjunto de sintomas físicos autonômicos e psicológicos advindos da parada
ou da redução abrupta da medicação. A síndrome de abstinência inicia-se no ato
da retirada súbita ou importante diminuição posológica. A síndrome de
abstinência é um conjunto de sintomas e sinais que não estava presente antes da
introdução dos BZDs com duração mais prolongada do que a do rebote. O uso
continuado de BZDs em doses altas é um fator de risco para síndrome de
abstinência.
A descontinuação dos benzodiazepínicos e drogas Z é frequentemente
associada à ansiedade e à insônia de rebote. Os sintomas de abstinência incluem
irritabilidade, parestesia, zumbido, dores de cabeça, tonturas, falta de memória,
falta de concentração, distorções perceptivas, distúrbios menstruais e
hipersensibilidade sensorial. Os sintomas de abstinência geralmente podem ser
minimizados por uma redução gradual bem acompanhada pela assistência à
saúde. Há evidências de que alguns pacientes sofrem de abstinência prolongada
que pode perdurar por meses a anos após a cessação. Há um debate sobre se
esses sintomas persistentes são reações de abstinência ou simplesmente
características de um distúrbio subjacente ou agravamento dessa condição que é
desencadeada pela interrupção do tratamento. Os sintomas de abstinência
geralmente aparecem dentro de 2 a 3 meias-vidas da retirada dos
benzodiazepínicos. Eles geralmente diminuem e desaparecem em poucas
semanas. A retirada repentina de benzodiazepínicos pode estar associada a
convulsões.

Quadro 3 - Sintomas agudos de abstinência

Psicológicos Físicos Distorção de Percepções


Psicológicos Físicos Distorção de Percepções

Ansiedade Espasmos Hiperacusia

Insônia e pesadelos Fraqueza muscular Fotofobia

Ataques de pânico Tremores Parestesias

Depressão Palpitações Disestesias

Fonte: Gleeson D.9

4.4. Regime de redução


Apesar de termos discutido ao longo do capítulo sobre os riscos à saúde
vinculados ao uso de BZDs em longo prazo, a decisão de continuar, reduzir ou
descontinuar essa classe medicamentosa é baseada em um equilíbrio de
conhecimentos sobre sua indicação e eficácia, bem como interações
medicamentosas e custos.
Após investigar os motivos para o paciente ter iniciado o uso prolongado de
benzodiazepínicos, que podem envolver desde sintomas de insônia até quadros
psiquiátricos mais complexos, alguns pacientes serão elegíveis a receber
informações e planos para reduzir o uso desses medicamentos.
Os regimes de redução são baseados na experiência clínica e no consenso de
especialistas, assim, eles podem exigir adaptação dentro da prática. Recomenda-
se reduções graduais para as apresentações mais baixas disponíveis, como
sugestão de diminuir 25% a cada duas semanas. Já quando é atingido tal
objetivo, convém ter uma redução ainda mais lenta, com propostas de abater
12,5% a cada duas semanas, até a retirada completa.
No geral, esse processo pode levar de vários meses a mais de um ano,
dependendo dos efeitos da redução em cada paciente. O paciente deve ser
convidado a retornar para os atendimentos periodicamente e não se deve
progredir até que os efeitos de abstinência tenham cessado.
No processo de redução do BZD e da retirada gradual é importante que seja
avaliada a motivação do paciente, algo que deve ser abordado de forma
empática e respeitando a individualidade de cada um, como o tempo de uso e as
comorbidades psiquiátricas. Pacientes com transtorno de pânico e transtornos de
personalidade, por exemplo, são mais sensíveis ao aparecimento de quadros de
abstinência mais acentuado. Geralmente a retirada da primeira metade da droga
tende a ser mais fácil do que a retirada da porção final. Psicoeducação e
psicoterapia são recomendadas, a depender da análise de cada caso. Orientações
e psicoterapia em grupo podem ser úteis na motivação do paciente.
Quando o paciente é dependente de um BZD de meia-vida muito curta,
como é o caso do midazolam, existe uma boa sugestão de substituição por
BZDs de meia-vida longa (em especial diazepam, clonazepam e
clordiazepóxido) para facilitar a retirada gradual futura. Outra estratégia de que
podemos lançar mão seria a troca de um benzodiazepínico de meia-vida mais
curta para um de meia-vida mais longa, porém dessa vez em sua apresentação
em suspensão. Dessa forma, por meio da administração em gotas, podemos
fazer um ajuste mais assertivo e um desmame menos problemático para o
paciente. Uma alternativa, por exemplo, seria a administração de clonazepam
2,5mg/ml, fazendo redução a cada 7 dias de 1 gota, de forma que o paciente
permaneça com a menor dose tolerada ou até mesmo a suspensão por completo
do medicamento.

5. EFEITOS COLATERAIS
5.1. Comprometimento cognitivo
A administração aguda dos benzodiazepínicos pode induzir sedação e
sonolência, além de prejuízo no aprendizado, desaceleração psicomotora e
amnésia anterógrada. Um aspecto importante que vem sendo motivo de debates
é a capacidade de dirigir veículos dos pacientes que fazem uso de BZDs, já que
esses são associados a um aumento de 60% a 80% no risco de acidentes de
trânsito. Comportamento de dirigir ainda sob efeitos residuais das drogas Z vem
sendo observado em diversos relatos de casos, mas poucos desses estudos
utilizaram o exame polissonografia para auxiliar no achado; logo, essas
ocorrências podem também estar envolvidas com uso de outras substâncias
como álcool ou sonambulismo preexistente.
O uso prolongado de benzodiazepínicos tem sido associado a
comprometimento cognitivo significativo no longo prazo. Além disso, foi
observado aumento do risco de demência em vários estudos.

5.2. Efeito paradoxal


Os benzodiazepínicos podem ter um efeito desinibitório (especialmente em altas
doses), levando os pacientes a se comportarem de uma forma diferente do seu
caráter, muitas vezes se colocando em situações de risco, como comportamento
sexual de risco e direção imprudente.
Os pacientes também podem experimentar um efeito paradoxal, com
aumento da ansiedade, insônia, conversação, inquietação, mania e,
ocasionalmente, raiva e comportamento violento. Esses sintomas não costumam
aparecer com frequência, porém é necessário ficar atento para avaliar a troca da
medicação ou até mesmo sua suspensão, além de fazer um diagnóstico
diferencial com outras síndromes psiquiátricas descritas neste livro.

5.3. Depressão
Os pacientes que tomam benzodiazepínicos podem experimentar um
agravamento de um transtorno depressivo prévio ou um primeiro episódio
depressivo que aparece durante o uso do benzodiazepínico. Isso ocorre
principalmente pelo fato de essas medicações provavelmente reduzirem a
produção de neurotransmissores como a serotonina e noradrenalina.

6. BENZODIAZEPÍNICOS EM SITUAÇÕES
ESPECIAIS
6.1. Benzodiazepínicos e gravidez
Os benzodiazepínicos atravessam a barreira placentária; dessa maneira, devem
ser considerados os possíveis efeitos na gestação e no feto. Em diversos estudos,
incluindo os de grande quantidade populacional em coorte, não foi evidenciado
um aumento significativo no risco de malformações congênitas em gestantes
que fizeram uso de benzodiazepínicos. Algumas malformações já foram
associadas a essas medicações, como a presença de fenda labial, mas neles são
se abordam sobre fatores de confundimento, como indicação de uso do
medicamento, comorbidades e uso de outros remédios.
Altas doses de benzodiazepínicos, especialmente próximo ao parto, estão
associadas à hipotonia, à sonolência, à irritabilidade, a tremores e à dificuldade
na alimentação, além de baixos escores de Apgar, como desfecho da má
adaptação neonatal em até 25% dos expostos. Poucos estudos tentam avaliar a
exposição pré-natal e as repercussões danosas no desenvolvimento infantil, e os
que se propõem a isso não encontram associações significativas quando são
controlados para os fatores de confundimento.

6.2. Amamentação
Os benzodiazepínicos passam para o leite materno e devem ser utilizados com
cautela em mães que amamentam. Há relatos de reações adversas a bebês
(hipotonia, sonolência e apneia) cujas mães tomaram diazepam e clonazepam.
Apesar disso, em estudos de coorte, índices baixos de efeitos no bebê foram
referidos, à exceção do efeito sedativo no lactente. Algumas entidades tentam
monitorar os efeitos colaterais relacionados ao uso de substâncias e o
aleitamento materno, lorazepam e midazolam foram achados em níveis baixos e
são considerados seguros e sem necessidade de vigilância.

6.3. E aí, na prática?


Existem diversas razões na prática clínica em que os benzodiazepínicos podem
ser prescritos para os pacientes. Entretanto, raramente há uma indicação em que
os BZDs são iniciados como tratamento de primeira linha para algum transtorno.
Como exemplo, podemos citar os quadros de Transtorno de Ansiedade
Generalizada (TAG) e Transtorno de Pânico (TP), em que os antidepressivos são
considerados as medicações de escolha para o tratamento. Porém podemos
utilizar os BZDs em algumas situações com o objetivo de controlar rapidamente
os sintomas, como quando os pacientes não conseguem tolerar inicialmente os
efeitos colaterais relacionados ao antidepressivo escolhido ou quando ocorre,
de maneira aguda, episódios de ataques de pânico. Todavia, novamente
devemos nos atentar para o risco de dependência e abuso durante o seguimento
de qualquer paciente. Quando o assunto é insônia, os benzodiazepínicos
disponíveis no Brasil não são recomendados para o tratamento de qualquer tipo.
Além disso, sempre que uma eventual prescrição for realizada para esse fim,
deve-se debater os riscos e os benefícios com o paciente, além da recomendação
de uso por tempo limitado, com controle, monitoramento e planejamento. Para
cada receita dispensada, uma boa orientação.
O alprazolam e o clonazepam são os BZDs mais utilizados no tratamento do
TP. Particularmente, o alprazolam tem meia-vida curta e um efeito
relativamente rápido em iniciar sua ação; logo, é de grande valia no manejo dos
episódios de pânico. Mas sua característica principal também pode servir para
proporcionar sintomas de abstinência quando ocorre a retirada abrupta da
substância.
O clonazepam e o diazepam são drogas muito utilizadas por ter meia-vida
mais longa e eficácia em apenas uma única dose diária em diversos casos, como
transtorno de ansiedade generalizada e transtorno de ansiedade social. Durante o
curso e seguimento em TP, é comum se usar clonazepam em sua apresentação
de comprimidos sublinguais, que apresentam início de ação mais rápido (em até
30 minutos). Porém, devemos nos lembrar que muitas vezes os ataques de
pânico têm um curso natural autolimitado e duram apenas alguns minutos, sendo
assim, é possível que haja redução dos sintomas antes mesmo da ação do
clonazepam.
É importante orientar os pacientes que o uso do benzodiazepínico deve se
limitar pelo período de aproximadamente quatro semanas, tempo suficiente para
chegarmos a um efeito adequado de um antidepressivo inibidor seletivo da
recaptação da serotonina e que a proposta é da ação apenas em período de
adaptação para o controle de sintomas ansiosos.
Os BZDs, principalmente o diazepam, o lorazepam e o clordiazepóxido são
as medicações de escolha para o tratamento da Síndrome de Abstinência
Alcóolica (SAA). Em geral os benzodiazepínicos de ação prolongada e com
metabólitos ativos, como o diazepam, são úteis para aliviar os sintomas
glutamatérgicos da abstinência, principalmente para evitar o aparecimento de
convulsões. O lorazepam é preferível nos casos em que há hepatopatia grave.
Em casos de SAA grave, pode ser necessária a administração de diazepam por
acesso intravenoso, entretanto, esses casos requerem retaguarda para manejo
intensivo de eventuais complicações respiratórias. Em casos ambulatoriais, é
mais indicada a administração dos benzodiazepínicos por via oral.
Já os agonistas seletivos de receptores benzodiazepínicos apresentam perfil
favorável para efeitos sobre os sintomas de insônia. Apesar do seu importante
propósito nessa área, devemos lembrar que o tratamento do transtorno de
insônia crônica não se faz preferencialmente com remédios, segundo os maiores
guidelines mundiais (convém leitura do capítulo “Insônia” deste livro). Ainda
assim podemos lançar mão desse recurso terapêutico quando não temos fácil
disponibilidade de tratamentos como a terapia cognitivo-comportamental para
insônia.
As drogas Z podem, assim, servir na intervenção de casos de insônia aguda
(aquela que não preenche critérios para cronicidade, como tempo de
sintomatologia inferior a três meses), tanto em sua característica inicial quanto
de manutenção. Devemos sempre checar ao longo do seguimento os dois
principais objetivos do tratamento: melhora da qualidade do sono e alívio dos
prejuízos diurnos das noites maldormidas. A melhor recomendação é a
prescrição controlada e por pouco tempo, acompanhada de medidas não
farmacológicas, como a higiene do sono.
O zolpidem é recomendado para casos de insônia inicial e de manutenção.
Apresenta diversas formulações que podem ser selecionadas, a depender da
queixa apresentada pelo paciente, como as de liberação imediata (em dosagens
de 10mg e 5mg) e as de liberações lentas (em 6,25mg e 12,5mg). Os principais
efeitos colaterais incluem sonolência, tontura, dor de cabeça e sintomas
gastrointestinais. Deve-se atentar na probabilidade de ocorrer sonambulismo e
outras parassonias; logo, é recomendado que os pacientes utilizem esse
medicamento apenas quando já estiverem deitados aguardando o sono. Doses
diárias mais altas podem propiciar efeitos adversos importantes quando são
descontinuados abruptamente.
A zopiclona atua tanto nas subunidades alfa-1 e alfa-2 diferente do
zolpidem. É recomendada em doses de 3,75mg a 7,5mg para insônia de início e
manutenção. No Brasil dispomos da apresentação em comprimidos de 7,5mg.
Ela possui efeitos adversos semelhantes ao anterior, com o acréscimo de queixas
de gosto metálico na cavidade oral.

