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TEXTOS ARGUMENTATIVOS
Marcus Sacrini
LEITURA E ESCRITA DE
TEXTOS ARGUMENTATIVOS
Marcus Sacrini
PRÓ-REITORIA DE GRADUAÇÃO
COMISSÃO EDITORIAL
Presidente Rubens Ricupero
Vice-presidente Valeria De Marco
Carlos Alberto Ferreira Martins
Clodoaldo Grotta Ragazzo
Maria Angela Faggin Pereira Leite
Ricardo Pinto da Rocha
Tânia Tomé Martins de Castro
Supúmtes José Roberto Castilho Piqueira
Marta Maria Geraldes Teixeira
Sandra Reimão
SUMÁRIO
acrini, farcu
Leitura e E crita de Texto Argumentativo / Marcu acrini. -
ão Paulo: Editora da niversidade de ão Paulo, 2019.
356 p.; 19,5 x 27 cm. (Coleção Acadêmica, 97).
I B 978-85-314-1737-5
3. Alguns Pressupostos da Leitura brang nte ................................................ 59 8. Estratégias para a Escrita Argumentativa .................................................... 281
3.1 Apresentação .......................................................................................... 59 8.1 Apresentação ........................................................................................ 281
3.2 O Aspecto Material do to d L r ..................................................... 60 8.2 Uma Defesa da Clareza Expressiva .................................................... 283
3.3 As Dimen ões Implícitas da Compreensão .......................................... 66 8.3 Recursos Expressivos para a Escrita Argumentativa ......................... 285
3.4 Estrutura do Te to e Plurivocidad do Sentido ................................. 75 8.4 O Processo da Escrita .......................................................................... 323
8.5 Exercícios .............................................................................................. 332
Parte 2. Práticas de Leitura
Conclusão ............................................................................................................. 341
4. Estratégias de Leitura I .................................................................................. 87 Referências Bibliográficas .................................................................................. 34 7
4.1 Apre entação .......................................................................................... 87 Textos Empregados em Exercícios e Exemplos ......................................... 347
4.2 1 ão Geral obre as Estratégias ........................................................... 88 Textos Teóricos sobre os Assuntos Discutidos ............................................ 348
4.3 Estratégias Anteriores à Leitura ........................................................... 91 Sobre o Autor ...................................................................................................... 351
4.4 Estratégias para Facilitar a Compreensão durante a Leitura .......... 104
4.5 Exercícios .............................................................................................. 11 7
para estudantes de graduação o qu d poi le ou à criação de uma disciplina concretas que obrigam a enfatizar somente parte do conteúdo coberto por este
optativa na grade curricular da faculdad 1 • Partilhá amo a constata ão de que livro. Almejamos, então, com esta obra, oferecer um material para estudantes
uma quantidade ignificativa de ingr ant na difi r nt s carr iras da FFLCH ou autodidatas aprenderem de modo autossuficiente técnicas de estudo, isto é,
não compreendiam o te to acad"mico nem escreviam di sertações satisfato- um material eficaz mesmo sem o acompanhamento de um curso presencial
riamente. Quai qu r que fo m a razõ s pré e e trauniversitárias dessas difi- correspondente. Professores também se beneficiarão das noções contidas neste
culdades importava oferecer uma r po ta in titucional a la . Assim, nos cursos livro para aperfeiçoar seus próprios cursos voltados à capacitação compreensiva
por nós mini trado in tituímo um tipo d acolhida acadêmica, no sentido de e expressiva do alunado.
que o ingre ante rec b metodológicas que os habilitassem a Cabem alguns esclarecimentos acerca desse caráter ideal da abordagem
progredir adequadamente na difi rente di ciplinas d suas respectivas gradua- proposta. Sabemos que o aprendizado é um tópico complexo cuja teorização
ções. a grande maioria de a di ciplinas, o veículo principal do aprendizado entrecruza dados de fontes diversas. Nessa tarefa, não basta acentuar a aplicação
são os te to argum ntati o o quais, embora tratem de temas especializados, de métodos; também é preciso levar em conta aspectos marcantes do amadureci-
compartem certas e truturas di cur i a para cuja compreensão cabem técnicas mento psicossocial, e mesmo discriminar aspectos circunstanciais decisivos para
gerai de e tudo. as situações de aprendizado, os quais remetem a condições sociais e políticas
Organizar e mini trar tais curso serviu de ocasião para elaborar de forma vigentes. De nossa parte, não pretendemos construir nenhuma teoria global
explícita os procedimentos básicos de trabalho com textos argumentativos, bem sobre o aprendizado. Interessa-nos somente propor um modelo de estudo que
como para testar maneiras eficazes de pôr em funcionamento tais procedimentos. permita superar as dificuldades típicas de entendimento de textos argumentati-
Vale notar que a maior parte dos alunos matriculados relataram, ao final de nos- vos. Não abordaremos, portanto, a totalidade dos temas comumente implicados
sos cursos, mudanças altamente positivas em suas capacidades de entendimento e nas teorizações sobre o aprendizado. Em particular, descrições empíricas das
expressão. Uma vez que aprenderam procedimentos claros e reprodutíveis para situações concretas de ensino não serão fornecidas. Vamos nos limitar a expor
uma gama indeterminada de textos, os alunos passaram a cumprir as tarefas um conjunto de técnicas para leitura e escrita de textos argumentativos, de
obrigatórias das demais disciplinas de modo muito mais significativo. A leitura forma a condensar uma perspectiva principalmente normativa da lida com esse
de textos complexos deixava de ser uma tarefa desmotivadora (porque sempre material. Em outras palavras, as técnicas aqui expostas servem, por um lado, de
insatisfatória) e assumia o lugar central na elaboração do entendimento sobre os parâmetros para avaliar o sucesso atual no entendimento de tais tipos de textos e,
temas estudados. Por conseguinte, a participação nas aulas se desenvolvia muito por outro lado, como guia para aprimorar paulatinamente as sessões de estudo.
mais ativamente e, de forma geral, o aprendizado deixou de se limitar à fixação Desse modo, as técnicas serão expostas em sua plenitude procedimental, a fim
passiva de conteúdos transmitidos pelo professor, e se tornou paulatinamente de tornar visíveis os principais resultados alcançáveis com sua aplicação. Cabe a
ocasião para sedimentar um saber cujos modos privilegiados de ordenação os cada leitor avaliar as condições materiais de sua exequibilidade e programar-se
alunos eram capazes de reconstruir por si sós. para exercê-las conforme sua disponibilidade.
Os resultados positivos obtidos em nossos cursos fomentaram a ideia de E de que resultados se trata aqui? Em última instância, espera-se a matura-
sistematizar os procedimentos técnicos em um livro. Seria então possível dispo- ção do espírito crítico e da autonomia intel,ectual. Entendemos essas expressões como
nibilizar a um público muito mais vasto que aquele acolhido presencialmente abreviações ou índices para uma série de operações analíticas que instauram uma
uma descrição detalhada das principais técnicas para a lida com textos argu- maneira de pensar não apenas aplicável para temas de estudo abstratos, mas capaz
mentativos. Além disso, seria possível estruturar as técnicas como um método geral de orientar o entendimento e as decisões em várias situações práticas. Amadure-
de estudo, composto de diferentes etapas e tarefas. O livro permite, destarte, a cer o espírito crítico vai então além do eventual sucesso nas avaliações formais de
exposição ideal das técnicas, ou seja, o detalhamento e o treino de todos seus um curso acadêmico; trata-se de sedimentar atitudes bastante específicas diante
níveis, tendo em vista o desenvolvimento global da expressividade argumentativa, de problemas teóricos e práticos em diversos âmbitos da vida. Com as técnicas
o que muitas vezes não se completa em um curso devido a várias circunstâncias aqui apresentadas, os leitores serão capazes de atingir o entendimento mínimo
de textos argumentativos empregados nas mais diversas áreas acadêmicas. Mais
que isso, tornar-se-á disponível um método de estudo para planejar, desenvolver
1. Os professores inicialmente engajados no curso foram André V. Singer e Cícero R. R. de Araújo (ciências e avaliar os resultados de pesquisas conduzidas autonomamente acerca dos mais
sociais), Caetano E. Plastino, Marcus Sacrini e Ricardo R. Terra (filosofia), Marcos Napolitano (história),
Valéria De Marco (letras), Esmeralda V. Negrão e Ronald Beline (linguística). variados tópicos.
14 • Leitura e Escrita de Textos Argumentativo Introdução • 15
Quanto à sistematização dom "todo o livro stá dividido m três partes. Na tirar proveito do método de estudo proposto, uma vez que certas formas gerais
primeira delas compo ta de trê capítulo clarec mo o ntido dos principais da exposição argumentativa são utilizadas em âmbitos científicos muito variados.
tópicos abarcado pelas técnica d tudo como 'l itura ' "argumentação". Exercícios são propostos para a fixação dos principais procedimentos analíticos
Essa delimitação teórico-conceitual ,. important para esclarecer o alcance do expostos na segunda e terceira partes. Esperamos, em geral, que a prática das
método, bem como para d faz r c rtos preconc ito ac rca do aprendizado técnicas aqui detalhadas habilite os leitores a entender os textos argumentativos
no ensino uperior e na vida adulta em geral. Em eguida, na segunda parte, como objetos de estudo e, principalmente, a incorporar e a exercer a discursi-
também compo ta de trê capítulo pomo as técnicas voltadas à leitura de vidade argumentativa como um modo privilegiado de pensar e agir em várias
te to argum ntati o . Dividimo da leitura em preparação, condução efe- situações da vida.
tiva e fi ação do sentido e propomo t ,. cnica específicas para otimizar cada uma
delas. Em particular d talhamo ário tipos de fichamentos, por meio dos quais
***
a leitor recuperará idealmente em di torções ou simplificações, o movimento
e po iti o do te ' to lido e também ganhará segurança para avançar reflexões Não fosse a oportunidade oferecida pela Pró-reitoria de Graduação da
autônomas acerca do tópico e tudado 2• Por fim, na terceira parte, composta USP em parceria com a Edusp para a produção de uma série de livros didáticos,
de doi capítulo , apre entamos um modelo simples de escrita argumentativa a escrita desta obra não teria ocorrido. Além disso, agradeço o apoio recebido
e pormenorizamos alguns recursos expressivos que contribuem para tornar a do Departamento de Filosofia da usP, especialmente de meus colegas de área,
produção escrita efeti amente comunicativa. professores Eduardo Brandão e Alex de Campos Moura, que se encarregaram
Os temas recobertos por este livro certamente não esgotam, como já co- de minhas atividades docentes para que eu me dedicasse, por um ano, a escre-
mentado, a totalidade do processo de aprendizagem. Contudo, o método aqui ver este livro. Agradeço também a todos os funcionários do Departamento de
esboçado oferece elementos para refinar um aspecto central desse processo, a Filosofia, em particular a Rubén Sosa Cabrera Júnior e Marie Márcia Pedroso,
saber, a organização das práticas de estudo. Sobre esse ponto, sabe-se que os textos pela amizad~ e por diversas orientações administrativas.
argumentativos complexos não são fáceis de compreender. Por sua vez, as abor- Conforme mencionado, ao menos em parte as técnicas apresentadas neste
dagens empregadas pelos leitores para analisá-los não são indiferentes quanto à livro foram testadas e elaboradas na disciplina interdepartamental "Práticas de
qualidade e quantidade de informações dali extraíveis. Certas abordagens chegam leitura e escrita acadêmicas". Saúdo a todos os professores que se engajaram nesse
mesmo a dificultar o entendimento quando não explicitam corretamente a or- projeto e, consequentemente, ajudaram a consolidar a ideia de que a qualifica-
denação expositiva. Sem técnicas adequadas, é difícil entender quais as relações ção técnica dos estudantes deve ser uma responsabilidade institucional que, por
conceituais propostas e sob quais princípios expositivos elas progridem. Mesmo fim, facilitará o próprio trabalho dos docentes em suas disciplinas especializadas.
se há tempo disponível para a leitura, seu exercício é experimentado como Longe de ser uma "escolarização" uniformizante e, assim, empobrecedora, o
entediante e, mais grave, inútil para apreender os temas em pauta (e, por con- ensino metódico de técnicas de estudo atesta o compromisso institucional de
seguinte, na melhor das hipóteses, o leitor permanecerá dependente de alguém acolher e orientar nos desafios acadêmicos aquele que é a razão de ser dos cursos
que lhe explique o sentido de algo que, por si só, não consegue desvendar). É universitários: o alunado. Por meio desse compromisso, busca-se simplesmente
preciso dispor de técnicas apropriadas para que o tempo dedicado à prática não garantir um nível indispensável de entendimento da discursividade argumenta-
seja desperdiçado. Com a assimilação de tais técnicas, as sessões de estudo se tiva, não para padronizar ou tolher a liberdade dos estudantes, mas justamente
tomam mais produtivas e os resultados se deixam organizar segundo modelos para que esta última possa ser exercida sobre bases sólidas.
que capturam corretamente as complexidades conceituais dos textos lidos. Se a disciplina "Práticas de leitura" foi bem-sucedida até agora, isso se
Os principais exemplos para a aplicação das técnicas de leitura e escrita deveu em grande medida ao trabalho dos monitores associados a esse projeto.
foram extraídos do campo das humanidades, ao qual o livro se adequa de forma Uma vez que se tratava de uma disciplina eminentemente prática, era preciso
evidente. Mesmo assim, estudantes e professores de outras áreas também podem acompanhar e avaliar constantemente a sedimentação das técnicas pelos alunos.
Essa difícil tarefa, que constituía o próprio cerne do curso, era supervisionada
por monitores. Registro aqui um sincero agradecimento a todos que trabalha-
ram como monitores dessa disciplina, em particular a Guilherme Grané Diniz
2. Caso os leitores julguem muito densos os três capítulos iniciais do livro, podem se dedicar inicialmente a
aprender essas técnicas e então aplicá-las nessa parte estritamente teórica da obra. pelo continuado empenho na organização de vários aspectos dos cursos. Estou
16 • Leitura e Escrita de Te. tos Argumentativo
seguro de que à dedicação de oc" corr pondeu uma capacitação didática que
dificilmente se obteria de outra forma.
Por fim, deixo anotado um agrad cim nto p eia! a Andréa E. Sechini,
minha esposa, que longe de e limitar a ofi rec r uport ternos ao trabalho
que culminou nesta obra engajou- vivamente na r f1 õ s que a estruturaram.
Com ela discuti e eng ndrei ário t mas agora e po to de forma amadurecida. PARTE 1
Ao sacrificio ine capá el do tempo das atividade do casal para a escrita deste
livro durante um ano ao meno obr pu mo uma intensa parceria criativa que
agora nos une indel elmente m mai um ní el entre tantos já entrelaçados no
correr de quase duas d ,, cada . FUNDAMENTOS TEÓRICOS
1
1.1 APRESENTAÇÃO
uma atividade upo tamente banal por m io d t'' cnicas d 1 itura ac 1 rada, há a tendência de culpar certas características do caráter ou da personalidade
que encolham ao mínimo a dura ão d ório para a po s do dos leitores: falta de vontade, falta de dedicação, preguiça etc. Bastaria exercer
entido. Afinal d conta e 1 r ' ap na a as imilação vi ual o proc am nto o conjunto de operações adquirido nos idos da alfabetização escolar para que o
cognitivo automatizado de igno crito parec m mo razoável adestrar os sentido cifrado nos textos fosse reposto em sua cristalinidade intrínseca.
mecanismo perc pti o de modo a cumprirem v lozm nt as operações monó- De nossa parte, vamos nos contrapor à concepção difusa de leitura aí
tonas de decodificação da e crita. pressuposta. Interessa-nos explicitar, em particular, que a leitura não se reduz
leitura ' a cone p ão r conh cí el, ap ar d us contornos vagos, a um tipo de operação mecanizada simples, embora sem dúvida pressuponha
em muito cont to ociai tomada como um pr upo to tão óbvio para aque- a automatização de alguns processos perceptivo-cognitivos. Longe de ser um
le supo tam nt alfab tizado qu não ha ria muito por que, em situações de ato transparente, completamente dominado por aqueles que passaram pela al-
aprendizado no en ino uperior ou na atividade profissionais, retornar a ela. fabetização escolar, a leitura é um processo complexo, passível de densificação
Uma ez alfab tizado ainda conform e a concepção, as pessoas simplesmente conforme os interesses específicos a que se volta. Não se trata, assim, de uma
têm à ua di po i ão o conjunto de operações automatizadas de que a leitura se habilidade que se aprende de uma vez por todas e que dependeria apenas de
compõe ba tando ervir- e dela quando necessário. A nosso ver, essa concepção boa vontade para que seus resultados fossem sempre alcançados. A leitura de
alimenta duas po turas institucionais bastante questionáveis sobre as práticas textos complexos, que constituem o núcleo de tantos cursos em nível superior,
de en ino superior1 . Em poucas palavras, a primeira delas é que os professores exige um treino específico, cujas etapas dificilmente serão incorporadas de modo
podem cobrar a leitura de textos complexos sem grandes preocupações com casual, sem um guia metódico para a coordenação das habilidades particulares
questões de ordens metodológicas, todas supostamente resolvidas durante o pro- requeridas para a boa compreensão de tais textos, um guia que permita que o
cesso de alfabetização. ão se aventa a possibilidade de dificuldades inerentes à leitor avance para além daquilo que lhe permitem as técnicas aprendidas nas
leitura no ensino superior,já que a alfabetização ofereceria todas as ferramentas etapas fundamentais da alfabetização.
necessárias para seu exercício. Por sua vez, a segunda reconhece de partida que Parece-nos, então, insuficiente atribuir toda dificuldade de compreensão
os estudantes padecem de muitas dificuldades de ordem metodológica, as quais de textos a uma falta de empenho ou a outros aspectos do caráter dos leitores.
continuam a ser localizadas somente no nível da alfabetização escolar. Admitem- É inescapável considerar como fator causal do entendimento limitado de textos
-se, então, as dificuldades atuais dos estudantes, mas isso somente porque o complexos a ausência de métodos adequados de decodificação do sentido veiculado pelos
processo de alfabetização básica, em que deveriam ter sido sanadas, não foi fac- textos ali em pauta. Uma pessoa pode empenhar-se honestamente na compreensão
tualmen te bem cumprido. E uma vez que seria muito custosa e mesmo incerta de um texto, dedicando a essa tarefa muito tempo, sem ainda obter um resul-
a correção dessas falhas da formação fundamental, normalmente propõem-se tado satisfatório. Afinal, o tempo despendido na leitura por si só não garante a
então versões altamente simplificadas do conteúdo estudado, o qual é adequado compreensão apropriada do texto se não se dispõe das técnicas relevantes para
ao baixo nível escolar dos estudantes. Exploremos um pouco mais essas posturas. a circunscrição do sentido daquele tipo específico de exposição.
Em muitos contextos em que se requer que jovens e adultos leiam (seja Além disso, nem sempre é correto remeter dificuldades de compreensão
como parte de sua formação escolar, seja com parte de sua atuação profissional), a falhas nas etapas básicas de alfabetização, conforme prega a segunda postura
simplesmente as obras são indicadas e aguarda-se a exibição dos resultados espe- institucional mencionada anteriormente. Essa postura sugere inicialmente uma
rados com a leitura. Daí que, nas mais diferentes áreas do ensino superior, muitos aproximação salutar das efetivas condições técnicas dos estudantes. Contraria-
professores apenas anunciem a bibliografia e discutam no decorrer das aulas o mente à altivez autocentrada da primeira postura, na qual os professores sim-
conteúdo ali contido. Afinal, se os estudantes são alfabetizados, naturalmente plesmente supõem que os estudantes dispõem das capacidades requeridas, nesta
devem ser capazes de extrair o sentido codificado nos textos. Vigora nisso um segunda reconhecem-se as dificuldades de compreensão dos textos complexos,
pressuposto de fundo segundo o qual ser alfabetizado implica sempre ser capaz sempre as remetendo, porém, aos níveis basilares da escolarização. E, muitas
de ler de forma eficaz. Por conseguinte, quando a compreensão dos textos falha, vezes, diante do reconhecimento das limitações dos alunos e das complicações
institucionais para tentar saná-las, o que se propõe como solução é simplesmente
substituir a leitura dos textos complexos que estão na base do campo de saber
1. Vale notar que as posturas em vista também são alimentadas por muitas outras concepções acerca de diferen- em questão por versões simplificadas de seu conteúdo, transmitidas por "apos-
tes aspectos do ensino. Não pretendemos oferecer nenhuma análise exaustiva de suas causas, mas somente
apontar que certa concepção empobrecida da leitura incita perspectivas simplificadoras sobre o estudo.
tilas" que, por assim dizer, reduzem a complexidade dos textos importantes da
22 • Leitura e Escrita de Texto Argumentativo Considerações Gerais sobre a Leitura • 23
área (os quais os e tudante eriam incapaz s d tudar por si sós) at , o nível No entanto, parece didaticamente mais proveitoso para compreender os desafios
de compreensão te tual deficitário at tado p lo aluno 2• Em v z d bu car m inerentes à leitura de textos complexos, e daí conferir importância ao treino
ele ar as capacidade técnica do tudant , dando-Ih condiçõ d t rem explícito de técnicas específicas para lê-los bem, circunscrever a estruturação
um contato direto frutífero com a font bibliográfica indispensáveis de sua global do ato subjetivo da leitura, abstraindo provisoriamente sua conexão com os
área de formação in tituiçõe qu optam por e a po tura se contentam em contextos sociais e as práticas culturais em que está necessariamente entrelaçado.
oferecer e quemas re umo qu upo tament captam o aspectos essenciais O primeiro ponto para explicitar a densidade intrínseca ao ato subjetivo da
de a fonte mas acabam por p rp tuar o ní el d ficiente de compreensão em leitura é recusar a associação simplista (vigente naquela concepção difusa da qual
que o e tudante e ncontram. É mai fácil para tai instituições não qualificar partimos) entre o ato de ler e a apreensão do sentido. A perspectiva ingênua é que
o e tudante para uma efetiva compr n ão das complexidades inerentes à área, a pessoa que se alfabetizou, passando pelas etapas constituintes desse aprendizado
mas simplificar o conteúdo bibliográficos até o ponto que mesmo estudantes escolar, lerá bem em qualquer circunstância. Nesse ponto, cabe uma distinção
com bai a competência de leitura po sam entendê-los. O problema central elementar, mas crucial, para que se possa propor algum aperfeiçoamento da ca-
desa po tura é que muito do componentes temáticos das áreas do saber não pacidade de leitura, a saber, aquela entre o resultado da leitura, resumidamente
podem ,erdadeiramente er difundido , sem perdas teóricas consideráveis, em entendido como a compreensão do sentido presente no texto escrito, e o processo
e quemas re umido e altamente implificados. Moldar os estudos universitários de leitura, o qual, como se verá, envolve muito mais do que a mera ativação de
conforme as deficiências de compreensão dos estudantes (em vez de elevá-los até esquemas automatizados de assimilação sensível. Essa distinção aparentemente
a efetiva complexidade da área do saber) não é senão promover a má-formação banal torna visível algo importante: ativar as operações fundamentais do ato de
acadêmica de maneira que o estudante será incapaz de (ou enfrentará enor- ler (reconhecimento de palavras, entendimento da fluência das frases etc.) nem
mes dificuldades para) absorver os principais tópicos constituintes de sua área sempre basta para a compreensão do texto em vista. Para que o processo de leitura
de atuação e de cumprir satisfatoriamente as tarefas profissionais para os quais leve eficazmente à compreensão, mais componentes do que aqueles comumente
estaria supostamente se preparando. associados à alfabetização deveriam entrar em cena. Antes de tematizar esses
essa última postura, de certo modo, também vigora o pressuposto de componentes por vezes ignorados, retomemos rapidamente a estruturação da
que a leitura é uma atividade que se aprende de uma vez por todas; apenas se leitura tal como aprendida progressivamente na alfabetização escolar3•
reconhece que muitos dos estudantes de nível superior não a assimilaram bem De início, institui-se a associação entre fonemas e grafemas, de maneira a
durante a alfabetização. Ora, de nossa parte, mostraremos que a leitura não é fixar os sons específicos das letras, para então reuni-las em palavras. Em seguida,
alguma experiência no reconhecimento de palavras (cujo domínio das particu-
uma operação que se automatiza nos anos de escolarização para então ou ser
laridades ortográficas demanda longo treino) permite a inserção dos vocábulos
exercida de modo pleno em qualquer contexto, ou permanecer para sempre
em unidades sintáticas simples (artigo e substantivo, substantivo e adjetivo, por
deficitária. A leitura envolve uma densidade procedimental não óbvia, que a
exemplo), e então em frases verbais de progressiva complexidade. Desenvolve-se,
torna consideravelmente moldável. Isso, por si só, justifica que o ato de ler se
a partir daqui, a fluência na leitura, no sentido da articulação correta das unidades
torne tema explícito de preocupações didáticas mesmo no nível universitário e
sintático-semânticas conforme a estrutura frasal. Com o treino, passa-se a enten-
nas carreiras profissionais.
der a conexão de frases em unidades textuais de complexidade cada vez maior.
Para a efetiva sedimentação de todas essas etapas, diferentes habilidades
1.3 A LEITURA COMO ATO SUBJETIVO perceptivo-cognitivas são progressivamente enriquecidas. Mencionemos algumas
das principais:
Vamos nos concentrar, no restante deste capítulo, na leitura como a ati-
vidade realizada por uma pessoa para compreender um texto escrito. Que essa • a apreensão perceptiva dos grafemas associados aos respectivos fonemas;
dimensão individual não esgota o tema é algo que admitimos de bom grado. • a apreensão perceptiva das palavras como exprimindo certo sentido;
Nos próximos capítulos, exploraremos as dimensões social e cultural da leitura.
3. Não se pretende nenhuma inovação quanto a esse tópico da exposição. Várias obras de psicologia da
aprendizagem descrevem com detalhe as etapas da aquisição da leitura como parte essencial do ensino
2. De modo algum se está pressupondo que todo uso de apostilas em cursos de formação superior se reduza escolar. Ver, por exemplo, a obra consagrada: M. Hasselhom e A. Gold, Piidagogische Psychologi,e, 2013.
ao emprego criticado.
24 • Leitura e Escrita de Textos Argumentativo Considerações Gerais sobre a Leitura • 25
• a memorização das letra do ocábulo ; erroneamente quase sempre são do mesmo tipo gramatical daquela que deve-
• a atenção como guia do foco p r pti o durant a 1 itura; ria ter sido lida. Erros de substituição revelam, dessa maneira, que expectativas
• o reconhecim nto do ntido iculado m unidad s intático- mânticas, sintáticas (e não, por exemplo, a simples similaridade visual com outras palavras
o que, por sua ez d pend : de quaisquer classes gramaticais) auxiliam a apreensão das palavras na leitura de
• da memória retencional p rc pti a (capacidade de manter presente, uma frase4.
por e mplo o início da fr ao eh gar a s u final); Esses exemplos mostram que não há na leitura a recepção de sensações
simples a serem posteriormente reunidas em unidades significativas por pro-
• darem moração (con ctada à apre n ão perceptiva) do sentido das
cessos cognitivos exteriores a essa recepção. É a própria percepção do leitor
palavr e do marcador intático já aprendidos m outras ocasiões;
minimamente treinado que se enriquece pelo hábito adquirido, de modo que
• inferência ac rca d recuro emântico empregados (por exemplo, os textos passam a ser apreendidos imediatamente como conjuntos estruturados
ab r a qual t rmo um pronom se refer ) e da estrutura expositiva do sintático-semanticamente.
te ·to eja em ua articulação interna (por exemplo, entender como os
parágrafo cumprem funçõ lógicas complexas), seja em sua remissão
ao conte to e trate tual pre uposto. 1.4 O PAPEL DAS ESTRATÉGIAS DE LEITURA
ler é deflagrar uma atividad m canizada d tra ão d ntido d t xtos. Já ao menos à luz ..d~quela concepção da qual partimos, como um conjunto de
havíamos vi to que a atividad n ol compl idad à apr n ão recursos secundanos, extraessenciais ao ato da leitura, que cabe ao leitor ativar
percepti a da e trutura intático- mântica da tuai . Por"'m, a caso sinta neces. .sid~de. Pr:ss~põe-se, consequentemente, que o leitor sempre
ilusão da tran parência da leitura não dei a r futar pl nament por essa sabe adaptar-se as c1rcunstannas da leitura e regular suas habilidades conforme
caracterização do proc o p r pti o d nsificado da 1 itura. Apesar de mo- as especificidades ~o texto em pauta. Pouco se exploram, nesse caso, as possibili-
bilizar di er as habilidade p rc pti o-cogniti as in rgicam nte unificadas na dades de desen~olvimento de estratégias voltadas para textos complexos, como se
apreensão de totalidad fenom nai ignificati as, a 1 itura ainda eria concebi- aqueles procedimentos básicos da fase fundamental da aprendizagem da leitura
da como uma atividad totalm nt automatizada. Ocorr qu o componente de esgotassem a gama de recursos técnicos a se adotar diante dos desafios da leitura.
e tratégia intrín co à 1 itura torna a concepção invero símil. A leitura não .Veremo~ que essa desimportância das estratégias nas concepções vulgares
é uma mediação tran parente para o ntidos codificados, pois justamente há da leitura esta na raiz de muitos problemas da formação acadêmica e, conse-
inúmeras particularidad s no t to circunstâncias de leitura que exigem um quente_me~te, da atuação profissional. Insistiremos, em particular, em que a
constante ajuste refie ivo. aplica ão das habilidad s perceptivo-cognitivas aos tex- alfab~u~ª:ªº' lon__ge _de se encerrar com o treino básico da percepção de unida-
to não é algo trivial ma uma tar fa que envolve diferentes graus de desafios, des si~~tlco-semantlcas, se deixa aperfeiçoar principalmente pela aquisição de
que ão ou não bem enfrentado conforme o leitor disponha ou não de um estrategias cada vez mais sofisticadas, que permitam a compreensão correta de
repertório de procedimentos estratégicos que respeitem as especificidades do t~x~os de alto grau de complexidade e especialização. Antes de avançar nesse
texto em vista e auxiliem na superação dos problemas relativos às circunstâncias topico, parece útil sistematizar em um esquema os componentes da leitura até
concretas da leitura. aqui explicitados:
ote-se também que o componente estratégico revela que a leitura deve
Texto
ser sempre concebida como situada. Os processos perceptivo-cognitivos da leitura Texto a ser lido Processo da leitura
compreendido
são deflagrados sempre em circunstâncias concretas, que influem nos resultados
almejados. Quem lê, sempre o faz em alguma situação particular, o que exige
estratégias bastante específicas tanto para evitar que alguns de seus elementos
(tais como excesso de ruídos, condições climáticas desfavoráveis) obstaculizem
Ativação Níveis
o entendimento quanto para potencializar os elementos ( tais como um local de habilidades sintático-semânticos
silencioso, com material à disposição para tomar notas) que facilitam o enten- perceptivo-cognitivas integrados
dimento do texto.
Vale notar que as estratégias estão presentes já no nível fundamental do
aprendizado da leitura, possibilitando seu avanço. Repetir a leitura de trechos Estratégias de leitura
difíceis e ler em voz alta são algumas das estratégias mais elementares e de Figura 1.1 Elementos constituintes da leitura.
5. Vários estudos apontam para um déficit no ensino metódico das estratégias de leitura como componen-
um relato similar referente ao quadro escolar alemão, ver F. E. Weinert, "Lemen lemen und das ·
te intrínseco para a aquisição da competência da leitura. Para uma análise do tema no quadro escolar
Lemen verstehen", 1994, pp. 183-205. eigene
norte-americano, ver M. Pressley, R.eading Instruction that Works: The Case for Balanced Teaching, 1998; e, para
28 • Leitura eEscrita de Te to Argumentativo Considerações Gerais sobre a Leitura • 29
correlação entre a e truturação d a ativa ão da habilidad s xigi- permite tratar cada uma delas em sua devida complexidade, sem minimizar a
das para a sua corr ta manife tação. o mat rial a r lido r duz- a imples singularidade de seus papéis no processo global da leitura. Vale notar que, nor-
palavras solta ba ta o reconh cim nto perc pti o im diato d s as unidades malmente, já há incorporação de algumas estratégias no ensino fundamental,
significativas e a m mória. Se trata d fras , ,. pr ci o articular a memória voltadas para o reconhecimento das palavras e para a aquisição da fluência na
retenciona! inerente à percep ão daqu 1 conjunto intático-semântico com a compreensão das frases. No entanto, é patente que a mera leitura de palavras ou
rememoração do ntido das palavras e do e qu ma intáticos já conhecidos frases não é o fim do processo de alfabetização. A passagem do entendimento
habitualment . Por ua ez diant d ária fra articulada em diferentes de palavras e frases para o entendimento de textos densos envolve dificuldades
parágrafo a capacidad int gram ntão com operações inferenciais particulares, que não se resolvem apenas por meio das estratégias empregadas
de reconhecim nto de entido m unidade ampla de pressão, entre outras relativamente àquelas unidades linguísticas mais simples. Por exemplo, entender
tarefa . Todo o ní ei upõem a manutenção do foco de atenção e diferentes um texto teórico supõe a capacidade de articular as frases em parágrafos e estes
grau de referência e trate tuai para conte tualizar o que se apreende do tex- na unidade de uma seção ou capítulo, em caso de textos longos; supõe também
to. o e quema da figura 1.1 t ntou- e representar essa interligação entre os a distinção da posição defendida pelo autor em contraste com outras posições
ní ei de ordenação do te to e as difi r ntes capacidades subjetivas pelas linhas criticadas ou apenas mencionadas para a construção de suas teses próprias. Para
pontilhadas que con tituem uma ó atividade (marcada pela ponta da flecha). realizar bem essas tarefas, aquelas estratégias utilizadas para a leitura das palavras
Importa notar que essa apreensão perceptivo-cognitiva do sentido textual ou frases, embora necessárias, são insuficientes. É preciso dispor de.!.,_Stratégias ·
não ocorre como um processo monotonamente contínuo, composto por uma bem mais sofisticadas, que permitam explicitar a estrutura expositiva do texto à
linearidade homogênea. A leitura exige a frequente regulagem na própria condu- medida que o conteúdo significativo é paulatinamente assimilado. E é justamente
ção de seu processo, o que se dá pela ativação de estratégias para o enfrentamento em relação a isso que este livro pretende oferecer sua contribuição. Explicitemos,
de dificuldades. Como vimos, as estratégias asseguram que as habilidades per- antes de adentrar na prática das estratégias, o horizonte de sentido geral em
ceptivo-cognitivas sejam exercidas de modo adequado em relação aos diferentes que tal probl.emática está inserida.
níveis em que o texto se constrói. a figura 1.1, elas figuram como barras que se
sucedem assimetricamente no decurso da leitura e que , por assim dizer, auxiliam 1.5 PERSPECTIVAS EMANCIPATÓRIAS TRAZIDAS PELA
na sustentação às operações basilares das habilidades perceptivo-cognitivas con- LEITURA AMADURECIDA
forme surjam dificuldades específicas ligadas ao texto ou às circunstâncias da leitura.
Essa distinção simplificada (e sem pretensão de exaustividade) dos compo- Apresentamos, esquematicamente, duas postur~ institucionais que, por
nentes da leitura já é sem dúvida útil para nortear intervenções pedagógicas ou assim dizer, fogem dos problemas especificamente ligados à leitura ~ nível aca-
mesmo para guiar uma autocrítica de leitores autodidatas em vários assuntos. Tal- dêmico superior ou profissional. Uma delas ignora que haja dificuldades desse
vez as dificuldades de leitura estejam associadas a uma sedimentação insuficiente tipo dignas de atenção, meramente aguardando que os estudantes atinjam o nível
das operações perceptivo-cognitivas esperadas para a compreensão dos textos esperado de alguma forma que pouco interessa à instituição, e mesmo pouco se
em seus diversos níveis. Nesse sentido, pode haver falhas no reconhecimento importando caso desistam da formação devido à incapacidade de alcançá-lo. A
das palavras ou na fluência dos encadeamentos frasais, o que revela lacunas nos outra ao menos reconhece que há limitações sérias de compreensão do material
níveis fundamentais da alfabetização. Tal como acentuado anteriormente, sem o específico da formação superior, mas aceita-as como algo incontornável, que re-
domínio dessas etapas iniciais da lida com textos, densificadoras da percepção mete ao histórico pessoal dos estudantes e que não cumpre à instituição buscar
(que passa a apreender diretamente os conjuntos fenomenais pertinentes como alterar; a esta caberia no máximo adaptar-se a seus efeitos, oferecendo então o
unidades sintático-semânticas), não há como pretender avançar na compreensão ' conteúdo somente naquele nível simplificado em que as pessoas parecem enten-
de textos intricados. No entanto, vai nos interessar, no decorrer da exposição, der os temas sem maiores dificuldades. De nossa parte, gostaríamos de sugerir
atentar para dificuldades de compreensão mesmo se se supõem em operatividade ótima e auxiliar na construção de outra postura institucional, a qual reconhece haver
dificuldades de compreensão específicas do ensino superior e busca soluções
tais habilidades perceptivo-cognitivas. Como a figura 1.1 toma visível, nesses casos
nesse mesmo nível, proporcionando o suporte necessário para que os estudantes
em que não há falhas graves no exercício fundamental das habilidades da leitura
aprendam a lidar com as complexidades inerentes à sua área de atuação (e, as-
cabe, então, avaliar se as estratégias adequadas para a compreensão dos textos específicos
sim, não se contentem com versões diluídas do conteúdo temático, que apenas
em vista estão disponíveis. A distinção conceitua! entre habilidades e estratégias
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alimentam a enganosa ensação d qu tão pr parando para d afio do oportunidades de ampliação do entendimento de vários temas complexos, ao
campo profissional o quai não con guirão d fato nfr ntar). mesmo tempo que enriquece as habilidades subjetivas de concentração, memó-
Um passo fundamental para aproximar d a outra postura institucional, ria, criatividade e reflexividade. A leitura não é, dessa forma, o mero exercício
no que tange à leitura é realizar uma conversão temática, a qual rompe com a de uma capacidade totalmente dominada por um sujeito em plena posse de si e
aparente naturalidad do ato d 1 r tomado como uma m diação transparente de suas crenças, mas talvez uma propícia ocasião para relativizar essa concepção
que por as im dizer tem de d aparecer para qu o t xto se imponha como estática de subjetividade. Daí, sem dúvida, a extrema importância de que pro-
tal. É preciso desinten ar- e ainda que momentaneamente pelo conteúdo dos textos lidos fessores ou responsáveis pela formação letrada das pessoas transmitam métodos
e voltar-se para a condiçõ técnicas da leitura. Por veze , no treino e no exercício para a prática da leitura em conformidade com o grau de complexidade exigido
cotidiano da leitura ac ntua- quas clu i amente o objeto a ser dominado (o pelos textos. Permitir que as pessoas reconheçam as amplas possibilidades ine-
te to), enquanto o proc o de ua apr ensão passa como que despercebido. Este rentes ao processo da leitura abre uma via para que elas, no fundo, reconheçam
livro e in ere no e forço didático contrários, de bu car explicitar e qualificar os a riqueza da própria experiência subjetiva, sem se obstinarem com crenças e
procedimento para a leitura ati fatória de inúmeros textos, independentemente modos de ação herdados irrefletidamente, mas comprometendo-se a examinar
de eu conteúdo 6 • Trata-se de e forço que deveriam ser adotados pelos cursos a complexidade dos tópicos estudados e a buscar justificativas mais bem susten-
dos mais diferentes campos do ensino uperior, os quais, se zelam pela qualidade tadas dos posicionamentos assumidos. Quando há a preocupação institucional
intelectual dos estudantes, têm de abarcar em seus modelos formativos o treino de assumir a responsabilidade pelo ensino de estratégias de leitura específicas
metódico das estratégias de leitura exigidas para a boa compreensão dos textos ao nível teórico exigido, fomenta-se a responsabilidade complementar nos es-
específicos das áreas do saber. Não se deve ignorar o fato de que para muitos tudantes de respeito à complexidade inerente aos principais tópicos de estudo
ingressantes no ensino superior há a exigência de entendimento de textos de um da área em questão, abrindo caminho para posicionamentos menos enviesados
nível de complexidade muito maior em relação ao qual estavam acostumados. A e simplificadores acerca de muitas discussões.
incapacidade de satisfazer essa exigência por vezes condena o estudante a uma O treino metódico da leitura abre a possibilidade de um compromisso
formação medíocre, quando não o leva diretamente à desistência da carreira. ético virtuoso entre professores e estudantes. Muito se cobra da juventude um
Contra essas consequências, e contra a mera diluição do conteúdo temático, posicionamento crítico diante das mais diferentes circunstâncias sociais; porém,
vamos propor o treino metódico de algumas estratégias que amplificam consi- sem dispor de um aparato crítico-reflexivo bem sedimentado, as pessoas se tor-
deravelmente a compreensão de textos argumentativos complexos. nam presas fáceis de esquemas de manipulação afetiva das opiniões, de discursos
É, destarte, perfeitamente possível, e mesmo desejável, que o aprendizado unilaterais simplificadores e que no máximo transmitem uma falsa sensação de
da leitura não se encerre com a alfabetização escolar, mas se estenda no decorrer segurança diante dos desafios em vista etc. Muitas vezes, se a leitura é apenas o
da vida do leitor. Seria simplório reduzir a leitura a uma ação mecanizada que exercício simplório de destacar frases e expressões de efeito com as quais já se
um sujeito totalmente maduro realizaria para obter fins previamente delimitados. concorda por razões obscuras à própria pessoa, então tal atividade acaba por
Na verdade, a leitura, como processo perfectível, oferece ocasiões privilegiadas servir à difusão de posições enviesadas e mesmo preconceituosas. Essa leitura
para que o leitor desenvolva de forma nuançada suas habilidades cognitivo- empobrecida talvez ajude a explicar que pessoas aparentemente bem formadas
(isto é, ao menos submetidas a anos de estudos) defendam posições extremistas
-perceptivas e, assim, disponha de um recurso global marcante para aprimorar
eivadas de vieses cognitivos e preconceitos mal sustentados. Provavelmente, en-
as próprias crenças, enriquecer sua sensibilidade, obter clareza acerca de vários
tre outras razões, essas pessoas não assimilaram a leitura em todo seu potencial
tópicos históricos, sociais, políticos, podendo, desde então, se posicionar de
crítico e autocrítico, limitando-se a utilizar esquemas viciados de apreensão de
modo mais seguro (sem, com isso, tornar-se dogmático) sobre os mais diferentes
informações, apenas para confirmar suas crenças previamente assumidas. Em
assuntos estudados com rigor.
contrapartida, julgamos que já no aprendizado constante da leitura, quando os
A disposição para o constante aprendizado em relação à leitura ( e a dis-
componentes estratégicos de entendimento dos textos são incentivados, o leitor
ponibilidade das condições institucionais para tanto) oferece aos estudantes
acostuma-se com o exercício de reconhecer as justificativas das posições alheias, o
que fomenta a saudável busca por avaliar criticamente os próprios posicionamen-
tos. Ler bem textos argumentativos, veremos com detalhe no decorrer deste livro,
6. Veremos, no capítulo 2, o tipo de texto cuja compreensão se buscará facilitar pela exposição das técnicas significa .reconstruir respeitosamente as posições defendidas pelos autores, o que
de leitura correspondentes.
3 2 • Leitura eEscrita de Te tos Anrumentativo
exige a inibição ao menos inicial d juízo d alor para, ntão, avaliar a real
força das tese lidas. E se e ercício d r conh c r po içõ alheias conforme
1 o movimento e po iti o de ua u t nta -o ug r urna atitude crítica m r lação
à defesa das próprias crenças ' quai co r nt rn nt com o estudo rigoroso
dos posicionamento alh io tamb "'rn d vem er dada justificativas razoáveis.
O des elamento da po içõ do autor por meio d urna leitura cuidadosa 2
re erbera na própria formula ão d po ições pelo 1 itor, o que pode prevenir a
adesão apaixonada a oluçõ irnpli ta d tanta qu tõ s urgentes debatidas
nos conte to ociai rele ant .
É óbvio qu a cri talização d preconceitos e a difusão de extremismos ASPECTOS SOCIAIS E CuLTURAIS DA L EITURA
sirnplificadore t"rn cau as muito mais amplas do que os modos de leitura. No
entanto apenas bu carno alientar que urna formação acadêmica não somente DE TEXTOS ARGUMENTATIVOS
limitada à ab orção acrítica de conteúdo técnicos, mas voltada para o aperfei-
çoamento da habilidades percepti o-cognitivas, para o estímulo de inferências
racionais e para o exercício constante da reflexividade, sedimenta hábitos que
minimizam o apelo de posições sociopolíticas unilaterais e preconceituosas. O
desenvolvimento da leitura aponta, destarte, para um horizonte bem mais vasto
do que a mera capacitação de urna atividade automatizada. O ensino metódico
de estratégias de leitura adequadas para a complexidade dos textos em vista
alimenta o espírito crítico, de modo que os leitores, ao aprenderem a avaliar as 2.1 APRESENTAÇÃO
posições de acordo com as justificativas apresentadas, adquirem um repertório
lógico que permite que suas próprias posições e atitudes não sejam meros ar- No capítulo anterior, formulamos urna espécie de modelo geral sobre o
roubos irrefletidos e passíveis de manipulação em discussões dos mais variados desenrolar do processo de leitura. Ali, esse modelo tinha corno principal função
tipos, mas conjuntos de teses ordenadas de forma racional. contrapor-se a certa concepção difundida em muitas instituições de ensino de que
a leitura é um procedimento automatizado que não carece de grande atenção
pedagógica urna vez que as pessoas tenham passado pelos anos de alfabetização
escolar. Ao explicitar a riqueza inerente ao ato de ler, o modelo proposto alme-
java despertar o interesse dos responsáveis pela formação em cursos superiores,
e mesmo dos leitores autodidatas, acerca das possibilidades de aperfeiçoamento
da leitura, além de salientar o componente crítico-emancipatório aí contido.
