Você está na página 1de 2

UNIVERSIDADE FEDERAL DO ESPÍRITO SANTO

CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS E NATURAIS – CCHN


DEPARTAMENTO DE LÍNGUAS E LETRAS – DLL
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRAS – PPGL

Análise – Espelho
Jéssica Souza Haase

Inicialmente, o conto “Espelho”, de J. J. Veiga trata da essência que permanece nas


coisas e utensílios que estão nos escombros de uma casa abandonada, das antigas
famílias que habitaram a casa e do destino que essas coisas acabam por ter, de
saqueadores dando outra serventia àquilo que está abandonado. Podemos pensar
que essas coisas esquecidas e rejeitadas possuem certa alma, independente do
encontro com quem irá recorrer a esses objetos, coisificados ou objetificados.

Uma coisa em sua essência é encontrada em um armário por um belchior, um


espelho de boa qualidade. O negociante logo trata de dar um sentido ao objeto
encontrado, urina em um papel e limpa toda a extensão do espelho para garantir e
verificar que se encontrava em bom estado. O vendedor achou que o espelho não
demoraria a ser vendido e logo foi para um casal que comprou o objeto sem hesitar.
Eles escolheram a sala como o melhor local para o espelho e observaram
maravilhados a sala decorada. Quando saíam, sentiam falta da sala, e davam
desculpas para voltarem. Perceberam que a alma do local era proporcionada pelo
espelho e, assim, passaram a maior parte do tempo na sala, dormindo no sofá,
apreciando aquele ambiente decorado.

O casal começa a desconfiar de que a adoração ao espelho poderia ser um prejuízo


para eles, visto que enquanto os amigos saiam e contavam sobre as viagens, eles
passavam a maior parte do tempo junto ao espelho. Apesar de certo
questionamento, é com um estranho acontecimento com um casal de amigos, que
mostraria a verdadeira essência dessas pessoas, que acabam abrindo mão do
espelho e o vendem de novo para o belchior.

No conto de José J. Veiga há o foco no objeto espelho, esse que parece revelar
além das aparências físicas. No conto, o espelho possui o olhar simbolista do
imaginário humano, em que revela, não só o aspecto físico, como também o interior
da alma, no caso, o que gera o abandono do espelho é a descoberta da “verdadeira
face” dos amigos, o espelho serviria para mostrar os lados opostos do ser humano
que não seriam observáveis na “realidade”.

No começo, o espelho seria apenas um objeto a ser comercializado e introduzido no


ambiente decorativo do casal, mesmo com uma narração voltada para o objeto, o
espelho estaria na condição de uso, visto como objeto. Ao decorrer da história,
vemos a submissão do casal em relação ao espelho, deslocando o poder do sujeito
para a coisa, observado até com certa misticidade “[...] encontro deles com o
espelho, ou o contrário — o que talvez não fosse a mesma coisa, pensando bem —
podia ser alguma arrumação do destino [...]” (VEIGA, p. 5), o espelho passa a ser
cultuado e desencadeia uma espécie de apego.

Nesse conto, o encontro revelador com a coisa mostra algo fantástico. Em tese, o
espelho refletiria a imagem virtual do real, daquilo que poderia ser visualizada pelos
olhos. O aspecto fantasioso se dá no momento revelador em que se imporia a
realidade da verdade da alma, além do que os olhos humanos poderiam observar.
Não é apenas o aspecto físico do espelho no ambiente que causa certa inquietação,
o choque se dá pela revelação da denuncia de uma mentira, uma hipocrisia. O conto
remete o ditado que afirma que os olhos são o espelho da alma, no caso da
narrativa de Veiga, a alma só é exposta a partir de um reflexo que assim, poderia ser
visualizado pelos olhos. O encontro com a coisa é inquietante, desalinha a rotina do
casal e transforma o olhar para o outro.

O espelho cria certa turbulência após revelar a identidade e sentimentos daqueles


que estariam refletidos. O casal também se modifica antes e depois do encontro com
o espelho, na relação da procura em conhecer o próprio reflexo e o anseio humano
de revelar as máscaras sociais.

Referência

VEIGA, José J. Objetos turbulentos. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1997.

Você também pode gostar