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SIGLAS

• BZD Benzodiazepínico
• GABA Ácido Gama-aminobutírico
• TP Transtorno de Pânico
• FDA Food and Drug Administration
• SAA Síndrome de Abstinência Alcóolica
As anfetaminas são aminas simpaticomiméticas, derivadas da efedrina
(encontrada na planta chinesa ma-huang ou ephedra) e da adrenalina, que
possuem atividade estimulante central e periférica. Em 1887, na Alemanha, foi
sintetizada a primeira anfetamina, a fenilisopropilamina, usada, inicialmente,
para hipotensão e como descongestionante nasal. A partir daí, foram sintetizadas
outras substâncias derivadas e seu uso foi associado a outras condições.
Constituem assim a estrutura prototípica dos psicoestimulantes sintéticos e que
possuem vários derivados que, conforme veremos, tanto podem ter efeito
terapêutico quanto levar a abuso e dependência.
Os psicoestimulantes produzem vários efeitos a depender da dose utilizada.
Doses baixas aumentam a atenção e a energia, promovem melhora cognitiva e
sociabilidade, enquanto reduzem a fadiga, a estimulação sexual e o apetite. Em
doses moderadas, causam euforia, comprometimento cognitivo e, em alguns
casos, alucinações. Altas doses geralmente produzem tremores, vômitos,
convulsões tônico-clônicas, agitação, ansiedade, psicose e hipertermia. O uso a
longo prazo pode levar à chamada “psicose por anfetamina” caracterizada por
alucinações e paranoia.
A ocorrência de alguns efeitos desejáveis, como a diminuição de apetite,
estimulação da atividade intelectual e supressão da fadiga fizeram seu uso se
expandir rapidamente, sendo inclusive empregadas pelas forças armadas
americanas no início da Segunda Guerra Mundial, para evitar fadiga e manter os
soldados alertas. Apesar da identificação dos riscos já mencionados, o consumo
continuou crescendo e, no final dos anos 1930, essas substâncias já eram
largamente aceitas e utilizadas nos EUA.
Em 1957, Maurice Lauffer, psiquiatra infantil e diretor da Bradley Home,
cunhou o termo “desordem hipercinética da infância” e a associação entre essas
substâncias e um transtorno infantil que tinha em seu centro a hiperatividade
começou a ser construída, sendo essa a base para o uso no transtorno de déficit
de atenção/hiperatividade (TDAH). Assim, os psicoestimulantes foram os
primeiros protagonistas do uso de medicamentos na prática da psiquiatria
infantil, que começou a ocorrer a partir da segunda metade dos anos 1950.
Quase todas essas substâncias apresentam potencial de abuso, com doses
recreativas muito maiores do que as prescritas pelos médicos para aplicações
terapêuticas. Elas podem induzir dependência, tolerância e sintomas de
abstinência. Fadiga e ansiedade podem aparecer quando o uso é interrompido e
os efeitos da substância desaparecem. Esses sintomas de abstinência (crash) são
mais intensos quando doses altas ou repetidas são administradas, enquanto
depressão e letargia podem aparecer.
Dessa forma, ao longo dos anos, o uso de psicoestimulantes tornou-se
generalizado, ocorrendo tanto em atividades recreativas quanto em condições
clínicas. Eles incluem:

1. drogas com potencial de abuso e nenhum uso médico aceito (beta-


catinonas e 3,4-metilenedioxi-metanfetamina – MDMA, o ecstasy);
2. drogas com potencial de abuso, mas aceito para uso médico com
restrições severas (anfetamina, metanfetamina e metilfenidato);
3. drogas com baixo potencial de abuso e com uso médico aceito para
algumas condições (dexfenfluramina, dextrometilfenidato).

Neste capítulo, nos concentraremos na discussão do uso terapêutico dos


psicoestimulantes aprovados para esse fim (lisdexanfetamina e metilfenidato).
Para mais detalhes sobre o uso abusivo, você deverá consultar o capítulo de
transtornos relacionados a estimulantes.
Para compreender como os estimulantes atuam, é necessário saber como a
dopamina (DA) é eliminada da fenda sináptica e armazenada. A regulação da
DA sináptica depende do funcionamento adequado de dois transportadores: o
transportador de dopamina (DAT) e o transportador vesicular de monoaminas
(VMAT). Após sua liberação, a DA pode atuar nos receptores pós-sinápticos ou
ser transportada de volta ao terminal por meio do DAT. Assim, a dopamina é
captada de volta ao neurônio dopaminérgico pelo DAT e, por fim, armazenada
na vesícula sináptica pelo VMAT dentro do neurônio pré-sináptico.
É importante destacar que os aspectos farmacocinéticos parecem ser tão
importantes para as ações dos estimulantes quanto seus mecanismos
farmacodinâmicos. Aparentemente os pacientes portadores de TDAH, por
exemplo, obtêm melhora terapêutica com estimulantes dependendo da rapidez,
da quantidade e da duração da ocupação do NAT (transportador de
noradrenalina) e do DAT. Assim, a diferença entre estimulantes como
tratamento e estimulantes como uso abusivo de substâncias reside na sua via de
administração e doses e no quão completamente e por quanto tempo o DAT é
bloqueado.

4. ANFETAMINA
A anfetamina bloqueia os transportadores de noradrenalina e de dopamina (NAT
e DAT), de modo competitivo, ao se ligar no sítio onde as monoaminas se
conectam com o transportador, inibindo a recaptação de NA (noradrenalina) e
de DA. Após inibição competitiva do transportador, a anfetamina é transportada
de “carona” para dentro da célula. Quando presente em altas quantidades, como
as que ocorrem no uso abusivo, a anfetamina também é um inibidor competitivo
do VMAT. Desse modo, quando a anfetamina pega outra carona nas vesículas
sinápticas, ela desloca e libera a DA, produzindo inundação de DA intracelular.
Conforme a DA se acumula no citoplasma do neurônio pré-sináptico, ela é
expelida do terminal por meio de dois mecanismos: a abertura dos canais para
descarga de DA na sinapse e a inversão na direção do DAT. Ou seja, atua
inibindo a recaptação da NA e DA para que ela mesma seja transportada. Essa
rápida liberação de DA está relacionada a reforço, recompensa e euforia e pode
levar a uso abusivo. Por sua vez, o efeito de início lento e em menor grau pode
ser consistente com ações antidepressivas e melhora da desatenção no TDAH.

Figura 1 - Mecanismo de ação da anfetamin.


Fonte: Stahl SM.5

Essa substância e seus derivados podem ser usados no manejo do TDAH,


pois nessa condição parece haver um enfraquecimento dos sinais
noradrenérgicos e dopaminérgicos no córtex pré-frontal. Por sua vez, o aumento
de dopamina disponível no nucleus accumbens provoca recompensa e euforia e
contribui para o potencial de dependência.

4.1. E na prática?
Lisdexanfetamina
O dimesilato de lisdexanfetamina (lisdexanfetamina) é um medicamento
farmacologicamente inativo, pró-droga da dextroanfetamina (dexanfetamina, d-
anfetamina) com o aminoácido L-lisina ligado a d-anfetamina. Foi
originalmente desenvolvido com o objetivo de fornecer uma duração de ação
mais longa e um potencial reduzido de abuso.
É aprovada pelo FDA para o tratamento de TDAH em crianças (a partir dos
6 anos) e adultos. É o primeiro medicamento a ser aprovado nos EUA para o
tratamento de Transtorno de Compulsão Alimentar (TCA) moderada a grave em
pacientes adultos. No caso do TDAH, está indicada quando não houve resposta
ao metilfenidato que, conforme veremos, é a droga de primeira escolha nesses
pacientes. Também pode ser prescrita nos casos de narcolepsia e depressão
resistente ao tratamento.
Após a ingestão, a parte farmacologicamente ativa, a d-anfetamina, é
liberada de forma gradual por meio de hidrólise. Apresenta pico de ação em
torno de 3,5 horas e as meias-vidas da lisdexanfetamina e d-anfetamina são 0,4
e 10,1 horas, respectivamente. A absorção não parece ser afetada por alimentos,
podendo ser ingerido tanto no estado alimentado quanto em jejum. A excreção
renal é a principal via de eliminação do pró-fármaco intacto, bem como da d-
anfetamina e seus metabólitos.
A dose inicial é de 30 mg administrado uma vez ao dia pela manhã, com ou
sem alimentos. A dosagem pode ser subsequentemente titulada para cima em
incrementos de 10 ou 20 mg/dia em intervalos de 1 semana; a dose máxima
recomendada é de 70 mg/dia. A dose terapêutica para TDAH varia entre 30-
70mg/dia, enquanto a dose para TCA costuma ser entre 50-70mg/dia. Devido à
ação prolongada, pode ser administrada por via oral uma vez ao dia,
preferencialmente pela manhã, para obter os efeitos durante o dia e evitar a
insônia à noite. As cápsulas podem ser abertas e seu conteúdo dissolvido em
água sem perda de efeito. Pode levar várias semanas para atingir o benefício
terapêutico máximo.
O tratamento é geralmente bem tolerado, com um perfil de eventos adversos
típico dos estimulantes, sendo relatado com mais frequência diminuição do
apetite, dor de cabeça, redução de peso, insônia, irritabilidade, boca seca e
náuseas. Além disso, o tratamento com lisdexanfetamina está associado a
pequenos aumentos na pressão arterial e na frequência cardíaca. O uso a longo
prazo foi associado a um efeito supressor de crescimento em crianças, e, por
isso, altura e peso devem ser avaliados antes e continuamente durante o
tratamento. Alguns efeitos colaterais potencialmente perigosos incluem psicose,
convulsões, hipomania/mania e efeitos cardiovasculares. O perfil de
tolerabilidade parece ser semelhante em pacientes com TDAH e naqueles com
TCA.
A lisdexanfetamina tem um baixo potencial para interações medicamentosas,
pois não é metabolizada pelas enzimas do citocromo P450, e qualquer interação
envolvendo a droga provavelmente é devido à d-anfetamina e seus metabólitos.
A coadministração de anfetaminas com medicamentos serotoninérgicos como
inibidores de recaptação da serotonina podem aumentar o risco de síndrome
serotoninérgica, então, se essa associação não puder ser evitada, a
lisdexanfetamina deve ser iniciada em doses mais baixas com monitoramento
dos efeitos adversos. Além disso, deve ser usada com cautela com anti-
hipertensivos e não deve ser administrada concomitantemente ou dentro de 2
semanas após a interrupção do tratamento com inibidor da monoamina-oxidase
(IMAO) devido ao potencial de precipitar crise hipertensiva. Pode ter seus
efeitos estimulantes inibidos pelo haloperidol, clorpromazina e lítio.
Essa medicação deve ser evitada se o paciente tiver tiques ou síndrome de
Tourette, pois pode piorar os tiques, e nos casos de hipertireoidismo, glaucoma,
anormalidades cardíacas estruturais, doença cardiovascular, hipertensão grave
ou histórico de abuso de substâncias. Existem dados limitados sobre o uso de
lisdexanfetamina em pacientes com mais de 65 anos e, devido à redução da
depuração com a idade, pode ser necessário reduzir a dose em idosos.
Dados sobre a segurança de medicamentos estimulantes no início da
gravidez são limitados. Estudos em animais sugerem que as anfetaminas em
doses muito altas podem aumentar o risco de malformações cardíacas ou outras
malformações. Estudos em humanos geralmente não encontraram um risco
aumentado de malformações quando esses medicamentos são utilizados
clinicamente, embora os dados sejam limitados.
Metilfenidato
O metilfenidato surgiu em 1944, sintetizado por Leandro Panizzon, químico de
uma indústria suíça, e o próprio, assim como sua esposa Marguerite, relatavam
fazer uso da nova substância como estimulante e tonificante do humor. Panizzon
nomeou, então, a substância de Ritalina®, em homenagem a esposa, que tinha
como apelido Rita. O metilfenidato foi utilizado, a princípio, para o tratamento
da fadiga crônica, letargia, depressão e narcolepsia. Assim, não foi
originalmente destinado ao tratamento de crianças com distúrbios de
comportamento.
Conforme vimos, os primeiros relatos do uso de psicoestimulantes na
psiquiatria infantil ocorreram no final dos anos 1950, mas foram entre os anos
1960 e 1970 que passou a se consolidar no meio médico e leigo o uso de
Ritalina® para tratar crianças com transtornos de comportamento. Considerando
as intervenções farmacológicas para TDAH, os medicamentos estimulantes são
considerados o tratamento de primeira linha, com o metilfenidato sendo a droga
de escolha há cerca de 50 anos e, atualmente, o psicoestimulante mais
consumido no mundo.
A comercialização do metilfenidato no Brasil teve início em 1998, quando a
Ritalina® foi inserida no mercado nacional e, desde então, o país vem
acompanhando a tendência mundial de crescimento do consumo desse
medicamento. A ampliação do diagnóstico do TDAH é uma das principais
causas desse aumento no consumo, com duas explicações possíveis: maior
capacidade dos profissionais de saúde em identificar a doença, que estaria desde
sempre presente na população, mas que era subdiagnosticada; e/ou a ocorrência
de uma banalização do diagnóstico, associado ao uso crescente, não prescrito,
por indivíduos que buscam seus efeitos estimulantes.
O metilfenidato é um derivado da piperidina, com estrutura similar à
anfetamina, que age bloqueando o NAT no córtex pré-frontal e o DAT no
nucleus accumbens por meio de uma ligação alostérica nesses transportadores
de monoaminas, aumentando a concentração desses neurotransmissores na
fenda sináptica. Observe que esse bloqueio é diferente do bloqueio competitivo
causado pelas anfetaminas, que se ligam no mesmo sítio onde as monoaminas se
conectam com o transportador.
O metilfenidato é comercializado no Brasil com os nomes comerciais
Ritalina®, Ritalina® LA e Concerta®, administrados por via oral. Esses
medicamentos possuem diferentes perfis de liberação no organismo: a Ritalina®
apresenta-se sob a forma farmacêutica de comprimidos de liberação imediata,
enquanto a Ritalina® LA como cápsulas de liberação modificada, e o Concerta®
como comprimidos de liberação prolongada. Vale destacar que as formulações
de liberação imediata estão associadas a um risco muito maior de uso indevido
do que de liberação prolongada, devido ao potencial de abuso.
Sua absorção por via oral é rápida e a ingestão de alimentos antes da
administração não parece alterar os efeitos farmacológicos substancialmente,
embora a absorção possa ser acelerada ou mais lenta, dependendo do teor de
gordura da refeição. A porcentagem de metilfenidato que se liga a proteínas
plasmáticas é baixa (em torno de 15%), cruzando rapidamente a barreira
hematoencefálica. O efeito clínico é percebido de 15 a 30 minutos após a
ingestão, e o pico plasmático ocorre em torno de 2 horas depois. Sua meia-vida
é de 3 horas, mas o efeito costuma durar em torno de 4 horas. É metabolizado
por meio da esterificação por enzimas intestinais e as enzimas do citocromo
P450 têm um papel metabolizador mínimo.
A dose média diária para o metilfenidato de liberação imediata no
tratamento de TDAH varia de 0,8 mg/kg/dia a 1,12 mg/kg/dia, administrado 2
ou 3 vezes ao dia. Em geral, deve-se começar com 5mg, aumentando 5 a 10mg
por semana, com recomendação de administrar a última dose antes das 18 horas,
para evitar insônia. Formulações de liberação prolongada podem ser usadas em
dose única diária, o que favorece a adesão.
O uso de metilfenidato não é recomendado em crianças menores de 6 anos
de idade, pois não são estabelecidos os critérios de segurança e efetividade para
essa faixa etária. O uso por curto prazo não costuma causar efeitos colaterais
graves. A maioria dos efeitos adversos é manejável e, geralmente, não é
necessário interromper o uso. Os efeitos adversos mais frequentes são
diminuição do apetite, insônia, elevação dos níveis pressóricos, taquicardia e
dor de cabeça. Está contraindicado nos casos de angina, arritmias cardíacas,
glaucoma, insuficiência cardíaca, hipertensão severa e hipertireoidismo. Os
possíveis eventos graves são o comportamento agressivo, a disfunção hepática,
o acidente cerebrovascular e a diminuição do crescimento. A retirada deve ser
gradual, pois pode causar fadiga, depressão e hiperatividade de rebote.
No grupo das gestantes, observa-se que o prolongamento do esvaziamento
gástrico que ocorre durante a gravidez, pode aumentar o tempo de pico
plasmático para o metilfenidato de liberação imediata. Além disso, o volume de
distribuição nessas pacientes pode afetar os efeitos terapêuticos e um ajuste de
dose pode ser necessário. A baixa ligação a proteínas plasmáticas e o baixo peso
molecular sugerem que o metilfenidato possa atravessar a barreira placentária e
atingir a circulação fetal, mas o risco de efeitos teratogênicos ainda é
desconhecido. Portanto, a decisão quanto ao uso deve ser individualizada,
considerando risco-benefício de cada caso. No aleitamento, a dose relativa do
bebê (a proporção da quantidade de medicamento ingerido pelo bebê em
comparação com a dose materna) encontrada em estudos é de 0,7%, sugerindo
pouca exposição infantil por meio do leite materno. Doses infantis inferiores a
10% são consideradas seguras para a lactação.