No entanto, os elementos subsumidos a esse modelo não se referiam senão
a urna primeira camada de fenômenos ligados ao ato de ler, isolados metodicamen-
te de outras dimensões constituintes da leitura, as quais devem ser consideradas
para que elaboremos urna abordagem menos abstrata do potencial formador nela
contido. Tornamos a leitura somente corno ativação de habilidades perceptivo-
-cognitivas individuais para a decifração de textos, exercício que sempre ocorre
situadamente, o que, por sua vez, exige familiaridade com estratégias de adaptação
às circunstâncias concretas da leitura e às particularidades do texto. É claro que
essas considerações deixavam de lado a inserção da leitura em contextos sociais
e mesmo sua referência à ordenação cultural das práticas aí realizadas. Quem lê
não atualiza espontaneamente um poder inato, mas põe em ação urna atividade
Aspectos Sociais e Culturais da Leitura de Textos Argumentativos • 35
34 • Leitura eEscrita de Textos Argurnentativos
alorizada e tran mitida socialm nt m p cíficas de nsino. A leitu- conquanto se disponha das habilidades mínimas de leitura, para muitas funções
ra se integra, de a maneira, a ampl vi "nci iai om ba nas quai ão profissionais a exigência de várias competências técnicas adquiridas e exercidas
delimitada as e pectativas em r la ão ao ato d 1 r ( upo tament ) ofi recidos por meio de formas de ler altamente especializadas é uma barreira social pra-
ticamente intransponível para aqueles que não puderam treinar de maneira
os recursos para otimizar a obt nção do re ultado m vista.
amo alargar ne te capítulo o círculo de abrang"ncia da leitura, tratando- adequada as habilidades ligadas à leitura.
-a como um ato ocial e culturalm nt nformado. E a rá a porta de entrada E não só praticamente todas as situações de ensino formal (nos mais di-
para abordar O tipo d te to uja 1 itura no int r a aperfeiçoar, a sab r, os ferentes níveis) e a maior parte das qualificações profissionais exigem a leitura.
1
Mesmo a compreensão das circunstâncias conjunturais políticas e as possibilida-
te tos argum ntati o •
des de tomar parte nos vários debates referentes aos projetos governamentais com
forte impacto nas formas de vida da população passam, de modo praticamente
2.2 A LEITURA COMO TMDADE SOCIAL inescapável, pela leitura. Por exemplo, entender a situação política de maneira
detalhada, evitando informações unilaterais tantas vezes veiculadas à exaustão
o ato d 1 r não é oment um e ercício de habilidades subjetivas, mas a
pelos veículos de comunicação televisiva, requer a capacidade de ler e refletir
atualização de um modo de comportar-se socialmente desenvolvido e difundido. sobre diferentes tipos de textos e documentos. Ademais, deve-se mencionar que
Em outras palavras, 0 exercício individual da leitura não é obviamente ~go ama- a leitura abre uma vasta série de possibilidades de uso estético do tempo livre
durecido pelas próprias potencialidades intrassubjetivas, e sim u~ c~nJunto ~e por meio da fruição dos mais diversos tipos de textos literários e poéticos, os
ações fomentado e disciplinado por meio de diversos tipos de relaçoes mters~bJ~- quais permitem refinar sutilmente a sensibilidade - o que, por sua vez, fomenta
tivas, nas quais paulatinamente o ato de ler é adquirido como uma competenoa apreensões mais ricas dos fatos cotidianos.
pessoal. Dessa maneira, já O aprendizado da leitura supõe, no mais das vezes, a Como se vê, a importância da leitura para a participação na diversidade dos
frequentação de ambientes sociais específicos (as salas de aula, por exem~l~), contextos sociais contemporâneos é notória. Em contrapartida, cabe acentuar
nas quais formas privilegiadas de comportamentos são treinadas ~nto ex~hcita que é a partir desses contextos amplos de interações e práticas que variados tipos
(conforme instruções a serem seguidas) quanto implicitamente (diversas atitudes de leitura se moldam e difundem. Não é, então, somente que o aprendizado da
que compõem a situação vivida são simplesmente reproduzidas por aqueles que leitura permite a participação em diversas situações sociais; na verdade, é com
aprendem, sem que todos seus componentes sejam tematizados!. ,. base em contextos sociais estáveis historicamente que se delimitam certos tipos
De maneira mais ampla, ao alfabetizar-se, uma pessoa adqmre a competen- de leitura, então fomentados e ensinados por diferentes instituições3 • Conside-
cia para tomar inteligíveis muitos contextos da vida social aos quais se reportari~ remos, por exemplo, a formação em nível superior nas mais diversas áreas. A
2
apenas de modo mutilado caso não dispusesse da capacidade de ler b~m • E complexidade dos tópicos cuja compreensão é exigida para o cumprimento das
sem dúvida possível, por exemplo, que um analfabeto participe de um oclo ~e disciplinas, as formas privilegiadas de discussão acerca dos conhecimentos espe-
conferências acerca de um tema que lhe interesse e obtenha certa compreensao cíficos da área, os meios típicos de produção e divulgação desse conhecimento,
com base no que ouviu dos palestrantes. Porém, sem poder acompanhar ~u~!- tudo isso favorece uma delimitação precisa dos modos de estudo que devem ser
quer texto ligado às falas, nem compreender os dados ali mostrado_s em pam~is dominados pelos ingressantes nas carreiras. As exigências para o bom entendi-
ou suportes eletrônicos, sem ter a chance de aprofundar as discussoes_ po_r ~e 10 mento das problemáticas típicas das ciências, por exemplo, levam à distinção
do estudo da bibliografia recomendada, é patente que tal pessoa atingira um de certas etapas específicas da formação, as quais envolvem tipos de leitura com
entendimento bastante parcial dos tópicos em questão. De modo mais grave, a graus variados de especialização, que normalmente muito diferem da leitura de
ausência da habilidade da leitura limita as possibilidades de obtenção de uma obras literárias em situações de lazer. Por conseguinte, lê-se um texto científico,
vasta gama de empregos que exigem uma formação escolar ~ínim~, o ~ue, do ponto de vista subjetivo, para obter entendimento acerca de certo tema, mas
por sua vez, diminui severamente as chances de mobilidade social. Alem disso, isso conforme parâmetros derivados dos fins privilegi,ados para aquele tipo de texto em
3. Delimitam-se, assim, modos de leitura que, conforme bem formula Graf, são "disposições para ação ad-
l. Para uma exposição detalhada da leitura inserida em círculos de relações de complexidade crescente, ver quiridas na socialização literária que pos ibilitam modos de recepção específicos para fazer uso de textos"
O. Kruse, Lesen und schreiben, 2015, pp. 12-14. (W. Graf, "Lektüre zwischen Literaturgenuss und Lebenshilfe. Modi des Lesens", 2001, pp. 199-204).
2. Esse ponto é elaborado com detalhe em C. Garbe, "Lesesozialisation", 2009, PP· 167-222.
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particular, ou seja conforme certas e :pectativas de veiculação do conteúdo pré-delimitadas Em geral, é uma leitura instrumentalizada, que a pessoa exerce livre-
para aquel,e gênero te tual em qu tão. mente conforme suas necessidades cotidianas. É assim, por exemplo,
Essas e pectati a d compo i ão do t to gundo uas funçõ em que se leem manuais de instrução para aprender a montar ou a utilizar
determinada situaçõe ociai refl t m na circun crição de tipos de leitura aparelhos diversos; ou leem-se detalhes acerca da vida cultural de um
mais ou meno fi o , que são inc nti ado e treinado como as respectivas for- país para tirar proveito de uma estadia em seu território etc. Em certo
mas comportamentai capaze de apr nder as particularidades da veiculação de sentido, textos de cunho pessoal, como cartas ou relatos de impressões,
entido em tal e tal gênero pr i o. S m pr t n ão d austividade, parece- também servem a esse tipo de leitura, uma vez que, por meio deles, o
-no útil di tinguir o guint modo principai d 1 itura, tendo em vista a leitor recebe informações pertinentes acerca das situações vividas pelo
funcionalidad do te to no cont to ociais apropriados4 : autor. A leitura informativa pode ser bastante pontual e oferecer exata-
mente a resposta para certo problema particular. Além disso, é comum
• Leitura formati a 5 : trata- e d atividade voltada à aquisição e à sedimen-
também acompanhar notícias cotidianas apenas tendo em vista estar bem
tação por prazo indeterminado de conteúdos e/ ou procedimentos cujo
informado em sentido genérico sobre tópicos de interesse, o que auxilia
domínio garante a progre ão na etapas e colares e no ensino supe-
na tomada de decisões, ou, ao menos, na avaliação do estado de coisas
rior além de capacitar para a mais diferentes atividades profissionais.
social e político. Essa obtenção generalista de informações também serve
e se entido, a leitura formativa faz parte de um conjunto de tarefas
de estofo para a condução de interações com conhecidos ou parentes,
obrigatórias a que a pessoa deve se submeter para adquirir competên-
disponibilizando assuntos mutuamente reconhecidos como relevantes,
cias, títulos específicos e mesmo para progredir em uma carreira já
ou no mínimo suficientemente interessantes para preencher o tempo e
estabelecida. Os mais diversos tipos de textos servem a esse propósito.
evitar silêncios constrangedores.
Consideremos, por exemplo, que em uma escola de formação de reli-
giosos textos sagrados são analisados segundo critérios específicos de • Leitura como terapia em sentido lato: trata-se de uma atividade que auxi-
acordo com os quais os estudantes serão então avaliados. Deve-se notar, lia na compreensão dos próprios modos de vida cristalizados e por meio
entretanto, que o estudo de temas e autores com vista à aquisição de da qual se almeja obter sugestões, de diferentes graus de tecnicidade,
conhecimentos sistemáticos excede os contextos de formação oficiais e acerca de como aprimorar os próprios comportamentos tendo em vista
profissionais. Muitas pessoas dedicam-se de forma autodidata a pesqui- a minimização de conflitos ou de sofrimentos pessoais e interpessoais
sas de diferentes graus de complexidade acerca de temas de seu inte- variados. Logo, lê-se como um estímulo à reflexão acerca dos traços da
resse, tendo em vista o aprimoramento pessoal, qualificação profissional própria personalidade e dos padrões comportamentais recorrentes. Esse
extra ou mesmo a possibilidade de participação de círculos sociais tipo de leitura pode ser orientado por profissionais de diferentes áreas
específicos. De certo modo, mesmo a leitura e a releitura frequente de psicossociais ou buscado de forma autônoma.
textos religiosos têm também um caráter formador, no sentido de servir • Leitura como experiência estética: trata-se aqui de dedicar-se a textos que
para reafirmar (e refinar) o próprio sistema de crenças, além de fomen- estimulam a sensibilidade por meio da ênfase nos recursos expressivos e
tar a autoidentificação do leitor como alguém versado nas concepções que, assim, alimentam um tipo específico de prazer. Obviamente, é comum
éticas, cosmológicas e ritualísticas da religião a que está filiado. Nesses que essa leitura se exerça justamente sobre obras literárias e poéticas vol-
casos de estudo voluntário, ao contrário de uma motivação extrínseca tadas para esse tipo de experiência, embora não seja impossível aplicá-la a
(a obrigatoriedade), a leitura está intrinsecamente ligada à busca de outros gêneros textuais, salientando suas virtudes narrativas e inventividade
satisfação pessoal pelo aprendizado. estilística, por exemplo.
• Leitura informativa: trata-se de um exercício voltado à obtenção de dados • Leitura como entretenimento: trata-se do exercício da leitura em situa-
relevantes diante de circunstâncias concretas mais ou menos específicas. ções em que não se dispõe de tempo ou interesse para o aprendizado,
nem mesmo para aquisição de informações. Lê-se simplesmente para
distrair-se ou preencher certo intervalo, como quando se folheiam revis-
4. Inspiramo-nos aqui, em sentido amplo e com resultados diferentes, na classificação proposta por W. Graf tas velhas na sala de espera de um consultório odontológico. Em suma, a
em Der Sinn des Lesens: Modi der literarischen Rezeptionskompetenz, 2004.
5. Essa será a forma de leitura privilegiada no decorrer deste livro.
leitura opera, nesse sentido, como um passatempo despreocupado, que
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tal ez até d perte o int r por algum a unto ncontrado no texto detidamente, na parte final deste capítulo, algumas das modalidades ligadas à
em que tão embora muitas rça orno um fim n le me mo. leitura formativa.
• Leitura como parte d um circuito ocial: n t ca o a 1 itura é um Ainda em relação a esses modos típicos de leitura, é importante ressaltar
elemento constituint d c rta forma d int rações que se instituem que não se trata de algo estático e isolado. As práticas concretas pelas quais
em grande medida por m io d mensag n e t tos partilhados. Nesses esses modos se efetivam são passíveis de transformações em conformidade com
ca o a leitura é a forma privil giada d manut nção de laços sociais as constantes reconfigurações dos padrões e expectativas das interações sociais
ba eado na con tant troca d conteúdo compartidos. Destaca-se e sua respectiva difusão institucionalizada6 • Ademais, seria ingênuo pensar que
como mplo a 1 itura d m n ag n com o mais variados tipos de se lê sempre segundo um único modo por vez. De maneira geral, como já men-
brincadeiras divulgadas m r de sociai e d mais grupos de discussão cionamos, muitos textos não predeterminam totalmente por si sós os tipos de
ou compartilhamento letrônico. Ler é, nesses casos, uma maneira pri- leitura que lhes são cabíveis, e o leitor, diante de suas necessidades e das con-
vilegiada d ustentar o vínculo com determinadas pessoas. Obviamente, dições disponíveis, exercerá os modos que mais lhe convêm, desde que tenha
o circuito ocial em que tão upõe a realização de outras tarefas que adquirido competência neles. Desenvolvamos esse ponto mais concretamente
gra · tam em tomo da leitura, como a postagem do material a ser lido e por meio de um exemplo, para tornar nítido o que se sugere.
a ate tação de que a leitura foi realizada, pelo envio de mais mensagens Consideremos de início um texto a ser lido como parte das tarefas de uma
disciplina em um curso superior. Trata-se, nesse caso, de um texto que claramente
aos participantes. Além disso, é claro que muitas das mensagens e dos
se abre à leitura formativa. Vamos supor agora que esse texto contenha várias
textos divulgados nesses circuitos têm interesse informativo e mesmo
informações úteis para diversas práticas cotidianas, e que o leitor as destaque
formativo. De toda forma, deve-se notar que, em certos casos, o conteúdo
atentamente. Dessa maneira, já se intersectam dois tipos de leitura, conforme o
compartilhado não faz grande diferença em relação à meta principal de
diagrama a seguir toma visível (figura 2.1).
mostrar-se disponível para interações com as pessoas do grupo, ou seja,
de meramente assentir com a participação em tal grupo. É nesse sentido
que a leitura opera como uma modalidade própria.
• Leitura como autodesvelamento: trata-se da leitura que um autor estabe-
lece com suas próprias obras publicadas ou mesmo que alguém mantém Leitura Leitura
formativa informativa
com textos privados escritos para fixar pensamentos e elaborar emoções,
tais como diários, notas etc. Lê-se e relê-se a si mesmo para buscar cla-
rificação das posições assumidas, ou para avaliar que caminhos seguir
para que certa reflexão progrida etc.
Figura 2.1 Intersecção de dois tipos de leitura
Esses tipos de leitura descrevem maneiras privilegiadas de lidar com os
textos treinadas formal ou informalmente a partir do contato sistemático com
certos gêneros textuais em situações sociais típicas. Deve-se notar que há graus Essa intersecção entre leitura formativa e informativa é bastante comum. A
consideráveis de entrecruzamento entre esses modos e diferentes gêneros tex- leitura formativa, em geral, busca apreender o conteúdo significativo dos textos
tuais, de forma que um texto não está predestinado a ser lido de uma só for- com vista à elaboração e à sedimentação de amplos esquemas conceituais. No
ma (embora talvez haja um modo ótimo de capturar o sentido ali veiculado). entanto, muitos dos conteúdos assim absorvidos servem a propósitos instru-
É possível, por exemplo, ler textos científicos apenas para distração, ou ler mentais mais imediatos, e, destarte, valem como base informacional específica.
academicamente textos poéticos tendo em vista uma pesquisa sobre as publi- Por sua vez, diversos textos lidos com propósitos informacionais dão ocasião a
cações de certo autor em determinado período. Além disso, deve-se também
levar em conta que essas formas típicas de leitura foram apresentadas muito
genericamente. Cada um desses modos amplos de leitura desdobra-se em 6. Abre-se, assim, a possibilidade de investigar a história dos modos privilegiados de leitura em determinados
diferentes modalidades específicas, circunscritas conforme os interesses, a dis- períodos. Vária obras se destacam nessa tarefa, como G. Cavallo e R. Chartier (eds.), A History of Reading in
the West, 2003, além dos três volumes de The History of Reading, editados pela Palgrave MacMillan em 2011 .
ponibilidade e as circunstâncias concretas. Teremos chance de analisar mais
40 • Lei,tura e Escrita de Te tos Argumentativo
Aspectos Sociais e Culturais da Leitura de Textos Argumentativos • 41
como
experiência
formativa estética
as particularidade da área d ab r ou do ní 1 m qu o t ma apr ntado. área do saber exige considerável dedicação à leitura, o que nem sempre ocorre
Dessa maneira, que o leitor ja capaz d nt nd r o t to r qu rido não atesta na prática profissional daí possibilitada. Vale a pena discorrer minimamente sobre
somente o bom ercício de capacidad individuai ma também a in rção esse que é um problema social importante ligado ao papel da leitura. Em muitas
bem-sucedida no meio ocial p cífico do qual o t to é d rivado. Essa é mais áreas de atuação técnica, não é incomum que profissionais se contentem em
uma razão para que o re pon á i in titucionai p la formação de leitores aplicar os esquemas de ação e interpretação derivados de sua etapa formativa, sem
forneçam treinam nto plícito da e trat,, gia igidas para a apreensão que haja a preocupação sistemática (ou sem que as condições institucionais para
dos te to em e tudo. ão trata om nt d propiciar os recursos para um tanto estejam dadas) de acompanhar as inovações temáticas e procedimentais da
audá el d en olvim nto p i ofi ico individual, mas também de prover meios área de atuação, o que exigiria a leitura ao menos da bibliografia especializada
de ace soa cont to ociai particular cuja práticas interações são regidas recente. Uma vez atingido certo status quo garantido pelas regulações institucionais
por critério qu e d ixam notar no te tos aí privilegiados. pertinentes, muitos profissionais deixam de praticar diligentemente (e isso por
Sobre as relaçõe ntr 1 itura e contextos ociais, cabe ainda uma elu- vezes devido a diversas pressões institucionais, é verdade) uma das atividades
cidação. ão ,, qu ambo e tejam originalmente eparados e devam de alguma que justamente lhes garantiu a posição alcançada, a saber, a leitura como meio
maneira er reunido . É apena porque nesta obra partimos de um ponto de vista privilegiado de compreensão acerca dos tópicos específicos da área. Em casos
subjeti o de leitura que poderia parecer que o ato de ler nada deve ao contexto extremos, cabe mesmo falar em "iletralidade profissional", no sentido de que
social do texto em pauta, e que apenas posteriormente se teria contato com as alguém formado, e que então supostamente passou por um período intenso de
particularidades de tal contexto. a verdade, ler é imediatamente, e isso por meio leitura para adquirir as competências de sua área de atuação, acaba por ler, em
do exercício das habilidades subjetivas que o possibilitam, um ato socialmente seu cotidiano profissional, menos textos que uma criança em estágios básicos de
enformado, que remete a situações e instituições específicas delimitadoras das alfabetização. Um esquema simples7 ajuda a tomar visível esse ponto (figura 3.4).
expectati as e dos padrões de correção de sua prática. Por sua vez, não se deve Etapa
supor que o contexto social seja algo fixo e independente da leitura de textos. formativa
para adquirir determinado título, mas, se pretende tomar parte das práticas rele-
vantes desse domínio, deve exercer constantemente a leitura, no decorrer de sua À medida que uma pessoa se dedica, de forma cada vez mais aperfeiçoada
carreira, como uma das atividades mais básicas de tal área do saber. à leitura, vai adentrando em domínios letrados diversos, de maneira a conhecer
É verdade que a centralidade da leitura para o pertencimento a certo con-
texto social para o qual ela foi outrora (no período de formação) decisiva não
7. Sugerido por Andréa E. Sechini.
é uma regra universal. Vários são os casos em que a formação superior em certa
44 • Leitura eEscrita de Te. tos Argumentativo
Aspectos Sociais e Culturais da Leitura de Textos Argumentativos • 45
vários gêneros de te tos dominado com mai mai facilidade. I o p rmit , caso
deve em parte à produção e à circulação especializada de textos em que paula-
disponha das e tratégias adequad para tanto a imilar uma quantidad cada vez tinamente se refinam a abordagem específica dos tópicos relevantes, o alcance
maior de te to (o que é r pr ntado na figura 3.4 p la ampliação do spaço dos procedimentos em questão, os limites em relação a práticas adjacentes. Vale
delimitado pelas retas). É pro " l qu a ampliação da importância da leitura notar que cada texto por meio do qual o leitor se habitua às práticas definidoras
de textos na aqui ição de conh cim nto m g ral na inserção social atinja seu de certo contexto social não é um produto isolado, pois remete a inúmeros ou-
auge para a maior parte das p oa durant a formação uperior, quando se deve tros textos por meio dos quais, entre outros fatores sócio-históricos, tal contexto
apreender uma "ri de tópico articulado em diversa camadas ganhou os contornos atuais. Essa remissão ocorre explicitamente, por referências
de complexidade. As habilidad nvolvidas corretamente, tendem bibliográficas expressas contidas nas obras, e também implicitamente, no sentido
então a atingir u ní el ótimo d aplicabilidad permitindo a sistematização de de que o texto parte de certo estado da questão ou de certo modo de atuação
muito tipo de t to . o entanto m ários contextos profissionais posteriores típico da área, o que também aponta para a produção literária anterior.
à formação uperior a leitura dei a de er exigida como uma fonte básica de Um texto sempre está, destarte, inserido em uma teia de muitos outros
apreen ão ( r no ação) de conhecimento , endo exercida cada vez menos. Daí textos; sempre remete a certo desenvolvimento histórico do campo letrado de
que tanto e critiquem profi ionai incapazes de discutir práticas e conceitos atua- que faz parte. Por sua vez, por meio dessa teia historicamente mutável de textos
lizado de uas próprias áreas de atuação, uma vez que praticamente deixaram de delimitam-se funções privilegiadas de leitura, conforme as expectativas que di-
exercitar a atividade basilar para a aquisição e sistematização do saber: ler. recionam as atividades típicas do contexto em questão. Por exemplo, os textos
A desatualização profissional, e a consequente perpetuidade de esquemas que historicamente alimentaram a diferenciação das áreas científicas fomenta-
de atuação datados, é somente uma das consequências da ausência de uma ram práticas de busca de explicações para fenômenos específicos, o que exige
perspectiva sistemática da leitura como prática pessoal institucionalmente fomen- o treino na formulação de hipóteses detalhadas e das formas argumentativas
tada. A capacidade limitada ou empobrecida de leitura parece estar em forte eficazes para sua aceitação ou recusa. Daí que a leitura frutífera desses tipos
correlação com dificuldades de progressão profissional e pode mesmo se tornar de textos dependa da disponibilidade de estratégias para o entendimento das
um empecilho para alcançar empregos rentáveis8 • Além disso, a manutenção do particularidades dos esquemas argumentativos ali em ação.
hábito da leitura no decorrer da vida parece também estar correlacionada a uma A forma como se lê um texto não é, por conseguinte, mera expressão de
maior disposição para participar de diferentes atividades artísticas e de lazer cul- uma livre decisão subjetiva, mas uma decisão responsiva a exigências socialmente
tural, tais como escrever, pintar, ir a peças de teatro e a museus etc. 9 • Em suma, delimitadas. É verdade, como vimos na seção anterior, que um leitor bem forma-
ler bem e de modo constante favorece a integração do leitor a contextos sociais do dispõe de vários modos de leitura, de maneira a contar com certa margem de
variados. A fim de delinear uma ideia mais aprofundada da importância central escolha daquilo que apreenderá do texto e de que forma. No entanto, é inegá-
da leitura em relação à estruturação de contextos sociais, cabe aqui relacionar vel que os textos, em sua grande maioria, são moldados conforme expectativas
a leitura a um círculo ainda mais amplo de relações, a saber, aquele da cultura. específicas de contextos delimitados, cujas práticas principais envolvem formas
privilegiadas de dominar o conteúdo historicamente sedimentado da área em
questão. Os textos auxiliam na construção de e refletem as principais práticas
2.3 O CARÁTER CULTURAL DA LEITURA
definidoras de situações sociais mais ou menos estáveis. Essas considerações nos
Como vimos, seria ingênuo supor que os textos são uma forma de acesso levam a situar a leitura em relação àquele que talvez seja o círculo mais vasto
extrínseca aos contextos sociais. Em geral, os textos codificam os temas e proce- de relações determinantes de seu exercício, a saber, o da literalidade como um
componente histórico da cultura em que o leitor está inserido.
dimentos delimitadores das próprias situações sociais, assumindo, assim, várias
Quanto a seus aspectos mais essenciais, a cultura se revela como a sus-
funções intrínsecas às práticas e interações cuja demarcação auxiliam. Dessa
tentação, no decorrer de gerações, de formas típicas de atribuir sentido aos
maneira, mesmo a distinção entre vários conjuntos de práticas da vida social se
fatos concretos mundanos e às estereotipias orgânicas 10 • O nascer, o morrer, o
8. Ver S. Iyengar e D. Ball, To R.ead or Not lo R.ead: A Question of National Consequence, 2007.
9. Idem, p. 18. Para a confirmação em nível nacional do mesmo tipo de correlação, confira a pesquisa, de- 10. Essa concepção de cultura remete, em sentido lato, à obra do filósofo Edmund Hus erl. Uma coletânea
senvolvida pelo Instituto Pró-livro, Retratos da Leitura no Brasí~ 2016, p. 40. de seus textos que analisam a noção de cultura de maneira introdutória é Europa: Crise e Renovação, 2014.
46 • Leitura eEscrita de Te tos Argumentativo Aspectos Sociais e Culturais da Leitura de Textos Argumentativos • 47
alimentar- e, o convívio com familiar o n ontro com tranho , o v ntos número muito mais amplo de pessoas tem acesso aos conteúdos significativos
naturais, entre tanto fato bruto da i t"ncia ã o ponto d partida para o registrados, desde que aprendam a decodificar o sistema de signos empregado
estabelecimento d e quemas int rpr dir tivo globais, com bas nos para a documentação do sentido em pauta. Cada texto porta em si o potencial
quais se priorizam certas man ira d compre n ão ação. A delimitação e a de instaurar inúmeras relações comunicativas, nas quais os conteúdos significa-
transmissão de amplo conjunto d p1áticas ( m nívei corporal, linguístico, tivos são transmitidos mesmo na ausência de seu autor ou portador. Por meio
imaginário) para lidar de forma típica com o acont cimentos cotidianos, à da escrita, sistematiza-se, assim, uma maneira indireta de comunicação, que garante
luz de um horizont d e p tati g rai ac rca da própria vida individual e a transmissibilidade dos sentidos pertinentes para as práticas sociais em questão,
coletiva in tituem limite implicitam nt op rante m relação à formação dos independentemente das interações efetivas entre mestres e aprendizes. Deve-se
hábito e do autorr conh cim nto individual e col tivo. Vale notar que essas notar, além disso, que a escrita não é só meio de divulgação de conteúdos signi-
práticas (e o padrõ identitário a partir daí ocialmente fomentados) são ficativos, como se esses fossem delimitados, autonomamente em relação a ela,
passí ei d ampl tran forma õe conforme as dinâmicas intrínsecas à trans- por puros atos espirituais que se serviriam da materialidade dos signos como
mi ibilidade e r ativação do cont údo ignificativo portado por esses esquemas mero registro de uma produção significativa a eles completamente exterior. Na
comportamentai amplo . verdade, é por meio de vários recursos técnicos ligados à escrita (notas esquemá-
ão no intere a avançar muito mais em uma teoria geral da cultura, ticas, diagramas, lembretes etc.) que os atos do pensar se desenvolvem sistema-
mas omente acentuar que os modos típicos do comportar-se que delimitam as ticamente até o estabelecimento de saberes e narrativas que dificilmente seriam
identidades culturais se instituem sobre certos conteúdos de sentido (interpreta- construídos sem o seu auxílio. Com o refinamento de seus recursos técnicos, a
tivos e diretivos), os quais são transmitidos geracionalmente como tema explícito escrita claramente não é apenas um veículo de documentação de um sentido a
ou implícito de interações comunicativas. Tomar parte em atividades culturais ela externo, mas órgão de produção de conteúdos significativos complexos, cujos
específicas supõe aprender a reproduzir o conteúdo significativo que delimita o passos de elaboração necessitam de constante registro para não serem esquecidos
tipo de prática socialmente partilhada em foco. Por exemplo, que uma refeição ou distorcidos durante o processo criativo.
familiar se desenrole segundo certo padrão ritualístico (certa disposição dos pra- A produção textual, do ponto de vista da criação, sistematização e difusão
tos na mesa, certa sequência dos alimentos, certo trato com a comida durante o de saberes que delimitam o sentido de inúmeras práticas por meio das quais os
convívio, certas relações com os demais participantes etc.) envolve padrões inter- mais diferentes eventos da vida social são interpretados, ritualizados e se tornam
pretativos acerca do que se considera um encontro familiar satisfatório, do que estofo para as mais diversas ações individuais ou intersubjetivas, é o círculo mais
se entende por alimentação, em suma, daquilo que se espera que aconteça em amplo em que a leitura se situa. Trata-se da dimensão da cultura, entendida
tal situação para que seu desenrolar seja bem-sucedido. Esses padrões de sentido sob o aspecto geral da transmissibilidade multigeracional de conteúdos significativos.
são aprendidos pela reiterada exposição a uma situação específica, de maneira Deve-se notar que as formas escritas têm sido priorizadas na maior parte das
que o comportamento de um novato passa a ser paulatinamente regulado pela sociedades do mundo para sistematizar essa transmissibilidade. Ler bem, nesse
normatividade da forma típica do comportar-se, já previamente partilhada pe- sentido, é ser capaz de tomar parte em um dos mais importantes processos de manuten-
los mais experientes. De modo semelhante, uma criança aprende as formas ção e enriquecimento das atividades sociais transmitidas entre gerações. Ao ler, seja por
típicas de explicação de vários fenômenos cotidianos conforme a repetição das prazer estético, seja por aprimoramento profissional, uma pessoa mantém viva
respostas valorizadas socialmente como corretas, assimilando progressivamente uma forma tradicional de alimentar os contextos considerados significativos por
os elementos conceituais historicamente desenvolvidos e que delimitam certa certa comunidade; ela reproduz uma habilidade mantida viva no decorrer de
noção do que é o mundo e de como diferentes tipos de eventos aí se ordenam muitas gerações, tornando-se herdeira de uma das fontes centrais de construção
e sustentação de inúmeras práticas constituintes do tecido social. As pessoas que
e se desenrolam.
Em relação à transmissão dos conteúdos significativos pertinentes para leem bem constantemente têm chance de compreender de modo muito mais
a vida social, deve-se notar que a escrita oferece uma notável amplificação das refinado o desdobramento histórico dos contextos sociais de que tomam parte,
possibilidades de partilha. A comunicação oral desses conteúdos atinge uma podendo refletir sobre suas interconexões, por vezes inaparentes, e articular de
esfera limitada de pessoas, que devem se relacionar presencialmente com o maneira mais significativa, a partir daí, diferentes dimensões práticas de sua vida.
detentor de certo saber para que só então possam adquiri-lo satisfatoriamente. Por exemplo, uma pessoa letrada preocupada com sua saúde pode motivar-se
Por sua vez, com a disponibilidade da escrita e a paulatina difusão de textos, um para a atividade fisica após a leitura de recomendações médicas para tanto, o
48 • Leitura e Escrita de Te to Argumentativo Aspectos Sociais e Culturais da Leitura de Textos Argumentativos • 49
que por sua ez tal ez a le e a 1 r narrati as d parti ta amador s e profis- perceptivo-cognitivas individuais; porém, o modo como essas habilidades são
sionais de sua modalidade pr fi rida obr difi r nt cir uito d prova , o qu , treinadas, seus alvos e os procedimentos privilegiados para atingi-los não se
por sua vez de perta a curio idad a rca do modo d vida m certas regiões reduzem a eventos intrassubjetivos, já que remetem a interações sociais em dife-
e fomenta viagens o que por ua z alimentará no o interesses de leitura, e rentes níveis de generalidade. Pareceu-nos importante acentuar a estratificação
assim por diante. Uma ez qu 1 r , . uma forma culturalmente privilegiada de complexa de camadas envolvidas em algo aparentemente tão banal: ler. E ler bem
transmitir conteúdo de entido u ercício abr via privilegiadas de acesso não deve, consequentemente, se confundir com a aplicação de técnicas pontuais
a inúmeras atividad difundid no t cido ocial1 1 . de captação de sentido (algumas das quais exporemos na seção 2 deste livro).
leitura conforme carát r cultural d pectro muito amplo, revela-se Cabe também certo exercício reflexivo sobre as expectativas supraindividuais
como apreen ão do cont údo ignificati o qu d marcam os contextos centrais que normatizam o ato da leitura com base em práticas sociais historicamente
de práticas e intera õe do tecido ocial. E, por ua vez, os textos são produzidos constituídas e modificadas, tema para o qual os itens anteriores servem ao menos
conforme crit , . rio d rele ância vig nte no int rior dos contextos já particula- de apresentação introdutória.
rizado . Que um te to científico e di tinga de uma narrativa literária remete, Vimos que é a partir da diversidade de interesses partilhados em contextos
em última in tância à ua função de iculação de certo conteúdo significativo sociais relativamente estáveis que diferentes funções são atribuídas aos textos,
relevante para o interesses que justamente delimitam o contexto científico. Se as quais se realizam, no mais das vezes, por certos estilos ou gêneros típicos de
se trata de oferecer explicações para certos fenômenos, então se espera que os produção textual, voltados, então, a propósitos diversos. Sem pretensão de exaus-
meios de elaboração e veiculação de tais expectativas - os textos - primem pela tividade, cabe distinguir ao menos três amplas funções linguísticas (estruturantes
precisão na caracterização da problemática em apreço, ofereçam as justificativas de práticas sociais) que comumente estão na base da produção de textos, os quais,
em etapas logicamente ordenadas etc. Os textos carregam as marcas dos interesses assim, as concretizam por meio de diversos gêneros, longamente enriquecidos e
gerais delimitadores dos contextos em que são produzidos e transmitidos, e isso transformados com o decorrer das gerações de literatos dedicados às suas áreas
de forma historicamente mutável: os interesses se precisam no decorrer das ge- específicas de atuação 12 • Apresentaremos essas funções a seguir:
rações, o escopo dos contextos se entrecruza de modo imprevisto, os padrões de • Função narrativo-expressiva: refere-se à exposição de histórias vividas,
rigor são alterados, e assim por diante. Sem nos estender muito mais sobre esse ficcional ou veridicamente, cuja estruturação está intrinsecamente ligada
tópico, interessa-nos enfatizar que a leitura deve ser exercida em conformidade ao ponto de vista subjetivo (seja do autor, do narrador ou de personagens, se
com expectativas amplas, que remetem à própria distinção das práticas sociais a houver), o qual envolve diferentes graus de apreensão afetiva e valorativa
que os textos estão ligados. O que se espera da leitura de um artigo científico é dos tópicos narrados. A expressividade em questão remete ao papel das
normalmente diferente daquilo que se almeja com a leitura de crônicas e con- capacidades vivenciais afetivo-valorativas na elaboração da discursivida-
tos, e as razões para tanto dificilmente se esgotam na mera vontade subjetiva, de. Não se pretende reduzir a problemática teórica dos valores a esse
uma vez que estão ligadas ao desenrolar histórico das instituições sociais que conteúdo experiencial, mas somente notar que este último tem caráter
fomentam a produção de tais tipos de textos. estruturante para diversos tipos de produção textual, entre os quais se
destacam os gêneros literários ficcionais, as cartas, os diários, entre ou-
tros. De certa maneira, as explorações poéticas da linguagem também são
2.4 FUNÇÕES GERAIS LINGUÍSTICAS
classificáveis como exercício dessa função, no sentido de que a poesia, ao
Após essa remissão à cultura, retomaremos a ponderações mais específicas menos em certa medida, apreende os mais diferentes temas mundanos
acerca da leitura. Interessou-nos somente desvelar minimamente os condicio- à luz da atmosfera existencial do poeta, por mais que se trate aqui de
nantes sociais e histórico-culturais do ato de ler, complementando a aborda- algo difuso ou estilisticamente rarefeito; a apreensão poética se densifica
gem subjetiva exposta no capítulo 1. Ler é, sem dúvida, exercitar habilidades
11. O privilégio cultural da escrita e, correspondentemente, da leitura ajuda, desse modo ,_a _ente nde~ ~quele 12. Acerca dessa divisão tripartite das funçõe linguísticas concretizadas em gêneros literários, ver T. Jesch,
dado mencionado no final da seção anterior, de que leitores estão mais propensos a part:1c1par de a• V1dades "Texteverstehen", 2009, pp. 40-102.
arústicas e de lazer educativo do que não leitores.
5 O • Lei,tura eEscrita de Textos Argumentativo Aspectos Sociais e Culturais da Leitura de Textos Argumentativos • 51
e se particulariza como um modo único d apr nsão do mundo com outro lado, um texto descritivo (um livro de divulgação científica) por vezes se
ba e no e trato da própria hi tória do po ta1 • serve de vários recursos estilísticos das narrativas para fazer-se mais acessível e
• Função de criti a: r ~ r - à apreen ão, à laboração e à veiculação de alcançar um vasto público leigo.
estado de coisas do mai variado tipo ní i d complexidad e dura-
ção (inclu i e referent ao próprio UJe1to que produzem os tipos de 2.5 PRÁTICAS E TEXTOS ARGUMENTATIVOS
te to ligado a a fun ão). O princípio d unificação discursiva aqui
é o tópico des rito tomado como objeto pa í 1 de um reconhecimento Não vamos nos estender em análises combinatórias das funções linguísticas
mutuam nt válido. ão a im por mplo, as atas documentais, os como marca da especificidade de gêneros textuais. Nossa perspectiva é principal-
regi tro oficiai a notícia o r latos factuais dos mais variados tipos, mente deixar claro que os gêneros literários em que se exerce a função argumen-
inclu i e manuai comple o que e põem o estado atual do saber em tativa ( tratados, artigos, ensaios etc.) se estruturam conforme certas expectativas
c rta ár a. sociais amplas ligadas à prática da argumentação, o que, por sua vez, condiciona
• Função argumentati : refere- e ao amplo domínio de teses não atestáveis os fins da leitura desse tipo de texto. Sem clareza acerca do que constitui, ainda
imediatamente, pas í ei de dúvida e que exigem algum tipo de elaboração que em seus aspectos gerais, a função linguística argumentativa e de como ela
racional para serem aceitas. Cabe à argumentação o estabelecimento dos enforma os textos que a ela se subsomem, os leitores podem enfrentar grandes 1
meios pertinentes para obter consensos, ainda que parciais e provisórios, dificuldades na compreensão das teses ali expostas. Será preciso, como se verá,
acentuar o papel de estratégias de leitura específicas para capturar as particula-
sobre temas controversos que são julgados meritórios de discussão ou
ridades do exercício da função argumentativa em vários tipos de textos.
que envol em consequências práticas e exigem algum tipo de decisão.
Aproximemo-nos mais detidamente dessa função. Ela pressupõe, para seu
Essas funções gerais exprimem interesses diversos presentes em vários con- florescimento, algumas condições sociais específicas, as quais contribuem para a
textos práticos sociais (por exemplo, contar histórias para dar sentido a eventos, distinção e o refinamento dos contextos em que tal função é privilegiada, como
para aprender com os antepassados; obter informações confiáveis para avançar o científico e o filosófico. De maneira geral, as práticas discursivas argumentativas
a produção de mercadorias, para realizar viagens seguras, para antecipar certa (que se especializam em amplos gêneros literários, como o lógico-demonstrativo,
sequência de eventos; defender posições racionais para aproximar-se da verdade o retórico-deliberativo etc.) se caracterizam pelas tentativas de oferecer justificati-
ou para desacreditar discursos preconceituosos etc.). A partir delas, diversos vas racionais para sustentar teses ou posições que esclareçam temas controversos ou que
modelos de discursos são desenvolvidos, na maior parte das vezes entrelaçando permitam decidir acerca dos mais variados cursos de ação sob circunstâncias incertas. É
mais de um tipo de função na constituição de gêneros linguísticos relativamente comum haver divergências quanto a esses tópicos, o que fomenta o confronto
estáveis, por meio dos quais justamente os interesses relevantes que demarcam entre posições adversárias em situações específicas de avaliação de sua força ló-
contextos sociais ao menos parcialmente se fixam. É, então, bastante comum gica, a saber, os debates, os quais assumem formatos muito diferentes conforme
que nos diferentes gêneros de textos essas funções operem conjuntamente em os interesses e as necessidades dos contextos institucionais em que são regulados
formas expressivas que sedimentam alguns esquemas fixos de comunicação. Por e difundidos 14 • Importa acentuar que a proliferação e a institucionalização das
exemplo, a construção de narrativas ficcionais (romances, novelas), por um lado, práticas discursivas argumentativas supõem uma margem de aceitação social de
se serve em grande medida de descrições por vezes oferecidas com alto grau tópicos inerentemente controversos, para os quais, ao menos aparentemente, não há
de detalhes verazes, reconhecíveis intersubjetivamente de modo praticamente uma resposta imediata, evidente e unívoca. Ora, em muitos contextos tradicionais,
imediato, o que não impede que a ordenação final do "mundo narrativo" ali guiados, por exemplo, por uma normatividade teológica, esse não é um ponto
exposto remeta às particularidades apreensivas e interpretativas do autor. Por aceito pacificamente, pois se espera que o conjunto de ensinamentos conside-
rado sagrado permita oferecer respostas para praticamente todas as supostas
controvérsias da vida social. Essas respostas são oferecidas pelos mantenedores
13. Movimentos ou vanguardas literárias, em diferentes períodos históricos, tentaram afastar-se ou ao menos
reconfigurar metodicamente as raízes subjetivas irrefletidas da criação literária e poética, explorando ou-
tras matrizes de produção de sentido, como o acaso ou restrições matematicamente formul~das. Ver, por 14. Propus uma análise detalhada dos debates no livro Introdução à Análise Argumentativa. Teoria e Prática, 2016,
exemplo, os exercícios literários propostos pelo grupo francês Oficina de Literatura Potencial (ouuPo) , cap. 10.
fundado na década de 1960 por Raymond Queneau.
5 2 • Leitura e Escrita de Te to Argumentativo Aspectos Sociais e Culturais da Leitura de Textos Argumentativos • 53
da sacralidade comunitária, o quai muita adquir m o tatu d autori- questão. Nas ciências humanas, em que é difícil a formulação de experimentos
dade inquestioná 1. controlados, privilegiam-se a formulação de modelos explicativos e os dados
Para ha er pleno flor cim nto da práti a argum ntativa , d v haver estatísticos. Na filosofia, em geral, têm destaque os embates conceituais guiados
espaço social para o reconh cim nto d que tõ duvido as, incertas para as por rígidos parâmetros lógicos.
quais amplas re po tas pronta ba ada m princípio t ológicos tradicionais As diferenças de método e objetivo permitem a constituição de tradições
podem não ba tar. Sem inibiçõ oriunda do 'autoritari mo tradicional", o bastante diversas de textos pertencentes, ainda que em sentido muito largo, aos
qual impede d bate ao impor r po ta oficiai ao mai variados temas, cabe gêneros argumentativos. Deve-se também reconhecer uma riqueza notável de
de en ol er in titucionalm nt a curio idade racional da pessoas, dotando-as estilos assumidos para levar a cabo as tarefas argumentativas. Muitos recursos
dos recur O técnico n c ário para compre nd r a complexidade dos posi- comumente associados à função narrativo-expressiva foram amplamente utilizados
cionamento acerca de que tõ contro ertidas, e mesmo para tomar parte em por diversos autores de textos argumentativos. Consideremos, por exemplo, a
di cu ofi rec ndo opiniõe laboradas e bem sustentadas racionalmente. Os forma narrativa diálogo, tão importante para a exposição da doutrina filosófica
te to argumentati o e de en ol em em tradições discursivas que pressupõem de Platão, ou a importância de cartas e mesmo de diários para a discussão de
ao meno e te elemento ociai de fundo: tantos problemas teóricos no decorrer da história das ciências. Vale notar que os
empréstimos de recursos funcionais ocorrem também na direção contrária, de
1. admi são de incerteza acerca de muitos fatos mundanos e formas de
maneira que formas reflexivas comuns nos discursos argumentativos alimentam
ação e interação; a estruturação de amplos trechos de obras narrativas, em que narradores ou
2. preservação de circunstâncias institucionais favoráveis aos debates e ao
personagens discutem conceitualmente e constroem argumentos com diferentes
acréscimo de entendimento para além das respostas tradicionais.
graus de eficácia. Constituem-se, nesses casos, notáveis peças de "ficção teórica",
E, na erdade, uma das mais claras atestações de que tais condições de conforme uma expressão por vezes empregada acerca da expressão literária em
liberdade intelectual são respeitadas é a ampla disponibilização dos textos argu- Marcel Proust15 .
mentati os nos respectivos contextos de formação de diferentes áreas do saber, Não exploraremos muito mais as possibilidades de hibridações entre os
para que os interessados possam ter acesso, sem que limitações sejam impostas, gêneros literários. Em todo caso, é importante destacar que o desenvolvimen-
por exemplo, por censuras oficiais, à riqueza dos pontos de vista acerca dos tó- to interno aos gêneros nem sempre ocorre de modo cumulativo, mas envolve
picos discutidos. rupturas críticas que refundam o sentido dos recursos técnicos disponíveis e
Com base nessas características muito amplas das práticas discursivas reavaliam o alcance dos objetivos centrais para a área em questão. Essa reflexi-
argumentativas firmam-se alguns critérios gerais para discernir os gêneros li- vidade crítica no interior das tradições discursivas amiúde se serve de possibili-
terários constituídos em tomo do exercício de oferecer razões para a defesa dades expressivas de diferentes gêneros, mais ou menos próximos, para renovar
de teses não imediatamente óbvias. Tratados e artigos científicos ou filosóficos o potencial comunicativo das formas textuais sedimentadas da área em vista.
são os exemplos mais notórios de textos que sedimentam as particularidades Esse parece ser o caso da grande difusão de formas de ensaio em contraste aos
argumentativas referentes aos mais diversos campos do saber. Desse ponto de gêneros argumentativos tradicionais, a partir do final do século XIX. Não se
vista, os textos argumentativos comumente portam uma pretensão critico-teórica, deve tomar a expressão "forma ensaio" como um esquema abstrato e unívoco,
entendida no sentido muito vasto de buscar estabelecer racionalmente a correção reconhecível em todos os exemplos do gênero. Muito mais do que uma infra-
de certo ponto de vista acerca de um tópico considerado problemático. E vale estrutura predeterminada, o que parece marcar o ensaio nas ciências humanas
notar que, às vezes, o resultado almejado é "negativo", por assim dizer. Nesses e na filosofia é uma orientação critica do pensar em relação às amplas fórmulas de
casos, não se trata de fixar uma posição como melhor que as concorrentes, e assimilação de dados e ordenação conceitual que marcam certo modo tradicional
sim de mostrar que não há nenhuma posição satisfatória disponível acerca dos de teorização. A tendência a construir análises absolutizantes e pretensamente
problemas em questão, ou mesmo de mostrar que tais problemas, conforme definitivas, que se contentam com relações conceituais abstraídas da riqueza das
tratados tradicionalmente, estão mal formulados e devem ser revistos ou até experiências concretas e que, destarte, ignoram vários tipos de contingências
dissolvidos. Além disso, obviamente, os métodos argumentativos diferem enor-
memente conforme as áreas de especialização. Nas ciências naturais, a obtenção
de dados experimentais é decisiva para a defesa ou refutação das posições em 15. Ver J. Dubois, "Petits éléments de fiction théorique", 2012, pp. 109-112.
54 • Leitura e Escrita de T,_ tos Argumentativo Aspectos Sociais e Culturais da Leitura de Textos Argumentativos • 55
históricas marcou alguma e colas d p n am nto filo ófico m mo algumas esse aspecto não é tão central, mas sim a análise dos métodos para validação
perspectiva ci ntífica . Em grand m <lida o gAn ro n aí tico _d s:n- de hipóteses etc. Não há, por conseguinte, algo como uma técnica de leitura
ol eram como precaução m mo r i t''ncia a mod lo d t onzaçao, universal; e é preciso sempre questionar criticamente se os recursos estratégicos
buscando caminho para a ividad cone itual que não se obsedem com disponíveis são suficientes ou mesmo apropriados para a extração do sentido
. -
gran d es to tal izaço por afastar o p n ar de seus objetos ao_ insistir do texto em estudo, ou seja, se as estratégias de leitura disponíveis são com-
em um tipo de po e conceitual d último qu não se re~:la ~enao como patíveis, por assim dizer, com as estratégias de escrita do texto lido 17 . Pode ser
ilu ória quando confrontada com particularidad da e p~nenc~a con~r~ta. frustrante ler um ensaio filosófico com as estratégias analíticas próprias para a
E e e forço refl xi O para não ati faz r com ampla classificaçoes e taticas compreensão de tratados, e vice-versa. Cabe compreender a especificidade da
do fenôm no im para a ompanhar uas e pecificidades em diversos níveis, proposta argumentativa de um determinado texto para aplicar a ela o conjunto
empre ta vário recur o e tilí tico literários para progred!r~ o cuidado e~~ ~s de estratégias capaz de capturar corretamente o sentido ali veiculado. Em todo
situaçõ vivida a narratividad como uma forma exploratona que torna ~s1ve1s caso, mesmo para avaliar a compatibilidade entre competências disponíveis e
arranjo ingulare do temas etc. E es recurso não transformam o ensaio em objeto de estudo, certas estratégias metacognitivas, no sentido em que propõem
0
um tipo de obra de arte que e ignora, mas, pelo contrário, atestam o esforço uma avaliação crítica dos próprios recursos técnicos sedimentados diante da
intelectual de reno ação dos métodos teóricos por entrecruzamentos profícuos tarefa em questão, já devem entrar em ação.
entre a função argumentati a e a função narrativo-expressiva da linguagem. Exploraremos de perto as estratégias de leitura na segunda parte do livro.
Por ora, gostaríamos de delimitar um aspecto mais geral da lida com os textos
argumentativos. Como vimos, a função argumentativa da linguagem deu lugar,
2.6 TIPOS DE LEITURA DOS TEXTOS ARGUMENTATIVOS historicamente, a muitos gêneros textuais, portadores de diversas particulari-
dades metodológicas e estilísticas. Essa diversidade tem possibilitado (e por
ão a ançaremos muito mais na análise do ensaio, cuja complexidade de
vezes exigido), em contrapartida, modos particulares de leitura em conformi-
modo algum se pretendeu esgotar. Sua menção serviu-nos simplesmente para
dade com as expectativas sociais do contexto em que se está inserido. Contudo,
evitar simplificações na caracterização dos textos argumentativos, como se todos
como acentuado no início deste capítulo, há pelo menos sete modos amplos de
eles partilhassem de alguns poucos esquemas lógicos abstratos 16 . Há, na ve_rda-
leitura, conforme o conteúdo significativo apreendido do texto seja empregado
de, enorme riqueza metodológica no vasto campo dos textos _argumentativos,
em sentido formativo, informativo, terapêutico, estético etc. Não será possível,
construída por constantes autocríticas das tradições investigativas, zelo~as por
neste livro, abarcar todas essas possibilidades de leitura dos textos argumenta-
evitar as limitações de certos padrões analíticos cristalizados e, mesmo assim, por
tivos. Vamos nos centrar nas leituras de textos argumentativos que têm como
manter válida a perspectiva global de estudar problemas conceituais e oferecer
horizonte motivacional a formação, tomada em uma perspectiva ampla. Estão aí
respostas justificadas racionalmente. . incluídos não só os contextos institucionais de estudo acadêmico, mas também o
E, uma vez que não há somente um tipo de texto argumentativo, deve- aprimoramento profissional e mesmo os esforços autodidatas para compreender
-se reconhecer, respectivamente, que não há uma única maneira de ler bem questões controversas, seja na área científica ou filosófica, seja na área política,
tal produção textual. Os textos argumentativos muitas vezes exigem es~ratégias a fim de qualificar-se para avaliar os discursos em circulação e mesmo arriscar
bastante especializadas de leitura para serem devidamente compreendidos em tomar parte de modo produtivo e não dogmático em discussões pertinentes. É
seus padrões expositivos peculiares e em seu potencial crítico à própria explo- importante esclarecer que não há algum tipo de relação necessária entre a leitu-
ração conceitual empregada. Não se ignora esse fato neste li~o, de fo. .r1:1a que ra formativa e os textos argumentativos. É bastante provável que, nos contextos
não haveria cabimento propor algum tipo de estratégia de leitura genenca que oficiais de formação, o estudante tenha contato com textos argumentativos,
abarcasse todas as particularidades do vasto campo dos textos argumentativ~s. embora uma ênfase muito maior possa ser dada a outros tipos de textos em
Por exemplo, ao ler um ensaio, a análise dos recursos estilísticos é ~s~encial conformidade com o tipo de titulação almejado ( textos jornalísticos descriti-
para entender O movimento argumentativo; em artigos científicos especializados, vos, textos literários de cunho religioso etc.). Além disso, textos argumentativos
16. Para O
estudo aprofundado do ensaio como gênero literário, ver I. Langlet, L'Abei,Ue et la balance. Penser 17. Devo a formulação clara dessa ideia ao colega André Singer.
l'essai, 2015.
5 6 • Leitura e &crita de Te to Argumentativo Aspectos Sociais e Culturais da Leitura de Textos Argumentativos • 57
também ão produzido e circulam fora d cont to formati o tai como os • Leitura orientada: nesta prática, lê-se o texto (ou partes previamente
artigos de opinião publicado diari m nt m jornai qu contribu m para as selecionadas após uma leitura panorâmica) com a atenção focada não
mais ariadas pol "micas pontuai p rtin nt ao pa o público. Em todo caso, na totalidade do movimento expositivo, mas sim no tratamento dado
conquanto não haja uma cone ão intrín eca ntr argum ntação e formação, é elo texto a tópicos considerados relevantes. Muitas são as motivaçoes ·
inegá el que o te to argum ntati o t"m papel d de taque para a formação em legítimas para ler com vista à compreensão apenas de trechos do texto:
muitas carreiras uni er itári como a científica a filo ófica, além de servirem curiosidade sobre o posicionamento do autor acerca de certo tema,
de ponto de apoio n iai para o a anço m pe qui a autodidatas. Como coleta de dados específicos para algum tipo de pesquisa etc. Quando
vimo o te ' to argum ntati o t"m ido mpr gado para estabelecer posições realizado de forma planejada, esse tipo de ênfase em fragmentos do
acerca de que tõ contro r con tituindo con n os (mesmo se parciais e texto oferece resultados úteis, embora deva ficar claro que esse exer-
provi ório ) via diferente e tratégias de convencimento. Eles têm sido, desde cício não é suficiente para desvelar o efetivo posicionamento do autor
então um m io privilegiado para fazer avançar o conhecimento em muitas áreas. em relação à totalidade dos tópicos ali discutidos. O leitor deve, então,
De e ponto de vi ta a boa compr ensão dos textos argumentativos torna-se suspender o juízo acerca das teses gerais defendidas no texto, uma vez
uma condição prime a para a progre ão bem-sucedida nas etapas formativas que não direcionou esforços para capturá-las, mas somente para salientar
de di era área do aber ou me mo para o desenvolvimento autônomo de trechos sobre assuntos específicos que já lhe interessavam antes mesmo
concepções racionais acerca dos mais diferentes tópicos de interesse pessoal ou da leitura. Por sua vez, essa leitura tende a ser problemática quando
de grupos a que e está associado. exercida irrefletidamente por um leitor que então julga ter compreendi-
Vamos nos limitar, no restante do livro, a considerar os textos argumen- do o texto inteiro, quando na verdade somente obstinou-se em salientar
tati os tendo em vista suas contribuições para a formação dos leitores, o que, alguns fragmentos, provavelmente que tratavam de temas ou emitiam
obviamente, nos levará a dar destaque para a l,eitura formativa. Ora, mesmo sob opiniões que já lhe eram familiares. Trata-se de uma limitação grav~
esse horizonte mais circunscrito de apreensão de textos argumentativos, ainda ~ a: incapaz de apreender o movimento expositivo em sua efetiva
cabem novas delimitações, uma vez que o modo formativo de leitura comporta completude, o leitor avalia que a atenção voltada a trechos fragmentários
modalidades variadas de seu exercício, praticadas conforme o interesse, a dispo- basta para formar um quadro compreensivo do texto. Veremos que é a
nibilidade de tempo e mesmo a competência técnica sedimentada. Destacamos ausência de algumas estratégias específicas de leitura que está na raiz
a seguir algumas variantes da leitura de textos argumentativos em contextos desse erro interpretativo.
formativos 18 : • Leitura es ecializada: nesse tipo de prática, lê-se o texto não exatamente
a fim de entender as principais teses ali defendidas (o que obviamente
• Leitura panorâmica: por meio dela, busca-se capturar informa ões gerais pode ser feito em paralelo), mas sim o uso de certos recursos técnicos
sobre o texto, reunindo elementos para form~r algum; hipóteses acerca aplicados para a construção do posicionamento ali exposto. Por exem-
de seu conteúdo. Para tanto, folheia-se o texto, atentando para possíveis plo, lê-se um texto buscando explicitar e compreender o empre o de
subtítulos, bibliografia citada, enfim, para marcadores gerais do movi- metáforas na exposição ou circunscrever as inferências lógicas ali em
mento expositivo que permitem ao menos esboçar algumas ideias sobre ação para uma posterior avaliação de sua validade etc. É comum que
os tópicos tratados e o posicionamento do autor. -~ odo, esse tipo de essa prática de leitura esteja ligada ao desenvolvimento de pesquisas mais
leitura é insuficiente para permitir uma compreensão efetiva do texto, amplas acerca de gêneros literários e autores específicos.
por vezes até alimentando opiniões ingênuas ou mesmo errôneas acerca
da exposição. Mas trata-se de uma modalidade útil para estabelecer um Esses são alguns tipos de leitura de textos argumentativos comumente
contato inicial com o texto e obter alguns dados a fim de julgar, ainda praticados em contextos formativos. Eles se aproximam por enfatizar alguns as-
que im recisamente, a pertinência de sua leitura detida em contraste pectos ou partes do texto, ~em uma preocupação em apreender sistematicame~
com outras obrigações cotidianas. ~ e do movimento ex ositivo. E é justamente em direçao a um tipo de
leitura que apreenda o movimento expositivo do texto em sua integralidade que
gostaríamos de avançar. Parece-nos, aqui, que uma leitura que chamaremos de \ ~
extensiva ou abrangente, no sentido de buscar entender o texto em sua efetiva \
18. Classificações similares também se aplicariam a outros tipos de textos.
58 • Leitura e Escrita de 1e to Argumentativo
embora em certa medida tamb 'm ja álido para outro modos d 1 itura e interações presenciais (tais como comprar produtos, pagar impostos, depositar
para outros gênero te tuai . cheques, agendar viagens etc.), atividades cujas etapas são adaptadas ao design
das páginas de navegação on-line ou de aplicativos específicos. Assim também
3.2 O ASPECTO MATERIAL DO TO DE LER ocorre com a leitura de textos. Mesmo se deixarmos de lado a enorme produ-
ção de conteúdo textual voltada para a satisfação das demandas exclusivas das
leitura abrangente d t to argum ntati o ' in r ntemente trabalhosa, interações virtuais (mensagens dos mais variados formatos para redes e grupos
poi exige a atenção focada pres ivos de que o mo- sociais, e mesmo certa prod:iição de textos exclusiva para sites etc.), é notório
vimento e po iti o global ompõ o quai raram nt ão apreendidos de que muitas das práticas de leitura cumpridas antes com os textos impressos são
imediato mas im apó várias t ntati de quematização do conteúdo lido. Para feitas por meio de dispositivos eletrônicos: jornais, revistas e livros dos mais va-
que a captura inicial de e 1 m nto ocorra sati fatoriamente, evitando omitir riados gêneros são disponibilizados em formato eletrônico. Além disso, muitos
ne o lógico importante recomenda- e como estratégia geral que a leitura seja documentos de diversas épocas anteriores a essa impressionante expansão da
guiada pela feitura d equ n nota ou marcações a no ró rio texto lido. internet têm sido digitalizados, tomando acessíveis a um amplo público obras
Obviamente i o não deve er feito em e emplare retirados de bibliotecas e que difíceis de serem encontradas na forma impressa.
de erão retomar à di ponibilidade para outros leitores. Ler sempre com caneta ou De nossa parte, deixando de lado esse caso do acesso digital a obras raras
lápis à mão parece er um lema di tinti o da leitura abrangente em contraste com (que nos parece algo quantitativamente pertinente apenas quando se trata de
outras formas tai como a leitura panorâmica, por exemplo, em que apenas se pesquisas muito específicas), importa salientar que a veiculação de conteúdo
toma contato de maneira rápida com os conteúdos do texto folheado. A leitura textual por meios eletrônicos (divulgação em sites, em redes sociais etc.) deve
voltada para a apreensão abrangente do movimento expositivo envolve, conse- se adequar às particularidades do design da operatividade digital, o qual, por sua
quentemente, muito mais ações do que a simples assimilação visual do texto (ou vez, fomenta certos hábitos privilegiados de uso que, de modo circular, favore-
tátil, no caso da escrita em braile) como conjunto fenomenal. cem o aperfeiçoamento de certos padrões de "usabilidade" do mundo virtual.
Antes de destacar as estratégias específicas que tomam a leitura abrangente, Tal como enfatiza S. Krug em um dos manuais mais famosos de design de web,
sob o horizonte desse lema geral, uma experiência ativa, vale acentuar que essas no uso cotidiano as pessoas não acessam a internet para ler textos cuidadosa e
ações paralelas à assimilação visual do texto constrangem materialmente suas concentradamente, mas no máximo destacam termos e frases por pouco tem-
possibilidades de execução. A menção a lá is e caneta não é somente metafórica, po, uma vez que constantemente clicam em links para novos conteúdos em um
e sugere que de fato a disponibilidade material do texto na condição d~ ~ movimento quase incessante 1•
~ impressa,juntamente com vários papéis para a tomada de notas simultaneamente Não é necessário que sempre se use a web desse jeito desconcentrado. Mas
à leitura, faz a diferença para o exercício bem-sucedido da leitura. trata-se de um modo que parece predominar amiúde na lida com conteúdos
Há, neste ponto, questões polêmicas de fundo, principalmente referentes à veiculados por páginas "hipertextuais". A hipertextualidade é marcada pela
digitalização dos textos e às modificações correspondentes nas formas privilegia- disponibilização de várias informações associadas ao tópico em pauta por meio
das de estudo. Sem pretender defender nada de definitivo quanto a esse campo de links que remetem o texto originalmente lido a outros textos que comple-
temático tão sujeito ao acréscimo de novas evidências empíricas, gostaríamos ao mentam seu conteúdo. Além disso, frequentemente o conteúdo de uma página
menos de demarcar melhor o grau de materialidade exigido para a boa con- também está ligado a outros veículos de informações, tais como fotos e vídeos
dução da leitura abrangente em contraste com a leitura comumente exercida (conteúdo "hipermidiático"). Ainda que esses múltiplos aspectos associados a
de textos oferecidos como conteúdos virtuais ou digitalizados. É inescapável um texto permitam, em tese, oferecer uma apreensão enriquecida do conteúdo
admitir, de partida, que o advento da internet e as possibilidades comunicativas em questão, normalmente esse tipo de ordenação hipertextual/hipermidiática
a ela ligadas configuram novas formas de leitura, entrelaçadas seja à elaboração favorece distrações e rupturas na linearidade da compreensão dos temas lidos. É
de meios eletrônicos cada vez mais aperfeiçoados para seu exercício ( telas de
computadores, tablets, celulares, leitores de livros digitais etc.), seja à delimita-
ção de novos contextos interacionais de produção de conteúdo (redes sociais, 1. "Um dos poucos fatos bem documentados sobre o uso da web é que as pessoas tendem a empregar muito
pouco tempo lendo a maior parte das páginas da web. Em vez disso, nós as examinamos rapidamente (ou
fóruns de debate, grupos de discussão on-line etc.). As práticas permitidas por apenas pas amos os olhos por elas), procurando por palavras ou expressões que prendam nosso olhar"
essa ampla conectividade abrangem atividades outrora cumpridas por meio de (S. Krug, Don't Make Me Think, 2014, p. 22).
62 • Leitura e Escrita de TI. to Argumentativo Alguns Pressupostos da Leitura Abrangente • 63
comum ao utilizar o links qu o 1 itor p rca o foco da 1 itura, dando d staque são, na maior parte das vezes, configurados para a execução simultânea de várias
a outros temas que e tornam u obj to d apr n ão, m salto uc ivo de tarefas. Em consequência, um aparelho que dispõe de aplicativos de leitura de
informações interligadas g n ricam nt o qu muito pouco t m a ver com a textos digitais também serve para conectividade na web, deixando em aberto
compreensão atenta de um movim nto e po iti o global2 • O design da maioria a possiblidade de conferir mensagens, e-mails, além de visitar páginas, acessar
das páginas da int rnet apr nta ário convit para ac ssar outros conteúdos jogos, interagir com outras pessoas etc. Algumas dessas operações são realizáveis
antes me mo que ou uário domin aquele qu inicialmente chamou sua aten- mesmo sem conexão com a internet, de maneira que é a própria arquitetônica
ção. Logo um padrão comum d u o da int rn t ' at ntar a alguns elementos funcional do aparelho eletrônico que fomenta modos de leitura intercalados
fragmentário d uma página amalgamando-o a 1 m nto de outras páginas com sucessivas tarefas que interrompem e prejudicam o fluxo da compreensão 4 •
por meio de variado links qu ligam inúm ras páginas entre si. Essa apreensão E mesmo que se neutralize o potencial de distração estruturalmente em-
fragmentada do conteúdo hip rmidiático par ce pr valecer mesmo em relação butido nos aparelhos eletrônicos, a leitura de textos digitais ainda está sujeita a
a sites e p cificam nte oltado à iculação de texto , como aqueles de jornais dificuldades que não ocorrem na lida com os textos impressos. Estudos experi-
ou revi ta . Dado d pe qui a r c nte mostram que a maior parte dos visitan- mentais têm mostrado que a fixação de conteúdos lidos para além de mero tema
te de páginas de artigo na web não rola a página até seu final, normalmente evanescente na memória episódica não é indiferente ao meio de apresentação do
lendo até a metade ou apenas até um pouco mais da metade do texto antes de texto em estudo. Os sujeitos testados têm se mostrado sensivelmente melhores
abrir uma no a página3 • na compreensão de textos impressos do que de textos digitais5 • Não há ainda
Parece, dessa maneira, que o hábito de uso da internet não está associado explicações definitivas para esses dados, e fatores como hábitos anteriores de
à leitura abrangente de textos. A tendência de uso da internet, e isso por razões leitura e mesmo a interpretação do valor epistêmico atribuído aos diferentes
que remetem em parte ao próprio design de veiculação de seu conteúdo, privi- meios 6 parecem contribuir para tais resultados. Em todo caso, hipóteses têm sido
legia relações entre dados parcialmente absorvidos com vista a tarefas práticas feitas acerca de algumas particularidades negativas do modo de apresentação
específicas ou mesmo ao mero passatempo, e não à compreensão aprofundada digital de textm, em contraste com o modo impresso. Em particular, destaca-se
de textos. Diante desse quadro, seria difícil simplesmente pretender realizar a o enfraquecimento da remissão do conteúdo ao texto apreendido como objeto
leitura abrangente acessando conteúdos da internet. Os hábitos de uso e mesmo espacial. Sabe-se que a associação do conteúdo à sua localização espacial nas pá-
a usabilidade sugerida pelas páginas não favorecem essa atividade. ginas lidas (por exemplo, certa expressão na parte de baixo da página, aquela
o entanto, talvez estejamos abordando a questão da digitalização de palavra na parte de cima etc.) é uma operação cognitiva que auxilia bastante na
conteúdos textuais de um ponto de vista errado. É verdade que, como conteúdo recuperação das informações lidas e em sua efetiva memorização 7 • A fixidez do
de páginas hipertextuais, os textos na web pouco se prestam a uma leitura abran- meio impresso e mesmo a disponibilização simultânea da totalidade das páginas
gente, sendo muito mais objeto de maneiras apressadas de ler. Devemos enfatizar, ao toque parecem oferecer marcas sensíveis eficientes para a localização das
contudo, que muitos textos têm suas versões digitalizadas em arquivos do tipo informações lidas 8 • No caso de textos digitais, em muitos aplicativos de leitura
PDF ou similares, simplesmente reproduzindo suas características materiais, sem a tem-se acesso somente a uma página por vez, sucessivamente substituída na tela
inserção em uma rede de aspectos hipertextuais com alto potencial de distração.
Em sentido mais amplo, defrontamo-nos neste ponto com o que se convencio-
nou chamar de livro dig:i,tal. No entanto, mesmo nesses casos, as dificuldades 4. Vários estudos têm confirmado que entrecortar de outras tarefas, tais como verificar mensagens em apli-
para o exercício da leitura abrangente não são facilmente sanáveis. Em primeiro cativos, a leitura de textos, minimiza o entendimento daquilo que é lido. Ver, por exemplo, L. Bowman et
al., "Can Students Really Multitask? An Experimental Study of Instant Messaging While Reading", 2010.
lugar, deve-se considerar em qual tipo de suporte eletrônico o texto digitalizado 5. Ver, por exemplo, J. M. Noyes e K. J. Garland, "Computer- vs. Paper-Based Tasks: Are They Equivalent?",
2008; A. Mangen, B. R. Walgermo e K. Bronnick, "Reading Linear Texts on Paper versus Computer Screen:
será lido. Se o arquivo simplesmente for aberto em um computador ou tablet
Effects on Reading Comprehension", 2013.
"multitarefas", então a fonte potencial de distrações, ainda que removida do 6. Alguns sujeitos testados entendem os aparelhos eletrônicos como propícios para troca de mensagens e
outras atividades que não envolvem tanta concentração, o que pode dificultar a mobilização da atenção
arquivo, continua presente. Os computadores e aparelhos eletrônicos similares necessária para o estudo aprofundado de textos nesses meios. Ver R. Ackerman e M. Goldsmith, "Meta-
cogni tive Regulation of Text Learning: On Screen versus on Paper", 2011.
7. Ver, por exemplo, M. G. Cataldo e J. Oakhill, "Why Are Poor Comprehenders Inefficient Searchers? An
Investigation into the Effects of Text", 2000.
2. Esse tópico tem sido confirmado por diferentes pesquisas experimentais. Para uma análise de vários estudos ligados 8. Ver A. Mangen, New Narrative Pleasures? A Cog;nitive-phenomenologi,cal Study of the Experience of &ading Digi,tal
a esse tema, ver D. DeStefano e J.-A. LeFevre, "Cognitive Load in Hypertext Reading: A Review", 2007. Narrative Fictions, 2006, cap. 15.
3. Ver, por exemplo, F. Manjoo, "You Won 't Read this Article. Why People Online Don' t Read to the End", 2013.
64 • Leitura e&crita de TI. to Argumentativo
Alguns Pressupostos da Leitura Abrangente • 65
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im o sibilidade ou a dificuldad (d pendendo do aplicativo ou do aparelho uti-
lizado) de acr centar nota e marcações aos te tos lidos. Conforme acentuado
no início da eção a leitura abrangente se faz com lápis ou caneta à mão, de
ções tecnológicas, ainda parece mais produtivo o exercício da leitura abrangente
por meio de textos impressos. A tangibilidade material do texto (e também das
fichas a serem escritas) facilita a compreensão do conteúdo significativo, e isso
modo a marcar o te to concomitantemente à ua leitura. Obviamente nenhum de uma maneira que não é facilmente reprodutível pelos suportes eletrônicos
desses doi in trumento cotidiano é aplicável aos textos visualizados em telas comumente disponíveis. A repetida confirmação de vários aspectos desse fato
digitais e eria então necessário contar com recursos de marcação oferecidos por muitos estudos experimentais deveria instilar cautela em organizadores de
pelos programas empregados para a leitura de textos digitalizados (alguns dos políticas de educação que defendem o uso cada vez mais amplo de recursos
quais permitem o emprego de 'canetas digitais"). Infelizmente, nem sempre esses eletrônicos para a aprendizagem. Caberia questionar se, além de interesses eco-
recursos estão disponíveis e, quando estão, nem sempre oferecem a simplicidade nômicos firmados com empresas desenvolvedoras de hardwares e softwares, além
e a plasticidade das marcações nos textos impressos. Além disso, como veremos, a de mera adaptação irrefletida ao espírito do tempo ("os aparelhos eletrônicos
escrita de fichas para a captura do movimento expositivo do texto será uma estra- são utilizados em tantos contextos sociais; vamos incluí-los na escola também ... "),
tégia fulcral para a compreensão de textos argumentativos. Se se quer construir as as razões pedagógicas (fundadas em investigações psicológicas e psicossociais ri-
fichas por meio de programas de processamento de textos nos mesmos aparelhos gorosas) para tal mudança do suporte privilegiado do ensino estão mesmo bem
eletrônicos em que se leem os textos, haverá uma dificuldade adicional: na maior estabelecidas. Não temos condições de tecer uma crítica extensa dessa proble-
parte dos aparelhos disponíveis, seria preciso alternar entre a exibição do texto mática aqui, mas ao menos fizemos um alerta contra a frivolidade (para dizer o
na tela e da página em que se escreve a ficha, e o caráter sucessivo dessas tarefas mínimo) com que certas inovações tecnológicas são tomadas como inescapáveis
(em contraste com a simultaneidade da disponibilidade do texto e das fichas para as práticas de ensino, quando mal se verificou experimentalmente se toda
quando ambos estão impressos) também tende a atrapalhar a compreensão 10 • a riqueza do florescimento do aprendizado efetivamente se mantém nos meios
Deve-se mencionar que algumas das limitações ligadas ao exercício da lei- eletrônicos. Ao que parece, no que tange à leitura rigorosa de textos argumen-
tura abrangente em meios eletrônicos são ao menos minimizadas em aparelhos tativos complexos com vistas à compreensão abrangente de seu movimento
específicos para o desfrute de livros eletrônicos (uma vez, por exemplo, que sua expositivo, os meios eletrônicos não favorecem seu exercício pleno, e ignorar
arquitetônica funcional permite o acréscimo de notas e impede o acréscimo de os dados experimentais disponíveis até então que comprovam tal limitação pode
aplicativos que fomentam distrações), embora outras dificuldades práticas este- levar a forçar métodos inadequados para os objetivos maiores do ensino.
jam relacionadas à sua disponibilidade e uso: preço caro para a maior parte das
pessoas, incompatibilidade entre os formatos de arquivos, fragilidade em quedas
etc. Seja como for, nenhum desses problemas deve estimular umjuízo definitivo
11. É difícil não reconhecer, no entanto, que o fomento ao estudo aprofundado e ao desenvolvimento da
9. Cf. A. Piolat, J.-Y Roussey & O. Thunin, "Effects of Screen Presentation on Text Reading and Revising", capacidade crítica não tem sido o foco do desenvolvimento dos produtos ligados à leitura em meios eletrô-
1997. Para uma abordagem extensa acerca das particularidades cognitivas da leitura em meios eletrônicos nicos. A. Giffard tentou circunscrever os interesses econômicos que orientam a difusão e a sedimentação
em contraste com a leitura de textos impressos, cf. T. Baccino & V. Drai-Zerbib, La lecture numérique, 2015. de sas formas de leitura apressadas e desconcentradas frequentes na web, formas intituladas por ele de
10. Sobre esse tópico, cf. E. Wãstlund et al., "Effects of VDT and Paper Presentation on Consumption and "leituras industriais", que segmentam a atenção dos usuários tendo em vista sua captura sistemática pelas
Production of Inforrnation: Psychological and Physiological Factors", 2005. diferentes formas de marketing virtual. Cf. A. Giffard, "Des lectures industrielles", 2009, cap. 2.
66 • Leitura eEscrita de Te tos Argumentativo Alguns Pressupostos da Leitura Abrangente • 67
3.3 AS DIME SÕES IMPLÍCITAS D COMPREEN O de um entendimento comum por outros leitores. A face explícita de qualquer texto
é, então, o conjunto de expressões sintático-semânticas que veiculam um sentido
Todo te to e caracteriza como o regi tro d c rto conteúdos discur ivos cuja unidade se deixa reiterar em circunstâncias diversas de leitura, por meio de
de forma fi a. Ao menos e é o ca o na impres as do te ~os: .º qu~ ali se atos individuais que buscam assimilar o conteúdo significativo "idêntico", isto é,
registra está em um cenário id al a al o de di torçõ ou alteraçoes mdevidas, e reconhecível como o mesmo por diversos leitores. Sem dúvida, há divergências de
é apresentado como um todo igni:ficati o partilhado ntr aqueles qu conh~cem interpretações nem sempre conciliáveis15 ; mas antes de salientar esse fato, trata-se
as técnica de decifração (a 1 itura) do igno mpr gados para esse registro. de lançar luz sobre essa perspectiva conciliatória de base, ou seja, sobre o próprio
Ora ne t ponto cab m important pecificaçõ . O que de fato se garante esforço de compreensão como partilha de sentido. Sem admitir que ao ler busca-
como partilhado entre as pe o alfabetizadas em contato com o mesmo texto -se repor o sentido das expressões escritas em sua "idealidade", isto é, como uma
é justament e a face e plícita d ocábulos e estruturas sintáticas mutuamente unidade de significação reiterável em diferentes circunstâncias de leitura, parece
compreendidas na unidade de eu entido. . que estaríamos condenados a uma mútua incompreensão insuperável.
Para clarificar e e ponto, ale a pena servir-se, ainda que de maneira Seja como for, o conteúdo significativo ideal do texto, o sentido a ser rei-
bastante limitada da noção de idealidade da linguagem elaborada por E. Husserl terado por diversas leituras como sendo "o mesmo" por meio da diversidade de
em ário te to de ua longa carreira filosófica. Em Lógica Formal e Transcen- atos de compreensão individuais, é somente parte do sentido textual. Trata-se
denta~ livro publicado em 1929, Husserl distingue claramente entre estruturas daquilo que se poderia ler em voz alta e ser então mutuamente reconhecido
linguísticas enquanto eiculam um sentido compreensível por diferentes sujeitos como o conteúdo fixo do texto. Interessa salientar agora que, para a compreensão
e as inúmeras reproduções empíricas dessas estruturas em circunstâncias con- efetiva do texto, apenas a apreensão dessa face explícita pelo ato de ler não é
cretas particulares12. O ponto é simplesmente reconhecer que o sentid~ n_ão suficiente. A compreensão pela leitura exige mais do que a mera repetição das
aria indefinidamente em decorrência das múltiplas instâncias de enunciaçao. palavras impressas; a leitura sempre se faz para além daquilo que está efetiva-
Um ocábulo não tem seu sentido reinventado a cada vez que é proferido (ou mente escrito. Simplesmente decifrar, pelo ato de ler, a face explícita de um
lido); pelo contrário, os casos particulares de uso buscam manter a unidade de texto não é garantia da obtenção de um entendimento abrangente e sistemático
um mesmo sentido, empregado em contextos apropriados 13 . Daí que uma palavra do sentido ali veiculado. É verdade que a face explícita opera como um lastro
ou expressão possa ser reconhecida como idêntica, ainda que utilizada por dife- inalienável ao oferecer a base material da qual a compreensão deve obviamen-
rentes pessoas em ocasiões variadas. Na verdade, muitas vezes uma palavra ou te partir e à qual, em certo sentido, deve retornar, de maneira que o leitor se
expressão justamente não é compreendida em certa ci~cunstância, quando s__eu assegure de entender o sentido efetivamente registrado e evite construir um
uso particular rompe com essa atualização de um senado uno que se mantem sentido arbitrário acerca do que leu. No entanto, o processo de compreensão
reiterável em diferentes situações empíricas 14 . do texto como unidade de sentido não se limita a mera repetição das significa-
Essa noção de unidade de sentido para além das (ou exatamente nas) muitas ções explícitas de que se compõe. O texto como registro de certa articulação
instâncias de emprego das expressões linguísticas nos auxilia a compreender a discursiva salvaguarda o conteúdo de oscilações e mesmo da efemeridade da
veiculação dos conteúdos textuais. Cada um que se dedica a ler certo texto busca fala, sedimentando o conteúdo para além das particularidades concretas de sua
compreendê-lo por meio de atos subjetivos particulares que almejam reproduz~r o produção. Porém, o leitor sempre está situado existencial e socialmente 16 , e a
mesmo sentido tal como formulado antes, pelo próprio autor, e tal como pass1vel ele cabe, por meio da leitura, recontextualizar o conteúdo significativo, ou seja,
situá-lo em um ambiente concreto em que voltará a fazer sentido para um pú-
blico específico 17 • Ora, para tornar efetivo o sentido registrado do texto, dele se
12. "A própria palavra, a própria sentença gramatical é uma unidade ide_al, que não se multiplica com suas
milhares de reproduções" (E. Husserl, Forma/,e und transzendenta/,e Logik, 1974, P· 25). _
13. Não se deve supor que os vocábulos preservam seu sentido isoladame~te. As pala:1:as e exp~essoes _por-
tam seu sentido relativamente umas as outras, isto é, formando um sistema opositivo. A unidade ideal 15. Trataremos desse tema na próxima seção.
do sentido vocabular remete, por conseguinte, à manutenção do sistema linguístico em que o termo em 16. Conforme discutido, respectivamente, no capítulos 1 e 2.
questão está inserido. . • . . 17. Como bem formula P. Ricoeur, "a leitura é como a execução de uma partitura musical; ela marca a
14. A atribuição de idealidade, como unidade lógica que não se esgota nas mstanc1as de uso mas ~ermite efetuação, a vinda ao ato, das possibilidades semânticas do texto. [... ] Então o texto 'atualizado' encontra
aproximar essas últimas como casos do emprego de um mesmo sentido, não impede o reconhecimento uma ambiência e uma audiência; ele retoma seu movimento, interceptado e suspenso, de referência para
da transformação inerente à história de uma língua qualquer, o que cabe à linguística descrever. Nas um mundo e para sujeitos. Esse mundo é aquele do leitor; esse sujeito é o próprio leitor. [ ... ] O texto tinha
palavras de Husserl, a linguagem é "um sistema durável de signos habituais, que cresce e se transforma somente um sentido, quer dizer, relações internas, uma estrutura; ele tem agora uma significação, quer
na comunidade de um povo à maneira de tradição" (Idem, p. 24).
68 • Leitura e Escrita de Ti to Argumentativo Alguns Pressupostos da Leitura Abrangente • 69
apropriando como conteúdo compr ndido a 1 itura t m d a ançar para al "m • O autor x mudou de posição quanto ao problema y.
da face e plícita te tual. E i o impl m nt porqu d modo a az comum, • O autor x não mudou de posição quanto ao problema y.
o conteúdo e lícito do te to não basta ara d t rminar qual o ntido global
Ambas as sentenças remetem ao mesmo pressuposto semântico já
Consideremos o exemplo a seguir: • Não foi o autor w que afirmou tal extravagância.
• O autor x mudou de posição quanto ao problema y. De modo semelhante, consideremos as seguintes sentenças:
O entendimento dessa sentença deve levar o leitor a supor que o autor x • Eles ficaram surpresos com o resultado do experimento.
defendeu um primeiro conjunto de teses acerca do tópico y, o qual foi então • Eles não ficaram surpresos com o resultado do experimento.
alterado, ainda que isso tudo não seja explicitamente afirmado na sentença.
Simplesmente o sentido lexical da expressão "mudou de posição" , se bem com- Em qualquer um desses casos, pressupõe-se a facticidade do resultado do
preendido, legitima uma inferência até outra sentença implicitamente relacio- experimento, o que se deixa exprimir da seguinte maneira:
não se trata de remeter o conteúdo 'Plí ito a condi õ pr supo tas para que ou noções a serem enfatizadas de noções que se espera que o leitor disponha
ele vigore significativamente, mas im d apontar para rtas con qu "ncias in- ou possa facilmente adquirir, sem então que seja preciso carregar O texto com
trinsecamente ligadas à afirmação do conteúdo plícito m qu tão. Na r lação s~a formulação. ~or motivos de economia expressiva e suposição geral de que
de implicação emântica ca o e a uma que a ent nça e plícita é verdadeira, ha um saber partilhado sobre as noções semânticas empregadas, decide-se en-
então se de e também inferir c rta nt nça implícita como necessariamente tão o que compõe a face explícita e o que é deixado para ser entendido via in-
erdadeira. Con ideremo o eguint mplo: ferências semânticas.
Avancemos agora na exposição das relações implícitas eminentemente
• O documento e encontra m cima da e cri aninha.
pragmáticas para a compreensão de um texto. Trata-se da inescapável remissão
E sa sentença implica qu : da face explícita do texto ao amplo horizonte de saberes prévios de que O leitor
dispõe sobre o assunto lido e de assuntos correlatos. Ainda cabe falar aqui em
• escri aninha e encontra embaixo do documento.
inferências que reenviam o conteúdo explícito do texto a tópicos implícitos
implicação decorre n e caso das relações semânticas entre as expres- que condicionam sua apreensão; porém, o polo implícito ativado inferencial-
sões complementare em cima' e 'embaixo'. Desde que a primeira sentença mente não é, nesse caso, uma sentença (conforme ocorre no caso das relações
seja erdadeira, então se segue por conta dessa relação entre tais termos, que semânticas), e sim todo um campo de saberes e crenças que delimitam, por
a segunda entença de e ser também verdadeira. assim dizer, um quadro de sentido prévio por meio do qual se faz avançar 0
Vale notar que diferentemente da relação de pressuposição, a implicação entendimento da face explícita do texto 19 • Vale enfatizar que uma enorme fonte
não permanece álida caso se transforme negativamente a sentença explícita de de constituição desse campo de saberes de fundo por meio do qual se apreende
partida: o conteúdo explícito de um texto são justamente muitos outros textos lidos e
cujo entendimento sedimentado oferece ferramentas conceituais e críticas para
• O documento não se encontra em cima da escrivaninha. a assimilação atual do texto em foco 20 •
Essa sentença negativa anula a implicação extraída anteriormente. De modo mais específico, como opera essa ampla dimensão implícita em
Muitos outros aspectos técnicos das relações de pressuposição e implicação relação ao entendimento de textos? Para responder a essa pergunta, cabe esboçar
ainda poderiam ser detalhados. Contudo, interessa-nos somente apontar, em uma descrição da experiência de leitura, dando destaque ao papel desses saberes
termos gerais, para o fenômeno das inferências guiadas semanticamente até senten- prévios na fixação do entendimento do conteúdo explícito do texto 21 • Quanto a
ças implícitas como parte da tarefa de compreensão textual. A face explícita do esse ponto, merece destaque o fato de que, ao defrontarmo-nos com um texto
texto normalmente não esgota as suas próprias condições semânticas de sentido ainda não lido, buscamos apreendê-lo a partir daquilo que já sabemos, mesmo
(nem consequências dela derivadas), cabendo ao leitor saber inferir a dimensão se de forma muito geral, acerca do tema do texto. Não se enfrenta um texto
implícita capaz de assegurar a inteligibilidade do texto. Isso não é, obviamente, como algo completamente desconhecido, mas com base em crenças e saberes
nenhum tipo de falha ou limitação dos textos ou mesmo da discursividade em muito amplos que esboçam, por assim dizer, uma pré-compreensão dos tópicos
geral (uma vez que o mesmo fenômeno se repete em diálogos e comunicações ali escritos. Isso quer dizer que jamais se é totalmente passivo diante de um
orais), mas um fator de ordenação do sentido que remete a razões pragmáticas, ou
seja, ao emprego da linguagem em função de contextos particulares. Talvez fosse
possível construir textos em que se explicitassem todos ou ao menos os principais 19. Sobre essa noção ampla de pressuposição pragmática, ver R. Stalnaker, "Pragmatic Presuppositions", 1999,
pp. 47-62.
pressupostos das sentenças empregadas, utilizando-se então de sentenças do tipo: 20. Há, assim, certa intertextualidade de fundo para a compreensão de um texto, no sentido da remissão
implícita (mas também explícita) deste a vários outros textos cujo conteúdo auxilia em diferentes níveis a
• Existe alguém que afirmou y, e foi o autor x que afirmou y. elaborar o entendimento do que se lê. Sobre esse ponto, ver U. Fix, "Aspekte der Intertextualitãt", 2000,
pp. 449-457.