Tabela 1 - Psicoestimulantes usados na prática clínica.

Indicações
Dose
Medicamento Apresentação (aprovadas Efeitos Adversos
Terapêutica
pelo FDA)

Ritalina® Insônia, cefaléia,


comprimido 10mg; Máximo de irritabilidade,
Metilfenidato
® 60mg para redução do apetite,
(Ritalina®, Ritalina LA
®
cápsulas 10, 20, 30, TDAH Ritalina e taquicardia,
Ritalina LA®,
54mg para hipertensão,
40mg; Concerta®
Concerta®)
comprimidos 18, 36, Concerta® exacerbação de
54 mg tiques, retardo no
crescimento em
Lisdexanfetamina Venvase® cápsulas TDAH 30-70 mg/dia crianças, psicose,
(Venvanse®) 30, 50, 70mg TCA 50-70 mg/dia mania, convulsões

Fonte: elaborada pelos autores.

5. PSICOESTIMULANTES E USO NÃO


TERAPÊUTICO
Desde o final dos anos 1990, vem crescendo o interesse e o debate sobre a
possibilidade de melhorar o funcionamento cognitivo de pessoas saudáveis por
meio de medicamentos, conceito chamado de neuroaprimoramento. Entretanto,
as evidências ainda são baixas de drogas que melhorariam o desempenho
cognitivo em indivíduos saudáveis. Há pesquisas limitadas e nenhuma que seja
conclusiva se os estimulantes podem melhorar, por exemplo, o desempenho
acadêmico naqueles estudantes que o usam sem indicação médica formal.
Alguns estudos, inclusive, mostram que alunos que abusam do metilfenidato
podem ter médias mais baixas de notas.
Apesar disso, pesquisas mostram ser frequente o uso indevido de
medicamentos estimulantes por estudantes (particularmente no ensino médio e
na universidade), o que é impulsionado pelo desejo de ser mais produtivo e/ou
ficar acordado (melhoria de desempenho) e querer se sentir bem ou ficar
“chapado” (recreativo). Também é comum que as pessoas que fazem uso sejam
abordadas por outras pessoas que desejam comprar seus estimulantes. Uma
grande proporção de pacientes com TDAH chega a desviar a medicação de suas
prescrições para a venda. O desvio também pode estar ligado ao fingimento ou
exagero nos sintomas para obter um diagnóstico de TDAH e a prescrição de
estimulantes, e essa prática aparentemente não é incomum.
Outros possíveis grupos de risco para abuso de anfetamínicos incluem
obesos, que tendem a usar essas substâncias com o objetivo de emagrecimento;
caminhoneiros, que usam “rebite” para controle do sono em viagens de longas
distâncias; usuários de outras substâncias ilícitas e pacientes com comorbidades
em saúde mental. Assim, o aumento do consumo dos psicoestimulantes e o alto
potencial para abuso e dependência evidenciam a necessidade de fornecer
informação segura e promover seu uso racional e cauteloso por meio de
prescrição controlada.

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SIGLAS

• DA Dopamina
• DAT Transportador de dopamina
• IMAO Inibidor da Monoamina-Oxidase
• MDMA 3,4-metilenedioximetanfetamina
• NA Noradrenalina
• NAT Transportador de Noradrenalina
• TCA Transtorno de Compulsão Alimentar
• TDAH Transtorno de Déficit de Atenção com Hiperatividade
• VMAT Transportador Vesicular de Monoaminas
Este capítulo dedica-se a esmiuçar particularidades dos psicotrópicos
(em ordem alfabética) mais comuns na vida do generalista. Pacientes com
especificidades como gestantes, lactantes, idosos, crianças e com
comorbidades clínicas são contemplados nestse capítulo.

1. ÁCIDO VALPROICO
Gestantes: é considerado de categoria de risco D. Verificou-se que o
ácido valproico atravessa a barreira placentária, causando um alto potencial
teratogênico nos fetos expostos a esse medicamento. Possui um alto risco
de causar malformações congênitas (aumentando o risco em cerca de cinco
vezes), além de provocar distúrbios no desenvolvimento neurológico.
Mulheres em idade fértil em uso dessa medicação devem utilizar métodos
contraceptivos efetivos sem interrupção durante todo o tratamento com o
ácido valproico, devendo informar imediatamente ao seu médico se
pretenderem engravidar. O uso durante o primeiro trimestre tem sido
associado a um risco de 3% a 5% de defeitos do tubo neural, bem como a
aumento do risco de outras malformações que afetam o coração e outros
órgãos. Está associado à teratogênese, sobretudo defeitos do tubo neural (p.
ex., espinha bífida); esse risco envolve cerca de 1% a 4% das mulheres que
recebem o ácido valproico durante o primeiro trimestre de gestação
(podendo-se tentar minimizar esses riscos com uso de suplementos diários
de ácido fólico, 1 a 4 mg ao dia). Ou seja, todas as mulheres em idade fértil
que usam o fármaco devem receber essa suplementação.
Lactantes: é excretado no leite humano. Logo, a decisão quanto à
descontinuação da amamentação ou da terapia com ácido valproico deve ser
feita levando em consideração o benefício da amamentação para a criança e
o benefício da terapia para a paciente. Em geral, as concentrações séricas
dessa substância nos lactentes variam de 1% a 10% das concentrações
séricas maternas; porém, não há dados sugerindo que essa ocorrência
represente risco para o bebê. Por conseguinte, em geral não é
contraindicado a lactantes.
Crianças e adolescentes: nos primeiros meses de vida ocorre uma
notável diminuição na capacidade de eliminação do íon valproato (quando
comparadas com crianças mais velhas e adultos); isto é, um resultado da
depuração reduzida, assim como o volume aumentado de distribuição.
Logo, crianças com idade inferior a 2 anos têm um aumento de risco
considerável de desenvolvimento de hepatotoxicidade, e esse risco diminui
progressivamente em pacientes mais velhos. Neste grupo de pacientes, o
ácido valproico deve ser utilizado com extrema cautela, devendo-se avaliar
cuidadosamente os riscos e os benefícios do tratamento. Acima de 2 anos,
experiência em epilepsia indicou que a incidência de hepatotoxicidade fatal
diminui consideravelmente. Crianças jovens, especialmente aquelas que
estejam recebendo medicamentos indutores de enzimas, vão requerer doses
de manutenção maiores para alcançar as concentrações de ácido valproico
desejadas. Esse grupo de pacientes deve ser monitorado de perto para o
desenvolvimento de lesão hepática aguda, com avaliações clínicas regulares
e monitoramento do teste da função hepática.
Idosos: devido a um decréscimo na depuração, é possível uma maior
sensibilidade à sonolência nos idosos. Logo, a dose inicial deverá ser
reduzida nesses pacientes. Se for necessário o aumento da dose, deve
ocorrer mais lentamente e com regular monitorização da ingestão de
alimentos e líquidos. A melhor dose terapêutica deverá ser alcançada com
base na resposta clínica e na tolerabilidade.
Insuficiência renal: a eliminação do ácido valproico e de seus
metabólitos ocorre principalmente na urina, em uma menor quantidade nas
fezes. Uma pequena redução (27%) na depuração do íon valproato não
ligado foi relatada em pacientes com insuficiência renal (depuração de
creatinina < 10 mL/minuto). No entanto, a hemodiálise tipicamente reduz as
concentrações de valproato em torno de 20%. Portanto, em geral, ajustes de
doses não são necessários em pacientes com insuficiência renal.
Insuficiência hepática: o ácido valproico é metabolizado quase
totalmente pelo fígado. Doenças hepáticas diminuem sua capacidade de
eliminação; logo, é contraindicada em doenças hepáticas ou disfunções
hepáticas significativas.
Os fatores de risco para hepatotoxicidade devido ao uso de ácido
valproico incluem: juventude (menos de 3 anos de idade), uso concomitante
de fenobarbital e presença de problemas neurológicos, especialmente erros
metabólicos inatos. Portanto, o risco dessa reação adversa em pacientes
psiquiátricos adultos é baixo. Mesmo assim, se ocorrerem sintomas como
letargia, mal-estar, anorexia, náusea, vômito, edema e dor abdominal,
decorrentes do uso do ácido valproico, o clínico deve considerar a
possibilidade de hepatotoxicidade grave.
As concentrações plasmáticas de carbamazepina, diazepam,
amitriptilina, nortriptilina, fluoxetina e fenobarbital podem se elevar quando
são coadministrados com o ácido valproico, e as de fenitoína e desipramina
podem diminuir nas mesmas circunstâncias. Pessoas tratadas com
anticoagulantes (p. ex., aspirina e varfarina) também devem ser
monitoradas quando o uso do ácido valproico é iniciado, a fim de avaliar o
desenvolvimento de possível potencialização indesejada dos efeitos
anticoagulantes. Pode interagir com o lítio, aumentando o tremor, e com
clozapina, aumentando a sedação.
Contraceptivos hormonais contendo estrogênio podem aumentar
o clearance do ácido valproico, o que pode diminuir a concentração de
valproato e aumentar a frequência de crises epiléticas. Recomenda-se que
os médicos monitorem os níveis séricos de ácido valproico e sua resposta
clínica quando houver introdução ou retirada de medicamentos contendo
estrogênio, preferencialmente durante os intervalos do ciclo de
contraceptivos hormonais.
O ácido valproico mais que duplica as concentrações da lamotrigina, o
que aumenta o risco de uma erupção grave (síndrome de Stevens-Johnson e
necrólise epidérmica tóxica).

2. ALPRAZOLAM
Gestantes: o uso do alprazolam durante a gestação não foi associado a
maior risco de alterações congênitas, nem alterações cardíacas
especificamente. Contudo, a associação dessa classe de medicamentos com
antidepressivos apresentou aumento significativo no número de
malformações congênitas, devendo ter o uso reavaliado nesses casos.
Importante lembrar que os benzodiazepínicos estão associados ao risco de
adição física, com importantes sintomas em caso de abstinência, incluindo
sinais de abstinência do recém-nascido em mães que usaram maiores doses
no último trimestre.
Lactantes: o uso de alprazolam nessa fase deve ser evitado devido a
relatos de sonolência dos lactentes, principalmente em neonatos ou
prematuros.
Crianças e adolescentes: a administração de alprazolam só é aprovada
para pacientes acima de 18 anos.
Idosos: recomenda-se fazer uso com menor dose possível e com
aumento mais lento e gradual de alprazolam devido à maior sensibilidade a
benzodiazepínicos nessa faixa etária.
Insuficiência renal: uma vez que a excreção do alprazolam e de seus
metabólitos seja renal, recomenda-se reajuste da dose em caso de
comprometimento da função renal.
Insuficiência hepática: devido à intensa metabolização hepática, é
aconselhado o reajuste da dose em caso de algum grau de insuficiência
hepática sob risco de aumento da concentração sérica e de efeitos adversos.