No entanto, seria extremamente fastidiosa a leitura de um texto que bus- 21. Inspiramo-nos aqui no projeto hermenêutico de H. G. Gadamer tal qual formulado em Verdade e Método,
obra em que, antes de prescrever um conjunto de regras para a interpretação de obras da cultura, busca-
casse pôr à luz todos seus pressupostos semânticos. Na verdade, o apelo a pres- -se esclarecer o seguinte: "O que está em questão não é o que fazemos ou o que devemos fazer, mas
aquilo que nos sobrevém, para além do nosso querer e do nosso fazer" (H. G. Gadamer, Gesammelte Werke
supostos semânticos ocorre justamente porque não se julga necessário expor
2 - Wahrheit und Methode. Ergi:inzungen, R.egister, 1993, p. 438). Almeja-se, dessa forma, esclarecer de que se
todas as inferências disponíveis acerca do tópico tratado, como se elas estives- constitui a experiência da interpretação de textos, sem reduzi-la a algum tipo de aplicação mecânica de
regras hermenêuticas.
sem todas no mesmo nível de relevância. É comum que se distinga certas ideias
72 • Leitura eEscrita de Tt. tos Argumentativo Alguns Pressupostos da Leitura Abrangente • 73
te to, como e a leitura fo e o pr nchim nto d uma lacuna ac r a d c rto sem nenhum tipo de noção prévia sobre o assunto, por meio da qual esponta-
tópico. Ora, não há lacuna claram nte definidas no conh cim nto pr'vio im- neamente já se lança um esboço do sentido geral almejado. Porém, esse esboço
plícito. a maior parte dos caso mal ab o qu não e sabe, o qu mas de sentido traçado sobre o horizonte implícito de saber prévio é algo maleável,
de compreensão dos e entos e int ra õe , adquiridos no treino e colar e no justamente à medida que a leitura forneça marcas cada vez mais claras acerca
convívio constante com o d mai parecem ba tar. De sa maneira, o reconhe- das posições defendidas no texto.
cimento de que um te to ofi r c dado no o ou argum ntos diferentes sobre As crenças e os saberes prévios acerca dos muitos tópicos ligados aos as-
tópico pouco e tudado não dá orno o pr nchim nto de um vácuo, e sim suntos lidos formam um vasto campo de sentido implícito ao qual se recorre para
como tran formação ou r finam nto d uma pr . . -compr n ão vaga referida ao avançar na compreensão do texto, campo que é reconfigurado conforme novas
assunto em que tão. Importa ac ntuar qu , xcluída leitura altamente especia- informações e teses são efetivamente apreendidas pela leitura. Não se entenderia
lizadas o leitor parece a ançar por meio da projeção de um pré-entendimento o texto sem o aporte dessa ampla dimensão implícita, e, por sua vez, ela não
(mesmo e pr cário parcial) ac rca do tópico, por meio do qual se engaja permanece imune à compreensão textual que ela mesma faculta. O leitor atualiza
na efeti a as imilação dos conteúdo significativo do texto 22 . O saber prévio a face explícita do texto por meio de seu horizonte próprio de crenças e expecta-
auxilia o direcionamento da atenção para que e consiga distinguir níveis de tivas. Não há, desse ponto de vista, leitura que não se faça situada existencial e
relevância acerca do temas e po tos. Além disso, em geral, a mobilização do historicamente. Mas, nesse processo, são as crenças e expectativas de partida que
horizonte de saberes previamente disponíveis é marcada como ativação de uma se deixam reconfigurar e densificar conforme avance a explicitação do sentido
asta rede conceitua! em que os temas do texto se encaixam. Esse horizonte pré- textual, isto é, o domínio progressivo de sua face explícita. O sentido aí conti-
vio de sentido se deixa notar para o próprio leitor como complexo de relações do não se impõe por si só ao leitor como sobre uma tabula rasa, uma vez que tal
temático-conceituais despertadas pelo texto 23 • sentido é tornado conteúdo apreendido via a situação existencial e histórica do
A projeção do entendimento obviamente se enraíza, em última instância, leitor. No entanto, o texto carrega a força de transformar o próprio horizonte
na própria assimilação do sentido das palavras explicitamente empregadas no de sentido do qual parte o leitor, acrescentando concepções, refinando conceitos
texto. Busca-se apreender o sentido "idêntico" dos termos, isto é, válido tanto e mesmo levando-o a questionar certas opções teóricas, certos posicionamentos
para o autor quanto para os leitores, que reavivam os conteúdos significativos ali espontâneos que então se revelam como enviesamentos 25 •
registrados. Mas, à medida que as palavras se conectam em frases e estas cons- Essa perspectiva de transformação dos próprios parâmetros de sentido
troem parágrafos complexos, a extração de um sentido partilhado não é tarefa ativados para a compreensão textual em pauta marca a circularidade virtuosa
tão óbvia, e o papel dos saberes e crenças prévias na projeção de um sentido da leitura: lê-se o novo a partir de uma projeção de sentido baseada na rede
global ganha peso. Certo entendimento desse sentido global é então antecipado conceituai prévia, a qual é então enriquecida pela paulatina assimilação do con-
com base naquilo que já se sabe, ainda que vagamente, do tópico. Ocorre que teúdo lido. Para que tudo ocorra de maneira tão harmônica, deve vigorar certa
esse sentido antecipado pode ser efetivamente enriquecido e mesmo corrigi,do com orientação global de cunho epistêmico e mesmo ético nas atividades do leitor.
o avanço na leitura do texto em estudo. É então que a experiência da leitura Essa orientação também compõe o horizonte de sentido implícito a ser mobili-
revela seu caráter circular: o horizonte de saberes prévios que permitiu uma zado por toda leitura, circunscrevendo uma disposição particular que permitirá
antecipação mínima de sentido por meio do qual a leitura de início avançou é constituir essa circularidade de aprendizado mencionada. De que orientação
modificado pelo entendimento progressivo do texto, cuja exposição paulatina se trata? Tal como formula Gadamer em Verdade e Método, "quando se ouve
em muitos pontos contribui, ao menos idealmente, para o refinamento das ideias
prévias das quais a leitura partiu24 • É difícil, assim, supor que se vá ler o texto
Por sua vez, esse primeiro sentido apenas se esboça porque já se lê o texto guiado por certas expectativas
de um sentido determinado. É na realização de um tal projeto prévio, decerto constantemente revisado
com base no que o progresso na penetração no sentido oferece, que consiste a compreensão do que é
dado" (H. G. Gadamer, Gesammelte Werke 1 - Wahrheit und Methode, 2010, p. 271).
22. Talvez se encontre aqui a raiz da leitura fragmentada, exposta no capítulo anterior. Ler com base no que
25. Tal como formula Gadamer, "o horizonte do presente está em um processo de contínua formação, na
se sabe, destacando o que é familiar, não é senão expressão do pré-entendimento constantemente ativado
medida em que devemos pôr à prova constantemente nossos preconceitos. Parte desse pôr à prova pertence
no contato com novas obras. Contudo, se não se aceita flexibilizar minimamente essa pré-compreensão,
ao encontro com o passado e o entendimento da tradição da qual proviemos" (Idem, p. 311). A leitura de
então essa operatividade espontânea se toma um obstáculo para o entendimento, como veremos.
textos clássicos é uma ocasião privilegiada para que os componentes de nosso horizonte contemporâneo
23. Sobre esse ponto, ver M. Hasselhom e A. Gold, Padagogische Psychologi.e, 2013, PP· 89-91. de compreensão sejam mobilizados e se tomem passíveis de refinamento à luz do embate com o sentido
24. Gadamer formula de modo elucidativo esse ponto: "quem quer compreender um texto realiza sempre um
ali registrado.
projetar. Tão logo se mostre um primeiro sentido no texto, o intérprete predelineia um sentido do todo.
74 • Leüura eEscrita de Texto Argumentativo
Alguns Pressupostos da Leitura Abrangente • 75
alguém ou quando se empreend uma 1 itura, não , neces ário que squ -
tende a simplificar os posicionamentos defendidos no texto, atribuindo-lhes
çam todas as opiniões prévias obre u cont údo tod a opiniõ próprias.
uma força lógica menor do que aquela efetivamente ali contida. Tende também
O que se requer é simple mente a ab rtura à opinião do outro ou do te to" 26 •
a distorcer o sentido do que é exposto a fim de tornar o conteúdo compatível
Sem dúvida, esse é um ponto crucial. O te to em estudo pode conter posições
com suas crenças prévias, sendo incapaz de reconhecer a autonomia da posição
e argumentos que confrontam ao meno part da red cone itual prévia que
defendida em relação ao pano de fundo implícito que lhe serve de parâmetro
o leitor projeta para apreender o cont údo te tual. o te to por vezes figuram
de compreensão. Não importa propor uma tipologia dos enviesamentos de
opiniõe com as quai o leitor não concorda a di cordância pode como que
leitura derivados dessa identificação ferrenha a certos esquemas implícitos de
in tintivamente er d cidida m fa or do squ ma pr'vio de compreensão,
pré-compreensão, apenas salientar que certos parâmetros implícitos de sentido
os quai são então pr ervado por, m, muitas ezes à custa do efetivo enten-
rejeitam a abertura àquilo que o texto efetivamente expõe, e rejeitam, em prol
dimento daquilo que é oferecido como algo novo ao leitor. Certamente, como
da manutenção obstinada de crenças prévias, componentes do horizonte de
as e era Gadamer no trecho citado não e trata, em uma leitura, de abandonar
compreensão. Esse é um caso nítido em que a pré-compreensão obstaculiza
toda crença e e quemas prévio de compr en ão. Na verdade, isso talvez nem
o entendimento. Para evitar a ruptura da circularidade virtuosa entre sentido
seja factí el poi é a partir do próprio horizonte histórico-existencial que o lei-
antecipado e sentido efetivamente entendido, será preciso desenvolver estraté-
tor avança na compreen ão do texto. Contudo, as crenças e os saberes prévios
gias que levem o leitor a assumir conscientemente a orientação de abertura ao
não devem formar como que uma barreira intransponível, uma espécie de visão
conteúdo do texto. Esse será um dos papéis centrais dos fichamentos, recurso
de mundo definiti a que só permite a incorporação do que a ela se conforma,
que permite circunscrever a posição do autor independentemente de reações
mas jamais daquilo que a problematiza. Projetar uma pré-compreensão temática enviesadas diante de seu conteúdo.
ultrarrígida ao defrontar-se com um texto seria co~o impor um limite muito
estreito no qual o entendimento se moveria, descartando de modo apressado
todo conteúdo textual que elabora relações conceituais e laços argumentativos 3.4 ESTRUTURA DO TEXTO E PLURIVOCIDADE DO SENTIDO
diferentes daqueles com os quais o leitor já se identifica.
A seção anterior deixou claro que o sentido de um texto 27 não é simples-
Daí a necessidade de cultivar uma orientação geral de abertura ao texto
mente transportado do meio impresso para o "espírito" do leitor pelo ato de
em contraste com a identificação irrefletida com os pressupostos pragmáticos
ler, como se algum tipo de segunda impressão, meramente mental agora, aí
implícitos de sua assimilação. Novamente, não se trata de sugerir nada extre-
ocorresse para garantir o entendimento. Obviamente, não se trata disso. A face
mado, nenhum tipo de rompimento com as próprias crenças para uma espécie
explícita do texto deve ser animada pelo seu reenvio a dimensões implícitas que
de imediata conversão ao que é veiculado pelo texto. Antes, trata-se de manter
permitam, então, elaborar o sentido global veiculado. Daí que a leitura não seja
uma orientação que tome possível a compreensão, salvaguardada dos extremos
mera absorção passiva de conteúdos imediatamente disponíveis, mas um conjunto
da aceitação ingênua de tudo o que se lê e da recusa dogmática em reconhecer
de operações que devem reconstituir o sentido textual, o qual, muitas vezes, está
a força lógica daquilo que discorda de posições previamente sustentadas.
longe de ser evidente. Ora, essa concepção de leitura ativa, engajada, parece
Para que os frutos do aprendizado floresçam, espera-se que o leitor pre-
tornar o sentido totalmente dependente das habilidades do leitor em remeter
serve um espaço de compreensão entre a aversão dogmática e a filiação cega ao
a face explícita do texto às suas dimensões implícitas. Não se chegaria, assim,
conteúdo textual. Em particular, em relação à aversão aos conteúdos do texto,
a uma espene e relativismo acerca da significação textual, que sempre seria
quando se consideram principalmente obras clássicas filosóficas ou científicas,
configurada conforme a medida da competência subjetiva do leitor? O texto por
trata-se de uma postura em que o horizonte implícito do saber não é mobiliza-
si só não veicularia sentido determinado algum e, por meio da maestria dos lei-
do em uma circularidade virtuosa, mas sim de modo vicioso, sempre repondo
tores em cumprirem as operações necessárias para fazer avançar a compreensão,
a si mesmo como núcleo fixo de posicionamento. Nesse caso, os esquemas
ocorreria a própria atribuição desse sentido. Dessa maneira, o texto carregaria
de pré-compreensão do sentido muito mais atravancam do que estimulam o
tantos sentidos diferentes quantos fossem os leitores que a ele se dedicassem
entendimento do texto. Aferrado apaixonadamente a certas posições, o leitor
27. Vale lembrar que temos em vista textos argumentativos complexos, tais como artigos e livros científicos e
26. Idem, p. 273. filosóficos.
76 • Leitura eEscrita de Textos Argumentativos
Alguns Pressupostos da Leitura Abrangente • 77
a partir da singularidade de sua ituação existencial. O ntido e manifi taria qual cabe_ ao leitor meramente repetir• Fosse assim , e tod a d'1vergenc1a
" · d e 1n-
·
. .
\ segundo o que cada leitor fosse capaz de fi ar à luz d u próprio horizont
1 pessoal de saberes e crenças.
terpretaçao se reduzma a algum tipo de erro de análise corrigível pela fixação
do sentido único ali veiculado. Ora, essa é uma consequência difícil de aceitar
O risco dessa posição é di sol er qualquer tipo de unidade autônoma dos porquanto muitos textos complexos parecem comportar legitimamente mais d~
textos, reduzindo-os a reflexos dos esquemas conceituai dos próprio 1 itores. uma interpretação de seu conteúdo. Voltaremos a esse tópico no final da seção.
Levada ao limite tal ideia romperia a própria co rência das significações lin- Por ora, vamos delimitar mais precisamente ~al a relação do sentido textual a
guísticas como unidade reprodutí i em eu caráter "idêntico" em inúmeras ser apreendido ~ trutura ex ositiva do texto. Para isso, é importante afastar
instâncias particulares. Afinal cab ao leitor praticamente produzir o sentido certas concepções sobre esse tema.
por meio de eu horizonte hi tórico- xi tencial nem ha eria unidade ideal do Um modo bastante comum de referir-se ao sentido de um texto é tomá-lo
conteúdo a ser reiterada, e ficaria dificil entender como as significações seriam como o produto das intenções explícitas de seu autor ao escrevê-lo. Desse ponto
partilhadas. Contra o ri co de demolição das possibilidades de entendimento de vista, entender um texto seria como refazer ao inverso O caminho da criação
mútuo contidas ne a po ição e trema faz-se necessário insistir novamente na literária, partindo do resultado final até a explicitação das ideias que motivaram
autonomia (relati a) do sentido em relação aos aspectos contingentes de suas o autor a formulá-lo. O entendimento da obra só ocorreria plenamente quando
instâncias de efetuação, e isso não apenas no nível dos vocábulos e expressões, o "espírito" do leitor ultrapassasse a barreira material dos signos escritos para
mas no que tange ao conteúdo global dos textos. vislumbrar o "espírito" do autor, acessando então imediatamente as intenções
Como vimos na seção anterior, a leitura permite que se instaure uma que levaram este último a produzir o texto tal como o fez. Parece-nos que essa
circularidade virtuosa entre o horizonte de pré-compreensão do leitor e o concepção do entendimento de um texto por inspeção da interioridade psicoló-
conteúdo textual, de modo que para bem assimilar esse último há, amiúde, o gica do autor é praticamente irrealizável, e mesmo se não o fosse, não bastaria
refinamento e mesmo a transformação de alguns saberes e crenças que compu- para a efetiva compreensão, dado que não esgotaria a complexidade expressiva
nham os esquemas pré-compreensivos. Para que o texto possa, assim, fomentar do texto. Quanto ao primeiro ponto, é bastante improvável que se tenha acesso,
~1
uma modificação do próprio horizonte implícito de apreensão, deve-se supor e de modo preciso, às vivências do autor, em especial àquelas vigentes quando
algum grau de independência do conteúdo significativo, o qual, em vez de se da criação da obra em questão. Como isso estaria disponível? Seria preciso
moldar ao bel-prazer do leitor, resiste a certos esquemas e acaba por se impor conhecer pessoalmente o autor, ouvi-lo falar de sua criação? Ora, se isso fosse
sobre eles, veiculando então teses e argumentos outrora desconhecidos ou mal necessário, então a grande maioria de leitores sem contato direto com o autor
compreendidos. Fica sugerido, dessa maneira, que o texto não é mero conjunto estaria privada do entendimento de sua obra. E, mais grave, no caso de autores
de signos neutros à espera de uma atribuição qualquer de sentido com base falecidos, parece então que o sentido efetivo da obra se perderia para sempre.
no horizonte de apreensão individual do leitor. Não; o texto porta um sentido Além disso, mesmo no caso de autores vivos e que possam ser inquiridos sobre
articulado conforme uma estrutura expositiva prófrria, que cabe ao leitor não inven- "o que quiseram dizer" em seus textos, não é evidente se sempre haverá uma
tar, e sim circunscrever, desvelar. A compreensão de um texto, já vimos, deve resposta completa e satisfatória, pois é possível que o próprio autor se confunda
se valer da ativação de dimensões implícitas em relação à sua face explícita, o em relação à sua criação ou mesmo tenha esquecido as particularidades psicoló-
que ocorre pela capacidade inferencial do leitor. Mas essa ativação não se faz gicas do momento da escrita e só possa retomar com clareza o sentido do texto
como um tipo de criação aleatória de sentido, e sim em prol da determinação produzido da mesma forma como as demais pessoas o fazem: lendo-o.
do sentido veiculado pela estrutura expositiva do texto. É para a explicitação Mais do que essas dificuldades práticas em uma improvável busca pelas
desta última que os esforços de compreensão devem então se voltar, já que por intenções psicológicas do autor, é preciso salientar, como segundo ponto, a insu-
meio dela o texto se sustenta como um conjunto ordenado de significações, ficiência de princípio dessa perspectiva no que tange à compreensão de textos.
com as quais o leitor efetivamente aprende algo e mesmo altera alguns de seus Afinal, essa busca pela intenção autoral parece supor que o texto é um produto
esquemas prévios de apreensão e avaliação. que sempre reflete perfeitamente os motivos subjetivos que mobilizaram a escrita.
Não é, no entanto, uma tese autoevidente que o texto veicule um sentido É essa suposição que alimenta, em grande medida, as tentativas de reconstrução
relativamente autônomo por meio de sua estrutura expositiva particular. Há, das intenções psicológicas, como se delas, ao menos em versões radicais desse tipo
aqui, o risco de incorrer na posição extremada oposta, a saber, insistir em que de análise, fosse possível derivar a totalidade do sentido textual produzido. Vigora
o texto predetermina um sentido global unívoco e plenamente acabado, ao aqui a concepção da linguagem escrita como mero instrumento de documentação
78 • Leitura eEscrita de Te tos Argumentativos
Alguns Pressupostos da Leitura Abrangente • 79
ser compreendido à luz do que ele reprime e a plicitação d a dimen ão . ~-essa forma, ~oncluímos por algo aparentemente óbvio, mas que, dadas as
latente deve tomar visíveis amplo mecani mo d dominação política vig ntes
em diversos domínios sociais inclu i e naquel da produção literária.
De nossa parte não arriscaremo nenhum tipo d veredito acerca da leitura
poss1b1hdades de leitura que acabamos de discutir, não está isento de equívocos.
A~ ler um te~to, o empenho deve ser dirigi,do para apreender O sentido daquilo que O pró-
prw texto veicula conforme seu movimento expositivo. Mesmo se isso não encerra toda
!
<Z
.
sintomática em suas muitas variantes. uance important deveriam s r expostas perspectiva de entendimento textual, mesmo sendo legítimo reenviar O texto às
rigorosamente antes de propor e a avaliação o qu não faz parte dos objetivos suas circunstâncias sociais e psicológicas genéticas, salienta-se como tarefa básica
deste livro. Somente go taríamo d ac ntuar qu tal como na 1 itura que bus- da leitura abrangente tomar visível o sentido textual tal como estruturado ali
ca as intençõe íntimas do autor ocorr aqui um e aziamento da autonomia, mesmo no movimento expositivo. Isso não quer dizer, por sua vez, que haja um
certamente relati a do entido primido via e trutura e positiva textual em sentido absolutamente imanente, passível de ser extraído do texto sem qualquer
fa or de uma dimensão e terna qu o te to, então, meramente refletiria, muito tipo de referência externa. Os resultados da seção anterior certamente nos
mais do que reelaboraria. o caso não e reenvia o sentido à interioridade do levam a recusar essa concepção. Entender a face explícita do texto envolve a
autor, e sim a condições política objeti as, mas em ambas as propostas dilui-se a capacidade inferencial de despertar conteúdos semânticos e pragmáticos extra-
dimensão própria do ignificado te tual que perderia ua especificidade ao ser textuais. Essa apreensão do sentido explícito via dimensões implícitas é constitutiva da j~
tomado como epifenômeno de uas condições psíquicas ou sociais de produção. leitura. Contudo, ela não se faz em detrimento da compreensão do movimento
Ora longe de nós recusar que tais condições são indispensáveis para a criação expositivo imanente ao texto, e sim em prol dela. Mobilizar inferencialmente
de textos; apenas salientamos que a expressividade textual guarda uma densidade conhecimentos implícitos é uma operação inerente à compreensão textual, sem
própria que não se esgota no reenvio a condicionantes externos que explicariam a qual dificilmente se poderia apreender a integralidade da estrutura textual. Em
a gênese da obra. Explicitar esses condicionantes certamente permite apreender todo caso, alerta-se aqui não para essa operação hermenêutica habitual, e sim
certos estados de coisas com base no texto, tomando-o suporte para análises psico- para certos métodos de leitura que, por decisão teórica, privilegiam condicionantes
lógicas ou sociopolíticas. Porém, interessa-nos salientar o aprendizado derivado externos para explicar o sentido textual, tomando então o movimento expositi-
do texto, a compreensão daquilo que o texto efetivamente veicula, sem que, ao vo interno ao texto algo secundário na elaboração do entendimento do que se
menos inicialmente, seja preciso remeter o conteúdo textual às circunstâncias lê. De nossa parte, insistimos em um tipo de leitura que prioriza o movimento
psíquicas ou políticas de sua produção. expositivo do texto e busca entendê-lo de modo relativamente autônomo, isto é,
A leitura abrangente, incentivada neste livro, não é senão o exercício sabendo que, para tanto, haverá a referência a dimensões implícitas, porém,
de entender ~ sua inteligibilidade_ arquitetônica, e sem ainda avançar ~a~oraçõ:s sem que isso implique a redução do sentido aos condicionantes externos de sua
/ definitivas, aquilo que o texto veicula conforme sua estrutura expos1t1va. Nao produção ( tomando-o efeito de condições psíquicas ou compromissos políticos
se vai ler como quem busca pistas mal escondidas para logo apontar crimes. particulares) .
Na verdade, a leitura abrangente se direciona para a captura do conteúdo Cabe ainda um último esclarecimento geral acerca do alvo da leitura
significativo registrado pela estrutura expositiva, ainda que isso não baste para abrangente. Nela, vai-se inquirir como o sentido é condicionado pelo movimen-
explicar todas as dimensões de sentido ligadas ao texto. Outras leituras de cunho to expositivo (e não por suas causas externas). Essa busca de entendimento via
psicologizante ou politizante obviamente oferecem complementos contextuais estrutura expositiva, por sua vez, não necessariamente deve levar à formulação de
ao entendimento textual, muito importantes conforme os interesses do leitor. um sentido univocamente determinado. Seria ingênuo assumir que a estrutura
Porém, se essas leituras forem exclusivas, corre-se o risco de simplesmente ig- expositiva do texto é sempre tal que predelineia somente uma compreensão cor-
norar a densidade própria ao sentido textual, reduzindo o texto a um veículo reta, que caberia justamente à leitura realizar, de modo que toda divergência
da intimidade do autor ou de forças políticas anônimas. Para aprender algo do interpretativa sinalizaria algum engano. A crença na determinação imanente de
texto, estando aberto à particularidade das teses ali expostas, é preciso ler não um sentido único do texto atribui um questionável ar de exatidão à leitura, como
buscando reconduzir (não ao menos inicialmente, insistimos) seu conteúdo se a apreensão do conteúdo fosse semelhante ao preenchimento de incógnitas
aos condicionantes externos políticos ou psíquicos, e sim ca turando a estru- em uma fórmula prefixada. Ora, na grande maioria dos casos, a estrutura ex-
tura expositiva por meio da qual o sentido é ali a_presentado. As estratégias de positiva de um texto complexo não é redutível a uma fórmula objetiva, e não é
leitura que serão expostas no próximo capítulo facilitarão esse que é o objetivo nenhum escândalo epistêmico supor que há margem para divergências razoáveis
fundamental da leitura abrangente. quanto à sua reconstrução por diferentes leitores. Deve-se admitir, assim, que
82 • Lei,tura e Escrita de Textos Argumentativos
Alguns Pressupostos da Leitura Abrangente • 83
a plurivocidade interpretativa não é sempre sintoma d d cuido ou rro, ma estruturação expositiva não é univocidade: por sua estruturação interna, 0 texto torna 4
um fenômeno que revela aspectos con titutivo da e pr ão e crita. possível a apreensão de um sentido uno, mas não necessariamente de um único sentido
l Há pelos menos duas justificati a para admitir di cordâncias razoáv i d delimitado pela exposição. E isso porque, por exemplo, há passagens que são ir-
1 interpr~ textual. A primeira delas remete ao fato já m~ncionado de que, no redutivelmente ambíguas, comportando, então legitimamente, mais de uma
fundo, não existe algo como uma leitura absolutamente imanente porquanto interpretação. Além disso, de modo mais geral, a estruturação do texto por seu
entender a face explícita do te to depende da ati ação de dimensões implícitas movimento expositivo é algo complexo, que envolve a coordenação de muitos
semânticas e pragmáticas por parte do leitor. atualização do campo de pré- parágrafos dedicados a cumprir diferentes tarefas lógico-conceituais progressi-
-compreensão ocorre de forma muito variada entr o 1 itores, segundo o grau vamente cumpridas. O entendimento do sentido global do texto supõe que o
de experiência de cada um na área de e tudo em foco o contato prévio com leitor explicite a urdidura entre as diversas partes da exposição, relacionando-as
textos próximos àquele em questão, entre tantos outros fatores. As vivências entre si de forma muitas vezes não evidente. Algumas passagens ambíguas se
pragmáticas, sempre particulare favorecem ênfases diversas em tópicos do esclarecem por remissão a outras partes do texto; essa remissão, por sua vez,
texto ou mesmo certa contextualização dos conceitos relevantes que privilegia necessária para apreender a arquitetônica expositiva em sua integralidade, pode
certas associações significati as em detrimento de outras cabíveis para o trecho acabar revelando outras ambiguidades, de escopo ainda mais amplo. Em textos
em questão. Dado que não há como circunscrever uma leitura imanente pura complexos de filosofia ou ciência, nem sempre é clara qual a subdivisão de tare-
dos textos, os leitores inescapavelmente relativizam sua compreensão conforme fas lógicas ali operantes, ou qual a forma dos argumentos utilizados, ou mesmo
os componentes típicos de seu horizonte de pré-compreensão. quais as acepções precisas dos conceitos empregados em diferentes excertos.
Pode-se alegar que essa razão se refere muito mais a obstáculos práticos Daí que sejam lícitas, em alguns casos, reconstruções divergentes da estrutura
para o consenso interpretativo que a questões de princípio acerca da plurivocida- expositiva32 • Deve ficar claro que a leitura abrangente, em sua priorização da
de interpretativa. Afinal, conforme também vimos, espera-se que na circularidade estrutura expositiva imanente aos textos, não é algum tipo de técnica exata que
entre pré-compreensão e efetiva compreensão o peso de certos saberes prévios anula o potencial significativo do texto ao fixar o que seria sua interpretação
(com força para distorcer o entendimento) seja minimizado ao se avançar na "exclusiva". Pelo contrário, o esforço interpretativo realizado de modo respeitoso,
assimilação da face explícita do texto. Poder-se-ia supor, então, em termos ideais, aberto à densidade inerente à exposição, reconhece a riqueza constitutiva do
que a pré-compreensão seja reelaborada de tal modo a favorecer, no decorrer texto e não se ilude em extrair dele um saber único definitivo 33 .
da leitura, a apreensão do sentido (supostamente único) veiculado pelo texto. Isso não quer dizer, obviamente, que qualquer reconstrução da estrutura
Entretanto, não é certo que isso possa ocorrer em todas as situações concretas expositiva de um texto valha como uma boa interpretação. O fato de que os
de leitura, o que toma difícil descartar essa primeira razão para os dissensos textos envolvem graus legítimos de plurivocidade, devido às possibilidades de
na compreensão de um texto. Em todo caso, se ainda se insiste por uma razão reconstrução do modo como a exposição se desenrola em algumas passagens,
de princípio que esclareça as discordâncias interpretativas, cabe então remeter não implica um relativismo hermenêutico. Nem todas as interpretações estão
até a própria composição dos textos complexos. Revela-se aí algo em boa parte em pé de igualdade, e claramente cabe apontar algumas delas como en;adm Ê..m
,-
responsável pelas divergências factuais derivadas da multiplicidade de horizon-
tes pragmáticos de leitura. Afinal de contas, se diferentes leitores por vezes re-
constroem de forma diversa a estrutura de um texto (conforme linhas de força 32. Segundo P. Ricoeur, "um texto é mais que uma sucessão linear de frases. É um processo cumulativo, holís-
tico. Essa estrutura específica do texto não pode ser derivada daquela da frase. Eis porque a plurivocidade
implícitas que remetem a seus respectivos horizontes de pré-compreensão), e ligada aos textos na condição de textos é outra coisa que a polissemia das palavras individuais e que a
se isso não é apenas um erro decorrente da obsessão em manter intactos os ambiguidade das frases individuai na linguagem ordinária. Essa plurivocidade é típica do texto conside-
rado como totalidade; ela abre urna pluralidade de leitura e de construção" (P. Ricoeur, "Le modele du
prejuízos pessoais ante o texto, então talvez se deva reconhecer que na própria texte: l'action sensée considérée comme un texte", 1986a, p. 201 [pp. 183-209)).
estruturação do texto há margem para ambiguidades ou polissemias que nutrem 33. Como bem sugere R. Ingarden em relação à leitura de textos científicos, "nem sempre temos êxito em
erradicar todas as ambiguidades do texto. Frequentemente há casos em que o leitor, por meio de uma
a divergência de interpretações. leitura analítica e crítica, claramente se dá conta de quais ambiguidades estão presentes e quais leituras do
Decerto, os textos argumentativos complexos são totalidades expressivas texto são possíveis diante delas, mas não consegue escolher a interpretação 'mais provável' [... ]. Então, não
há outro recurso senão confirmar o fato de que a obra é ambígua em uma passagem particular e dar-se
montadas sob estruturações particulares. Reconstruir essa estruturação, pela conta de quais são as distintas leituras que o texto permite. É necessário também, nas leituras seguintes
leitura, deve permitir a apreensão do sentido em sua unidade, isto é, segundo da obra, ter na memória essas possibilidades de interpretação e examinar como a interpretação de outras
partes e finalmente da obra inteira se delineia quando se levam em conta as ambiguidades encontradas
a organização interna de todas suas partes. No entanto, essa unidade oriunda da e não resolvidas" (R. Inga.rden, Vom erhennen des literarischen Kunstwerks, 1997, § 21, p. 182).
84 • Leitura e Escrita de Te tos Argumentativos
ESTRATÉGIAS DE LEITURA I
4.1 APRESENTAÇÃO
alternos a acentuar que muitas das dificuldade r corr nt de nt ndim nto Quadro 4.1 Quadro sinóptico das estratégias de leitura
e textos em nível acadêmico ou profi ional rem tem a um de conh cim nto
Fase Estratégi,as
as estratégias adequadas para os ca o em pauta. Dado qu alguma " trat ~ gias Funções
~
são complexas e, então, dificilmente seriam intuídas d modo espontaneo, essas Informar-se sobre o texto Contextualização da obra
Antes da leitura
dificuldades de leitura reenviam, em última instância, à ênfase tradicional nos Organizar-se para a leitura Preparo pessoal
conteúdos temáticos sem que e ofer ça um treino plícito dos procedimentos Esclarecer o uso de termos
técnicos requerido para efetivament dominar o conteúdo em que tão. R força- e expressões por recurso Clarificação do sentido
mos a intenção maior de te livro: e por detalhadam nte ao meno algumas das a dicionários e gramáticas
Durante a leitura
principais estratégias para a compreensão de te tos argumentativos comume~te Hierarquização dos temas;
empregados nas atividades acadêmicas, em filosofia ou ciências, e mesmo na vida Fazer notações no texto explicitação do movimento
profissional e pública do intere ado em geral. Em particular, será privilegiada expositivo
a leitura que bu ca o aprendi ado formador e, as im, e abre ao entendimento das Reconstrução do sentido;
posições defendidas no te to conforme~ a ordenação expositiva, sem interpolar Depois da leitura Escrever fichas sobre o texto sedimentação do conteúdo
avaliações de preferências em relação a elas; em suma, aquilo que nomeamos apreendido
leitura abrangente.
Essas são algumas das principais estratégias para a leitura abrangente de
textos argumentativos (elas também são cabíveis para outros tipos de leitura e
4.2 VISÃO GERAL SOBRE AS ESTRATÉGIAS
para outros gêneros textuais). Seguramente, outras poderiam ser enumeradas e
O ato da leitura não se esgota nos momentos em que se tem contato contínuo discutidas, refinando ainda mais a apreensão dos conteúdos textuais. De nossa
com o texto, embora sem dúvida esse seja o exercício central para a apreensão do parte, vamos nos contentar em apresentar essas cinco estratégias como uma
sentido em foco. À medida que amadurece a consciência acerca das dificuldades espécie de núcleo metodológico básico para o estudo produtivo de textos argumen-
tativos. Veremos que algumas dessas estratégias ( tais como fazer notações e, em
inerentes a textos complexos e busca-se aperfeiçoar as próprias capacidades em vista
particular, escrever fichas) abarcam diversos níveis de complexidade, de maneira
dos objetivos propostos, ganham destaque momentos anteriores ou preparatóri!!.s à
que a destreza na aplicação desse núcleo básico de estratégias não é algo tão
leitura e a momentos posteriores ou de sedimentação do sentido apreendido. Dessa
fácil de atingir, já que exigirá o treino metódico de diversas etapas concatenadas.
maneira, a leitura não se reduz ao contato efetivo com o texto, pois, realizada de
Vale a pena acentuar que o emprego de estratégias auxilia a desenvolver
modo metódico com vista à formação de longo prazo, exige certo preparo e, talvez
um tipo de noção estratégica geral, de caráter metacog;nitivo, por assim dizer2 •
de maneira ainda mais importante, certo cuidado para atribuir um formato estável
Afinal, as estratégias não estão necessariamente embutidas no ato de ler, mas são
à reconstrução do sentido textual, preservando-a. Vamos apresentar um quadro
postas em ação conforme uma análise das dificuldades circunstanciais da leitura.
sinóptico das estratégias a serem detalhadas no correr deste livro, com base em
É o constante treino no tipo de função específica exercida pelas estratégias no
uma divisão simples das fases da leitura. Acentuaremos também as funções gerais
percurso de entendimento de um texto que refina a habilidade de ativá-las cor-
para o entendimento do texto que as estratégias cumprem nessas fases 1:
retamente nas diferentes fases da leitura. A paulatina competência no emprego
satisfatório das estratégias faz também avançar noções metacognitivas relativas
a cada fase da leitura, conforme o quadro 4.2 torna visível:
1. Seguimos, em linhas gerais, C. Artelt e T. Dõrfler, "Fõrderung von Lesekompetenz als Aufgabe aller Fãcher.
Forschungsergebnisse und Anregungen für die Praxis", 2010, p. 30 [pp. 13-36) . 2. Aqui também nos baseamos, em linhas gerais, em C. Artelt e T. Dõrfler, op. cit., 2010, PP· 29-30.
90 • Leitura e Escrita de Textos Argumentativos
Estratégias de Leitura I • 91
4. Deve-se notar que, mesmo quando não se trata de uma circunstância em que há uma data limite clara-
3. Sobre a ideia de que a experiência prática excede os componentes estritamente metódicos da interpretação mente estabelecida, ainda é possível ponderar a pertinência da leitura em termos de prazos, propostos
textual, ver C. Romano, "La regle souple de l'herméneutique", 2015, pp. 464-479. então voluntariamente como um elemento organizador da progressão no estudo de um tema.
92 • Leitura eEscrita de Texto Argumentativo
Estratégi,as de Leitura I • 93
sopesar se serão ou não suficiente para dar conta do mat rial alm jado5 • Essa
• Conteúdo factual: a exposição e a discussão de dados factuais acerca do
sugestão obviamente vale também para e tudante oficialm nte matriculados
tema são centrais para a obra? Essa exposição e essa discussão são feitas
em cursos com grande carga de leitura obrigatória. Afinal d conta , a imples
de modo confiável? Os métodos utilizados para a exposição do conteúdo
atribuição de obrigatoriedade à leitura embora alivie o e forço de decisão
fac~ual são atualizados e bem aplicados? Os dados utilizados estão estabe-
sobre o que ler, nada garante sobre a fetividad da 1 itura, uma vez que esta
lecidos de modo objetivo e são confirmados por fontes independentes?
depende basicamente do tempo di poní el em função da totalidade de tarefas
agendadas. Cabe a cada um a aliar d modo reali ta a po ibilidade de cumprir • C_onteú~o lógico-conceituai: a obra se insere na tradição pertinente de
d1scussao dos temas em vista, retomando corretamente O "estado da
certa carga de leitura até determinado prazo o que ige levar em conta que
a leitura abrangente de te to ( upondo é claro, que se busca exercê-la) não quest~o? O~ pro~lemas são desenvolvidos com a devida complexidade
o~. ha s1m~lifi:açoes conceituais e temáticas patentes? Há um esforço
é algo que se faz em modo dinâmico , pois requer o cumprimento de várias
seno para Justificar racionalmente as posições defendidas?
etapas com con iderá el grau de trabalho. Diante de limitações incontornáveis
de tempo será preci o até me mo e colher entre te tos de leitura obrigatória, • Conteúdo valorativo: a obra retoma de modo neutro as posições diver-
e então os critério de centralidade para a oca ião em foco (por exemplo, em gentes acerca do tema? Ela evita a defesa unilateral e obstinada de uma
muitos cursos, os professores distinguem entre leitura básica e leitura de apoio) posição, reconhecendo as razões contrárias com sua devida força lógica?
devem ganhar de taque na reflexão preparatória. Tais questões permitem esboçar uma noção mais detalhada sobre as con-
Em todo caso, ainda que as dificuldades de disponibilidade de tempo (e tribuições teóricas efetivas da obra em análise para a problemática discutida.
de cansaço) fossem todas idealmente resolvidas, os problemas ligados à decisão Quanto mais respostas positivas, mais claramente se marca a robustez expositiva
sobre o que ler permaneceriam. Afinal, nem todos os textos sobre um tópico do texto, o que o torna meritório de uma leitura atenta. No entanto, a dificul-
oferecem contribuições relevantes, confiáveis e logicamente bem justificadas. dade é obter ao menos algumas dessas respostas informativas sem efetivamente
Supostamente, as dificuldades de seleção das obras estão superadas nos cursos ter de ler o texto para avaliar todos esses aspectos em detalhe! Quando não se
acadêmicos, cujos professores tanto conhecem as obras consagradas como dis- dispõe ainda do texto, mas buscam-se informações que justifiquem consegui-
tinguem entre a bibliografia importante e textos desinteressantes ou mesmo -lo ou não, então as principais fontes para tentar responder a essas questões
contendo sérias imprecisões sobre os tópicos em estudo. Porém, no caso de críticas são:
estudos autodidatas, a seleção de obras a ler é um desafio com consequências
significativas para o entendimento do assunto em questão. Nesses casos, conforme • Resenhas especializadas ou em veículos de grande circulação: em muitos
afirmado há pouco, a estratégia de informar-se sobre o texto possui um caráter periódicos bem reputados pela comunidade acadêmica há seções para a
análise de obras consideradas pertinentes para diferentes áreas de saber,
decisivo sobre a continuidade ou não da leitura de certas obras.
Assumindo, então, que nem todos os textos sobre os tópicos em vista são
igualmente merecedores de atenção, como selecionar aqueles a serem lidos?
I~ o que contribui sobremaneira para a decisão de ler ou não determinado
texto. Alguns jornais e revistas de ampla circulação e veículos de comu-
Nesse caso, a busca de informações sobre um texto deve favorecer um juízo nicação on-line também oferecem resenhas úteis na tomada de decisão
decisivo sobre a lida com a obra em pauta naquela circunstância. Suponha, en- acerca da leitura de uma obra.
tão, que um leitor fique sabendo de um texto que parece tratar do assunto que • Opiniões de especialistas: por vezes é possível ter acesso, seja por veícu-
ele busca estudar. Como proceder uma pré-avaliação da pertinência do texto? los de comunicação específicos (revistas, jornais, blogs), seja mesmo por
Deve-se buscar informações que permitam avaliá-lo em relação aos objetivos contato pessoal (conversas com um professor), às opiniões de estudiosos
almejados (seja conhecer genericamente o tema, seja desenvolver uma pesqui- da área em questão acerca das obras que se pretende ler. Uma análise
sa de fôlego ou ainda avaliar posições disponíveis sobre uma polêmica etc.). A concisa ou mesmo poucos apontamentos de aspectos positivos e negati-
fim de esquematizar essa pré-avaliação, sugerimos o questionamento crítico dos vos da obra por quem possui grande domínio do assunto podem fazer
diferentes tipos de conteúdos veiculados pela obra: a diferença para a decisão de iniciar ou não uma leitura.
• Relatos de outros leitores: por vezes, as opiniões de outros leitores do
texto, ainda que não sejam especialistas experientes no tema, auxiliam
5. Voltaremos a esse ponto na próxima seção. na decisão de ler ou não uma obra. Além de colegas próximos, é cabível
94 • Leitura eEscrita de Textos Argumentativos
Estratégias de Leitura I • 95
vasculhar análises e re enha informai d 1 itura em vários tipos de própria em conformidade com um plano de estudos individual. A estratégia de
fóruns de discussão na internet. Algumas opiniõ de de que cuidadosa- informar-se sobre o texto volta a ser aplicada, tendo em vista, agora, a prepara-
mente elaboradas, evitando simplificações e juízo unilaterais obstinados, ajudam ção para a leitura. Nessa preparação, importa reunir de modo sistemático certos
(embora em grau menor em comparação om o itens anteriores) na dados sobre o texto, alguns dos quais talvez já tenham vindo à luz nas reflexões
tomada de decisão acerca da leitura de um t to. acerca da decisão de lê-lo ou não. Trata-se de informações globais que auxiliam a
Essas fontes contribuem para a formação d um juízo prévio acerca de entender a proposta do texto e mesmo alguns traços do contexto sócio-histórico
um texto (se é bem avaliado por u pare , ' p rtinente para o tópico em em que está inserido. Como vimos no capítulo 3, toda compreensão de um texto
estudo etc.) e, assim motivam ou d moti am ua leitura. Além de tudo isso, é antecipada por uma pré-compreensão genérica que guia a leitura, ainda que
quando se tem acesso direto ao te to em questão, cabe e ercitar uma leitura _p~nor~- seja transformada no decorrer desta última. Pode-se dizer que a reunião sistemá-
mica, pas ando O olho obre ua partes a fim de aminar sua pertmencia tica de informações sobre o texto contribui para elaborar de modo menos vago
essa pré-compreensão, direcionando-a conforme algumas marcas que anunciam
para os objeti os pretendido . e sa leitura panorâmica com vista à de~isão de
posteriormente dedicar-se ou não a uma leitura muito mais detalhada, importa a problemática efetivamente enfrentada pelo texto, e evitando, assim, o apelo a
noções por vezes muito distantes daquilo de que a obra se compõe.
salientar os marcadores temáticos do texto, isto é, a exposição sistemática daquilo
de que O texto efeti amente trata. Daí a importância de estudar o sumário do De modo prático, como se aplica essa estratégia de preparação para a lei-
tura? Trata-se de organizar algumas informações básicas sobre o texto, seja por
texto, avaliando pelas subdivisões anunciadas se a progressão ali contida recobre
apelo àquelas fontes citadas anteriormente, seja também pelo manuseio da obra
as expectativas da leitura. Também merecem atenção os subtítulos no interior
para uma coleta de dados iniciais. Por vezes, é preciso ler de modo atento a seção
dos capítulos ou seções (quando houver) e mesmo a bibliografia utilizada (se
introdutória, em que comumente as informações contextuais são apresentadas.
disponível), a fim de esclarecer o campo disciplinar e as tradições de pesquisa a
A seguinte série de perguntas bem diretas serve de guia para essa organização:
que a obra se filia. Por vezes, vale a pena ler atentamente a seção inu:odut~ria,
na qual amiúde um plano geral da obra é esboçado. No caso de arugos c,ien- • Qual o título preciso do texto?
tíficos, a maior parte deles se inicia justamente com um resumo do conteudo, • Quem é o autor?
0 que facilita enormemente a decisão da conveniência de sua leitura completa
• Quando e onde o texto foi publicado?
para os fins em questão.