3. AMITRIPTILINA
Gestantes: uma ligação definitiva entre a amitriptilina e efeitos
teratogênicos ainda não foi bem estabelecida, mas há relatos isolados. Por
atravessar a placenta, pode ocorrer abstinência neonatal do fármaco; essa
síndrome inclui taquipneia, cianose, irritabilidade e baixo reflexo de sucção.
Portanto, se possível, devem ser descontinuados no mínimo uma semana
antes do parto. Na gestante, a amitriptilina pode vir a causar efeitos
anticolinérgicos como constipação, taquicardia e retenção urinária. Apesar
do exposto, decorrente do seu longo período no mercado, o uso da
amitriptilina tem sido bem estabelecido ao longo dos anos; um estudo
evidenciou mais de 400 recém-nascidos expostos esse medicamento, e em
nenhum foi comprovado consistentemente um aumento do risco de
malformações congênitas. Por conseguinte, devido aos prós e aos contras,
deve ser prescrito após esclarecimento e consentimento da gestante.
Lactantes: a amitriptilina é excretada no leite materno, mas em
concentrações que, em geral, não são detectáveis no plasma do bebê.
Todavia, em razão do potencial para reações adversas causadas pela
amitriptilina em lactentes, deve-se decidir entre descontinuar o
medicamento ou a amamentação. Caso seja um desejo da mãe amamentar, o
bebê deverá ser monitorado para o surgimento de possíveis efeitos
colaterais.
Crianças e adolescentes: em vista da falta de estudos com a
amitriptilina para depressão em crianças abaixo de 12 anos, seu uso é
recomendado para crianças acima de 12 anos. Para o tratamento da enurese,
recomenda-se a utilização em crianças acima de 6 anos. Esses grupos de
pacientes geralmente apresentam tolerância reduzida a esse fármaco. Em
termos de alterações comportamentais ao longo do tempo em uso, ainda
existem poucos estudos, não havendo evidência de alterações a nível do
desenvolvimento comportamental, quociente intelectual, desenvolvimento
da linguagem, temperamento, distratibilidade e comportamento na 1ª
infância.
Idosos: em geral, recomendam-se as posologias mais baixas para esses
pacientes por serem especialmente sensíveis aos efeitos adversos do
fármaco. Para pacientes idosos que podem não tolerar doses mais altas, 50
mg por dia podem ser satisfatórios. A dose diária necessária pode ser
administrada em doses divididas ou como uma única dose. Esse grupo de
pacientes geralmente apresentam tolerância reduzida a esse medicamento.
Insuficiência renal: deve ser usada com cautela em pacientes com
histórico de retenção urinária (em virtude de sua ação atropínica).
Insuficiência hepática: deve ser usada com cautela em pacientes com
histórico de função hepática comprometida. Aumentos leves e
autolimitados nas concentrações séricas de transaminase podem ocorrer e
devem ser monitorados. Pode também causar hepatite aguda fulminante em
0,1% a 1% das pessoas.
Doenças cardiovasculares: é contraindicado em casos de infarto agudo
do miocárdio recente (nas últimas 4 semanas) e também em pacientes com
distúrbio de condução cardíaca. Podem produzir arritmia, taquicardia
sinusal e prolongamento do tempo de condução, particularmente quando
ministrados em doses altas. Quando administrados em suas dosagens
terapêuticas habituais, pode causar taquicardia, achatamento das ondas T,
prolongamento dos intervalos QT e depressão dos segmentos ST na
gravação eletrocardiográfica. Doses acima de 1 g em geral são tóxicas e
podem levar ao óbito por arritmia cardíaca ou hipotensão grave.
É contraindicado se estiver recebendo tratamento para depressão com
medicamentos inibidores da monoaminoxidase (IMAO); não devem ser
tomados antes que tenha transcorrido um intervalo de 14 dias da
administração de um IMAO. O uso de outros antidepressivos
concomitantemente pode resultar em reações adversas indesejáveis. Pode
ocorrer síndrome serotoninérgica com a administração de amitriptilina
associada a outras substâncias que aumentam a serotonina.
A amitriptilina pode bloquear a ação anti-hipertensiva da guanetidina ou
de compostos de ação similar. Os efeitos anti-hipertensivos dos antagonistas
dos receptores – adrenérgicos (p. ex., propranolol e clonidina) podem ser
bloqueados pelos antidepressivos tricíclicos.
A amitriptilina pode aumentar a resposta ao álcool e os efeitos dos
barbitúricos e de outros depressores do SNC. Foi relatado delírio após
administração concomitante de amitriptilina e dissulfiram. Alguns pacientes
podem ter um grande aumento na concentração de amitriptilina na presença
de topiramato. O risco de tontura pode ser aumentado em pacientes que
utilizam tramadol concomitantemente com amitriptilina.
Antidepressivos tricíclicos devem ser administrados em doses mais
baixas com fármacos que podem inibir o citocromo P450 2D6 (p. ex.:
quinidina, cimetidina) e aquelas que são substratos para P450 2D6 (vários
outros antidepressivos, fenotiazinas e os antiarrítmicos Tipo 1C
propafenona e flecainida).

4. ARIPIPRAZOL
Gestantes: as pesquisas mostram evidências de teratogenicidade em
animais com doses bem superiores às doses recomendadas em seres
humanos, porém não há estudos adequados que estabeleçam o uso seguro
em gestantes humanas. É um medicamento considerado categoria C pela
FDA. Pode ser uma boa alternativa ao uso de anticonvulsivantes para efeito
estabilizador do humor. Sempre é adequado ponderar o uso durante a
gestação, sendo este indicado quando os benefícios superarem os riscos.
Mulheres em período fértil com história de psicose grave ou transtornos de
humor refratários e em uso de aripiprazol devem ser acompanhadas de perto
por um obstetra ou desestimuladas a engravidar. Há risco de síndrome de
retirada em recém-nascidos cujas mães fizeram uso de aripiprazol no
terceiro trimestre da gestação.
Evidências demonstraram que a própria doença mental está associada a
um risco aumentado de efeitos adversos durante a gravidez e o parto,
incluindo anormalidades placentárias, baixo peso ao nascer, retardo de
crescimento intrauterino e sofrimento fetal, independentemente de qualquer
risco associado ao uso de antipsicóticos. Por esse motivo, embora exista um
potencial para os antipsicóticos afetarem negativamente a mãe, o feto, o
recém-nascido e a criança em desenvolvimento (os quais ainda precisam ser
esclarecidos e quantificados), o dano potencial de não tratar doenças
psiquiátricas durante a gravidez deve ser também cuidadosamente levado
em consideração. Para algumas mulheres com doença psiquiátrica leve,
pode ser tomada uma decisão mediada entre a paciente e o médico
assistente para explorar outras opções de tratamento durante a gravidez. No
entanto, para outras mulheres grávidas com doença mental grave, a decisão
de suspender a medicação pode levar a resultados catastróficos que variam
da exacerbação dos sintomas existentes e recaída ao aumento dos riscos de
automutilação ou suicídio deliberado.
Lactantes: é comprovado que há secreção de aripiprazol no leite
materno, devendo a amamentação ser desestimulada. Caso seja um desejo
da mãe de amamentar, o bebê deverá ser monitorado para o surgimento de
possíveis efeitos colaterais.
Crianças e adolescentes: trata-se de um medicamento que vem
despontando como uma excelente opção para tratamento de alterações
comportamentais no transtorno do espectro autista, psicoses de início
precoce e transtorno bipolar infantil, demonstrando-se tanto eficaz como
seguro. Algumas indicações para uso de aripiprazol na faixa etária
pediátrica aprovadas pela FDA: esquizofrenia em adultos e adolescentes de
13 a 17 anos; tratamento agudo de episódios maníacos ou mistos associados
ao Transtorno Bipolar I em monoterapia e como terapia adjuvante ao lítio
ou valproato em adultos e pacientes pediátricos de 10 a 17 anos;
irritabilidade associada ao transtorno autístico em pacientes pediátricos (6 a
17 anos); tratamento do transtorno de Tourette em pacientes pediátricos de
6 a 18 anos.
Idosos: mostrou-se um medicamento seguro e eficaz, sendo bem
tolerado na prática clínica e, geralmente, não sendo necessários ajustes de
dose. Mesmo assim, sempre é recomendado iniciar o tratamento com doses
mais baixas e aumentos futuros devem ser feitos de forma gradual. Vários
estudos mostram aumento da mortalidade por eventos cerebrovasculares em
pacientes idosos usuários de aripiprazol e com diagnóstico de demência do
tipo Alzheimer. Apresenta menor incidência de acatisia, sonolência e
síndrome extrapiramidal. Além disso, o aripiprazol mostrou baixo risco de
ganho de peso, prolongamento do intervalo QTc no ECG ou alterações
adversas nos níveis de glicose e lipídios. Comparações com haloperidol em
casos de delirium hiperativo sugerem eficácia igual com menor incidência
de SEP.
A faixa etária infantojuvenil mostrou-se mais sensível ao ganho de peso
que adultos, mesmo assim em menor proporção que em outros
antipsicóticos atípicos. As doses usuais do medicamento são bem toleradas,
recomendando-se iniciar com 1-5 mg/dia (sendo que estas já se mostram
como doses terapêuticas na faixa etária em questão), porém doses efetivas
de tratamento são consideradas entre 5 e 15 mg/dia. A incidência média de
sintomas extrapiramidais em crianças e adolescentes tratados com
aripiprazol é de 17,1%.
Insuficiência renal: não há evidências de que seja necessário ajuste da
dose.
Insuficiência hepática: não há evidências de que seja necessário ajuste
da dose.

5. CLONAZEPAM
Gestantes: o uso de clonazepam durante a gestação, bem como o de
outros benzodiazepínicos, não foi associado a maior risco de alterações
congênitas (excetuando lábio leporino e fenda palatina por meio de dados
inconsistentes), nem alterações cardíacas especificamente. Contudo, a
associação dessa classe de medicamentos com antidepressivos apresentou
aumento significativo no número de malformações congênitas, devendo ter
o uso reavaliado nesses casos. Importante lembrar que os benzodiazepínicos
estão associados ao risco de adição física, com importantes sintomas em
caso de abstinência.
Lactantes: o uso de clonazepam por mães que estão amamentando
geralmente leva à sedação do lactente. A sedação pode ser maior em caso
de associação com outras medicações sedativas. Se o uso de algum
benzodiazepínico for necessário no período da lactação, recomenda-se
administrar algum que tenha meia-vida curta.
Crianças e adolescentes: clonazepam é seguro para ser utilizado em
qualquer idade, incluindo recém-nascidos, com boa tolerabilidade e
segurança, desde que utilizados nas doses prescritas para diminuir os efeitos
da sonolência.
Idosos: apresenta boa segurança, contanto que sejam tomadas
precauções específicas para essa faixa etária, com início mais baixo da dose
usual de adultos e com aumento mais lento.
Insuficiência renal: os metabólitos do clonazepam sofrem excreção
renal. Portanto, diminuição da taxa de filtração glomerular deve ser
acompanhada de ajuste da dose diária para evitar efeitos adversos.
Insuficiência hepática: as doses diárias devem ser reavaliadas em
qualquer quadro de comprometimento hepático, devendo ser suspensas em
casos de insuficiência hepática grave.

6. CLORPROMAZINA
Gestantes: o uso de clorpromazina por gestantes não apresentou maior
risco de alterações congênitas do que a população geral.
Lactantes: a clorpromazina não interfere na produção do leite materno.
Pouca quantidade é detectada no leite, apresentando pouco risco para o
lactente. Contudo, é possível que o bebê possa ficar um pouco sonolento. A
associação com o haloperidol em mulheres que estão amamentando deve
ser acompanhada de perto devido ao risco de aumento da sonolência da
criança.
Crianças e adolescentes: é uma medicação que apresenta um bom
perfil de segurança para ser utilizada em crianças acima de 2 anos de idade.
Recomenda-se iniciar com uma dose de 1 mg/kg/dia, dividida entre 2 a 3
tomadas, devido à maior taxa de metabolização e excreção que essa idade
naturalmente apresenta.
Idosos: apresenta bom perfil de tolerabilidade nessa faixa etária. Deve-
se tomar cuidado com a maior sensibilidade a efeitos adversos para essa
população, sendo recomendado início com dose mais baixa que o habitual e
com aumento mais lento.
Insuficiência renal: uma vez que a maior parte desse antipsicótico é
excretado pela urina, é importante considerar ajuste da dose em população
com algum comprometimento renal.
Insuficiência hepática: ajuste da dose de clorpromazina faz-se
necessário em casos de insuficiência hepática devido à grande
metabolização hepática.