Em uma situação ideal de informar-se sobre textos para selecionar o que se • Em linhas gerais, de que o texto trata?
lerá, 0 leitor disporia de resenhas ou da opinião de especialistas e colegas acerca • Qual o contexto da publicação?
da importância do texto e também teria acesso direto ao texto (em bibliotecas, • Caso se trate de tradução, há informações sobre sua qualidade?
livrarias ou mesmo sites da internet), para então avaliar sua pertinência. Não raro
A resposta a essas perguntas oferece as informações elementares para
uma fonte de dados indireta reequilibra um juízo baseado no contato direto
orientar a leitura de um texto. Não se esclarece ainda quais posições são de-
com O texto (por exemplo, ao folhear um livro, o leitor não se convence de
fendidas no texto, problema que exige uma leitura paciente para ser solucio-
sua importância, embora também não reconheça nenhum problema conceit~al
nado. No entanto, essas informações gerais delineiam de modo mais seguro o
grave. A opinião de um especialista acerca da pertinência da obra po~e entao
horizonte de sentido no qual as teses do texto serão desenvolvidas, delimitan-
ser decisiva) e vice-versa (por exemplo, um especialista recomenda a leitura de
do, por exemplo, a época e o lugar em que o texto se tornou acessível ao pú-
uma obra, mas uma leitura panorâmica de seu conteúdo confirma que o tema
blico. É importante salientar que essas perguntas de preparação para a leitura
importante para a pesquisa do leitor é tratado apenas lateralmente e sob uma
são desdobráveis em várias outras, conforme o interesse, as necessidades e a
perspectiva que não interessa, ao menos naquele momento).
disponibilidade do leitor:
4.3.1.2 DADOS SOBRE OS TEXTOS • Em relação ao(s) autor(es), talvez não baste apenas listar nomes, mas
seja importante reconstruir uma pequena biografia, a fim de inserir
Vamos supor que o leitor já se decidiu acerca do que ler em determinada a produção do texto em foco em certa fase de seu desenvolvimento
ocasião, seja por obrigatoriedade acadêmica ou profissional, seja por decisão intelectual em contraste com outras fases, marcadas por outros textos.
96 • Leitura e Escrita de Textos Argumentativo
Estratégias de Leitura I • 97
Para evitar dispersão e confusão, as informações obtidas devem ser registra- Como se vê, trata-se de registrar algumas informações básicas que permitam
das em uma "ficha pré-leitura", à qual se acrescentarão outras fichas construídas rapidamente reconhecer a edição utilizada e, ainda que de modo superficial, se
nas demais fases da leitura. Ao final do processo de leitura, a ficha pré-leitura informar sobre o contexto da publicação original. Desse modo, evitam-se confu-
funciona como uma espécie de folha de apresentação ou capa para as demais sões acerca de qual exatamente é a versão lida, qual a época de surgimento do
fichas. Como se verá, ler bem equivalerá a produzir uma espécie de "relatório texto etc. Estabelece-se, desse modo, um ponto de partida seguro para a efetiva
de leitura" qualificado, do qual a ficha pré-leitura constitui somente o primeiro leitura do texto.
passo.
Vejamos alguns exemplos dessas fichas de informações prévias à leitura
detida de um texto: 4.3.2 Organizar-se para a Leitura
Quadro 4.3 Exemplos de ficha de informações de um texto Tendo já registrado em uma ficha as informações básicas da publicação,
cabe então organizar-se para a leitura. É claro que já é preciso ter se organi-
Texto: "O Método de Investigação da Essência"
zado para bem preparar a ficha de informações. Ocorre que a leitura da obra
Autor: Edmund Husserl escolhida normalmente exige mais tempo e planejamento que a escrita dessas
Edição: Husserl, E. Europa. Crise e Renovação. Rio de Janeiro, Forense Universitária, 2014, pp. fichas. Por vezes, a organização se resolve de modo bastante simples, caso se
15-23. tenha o texto à mão e se disponha de tempo para lê-lo. Basta então encontrar
Informações gerais e contexto: trata-se de um artigo escrito originalmente em alemão, tradu- um local adequado e entregar-se à leitura. Ocorre que nem sempre é assim tão
zido para o japonês e publicado na revista intitulada Kaizo, em 1923. É um texto de divulga- fácil, e a circunscrição de uma situação favorável de leitura por vezes exige di-
ção para um público não especializado e que, no geral, desconhecia os trabalhos do autor. ferentes tipos de decisão. Vamos abordar essa etapa organizatória da leitura em
Tradução do texto alemão: a cargo de Pedro M. S. Alves e Carlos A. Morujão, renomados um considerável grau de detalhamento, tentando, assim, levar em conta várias
especialistas na obra de Husserl. das dificuldades tipicamente relacionadas a esse tópico. De maneira geral, dois
são os aspectos a serem considerados para o planejamento da leitura: aquele
98 • Leitura e Escrita de Textos Argumentativos
Estratégfos de Leitura I • 99
é um momento fundamental de toda con trução do nt ndim nto. a leitura (tal qual a apresentamos) não é uma atividade simples, nem
Todavia, é exatamente aí ne as fre ta fecundas da leitura, em que o mesmo em relação às suas exigências cognitivas. Exercer bem a leitura
sentido ganha espontaneidade e as ideia fi am como qu por i só abrangente é algo trabalhoso e capaz de gerar uma dose considerável
contornos claros, e então e perimentamos o util prazer de "capturar" de cansaço em alguns momentos. Logo, se alguém se sente indisposto
algo antes desconhecido é aí que o hábito (ou dizendo d modo (quaisquer que sejam as causas psicofísicas), é recomendável recuperar
mais franco, os vícios) d u o do apar lho imi cuem. A tendência seu estado de equilíbrio em vez de dedicar-se a algo que pode compro-
alimentada pelou o de e aparelho (qu , ntão não são de modo meter ainda mais seu estado de saúde.
algum 'neutros' poi já mbutem forma privilegiadas de "usabilida- A sugestão geral é, então, que a pessoa deve se sentir bem para prati-
de') é preencher o in tante de relaxamento, os momentos de pausa car de maneira frutífera a leitura abrangente. Porém, não raros são os
em que a produtividade do ntido se e erce espontaneamente, com a casos em que justamente porque se tenta ler assim é que se sente mal.
consulta das últimas men agens recebidas ou das últimas notificações Referimo-nos aos efeitos corporais de passar longos períodos sentados
enviada pelos aplicati o obrecarregando a atenção com inúmeros (supondo que essa seja a postura privilegiada), o que, se feito de modo
dado de conectado daquele advindos da atividade central em questão descuidado, gera lombalgias e ciatalgias. Não se deve negligenciar o
(no caso a leitura) e assim, atrapalhando ou mesmo impedindo que aspecto postural da leitura, e é preciso adaptar, na medida do possível,
ocorra aquele assentamento autônomo do sentido. mesas, cadeiras, e outros móveis usados nas sessões de estudo às parti-
Daí que se sugira, e não por mero pendor antitecnológico, que, para cularidades do corpo (altura, peso etc.). Fatores aparentemente banais
a progressão em um estudo sério, para a sedimentação de uma com- como o conforto do assento e o posicionamento do livro podem gerar
preensão aprofundada de um tema lido, deixem-se de lado os aparelhos lesões por repetição de má postura, e a prevenção se faz necessária.
eletrônicos, evitando dar azão à tendência viciante (instigada pela pró- Recomenda-se mesmo uma consulta a um especialista postural (educador
pria arquitetura do aparelho) de entrecortar a atenção. Recomenda-se, físico ou fisioterapeuta) para indicações precisas de como se posicionar
pelo contrário, que se respeitem os momentos de relaxamento inerentes adequadamente durante as sessões de leitura a fim de evitar desgastes
ao processo da leitura, de maneira que neles a atenção naturalmente e lesões, bem como para a indicação de exercícios de fortalecimento
se tome difusa e favoreça concatenações criativas entre os dados assi- e alongamento. Outro fator corporal importante é à saúde dos olhos.
milados durante o exercício da atenção focada na leitura9 • Desperdiçar Cabe verificar periodicamente a necessidade do uso de óculos ou do
os instantes de abertura difusa da atenção, tomando-a imediatamente ajuste das lentes. Dores de cabeça recorrentes, tonturas, náuseas, e
focada em novos dados advindos de aparelhos eletrônicos, significa sem mesmo alterações no campo visual durante e logo depois das sessões
dúvida mutilar o processo da leitura, amputando talvez seu núcleo de de leitura podem ser indicativos de problemas de visão.
espontaneidade. Deve-se ter em vista que faz parte do processo da lei-
tura a elaboração cognitiva dos conteúdos em conjuntos significativos, 4.3.2.2 GESTÃO DO TEMPO 11
o que exige uma liberdade do pensar incompatível com a servidão da
atenção imposta pelos modos privilegiados como os aparelhos eletrô- Resta ainda, como parte da estratégia de organizar-se para a leitura, con-
nicos são usados 10 • siderar a duração necessária à tarefa em pauta. A questão guia é: qual o tempo
e. Disposição psicofísica: sem dúvida, os aspectos ligados à saúde devem disponível para a leitura? Para bem responder, é preciso, sobretudo, coordenar
ser levados em conta na preparação para a leitura. Deve-se notar que os períodos de leitura em relação às demais atividades diárias. Nesse ponto, é
útil distinguir entre aqueles que têm no estudo, entendido como núcleo de um
ciclo de formação, a atividade principal de suas vidas e aqueles que, além de
8. A sabedoria de servir-se desses momentos em que a atenção relaxa e os conteúdos assimilados se organizam
estudar, devem trabalhar ou dedicar-se a obrigações variadas, tais como cuidar
de modo mais livre é uma das marcas da experiência madura da leitura, mencionada há pouco.
9. Essa distinção entre um modo difuso e um modo focado da atenção é discutida por Barbara Oakley em
A Mindfor Numbers (2014, cap. 2).
10. Não se propõe aqui nenhum juízo global acerca da utilidade dos aparelhos eletrônicos para as várias
situações cotidianas em que são empregados; apenas acentuamos sua perniciosidade estrutural quando 11. Para esta seção, recebi sugestões valiosas de Andréa E. Sechini, bem como discuti o a sunto com Guilherme
das sessões de leitura visando à compreensão detalhada de um texto. G. Diniz e Frederico A. C. Martins.
1O2 • Leitura eEscrita de Textos Argumentativos
Estratégi,as de Leitura I • 103
de familiares 12 • A quantidade e, por assim dizer, a qualidad do t mpo di ponív 1 Muitas são as dificuldades para seguir à risca o planejamento semanal. É
em cada um desses casos será bem diferente. importante, contudo, haver algum planejamento, para que as atividades não se
Para aqueles que têm a possibilidade de dedicar-se apenas a atividades de estudo, sucedam a esmo, e sim conforme princípios de organização assumidos refletida-
normalmente há flexibilidade para montar várias s ões de leitura no correr da mente. Propor uma agenda detalhada de atividades facilita a hierarquização de
semana, dividindo as tarefas de modo a evitar o cansaço e a facilitar a sedimen- prioridades, dimensiona a dedicação exigida pelas tarefas e disciplina a condução
tação, decorrente de um contato reiterado com o tema. Qual duração devem ter das capacidades produtivas semana adentro. Se preciso for, recomenda-se que
as sessões é algo que depende da circun tâncias concreta e me mo do ritmo a cada semana um novo quadro seja preenchido, o que renova o compromisso
pessoal. Calcular precisamente o tempo exigido para completar as leituras em voluntário com a execução das tarefas ali anotadas. Para um estudante, algumas
vista é dificil, dada a interferência de muitos aspecto contingentes, como a difi- tarefas permanecerão com horário fixo durante o semestre ou mesmo durante
culdade inerente de certo trecho interrupções ine peradas etc. Sugere-se a cons- o ano. Porém, outras tarefas são mais flexíveis e inclusive suprimíveis conforme
trução de um quadro com as atividades semanais para então decidir os horários específicos se aproximem períodos críticos, como os de avaliação, quando então é natural
de estudo. Para tanto deve- ele ar em conta a quantidade de tarefas exigidas e dedicar mais tempo aos estudos. Indica-se sempre deixar períodos livres no
também a disposição p icofísica, no sentido de buscar privilegiar os períodos em quadro, que servem tanto para descansar como para resolver imprevistos ou
que o leitor se reconhece mais produtivo e concentrado. Dedicar ao menos entre mesmo repor tarefas não cumpridas em seu devido horário. Cabe também
cinco e seis horas de estudo por dia (incluído o período de aula), entrecortadas frequentemente avaliar a factibilidade da agenda proposta: algumas vezes supe-
por pausas maiores e menores, permite avançar a passos largos na compreensão restimamos nossas capacidades e preenchemos excessivamente a semana com
dos temas em estudo. É importante planejar com certa antecedência as sessões atividades que não conseguiremos desempenhar bem; outras vezes, ao contrário,
de estudo e obviamente tentar cumpri-las, evitando distrações e procrastinações, o planejamento é frouxo demais e notamos longos períodos desperdiçados com
ainda que se deva sempre guardar certa flexibilidade diante de imprevistos. diversões eletrônicas ou outros vícios. Organizar semanalmente o quadro ajuda
Eis um exemplo de quadro em que se distribuem as sessões de estudo sem a perceber e a corrigir esses extremos.
ignorar as demais dimensões da vida prática: Para aqueles que têm muitas outras obrigações além do estudo, o avanço quase
sempre será mais difícil. É preciso reconhecer as limitações de tempo (e mes-
Quadro 4.4 Planejamento semanal mo de ânimo) e então organizar-se estrategicamente, de modo a minimizar os
Segunda- Quarta- Quinta-
prejuízos na formação advindos de condições socioeconômicas mais restritivas
Terça-feira Sexta-feira Sábado Domingo ou de opções de vida mais sobrecarregadas. O que foi dito nos parágrafos an-
feira feira feira
Manhã Au.l..tM Au.l..tM Au.l..tM Au.l..tM Emulo- Emulo- LiNY<l/ teriores permanece válido, porém sua aplicação tem menor alcance. Amiúde,
Almoço para delimitar alguns períodos de estudo, outras atividades terão de ser irre-
1ª parte LiNYe/
GYupo-de, T a,yefr:¼, de-- mediavelmente sacrificadas, o que deve ser feito tentando aproveitar as fases
da Emulo- Emulo- Emulo- Emulo- txt"wí.da.de.,
~ ~~ diárias ou semanais de melhor disposição. Normalmente é preciso aprender
tarde ~
Lanche a concentrar-se durante períodos mais curtos, exatamente aqueles que se tem
2ª parte disponíveis entre as demais obrigações, registrando todos os pequenos avanços
At'wí.da.de., At'wí.da.de., Cw-~ de, A t'wí.da.de., LiNYe/
da M~ p~ de compreensão em notas, a fim de retomá-los, na próxima sessão de estudos,
~ ~ ~ ~ V~
tarde
sem grandes perdas conceituais.
Jantar
py~~ Deve-se acentuar também que, em geral, o excesso de esforço não garante
GYupo-de,
Noite F~ Emulo- LiNY<l/ LiNY<l/ LiNY<l/ Cv ~ um excesso de ganhos, mas por vezes prejudica severamente o desempenho.
~
--o
, .J-.
- Por conseguinte, é imprescindível respeitar os sinais de cansaço e incluir pausas
e momentos de descanso no decorrer das sessões de estudo. O desafio nesse
ponto é consolidar um estilo pessoal de estudo (que privilegia certo período em
determinado ambiente etc.) sem sacrificar a saúde pessoal e social.
12. Sem dúvida, há situações em que estudar é parte central do trabalho, tal como ocorre com bolsistas de
pós-graduação, pesquisadores e professores. Nesses casos, certo tempo do trabalho já deve ser naturalmente
voltado à leitura.
104 • Leitura e&crita de Te tos Argumentativos
Estratégi,as de Leitura I • 1 O5
4.4 ESTRATÉGIAS PARA FACILITAR COMPREE SÃO DURANTE A on-line de dicionários é acompanhado de olhadelas em páginas de notícias, redes
LEITURA sociais etc. Lembremos que a preparação do ambiente adequado para o estudo
envolve a minimização do contato com aparelhos eletrônicos, uma das maiores
Após ter decidido qual te to ler ter se informado minimam nte sobr o
fontes atuais de distrações. Não é tão fácil encontrar o equilíbrio entre a dis-
autor, a edição e o contexto da publicação apó tamb ' m ter se organizado em
ponibilidade dos recursos on-line de referência e o desvio constante de atenção
relação aos materiai e espaço adequado b m como quanto ao t mpo, final-
arquitetonicamente embutido como modus operandi de tais aparelhos. Talvez
mente se inicia em entido e trito a 1 itura abrangent . Cabe então exercer a
seja o caso de usar o computador para acessar as obras de referência fora da
capacidade treinadas no correr da alfab tização, d codificação sensív 1 e memo-
mesa ou local de estudo, de maneira a evitar que ele fique sempre ao alcance
rização do sentido lido conforme de crito no primeiro capítulo. Mesmo nesse
da mão e seja irrefletidamente usado para preencher os importantes momentos
ponto não se lê de uma maneira ó e algumas e tratégia tornam a apreensão
de pausa durante a leitura. Caso se note que, mesmo assim, o acesso à internet
do sentido textual muito mai eficaz. amos nos concentrar em duas delas, as
leva muito mais a distrações que a esclarecimentos úteis, recomenda-se o uso
quais se deixam aplicar conjuntamente durante uma ó leitura, conquanto en- de obras de referência impressas.
volvam técnicas de realização bem diferente . Comentaremos a seguir cada uma
As dificuldades de reconhecimento de vocabulário e formas gramaticais
detalhadamente.
normalmente são ainda maiores quando se tenta ler textos em outras línguas. A
aquisição da fluência em idiomas estrangeiros é um processo demorado; daí
que muitas vezes as leituras de textos em língua estrangeira demandem esfor-
4. 4.1 Esclarecer o Sentido de Termos e Expressões por Recurso a Dicionários e
ços adicionais, devido exatamente à quantidade de termos e expressões cujo
Gramáticas
sentido se deve esclarecer. Não há alternativa aqui senão praticar metódica e
Essa é uma técnica em princípio bastante simples e da qual grande parte constantemente o idioma em questão. Além disso, no caso da leitura de tex-
tos traduzidos, deve-se considerar a hipótese de que trechos gramaticalmente
dos leitores teve alguma noção durante o processo de alfabetização escolar.
confusos e com imprecisões conceituais derivem de falhas na tradução, o que
Merecem destaque, no entanto, algumas nuances importantes em sua aplicação.
A ideia básica dessa técnica é que, para avançar corretamente no enten- só se verificará por meio da consulta do texto em sua versão original. Caso isso
não seja possível, traduções disponíveis para outros idiomas podem ajudar a
dimento do texto, deve-se conhecer o sentido de todos os termos e expressões
dirimir dúvidas.
ali utilizados. Caso se ignore o sentido de termos e expressões no correr do
Outra dificuldade para circunscrever o sentido de termos remete às
texto, e mesmo de algumas formulações gramaticais, então certas conexões
camadas históricas interpostas entre a escrita da obra e sua recepção, o que
temáticas ou conceituais parecerão imprecisas, o que prejudica a compreensão
deve ser tomado bastante a sério quando se estudam textos de períodos muito
de trechos específicos, com repercussões negativas para o entendimento global
distantes. Trata-se de um problema que não se limita a palavras e expressões
do texto. Assim, diante de termos desconhecidos ou de formas gramaticais que
desconhecidas pelo leitor atual. Afinal, mesmo alguns termos conhecidos utili-
geram dúvidas, recomenda-se uma breve interrupção da leitura para consultar
zados em traduções ou edições recentes de textos clássicos não necessariamen-
as obras de referência (dicionários e gramáticas) que permitam sanar as dú-
te eram compreendidos, no contexto de produção da obra, da mesma forma
vidas. Uma vez que essas dúvidas vocabulares e gramaticais surgem relativas a
como agora. Por exemplo, ao ler um texto de Platão traduzido para o portu-
quaisquer textos, sugere-se, conforme exposto anteriormente, que se tenham
guês em que é empregado o termo "amor", um leitor atual pode compreender
disponíveis as obras de referência durante a leitura. O sentido do termo du-
imediatamente o sentido dessa palavra com base no uso dela em seus círculos
vidoso se escreve sobre o próprio termo ou nas margens do texto, para ser
de amizades ou tal como difundido nos meios de comunicação de massa.
devidamente fixado.
Ocorre que talvez as acepções privilegiadas dessa palavra nesses contextos não
Muitos sites na internet disponibilizam gratuitamente a consulta a obras de
capturem a finura conceitual com que o termo grego correspondente era em-
referência, o que dispensa sua manipulação em formato físico, por vezes livros
pregado por Platão e seus contemporâneos. Em seu uso original, esse termo
pesados e desconfortáveis. É preciso cuidado, porém, para que, sob o pretex-
implica distinções conceituais e oposições semânticas com outros termos que
to da consulta facilitada a obras de referência, a disponibilidade contínua da
não são reproduzidas pelo uso corrente de "amor" em português. Destarte,
internet não se torne foco de distração, como quando cada acesso às páginas
para entender bem textos clássicos, escritos sob uma teia conceitua! que não
106 • Lei,tura e&cri.ta de Textos Argumentativo
Estratégi,as de Leitura I • 107
14. A obra foi traduzida para o português por Márcio Suzuki e lançada no Brasil em 2006. Doravante, será
mencionada como Idl.
15. Idem, § l, p. 33. 16. Idem, ibidem.
11 O • Leitura eEscrita de Textos Argumentativo
Estratégi,as de Leitura I • 111
Quadro 4.7 otação de de taque 2: circular o termo centrai nquadrar o termo auxiliar
5 Um concreto é, evidentemente, uma singularidade eidética, já que espécies e gêneros
Ciências empíricas ão ciências de 'atos' O m (expressões que habitualmente excluem as diferenças últimas) são, por princípio, dependentes.
As singularidades eidéticas se dividem, pois, em abstratas e concretas.
o realJ individualmente,! ele o põem comoL--.!..-~--.l.----------' tá
[ ... ] 18
neste momento do tempo tem e ta ua duração
ência, poderia igualmente e tarem qualqu r outro mom nto do t mpo; põem-no, por outro
lado como algo que e tá ne te lugar com e ta forma fí ica (por mplo, tá dado juntam nte
com um corpo desta forma) embora e te mesmo real con iderado egundo sua essência, pu-
Por mais dificil que um texto pareça à primeira vista, numerar os parágrafos
de e igualmente e tar noutra forma qualqu r, m qualqu r outro lugar, as im como poderia ao menos garante uma compreensão mínima da sucessão temática e prepara o
modificar- e, quando é faticamente imutá I ou poderia modificar- d modo diferente daqu le terreno para uma das tarefas básicas interpretativas: dividir as partes da exposição.
pelo qual faticamente e modifica. Dito de maneira bem g ral, o r individual é qualquer Exporemos com detalhes essa tarefa no capítulo 5. Por ora, apenas acentuamos
que eja ua e pécie.~ntinge~. El ~ a im mas poderia, por sua e ência,I er diferenteJ a numeração dos parágrafos como uma notação importante durante a leitura.
Ainda que determinada lei po am er válidas graças às quai , e tai e tais circunstâncias reais
Recomenda-se que a cada capítulo ou seção de um livro a contagem seja reini-
ão fáticas, tai e tai determinadas con quências também o têm de er, ainda a im essas leis
ciada. Para textos curtos, ta.is como artigos, é cabível propor uma contagem só,
exprimem apenas regulamentacõe fáticas que poderiam ter um teor inteiramente outro, e
independentemente das subdivisões 19 •
já pressupõem como de antemão inerente à essência dos objeto da experiência possível, que,
considerado em i me mo , e e objeto por elas regulamentados são contingentes 17 .
4.4.2.2 NOTAÇÕES PARA EXPLICITAR A FUNÇÃO LÓGICA DE CADA PARÁGRAFO
Outra marcação, imprescindível para a escrita das fichas de análise (tema São feitas nas margens do texto, ao lado de cada parágrafo. Trata-se de tentar
do capítulo 5), é numerar os parágrafos em uma sequência simples, notando os exprimir em poucas palavras qual é a tarefa lógico-conceitual que cada parágra-
numerais no recuo inicial de cada um deles, da seguinte maneira: fo cumpre. Entendem-se, por tarefas lógico-conceituais as diferentes operações
por meio das quais o tema é desenvolvido: apresentar conceitos, dar exemplos,
Quadro 4.8 otação de destaque 3: numerar os parágrafos em sequência simples retomar uma concepção adversária, afirmar uma tese, lançar uma objeção, entre
tantas outras. Ocorre que na maioria dos casos essas operações são realizadas
§ 15 - Objetos Independentes e Dependentes. Concreto e Indivíduo
na exposição do texto sem serem aí explicitamente nomeadas. Ora, grande parte do
1 Carecemos ainda de uma outra distinção fundamental, entre objetos independentes e depen- processo de compreensão de um texto argumentativo consiste em ganhar clareza
1 dentes. Uma forma categorial, por exemplo, é dependente, visto que remete necessariamente
acerca dessas operações, em reconstruí-las de modo explícito. Para tanto, deve
a um substrato, do qual é a forma. Substrato e forma são interdependentes um em relação ao
haver um esforço especialmente voltado à nomeação da tarefa cumprida em cada
outro, essências impensáveis "uma sem a outra". [ ... ]
2 Aqui nos interessa especialmente o estado-de-coisas nos substratos últimos e, ainda mais trecho lido. O leitor deve ter em vista a cada parágrafo a seguinte questão: "Qual
estritamente, nas essências de substrato material. Subsistem para elas duas possibilidades: ou tarefa lógico-conceitual é realizada neste trecho?". A resposta, uma hipótese inter-
tal essência funda, junto com uma outra, a unidade de uma só essência, ou não o faz. [ ... ] pretativa, deve ser anota.da de forma esquemática na margem, ao lado do texto
3 Daí resultam determinações importantes dos conceitos categoriais formais "indivíduo", decifrado. Com a prática, cada vez menos se interrompe a leitura para avaliar
"concreto" e "abstrato". Uma essência dependente se chama um abstrato; uma essência abso- especulativamente que tipo de função lógica ali se cumpre, mas se aprende a
lutamente independente, um concreto. Um "isto aqui" cuja essência material é um concreto, se
reconhecer as características típicas das principais funções constitutivas de textos
chama um indivíduo.
argumentativos (formulação de problemas, exposição de conceitos, defesa de
4 Se compreendemos a "operação" de generalização sob o conceito de "variação" lógica agora
ampliado, podemos dizer: indivíduo é o prato-objeto requerido pela lógica pura, o absoluto teses, exemplificações, extração de consequências etc.). Vale notar que muitas
lógico, a que se referem todas as variações lógicas. funções lógico-conceituais se estendem por mais de um parágrafo, o que permite
'
contínuas; e de que todalmultiplicidade empíric~ por mais abrangente que Trecho que surpreende, inesperado.
seja, ainda deixa em aberto determinações mais precisas e novas das coisas, •
e assim in infinitum
Cada letra deve ser associada a um tema ou conceito e ser anotado ao lado 1 O eidos, ~ p o d e exemplificar-se intuitivamente em
de todas suas ocorrências na obra. Paralelamente, deve-se listá-las em uma dados de experiência, tais como percepção, recordação etc., mas
ficha. Por exemplo: igualmente, também em meros dados de imaginação. Por conseguinte,
a), b ) , e) ... a) Liberdade: pp. 18, 35, 42 ... para apreender intuitivamente uma essência ela mesma e de modo
b) Intencionalidade: pp. 2, 7-9, 55 ... originário. podemos partir das intuições empíricas correspondentes,
Esse procedimento permite a produção de um tipo particular de ficha, que mas igualmente também de intuições não-empíricas, que não apreendem um
analisa o emprego de conceitos específicos no decorrer de uma obra21 . existente ou, melhor ainda, de intuições "meramente imaginárias".
2 Se em imaginação livre produzimos figuras no espaço, me-
lodias, processos sociais etc. ou fingimos atos de experiência, de
Por meio desses símbolos, é possível deixar marcadas nitidamente diferen- prazer ou desprazer, de querer etc., podemos por "ideação" neles
tes impressões relativas aos trechos lidos, bem como desenvolver comentários apreender, em intuição originária e eventualmente até adequada,
pessoais acerca do texto. Salientamos diversas vezes nos capítulos anteriores que diversas essências puras, tais como a essência da figura espacial, da
melodia, do processo social em geral etc., ou a essência da figura,da
a leitura abrangente deve permitir a reconstrução do movimento expositivo do
melodia etc. do tipo particular em questão. É indiferente, neste caso,
texto de forma neutra em relação às valorações subjetivas do leitor. Isso não deve
se algo assim já tenha sido dado ou não numa experiência atual. Se
significar, por sua vez, a mera repressão ou aniquilamento dos posicionamentos a livre ficção, não importa por que milagres psicológicos, levasse à
do leitor. Na verdade, o que importa não é não ter opiniões pessoais sobre o
texto, mas saber distinguir entre as valorações subjetivas e a estruturação imanente
ao texto. Essa distinção pode vigorar já nas notações gráficas durante a leitura.
21. O método para elaborá-la será exposto no capítulo 6. 22. No capítulo 6, apresentaremos modelos de fichas de comentários pessoais.
116 • Leitura e Escrita de Textos Argumentativo
Estratégi,as de Leitura I • 117
Texto otas na margem É preciso admitir, entretanto, que essa virtude das notações - conduzir
imaginação de dado que, por princípio, fo m de uma nova
a percepção do texto como conjunto temático estruturado - por vezes enviesa
cie por exemplo dado en ívei qu jamai ti e em ocorrido m o entendimento. As notações carregam a relação com o texto, já no nível per-
experiência alguma, i o em nada modificaria o dado originário da ceptivo, de certos esquemas interpretativos, os quais impedem que esquemas
e ência corre pondente: o dado imaginado , no entanto, jamai alternativos sejam desenvolvidos. Ao sublinhar certas frases, circular determi-
erão dado efetivo . nados termos, anotar alguns símbolos e palavras, conduzimos a apreensão do
3 E encialmente conectado a i o e tá qu po ição ante d ? [Noção-~ sentido em conformidade a uma linha interpretativa, que exatamente aí, nos
tudo ~ d e sência não implicam minimamente a " p ~ ' ...]
grafismos, ganha contornos precisos. Caso se avalie posteriormente (seja por si
posição de algum existente individual· bura verdade de e ência não
contêm a mínima afirmacão sobre fato, portanto d las tampouco
só, ao escrever os fichamentos, seja alertado por alguém mais experiente) que
pode inferir a mai ínfima erdade factual. sim como todo pen- a interpretação delineada padece de incorreções ou insuficiências, então, ao re-
samento, toda enunciação ac rca d fato pr ci a ter ua funda ão tornar ao texto para reler certos trechos ainda mal compreendidos, as notações,
na experiência Uá que ta é neces ar"iamente requerida p la es ência ali gritantes para a percepção, prejudicam que novas linhas interpretativas se
do acerto de tal pen amento) as im também o pen amento acerca elaborem no correr da leitura. Será preciso apagá-las, levando a percepção do
de e ências puras - pen amento em mi tura que não vincula fato
texto à homogeneidade gráfica original, para, a partir dali, novamente esculpir
e e ências - preci a ter a apreen ão intuitiva de es ência como seu
uma nova captura sensível da estruturação, por meio de outras marcas gráficas.
alicerce de fundaçãa2 3.
As notações são recursos valiosos para a elaboração do entendimento do texto;
* E»a,, hip~ tBml ~ ~ {cu:;tuaL ow VCU-e/ como- contudo, seu potencial de direcionamento da leitura não deve ser ignorado, e
mer-~ p ~ ~ ? ' R ~ ccm,,t"~o-~V.
H.~ .. é preciso saber flexibilizá-las se a ocasião assim exigir.
Conforme os exemplos devem ter deixado claro, o emprego de notações Nos trechos a seguir, busque o sentido de termos desconhecidos (se for o
durante a leitura rompe a homogeneidade gráfica dos textos ao propiciar des- caso) e empregue as notações sugeridas neste capítulo:
taques e hierarquizações temáticas, bem como ao fomentar um posicionamento
ativo do leitor diante do conteúdo textual. Por meio das notações, as hipóteses a) RoussEAU, J.:J. Do Contrato Social. 2. ed. Trad. L. S. Machado. São Paulo, Abril
interpretativas acerca do sentido textual se deixam já vislumbrar na superfície Cultural, 1978 [1762], pp. 23-24 (Os Pensadores).
física do texto, e a leitura, longe de ser um ato espiritual de decifração, se revela, Texto Notas
destarte, como um confronto material com o texto, do qual as notações são tanto
n - Das Primeiras Sociedades
o guia concreto quanto os vestígios para que a reconstrução final da exposição A mais antiga de todas as sociedades, e a única natural, é a da
(via fichamentos) tenha lugar. Faz sem dúvida muita diferença ler um texto família; ainda assim só se prendem os filhos ao pai enquanto dele
sem nada marcar nas páginas, apenas contando com a atenção e a memória, ou necessitam para a própria conservação. Desde que tal necessidade
utilizar algum sistema de notação. As notações alteram a face sensível do texto, cessa, desfaz-se o liame natural. Os filhos, isentos da obediência
acrescentando-lhe as marcas do esforço metódico de compreensão. Espera-se que devem ao pai, e este, isento dos cuidados que deve aos filhos,
voltam todos a ser igualmente independentes. Se continuam uni-
que, com a prática, o sistema de notação adotado torne-se imediatamente signi-
dos, já não é natural, mas voluntariamente, e a própria família só
ficativo e operante na percepção, de maneira que, em uma releitura, o texto seja se mantém por convenção.
apresentado não somente conforme o padrão sequencial gráfico comum, mas Essa liberdade comum é uma consequência da natureza do homem.
como ordenado segundo parâmetros estruturais (blocos temáticos, ramificações Sua primeira lei consiste em zelar pela própria conservação, seus
conceituais, entrelaçamento de tarefas lógicas etc.) atestados sensivelmente. primeiros cuidados são aqueles que se deve a si mesmo, e, assim que
alcança a idade da razão, sendo o único juiz dos meios adequados
para conservar-se, torna-se, por isso, senhor de si.
Texto
Texto
Notas
família é poi e as im e qui r o primeiro mod 1 d o-
ciedades políticas: o chefe é a imagem do pai· o po o a do filho peculiaridade de explicitamente ligar a ausência de futuro à ausên-
e todo tendo na cido iguai e livre cia de passado para os índios; eles seriam como que a decadência
em pro eito próprio. diferença toda está rn que na família o prematura da humanidade, frágeis habitantes de um continente
amor do pai p lo filho o paga p lo cuidado qu Ih onde nada podia prosperar, onde a infância se ligava diretamente à
enquanto no E tado o prazer de mandar ub titui tal am r qu o velhice, sem passar pela maturidade. Assim como não havia grandes
chefe não dedica a eus po o . mamíferos na América, igualmente seus habitantes eram fracos, sem
vitalidade e sem porvir.
Grotiu nega que todo o poder human tab 1 a m fa or
daquele que ão gov ma.do : cita, como x mplo a e cravidão. ua No período moderno, por sua vez, a reticência dos antropó-
maneira mai comum de raciocinar ' mpre tabelecer o direito logos em tratar da história indígena derivava de outras ideias: as
pelo fato. Poder- e-ia recorrer a m 'todo mai con equent , não, funciona.listas e as estruturalistas. Ambas as escolas privilegiavam
porém mai favoráv l ao tirano . [... ] uma análise sistêmica e sincrônica da sociedade (situando-se uma
no nível empírico, outra no nível de uma organização subjacente
ao empírico) como chave de sua inteligibilidade. É verdade que
b) Cu HA M. C. da. Por uma História Indígena e do Indigenismo". ln: _ __ Radcliffe-Brown, que nisso se assemelhava aos historiadores tradicio-
Cultura com Aspas. São Paulo Cosac aify, 2009 [1989], pp. 125-126 [125-131]. nais, renunciava à pesquisa histórica em sociedades ágrafas não por
ser irrelevante, mas por ser impossível de ser feita adequadamente.
Quanto ao estruturalismo, embora preconizasse a história, não via
Te to Notas
nela um nível de organização e um poder explicativo comparável
A hi tória dos povos indígenas no Brasil está mudando de figura. ao da sincronia. A história era sobretudo a ausência de sistema,
Até os ano 1970 o índio , upunha- e, não tinham nem futuro, o imponderável e portanto o ininteligível: acontecimentos que
nem pa ado. Vaticinava-se o fim do últimos grupos indígenas, vinham se abater sobre o sistema que procurava resistir-lhes.
deplorava-se sua assimilação irreversível e a sua extinção tida por Os índios, no entanto, têm futuro: e portanto têm passado. Ou
inelutável diante do capital que e expandia nas fronteiras do país. seja, o interesse pelo passado dos povos indígenas, hoje, não é disso-
A ausência de passado, por sua vez, era corroborada por uma dupla ciável da percepção de que eles serão parte do nosso futuro. A sua
reticência, de historiadores e de antropólogos. A reticência dos presença crescente na arena política nacional e internacional, sua
historiadores era metodológica, e a dos antropólogos, teórica. Os também crescente utilização dos mecanismos jurídicos na defesa de
historiadores, afeitos a fontes escritas - e escritas por seus atores - seus direitos tomam a história indígena importante politicamente.
hesitavam ainda em pisar nas movediças areias da tradição oral ou Os direitos dos índios à sua terra, diz a Constituição, são históricos,
de uma documentação sistematicamente produzida por terceiros: e a história adquire uma imediata utilidade quando se trata de
missionários, inquisidores, administradores, viajantes, colonos, inter- provar a ocupação. Mas ela tem também um caráter de resgate de
mediários culturais, em suma, com interesses próprios e geralmente dignidade que não se pode esquecer. No Brasil, contrariamente ao
México e ao Peru, à falta talvez de civilizações da pedra, exaltou-se
antagônicos aos das populações descritas. Em tais condições, essas
fontes vinham viciadas por distorções, por incompreensões inevitá- o índio desde a Independência, mas não se exaltou sua história. Isso
teve tanto vantagens como desvantagens: de certa forma, a história
veis, que filtravam e refratavam as informações. Com uma arqueo-
indígena ficou virgem, ou quase. E está noiva não de uma ideologia
logia ainda por fazer, com ausência de quaisquer monumentos que
de Estado mas do movimento indígena.
atestassem grandes impérios, não era tangível a existência de uma
história antes de 1500.
e) MELLO E SouzA, G. O Tupi e o Alaúde. 2. ed. São Paulo, Editora 34/Duas Ci-
A abstenção dos antropólogos, por sua vez, provinha de várias
e diferentes fontes teóricas. Havia, já um tanto anacrônica, a velha dades, 2003 [1979], pp. 8-9.
doutrina evolucionista, para quem os índios não tinham passado, Texto Notas
por serem, de certa forma, o próprio passado, ponto zero da socia-
bilidade. Essa teoria, vigorosa no fim do século XIX, havia substitu- Escrito em seis dias de trabalho ininterrupto, durante umas férias
ído, vale a pena lembrar, outra vigente no começo desse século e de fim de ano, em dezembro de 1926; corrigido e aumentado em ja-
associada aos nomes de Buffon e de Cornelius de Pauw, que tinha a neiro de 1927; publicado em 1928 - Macunaíma logo se transformou
no livro mais importante do nacionalismo modernista brasileiro.
120 • Lei,tura eEscrita de Textos Argumentativo Estratégias de Leitura I • 121
Texto oias d) DuRKHEIM, E. As Regras do Método Sociológi,co. 3. ed. Trad. P. Neves. São Paulo,
Martins Fontes, 2007 [1895], pp. 1-2.
A impre ão fulminante de obra-prima qu o companheiro d
Mário de Andrade tiveram na época ao tomar contato p la pri- Texto Notas
meira vez com o manu crito, perman c at ' hoj cinqu nta ano Capítulo 1 - O que é um Fato Social?
depoi da ua publicação. Com o p ar do t mpo a _ p ri ncia A
Deve-se considerar que não há uma única r po ta correta para cada por seus atores - hesitavam ainda em pisar nas movediças areias da
tradição oral ou de uma documentação sistematicamente produzida
exercício.
por terceiros: missionários, inquisidores, administradores, viajantes,
a)
colonos, intermediários culturais, em suma, com interesses próprios
Te to otas e geralmente antagônicos aos das populações descritas. Em tais
condições, essas fontes vinham viciadas por distorções, por incom-
II - Das Primeiras ociedade
preensões inevitáveis, que filtravam e refratavam as informações.
1 Amai antiga de toda a a única natural · a da
Com uma arqueologia ainda por fazer, com ausência de quaisquer ®
(§míl§} ainda as im ó e prendem o filho ao pai nquant~ d 1
monumentos que atestassem grandes impérios, não era tangível a
necessitam para a própria conseniação. De de que tal nece s1dade
existência de uma história antes de 1500.
ce a, de faz- e o liam natural. O filho , i ento da ob diência qu
2 A abstenção d ~ o r sua vez, provinha de várias Ve;tcuhcv~
devem ao pai e e te, i ento do cuidado qu de e ao filho , voltam
e diferentes fontes teóricas. Havia, já um tanto anacrônica, a velha JIMrt't.{í.a,.rw~ ~
todo a er igualmente independente . continuam unido ,já não CM'\J:yop~
['P~M-- doutrina !evolucionista,!para quem os índios não tinham passado,
é ~ mas voluntariamente e a própria família ó se mantém 11\aturcu- CtO- por serem, de certa forma, o próprio passado, ponto zero da socia- E~a,, ~
corw~]
bilidade. Essa teoria, vigorosa no fim do século XIX, havia substitu- etd>v~
2E é uma con e uência da natureza do E>llJÜdtl;ttCvOY~
do-~x.rx
ído, vale a pena lembrar, outra vigente no começo desse século e
homem. Sua primeira lei consiste em zelar pela própria conservação, (Ui{/ noção-
associada aos nomes de Buffon e de Cornelius de Pauw, que tinha a
eus primeiro cuidados são aqueles que se deve a si mesmo, e, assim ? [" LeiJ' não- ~ wiua-o- peculiaridade de explicitamente ligar a ausência de futuro à ausên-
que alcança a idade da razão, sendo o único juiz dos meios adequados {or-tfV etq ui,,?]
cia de passado para os índios; eles seriam como que a decadência
para conservar- e toma-se, por is o, senhor de si.
prematura da humanidade, frágeis habitantes de um continente [A~]
3 A família é. poi , e assim se qui er o primeiro modelo das
onde nada podia prosperar, onde a infância se ligava diretamente à
sociedades políticas: o chefe é a imagem do pai; o povo, a dos fi-
velhice, sem passar pela maturidade. Assim como não havia grandes
lhos, e todos, tendo nascido iguais e livres, só alienam sua liberdade
mamíferos na América, igualmente seus habitantes eram fracos, sem
em proveito próprio. A diferença toda está em que na família, o vitalidade e sem porvir.
amor do pai pelos filhos o paga pelos cuidados que lhes dispensa,
3 No período moderno, por sua vez, a reticência dos antropólogos
enquanto no Estado o prazer de mandar substitui tal amor, que o
em tratar da história indígena derivava de outras ideias: as funciona-
chefe não dedica a seus povos.
4 Grotius nega que todo o poder humano se estabeleça em favor
llistas e as estruturalistasj Ambas as escolas privilegiavam uma análise
sistêmica e sincrônica da sociedade (situando-se uma no nível em-
daqueles que são governados: cita, como exemplo, a escravidão. Sua
pírico, outra no nível de uma organização subjacente ao empírico)
maneira mais comum de raciocinar é sempre estabelecer o direito como chave de sua inteligibilidade. É verdade que Radcliffe-Brown,
pelo fato. Poder-se-ia recorrer a método mais consequente, não, [TOYYl,(',v e<-eeU"cw~ ~
t"'u--~] que nisso se assemelhava aos historiadores tradicionais, renunciava
porém, mais favorável aos tiranos. [ ... ]
à pesquisa histórica em sociedades ágrafas não por ser irrelevante,
mas por ser impossível de ser feita adequadamente. Quanto ao es-
truturalismo, embora preconizasse a história, não via nela um nível
b)
de organização e um poder explicativo comparável ao da sincronia.
Texto Notas A história era sobretudo a ausência de sistema, o imponderável e
portanto o ininteligível: acontecimentos que vinham se abater sobre
1 A história dos
Apv~te,w,,f!/ o sistema que procurava resistir-lhes.
fig11ra. Até os anos 1970, os m 10s, supunha-se, não tinham nem
ev contY~ev com,, 4 Os índios no entanto têm futuro: e portanto têm passado.
futuro, nem passado. Vaticinava-se o fim dos últimos grupos indí- p ~ CLd,ve,v~í,a, Ou seja, o interesse pelo passado dos povos indígenas, hoje, não é
genas, deplorava-se sua assimilação irreversível e a sua extinção tida
dissociável da percepção de que eles serão parte do nosso futuro. A
por inelutável diante do capital que se expandia nas fronteiras do
sua presença crescente na arena política nacional e internacional, sua
país. A ausência de passado, por sua vez, era corroborada por uma
também crescente utilização dos mecanismos jurídicos na defesa de A py ~ a , ,
dupla reticência, de historiadores e de antropólogos. A reticência JIMrt'~wa, p~u;a,,
seus direitos tornam a história indígena importante politicamente.
dos historiadores era metodológica. e a dos antropólogos, teórica.