7. DIAZEPAM
Gestantes: deve ser estritamente evitado, principalmente no primeiro e
no último trimestre da gravidez. No primeiro trimestre, em especial entre a
6ª e a 9ª semana, o uso está associado a risco aumentado de lábio leporino e
fenda palatina; já no terceiro trimestre, o uso pode associar-se ao
desenvolvimento da síndrome de abstinência no recém-nascido. Deve ser
evitado o uso contínuo sempre que possível, principalmente em altas doses
e por períodos prolongados.
Lactantes: não é recomendado o uso durante a amamentação; o
diazepam passa para o leite materno, podendo causar sonolência e
prejudicar a sucção da criança.
Crianças e adolescentes: uma vez que a segurança e a eficácia em
crianças ainda não foram bem estabelecidas, o diazepam deverá ser
utilizado nesse grupo etário com extrema cautela e somente quando outras
alternativas terapêuticas não estiverem disponíveis. Reações paradoxais
como inquietude, agitação, irritabilidade, agressividade, delírios, raiva,
pesadelos, alucinações, psicoses ou comportamento anormal podem ocorrer.
Quando isso ocorre, deve-se descontinuar o uso da droga.
Idosos: pacientes idosos devem receber doses menores devido à maior
sensibilidade. Esses pacientes devem ser acompanhados regularmente no
início do tratamento para minimizar a dosagem e/ou frequência de
administração, para prevenir reações paradoxais como: inquietude,
agitação, irritabilidade, agressividade, delírios, raiva, pesadelos,
alucinações, psicoses ou comportamento anormal. Quando isso ocorre,
deve-se descontinuar o uso da droga. Alguns indivíduos também
experimentam ataxia (menos de 2%) e tontura (menos de 1%). Esses
sintomas podem resultar em quedas e fraturas de quadril, sobretudo em
idosos. Também está associado à hipotensão e perda cognitiva.
Insuficiência renal: deve ser usado com cautela por pessoas com
história de doença renal. Pode vir a causar incontinência ou retenção
urinária.
Insuficiência hepática: deve ser usado com cautela por pessoas com
história de doença hepática. O diazepam deve ser evitado se houver
insuficiência grave do fígado. Pacientes com distúrbios do funcionamento
do fígado devem receber doses menores. Pode causar aumento da fosfatase
alcalina sanguínea e elevação das transaminases (muito raramente).
Indivíduos idosos com doença hepática têm maior probabilidade de
apresentar efeitos adversos e toxicidade relacionados a diazepam (incluindo
coma hepático), em particular quando são administrados de modo repetitivo
ou em doses elevadas.
Interações medicamentosas: o uso concomitante de diazepam com
álcool e/ou depressores do sistema nervoso central deve ser evitado. Essa
utilização concomitante tem potencial para aumentar os efeitos clínicos do
diazepam, incluindo possivelmente sedação grave, depressão cardiovascular
e/ou respiratória clinicamente relevante.
Ataxia e disartria têm probabilidade maior de ocorrer quando o
diazepam é associado ao lítio, a antipsicóticos e ao clonazepam. Observou-
se que a combinação com clozapina pode causar delirium.
Medicamentos como cimetidina, dissulfiram, isoniazida, estrógeno e
contraceptivos orais aumentam a concentração plasmática de diazepam.

8. ESCITALOPRAM
Gestantes: experimentos em animais não demonstraram aumento do
risco de malformações congênitas, havendo pouca possibilidade de ocorrer
baixo peso ao nascer. Foram descritos raros casos de hipertensão pulmonar
e apneia do recém-nascido com o uso no terceiro trimestre de gestação. É
um medicamento considerado categoria C pela FDA.
Lactantes: pequenas quantidades de escitalopram poderão ser
encontradas no leite materno de mães que fazem uso do medicamento. Caso
a criança apresente irritabilidade ou sedação, tem-se a opção de suspender o
aleitamento ou cessar uso do remédio, devendo então ser feita uma
avaliação médica para ponderação de riscos e benefícios. De toda forma, os
estudos não se mostram conclusivos, cabendo mais uma vez ponderar se há
maior prejuízo em manter-se com ou sem o escitalopram.
Crianças e adolescentes: muitos estudos demonstraram frequente
associação do uso de escitalopram com o surgimento de comportamento
suicida em crianças e adolescentes, devendo haver uma monitorização da
resposta do medicamento principalmente no início do tratamento; mesmo
assim, a taxa de descontinuação devido a eventos adversos e suicidas foi
baixa e não significativamente diferente entre os grupos que usam
escitalopram e placebo. Tem aprovação para uso em transtorno depressivo
maior em adolescentes (12-17 anos) e no transtorno de ansiedade de
separação em crianças e adolescentes. Tem-se mostrado um medicamento
bem tolerado e eficaz em outros transtornos de ansiedade. O tratamento
com escitalopram foi geralmente bem tolerado em adolescentes.
Idosos: é um medicamento bem tolerado por idosos, sugerindo-se
iniciar com uma dose não maior que 5 mg/dia. É comum responderem bem
ao tratamento com baixas doses, devendo-se avaliar aumentos somente após
8 semanas. Doses maiores que 10 mg/dia aumentam os riscos de efeitos
colaterais. O escitalopram não foi significativamente melhor que o placebo
em melhorar o humor ou a cognição em indivíduos com demência e
sintomas depressivos concomitantes. Os resultados dos estudos sugerem
que, nesses casos, o escitalopram pode ser eficaz somente quando a
gravidade da depressão é alta.
Insuficiência renal: casos de insuficiência leve a moderada não
necessitam de ajuste, devendo ser utilizado com cautela em pacientes com
insuficiência grave.
Insuficiência hepática: dose máxima recomendada é de 10 mg/dia.

9. FLUOXETINA
Gestantes: a fluoxetina pode ser administrada durante a gravidez se os
benefícios do tratamento justificarem o risco potencial dessa droga. Deve-se
ter cuidado com o uso da fluoxetina durante a gestação, particularmente no
final da gravidez, quando os sintomas transitórios podem, raramente,
acometer os recém-nascidos após o uso da droga próximo ao termo; isso
pode causar tremores transitórios, dificuldades na alimentação e
irritabilidade. O seu uso no terceiro trimestre também foi associado a alguns
relatos de casos que evoluíram com complicações perinatais (taquipneia,
icterícia, parto pré-termo), bem como baixo peso ao nascer. Além disso, uso
de fluoxetina após a vigésima semana de gestação pode estar associado ao
aumento de risco de hipertensão pulmonar persistente no recém-nascido.
Apesar disso, os índices de recaída de depressão durante a gestação
entre mulheres que descontinuam a fluoxetina são bem altos. Portanto,
muitas mulheres precisam continuar com a medicação durante a gravidez e
o pós-parto. Existem vários estudos que não evidenciaram aumento do risco
de malformação congênita após a exposição durante a gravidez, logo, o
risco de recaída em depressão, quando uma gestante recente interrompe o
uso, é várias vezes mais elevado do que o risco para o feto ao ser exposto ao
medicamento.
Em relação às consequências do seu uso no desenvolvimento
neuropsicomotor do recém-nascido, estas permanecem ainda pouco
esclarecidas. Contudo, existem estudos que mostram que crianças expostas
à fluoxetina durante a gestação não se diferenciam da população controle
quanto ao desenvolvimento físico, intelectual, social ou de linguagem na
idade escolar.
Lactantes: a fluoxetina é excretada no leite materno. Caso seja um
desejo da mãe de amamentar, o bebê deverá ser monitorado para o
surgimento de possíveis efeitos colaterais.
Crianças e adolescentes: o uso em crianças e adolescentes é
controverso. Entretanto, algumas crianças e adolescentes realmente exibem
respostas impressionantes a esses medicamentos em termos de depressão e
ansiedade. Portanto, a dose deve ser titulada com cuidado e deverá ser
monitorada para o surgimento de possíveis efeitos colaterais.
Idosos: não foram observadas diferenças na segurança e na eficácia da
fluoxetina em pacientes idosos, se comparados a adultos jovens.
Insuficiência renal: foram relatados casos de hiponatremia em parte
dos pacientes idosos ou pacientes que estavam utilizando diuréticos em
associação com fluoxetina (p. ex.: furosemida, hidroclorotiazida).
Insuficiência hepática: deve ser administrado com cautela em
pacientes que usam medicamentos com metabolismo hepático.
Interações medicamentosas: é contraindicado para pacientes que estão
utilizando IMAO; essa contraindicação permanece até no mínimo 14 dias
após a suspensão de qualquer IMAO para iniciar o tratamento com
fluoxetina.
O uso em combinação com tioridazina é contraindicado devido ao risco
da ocorrência de efeitos adversos graves.
Medicamentos ativos no sistema nervoso central, tais como fenitoína,
carbamazepina, haloperidol, clozapina, diazepam, alprazolam, lítio,
imipramina e desipramina, sofrem alterações nos níveis sanguíneos. Drogas
que se ligam às proteínas do plasma (p. ex.: ácido acetilsalicílico, fenitoína,
diclofenaco, diazepam) podem causar uma mudança na concentração
plasmática da fluoxetina. Pode interagir com a varfarina, aumentando o
risco de sangramento e de equimose.

10. HALOPERIDOL
Gestantes: grávidas que fizeram uso de haloperidol durante período
gestacional não demonstraram aumento no risco de desenvolver alterações
congênitas que fossem superiores à população geral. O uso como
antiemético em gestante (off-label), que normalmente não ultrapassa 1
mg/dia, também não foi associado a alterações congênitas. Alguns estudos,
no entanto, mostram que o uso desse antipsicótico durante a gestação pode
ocasionar prematuridade ou baixo peso ao nascer.
Lactantes: existem poucos estudos com doses maiores que 10 mg/dia
em puérperas que estão amamentando. Ainda assim, a quantidade
encontrada no leite é bem pequena, não afeta a produção do leite materno e
não traz efeitos adversos. Contudo, a associação com outros antipsicóticos
pode ocasionar consequências para o lactente.
Crianças e adolescentes: haloperidol tem segurança comprovada em
crianças e adolescentes. Recomenda-se a dose de 0,1 mg / 3 kg duas vezes
ao dia. Lembrando que, devido ao aumento da taxa de metabolização
hepática e da taxa de filtração glomerular em crianças, algumas
medicações, dentre estas o haloperidol, necessitam de fracionamento da
dose diária para manter a estabilidade da concentração.
Idosos: a população com faixa etária acima de 60 anos é mais sensível
aos efeitos do haloperidol. Recomenda-se iniciar com dose mais baixa que a
usual para um adulto e progredir de forma mais lenta para evitar efeitos
adversos, como sintomas extrapiramidais ou sonolência excessiva.
Insuficiência hepática: o haloperidol sofre metabolização hepática por
muitas vias, incluindo o sistema enzimático do citocromo P450. Portanto,
qualquer grau de diminuição da função hepática deve ser acompanhado de
um ajuste da dose de haloperidol.
Insuficiência renal: uma quantidade muito pequena de haloperidol é
excretada de forma inalterada pela urina, em torno de 3%. Portanto, quadros
de insuficiência renal não necessitam de reajuste das doses desse
antipsicótico. Seguindo esse raciocínio, pacientes que necessitem de
hemodiálise não precisam de uma dose extra após a sessão, uma vez que
somente uma pequena quantidade é removida.

11. LÍTIO
Gestantes: o lítio ainda é considerado a terapia de primeira linha para
transtorno bipolar em gestantes. Apesar dessa recomendação, apenas 16%
das mulheres com transtorno bipolar têm a prescrição de lítio durante a
gravidez e apenas 6,3% das mulheres usaram lítio no terceiro trimestre,
indicando que a maioria das mulheres interrompe o lítio durante a gravidez.
Há uma recomendação de que o lítio só deve ser usado em gestantes quando
os antipsicóticos se mostraram ineficazes no controle dos sintomas. O uso
de lítio durante a gravidez não foi associado à pré-eclâmpsia, diabetes
durante a gravidez, sofrimento fetal, polidrâmnio, hemorragia pós-parto ou
indicação de cesariana. Trata-se de um medicamento bastante associado
com malformações cardíacas no primeiro trimestre de gestação,
principalmente anomalia de Ebstein. Não parece afetar a cognição do bebê
a longo prazo. Seu uso deve ser descontinuado em casos de hiperêmese
gravídica, pois a suposta desidratação secundária a perdas hídricas seria um
forte fator de risco para intoxicação materna pelo lítio. Enjoos matinais
comuns demandam aumento da ingesta de líquidos por parte da paciente. Já
no terceiro trimestre, é associado à hipotonia fetal (Síndrome do Bebê
Hipotônico). Se, em algum momento, optar-se pela descontinuação do lítio,
esta deve ser feita de forma gradual. Tal decisão deve sempre levar em
conta a gravidade do transtorno mental, pois sabe-se que um episódio
maníaco no curso da gestação traz graves prejuízos tanto para a mãe quanto
para o feto. O uso de lítio deve ser retomado de imediato no pós-parto,
devendo-se ter em mente que uso de antipsicóticos de 2ª e 3ª gerações
entram como uma opção menos danosa como substituintes do lítio no
decorrer da gestação. Anticonvulsivantes estabilizadores do humor têm
maior chance de causar teratogenicidade que o lítio. Quando se pesa o
risco-benefício, o lítio ainda seria uma melhor opção para ser usado em
gestantes. Nesse caso, a ecocardiografia fetal deve ser realizada com
periodicidade. Outro fato que tem bastante relevância é que, devido ao
aumento da taxa de filtração glomerular na gestante, os níveis séricos de
lítio tendem a baixar, sendo muitas vezes necessários aumentos de dose e,
por consequência, frequentes avaliações dos níveis séricos através da
litemia. A dosagem usual deve ser retomada no pós-parto, de modo a evitar
a intoxicação. É um medicamento considerado categoria D pela FDA.
Lactantes: o lítio é uma substância hidrofílica com amplo volume de
distribuição, estando bastante presente no leite materno. A relação risco-
benefício deve sempre ter um importante peso na decisão de amamentar.
Sinais de intoxicação devem sempre ser observados no recém-nascido,
como hipotonia, letargia e reflexos anormais.
Crianças e adolescentes: o uso de lítio só é aprovado pela FDA a partir
dos 13 anos de idade. Não há benefício adicional estatístico com o uso de
lítio na faixa etária pediátrica <12 anos de idade.
Idosos: em pacientes sem comorbidades clínicas, é um medicamento
eficaz e bem tolerado. Seu uso fica muito limitado quando há
concomitância com doenças que exigem dietas especiais ou que afetam a
taxa de filtração glomerular. Idosos têm maior predisposição a intoxicação
pelo íon de lítio (pela facilidade com a qual desidratam), devendo seu uso
ser feito com cuidado, iniciando-se com uma dose de 150 mg/dia e os
aumentos futuros sendo guiados por litemias seriadas.
Insuficiência renal: o uso em pacientes com nefropatias associadas à
insuficiência renal grave deve ser contraindicado. Se a taxa de filtração
glomerular for > 50 mL/min, os ajustes de dose poderão ser feitos de forma
mais tranquila. Vale ressaltar que os primeiros sinais de intoxicação pelo
lítio são ataxia, disartria e tremores grosseiros. O lítio deve permanecer em
níveis sanguíneos adequados (0,6 a 1,2 mEq/L). Cabe ao médico assistente
orientar o paciente e seus familiares sobre os sinais de intoxicação. Níveis
de litemia > 4 mEq/L podem ser indicativos de hemodiálise. Realizar
eletrocardiograma, função renal e função tireoidiano são essenciais para a
manutenção ambulatorial de pacientes usuários de lítio.
Insuficiência hepática: sem indicações especiais.