Os direitos dos índios à sua terra, diz a Constituição,
~ e i t o s a fontes escritas - e escritas
124 • Leitura eEscrita de Te tos Argumentativos
Estratégi,as de Leitura I • 125
ota Texto
Notas
ão hi tórico , e a hi tória adquir uma im diata utilidad quand
autônoma. Este processo, parasitário na aparência, é no entanto
e trata de provar a ocupação. Mas ela tem tamb ' m um canit r d
curiosamente inventivo; pois, em vez de recortar com neutralidade
re gate de dignidade que não e pod e quec r. o Bra il ontra-
nos entrechos originais as partes de que necessita para reagrupá-las,
. .. . . ...
riamente ao México e ao Peru à falta tal ez d da p dra,
intactas, numa ordem nova, atua quase sempre sobre cada fragmento
exaltou- e o índio de de a Ind p ndência m não e altou ua
história. I o teve tanto vantagen como de vantag n : de certa forma
alterando-o em profundidade. Deste modo, a designação de "com-
posição em mosaico", adotada por alguns estudiosos como Florestan
,
. ,
,
,.
,.
,. ,.,.
,
Te to
5.1 APRESENTAÇÃO
voltado para não importa qual aspecto do te to toma :xplícito um entrelaçamento soa-nos esse preceito em relação a obras de épocas distantes. Caso se leia
intrínseco entre leitura e escrita. Para a compreen ão aprofundada de um texto, a obstinando-se por contrastar toda asserção escrita ao estado contemporâneo do
leitura transborda naturalmente na produção de fichas de análise, d modo saber, então arrisca-se a reduzir o texto a um amontoado de asserções duvidosas,
__Jjl que ler bem um texto complexo cumprin~o e trate~camente as etapas de sua mesmo arbitrárias. Sem dúvida, o crivo da verdade ou falsidade constitui uma
,,,,,----- compreensão, naturalmente le a a aperfeiçoar a e cnta. etapa substancial de um tipo específico de análise de texto, do qual buscaremos
Vamos então apre entar detalhadamente cada tipo de ficha de leitura, traçar os contornos gerais ao comentar sobre a ficha de análise de argumentos.
expondo as técnicas ligada à ua produ ão. o r tante dest capítulo, veremos No entanto, sua aplicação exacerbada impediria a explicitação atenta da ordem
as fichas de estrutura expositiva. das tarefas lógicas por meio das quais se tenta legitimar o tema exposto. O pon-
to em questão é que para obras argumentativas complexas, reconhecidas como
seminais por especialistas na área, deve haver um esforço concentrado para o
5.2 FICHA DE ESTRUT RA EXPOSITIVA
entendimento da exposição. Independentemente de as teses defendidas parecerem
discutíveis prima facie, reconhece-se, no caso de textos argumentativos decisivos
O propósito geral da construção desse tipo de ficha já foi mencionado
para o processo formativo em vista, a importância de reconstruir imparcialmente
algumas ezes. Trata- e de fixar como as posições defendidas no texto em pauta
o movimento justificativo de tais teses. Talvez, no final das contas, isso não as
são construídas e justificadas por meio de uma sequência das operações lógico-
torne mais aceitáveis à luz do conhecimento atualizado, mas ao menos torna
-conceituais de que seu movimento expositivo se constitui. Esta é sem dúvida
mais claras as estratégias de legitimação ali empregadas. Dessa maneira, na re-
uma tarefa fundamental para o processo formativo, em quaisquer de seus níveis
e circunstâncias, e que toma concreta aquela abertura ao pensamento alheio, ~ o da estrutura expositiva, deve ~gorar um desinteresse met~dic"o ~cerca
da verdade ou falsidade das asserções ali em uso, para que a arqmtetomca da
marca do exercício maduro da leitura abrangente, conforme comentado no
legitimação seja explicitada em sua efetiva complexidade. Metodicamente vai se
terceiro capítulo. Se há disposição para aprender com o texto em estudo, ou
deixar de reenviar o conteúdo significativo do texto a instâncias extratextuais
ao menos para entender as posições ali defendidas, cabem então esforços me-
de avaliação, que permitiriam julgar a correção das teses ou mesmo explicá-las de
tódicos de apreensão dessas posições, inseridas em uma teia ordenada de con-
um ponto de vista sociológico ou psicológico.
ceitos e operações lógicas. Isso permite desfazer a aparência de arbitrariedade
Comentamos no capítulo 3 algumas variantes de leituras que, no fundo,
ou gratuidade por vezes associada às posições, quando se lê fragmentadamente,
esvaziam a autonomia do sentido textual. De nossa parte, nada ajuizamos sobre
com ênfase apenas naquilo que é familiar ou que por sua vez chama a atenção.
a pertinência geral de análises psicologizantes ou sociologizantes de textos. Ape-
Vimos que o destaque a aspectos parciais do texto enviesa a compreensão do
nas insistimos em que elas parecem pouco contribuir para entender os posicio-
efetivo posicionamento ali construído. Ao salientar tão somente as ditas "teses"
namentos encontrados nos textos conforme sua própria lógica expositiva, havendo
ou afirmações principais do texto, desconectando-as da sequência de tarefas
uma clara preferência por remeter esses posicionamentos, como efeitos mais ou
que as legitimam, fragiliza-se artificialmente o posicionamento ali construído,
menos elaborados, a causas psicossociais. Ao contrário, sugere-se reconhecer que
então assimilado isoladamente de sua justificativa. Contrapor-se a essa assimilação
a expressão escrita, ainda mais em obras argumentativas densas, carrega uma
fragmentada do texto argumentativo, que por vezes lhe retira o próprio teor
densidade significativa dificilmente redutível às suas condições psicossociais, e vai-
argumentativo ao obsedar-se em memorizar as teses desligadas da exposição
-se, desde então, buscar na própria articulação das tarefas de que o movimento
que as legitima, é uma das principais virtudes do fichamento voltado à estrutura
expositivo se compõe as justificativas para o que ali é defendido.
expositiva. Busca-se recuperar as posições apresentadas, no te~to em conform~dade
É obvio que não se quer dizer aqui que o texto só faz sentido em uma
-----=,, / com o movimento expositivo que as sustenta. Para tanto, e preciso retomar, amda leitura totalmente imanente de seu conteúdo. Aliás, esse tipo de leitura nem
que esquematicamente, a integralidade desse movimento expositivo; só então
mesmo existe. Inferir o sentido dos termos por meio de um horizonte de prá-
será possível apreciar corretamente o sentido daquilo que se defende no texto.
ticas comunitárias historicamente delimitado é uma operação que faz parte da
Deve-se enfatizar que essa remissão "daquilo que o texto defende" à pró-
leitura também conforme exposto no terceiro capítulo. Não há, portanto, pura
pria articulação expositiva supõe uma suspensão metódica do julgamento acerca da
imanê~cia textual, livre do caráter contingente dos esforços interpretativos,
verdade ou falsidade das teses à luz do que veicula o conhecimento objetivo atual
sempre exercidos nos limites de certa pré-compre~nsibili~ade __ge~al acerca, ~os
ou o senso comum aceitável acerca dos tópicos em questão. Mais indispensável
temas lidos. Em todo caso, uma coisa são as operaçoes de mferencia pragmatica
132 • Leitura eEscrita de Textos Argumentativos Estratégi,as de Leitura II - Fichamentos de Estrutura Expositiva • 133
constituintes de toda leitura outra ão a tentati d bu car plicaçõ ociai Interessa-nos somente retomar um pequeno núcleo dessa complexa teoria, sem
ou psicológicas para o conteúdo ignificativo. E ta última r mi ão a a p tos adentrar nos diversos problemas filosóficos a ela ligados.
tratextuais não é um elemento n ce ária da leitura mas con titui c rto m 'todo O ponto relevante da doutrina dos atos de fala para a prática dos ficha-
específico de compreensão de te tos. E e e método parece-no , em certa medida, mentos é que todo proferimento linguisticamente significativo realiza certo
incompatível com a reconstrução da estrutura e positi a aqui almejada. D nossa tipo de ação, mesmo se não a nomeia explicitamente. Isso também vale para os
parte, tomamos essa última como uma etapa fundamental da 1 itura abrangente, proferimentos escritos, que nos interessam aqui3• Dessa maneira, ao tratar de um
etapa na qual e as enta o entido t tual com vi ta a uma formação duradoura. assunto qualquer em um texto, um autor não somente se dirige a esse assunto
Fixar corretamente a e trutura xpo itiva auxilia a ibir a posição defendida em como referente de seu discurso. Esse "dirigir-se" a seu assunto não é de forma
sua efetiva força lógica (independentemente de eu condicionante genéticos), o alguma um olhar monolítico, mas envolve diferentes modalidades e qualificações.
que permite ao leitor até mesmo reelaborar alguns parâmetros de seus próprios Em outras palavras, um autor se dirige a um assunto cumprindo certo tipo de ação ou
esquemas de pré-compreen ão contribuindo assim para um refinamento global tarefa, por meio do qual o assunto é justamente visado. Distinguem-se aqui dois
de seus si temas de crenças e de procedimento prático . Para verdadeiramente níveis de operatividade do discurso: o nível locutório, que diz respeito ao proferi-
aprender algo advindo de um pen ar alheio registrado como texto, é preciso recu- mento linguístico significativo acerc; de algo, e o nível ilocutório, que diz respeito
perar rigoro amente es a alteridade do pensar, ou, em termos práticos de leitura, ao tipo de ação ou tarefa cumprida relativamente ao conteúdo locutório, e que,
recuperar o movimento expositi o de um texto em todo seu potencial de novidade no caso dos textos argumentativos, nomeamos até aqui vagamente de "tarefas
e informatividade. A construção de fichas da estrutura expositiva visa assegurar lógico-conceituais". Dessa maneira, ao falar ou escrever certo conteúdo locutó-
o respeito à complexidade inerente ao texto, sem reduzi-lo a grandes esquemas rio, realiza-se simultaneamente certo ato que pode ou não se cumprir de modo
explicativos. Interessa, então, muito mais do que avaliar a verdade das posições bem-sucedido conforme o preenchimento de condições específicas para o caso
ou mostrar sua gênese psicossocial, reinseri-las nas justificativas apresentadas na em pauta. Além desses dois níveis de operatividade linguística, os estudiosos do
própria exposição textual, tornando visível o caráter ordenado desta última1 . tema normalmente consideram um terceiro nível, o perlocutório, que diz respeito
Cabe agora elucidar mais concretamente como se produzem as fichas de aos efeitos que as ações linguísticas geram em quem as recebe. Este último nível
estrutura expositiva de um texto. Voltemo-nos inicialmente para o princípio não terá papel de destaque na construção das fichas de estrutura expositiva.
metodológico ordenador desse tipo de ficha. Tal como dito há pouco, por meio Para tornar palpável a diferença entre os níveis locutório e ilocutório dos
dessa ficha almeja-se reconstruir o movimento expositivo do texto, composto atos de fala, vejamos alguns exemplos:
de várias tarefas lógico-conceituais progressivamente ordenadas. A ficha não buscará
• Locução: "Será que o autor x realmente considerou todas as alternativas
senão capturar quais são essas tarefas e sua concatenação. Para bem conduzir
disponíveis acerca dessa questão?".
um fichamento desse tipo, importa então entender o que são essas tarefas e de
Ilocução: o autor problematiza ou questiona a posição de outro autor.
que modo elas devem ser fixadas. A fim de elucidar esses tópicos, vamos nos
• Locução: "O senso comum assume sem grandes questionamentos a po-
remeter, de maneira muito geral, à teoria dos atos de fala, proposta pelo filósofo
sição Y, embora ela não seja evidente".
John L. Austin no final dos anos de 1950, e desde então desenvolvida de ma-
Ilocução: o autor reconhece a ampla aceitação de certa posição e a carac-
neira multifacetada por meio da contribuição de muitos filósofos e linguistas 2 .
teriza como problemática.
• Locução: "Cabe aqui exemplificar o uso do conceito w: [ ... ]".
Ilocução: o autor anuncia um exemplo.
1. Inspiramo-nos em alguns preceitos do método de leitura estrutural divulgado por autores tais como V.
Goldschmidt na década de 1950. Desse método importam-nos as recomendações práticas para os estudos,
as quais, diga-se de passagem, muito se assemelham às que outros autores, sem nada dever ao estrutura- Como se vê, em cada uma dessas locuções certo assunto é visado conforme cer-
lismo filosófico francês, também promovem (ver, por exemplo, G. Brune G. Hirsch Hadorn, Textanalyse
in den Wissenschaften, 2014, cap. 5). Para uma crítica das concepções teóricas subjacentes a essa vertente do
ta operação ou tarefa específica. No último item, a tarefa ilocutória é explicitamente
estruturalismo, ver o consagrado artigo de C. A. R. de Moura, "História Stultitiaee História Sapientiai' , 1988,
pp. 151-171. De nossa parte, tencionamos sistematizar um amplo método de estudos voltado à formação
crítica e à consolidação da autonomia intelectual, para as quais a análise da estrutura expositiva de um
texto não é senão a etapa basilar.
2. Baseamo-nos na exposição proposta por G. Brune G. Hirsch Hadom em Textanalyse in den Wissenschaften, 3. Não exploraremos pos íveis diferenças nos aspecto emânticos e pragmáticos do atos de fala em forma
ap. cit., pp. 60-62. escrita.
134 • Leitura e Escrita de Textos Argumentativos
Estratégi,as de Leitura II - Fichamentos de Estrutura Expositiva • 135
as operações lógico-conceituais realizada no d orr r da posição5 • Val notar, o tipo de problematização predominante nas diversas partes de um texto (saben-
para tanto, que as funções ilocutórias não concat narn aleatoriament , mas, do que há entrelaçamentos entre os temas), de forma a já antever as operações
por vezes, conforme padrõe bastante marcados cujo r conhecim nto facilita comumente desenvolvidas no campo temático em pauta. Trata-se de um modo
enormemente a compreensão. im por e mplo em um trecho em que de densificar aquela perspectiva de pré-compreensão, mencionada no terceiro
um autor critica a posição de outro ão recorr ntes as operações de retomar os capítulo, com a qual espontaneamente se aborda um texto. Quando se conhe-
conteúdo da posição-a! o e plorar a aplicação de eu conceitos, lançar objeções à cem previamente as principais tarefas lógico-conceituais tipicamente cumpridas
sua relevância para certo ca o etc. Com a prática logo e di cernem conjuntos em relação às diferentes problemáticas desenvolvidas nos textos argumentativos,
típico de operações ilocutórias concat nadas, o qu auxilia na divisão das partes toma-se então mais fácil exibir e fixar a estrutura expositiva. Apresentamos a
e subpartes do trecho . seguir o quadro 5.1, não exaustivo, com algumas das operações ilocutórias comu-
Uma maneira de ante er o horizonte ilocutório em que certo trecho se mente associadas a cada um dos quatro grandes campos temáticos que acabamos
desenvolve é atentar para o tipo da análi e ali preponderante. De modo muito de discriminar. Esperamos, por meio desse quadro, oferecer um vocabulário
geral, parece po ível di tinguir ao menos quatro amplos campos temáticos no mínimo para auxiliar na tarefa de formular explicitamente a operação ilocutória
interior dos quai o texto argumentativos normalmente avançam: em vigor em cada trecho lido.
Notemos que vários verbo são aplicá eis a mais d um campo, obviamente Para bem efetuar essa distinção das principais partes do texto, reco-
operando sobre o conteúdo específico de cada um dele 7 • S ria ntão artificial menda-se tomar como unidade mínima da exposição não a frase, e sim o
apresentar cada campo temático ligado a um conjunto clusivo d erbos ilocu- parágrafo. Espera-se que em um parágrafo bem construído, diversas frases se
tórios, uma vez que isso ocultaria a pluralidade operatória efetivamente disponível concatenem coerentemente para executar ao menos uma função ilocutória
para avançar em discussõe obre os mai diferente tópico no interior desses geral. Delineia-se, assim, uma tarefa inicial do fichamento: tornar explícita a
grandes âmbitos temáticos. E preci amente intere a-nos chamar a atenção dos função ilocutória cumprida nos parágrafos. Nesse ponto, é preciso cuidado para
leitores para a pluralidade de op raçõ de que um texto se compõe. Deve-se não engessar artificialmente a compreensão. Não se deve supor que cada pa-
ter em mente que na maior parte das veze , a operaçõe ilocutórias não são rágrafo sempre realiza uma função distinta e, desse modo, se confirma como
claramente nomeadas e que cabe ao leitor para capturar a ord nação do mo- uma parte do texto. Por vezes, diferentes aspectos da mesma função são ex-
vimento expositi o nomeá-la e plicitamente, por meio de verbos tais como os postos em sucessivos parágrafos, que, então, de maneira conjunta, cumprem
inventariado no quadro 5.1. uma só operação geral (seja fracionando-a, seja por meio de funções auxilia-
ficha da estrutura expo iti a será fruto des e esforço de formulação ex- res). Fica claro, por conseguinte, que uma parte expositiva de um texto não será
plícita das tarefas ilocutórias por meio das quais o texto se ordena. A estrutura sempre idêntica a um parágrafo. Além disso, outra possibilidade comum em tex-
e positi a, entendida como o de en olvimento metódico de operações lógico- tos argumentativos complexos são parágrafos muito longos que realizam fun-
-conceituais, se deixa registrar em ao menos três níveis de complexidade, cada um ções ilocutórias relativamente independentes, o que justifica distinguir ao longo
correspondendo então a certo tipo de fichamento. Vamos expô-los em ordem de um mesmo parágrafo diferentes partes expositivas. Em geral, não há uma fórmula
de dificuldade crescente, deixando visível como a cada novo nível a explicitação exata para antecipar essas possibilidades de ordenação; cada caso concreto
das tarefas ilocutórias se refina e permite, à custa de mais trabalho, é verdade, exigirá uma análise paciente.
um controle maior dos conteúdos do texto em vista. Outro ponto importante para a construção das fichas é buscar capturar
não apenas a concatenação de parágrafos formando uma parte expositiva (se
for o caso), mas também o entrelaçamento das próprias partes. A nomeação das
5.2.1 Fichamento Expresso 8 partes deve ter o cuidado de evitar formulações bruscas e que soem totalmente
independentes entre si, e deve manter, na medida do possível, um sentido de en-
A meta geral desse nível básico de fichamento é distinguir os grandes blocos cadeamento entre os trechos do texto. É justamente porque as partes expositivas
ou partes de um texto com base nas principais operações ilocutórias aí cumpridas. se unificam, porque há uma passagem ordenada entre elas, que a metáfora do
Por vezes, esse trabalho é bastante facilitado pela própria organização do texto,já "movimento" expositivo faz sentido. Daí a importância de reconhecer os esque-
apresentado em seções devidamente separadas e nomeadas. Nesses casos, o autor mas típicos de coordenação de funções ilocutórias e mesmo sua remissão a um
se preocupou em demarcar claramente as principais etapas da exposição, cabendo horizonte ou campo temático comum, fatores que auxiliam o leitor a desvelar
aos leitores simplesmente levar em conta as divisões propostas para capturar o as partes expositivas como algo que envolve uma dinâmica interna, e não como
movimento global da exposição. Diante de textos desse tipo, o leitor pode tentar blocos estanques e isolados entre si. Outra sugestão importante é formular o
aplicar imediatamente o segundo nível de fichamento, apresentado na próxima título de cada parte expositiva levando em conta a tarefa ilocutória global e sua
seção. Em todo caso, muitas vezes em textos argumentativos complexos simples- aplicação ao tópico em pauta. Isso toma visível a ligação entre os diferentes aspec-
mente não há divisões claras das partes da exposição, ou há somente marcações tos do tema tratados paulatinamente no texto. Consideremos, por exemplo, os
muito genéricas (por exemplo, algumas seções no interior de um longo capítulo), seguintes títulos para partes de um suposto texto:
cada uma contendo nitidamente diferentes partes expositivas. Para esses casos, é
preciso que o leitor busque distinguir ativamente as partes do texto, formulando • Primeira parte: o autor apresenta o conceito de liberdade na tradição
quais são as etapas ou os momentos expositivos que se entrelaçam sucessivamente. política moderna (§§ 1-2).
• Segunda parte: o autor critica uma definição comum de "liberdade"
derivada da tradição moderna (§§ 3-6).
7. Também não pretendemos ter formulado de modo exaustivo os verbos que se repetem em mais de um • Terceira parte: o autor propõe reformular a noção moderna de liberdade
campo temático. à luz de temas políticos contemporâneos (§ 6).
8. Agradeço ao colega André Singer por sugestões importantes para sistematizar esse fichamento .
140 • Leitura e Escrita de Te. tos Argumentativos
Estratégi,as de Leitura II - Fichamentos de Estrutura Expositiva • 141
Os títulos das partes destacam a operação central dos parágrafos qu as com- considerado central (que deve então ser copiado entre aspas) ou tentar parafra-
põem (os quais estão registrados entre parênte apó o título) tal como aplicada sear o trecho em questão, construindo com as próprias palavras uma síntese do
ao tema em foco (no caso a noção de liberdade). Tamb ~ m ria po ív 1 em vez de conteúdo exposto. Caso se opte por acrescentar os resumos e por fazê-los em
empregar os erbos nos títulos das partes utilizar a r ão nominalizada das ope- paráfrase, trata-se já de uma ocasião mais nitidamente voltada também para o
rações que marcam cada parte. Por e emplo m vez d 'o autor apresenta [ ... ] ", treino da escrita. Como veremos nos capítulos finais, uma habilidade importante
a primeira parte se intitularia presentação do conceito de liberdade [ ... ] '; em da escrita argumentativa é reconstruir posições alheias de modo preciso, porém
vez de 'o autor critica[ ... ]', a egunda parte e chamaria Crítica d uma definição sem plagiá-las. A escrita de pequenos resumos de trechos lidos é, sem dúvida,
comum [ ... ]' . Por vezes a er õ nominalizad ão pr :6 rí ei por economia uma boa oportunidade para treinar essa habilidade.
de estilo embora o uso irrefletido dos ub tantivo fomente sutilmente certa en- A ficha da estrutura expositiva deve ser reunida àquela ficha de informações
tificação das partes do te to o que faz com que las ejam apreendidas d forma gerais, conforme sugerido no capítulo 4. Aquela ficha não era senão uma espécie
excessivamente i olada: ha eria a apre entação do tema e então a "crítica" a alguns de capa para o trabalho de análise aprofundada do texto, cujos resultados são jus-
de seu aspectos como e e as fo em entidade autônomas, quando, na verdade, tamente as fichas produzidas após a leitura do texto. Nessa "capa", alguns dados
trata-se somente de funçõe lógicas suce sivamente encadeadas. Recomenda-se, gerais sobre o texto e a edição utilizada já estão clarificados. Agora, com os ficha-
is o posto, um uso cuidadoso das formas nominalizada das funções ilocutórias, de mentos posteriores à leitura, produz-se o núcleo efetivo da análise do texto lido.
modo a não ocultar a operatividade originária de que o texto se constitui. Vamos propor um exemplo concreto de construção de ficha de estrutura
Voltando ao exemplo que acabamos de dar, a nomeação das partes por expositiva em seu nível expresso. Para tanto, vamos nos servir do trecho inicial
meio da operação aplicada ao tema fa orece o entendimento da interligação do famoso texto "Resposta à Pergunta: O que é o Esclarecimento?", escrito por
entre elas. Fica evidente que cada nova parte cumpre certa tarefa à luz daquela Immanuel Kant e publicado em 1784. De início, apresentemos uma ficha com
já realizada pelas partes anteriores. Dessa maneira, atribui-se uma forma explícita informações gerais sobre o texto:
ao menos às grandes etapas da exposição e reconstrói-se, ainda que em um nível
genérico, o movimento expositivo em sua integralidade. Talvez o leitor não tenha Quadro 5.2 Ficha de informações gerais
ainda nitidez sobre o que é efetivamente cumprido no interior de cada parte,
Texto: "Resposta à Pergunta: Que é Esclarecimento?" (§§ 1-4)
mas, por meio desse fichamento básico, ele adquire um entendimento mínimo
sobre o sentido global da exposição: qual o ponto de partida, quais as principais Autor: Immanuel Kant
operações propostas e qual o ponto de chegada. Em sua versão mais simples, Edição: KANT, I. Textos Seletos. 2. ed. Petrópolis, Vozes, 1985, pp. 100-117 (edição bilíngue).
a ficha de estrutura expositiva apresenta somente uma lista de títulos para as Informações gerais e contexto: Publicado originalmente em 1784 na revista Berlinische Monats-
partes discriminadas no texto. O exercício de construí-la, no entanto, gera um schrift, em resposta à pergunta formulada por J. F. Zõllner em um artigo do ano anterior, em
considerável controle da exposição. Afinal, com a escrita dessa ficha simples, o que esse autor defendia o casamento religioso e questionava qual o sentido do "esclarecimento"
leitor compromete-se a distribuir melhor sua atenção pelo texto, sem enfatizar a que comumente se apelava de modo vago nas discussões sobre o tema. Kant oferece uma
desproporcionalmente o que já lhe é familiar ou lhe chamou a atenção qualquer resposta precisa à pergunta de Zõllner pelo sentido do "esclarecimento".
que seja o motivo. Por meio do fichamento, o leitor abre-se metodicamente à Tradução do texto alemão: Floriano de Souza Fernandes
complexidade do "pensar" alheio sistematizado no texto, predispondo-se de ma-
neira regrada a compreender os posicionamentos aí apresentados sem projetar
Eis O trecho que servirá de base para o fichamento. Recomendamos que,
ideias ou valores preconcebidos, preocupando-se em evitar vieses redutores ao
durante a leitura, se tente aplicar a estratégia das notações descrita no capítulo 4.
tomar explícita a estrutura interna da exposição tomada por inteiro.
Vale notar que esse formato bastante simplificado de ficha de leitura
Quadro 5.3 Trecho original
(uma lista de títulos) se deixa enriquecer com o acréscimo de um pequeno
resumo de cada parte, desenvolvido logo abaixo do título correspondente. Resposta à Pergunta: Que é Esclarecimento [Aujkliirung]?
Destarte, recupera-se minimamente o conteúdo locutório do trecho estudado, Esclarecimento [Aufkliirung] é a saída do homem de sua menoridade,
isto é, repõe-se de forma muito sintética aquilo que compõe a face explícita do da qual ele próprio é culpado. A menoridade é a incapacidade de fazer
uso de seu entendimento sem a direção de outro indivíduo. O
trecho analisado. Em relação ao resumo, cabe citar literalmente algum trecho
14 2 • úntura e Escrita de Te. tos Argumentativos
Estratégi,as de Leitura II - Fichamentos de Estrutura Expositiva • 143
ou arem dar um pa o fora do carrinho para aprend r a andar, questão-guia nesse ponto é: quais são as partes expositivas em que o texto se
no qual as encerraram mo tram-lh m guida o p rigo qu a divide? E, para reconhecer as partes, cumpre distinguir as tarefas lógicas centrais
ameaça e tentarem andar ozinh . Ora rdad 'Rebate, turor~ do texto. Propomos que a ficha, resultante dessa distinção, seja escrita conforme
não é tão grande poi aprenderiam muito b m a andar finalm nte o seguinte modelo:
depoi de algumas quedas. Ba ta um e ' emplo de te tipo para tomar
tímido o indivíduo e atemorizá-lo em geral para não faz r outra Quadro 5.5 Modelo da ficha de estrutura expositiva
tentativas no futuro.
3 É dificil portanto, para um hom m m parti ular d Ficha de estrutura expositiva - Nível expresso
da menoridade que para ele e tomou qu Texto: xxx
me mo a criar amor a ela endo por ora r alm nte incapaz d uti-
lizar eu próprio entendimento, porqu mm a o dei aram faz r a Primeira parte: [... ] [Título dado pelo /,ei,tor] (§§ 1-5) [a quais parágrafos do texto a divisão corres-
tentativa de as improceder. Prec ito ponde]
mecânico do u o racional, ou ante do abu o de eu don naturai , Neste trecho, o autor [ ... ] [acrescenta-se pequeno resumo do trecho]
ão os grilhõe de uma perpétua m noridade. Quem dele livras Segunda parte: [ ... ] [Título dado pelo l,ei,tor] (§§ 6-8) [a quais parágrafos do texto a divisão corres-
ó eria capaz de dar um alto in eguro me mo obre o mai e treito ponde]
fo o, porque não e tá habituado a e te movimento livre. Por is o [ ... ]
ão muito pouco aquele que con eguiram pela transformação do
Terceira parte: [ ... ]
próprio e pírito emergir da menoridade e empreender então uma
[ ... ]
marcha egura.
confusa, e cabe decidir se o trecho de e er dividido m uma no a função ou Vamos continuar aplicando esse método de distinção das operações no
interpretado de modo a integrar a fra e ou fr difíc is nas funçõ s já reco- interior dos parágrafos que compõem uma parte expositiva. Retomemos agora
nhecidas. Consequentemente, afa ta-se a ensação bastant comum m l ito- a segunda parte do texto de Kant:
res aprendizes ao enfrentar textos comple os d que não se compreendeu
nada do que se leu: o que não compr nd u ' o cumprimento de uma
Quadro 5.8 Explicitação das funções ilocutórias (segunda parte)
função lógica em um trecho e pecífico.
ejamos retomando o tr cho abordado no it m ant rior, uma ilustração 2 A preguiça e a covardia são as causas pelas quais uma tão grande }
de se exercício de exibir a microe trutura ilocutória das partes de um texto. parte dos homens, depois que a natureza de há muito os libertou de uma vn.-h
,✓.t1,liLCCv cw ~
Consideremo de início a prim ira parte daquele te to (correspondente ao direção estranha ( naturaliter maiorennes), continuem no entanto de bom dcv menorídad.e,
grado menores durante toda a vida. São também as causas que explicam por
primeiro parágrafo) e bu quemos explicitar as funções ilocutórias ali em ação:
que é tão fácil que os outros se constituam em tutores deles. É tão cômodo
ser menor. Se tenho um livro que faz as vezes de meu entendimento, um
Quadro 5. 7 E plicita ão d fun õe ilocutóiia (piimeira part ) diretor espiritual que por mim tem consciência, um médico que por mim
decide a respeito de minha dieta, etc., então não preciso esforçar-me eu
1 Esclarecimento [Au.fklãrung] é a saída do homem de sua menoridade, mesmo. Não tenho necessidade de pensar, quando posso simplesmente
}Vefí,ru?,,
da qual ew próprio é culpado. A menoridade é a incapacidade de fazer pagar; outros se encarregarão em meu lugar dos negócios desagradáveis.
uso de seu entendimento sem a direção de outro indivíduo. O homem é
o próprio culpado dessa menoridade se a causa dela não se encontra na
E>q:>_Uccv 0y -C-e.f'wt,0y ~ A imensa maioria da humanidade (inclusive todo o belo sexo) considera
l
entendimento, porque nunca o deixaram fazer a tentativa de assim proceder.
te em suas leituras. Não o propusemos no capítulo anterior por julgá-lo por Preceitos e fórmulas, estes instrumentos mecânicos do uso racional, ou,
vezes excessivo e mesmo excludente de outras formas de notação. Em todo antes, do abuso de seus dons naturais, são os grilhões de uma perpétua
caso, diante de trechos altamente complexos, é elucidativo reler o texto a fim menoridade. Quem deles se livrasse só seria capaz de dar um salto inse-
de já discriminar de maneira gráfica suas subpartes. A questão-guia para bem guro mesmo sobre o mais estreito fosso, porque não está habituado a este E!ipUca, p~ue.n.o-
movimento livre. Por isso são muito poucos aqueles que conseguiram, pela ~o- ~
cumprir essa tarefa sempre é: qual função essa frase cumpre na exposição? Trata- m.cuore,;\-'
transformação do próprio espírito, emergir da menoridade e empreender
-se, destarte, de tentar formular as operações cumpridas em cada parágrafo,
então uma marcha segura.
demarcando de modo preciso em quais frases tais operações efetivamente
ocorrem.
Seguramente, seria possível oferecer distinções mais finas das operações
ilocutórias cumpridas nesse trecho. Em todo caso, esse exemplo basta para
deixar patente a notável complexidade interna às partes expositivas de textos
argumentativos. O segundo parágrafo, por exemplo, realiza ao menos quatro
operações lógico-conceituais que, embora se concatenem intimamente, devem
10. Mais raramente, também é possível que uma só frase realize mais de uma função ilocutória.
15 O • Leitura eEscrita de Textos Argumentativos
Estratégi,as de Lei,tura II - Fichamentos de Estrutura Expositiva • 151
ser devidamente destacadas para que se obt nha uma compre não clara da Quadro 5.10 Modelo de ficha para analisar as funções ilocutórias cumpridas no interior de
articulação expositiva. cada parte
Apliquemos por fim à terceira parte do t to d Kant sa t ~ cnica d dis-
Texto lido: xxx
tinção fina das tarefas internas ao parágrafos: '
Primeira parte: [ ... ] [título proposto] (§§ 1-6) [divisão proposta]
Quadro 5.9 Explicitação das funçõe ilocutória (t rc ira part ) [Destacam-se as subdivisões]
a) No início do texto, autor apresenta sua posição (§§ 1-2): [ ... ] [aqui entra o resumo]
4 Que porém, um público e e clareça [aujkliire] a i me mo é } F>l;põe, condlçã.o- cuv b) Em seguida o autor define os conceitos centrais de sua posição (§§ 3-4): [ ... ]
perfeitamente po ível· mai que i o e Ih for dada a lib rdad , ~ ~ d o - b 1 ) O conceito x quer dizer [ ... ]
~~o-
é quase inevitável. Poi encontrar- e-ão empre algun indivíduo b 2) O conceito Y quer dizer [ ... ]
capaze de pen amento próprio, até ntre os tutore tab lecidos c) Por fim, o autor diferencia sua posição da de dois outros autores (§§ 5-6): [ ... ]
Vet°liU..f\C(/ uwt; ~
da grande mas a que depoi d ter m acudido de i m mos o c;uv ~~ ~ c 1) O primeiro autor considerado é Z [ ... ]
jugo da menoridade. e palharão m r dor de i o e pírito d uma condlç-<io- C2) [ ... ]
11. Por motivos didáticos, separamos essas duas tarefas. No entanto, com alguma experiência, é possível
a. Expõe dificuldades: menoridade se tornou uma quase natureza a que os indivíduos se
reconhecer em detalhe as funções ilocutórias e escrever concomitantemente a ficha. afeiçoam. A menoridade se exprime em preceitos e fórmulas repetidos sem reflexão.
152 • Lei,tura eEscrita de Textos Argumentativos Estratégi,as de Leitura II - Fichamentos de Estrutura Expositiva • 153
b. Explica pequeno número de maiore : devido à falta d hábito d p n ar por a aída da trechos é decisiva para a extensão do item correspondente na ficha, mas outros
menoridade é rara. fatores são também importantes para o nível de detalharnento, corno interesse
Terceira parte: O autor expõe de que maneira o clarecimento é po ível ( 4)
no tema, disponibilidade de tempo etc.
a. Explicita condição de po ibilidade do e dar cim nto: for d da a lib rdad , é po ível Ainda em relação à construção das fichas, salientemos que se trata de
e me mo quase inevitável o e clarecimento. um exercício trabalhoso, que exige constante consulta ao texto lido. Por isso, a
b. Detalha um caso de ati fação de a condi ão: me mo entre o tutor , ha erá indivíduos sugestão é ter uma cópia do texto impresso à disposição, para ser manipulada
capaze de pen ar por i que e palharão o e pírito crítico. e anotada livremente durante a escrita da ficha. Também é recomendável, ao
e. Comenta efeito ine perado do x rcício da lib rdade: público a tumado ao jug
menos nos casos de fichamentos extensos, escrever uma espécie de resumo ini-
pode obrigar o tutore a permanec r ob le . I o mo tra como é prejudicial fomentar
cial do fichamento, no qual se esclarecem informações básicas sobre as fichas
preconceitos, já que e e também erão u ado contra eu autore .
d. Extrai con equência política: um público ó muda ua forma d pen ar lentamente, o que que se seguirão: quantos parágrafos compõem o texto fichado, quantas e quais
e clui que o e clarecimento po a er in taurado por revolução. o máximo, haveria tro- as partes distinguidas 12 . Essas informações simples são muito úteis em consultas
ca do antigo preconceito por novo nquanto o po o continuaria destituído do pensar ulteriores às fichas, para retomar rapidamente informações sobre o texto em
autônomo. questão e mesmo sobre alguma parte específica cuja estrutura expositiva se queira
especificamente examinar.
Corno se vê, o caráter detalhado da ficha se mostra na reconstrução das Com a construção da ficha detalhada, o leitor assume uma hipótese
operações internas a cada parte do texto. Em vez de um curto resumo, busca-se global de leitura, falível e perfectível, que lhe permite ultrapassar a narrativa
nomear as diferentes funções ilocutórias de cada trecho, ligadas ao conteúdo explícita rumo às operações inaparentes que estruturam a exposição. Esse des-
locutório correspondente. Sugere-se mesmo, em partes que incluem mais de um velarnento da estrutura expositiva para além da, ou, melhor dizendo, vigente na
parágrafo, nomear cada um deles no desenrolar-se da construção da ficha. Importa face narrativa explícita do texto é um dos principais ganhos de compreensão
salientar que não bastaria simplesmente listar tarefas abstratas para capturar oferecidos pelo fichamento. Muitas vezes, quando perguntados sobre qual
a estrutura expositiva do texto (exemplo: definição - explicação - exposição, o sentido de certo trecho do texto, leitores inexperientes limitam-se a repe-
para a primeira parte); é preciso revelar justamente corno, ao completar certas tir a narrativa textual, introduzida por frases do tipo: "aqui o autor diz que
operações linguísticas, o terna é elaborado. x, depois o autor diz que Y [ ... ]" etc. Sem dúvida, há aqui algum grau de
A reconstrução do terna na ficha tem de ser acurada. Deve-se buscar compreensão, ainda que circunscrito quase à mera repetição literal do texto.
parafrasear de modo sintético o texto ou mesmo servir-se de citações literais de Por sua vez, a prática do fichamento detalhado sedimenta um novo nível de
pontos nucleares da exposição. É importante enfatizar que, muitas vezes, essa entendimento: passa-se da repetição da narrativa para a reconstituição das operações
reconstrução do conteúdo locutório exige que se resuma e mesmo já se interprete lógicas. Ora, o padrão geral de entendimento sob o modelo da repetição da
minimamente as frases correspondentes às funções locutórias. Do contrário, a narrativa é a própria sequência discursiva. É assim que entender, nesse caso,
ficha quase se limitaria a uma cópia do texto, o que então a tomaria dispensável, se reduz a reproduzir a ordem de aparição do conteúdo textual. Por sua vez,
já que se poderia folhear diretamente a obra para retomar seu sentido. Uma sob o modelo da reconstituição das operações, a ênfase não está na repetição
das grandes utilidades da ficha é esquematizar a exposição do texto, isto é, permitir linear dos conteúdos, mas na reconstrução das tarefas lógico-conceituais das
retomá-la em seus aspectos estruturais não óbvios, explicitados, na medida do quais o texto se compõe. É verdade que o fichamen to segue a sucessividade
possível, sucintamente. As fichas permitem que o leitor ganhe rapidamente narrativa, uma vez que as partes são distinguidas conforme a sequência dos
noção de corno o texto é montado. Ao folheá-las, deve ficar patente aquilo que parágrafos. No entanto, o padrão geral de entendimento propiciado pela
não se revela folheando o texto: indicações de quais as partes em que a exposição análise detalhada não se restringe a reproduzir tal sucessividade (como se
se divide e de quais as sequências de operações por meio das quais o terna se todos os aspectos do tema se conectassem apenas linearmente), mas dela se
desenvolve.
Entretanto, não é fácil determinar qual seria a extensão adequada das fichas
correspondentes a um texto lido. No exemplo anterior, vimos que há itens em
que o terna é apresentado bem sumariamente e outros cuja reconstrução exige 12. Devo essa ideia a Maria Luísa M. Marcondes da Silva, então estudante de graduação do curso de História
algumas linhas. Não há como decidir isso mecanicamente. A complexidade dos (FFLCH-USP).
154 • Leitura eEscrita de Textos Argumentativo Estratégi,as de Leitura II -Fichamentos de Estrutura Expositiva • 155
serve para expor relações lógicas por eze ba tant comple a , com difi r n- 5.2.3 Fichamento Sintético
tes subníveis e formas de ligação interna. Por mplo, um autor pod por
a conclusão de um argumento antes de sua pr mi as. Ca o e iga apenas a Detalhar as funções ilocutórias (e a elaboração temática correspondente)
sequência narrativa, então será preciso admitir que as premissa são posteriores alcança um alto grau de refinamento. Dependendo da complexidade do texto
à conclusão. Contudo, no fichamento re ela-se qu a conclusão se segue das e dos objetivos almejados com a leitura, cabe mesmo dissecar a exposição linha
premissas que são então logicamente anteriores a la. ucessividade narrativa a linha, conforme já mencionado. Por mais enriquecedoras, e por vezes ines-
nem sempre corresponde de a maneira, à progr ão lógica. A exposição do capáveis, que essas análises se mostrem, é preciso cuidado para que a exploração
sentido textual por leitore aco tumado a bu cara e trutura lógica sob a nar- da microestrutura da exposição não se faça à custa do entendimento do sentido global
rativa é então bem di ersa daquela anterior: O texto e divide em partes. A ali veiculado. Na verdade, espera-se que a análise detalhada da exposição tex-
primeira parte parece ser montada sobre a tarefa geral Y. Para cumprir essa tarefa, tual contribua para o entendimento desse sentido global, e não que de alguma
o autor concatena ários passos lógico que são os seguintes [ ... ]". Como se vê, forma adie excessivamente ou mesmo inviabilize a compreensão voltada para
entender, ne se caso, não é r petir enfadonhamente a sequência das frases do a totalidade do texto. A divisão das partes do texto e a exibição de suas opera-
texto, e sim e forçar- e por recon truir com precisão as operações inaparentes ções constitutivas não é um fim em si mesmo, mas um recurso metodológico
pelas quais o conteúdo temático é paulatinamente elaborado. Sob esse novo que permite reconstituir o sentido tal como configurado no correr da exposição.
modelo, o entendimento enraíza-se ao menos em dois fatores fomentados pela A fim de garantir que essa reconstituição abranja o sentido global do texto e
leitura abrangente: não se disperse em subdivisões quase intermináveis, propõe-se um terceiro tipo
de fichamento, que se deixa identificar pelo acréscimo de uma nova tarefa ao
• Busca-se reinserir na estrutura lógica interna ao texto as teses propostas
fichamento detalhado. Trata-se do fichamento sintético, cuja marca distintiva é
no curso da exposição. Atenta-se, por conseguinte, menos "àquilo que
o registro de uma reflexão não mais analítica, e sim abreviadora. Os resultados
o autor disse ou defende" e mais aos passos lógicos que justificam suas
das fichas detalhadas servirão de base para que o leitor formule uma perspec-
afirmações. Evita-se, dessa maneira, destacar arbitrariamente certas afir-
tiva concisa acerca da exposição do texto. Essa perspectiva sintética não será
mações da estrutura textual que tenta torná-las aceitáveis.
produzida aleatoriamente, mas organizada em torno de três núcleos lógicos que
• Para desvelar a estrutura expositiva, deve-se refazer as operações ilocutó- permitem repor de modo sucinto o movimento expositivo global do texto.
rias vigentes no texto. Entender o que o autor propõe leva, desde então, Esses núcleos lógicos são: o P.roblema central, ~ ou posição cent'!!!:] e ª .!!:!E2!:::_
a aprender a retomar as operações explicitadas, o que contribui para mentação. Essas são noções tão gerais que organizam a leitura de praticamente
densificar globalmente o repertório cognitivo do leitor. quaisquer textos argumentativos. Afinal de contas, um texto argumentativo
Quanto a esse último item, o fichamento, principalmente em sua versão sempre é escrito tendo em vista certo estado de coisas de alguma maneira pro-
detalhada, obriga o leitor a exercer um entendimento não apenas repetitivo, mas, blemático, ou seja, que exige algum tipo de esclarecimento ou elaboração. É
em certa medida, produtivo do texto. Esse caráter produtivo se refere ao fato de esse horizonte temático motivador da própria escrita que deve ser circunscrito
que o leitor tem de reconstituir por si as operações vigentes no texto, o que lhe como o "problema" a que o texto se dirige. Por vezes, o problema é formula-
permite assimilar não apenas o tema explícito, mas também os diversos modos do clara e rigorosamente ( tal como no exemplo de Kant, em que o problema
ilocutórios que constituem tal conteúdo significativo, modos que, sedimentados, está explicitado no próprio título); por vezes, é preciso que o leitor o exprima
enriquecem suas próprias formas de pensar. com cuidado, após analisar vários subproblemas enfrentados no correr da ex-
Em suma, a escrita das fichas detalhadas, embora trabalhosa, oferece ga- posição. Em seguida, a tese ou posição é a afirmação ou conjunto de afirma-
nhos formativos marcantes. Não se trata somente de um método para superar ções centrais defendidas pelo texto como algum tipo de resposta a ou opinião
dificuldades pontuais em textos. Praticado sistematicamente, o fichamento al- justificada sobre o horizonte problemático que motivou a escrita. Às vezes, a
tera qualitativamente os padrões gerais de compreensão dos textos. Estudando tese pode ser capturada como uma sentença; no entanto, é mais comum que a
seriamente textos centrais de disciplinas ou campos teóricos, o leitor aprende a posição defendida no texto seja composta por diferentes subtemas, que devem
reconhecer a complexidade dos temas de cada área e, talvez mais decisivamente, ser cuidadosamente reconstruídos pela leitura. Por fim, a argumentação, em
habilita-se a exercer, mesmo se modestamente, as principais operações lógicas sentido lato, é o caminho geral construído no decurso da exposição para sus-
pelas quais os campos teóricos se desenvolvem. tentar a posição ali assumida.