12. METILFENIDATO
Gestantes: infelizmente, trata-se de um medicamento com estudos
bastante controversos sobre o risco de teratogenicidade na gestação e, por
recomendação geral, seu uso deve ser desestimulado antes de gestações
programadas. Sabe-se que, por ser um medicamento lipofílico, atravessa a
barreira hematoplacentária. Há poucos estudos eficazes que negam a
possibilidade de malformações fetais associadas ao metilfenidato e parece
não aumentar o risco de complicações com o uso no terceiro trimestre
gestacional. É categorizado como Risco C pela FDA.
Lactantes: como não se sabe muito sobre a secreção no leite materno, o
uso do metilfenidato deve ser feito cautelosamente, observando qualquer
comportamento anormal no bebê.
Crianças e adolescentes: o uso de metilfenidato só é aprovado a partir
dos 6 anos de idade. O uso off-label em crianças menores deve ser
ponderado por um especialista. Ficou bem estabelecido nos últimos anos
que o medicamento tem efeitos inibidores agudos na secreção do hormônio
do crescimento, sendo necessário um acompanhamento a longo prazo,
porém não parece haver prejuízos na altura final do paciente, devendo peso
e altura ser monitorados a cada 6 meses. A maioria dos estudos a esse
respeito indica que, com o abandono do tratamento, a taxa de crescimento
acelerou e compensa a perda inicial após a suspensão do medicamento.
Pode-se considerar pausas no uso do medicamento caso a altura esteja
sendo muito afetada. É recomendado realizar um eletrocardiograma antes
de iniciar o tratamento com metilfenidato, pois seu uso foi relacionado à
morte súbita em crianças com problemas cardíacos. É necessário exame
clínico que também avalie a possível história de patologia cardíaca, alguma
história de síncope e uma história familiar de morte súbita em familiares
com menos de 40 anos de idade. Basicamente, a pressão arterial e a
frequência cardíaca devem ser avaliadas, e essa avaliação deve ser repetida
a cada 3-6 meses. Se as primeiras medições detectarem uma taxa maior que
100 batimentos por minuto ou se a pressão sistólica ou diastólica estiver
acima do percentil 95, ela deverá ser repetida após 10 minutos. Se a
taquicardia for persistente, se houver um histórico sugestivo de arritmia, ou
se houver um histórico familiar, é apropriado solicitar uma avaliação
eletrocardiográfica de 24 horas. Estudos sobre os efeitos cardiovasculares
do metilfenidato mostram um possível aumento da pressão arterial e da
frequência cardíaca no curto prazo. Na maioria dos indivíduos, esses
aumentos são mínimos (1-4 mmHg na pressão sistólica, 1-2 mmHg na
diastólica e 1-2 batimentos por minuto em frequência). Apesar de essas
alterações serem mínimas em termos de magnitude, elas contribuem para a
preocupação com uma associação com o aparecimento de efeitos
cardiovasculares graves, devendo-se ponderar sobre os riscos de pressão
arterial elevada nesses pacientes, sendo a suspensão do medicamento uma
boa tática para cessar prováveis danos futuros. Perda do apetite e insônia
são outros efeitos colaterais comuns em crianças. Foi encontrada uma
prevalência de distúrbios do sono de 10% em pacientes que iniciaram o
medicamento e aumentou proporcionalmente dependendo da dose utilizada,
principalmente em crianças com baixo índice de peso/massa corporal. Tal
efeito pode ser aliviado com a última dosagem por volta das 17 horas.
Idosos: é um medicamento bem tolerado quando o tratamento é iniciado
com doses menores que as habituais. Os efeitos colaterais tendem a ser
leves e remitem com a suspensão do medicamento. Tem indicação como
coadjuvante no tratamento de depressão resistente.
Insuficiência renal: não há evidências de que seja necessário ajuste da
dose.
Insuficiência hepática: não há evidências de que seja necessário ajuste
da dose.

13. QUETIAPINA
Gestantes: sintomas de abstinência podem ocorrer em recém-nascidos
cujas mães tenham feito uso de quetiapina durante a gravidez. Porém,
alguns estudos com exposição intraútero à quetiapina não evidenciaram
danos ao feto, não demonstrando nenhum padrão específico consistente de
malformação relacionado a esse medicamento. São necessários mais
estudos para uma comprovação definitiva. No caso de uma resposta clínica
satisfatória, as mulheres que recebem quetiapina podem ser orientadas por
não mudar a estratégia de tratamento, sendo necessária monitoração.
Lactantes: a mãe deve ser orientada a evitar a amamentação enquanto
faz uso desse medicamento. Os bebês em amamentação, cujas mães optam
por usar quetiapina, devem ser monitorados para o surgimento de efeitos
adversos.
Crianças e adolescentes: a segurança e a eficácia da quetiapina ainda
não estão bem consolidadas em crianças e adolescentes com depressão
bipolar. Também não estão bem consolidadas a segurança e a eficácia em
crianças com idade inferior a 13 anos com esquizofrenia e mania bipolar.
Reações adversas podem ocorrer em maior frequência em crianças e
adolescentes do que em adultos, como: aumento do apetite, elevações da
prolactina sérica, aumento na pressão arterial, vômito e síncope. Raramente,
o aumento dos níveis de prolactina no sangue pode ocasionar inchaço dos
seios e produção inesperada de leite em meninos e meninas. Meninas
podem não ter ciclos menstruais ou ter ciclos irregulares.
Idosos: se comparada a adultos saudáveis, a depuração da quetiapina
em idosos pode ser até 50% menor. A dose inicial deve ser de 25 mg/dia,
com aumento gradual e com dose final menor que em jovens. Pode causar
hipotensão ortostática em idosos.
Insuficiência renal: em geral, não é necessário realizar ajustes de dose.
Insuficiência hepática: podem ocorrer pequenos aumentos transitórios
de transaminases hepáticas.
Interações medicamentosas: pode interagir com bebidas alcoólicas e
outras medicações que atuam no cérebro e no comportamento, ou em
conjunto com outras medicações que são conhecidas por causar
desequilíbrio eletrolítico ou por aumentar o intervalo QT. O uso de
quetiapina deve ser evitado em combinação com outros agentes conhecidos
por prolongarem QTc, incluindo antiarrítmicos da classe (ex.: quinidina,
procainamida, amiodarona e sotalol), medicamentos antipsicóticos (p. ex.,
ziprasidona, clorpromazina, tioridazina), antibióticos (p. ex., gatifloxacino,
moxifloxacino) ou qualquer outra classe de medicamentos conhecidos por
esse tipo de ação (p. ex., pentamidina, acetato de levometadil, metadona).
Evitar uso também se estiver tomando medicações com efeitos
anticolinérgicos e se estiver tomando: tioridazina, carbamazepina, fenitoína,
cetoconazol, rifampicina, barbitúricos, antifúngicos azóis, antibióticos
macrolídeos, inibidores de protease (medicamentos usados para o
tratamento de pacientes portadores do HIV) e medicamentos que causam
constipação.

14. RISPERIDONA
Gestantes: é um medicamento considerado categoria C pela FDA,
porém os resultados iniciais dos estudos com exposição intraútero à
risperidona não evidenciaram danos ao feto. Faz-se necessário estudos de
melhor qualidade para uma comprovação definitiva. O haloperidol e a
olanzapina mostraram-se mais seguros para uso durante a gestação que a
risperidona. No caso de uma resposta clínica satisfatória, as mulheres que
recebem quetiapina ou risperidona devem ser orientadas por não mudar a
estratégia de tratamento. É importante ressaltar que, para os medicamentos
comumente usados na gravidez, incluindo olanzapina, risperidona,
clozapina e quetiapina, nenhum padrão específico de malformação
relacionado a eles tem sido consistentemente demonstrado.
Lactantes: são detectados níveis significativos tanto de risperidona
quanto de seu metabólito ativo (9-OH-risperidona) no leite materno. Os
bebês cujas mães optam por usar risperidona devem ser monitorados para o
surgimento de efeitos adversos. A amamentação deve ser desencorajada
quando doses elevadas de risperidona estiverem sendo utilizadas.
Crianças e adolescentes: trata-se do medicamento mais utilizado
atualmente nos termos de psiquiatria da infância e adolescência, tendo seu
uso aprovado para esquizofrenia (a partir dos 13 anos), transtorno bipolar
(sejam episódios mistos ou maníacos a partir dos 10 anos) e
irritabilidade/agressividade associadas ao autismo (5 a 16 anos). Os efeitos
colaterais são mais comuns que em adultos, destacando-se parkinsonismo,
aumento no peso, distonia aguda, sialorreia e hiperprolactinemia. A sedação
é comum no início do tratamento, porém tende a ser amenizada com o
passar do tempo de uso e pode reaparecer com aumentos de dose
posteriores. Recomenda-se o uso noturno nas primeiras semanas. A taxa de
benefícios do uso de risperidona em crianças com autismo 8 anos após o
início do tratamento chega a 67%. Foi observado um padrão de benefícios
contínuos em amplas áreas da sintomatologia relacionados à risperidona,
reforçando os prováveis benefícios terapêuticos continuados.
Idosos: síndrome metabólica é bastante comum em pacientes idosos que
usam risperidona, o que também aumenta o risco de eventos cardiológicos e
cerebrovasculares. É importante um acompanhamento regular do perfil
metabólico (colesterol, glicemia e triglicerídeos) como forma de prevenir
maiores danos em pacientes suscetíveis. Recomenda-se iniciar o
medicamento com doses entre 0,25 mg e 0,5 mg/dia, mantendo-se a menor
dose possível para estabilização. O acompanhamento com dosagem dos
níveis séricos da substância não traz benefício adicional. Em pacientes com
doença de Alzheimer que tiveram psicose ou agitação que responderam à
terapia com risperidona por 4 a 8 meses, a descontinuação da risperidona
foi associada a um risco aumentado de recidiva.
Insuficiência renal: a principal via de excreção da risperidona é a renal,
e em casos de função renal prejudicada, ajustes de dose devem ser feitos
baseados na taxa de filtração glomerular. Recomenda-se iniciar, também,
com dose de 0,5 mg/dia. Quanto mais tempo seu metabólito ativo passa na
circulação, maior será o risco de efeitos adversos.
Insuficiência hepática: faz-se necessário ajuste de dose, começando
com cerca de 0,5 mg/dia e não realizando novos aumentos antes de duas
semanas. A monitorização das enzimas hepáticas deve ser feita com
regularidade.