156 • Leitura eEscrita de Te tos Argumentativo
Estratégi,as de Leitura li - Fichamentos de Estrutura Expositiva • 157
__,
_
• Qual o problema central enfrentado pelo texto?
• Qual a tese/ posição proposta pelo texto?
• Qual a argumentação oferecida para sustentar a tese/posição?
também lhe serão úteis, como veremos, para a produção textual. É por isso que
se recomenda, na elaboração das fichas sintéticas, evitar longas citações. O leitor
deve se esforçar por formular com as próprias palavras o entendimento global
do texto. A ficha sintética marca, por assim dizer, o ápice da reconstrução do
Sugere-se que se escreva uma ficha própria para essas questões, a qual deve sentido em pauta: o texto foi lido, anotado, analisado em suas partes e subpartes,
então ser anexada às fichas detalhadas do texto correspondente. Formulemos um e então o leitor se capacita para exprimir autonomamente o resultado desse lento
exemplo desse exercício com o trecho de Kant temos empregado neste capítulo. processo de assimilação. Se se consegue formular de modo rigoroso, por meio
Para fins didáticos, vamos responder às questões-guia do fichamento sintético de paráfrases cuidadosas (que evitem o plágio), o movimento expositivo global
limitando-nos somente aos quatro parágrafos citados do texto. do texto conforme os três grandes articuladores lógicos empregados, então se
sedimenta uma apropriação duradoura do sentido lido, com a qual o leitor passa
Quadro 5.12 - Ficha de estrutura expositiva (nível sintético) para o trecho estudado a contar como uma espécie de "instrumento de investigação" ao qual recorre
com segurança em discussões variadas acerca dos temas em questão.
Ficha de estrutura expositiva - ível sintético
estrutura expositiva, o leitor se obriga ar por as t ses dos autor m seu próprio ler colabore para a emancipação crítica do leitor, o que exige desvencilhar-se
movimento interno de justificação, de maneira a apr ciar a efi tiva força lógica metodicamente de prejulgamentos que poderiam impedir a compreensão da
das posições defendidas. Evita-se, con equentemente, a anteposição apr ssada efetiva força lógica dos textos estudados. A reconstrução isenta da estrutura
de juízos valorativos que poderiam inibir a compreen ão i enta da real comple- expositiva por meio dos fichamentos expostos é, sem dúvida, um elemento
xidade e força lógica das po ições estudada . marcante desse processo.
Buscar recuperar a po ição efetivamente defendida no te tos, conforme a É muito importante acentuar que os modelos de fichamentos propostos
estrutura expo itiva a ele imanente é tal z a tapa lem ntar de todo estudo neste capítulo delimitam somente uma possibilidade de fixar e reconstruir o
formativo sério. e sa etapa o leitor e compram te a um afastamento mínimo conteúdo significativo lido. Outras formas legítimas de obter tal fim, inclusive
de sua próprias preferências e , aloraçõe , ao meno para fazer aparecer sem por esquemas gráficos tais como mapas conceituais e congêneres, simplesmente
distorçõe ou simplificaçõe eras po içõ alheias. E omente por meio des a não foram aqui avaliadas. Além disso, há boa margem de adaptação dos modelos
reconstrução rigoro a da po içõe alheia pode- e e perar participar produtiva- expostos conforme as particularidades do estudo em pauta. Cabe aos leitores
mente do debate acerca do temas em que tão. Sem reconhecer efetivamente testarem o método e proporem soluções mais adequadas para as circunstâncias
a complexidade das po içõe dás ica ou vigente acerca de um tópico, qualquer enfrentadas. Importa guiar-se por certo núc/,eo duro do trabalho de reconstitui-
proposta soaria ingênua e in uficiente. Por exemplo, caso se leiam mal textos ção da estrutura expositiva: divisão das grandes partes do texto, exibição das
clássicos sobre um assunto julgando-os ultrapassados e rapidamente oferecendo operações ilocutórias aplicadas ao conteúdo temático, retomada sintética do
propostas supostamente ino adoras, então se é facilmente refutado por colegas movimento expositivo global. Reconhecemos que esses tópicos admitem siste-
atentos à riqueza das posições estudadas, à luz da qual tais propostas perdem matizações por meio de práticas diferentes daquelas regidas pelos modelos de
abrangência ou mesmo relevância. Decerto, o processo formativo deve almejar mais fichamentos aqui explanados. Não é preciso, assim, tomar esses modelos como
do que a reposição isenta das posições clássicas ou atuais acerca de um tópico. A capa- fórmulas engessadas, e sim considerá-los como instrumentos de certa orientação
citação para contribuições autônomas na área de estudos em questão parece-nos o de trabalho, passíveis de aperfeiçoamentos e ajustes.
horizonte final de todo processo formativo. o entanto, é importante salientar: Por fim, uma sugestão bem prática. Os fichamentos de estrutura expositiva
não somente essa meta não exclui o trabalho de reposição elucidativa de obras se aplicam a unidades textuais completas, como artigos ou ensaios. No caso de
alheias (por exemplo, nada impede que um pesquisador publique, além de obras textos muito longos (livros), recomenda-se a aplicação do método para cada
com novas ideias, obras que busquem retomar, para fins didáticos, as principais capítulo. Então, com base nas fichas sintéticas dos sucessivos capítulos, cabe es-
posições clássicas de sua área de atuação) como de certa forma ela a pressupõe, crever uma ficha sintética global, que abarque o livro inteiro. Para tanto, deve-se
no sentido em que a construção de novas posições efetivamente elucidativas parte levar em conta os problemas, teses e argumentações localizados em cada capí-
de uma análise rigorosa das posições disponíveis até o momento, deixando então tulo e propor uma ficha que abranja o "problema geral", a "posição geral" e a
clara a relevância de sua perspectiva em contraste com aquelas já estabelecidas. "argumentação geral" do livro. Muitas vezes essa ficha final é consideravelmente
O exercício dos fichamentos de estrutura expositiva colabora então para longa, conforme a complexidade da obra estudada.
difundir uma orientação específica para qualquer processo formativo, segundo
a qual a sedimentação rigorosa de um repertório fundamental de posições e operações
5.4 EXERCÍCIOS
marcantes do campo de estudo em questão é uma etapa inescapável do desenvolvimento
intelectual. Fichar cuidadosamente os textos lidos revela o respeito por obras
marcantes da área estudada e torna o leitor primeiramente herdeiro de modos APLIQUE AS TÉCNICAS DE NOTAÇÕES E DE FICHAMENTOS AOS TRECHOS A SEGUIR.
particulares de pensar certos problemas teóricos ou práticos, para então, imbuído PROPONHA FICHAMENTOS DE ESTRUTURA EXPOSITIVA, PASSANDO PELOS
de um saber diligentemente construído, arriscar-se, se for o caso, a avançar em NÍVEIS EXPRESSO, DETALHADO E SINTÉTICO.
relação a alguns posicionamentos. Quando se leem descuidadamente textos
argumentativos, em relação aos quais se emitem prematuramente opiniões valo-
rativas tão peremptórias quanto rasas, então na verdade pouco se aprende, por
vezes a leitura servindo de mero pretexto para perpetuar preconceitos. Contra
esse tipo de leitura viciada, expõem-se neste livro estratégias para que o ato de
160 • Leitura e Escrita de Textos Argumentativos Estratégi,as de Leitura II - Fichamentos de Estrutura Expositiva • 161
Mas nas teoria politica e filo ófica , tal como na p oa que, embora usualmente não se ampare em penas tão extremas
sucesso põe à mo tra falhas e fraquezas que o fracas o pod ultar como são as da lei, deixa menos escapatória, penetrando muito mais
a vista. A noção de que o povo não preci a limitar eu pod r obr profundamente nos detalhes da vida e escravizando a própria alma.
mesmo talvez pareces e axiomática quando o governo popular ainda Assim, não basta a proteção contra a tirania da magistratura: é preciso
era apenas um sonho ou não pa ava d uma m n ão num livro também uma proteção contra a tirania da opinião e do sentimento
de história obre algum remoto pas ado. E e a no ão tampouco dominantes, contra a tendência da sociedade de impor como regras
se abalou muito com ab rraçõe tran itória como a da Rev lução de conduta, e por outros meios que não as penas civis, suas próprias
France a as piore das quai foram obra d um ou outro u urpador ideias e práticas aos que dela divergem, contra sua tendência de
e, de todo modo não faziam part do funcionam nt p rman nt tolher o desenvolvimento e, se possível, de impedir a formação de
das in tituiçõe populare endo mero el m nto de uma irrupção qualquer individualidade que não esteja em conformidade com seus
úbita e convul iva contra o de poti mo monárquico e ari tocrático. usos, e de obrigar que o caráter de todos seja talhado pelos moldes
las, com o tempo uma república democrática v io a ocupar grand do seu. Existe um limite à legitima interferência da opinião coletiva
parte da uperfície da terra e e fez sentir como um do m mbro na independência individual; e, para a boa condição dos assuntos
mai podem o da comunidade das naçõe · o governo el tivo, que humanos, tão indispensável quanto a proteção contra o despotismo
devia re ponder à nação ficou ujeito às ob ervaçõe críticas que olitico é situar esse limite e defendê-lo contra tais invasões. [ ... ]
incidem obre qualquer grande fato exi tente. Então se percebeu
que termo como go erno autônomo" e 'o poder do povo sobre si
b) DOUGLAS, M. & IsHERWOOD, B. O Mundo dos Bens. Para Uma AntrO'fJologi,a do
mesmo" não expre avam o erdadeiro e tado da questão. O 'povo"
que exerce o poder nem sempre é o me mo povo sobre o qual ele Consumo. Trad. P. Dentzien. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2004 [1979], cap. 1,
é exercido, e o dito "governo autônomo" não é o governo que cada pp. 51-56.
um exerce obre i mas o que todo o outros exercem obre cada Capítulo 1 - Por que as Pessoas Querem Bens
um. Além di so a vontade do povo, na prática, significa a vontade
da parcela mais numerosa ou mai ativa do povo, isto e, a maioria, O Silêncio na Teoria Utilitarista
ou daqueles que conseguem e fazer aceito como maioria; o povo, É extraordinário descobrir que ninguém sabe por que as pessoas
portanto, pode querer oprimir uma parte de seus integrantes, e é querem bens. A teoria da demanda está no centro exato, na pró-
preciso tomar precauções contra este como contra qualquer outro pria origem da economia como disciplina. E no entanto, duzentos
abuso de poder. Assim, a limitação do poder do governo sobre os anos de pensamento sobre o tema esclarecem pouco a questão. É
indivíduos nada perde de sua importância quando os detentores importante saber por que às vezes a demanda é estável, outras vezes
do poder devem responder regularmente à comunidade, isto é, ao se acelera com velocidade inflacionária e algumas vezes diminui
grupo mais forte dentro dela. Essa visão das coisas, recomendando-se enquanto as pessoas poupam em vez de gastar. Mas os economistas
tanto à inteligência dos pensadores quanto à inclinação daquelas cuidadosamente evitam a pergunta: por que as pessoas querem
classes importantes na sociedade europeia a cujos interesses reais bens? Chegam mesmo a considerar uma virtude não oferecerem
ou supostos a democracia é contrária, não teve qualquer dificulda- sugestões. No passado, demasiadas intromissões ilícitas da psicolo-
de em se estabelecer; e agora, nas reflexões políticas, "a tirania da gia causaram danos a seu aparato teórico. Esse dano foi, agora, a
maioria" geralmente vem incluída entre os males contra os quais a muito custo superado. O aparato pode responder a perguntas sobre
sociedade precisa se precaver. as reações dos consumidores a mudanças nos preços e nos rendi-
Como outras tiranias, a tirania da maioria de início despertou e mentos, se o período for curto e os "gostos" puderem ser tratados
ainda comumente desperta pavor, sobretudo quando opera por meio como dados, como o último e inexplicável fator da demanda que
dos atos das autoridades públicas. Mas as pessoas pensantes percebe- é utilizado para explicar tudo o mais. Nessa base academicamente
ram que, quando a própria sociedade é o tirano - a sociedade como restrita, a máquina pode moer poderosamente e muito fino. Mas
coletivo, acima dos indivíduos singulares que a compõem -, seus quando se chega a problemas de política, os câmbios teóricos se
meios de tiranizar não se restringem aos atos que ela pode praticar engrenam mal à realidade social. O calmo consenso demonstrado
por intermédio dos ocupantes dos cargos políticos. A sociedade pode pelos economistas nas questões de método econômico se dissolve
executar e de fato executa suas próprias ordens; e se emite ordens numa altercação eriçada quando surge uma grande crise econômica.
erradas em vez de certas, ou se emite alguma ordem qualquer em Se os economistas teóricos tentam ignorar o que faz com que o
coisas nas quais não deveria intervir, ela pratica uma tirania social consumidor se mova, há aqueles que não o deixam em paz. Am-
mais assustadora do que muitas espécies de opressão política, visto bientalistas e moralistas, e também economistas, quando envergam
164 • Leitura e Escrita de Textos Argumentativos
Estratégias de Leitura II - Ficharnentos de Estrutura Expositiva • 165
seu chapéu de 'aplicado", inve tem contra a ânsia d trutiva da A abordagem da higiene parece prometer uma definição ob-
sociedade de con umo. O próprio con umidor pod muito b m jetiva da pobreza, pois pode em geral mostrar que os pobres em
se sentir confu o. Quando e urpreend p gando mai móv i ou qualquer país têm taxas de morbidade piores do que as dos ricos.
comida, quase sem culpa nenhuma ele em parte apoia a vi ão do Mas a promessa é ilusória, pois não pode oferecer uma maneira
economista formal de que eu comportamento e bas ia na co- de definir a pobreza, que seja válida para as diversas culturas e que
lha racional. Usualmente não e toma por um idiota incon ciente, não seja contra-intuitiva. É verdade, essa ou aquela tribo é pobre
vítima fácil das tramas do publicitário , embora admita que o em objetos materiais, suas moradias têm de ser refeitas a cada ano,
outros po am ê-lo. Concorda qu , uma v z decidido a ter alguma suas crianças andam nuas, sua comida é deficiente em nutrientes,
coisa, e colhe entre marcas e leva em on id ração pr ço sua taxa de mortalidade é alta, mas essas indicações serão suficien-
do rendimento exatamente como dizem as apo tilas e colare . tes para capturar a noção de pobreza? Se o padrão de higiene for
Mas a vi ão do economi ta deixa muito a explicar. Muitas vezes utilizado isoladamente, a melhora das taxas de mortalidade durante
não é tanto a en ação de ter tomado uma deci ão mas d ter sido os últimos duzentos anos sugerirá que não há mais pobres na In-
levado pelo acontecimento . A coi a nova - o melhor aparador de glaterra. De fato, porém, estudos sobre a pobreza nunca saem de
grama ou o congelador maior - de alguma maneira se tornou, por moda mesmo nas sociedades industriais ricas, embora enfrentem
conta própria uma nece idade. Exerce eu próprio imperativo de um constrangedor problema de definição. Os padrões materiais sem
ser adquirida e ameaça que a casa, sem ela, regredirá ao caos de dúvida se elevaram: "Obviamente, mesmo aqueles que ocupam os
uma era mai primitiva. Longe de exercer uma escolha soberana, o níveis mais baixos da sociedade na Grã-Bretanha contemporânea
miserável consumidor, em geral, se sente como o dono passivo de desfrutam de um padrão de vida um tanto mais alto do que o dos
uma carteira de dinheiro, cujo conteúdo foi esvaziado por forças mais pobres na sociedade vitoriana há cem anos, e muito mais alto
tão podero as que fazem com que considerações morais pareçam do que em muitos países subdesenvolvidos" 14. "As pessoas que neste
impertinentes. país são consideradas - ou se consideram - pobres hoje não o seriam
Qualquer vácuo suga seu próprio conteúdo. a ausência de uma necessariamente pelos padrões de vinte e cinco anos atrás ou pelos
descrição explícita, ideias implícitas sobre as necessidades humanas padrões de outros países" 15 . Que outros países? O critério da higiene
se infiltram, não percebidas, na análise econômica. Os dois princi- sugere aqueles assolados pela malária e sem saneamento público.
pais supostos se reforçam mutuamente, mas a combinação ainda é Muitos dos países que os antropólogos estudam são pobres por esses
dúbia. De um lado está a teoria higiênica ou materialista; do outro, a critérios materiais - não têm carpetes, nem ar-condicionado - mas
teoria das necessidades por inveja. De acordo com a primeira, nossas não se veem como pobres. Os nuer do Sudão nos anos 1930 não
necessidades reais, as mais básicas e universais, são nossas necessi- comerciavam com os árabes porque as únicas coisas que tinham
dades fisicas, as que temos em comum com o gado. Provavelmente para vender eram seus rebanhos de gado, e a única coisa que pode-
para evitar uma abordagem grosseiramente veterinária, uma curiosa riam querer era mais gado 16 . Como a abordagem materialista não
divisão moral aparece sob a superficie dos pensamentos da maioria pode se sustentar por si mesma, o economista é levado a dourá-la
dos economistas sobre as necessidades humanas; eles reconhecem com uma visão relativista que invoca uma teoria da inveja para su-
dois tipos de necessidades - as espirituais e as fisicas -, mas dão plementar o materialismo. "Pobreza é um conceito relativo. Dizer
prioridade às fisicas. Conferem a elas a dignidade de necessidades, quem está na pobreza é fazer uma afirmação relativa, como dizer
enquanto degradam todas as outras demandas à classe das carências quem é baixo ou pesado" 17 . Para explicar o descontentamento nessa
artificiais, falsas, luxuosas, até mesmo imorais. Luc Boltanski chama condição relativa, os economistas são levados a imputar aos objetos
a essa tendência de "maniqueísmo biológico" 13 . Essa famosa heresia de seu estudo sentimentos de cobiça e inveja. Por exemplo, Albert
dividiu o universo entre o mal- o baixo lado biológico da natureza Hirschman acredita num sentimento universal de inveja que pode
do homem - e o bem - o lado espiritual. Mas os economistas que ser suspenso pelo que chama de "efeito túnel" no começo de um
fazem a mesma divisão invertem extraoficialmente os sinais da processo de desenvolvimento econômico.
heresia, de modo que o biológico se torna o bem e o espiritual é
que não se justifica.
14. J. C. Kincaid, Poverty and Equality in Britain: A Study of Social Security and Taxation, Harmondsworth, Penguin
Books, 1973.
15. NationaJ Board for Price and Incomes, General Probl,ems of Low Pay (Report n. 169. HMSO), 1971.
16. E. E. Evans-Pritchard, The Nuer. The Political In.stitutions o/ a Nilotic People, Oxford, Clarendon Press, 1940,
13. L. Boltanski, "Taxionomies populaires, taxionomies savantes: les objets de consommation et leurs ment", p. 88.
Reuue Française de Sociologie, n. 1, 1970, pp. 33-34. 17. B. Abel-Smith e P. Townsend, The Poor and the Poorest, Londres, Bell, 1965, pp. 9-12 e 57-67.
166 • Leitura eEscrita de Te tos Argumentativos Estratégi,as de Leitura II -Fichamentos de Estrutura Expositiva • 167
a)
Capítulo 1 - Introdução
. ....
--·-· ..
- tamb •m poderia predommar em nosso pais, se as circunstâncias que
-
... ..
- -
- - . -
o encorajaram por algum tempo não se tivessem alterado.
4 Mas, nas teorias politicas e filosóficas, tal como nas pessoas, o
sucesso põe à mostra falhas e fraquezas que o fracasso pode ocultar
forma que o con entimento da comunidad ou de alguma à vista. A noção de que o povo não precisa limitar seu poder sobre si
de agremiação tida como repre entante do int r mesmo talvez parecesse axiomática quando o governo popular ainda
dade pas ou a er condição nece ária para algun do era apenas um sonho ou não passava de uma menção num livro
.. ,. . .
importante do poder gO\ernante. a maioria do paí de história sobre algum remoto passado. E essa noção tampouco
o poder dirigente e viu obrigado m maior ou m nor
ubmeter à p1imeira de as fom1 d limitação.Já com a gunda
,. ,. ,. ,.
,. ,. ,
se abalou muito com aberrações transitórias como as da Revolução
Francesa, as piores das quais foram obra de um ou outro usurpador
,. ,. .
i o não ocorreu; e as im por todas a parte , o amante da liber- e, de todo modo, não faziam parte do funcionamento permanente
dade e colocaram como principal obj tivo con eguir implantá-la das instituições populares, sendo meros elementos de uma irrupção
ou, quando lajá exi tia em alguma m <lida, implantá-la d man ira súbita e convulsiva contra o despotismo monárquico e aristocrático.
mai cabal. Enquanto o homen e cont ntaram m combater Mas, com o tempo, uma república democrática veio a ocupar grande
mutuamente como m1m1go e em er comandado por um enhor, parte da superfície da terra e se fez sentir como um dos membros
de de que tive em alguma garantia de maior ou menor eficácia
contra a tirania de te, não levaram uas aspiraçõe muito além di o.
mais poderosos da comunidade das nações; o governo eletivo, que
devia responder à nação, ficou sujeito às observações críticas que ,. ,.
.. . ..
,
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, ,. ,. ,. ,
3 Mas chegou uma época no progre o do assuntos humanos incidem sobre qualquer grande fato existente. Então se percebeu
Ap~a, ~
em que o homen deixaram de con iderar uma nece sidade natural Y\Â,,ftórí,av V\,ó" pode-Y que termos como "governo autônomo" e "o poder do povo sobre si
que eu governantes fo sem um poder independente, de interesses vep r~Ctt'wo- mesmo" não expressavam o verdadeiro estado da questão. O "povo"
contrário ao eu . Pen aram que eria muito melhor que os vários que exerce o poder nem sempre é o mesmo povo sobre o qual ele
magistrados do E tado fo sem s e u ~ o u delegados, é exercido. e o dito "governo autônomo" não é o governo que cada
que poderiam revogar quando qui e em. Parecia que apenas assim um exerce sobre si. mas o que todos os outros exercem sobre cada
poderiam ter plena egurança de que nunca haveria abuso de poder um. Além disso, ~ a prática, significa a vontade
em deoimento dele . Aos poucos, essa nova demanda por dirigentes da parce/,a mais numerosa ou mais ativa do povo, isto e, almaioriaJ
eletivos e temporários passou a ser o ~rincipal objetivg das pressões ou daqueles que conseguem se fazer aceitos como maioria; o povo.
do partido popular, onde ele existia, e superou largamente as tentati- portanto. pode querer oprimir uma parte de seus integrantes e é
----+-----
vas anteriores de limitar o poder dos dirigentes. Conforme avançava preciso tomar precauções contra este como contra qualquer outro
a luta para que o poder dirigente emanasse da escolha periódica abuso de poder. Assim , a limitação do poder do governo sobre os
feita pelos governados, alguns começaram a pensar que se atribuíra indivíduos nada perde de sua importância quando os detentores
excessiva importância à limitação do poder em si. Este parecia ser do poder devem responder regularmente à comunidade, isto é, ao
um recurso apenas contra dirigentes de interesses habitualmente grupo mais forte dentro dela. Essa visão das coisas, recomendando-se
contrários aos do povo. O que se pretendia agora era que os diri- tanto à inteligência dos pensadores quanto à inclinação daquelas
gentes se identificassem com o povo, que o interesse e a vontade classes importantes na sociedade europeia a cujos interesses reais
deles fossem o interesse e a vontade da nação. A nação não precisava ou supostos a democracia é contrária, não teve qualquer dificulda-
de proteção contra sua própria vontade. Não havia o receio de que de em se estabelecer; e agora, nas reflexões políticas, "a tirania da
viesse a tiranizar a si mesma. Se os dirigentes tivessem realmente de maioria" geralmente vem incluída entre os males contra os quais a
responder a ela, se ela pudesse removê-los prontamente, a nação sociedade precisa se precaver.
poderia lhes confiar o poder cujo uso seria ela mesma a ditar_ O 5 Como outras tiranias, a tirania da maioria de início despertou e
poder deles não era senão o poder da própria nação, conc_e_n_t_r_a d
_ o-+---- ainda comumente desperta pavor, sobretudo quando opera por meio
de uma maneira prática para ser exercido. Esse modo de pensar dos atos das autoridades públicas. Mas as pessoas pensantes percebe-
ram que. quando a própria sociedade é o tirano - a sociedade como I·. . . ,.
- ou melhor, talvez, de sentir - foi muito corrente entre a última
mcúorí.cv
geração do liberalismo europeu no continente, onde ele ainda pre- coletivo, acima dos indivíduos singulares que a compõem -, seus
domina claramente. Aqueles que aceitam alguma limitação ao que meios de tiranizar não se restringem aos atos que ela pode praticar
um governo pode fazer, salvo no caso de governos que se julga que por intermédio dos ocupantes dos cargos políticos. A sociedade pode
nem deveriam existir, destacam-se como luminosas exceções entre executar e de fato executa suas próprias ordens; e se emite ordens
os pensadores políticos continentais. E um sentimento semelhante erradas em vez de certas, ou se emite alguma ordem qualquer em
170 • Leitura e&crita de Textos Argumentativos Estratégias de Leitura II - Fichamentos de Estrutura Expositiva • 171
direito cuja violação legitimaria r b liõe e po teriorm nte con tituíram- governos com- apoia a visão do economista formal de que seu comportamento
posto por repre entante eleito para mandato temp rário. P r b u- ntão qu om nte se baseia na escolha racional. Usualmente não se toma por um
i o não impediria a' tirania da maioria" (a opr ão d part d po o p la pare la d mi- idiota inconsciente, vítima fácil das tramas dos publicitários, em-
nante). E a tirania e exerce não om nt por ato político , mas por impo ição d r gra bora admita que os outros possam sê-lo. Concorda que, uma vez
de conduta uniformizante . É preci o limitar a int rfi rA ncia das opiniõ col ti obr a decidido a ter alguma coisa, escolhe entre marcas e leva em con-
independência individual. sideração preço e nível dos rendimentos, exatamente como dizem
Qual a m-gumentação oferecida para ustentar a t e/posição? as apostilas escolares. Mas a visão do economista deixa muito a
Incialmente o tema é delimitado cone itualm nt e m guida há uma re on trução in- explicar. Muitas vezes não é tanto a sensação de ter tomado uma
tética da oluçõe hi tóricas ao ri co d abuso d pod r, o qu r laria qu o problema decisão, mas de ter sido levado pelos acontecimentos. A coisa V(¾-Cre-vemt ~
oluçõe clá ica do dir ito civi básico e da nova - o melhor aparador de grama ou o congelador maior - de o- ~ pcu,-ece, ~
da opre ão da maioria não e re olv com ímpor
repre entação política. alguma maneira se tornou por conta própria uma necessidade.
Exerce seu próprio imperativo de ser adquirida e ameaça que a
casa, sem ela, regredirá ao caos de uma era mais primitiva. Longe
b) ote que a fle ·ão do rbo ilocutório e tá na terceira pessoa do plural,
de exercer uma escolha soberana, o miserável consumidor, em
autore do texto. geral, se sente como o dono passivo de uma carteira de dinheiro,
cujo conteúdo foi esvaziado por forças tão poderosas que fazem
com que considerações morais pareçam impertinentes.
O Silêncio na Teoria tilitarista
3 Qualquer vácuo suga seu próprio conteúdo. Na ausência de
1 É extraordinário de cobrir que ninguém sabe por que as uma descrição explícita, ideias implícitas sobre as necessidades hu-
pessoas querem bens. A teoria da demanda está no centro exato, manas se infiltram, não percebidas na análise econômica. O s S
na própria origem da economia como di ciplina. E no entanto, ~ s u p o s t o s se reforçam mutuamente, mas a combinação
duzentos ano de pen amento obre o tema esclarecem pouco ainda é dúbia. De um lado está a teoria higiênica ou materialis
a que tão. É importante saber por que às vezes a demanda é do outro, a eoria das necessidades De acordo com a
e tável, outra vezes se acelera com velocidade inflacionária e primeira, nossas necessidades reais, as mais básicas e universais,
algumas vezes diminui enquanto as pe soas poupam em vez de são nossas necessidades físicas, as que temos em comum com o
gastar. Mas os economistas cuidadosamente evitam a pergunta: gado. Provavelmente para evitar uma abordagem grosseiramente
por que as pessoas querem bens? Chegam mesmo a considerar veterinária, uma curiosa divisão moral aparece sob a superficie dos
uma virtude não oferecerem sugestões. o passado, demasiadas pensamentos da maioria dos economistas sobre as necessidades
intromissões ilícitas da psicologia causaram danos a seu aparato humanas; eles reconhecem dois tipos de necessidades - as espiri-
teórico. Esse dano foi, agora, a muito custo superado. O aparato tuais e as fisicas -, mas dão prioridade às fisicas. Conferem a elas
pode responder a perguntas sobre as reações dos consumidores a a dignidade de necessidades, enquanto degradam todas as outras
mudanças nos preços e nos rendimentos, se o período for curto demandas à classe das carências artificiais, falsas, luxuosas, até mes-
e os "gostos" puderem ser tratados como dados, como o último mo imorais. Luc Boltanski chama a essa tendência de "maniqueísmo [S~fy~
19'1-0]
e inexplicável fator da demanda que é utilizado para explicar biológico" 21 . Essa famosa heresia dividiu o universo entre o mal - o
tudo o mais. essa base academicamente restrita, a máquina baixo lado biológico da natureza do homem - e o bem - o lado
pode moer poderosamente e muito fino. Mas quando se chega espiritual. Mas os economistas que fazem a mesma divisão invertem
a problemas de política, os câmbios teóricos se engrenam mal extraoficialmente os sinais da heresia, de modo que o biológico se
à realidade social. O calmo consenso demonstrado pelos eco- torna o bem e o espiritual é que não se justifica.
nomistas nas questões de método econômico se dissolve numa 4 A abordagem da higiene parece prometer uma definição ob-
altercação eriçada quando surge uma grande crise econômica. jetiva da pobreza, pois pode em geral mostrar que os pobres em
2 Se os economistas teóricos tentam ignorar o que faz com qualquer país têm taxas de morbidade piores do que as dos ricos.
que o consumidor se mova, há aqueles que não o deixam em Mas a promessa é ilusória pois não pode oferecer uma maneira
paz. Ambientalistas e moralistas, e também economistas, quando de definir a pobreza que seja válida para as diversas culturas e que
envergam seu chapéu de "aplicado", investem contra a ânsia des- não seja contra-intuitiva. É verdade, essa ou aquela tribo é pobre
trutiva da sociedade de consumo. O próprio consumidor pode
muito bem se sentir confuso. Quando se surpreende pegando
mais móveis ou comida, quase sem culpa nenhuma, ele, em parte, 21. L. Boltansk.i, op. cit., 1970, pp. 33-34.
174 • Lei,tura e Escrita de Textos Argumentativo Estratégi,as de Leitura II - Fichamentos de Estrutura Expositiva • 175
em objeto materiai , uas moradias têm de r r fi itas a cada ano, estava, eu me sent..irei pior do que antes, porque minha posição relativa
declinou 26.
suas crianças andan1 nuas sua comida ' d fi i nte m nutri nt ,
ua taxa de mortalidade é alta ma e indicaçõe rão ufici n- 5 O argumento, contudo, é muito fraco.
tes para capturar a noção de pobr za? o padrão d higiene for 6 Os antropólogos escreveram volumes e mais volumes sobre
utilizado i oladamente, a melhora d taJ as de mortalidad durant o tema da inveja. Seu trabalho de campo a impôs como alvo de
os último duzento ano ugerirá qu não há mai pobre na In- sua atenção. Sobre o que quer que escrevam - dádivas, bruxaria,
glaterra. De fato porém e tudo obr a pobr za nunca a m d demônios, zumbis, ancestrais ou política paroquial -, seu ponto de
moda me mo nas ociedade indu uiai ric embora nfr nt referência frequente é o medo da inveja, técnicas individuais de
um con trang dor probl ma d d finição. O padrõ materiai evitar a inveja, e éditos comunitários para controlar a inveja. Se os
dúvida e elevaram: "Obviamente m m aqu le qu ocupam o economistas pensam que a demanda de bens é influenciada pela
ní eis mai baixo da ociedade na Grã-Br tanha contemporân a inveja, então a antropologia é o lugar onde buscar o entendimento
de frutam de um padrão de vida um tanto mai alto do que o do dela 27 . Como veremos, diferentes tipos de organização social podem
mai pobre na oci da.d vitoriana há cem ano , e muito mai alto ser distinguidos segundo as técnicas de controle da inveja que
do que em muito paí e ubde envolvido "22. p oa que ne te empregam. O estado psicológico, não qualificado por diferenças ExpõewL, ~
paí ão con ideradas- ou e con ideran1 -pobre hoje não o eriam institucionais, não basta para uma definição subjetiva da pobreza. d€/ ~ ev (..ywef_ev
como-{ai:or ~Uc-0.zDvo-
nece a.riamente pelo padrõe de vinte e cinco ano atrás ou pelo Qualquer um pode ser invejoso, seja rico ou pobre. Mas, se rejei-
padrõe de outro paí e 23 . Que outro paí e ? O critério da higiene tarmos a inveja e mantivermos o materialismo, seremos até certo
sugere aquele as alados pela malária e em saneamento público. ponto surpreendidos com o desejo humano irracional por finos
Muito do paí e que o antropólogos e tudam ão pobres por esses tapetes e cozinhas novas, da mesma forma como estranharíamos
critérios materiai - não têm carpete , nem ar-condicionado - mas que os cachorros pudessem querer tanto coleiras enfeitadas quanto
não e eem como pobres. Os nuer do Sudão nos anos 1930 não [Nuer: g,vupo- ébtico-] comida e exercício. Felizmente, os ares parecem estar mudando. [C~l.4,Ó;v ~ dw
comerciavam com os árabes porque as únicas coisas que tinham Titmuss escreveu: Gnxr'BY~ 1907-
-1973]
para vender eran1 eus rebanho de gado, e a única coi a que pode- Procuramos de maneira diligente encontrar as causas da pobreza entre os
riam querer era mais gado 24 . Como a abordagem materialista não pobres e não em nós mesmo [ ... ] nosso quadro de referência no passado
pode se sustentar por i mesma o economista é levado a dourá-la era muito estreito. O pensamento, a pesquisa e a ação focalizaram excessi- CU;Ct,Çdo-
com uma visão relativi ta que invoca uma teoria da inveja para su- vamente os pobres; a engenharia social relativa à pobreza foi assim abstraída
da sociedade 28 .
plementar o materialismo. "Pobreza é um conceito relativo. Dizer
quem está na pobreza é fazer uma afirmação relativa, como dizer
quem é baixo ou pesado" 25 . Para explicar o descontentamento nessa
Ficha da estrutura expositiva - Níveis detalhado e expandido
condição relativa, os economistas são levados a imputar aos objetos
de seu estudo sentimentos de cobiça e inveja. Por exemplo, Albert [ E ~ et-l.e,mão; Texto: Doucus, M . & lsHERWOOD, B. O Mundo dos Bens, pp. 51-56
1915 -2012]
Hirschman acredita num sentimento universal de inveja que pode
Primeira parte: Expõem incompreensão teórica e prática acerca do consumo (§§ 1-2)
ser suspenso pelo que chama de "efeito túnel" no começo de um
§ 1 - Os limites das teorias econômicas diante do consumo
processo de desenvolvimento econômico.
a) Formulam a constatação de partida: deve-se reconhecer que "ninguém sabe por que as
O efeito túnel opera porque o avanço dos outros fornece informações pessoas querem bens". Séculos de pensamento econômico centrado na teoria da demanda
sobre um ambiente externo mais benigno; a recepção dessa informação
não resolvem a questão.
produz satisfação; e essa satisfação supera, ou pelo menos suspende, a
b) Esclarecem a justificativa dos economistas: explicações psicológicas do consumo causa-
inveja. Embora há muito percebida como o menos tentador dos sete peca-
dos capitais, ao contrário da gula, do orgulho etc., não oferece qualquer ram outrora danos aos modelos econômicos. Daí que se veja até como uma virtude que não
alegria a seus detentores, a inveja é ainda assim uma emoção humana se explique o consumo. Com modelos restritos de demanda, pode-se compreender a reação
poderosa. Isso é atestado pelos escritos de antropólogos, sociólogos e eco- dos consumidores.
nomistas, que proclamaram, em geral de maneira independente, que, se c) Reconhecem a limitação dos métodos econômicos: em situação de crise política e social,
você avança em rendimentos ou em status enquanto eu permaneço onde
os modelos econômicos explicam mal a realidade e há grande discordância entre os teóricos.
§ 2 -A imposição prática do consumo c) Sugerem a abordagem antropológica para explorar O consumo: ignorar totalmente 0
a) Constatam as críticas ao con umo: economi ta teóricos no ral ign ram o con umo. fenômeno da inveja e manter o materialismo faz o consumo aparecer, muitas vezes, como
Contudo economi tas' aplicado ", bem como ambientali ta morali ta criticam os probl mas algo irracional.
da sociedade do con wno. c1) Usam uma citação de Titmuss para apontar o caminho reflexivo: é preciso revelar a
b) Con tatam a au ência de clareza do con umidor: o con umidor pode ntir confuso "engenharia social relativa à pobreza" e não somente focar nos indivíduos e seus sentimen-
em relação ao próprio con umo. Em parte parece eguir teorias conômica ac r a da racio- tos isolados.
nalidade da e colha (comparando pr o con iderando eu r ndimento ) . Ma i so não Questões-guia para síntese:
explica tudo poi em parte há uma n a ão d ter ido 1 vado pelos acont cim nto , e a
coi as con umid parecem e impor como n ce idad ( não orno frutos de uma e colha). Qual o probl,ema central enfrentado pelo texto?
De que forma explicar teoricamente por que as pessoas querem bens, isto é, consomem.
Segunda parte: E ·ibem e criticam p-, upostos e. plicativos do con uma (§§ 3-6)
Qual a tese/posição proposta pelo texto?
§ 3 - Dois pres upostos teóricos
a) Formulam um princípio e plicativo: um vácuo uga algo para er preenchido. Essa ima- Há uma tese por assim dizer "negativa", que consiste em mostrar que as teorias econômicas
gem sugere que na au Anda d d criçõ e ·plícita obre o consumo nas teoria econômicas tradicionais não explicam por que as pessoas consomem os bens. Os modelos econômicos
certas ideias implícitas preencherão e a lacuna. centrados nas escolhas racionais no máximo se aplicam a cenários restritos e pouco esclare-
b) ameiam o pre upo to teórico : o doi principai pre upostos, que e reforçam mu- cem situações de crise. Além disso, esses modelos não explicam o caráter de necessidade, de
tuamente, ão a teoria higiênica ou materialista e a teoria das necessidades por inveja. imposição do consumo tal como vivenciado pelos próprios consumidores. Segundo os autores,
c) Descrevem a teoria higiênica/ materiali ta: de tacam- e as necessidades físicas como bá- esses modelos pressuporiam teorias materialistas e da inveja acerca do consumo. As primeiras
sicas e universai , enquanto as outras demandas são tratadas como artificiais, secundárias (e buscariam medidas objetivas das necessidades materiais básicas que justificariam o consumo. No
entanto, não há consenso acerca do que é materialmente básico. Acrescentam-se então a essas
mesmo imorais) .
§ 4 - Os limites da explicação materialista e o papel da inveja
teorias aquelas da inveja, segundo as quais o sentimento de desconforto pela pobreza diante
a) Caracterizam a preten ão materiali ta: ênfase nas necessidades físicas permitiria fixar uma da riqueza alheia motivaria o consumo. Esse uso da inveja é rechaçado como simplificado e
definição objetiva da pobreza,já que mostraria, por exemplo, "que os pobres em qualquer país descolado das estruturas institucionais em que tal sentimento normalmente é reconhecido.
Abre-se espaço, em seguida, ao menos para esboçar a tese "positiva" do texto: cabe uma inves-
têm taxas de morbidade piores que as dos ricos" .
b) Criticam a teoria materialista: essa promessa de objetividade é ilusória, pois a definição tigação antropológica do con umo, que insira o tema da inveja no interior das estratégias de
de pobreza daí derivada não é universal nem intuitiva. Dados sobre necessidades físicas podem institucionalização de práticas sociais.
não ser suficientes para capturar a noção de pobreza. Afinal, a elevação histórica dos padrões Qual a argumentação oferecida para sustentar a tese/posição?
materiais não eliminou a percepção da pobreza nos países industrializados. Além disso, critérios Primeiramente, os autores buscam mostrar que o tema do consumo é insuficientemente trata-
materiais não são utilizados por alguns povos para mensurar a própria pobreza (ex.: nuer). do pelos modelos da economia clássica (focados em escolhas racionais). Em seguida, refutam as
c) Descrevem a teoria da inveja como complemento ao materialismo: uma vez que a teoria concepções implícitas de consumo em vigor em tais modelos (materialismo e teoria genérica da
materialista não esclarece por si só o consumo, alguns economistas acrescentam certa teoria da inveja). Por fim, reconhecem que a inveja pode ter um papel explicativo, sem o qual o consumo
inveja para suplementá-la: a pobreza é uma condição material relativa, a qual gera um desconten- se reduziria a algo irracional. Contudo, insistem em que é preciso remeter à antropologia como
tamento invejoso, capaz de motivar o processo de desenvolvimento econômico (via consumo); disciplina capaz de oferecer análises sociais esclarecedoras desse componente do consumo.
c 1) Citam A. Hirschman para ilustrar essa posição.
§ 5 - Avaliação do emprego teórico da inveja pelos economistas
a) Avaliam: o argumento apresentado acerca do papel da inveja como motor do consumo
é fraco.
§ 6 - Análise antropológi,ca da inveja
a) Destacam os trabalhos antropológicos: os antropólogos escreveram muitos volumes sobre
0 tema da inveja, o que os qualifica para esclarecer o tema aos economistas.
b) Expõem as dificuldades antropológicas do emprego comum da inveja (por economistas)
como fator explicativo da pobreza e do consumo: várias técnicas comunitárias de controle da
inveja estão ligadas a organizações sociais específicas. Desse modo, apelar para o sentimento
"inveja" sem qualificações institucionais é insuficiente para esclarecer a pobreza. Afinal, ricos
ou pobres podem ser invejosos.