15. SERTRALINA
Gestantes: não há estudos que comprovem um risco absoluto ao feto
ocasionado pela sertralina durante a gestação, prevalecendo sempre
ponderar sobre os prejuízos que a descontinuação ou a substituição do
medicamento poderiam ocasionar. O risco relativo (mesmo que baixo, deve
ser considerado) refere-se ao surgimento de defeitos de septo cardíaco (no
primeiro trimestre gestacional) e hipertensão pulmonar do recém-nascido
(no terceiro trimestre gestacional), sendo os resultados das pesquisas
controversos sobre um risco real. É um medicamento considerado categoria
C pela FDA.
Lactantes: ocorre a presença de sertralina e de seus metabólitos
(principalmente a desmetilsertralina) no leite materno, sendo a quantidade
variável e proporcional à dose total ingerida do medicamento; porém, tal
fato não contraindica a amamentação. Isso ocasiona um uso seguro no
período da amamentação. A sertralina apresenta concentrações menores no
leite materno e concentrações ainda mais baixas – muitas vezes
indetectáveis – no sangue do bebê. Ao considerar um antidepressivo a uma
mulher que precisa amamentar, não há uma opção 100% segura ou uma
opção de algoritmo de tratamento universalmente aceito, porém a sertralina
seria uma excelente primeira escolha.
Crianças e adolescentes: é um medicamento que tem se demonstrado
eficaz no tratamento de diversos transtornos mentais do espectro da
ansiedade. As doses usuais variam entre 50-200 mg e tem uso aprovado a
partir dos 6 anos de idade, podendo as doses mais elevadas (100-200
mg/dia) serem prescritas a partir dos 13 anos.
Idosos: essa faixa etária tem uma melhor tolerância com doses baixas
do medicamento. Ocasiona melhora de pensamentos suicidas, sendo bem
seguro seu uso em maiores de 65 anos de idade. Tem baixo perfil de
interação com outros medicamentos, porém sua meia-vida tende a estender-
se em pacientes idosos quando comparado a adultos jovens. Assim como
em outros inibidores seletivos de recaptação de serotonina, há risco de
síndrome da secreção inapropriada de hormônio antidiurético.
Insuficiência renal: não se faz necessário ajuste de dose. Sertralina não
é removida por hemodiálise.
Insuficiência hepática: hepatopatas devem usar metade da dose usual
do medicamento, evitando concentrar a dose total diária em uma única
tomada. Foi relatado que anormalidades nos testes hepáticos ocorrem em
até 1% dos pacientes em uso de sertralina, mas as elevações são geralmente
modestas e raramente requerem modificação ou descontinuação da dose.
Foram notificados casos raros de episódios agudos e clinicamente aparentes
de lesão hepática com elevações acentuadas das enzimas hepáticas com ou
sem icterícia em pacientes em uso de sertralina. O início da lesão é
geralmente de 2 a 24 semanas após o início do uso e o padrão de elevação
das enzimas séricas variou de hepatocelular a misto e colestático.
Características autoimunes (autoanticorpos) e imunoalérgicas (erupção
cutânea, febre, eosinofilia) são incomuns. A insuficiência hepática aguda
devido à sertralina foi descrita, mas é muito rara.
16. VENLAFAXINA
Gestantes: a venlafaxina não apresentou aumento nos riscos de
malformação congênita em mulheres que fizeram uso dela durante a
gestação. Gestantes com hipertensão ou com pré-eclâmpsia e que fazem uso
de venlafaxina devem passar por uma avaliação mais criteriosa devido ao
risco de aumento dos níveis pressóricos.
Lactantes: a venlafaxina é considerada uma medicação de uso seguro
durante a lactação. A concentração encontrada no leite materno é
proporcional à dose administrada. Portanto, deve-se ter cuidado com
mudanças bruscas da dose para evitar efeitos na descontinuação da
medicação.
Crianças e adolescentes: o uso de venlafaxina só é regulado pela
ANVISA para pacientes acima de 18 anos. Os estudos com essa medicação
em adolescentes e crianças têm demonstrado segurança, mas não sem riscos
de efeitos adversos. O mais comum é cefaleia, podendo chegar até a
ideação suicida.
Idosos: não existe ajuste de dose devido à idade. Contudo, pacientes
portadores de hipertensão arterial sistêmica devem evitar usar a
venlafaxina, sob risco de piora dos níveis pressóricos.
Insuficiência renal: pacientes com esse perfil devem ter suas doses
reguladas e talvez diminuídas de acordo com sua taxa de filtração
glomerular, podendo chegar em até 50% da dose de manutenção em casos
de hemodiálise.
Insuficiência hepática: o uso de venlafaxina por pacientes que
apresentem algum grau de insuficiência hepática deve ser evitado. Se o
paciente já faz uso dessa medicação e com boa resposta, deve-se avaliar a
redução da dose para até 50% da dose de manutenção.

17. ZOLPIDEM
Gestantes: o uso de zolpidem deve ser evitado durante a gravidez,
apesar de estudos em animais não indicarem efeitos nocivos diretos ou
indiretos em relação à toxicidade reprodutiva. O zolpidem atravessa a
placenta. Por conseguinte, sua administração durante a fase final da
gravidez ou durante o trabalho de parto pode ser associada com efeitos na
criança recém-nascida, como hipotermia, diminuição do tônus muscular,
dificuldades na alimentação (o qual pode resultar em um baixo ganho de
peso) e depressão respiratória.
Lactantes: embora a concentração de zolpidem no leite materno seja
baixa, ele deve ser evitado.
Idosos: pessoas com mais de 65 anos devem tomar metade da dose
habitualmente prescrita para adultos (recomenda-se uma dose de 5 mg,
sendo que a dose de 10 mg não deve ser excedida). Pacientes idosos ou
debilitados podem apresentar uma sensibilidade maior aos efeitos do
zolpidem; por isso, recomenda-se um acompanhamento mais rígido nesse
tipo de paciente.
Crianças: a segurança e a eficácia de zolpidem em pacientes com idade
inferior a 18 anos ainda não estão bem estabelecidas. Dessa forma, sempre
que possível, o zolpidem deve ser evitado para essa população.
Insuficiência renal: pode ser necessário reduzir a dose do zolpidem em
alguns pacientes.
Insuficiência hepática: deve ser utilizado com cautela em pacientes
portadores de insuficiência hepática. Considerando que existe uma redução
da depuração (clearance) e do metabolismo do zolpidem em pacientes com
essa patologia, recomenda-se a administração de 5 mg por dia. Esses
pacientes devem ser cuidadosamente monitorados. Caso a resposta clínica
em adultos (abaixo de 65 anos) seja inadequada e o medicamento bem
tolerado, pode-se aumentar a dose para 10 mg. Porém, não é recomendado o
uso de zolpidem caso o paciente tenha insuficiência hepática severa, uma
vez que pode contribuir para encefalopatia.
Interações medicamentosas: não é aconselhada a ingestão de álcool,
benzodiazepínicos e de outros depressores do sistema nervoso central, pois
isso pode provocar um aumento da depressão do sistema nervoso central.
Essa interação promove uma intensificação do efeito sedativo do zolpidem,
com reflexo sobre a vigilância, aumentando o risco na condução de veículos
ou na operação de máquinas.
Devem ser monitorados cuidadosamente a associação com derivados
morfínicos e barbitúricos, pois podem causar o aumento do risco de
depressão respiratória.
A clozapina pode aumentar o risco de colapso circulatório e de parada
cardíaca e/ou respiratória. O aumento da depressão do sistema nervoso
central também pode ocorrer no caso de uso concomitante com
antipsicóticos, agentes antidepressivos, analgésicos narcóticos, drogas
antiepiléticas, anestésicos e anti-histamínicos.

18. OLANZAPINA
Gestantes: o uso de olanzapina em gestantes não foi associado com
malformações congênitas. Apesar de alguns estudos mais antigos terem
sinalizado isto, não foi encontrado relação causal entre o uso desse
antipsicótico com diabetes gestacional.
Lactantes: baixos níveis de olanzapina são encontrados no leite
materno ou no sangue do bebê que acabou de amamentar. O uso de
olanzapina não está associado a efeitos colaterais ao bebê, e os poucos
estudos de longo prazo com crianças que foram amamentadas com por
mães que faziam uso de olanzapina não demonstraram qualquer alteração
em seu desenvolvimento.
Crianças e adolescentes: no Brasil, o uso da olanzapina só é aprovado
para crianças acima de 13 anos de idade. Contudo, não é raro o uso off-label
(fora da regulação da ANVISA) para alguns casos como esquizofrenia ou
transtorno bipolar abaixo dessa idade. Independentemente da idade de
início, deve-se lembrar que a olanzapina pode ocasionar ganho de peso e
resistência à insulina, sendo um importante fator de risco para obesidade e
doenças cardiometabólicas.
Idosos: o uso em idosos deve ser iniciado com doses mais baixas (2,5
mg/dia) que o usual e com aumentos mais lentos devido à menor taxa de
metabolização nessa faixa etária. Isso diminui os riscos de efeitos adversos,
como sedação.
Insuficiência renal: diminuição da taxa de filtração glomerular em
paciente com insuficiência renal por qualquer causa não influenciam na
concentração de eliminação da olanzapina, não necessitando de reajuste de
dose nesse quadro.
Insuficiência hepática: pacientes com algum grau de acometimento
hepático devem ter sua dose de olanzapina reavaliada. Enzimas de lesão
hepática (TGO e TGP) devem ser solicitadas para avaliação e
acompanhamento mais contínuo.

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SIGLA

• FDA Food and Drug Administration


Oriunda de reformulações das ideias e das concepções médicas a
respeito dos fenômenos mentais, a psicoterapia surge engajada na separação
entre as explicações míticas e filosóficas e os princípios científicos e
racionais. Ao reconhecer a complexidade do sofrimento humano, constantes
eram os esforços médicos em fundamentar princípios lógicos a um
exercício que utilizava o discurso como instrumento para mitigar o
sofrimento de natureza psíquica.
É no final do século XIX que a psicoterapia é utilizada como uma
prática médica, um método de tratamento das doenças psicológicas capaz
de produzir efeitos curativos, de acordo com as teorias psiquiátricas e sua
leitura acerca da subjetividade. Entre 1880 e 1900 aparecem as primeiras
psicoterapias propriamente ditas pelo surgimento dos laboratórios de
psicologia experimental, de psicoterapias sugestivas e da psicanálise.
Conhecida como talk therapy, a psicoterapia, desde sua gênese,
destacava a palavra como característica principal, ficando sob pano de
fundo as preocupações fisiológicas. Para isso, é preciso que haja um
profissional habilitado e reconhecido para o exercício de uma relação que
tem reverberações no psiquismo de alguém que demanda por esse trabalho,
alterando sentimentos, pensamentos e condutas. Trata-se de uma atividade
mais colaborativa entre o paciente e o terapeuta do que uma ação
predominantemente unilateral, como ocorre em outros tratamentos médicos.
Considerando os diversos horizontes teóricos e metodológicos que originam
as psicoterapias, a relação com o paciente é estabelecida como condição
para o tratamento. Recomenda-se, assim, que exista uma relação em que
terapeuta assuma uma postura empática, ao oferecer a sua disponibilidade
em escutar, e que a pessoa que o procurou deseje falar do seu sofrimento,
um engajamento de mão dupla.
Como profissão, um campo prático, ela pode ser exercida por
psicólogos, psiquiatras e psicoterapeutas. Discussões atuais acerca da
regulamentação do exercício da atividade reavivam um debate que deve se
aproximar muito mais do rigor teórico, e com ele o compromisso científico,
social e ético das práticas psicoterápicas, do que do cerceamento das
atividades.
A psicoterapia exige um rigor o qual só é possível de ser alcançado a
partir de uma teoria que lhe dê sustento. Cada teoria constitui uma
abordagem terapêutica, que desenvolveu um método próprio de tratamento
e carrega consigo suas diferenças quanto aos objetivos do tratamento, a
frequência das sessões, a postura do terapeuta e suas técnicas.
Dessa forma, o presente capítulo reúne e examina, de forma objetiva, as
especificidades das principais abordagens terapêuticas, a saber: Psicanálise,
Terapia Cognitivo-Comportamental e Humanismo. Faz-se importante
destacar que, além das práticas aqui tratadas, existem diversos outros
modelos teóricos nesse vasto campo das psicoterapias.
Antes disso, é preciso ressaltar dois pontos que merecem atenção e
envolvem tais práticas: o fato de a psicoterapia ter efeitos reconhecidos
cientificamente e o de que vários teóricos estabeleceram indicações e
contraindicações a determinadas abordagens.
Estudos mostram que a aliança terapêutica medida no início do
tratamento tem sido preditora de resultado e apontam que a qualidade da
relação entre terapeuta e paciente, além das características de personalidade
de ambos, estão associadas com o estabelecimento da base relacional para
melhores resultados clínicos.
Pesquisas já evidenciam há algum tempo os benefícios das
psicoterapias. Há o risco de conflito de interesses em pesquisas que
evidenciam a eficácia de determinada abordagem para um desfecho
específico e reconhece que a resposta ao tratamento varia de acordo com a
técnica e as situações avaliadas, sendo escassas as pesquisas que tratem os
resultados de forma abrangente, considerando a diversidade de abordagens.
Ademais, os estudos ainda se mostram inconclusos, havendo necessidade de
maior compreensão dos fatores que influenciam os resultados dos processos
psicoterápicos.
Isso posto, considera-se a psicoterapia um efetivo recurso de tratamento
e, aliada a psicofármacos, quando necessários, pode ser eficaz à saúde do
paciente. Reconhecendo isso, longe de conceitos preconcebidos sobre
abordagens, é que se instaura a exposição pretendida para este capítulo.
Assim, convida-se o médico generalista a pensar a compreensão das
queixas emocionais do paciente por meio, também, das bases psicoterápicas
dispostas aqui. Tal estruturação pode gerar melhor condução clínica dos
tratamentos, menos trocas medicamentosas, otimização de recursos
disponíveis ao tratamento, como também, trazer mais segurança ao
profissional que se propõe a oferecer o cuidado pelo melhor suporte teórico
para compreensão do sofrimento humano.

1. TERAPIA COGNITIVO-
COMPORTAMENTAL
A terapia cognitivo-comportamental (TCC) deriva da integração de duas
linhas de psicoterapia – terapia cognitiva e terapia comportamental – e
engloba um extenso número de técnicas e estratégias de tratamento. Juntas,
compõem uma importante abordagem psicoterápica para a prática clínica
cotidiana.
A terapia comportamental surge antes da cognitiva e partir de meados da
década de 1960, a TCC, como a nomeamos hoje, emerge com o médico
psiquiatra Aaron Beck. Ao estudar pacientes deprimidos, Beck percebeu
que estes apresentavam fluxos de pensamentos negativos que pareciam
surgir espontaneamente. Ele denominou essas cognições de pensamentos
automáticos e as dividiu em três dimensões: ideias negativas sobre si
mesmos, sobre o mundo e sobre o futuro. Dessa forma, Beck auxiliava os
pacientes na identificação desses pensamentos e ajudava-os a pensar de
forma mais realista. Como resultado, sentiam-se melhor emocionalmente e
apresentavam comportamentos mais adaptativos. Assim, quando os
pacientes mudaram suas crenças subjacentes sobre si mesmos, seu mundo e
outras pessoas, a terapia resultou em uma mudança duradoura por meio da
reestruturação cognitiva. Segue-se, então, que uma estratégia cognitiva
básica na TCC seria ajudar os pacientes a modificar os pensamentos mal-
adaptativos como um veículo para melhorar seu humor.
Terapeutas cognitivo-comportamentais trabalham compartilhando com o
paciente (a partir da formulação de caso clínico personalizada para suas
queixas), intervenções de maneira estratégica. Estas são criadas de forma
colaborativa com o paciente e são projetadas para movê-los na direção do
cumprimento de seus objetivos de tratamento. A eficácia dessas
intervenções pode ser avaliada, ao longo do tratamento, tomando como base
a formulação do caso clínico inicial que é produzida pela coleta minuciosa
da história clínica. A todo momento, portanto, a história clínica bem colhida
e as estratégias de tratamento pensadas a partir dela (formulação de caso
clínico), podem ser revisitadas para melhor condução do tratamento.
Hoje, a estratégia da reestruturação cognitiva é central na TCC, embora
deva ser observado que alguns ramos contemporâneos da TCC promovam
abordagens cognitivas alternativas, como o distanciamento dos
pensamentos em vez de mudá-los, como a terapia de aceitação e
compromisso, e o mindfulness. Estratégias comportamentais na TCC são,
por sua vez, focadas em superar a evitação, engajar o paciente em um
comportamento pró-social e fazer com que ele exerça o autocuidado. Por
exemplo, a ativação comportamental para a depressão ajuda os pacientes a
se envolverem mais ativamente em suas vidas. Já a exposição para
ansiedade, transtorno obsessivo-compulsivo e transtornos relacionados ao
estresse e ao trauma ajudam os pacientes a extinguir as respostas de medo
por meio do contato sistemático com estímulos e situações temidas.
A TCC também poderá ser útil para pacientes que estão lidando com
problemas do cotidiano e não têm, necessariamente, o diagnóstico de algum
transtorno mental. Técnicas cognitivas como a terapia de resolução de
problemas podem ser adotadas para ajudar os pacientes a verem os
problemas de forma adaptativa, enquanto técnicas comportamentais podem
ser úteis no sentido de permitir que implementem soluções para seus
problemas.
Alguns estudos mostram que médicos generalistas usam a TCC,
principalmente, para conduzirem pacientes com diagnóstico de transtornos
depressivos e de ansiedade. Do amplo repertório de indicações que já
existe, destacamos alguns diagnósticos e problemas clínicos cuja
abordagem por meio da TCC podem ser de maior interesse para o médico
clínico no seu cotidiano de trabalho: dor crônica, insônia, quadros
depressivos pós-parto, transtornos por uso de substâncias e transtornos
mentais na infância e na adolescência.

2. PSICANÁLISE
Há até hoje uma discussão quanto aos limites, às similaridades e às
distinções entre psicoterapia, psicoterapia de orientação analítica e
psicanálise propriamente dita. À época do surgimento da psicanálise, no
início do século XX, a denominação psicoterapia referia-se a qualquer
tratamento que visava curar doenças psíquicas usando meios não físicos
(como banhos medicinais, eletroterapia, entre outros). Nesse contexto,
Freud não fazia distinção entre a psicoterapia e a psicanálise. Só na década
de 1950, com a absorção da psicanálise – antes uma área
caracteristicamente médica – pela psicologia, houve interesse em fazer
diferenciação entre psicanálise e psicoterapia. Há então o surgimento da
psicoterapia de orientação analítica, muitas vezes chamada de psicoterapia
psicodinâmica.
Grosso modo, a psicanálise clássica freudiana tem sessões quase diárias,
com os princípios da neutralidade, realiza trabalho interpretativo dos
conflitos infantis pelo manejo da transferência (conceito esmiuçado mais à
frente). Na psicoterapia psicodinâmica, há a possibilidade de sessões
semanais, disposição face a face entre terapeuta e paciente, utilizando
interpretações variadas e não somente a transferencial. São similares,
contudo, na sua fundamentação teórica – a metapsicologia – e no seu
método clínico, caracterizado por 4 elementos: o inconsciente, a
interpretação, a resistência e a transferência.
A metapsicologia literalmente significa o que está além da psicologia,
entendendo a psicologia como o discurso (do) consciente. Fundamenta-se
na articulação de uma série de conceitos complexos que tem como base a
existência de uma região psíquica inacessível pelo discurso consciente,
chamada inconsciente. Por meio da técnica de associação livre, o paciente
é convocado a falar descomedidamente sobre seu sofrimento e, à medida
que a transferência se estabelece com o terapeuta, as origens inconscientes
de seus conflitos intrapsíquicos emergem, e é assim possível que haja
possibilidade de ressignificação dos sintomas.
Os conceitos de transferência e resistência são fundamentais não só
para psicanalistas, mas para qualquer profissional da saúde. O primeiro, a
transferência, estabelece-se na relação entre o paciente e o terapeuta em que
os desejos e as fantasias inconscientes do paciente se manifestam nesse
relacionamento. Pode apresentar-se como uma fantasia de proteção em que
o médico seria o pai protetor e o paciente o filho fragilizado; como a mãe
acolhedora (médico) recebendo o filho carente ou mesmo como o irmão
(médico) usurpador contra o irmão (paciente) querelante, dentre outros.
Tendo posse desse entendimento, o generalista pode compreender algumas
dinâmicas peculiares dos pacientes no atendimento, como os presentes
recebidos (e os tipos desses presentes) mesmo que a consulta seja paga, a
forma carinhosa ou ruidosa em que o paciente lhe dirige a palavra ou as
incessantes visitas ao consultório mesmo que as queixas pareçam vagas e
sem expressividade sintomática significativa.
Posto que o trabalho terapêutico analítico seria o de acessar os conflitos
inconscientes por meio da associação livre e a interpretação sintomática do
paciente, a resistência seria tudo o que se opõe a esse acesso, seja por atos,
seja por palavras. Entendendo o cerne inconsciente do sintoma como um
núcleo, esse núcleo é recoberto de camadas de resistência. Quanto mais
próximo da origem inconsciente sintomatológica, maior será a resistência.
Qual o sentido de o paciente resistir ao seu próprio tratamento? Freud
teoriza que seria uma forma defensiva de impedir que pensamentos,
sentimentos ou comportamentos insuportáveis para o sujeito se tornem
conscientes: um ódio homicida contra um filho, um amor incestuoso, ou
outros desejos obscuros (mesmo que de forma simbólica e velada). Sabendo
que o sintoma neurótico tem função de simbolizar um enlace traumático
prévio, a resistência seria a tentativa inconsciente do sujeito de mantê-lo em
voga, impedindo-o de encarar conscientemente os seus desejos mais
inomináveis. De alguma forma, a resistência pode estar implicada no
paciente que esquece de tomar sua medicação de forma regular, naquele que
abandona o tratamento na época em que estava melhor dos sintomas ou até
naquele paciente que não lembra de ir para o atendimento.
As abordagens psicanalíticas têm, pelo método apresentado aqui,
obstáculos para se adequarem aos desenhos de pesquisa em medicina
moderna (ensaios clínicos randomizados) e, por isso, em comparação com
outras abordagens, como a cognitivo-comportamental, têm menos
evidências acumuladas de eficácia, apesar de vários trabalhos referenciarem
o seu efeito benéfico até mesmo em seguimentos longos (5 anos),
independentemente da modalidade psicanalítica empregada (psicoterapia
psicodinâmica ou psicanálise).

3. HUMANISMO
Embora o termo humanização seja muito utilizado no contexto da atuação
dos profissionais de saúde, referindo-se a uma discussão sobre a
importância de um fazer menos objetivo e que leve em consideração as
particularidades e a subjetividade dos pacientes, não é a esse entendimento
que nos referimos quando pensamos em psicologia humanista. Tal corrente,
também nomeada como a “terceira força em psicologia” surge com o intuito
de ampliar a visão de homem compreendida tanto pela abordagem
psicanalítica quanto pela behaviorista (comportamental), as duas grandes
abordagens da psicologia em meados de 1960. A psicologia humanista não
é, no entanto, uma escola de pensamento, mas “um conjunto de diversas
correntes teóricas que têm em comum a convergência humanizadora da
abordagem do homem”32. A gestalt-terapia e o psicodrama, técnicas que
apresentaremos em seguida, estão associadas ao humanismo, pois
compartilham da visão holística de homem.

3.1. Gestalt-terapia
A gestalt-terapia pauta-se no “aqui-agora”, ou seja, parte da perspectiva da
importância da tomada de consciência da experiência atual do paciente
(cliente, como assim nomeia a abordagem). O método possibilita um
contato autêntico com os outros e consigo, uma forma de ajustamento
criativo do organismo ao meio. Os acontecimentos trazidos pelo paciente
são vivenciados, tanto pelo terapeuta como pelo cliente, e o intuito é
conferir novos olhares, sentidos e significados. Um dos conceitos
importantes para abordagem é o awareness, que seria a tomada de
consciência de cada pessoa sobre si e sobre o mundo. A gestalt-terapia
entraria como um auxílio na busca de autorregulação e da realização.
A terapia ocorre nos moldes tradicionais de psicoterapia, a partir de
encontros regulares (semanais, quinzenais) com o tempo médio de 50
minutos a uma hora de duração. Existe uma gama de estudos apresentando
relatos sobre o uso da gestalt-terapia em situações de esquizofrenia,
depressão, suicídio, pacientes borderline e com transtorno de ansiedade.
Assim como as demais abordagens, a gestalt-terapia tem fundamentação e
efeitos que evidenciam a sua eficácia e importância.

3.2. Psicodrama
Na mesma linha da gestalt-terapia, o psicodrama também surge com o
intuito de fugir dos métodos considerados pela psicologia humanista
individualistas e racionalistas. O psicodrama entende o homem como um
ser biopsicossocial. Seu criador, Levy Moreno, considerava como um
método socioterapêutico capaz de integrar todos os tipos de arte: teatro,
dança, música. O psicodrama objetiva libertar o homem da robotização,
uma fuga da adequação e ajustamento em relação à sociedade. Almeja-se a
espontaneidade, um cliente que seja “capaz de exercer uma ação renovadora
e transformadora de si e da sociedade”. Grosso modo, é uma forma de
terapia em que o paciente é colocado em um “palco” onde pode exteriorizar
seus problemas.
De início o psicodrama foi pensado para aplicações em grupo, não à toa
que também é de autoria de Moreno a técnica de psicoterapia de grupo. No
entanto, o método psicodramático também pode ser aplicado em situações
de atendimento individual, nomeada como psicodrama bipessoal. Na
verdade, pode ser adaptado a qualquer tipo de situação e a todos os níveis
de idade.
A partir dessa técnica, alguns pesquisadores têm realizado estudos sobre
a Terapia Familiar Psicodramática Baseada em Cena (SB-PFT). Tal
terapêutica integra os princípios da terapia familiar, do psicodrama e da
metodologia do grupo multifamiliar. Estudos sobre a eficácia do SB-PFT
em contextos de adolescentes com problemas comportamentais têm sido
realizados com resultados positivos. Um dos pontos diferenciadores do
psicodrama é a possibilidade da interação e dramatização com o outro,
podendo ser esse o próprio terapeuta, os pais, um grupo de convivência,
entre outros.

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SIGLAS

• TCC Terapia Cognitivo-Comportamental


• SB-PFT Terapia Familiar Psicodramática Baseada em Cena
Table of Contents
Capa
Créditos
Sumário
Autores
Agradecimentos
Apresentação
FUNDAMENTOS DA PSIQUIATRIA
1 - Um Pouco de História: Da Loucura à Reforma
Psiquiátrica
2 - Dispositivos de Atenção à Saúde Mental no Sistema
Único de Saúde
3 - Diagnóstico em Psiquiatria
4 - Avaliação Psiquiátrica
5 - Exame Mental
PSIQUIATRIA CLÍNICA
Síndromes do Humor
6 - Depressão Maior e Depressão Persistente
7 - Crise Suicida
8 - Transtorno Bipolar
Síndromes Relacionados à Ansiedade
9 - Transtorno de Ansiedade Generalizada (TAG)
10 - Transtorno de Ansiedade Social (Fobia Social)
11 - Agorafobia
12 - Transtorno de Pânico
13 - Fobia Específica
14 - Transtorno de Estresse Pós-Traumático
15 - Transtorno de Adaptação
Síndromes Psicóticas
16 - Esquizofrenia
17 - Transtorno Psicótico Breve
18 - Transtorno Esquizofreniforme
19 - Transtorno Delirante
20 - Transtorno Esquizoafetivo
21 - Psicose Relacionada ao Uso de Substâncias
Psicoativas
Síndromes Somatoformes
22 - Transtorno de Sintomas Somáticos
23 - Transtorno de Ansiedade de Doença
24 - Transtorno Conversivo
25 - Transtorno Factício
26 - Transtornos Dissociativos
Síndromes Neurocognitivas
27 - Demências
28 - Delirium
Síndromes do Neurodesenvolvimento
29 - Deficiência Intelectual
30 - Transtorno do Espectro Autista (TEA)
31 - Transtorno de Déficit de Atenção -
Hiperatividade
Síndromes Obsessivo-Compulsivas
32 - Transtorno Obsessivo-Compulsivo
33 - Transtornos Relacionados ao Transtorno
Obsessivo-Compulsivo (TOC)
Síndromes Relacionadas à Personalidade
34 - Transtorno de Personalidade do Grupo A
35 - Transtorno de Personalidade do Grupo B
36 - Transtorno de Personalidade do Grupo C
Síndromes Psicomotoras
37 - Agitação Psicomotora
38 - Catatonia
39 - Transtornos do Movimento Induzidos por
Medicamentos
Síndromes Relacionadas ao Uso de Substâncias
Psicoativas
40 - Transtornos Relacionados ao Uso de Álcool
41 - Transtornos Relacionados ao Uso de Cocaína e
Crack
42 - Tabagismo
Síndromes Relacionadas ao Comportamento Alimentar
43 - Anorexia Nervosa
44 - Bulimia Nervosa
45 - Transtorno de Compulsão Alimentar
Insônia
46 - Insônia
Condutas Rápidas em Psiquiatria
47 - Condutas Rápidas em Psiquiatria
TERAPÊUTICAS EM PSIQUIATRIA
Farmacologia aplicada à psiquiatria
48 - Farmacologia aplicada à psiquiatria
49 - Antipsicóticos
50 - Antidepressivos
51 - Estabilizadores de Humor
52 - Benzodiazepínicos e Hipnóticos
53 - Psicoestimulantes
54 - Farmacoterapia em Situações Especiais
Psicoterapias
55 - Psicoterapias

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