6
ÜUTROS FICHAMENTOS
6.1 APRESENTAÇÃO
Pas emo a expor algumas t 'cnicas para capturar outro asp ctos con tituin- anterior, torna possível reconstruir as principais etapas da exposição. Entretanto,
tes da expo ição te tual. amo no focar no a p cto conceituais, argumentativos sem serem capazes de reconhecer os principais conceitos em vigência nessas
em sentido estrito e estilísticos do te to . Por fim apr ntaremo con id raçõe etapas (ainda que não sejam objeto temático, embora auxiliem na exposição dos
metódicas para que os leitores proponham comentário pessoais relevante obre o temas em pauta), os leitores por vezes se limitam a uma compreensão pouco
que foi lido. densa d~ posição global veiculada no texto. A análise da estrutura expositiva
recompoe o esqueleto mediante o qual o sentido se ordena no texto; por sua
6.2 FICHAMENTO DE ÁLISE CO CEITUAL vez, análises conceituais oferecem um preenchimento bastante enriquecedor das
etapas da exposição, pois permitem clarificar o escopo abrangido e as peculiari-
Por meio de e fichamento bu ca- e di criminar o entido e e clarecer o dades de sentido associadas aos conteúdos conceituais centrais em cada parte.
alcance de conceito centrai empr gado ou definido no correr da exposição. Antes de detalhar as técnicas concretas para análises conceituais, vale a
as fichas de e trutura e po iti a ao acompanhar a etapas da exposição de um pena algumas considerações gerais sobre conceitos. Simplificadamente, enten-
texto naturalmente erão explicitada vária op raçõ com conceitos. Porém, demos por conceitos categorias linguísticas que permitem articular casos em
nem empre a apreen ão e quematizada da funçõe ilocutória em um ficha- torno de aspectos comuns. Os casos em foco são dos mais variados tipos on-
menta detalhado ou as con iderações de um fichamento sintético abarcarão com tológicos: objetos, pessoas, propriedades, eventos, tomados em seus aspectos
detalhe as nuances conceituais utilizadas na exposição estudada. É verdade que uniformizantes; esses diferentes "seres" são aproximáveis em classes conceitu-
às vezes a posição geral defendida no texto é apenas uma delimitação específica ais, as quais são então reconhecidas por um termo ou expressão. É dessa ma-
de certo conceito, em relação ao qual, então, a reconstrução dos passos expo- neira, por exemplo, que o termo "animal" exprime um conceito que permite
sitivos é suficiente para compreender seu sentido e escopo. Mas esse não é o distinguir, por meio de alguns aspectos gerais, certos entes de outros entes
caso em muitos textos, nos quai diversos conceitos colaboram para a tomada de (que são então classificados por outros conceitos, tais como "mineral", "vege-
uma posição, mas não são exatamente o objeto temático desse posicionamento. tal"). Os conceitos estão, assim, entrelaçados ao uso classificatório ou genérico
Além disso, mesmo em casos em que a posição é certa elaboração conceitua!, de determinados termos linguísticos, sob os quais se associam inúmeros casos
há uso de conceitos auxiliares, cujo esclarecimento por vezes excede o âmbito dos temas estudados 1• Ora, muitos dos termos linguísticos genéricos têm um
de análise das fichas de estrutura expositiva. significado corrente bem delimitado, bastando, em muitos casos, conforme
É comum que na progressão expositiva de textos argumentativos conceitos mencionado no capítulo 4, recorrer a dicionários para esclarecer o alcance
operem sem que sejam delimitados com clareza por funções ilocutórias sequen- conceituai pretendido. Para esses casos de emprego de conceitos amplamente
ciais, o que poderia ser tranquilamente capturado pelas fichas de estrutura ex- partilhados e usados de forma consensual sem especificações técnicas detalha-
positiva. Sem dúvida, que certo conceito seja empregado para classificar certos das, normalmente não é preciso escrever fichas de análise. Contudo, como
casos é uma operação ilocutória facilmente capturável na análise da estrutura também vimos no capítulo 4, notáveis são os casos em que um conteúdo con-
expositiva. Porém, que um conceito ganhe determinado sentido em vez de ou- ceituai particular é elaborado no correr da exposição textual, de modo que a
tro, recobrindo uma gama de fenômenos em vez de outra são operações lógicas termos genéricos relativamente comuns ("valor", "liberdade", "história") é atri-
que requerem análises próprias. Em particular, deve-se destacar que, além de buído um sentido bastante específico, um sentido "técnico" relativo ao quadro
muitas vezes ocorrerem implicitamente, as operações de delimitação e aplicação teórico em que está inserido. É comum em textos argumentativos de filosofia
de conceitos encontram-se espalhadas em vários trechos (servindo a várias funções
específicas na exposição textual), não sendo, nesses casos, constituídas por pro-
gressões lineares de atos ilocutórios. 1. Embora as operações concein,ais remetam a possibilidades de generalização inscritas na própria linguagem,
não se deve concluir que apenas a cognição linguisticamente enformada apreende dados gerais. Conforme
É precisamente para assimilar conteúdos conceituais em sua particulari- bem nota D. Lohmar, inspirado em textos de E. Husserl,já na vida perceptiva antepredicativa há operações
dade, além de reunir suas ocorrências dispersas, que se propõem aqui fichas de de apreensão generalizantes. As experiência perceptivas se desenrolam segundo certas expectativas de
determinação do que é apreendido. E essas expectativas remetem a padrões genéricos daquilo que já é
análise conceitual. Por meio delas, busca-se formular claramente o conteúdo signi- conhecido. As experiência sensíveis não são, assim, inguJaridades absolutas, mas compostaS de aspecto
ficativo dos principais conceitos operantes no texto em estudo. Amiúde, sem uma reconhecidos como típicos. Em poucas palavras, as apreensões sensíveis subsomem fenômenos conforme sua
tipicidade genérica; des e modo, cumprem já operaçõe protoconceituais sem a participação de recurso
análise detida de alguns conceitos, a compreensão global do texto fica bastante linguísticos (Ver D. Lohmar, "Types and Habits. Habits and Their Cognitive Background in Hume and
prejudicada. A fixação do movimento expositivo, conforme visto no capítulo Husserl", 2014, pp. 48-63).
182 • Leitura e Escrita de Te tos Argumentativos
Estratég;i,as de Leitura III - Outros Fichamentos • 183
ou ciências a reelaboração conceitua! d termo g n, ri o corr nt , o quai referência. Em um emprego extensível do conceito, elucida-se a quais casos (do
não se reduzem mais a definiçõe le icai impl 2 • Também , comum a in- tipo ontológico em questão) o conceito se aplica. Por exemplo, ao afirmarmos "é
venção de novos termos ou e pr tendo m vi ta um alcanc conceitua! extremamente pobre quem vive com menos de um dólar por dia", distinguem-
inédito relativo aos problema tratado . Para ss últimos caso , a fichas de -se quais são os indivíduos abrangidos pelo conceito "pobreza extrema", ainda
análise conceitua! mostram-se um in trum nto ba tant útil de i t matização. que não se explicitem quais características delimitam o próprio sentido desse
O conteúdo conceitua! muitas eze e apr nta d maneira elíptica e inter- conceito3 • Por sua vez, essa explicitação se dá pela intensão do conceito, que de-
alada e cabe ao leitor organizar u ocorr"n ias m uma exposição ordena- limita seu sentido. Por exemplo, ao apresentarmos "pobreza extrema" como "a
da que explicite as virtude elucidativa dos cone ito operante no correr do situação em que faltam os meios materiais mínimos para garantir a sobrevivên-
texto. cia em sociedade", delimitamos o sentido do conceito em pauta. As noções de
É importante esclarecer que o propó ito da análise conceitua! não é intensão e extensão são fundamentais para qualquer análise conceituai. Caberá
somente fornecer definiçõe b m delimitada que e gotariam o sentido dos ao leitor distinguir se as ocorrências reconhecidas do conceito no texto lido
conceito ali em ação. Sob uma per pecti a lógica mais estrita, definições são referem-se aos aspectos significativos ou exemplificam a referência do conceito
sentença que e clarecem de tal modo o uso do termos em dúvida que nos (de modo exaustivo ou não).
trechos em que e es urgem seria po sível ubstitui-los pelas respectivas senten- Vale notar que quanto menos precisa é a intensão de um conceito, mais
ças definitórias. Há então nesses casos, equivalência linguística entre o termo ampla tende a ser sua extensão. Por exemplo, se entendemos por "política"
a ser definido e a sentença que o define, de maneira que o primeiro poderia "relações interpessoais visando ao estabelecimento de entendimento mútuo",
mesmo ser tomado como uma espécie de abreviação desta última. Por exem- então inúmeras interações, mesmo entre desconhecidos que se encontram oca-
plo, em muitos textos de física, "gás" é definido como "um estado da matéria sionalmente por minutos e partilham informações sobre endereços e direções,
sem forma e volumes fixos composto por moléculas ou átomos em movimento deveriam ser incluídas na extensão desse conceito. Porém, se reconhecemos
constante" e onde quer que aquele termo seja empregado em sentido geral, como "política" "relações profissionais entre agentes públicos tendo em vista
deve-se entender como seu sentido aquilo que a sentença definitória veicula. as questões do bem comum", então somente interações bem específicas entre
Embora desejável por sua notável precisão, esse tipo de definição por equiva- pessoas autorizadas devem ser incluídas no escopo do conceito. Por vezes, in-
lência linguística nem sempre é factível em relação a muitos conceitos densos tensões pouco precisas tendem a "banalizar" o conceito, uma vez que tantos são
empregados em textos filosóficos ou de humanidades em geral. Esses conceitos os casos recobertos pela extensão que pouca ou nenhuma especificidade teórica
envolvem vários aspectos significativos e níveis de aplicação, dificilmente havendo seu emprego acrescenta. Por outro lado, intensões altamente restritivas tendem
uma formulação definitória simples que capture todas suas nuances. Em termos a reduzir muito o âmbito de aplicação do conceito, deixando de fora casos que
de definições, o que se espera de uma análise de conceitos desse tipo é expor, intuitivamente seriam julgados como tomando parte da extensão do conceito
não exaustivamente, aspectos de sua "definição teórica", isto é, de seus modos ao menos em seu emprego comum. Os usos da noção de política mencionados
de uso tais como inseridos em uma perspectiva teórica mais ampla. Buscar-se-á, parecem exemplificar bem esses extremos: a primeira intensão é tão ampla que
nesses casos, distinguir as ocorrências do conceito (normalmente associadas ao dilui qualquer sentido específico da noção, praticamente identificada a "interação
termo ou expressão pelo qual comumente ele é reconhecido) e esclarecer, por social amistosa"; já a segunda parece delimitar excessivamente o conceito, uma
meio de notas em uma ficha, suas particularidades. vez que fenômenos normalmente associados ao campo das ações políticas (como
Para que esse esclarecimento seja frutífero, vale a pena guiá-lo por aspectos manifestações de grupos sociais por direitos etc.) seriam excluídos se se aceitasse
constitutivos dos conceitos em geral. Vamos discriminar ao menos dois deles: os que "política" recobriria somente ações de profissionais eleitos ou contratados
componentes básicos e as funções em que os conceitos são empregados. Em relação para tanto. Formular conceitos informativos, isto é, que veiculem significados
aos componentes, cabe distinguir quanto a cada conceito sua extensão e intensão. teóricos não banais, sem contudo excluir injustificadamente casos importantes
Por extensão, entende-se o escopo temático abrangido pelo conceito, isto é, sua de sua extensão, é uma meta comum em textos argumentativos. O leitor deve
2. Daí que seja comum em estudos de filosofia referências à "noção de liberdade em Hegel" ou "à noção 3. Esse exemplo é dado por G. Brun e G. Hirsch Hadorn em Textanalyse in den Wissenschaften, 2014, pp.
de liberdade em Merleau-Ponty" etc. 171-172.
184 • Leitura eEscrita de Textos Argumentativo
Estratég;i,as de Leitura III - Outros Fichamentos • 185
estar atento ao nível de precisão proposto para o conceito , d stacando os certos movimentos de moléculas e átomos capazes de gerar um tipo de
principais componentes inten ionai empr gado , corr pond nt m nte, o energia. O uso explicativo de conceitos supõe sua inserção em teorias
alcance extensional pretendido. complexas.
Além dos componente intrín eco ao cone ito cabe também atentar para
• Função comparativa: nessa função, os conceitos discriminam os casos
as Junções por eles e ercida no trecho m qu ão mpregado . Um conceito
pertinentes a um domínio por meio de algum tipo de escala. Parte ou a
não é nece anamente u ado de uma ó man ÍI a di tinguir o modo de em-
totalidade do âmbito extensional do conceito é exposto em graus, con-
p reo-o é um do propó ito centrai da análi cone itual. eguir, numeramos
b . forme a maior ou menor exibição das características pertinentes para a
as principai funçõe do conceito em t to argum ntat:J.vo :
classificação em foco. Nesta função, os conceitos não servem somente à
• Função descritiva: trata- tal ez do emprego mais básico de conceitos, distinção de certa região extensional via aspectos intensionais; trata-se de
pelo qual e tem m vi ta a circun crição de um domínio d: cas~s oferecer alguma hierarquização dos possíveis membros dessa região, em
apro imado conform certos aspectos significativos. Os conceitos sao vista do nível de efetivação desses aspectos. Por exemplo, relativamente
utilizados para capturar e tornar visív I c rto tipo de fenômeno (com ao conceito de "liberdade civil", é possível distinguir os países (e as épo-
base no aspectos uniforme de seus casos), de maneira a demarcar, de cas históricas) segundo o grau de respeito às suas condições, conforme
forma mai ou meno precisa, um âmbito de investigação teórica. vimos no trecho de Mill citado no capítulo anterior. Muitas vezes, em
Vale notar que esse uso descritivo dos conceitos raramente ocorre de função comparativa, os conceitos são associados a conceitos contrários,
de maneira a tornar mais eficaz a construção da escala de manifestação
forma isolada. A delimitação de uma classe temática por um conceito
dos aspectos em pauta. Nesse sentido, o limite inferior do domínio da
normalmente implica especificações conceituais de fenômenos próxi-
"liberdade civil" se demarca pelo domínio do "despotismo", o qual, por
mos ou mesmo contrários. Por exemplo, o conceito de "objetividade"
sua vez, também é explorável em termos de graus. Além disso, é possível
remete, ainda que por contraste, àquele de "subjetividade", além de se
conceituar os fenômenos em termos de exibição proporcional de aspec-
desdobrar, conforme diferentes critérios, em níveis de realização, como
tos conceituais contrários. Por exemplo, os países exibem graus maiores
"pré-objetividade", "supraobjetividade" etc. Além disso, vale notar qu~ ~
de liberdade civil e menores de despotismo ou, de modo contrário, são
fixação da função descritiva de alguns conceitos pressupõe a operat:J.vi-
classificáveis como muito mais despóticos do que livres etc.
dade de conceitos menos abrangentes, sobre os quais os conceitos mais
genéricos são construídos. Por exemplo, o conceito gl~bal "consciê,ncia" • Função valorativa/prescritiva: nessa função, um conceito não apenas
inclui sob si conceitos que descrevem atividades consoentes espeoficas, demarca um âmbito extensional, mas envolve sugestões diretivas (via
tais como "vontade", "percepção", "imaginação". Em suma, muitas são aspectos intencionais) para quem os emprega. Esse tipo de função se
as relações entre conceitos (contraste, complementação, subordinação deixa comumente notar em discussões deliberativas, nas quais são cen-
etc.), de modo que a circunscrição de um deles comumente leva já ao trais as decisões tomadas acerca dos temas em estudo. Por exemplo, em
uso de conceitos adjacentes. função prescritiva, não importa servir-se do conceito de 'Justiça" somente
para distinguir que tipo de situação, em geral, deve ser incluído em seu
• Função explicativa: nessa função, os conceitos não apenas delimitam um
escopo, mas sim aproximar certos casos dessa categoria tendo em vista
âmbito de aplicação, mas sintetizam um fator explicativo para os casos
maneiras de aplicar, de fazer valer para tais casos os critérios daquilo
da classe em questão. Trata-se de um uso relativamente comum em
que é justo. O que marca, assim, o emprego prescritivo dos conceitos é
discursos científicos. Por exemplo, em inúmeros textos de biologia, a
a promoção de certas atitudes específicas (seja de implementação, seja
conceituação de "seleção natural" não visa somente distinguir uma clas-
de evitamento etc.) diante de certas categorias temáticas.
se de casos uniformes, mas contribuir para a explicação da diversidade
da vida na Terra. Vale notar que muitos conceitos têm um uso menos Essas são as principais funções em que os conceitos são utilizados em textos
preciso em situações discursivas variadas, mas servem a explicações bem argumentativos. Um conceito pode prestar-se a diferentes funções ao mesmo
delimitadas em discursos científicos. É assim, por exemplo, que "calor" tempo, e cabe ao leitor distingui-las corretamente. Em geral, a discriminação das
remete, em contextos não técnicos, a sensações subjetivas; contudo, em funções e a exposição dos componentes dos conceitos já permitem a construção
sua função explicativa em uma análise física, esse conceito se refere a de análises bastante elucidativas.
186 • Leitura e Escrita de Te tos Argumentativos
Estratégias de Leitura III - Outros Fichamentos • 18 7
Uma vez e clarecido o componente da n ~li cone itual, como :5 - questão, "consumo". O resultado de nossa análise será limitado, pois certa-
tivamente proceder para produzi-la? De início o 1 itor d v decidir ant ou mente mais aspectos conceituais seriam elaborados nas próximas seções do
mesmo durante a leitura e val a pena e cre er análi e cone ituai ac rca do capítulo e no restante do livro. Nossa sugestão geral é que se escreva a análise con-
texto lido. É importante que e a deci ão eja tomada o quanto antes pois in- ceitua[ somente após a leitura da totalidade do texto em questão, de maneira a dispor
fluenciará a forma como a leitura ~ conduzida. Afinal erá preci o marcar ao de todas as ocorrências relevantes do conceito a serem então sistematizadas.
longo do texto as ocorrências do conceitos em vi ta e m eguida, finda a lei- Reconhecendo as limitações de uma análise circunscrita a um trecho de um
tura, retomares e trecho para con truir uma ficha sist matizando o conteúdo capítulo, pretendemos somente oferecer um exemplo simplificado desse tipo
ali e po to. S não e atenta para a ocorrência do conceitos durante a leitura, de fichamento.
então caso e queira compre ndê-lo mai detidam nte será preciso reler o Vamos fazer uma nova leitura do trecho e marcar os trechos em que 0
texto inteiro. Daí a importância d propor algum tipo de notação nas páginas conceito de "consumo" é desenvolvido. Adicionamos a numeração das páginas
(ou me mo anotar em uma ficha-índice) para sinalizar a ocorrência dos con- do livro, pois será importante reconhecer precisamente a fonte das informações
ceito e tudado . De e- e con id rar que normalm nte o emprego do conceito na ficha.
está as ociado ao termo que o e prime. Por e emplo, o conceito de liberdade
opera em um te to toda ez que o termo 'liberdade" é empregado no sentido Quadro 6.1 Leitura para elaboração da ficha conceitual, com marcação dos trechos em que o
conceitua! pertinente. Contudo, mesmo se raro, não se pode excluir que por conceito de "consumo" é desenvolvido
vezes aspecto conceituais importantes do tópico analisado sejam elaborados sem <p.5l>Capítulo 1 - Por que as Pessoas Querem Bens
que se use o termo correspondente (quando, por exemplo, termos sinônimos O Silêncio na Teoria Utilitarista4
servem à nomeação do conceito). Às vezes, é preciso reler alguns trechos com
É extraordinário descobrir que ninguém sabe por que as pessoas facop& do- C01'¼tMn&
cuidado para avaliar se é esse o caso. querem bens. A teoria da demanda está no centro exato, na pró- } ( Cv que.tn, ~ et,p'Uccv)
Há vários modelos para a ficha de análise conceitua!. É viável distinguir pria origem da economia como disciplina. E no entanto, duzentos
itens (aspectos intensionais, aspectos extensionais e funções) ou propor um texto anos de pensamento sobre o tema esclarecem pouco a questã?, É
corrido em que esses elementos sejam elaborados conjuntamente. Muitas vezes, importante saber por que às vezes a demanda é estável, outras vezes
se acelera com velocidade inflacionária e algumas vezes diminui
referências a outros conceitos se fazem necessárias, o que sugere multiplicar a
enquanto as pessoas poupam em vez de gastar. Mas os economistas
análise conforme o entrelaçamento dos principais conceitos operantes no texto
cuidadosamente evitam a pergunta: por que as pessoas querem
em pauta (por exemplo, na ficha sobre "liberdade" há remissão a outra ficha, bens? Chegam mesmo a considerar uma virtude não oferecerem
sobre "despotismo", e em ambas referências a "política", conceito analisado em sugestões. No passado, demasiadas intromissões ilícitas da psico-
uma terceira ficha etc.). Outro ponto importante para a escrita das análises logia causaram danos a seu aparato teórico. Esse dano foi, agora,
conceituais é o seguinte: deve-se distinguir o uso ou a elaboração dos conceitos a muito custo superado. O aparato pode responder a perguntas
sobre as reações dos consumidores a mudanças nos preços e nos
efetivamente propostos no texto e a menção a usos alternativos ou derivados
rendimentos, se o período for curto e os "gos<p. 52>tos" puderem
de posições adversárias. É comum que em um texto argumentativo o autor não
ser tratados como dados, como o último e inexplicável fator da
apenas proponha sua posição como um campo teórico isolado, mas o faça por demanda que é utilizado para explicar tudo o mais. Nessa base
contraste com posições concorrentes, o que o obriga a expor e a avaliar concei- academicamente restrita, a máquina pode moer poderosamente
tos que, por vezes, embora partilhem do mesmo nome, não são idênticos aos e muito fino. Mas quando se chega a problemas de política, os
que almeja estabelecer. O leitor deve saber distinguir os conceitos propostos no câmbios teóricos se engrenam mal à realidade social. O calmo
texto daqueles mencionados sob uma perspectiva crítica. Interessa esclarecer os consenso demonstrado pelos economistas nas questões de método
econômico se dissolve numa altercação eriçada quando surge uma
conceitos efetivamente operantes na exposição, ainda que para desenvolvê-los
grande crise econômica.
o autor tenha feito referências (por vezes bastante extensas e densas) a versões
rivais desses conceitos.
Retomemos aquela seção inicial do texto de Mary Douglas e Baron
Isherwood utilizado no capítulo anterior. Voltemos a ler aquele trecho, tendo 4. M. Douglas e B. Isherwood, O Mundo dos Bens. Para Uma Antropowgia do Consu11w, 2004 [1979], cap. 1,
como objetivo, agora, capturar o desenvolvimento do conceito central ali em pp. 51-56.
188 • Leitura e Escrita rk Textos Argumentativos
Estratégi,as de Leitura III - Outros Fichamentos • 189
Se o economi tas teórico tentam ignorar o qu faz om qu o heresia, de modo que o biológico se torna o bem e o espiritual é
con umidor e mova, há aquel qu não d ixam m paz. Am- que não se justifica.
bienta.li tas e morali tas e também economi tas quando nv rgam A aborda em da higiene parece prometer uma definição ob-
eu chapéu de 'aplicado inve tem contra a ân ia d truti a da
V0,C,(AÍ:e, u.m,, co-vu:euo-
jetiva da obrez pois pode em geral mostrar que os pobres em p r ~ pom-~
sociedade d con umo. O próprio con umidor pod muito b m qualquer país têm taxas de morbidade piores do <p. 54> que as
e sentir confu o. Quando e urpr nd p ga.ndo mai m ' v i ou dos ricos. Mas a promessa é ilusória, pois não pode oferecer uma
comida quase em culpa nenhuma l m part apoia a vi ão do maneira de definir a pobreza, que seja válida para as diversas
economi ta formal de que eu comportam nto e baseia na e o- culturas e que não seja contra-intuitiva. É verdade, essa ou aquela
lha racional. ualmente não e toma p r um idiota inc n i nt tribo é pobre em objetos materiais, suas moradias têm de ser refei-
vítima fácil da muna do publicitário , mbora admita qu o ta a cada ano, suas crianças andam nuas, sua comida é deficiente
outro po am ê-lo. Concorda que uma vez decidido a t r alguma em nutrientes, sua taxa de mortalidade é alta, mas essas indicações
coi a, e colhe entr marca e 1 , m c n id ra ão pr ço 1 serão suficientes para capturar a noção de pobreza? Se o padrão
do rendimento xatam nt orno diz m a apo tila de higiene for utilizado isoladamente, a melhora das taxas de
Mas a vi ão do economi ta deixa muito a xplicar. Muita mortalidade durante os últimos duzentos anos sugerirá que não
não é tanto a en ação de ter tomado uma deci ão mas de ter ido há mais pobres na Inglaterra. De fato, porém, estudos sobre a
levado pelo acontecimento . A coi a nova - o melhor aparador de pobreza nunca saem de moda mesmo nas sociedades industriais
grama ou o congelador maior - de alguma maneira e tornou, por ricas, embora enfrentem um constrangedor problema de defini-
conta própria, uma nece idade. Exerce eu próprio imperativo de ção. Os padrões materiais sem dúvida se elevaram: "Obviamente,
er adquirida e ameaça que a casa em ela regredirá ao cao de mesmo aqueles que ocupam os níveis mais baixos da sociedade
uma era mai primitiva. Longe de exercer uma escolha soberana, na Grã-Bretanha contemporânea desfrutam de um padrão de
o <p. 53> mi erável consumidor em geral, e ente como o dono vida um tanto mais alto do que o dos mais pobres na sociedade
passivo de uma carteira de dinheiro cujo conteúdo foi esvaziado vitoriana há cem anos, e muito mais alto do que em muitos países
por forças tão podero as que fazem com que consideraçõe morais subdesenvolvidos" 6 . "As pe soa que neste país são consideradas -
pareçam impertinente . ou se consideram - pobres hoje não o seriam necessariamente pe-
Qualquer vácuo uga seu próprio conteúdo. a ausência de uma los padrões de vinte e cinco anos atrás ou pelos padrões de outros
descrição explícita, ideias implícitas sobre as necessidades humanas países"7. Que outros países? O critério da higiene sugere aqueles
se infiltram, não percebidas, na análise econômica. Os dois princi- assolados pela malária e em saneamento público. Muitos dos
pais supostos se reforçam mutuamente, mas a combinação ainda é países que os antropólogos estudam são pobres por esses critérios
dúbia. De um lado está a teoria higiênica ou materialista; do outro, a materiais - não têm carpetes, nem ar-condicionado - mas não se
teoria das necessidades por inveja. De acordo com a primeira, nossas veem como pobres. Os nuer do Sudão nos anos 1930 não comer-
necessidades reais, as mais básicas e universais, são nossas ecessi- ciavam com os árabes porque as únicas coisas que tinham para
~ as que temos em comum com o gado. Provavelmente vender eram seus rebanhos de gado, e a única coisa que poderiam
para evitar uma abordagem grosseiramente veterinária, uma curiosa querer era mais gado 8. Como a abordagem materialista não pode
divisão moral aparece sob a superfície dos pensamentos da maioria se sustentar por si mesma, o eco-<p. 55>nomista é levado a dourá-
dos economistas sobre as necessidades humanas; eles reconhecem -Ia com uma visão relativista que invoca uma teoria da inveja para
dois tipos de necessidades - as espirituais e as físicas -, mas dão suplementar o materialismo. "Pobreza é um conceito relativo.
prioridade às físicas. Conferem a elas a dignidade de necessidades, Dizer quem está na pobreza é fazer urna afirmação relativa, como
enquanto degradam todas as outras demandas à classe das carências dizer quem é baixo ou pesado" 9 . Para explicar o descontentamen-
artificiais, falsas, luxuosas, até mesmo imorais. Luc Boltanski chama to nessa condição relativa, os economistas são levados a imputar
a essa tendência de "maniqueísmo biológico" 5 . Essa famosa heresia aos objetos de seu estudo sentimentos d e ~ Por
dividiu o universo entre o mal- o baixo lado biológico da natureza
do homem - e o bem - o lado espiritual. Mas os economistas que
fazem a mesma divisão invertem extraoficialmente os sinais da
6. J. C. Kincaid, Poverty andEquality inBritain: A Study oJSocial Security and Taxation, Harmondsworth, Penguin
Books, 1973.
7. aúonal Board for Prices and Incarnes, General Probl.ems of Low Pay (Report n. 169. HMSO), 1971.
8. E.-E. Evans-Pritchard, The Nuer. The Political ln titutions of a Nilotic People, Oxford, Clarendon Press, 1940,
5. L. Boltanski, "Taxionomies populaires, taxionomies savantes: les objets de consommaúon et leurs ment", p. 88.
R.evue Française de Sociologi,e, n. 1, 1970, pp. 33-34. 9. B. Abel-Smith e P. Townsend, The Poor and the Pooresl, Londres, Bell, 1965, pp. 9-12 e 57-67.
190 • Leitura e Escrita de Te tos Argumentativos Estratégias de Leitura III - Outros Fichamentos • 191
exemplo Albert Hirschman acredita num ntim nto uni a fim de tornar bem visíveis os trechos de elaboração conceitua! levados em
inveja que pode er u pen o p lo qu chama de 'efi ito tún conta no fichamento.
começo de um proce o de de envolvim nto econômi o.
Quadro 6.2 - Ficha de análise conceituai de "consumo" elaborada a partir das marcações do
texto (quadro 5.1)
10. A. o. Hirschman, "The Changing Tolerance for Incarne Differences in the Course of Economic Develo-
6. 2.1 Conceitos em Textos Longos
pment", The Quarterly Joumal of Economics, n. 87, 1973, pp. 504-566. . . .
11. M. Douglas, Witchcraft Accusations and Confessions, Londres, Tavistock, 1970 (Assoc1anon of Social Anthro- Esse método simples para análises conceituais serve para textos relativa-
pologists Monograph n. 9).
12. R. M. Titmuss, Commitment to Weljare, Londres, Allen & Unwin, 1968, p. 68. mente curtos (artigos ou capítulos isolados). Para realizar análises similares em
192 • Leitura e Escrita de Texto Argumentativo
Estratégi,as de Leitura III - Outros Fichamentos • 193
obras vastas (livros completo ) , e rcício n c ária m p squisas mai aprofun- 2006. Os conceitos destacados não são aqueles expostos como fundamentais em
dadas sobre certo temas ou autores é preci o adaptar um pouco as t' cnica até várias seções do livro (como "mundo", "consciência", "orientação natural" etc.),
agora apresentadas. A grande diferença em relação a te to curtos é qu , no mas conceitos que operam em várias partes da exposição, ainda que não sejam
caso de livros inteiros muito mai con ito op rant são passíveis de análise, amplamente tematizados em nenhuma delas.
em relação ao quais há normalm nt ária ocorr"ncia intervaladas. Esse é um
fato comum que toma difícil a apr n ão cone itual ca o não haja preparação Quadro 6.3 - Índice de conceitos
estratégica para tal: ainda qu algun cone ito r c bam tratam nto privilegiado
em capítulo e pecífico muita 1 ão p rtin nt mente elaborados em Texto: HussERL, E. Ideias para uma Fenomenologi,a Pura e para uma Filosofia Fenomenológi,ca.
outras parte da obra em con õ vident com aqu le capítulo em que eram Índice de conceitos
centrai . Cabe então, e e alm ~a uma recon trução global de determinado con-
- horizonte: pp. 87-88, 104, 107, 113, 132, 151, 183, 187-189, 251, 253, 274, 314 e 366
ceito em uma obra e tar atento para as uas principais ocorrências em todo o - imagem: pp. 68, 102-103, 108, 122, 153-154, 230, 245-248 e 250
livro e não omente em çõ ou capítulos xplicitamente voltados a ele. Para - temporalidade: pp. 105, 168-170, 172, 184-187, 193, 228, 249-250 e 255-256
tanto, a melhor maneira é anotar durante a leitura um índice das ocorrências dos - linguagem: pp. 145, 147, 192, 220 e 275-283
conceito que e tem em vi ta. Li tam-se os conceitos e anota-se para cada um - eu puro: pp. 107, 109, 132-133, 149, 173, 182-184, 211, 213, 253, 267, 272-274 e 288
- irrefletido: pp. 107, 168, 171 e 256-257
o número da páginas em que aparecem no texto (seja como tema, seja como
instrumento operatório).
Vale notar que nem sempre já se sabe de antemão quais são os conceitos Nem todos esses conceitos foram listados antes da leitura, como se fosse
principai a serem rastreados durante a leitura. Alguns deles são óbvios devido possível prever tudo o que a obra discutiria. Na verdade, a maior parte dos con-
à proposta geral da obra, à divisão dos capítulos etc. Contudo, sugerimos que o ceitos listados no quadro 6.3 se fez notar durante a leitura (por vezes depois da
leitor culti e uma perspectiva de abertura em relação à teia conceitua! empregada terceira aparição), e exigiu releituras atentas para que suas ocorrências iniciais
no livro, de maneira a tomar-se sensível ao uso recorrente de certas noções, que fossem recuperadas. O índice, em sua versão final, está ordenado conforme a
então revelam um papel operativo marcante, ainda que não claramente previsto sucessão de ocorrências. Mas, nas primeiras notações, nem sempre a primeira
no início da leitura. Para julgar que um conceito é importante em função de ocorrência registrada é a primeira efetivamente contida no texto.
sua recorrência, o leitor já deve ter deparado com ele algumas vezes durante Deve-se ter clareza também sobre o caráter não exaustivo do índice de
a leitura 13 . Então será preciso fazer um esforço retrospectivo, voltando atrás conceitos. Pretende-se destacar os conceitos que exerçam papel central na ar-
nas páginas até encontrar as primeiras ocorrências e registrá-las no índice de ticulação dos temas da obra. Mas quais serão os conceitos destacados depende
conceitos. A análise de conceitos requer, desse modo, uma espécie de atenção da capacidade discriminatória do leitor e dos objetivos da leitura. Por vezes,
lateral à progressão expositiva, de forma a tomar visível a recorrência de aparatos o leitor está envolvido com algum projeto de pesquisa mais amplo, norteado
conceituais similares em trechos por vezes bem distantes entre si 14 • por questões teóricas específicas, o que favorece então que se busque salientar
Eis um exemplo de um índice de alguns conceitos considerados pertinen- certos conceitos em vez de outros. Não há, logo, critérios universais para gerir
tes durante a leitura de um livro. Trata-se da obra Ideias para uma Fenomenologi,a a discriminação dos conceitos operantes no decurso de um livro argumentati-
Pura e para uma Filosofia Fenomenológi,ca, de Edmund Husserl, lida na tradução vo. Trata-se de um exercício que comporta diferentes níveis de complexidade
para o português de Márcio Suzuki, publicada pela editora Ideias e Letras em e passível de repetição conforme o leitor julgue necessário aprofundar-se em
aspectos particulares do texto. Por exemplo, uma primeira lista privilegia os
conceitos centrais aos quais amplas seções são explicitamente dedicadas; já
13. É evidente que um conceito não é relevante em uma obra de modo proporcional às suas ocorrências.
uma segunda busca capturar conceitos operantes mais difusamente, que não
Conceitos pouco empregados podem ser decisivos em momentos-chave da exposição. Nesses casos, o leitor recebem tanto destaque explícito, embora contribuam para os posicionamen-
deve ser sensível à centralidade do papel operatório do conceito sem contar com múltiplas ocorrências
tos defendidos.
como pista de sua importância.
14. As versões eletrônicas dos textos normalmente oferecem funções de busca de termos, o que facilita bastante Finda a leitura do livro e completado o índice dos conceitos conside-
essa fase preliminar da análise conceituai. Como se vê, principalmente para pesquisas mais minuciosas,
complementar a leitura da versão impressa com o emprego de recursos contidos na versão eletrônica
rados pertinentes, inicia-se a etapa de construção das fichas. Caso haja mui-
pode ser produtivo. tas ocorrências, vale a pena selecionar aquelas que acrescentam conteúdo
194 • Leitura e Escrita de Textos Argumentativos
Estratégias de Leitura III - Outros Fichamentos • 195
informativo daquelas que apenas repetem a p cto cone ituais. M mo após prontos para ser percebidos num sentido primeiramente análogo ao
essa seleção, muitas podem er ainda a ocorrências rel ant do con eito da coisas a que não estamos atentos em nosso campo exterior de
em análise. Então é preci o e crever em uma folha à parte qual o conteúdo visão. Estas podem estar prontas para ser percebidas somente se já
temático de cada ocorrência de man ira a tornar vi ív 1 sua contribuição es- estamos de certo modo conscientes delas enquanto coisas para as
quais não atentamos, isto é, no caso delas, se elas aparecem. Nem
pecífica. Em seguida, e cre - e a ficha final d análi do cone ito, reunindo
todas as coisas preenchem essa condição: o campo de visão de mi-
as ocorrências em uma narrativa i temática e ntrada naqueles tópicos funda-
nha atenção, que abrange tudo aquilo que aparece, não é infinito.
mentai mencionado há pou o: a pecto int n ionai a p cto extensionais Por outro lado, o vivido irrefletido também tem de preencher
e funçõe . De carta-se então a ficha intermediária uma vez que apenas serviu certas condições para estar pronto para ser percebido, embora de
de guia para a organização final da análi e do conceito em vista. Por meio uma maneira inteiramente diferente e adequada a sua essência.
des a ficha intermediária monta- e o esqueleto' da e posição da ficha final, Ele não pode 'aparecer'. Como quer que seja, ele preenche essas
condições pelo mero modo do seu estar ali a saber para aquele
agrupando quai ocorrências tratam da inten ão, quai exemplificam a exten-
eu a que ele pertence cujo puro olhar de eu eventualmente 'nele'
são quai e clarecem as funçõ te. Vale notar que a ordem da exposição na
vive. Somente porque reflexão e vivido possuem essas peculiarida-
ficha final não preci a repetir a ordem das ocorrência durante a leitura, uma des de essência, aqui meramente indicadas, nós podemos saber
ez que e as erão citadas conforme os tópicos estruturais da análise conceitua!. algo sobre os vividos irrefletidos e, portanto, também sobre as
Note-se também que a e crita da ficha final não precisa se limitar somente aos próprias reflexões. É óbvio que as modificações reprodutivas (e
trechos marcados na ficha intermediária, mas pode recuperar outros aspectos retencionais) dos vividos possuem propriedade paralela, só que
modificada de forma correspondente."
da exposição em que os trechos estão inseridos.
Vejamos um exemplo desse tipo de trabalho. Vamos examinar o conceito p. 168: "Todo eu vive seus vividos, e nestes está realmente e inten-
de 'irrefletido', segundo as ocorrências marcadas no índice de leitura da obra cionalmente incluída uma variedade de coisas. Ele os vive o que não
Ideias para uma Fenomenologia Pura e para uma Filosofia Fenomenológica exposto no quer dizer que os tenha 'sob o olhar', a eles e àquilo que está incluso
quadro 6.3. Uma vez registradas as ocorrências, escrevemo-las em uma ficha, neles, nem que os apreenda no modo da experiência imanente ou
de uma intuição e representação imanente qualquer. Todo vivido
aproximando trechos por vezes separados por dezenas ou centenas de páginas.
que não se tem 'sob o olhar' pode, por possibilidade ideal, passar a
Em seguida, analisamos os trechos aproximados para distinguir ali os aspectos ser 'notado', uma reflexão se dirige a ele, ele se torna então objeto
extensionais, intensionais e funcionais dos conceitos. Os resultados são marcados para o eu. Igualmente assim se passa com os possíveis olhares do eu
na ficha final de análise do conceito. para os componentes do vivido e para suas intencionalidades (para
aquilo de que elas eventualmente são consciência). As reflexões são,
Quadro 6.4 - Ficha de análise de conceito de "irrefletido" mais uma vez, vividos e podem, como tais, tomar-se substrato de
novas reflexões e assim in infinitum, em generalidade de princípio.
Análise de conceito: irrefletido
Ao surgir de novo ao olhar reflexionante, o vivido efetivamente
Ficha intermediária -Agrupamento de ocorrências vivido a cada momento se dá como efetivamente vivido, como sendo
'agora'; mas não apenas isso, ele se dá também como tendo sido
p. 107: "É inerente ao modo de ser do vivido que um olhar de
há pouco, e porque não era notado, ele se dá justamente como tal,
percepção intuinte possa ser dirigido de maneira inteiramente
como tendo sido, mas de m a n e i r ~ a orientação natural
imediata a todo vivido efetivo, vivo como presente originário. Isso
é por si mesmo patente que os vividos não existem apenas quando
ocorre na forma de 'reflexão', na qual se deve notar o que tem de
estamos voltados para eles e os apreendemos em experiência ima-
próprio: o que nela é apreendido na forma de percepção se ca-
nente; que eles existiram efetivamente, e foram de fato efetivamente
racteriza por princípio como algo que não apenas é e perdura no
vividos por nós, se na reflexão imanente, no interior da retenção (da
interior do olhar perceptivo, mas que já era antes que esse olhar
recordação 'primária'), 'ainda' se tem 'consciência' deles como
se voltasse para ele. 'Todos vividos ocorrem com consciência',
tendo sido 'há pouco'."
isso significa, portanto, especialmente no que se refere ao vivido
intencional, que eles não são apenas consciência de algo e, como p. 171: "Antes de tudo é preciso ter claro que toda e qualquer
tais, não estão disponíveis apenas quando eles mesmos são objetos 'reflexão' possui o caráter de uma modificação de consciência, mais
de uma consciência reflexiva, mas que eles já se encontram ali de exatamente, de uma tal que pode ser experimentada em princípio
por toda consciência.
196 • Leitura e Escrita de Te to Argumentativos Estratégj,as de Leitura III - Outros Fichamentos • 197
Quadro 6.5 Ficha de análise conceitua! de "irrefletido", elaborada a partir da ficha intermediária
(quadro 6.4)
Texto: HussERL, E. Ideias para uma Fenomenologia Pura e uma Filosofia Fenomenológica.
Irrefletido
Aspectos extensionais: toda vivência (ou "vivido", conforme o termo privilegiado na tradução)
nível mai alto· no final, porém ocorre com consciência, mas não necessariamente com um "olhar" que se volta sobre si e
irrefletido e a eu dabilia reai ou intencionai . Ora por 1 i d [VcibiUw. ~ sabe explicitamente o que se vivencia. As vivências podem ser vividas de modo irrefletido, isto
e ência todo vivido pode p ar por modifi a õ refl xiva e em pcmíNe4--, aqulló- qUR/ é, sem serem efetuadas explicitamente por meio de um "saber" de si (p. 107). Mais especifi-
p()-(U/ }e,, d.ai1
diferente direçõe , que ainda conh c r mo com mai ·atidão." camente, podem ser vivências irrefletidas aquelas que compõem o "fundo" de experiência ao
qual não se atenta explicitamente (vivência incipiente) (pp. 107 e 256-257) ou aquelas que já
pp. 256-257: Ainda é importante t r em conta alguma ob rva-
passaram pelo olhar explícito do eu que as vive e caem em "obscuridade" (vivência já efetua-
çõe anterior . O cogito ~ em g ral a intencionalidad ·plícita.
da) (pp. 256-257).
O conceito de vivido intencional j á pr upõe a opo ição entre
potencialidade e atualidade, e i o em ignificação geral egundo Aspectos intensionais. as vivências são irrefletidas quando se desenrolam sem um retorno
a qual omente na pas agem para o cogito e plícito e na reflexão reflexivo sobre si. Estar consciente das vivências não equivale então a ter um saber explícito
obre o vivido não e plícito e eu componentes noético-noemáticos sobre elas (p. 168). Contudo, todas as vivências irrefletidas podem se tornar objeto do olhar
somos capaze de reconhecer que ele abriga intencionalidades ou reflexivo. Quando isso ocorre, elas sofrem uma modificação e se tornam vivências refletidas,
noemas que lhe ão próprios. sim, por exemplo, em relação à isto é, objeto de uma vivência em particular: a reflexão (p. 171). Essa modificação não é uma
con ciência daquele fundo para o qual não e atentou na percepção, transformação total, como se a vivência refletida nada mais tivesse a ver com seu "estágio"
na recordação etc., mas para o qual e pode po teriormente atentar. irrefletido: a vivência refletida se dá como tendo sido vivida há pouco, isto é, se dá como tendo
O vivido intencional explícito é um 'eu penso' 'efetuado'. Através sido vivência irrefletida {p. 168).
das mudanças de atenção, ele me mo também pode, no entanto, se
Funções. nos excertos analisados, há um emprego principalmente descritivo da noção de
converter em um eu penso' 'não efetuado' . O vivido de uma per-
"irrefletido", com ênfase em sua demarcação em relação a outros modos de consciência (o
cepção, de umjuízo, de um sentimento, de uma vontade efetuado refletido e o reflexivo).
não desaparece quando a atenção se volta 'exclusivamente' para algo
novo; isso implica que o eu 'vive' exclusivamente num novo cogito. Comentários gerais. o irrefletido é apresentado como um modo básico pelo qual as vivências
O cogito anterior 'se extingue ' , mergulha na 'obscuridade' , mas são conscientes. Trata-se das vivências em que o eu não "nota" o que está sendo vivido, não
sempre conserva uma existência de vivido, embora já modificada. "dirige um olhar" à própria experiência, que flui sem se tomar foco de atenção explícita. Esse
Da mesma maneira, cogitatianes assomam no fundo do vivido, ora modo de consciência se deixa modificar pela reflexão, que é uma vivência que tem como tema
na forma de recordação ou neutralmente modificadas, ora também outras vivências. Quando a vivência irrefletida é tematizada pela reflexão ela se modifica em
não modificadas. Por exemplo, uma crença, uma crença efetiva vivência refletida, isto é, vivência sob o "olhar" atento do eu que a vivencia. Ver fichas de análise
'incipiente'; já cremos, 'antes de sabermos'. Da mesma maneira, de REFLEXÃO, REFLETIDO.
sob certas circunstâncias, posições de prazer ou desprazer, desejos
e também decisões já são vivos, antes de 'neles' 'vivermos', antes Nesse exemplo, levamos em conta somente quatro ocorrências da noção
de efetuarmos o cogito propriamente dito, antes de o eu 'atuar' de "irrefletido" no livro de Husserl. Por meio da ficha intermediária, destacamos
julgando, sentido prazer, desejando, querendo." os trechos das ocorrências, tornando-os disponíveis para a análise. Relemos esses
trechos sem nos preocupar com a concatenação expositiva, mas somente buscan-
do explicitar o conteúdo conceitua! ali operante. Em seguida, sistematizamos os
aspectos conceituais explicitados em uma ficha final. Como se vê, trata-se de um
procedimento bastante trabalhoso. E deve-se considerar que certos conceitos apa-
recem muito mais que quatro vezes no correr das obras, o que obriga a estender
a ficha intermediária por diversas páginas. Em todo caso, com a construção da
ficha final de análise, obtém-se uma formulação relativamente condensada
dos principais aspectos do conceito espalhados em excertos independentes. Se
198 • Leitura e&crita de Textos Argumentativo Estratégi,as de Leitura III - Outros Fichamentos • 199
nos limitássemos aos aspecto conceituai e planado uc s ivam nt , d a defendidas. É esse sentido amplo que permite demarcar certos textos como ar-
maneira, capturáveis pelo fichamento da e trutura po iti a, tal z não abarcá - gumentativos: neles as partes de que a exposição se compõe cumprem a função
semos a riqueza conceitua! pre ente na obra. a rdad , para o nt ndim nto geral de constituir e legitimar posições acerca de determinada problemática
aprofundado de obras longa ugere-se o u o do doi métodos, de forma a tematizada. Esse sentido amplo de argumentação já foi, com efeito, objeto de
capturar os recursos conceituai tanto conform a lin aridade expositiva quanto uma estratégia específica de leitura, os fichamentos de estrutura expositiva, que
conforme certo acúmulo intervalado d refi r~ncia de envolvimentos parciais. identificam as etapas em que se constroem as posições defendidas. Em particular,
no fichamento sintético um dos articuladores lógicos que guiam a reconstrução
sintética da exposição é, como vimos, a "argumentação". Em relação a esse tó-
6. 2. 2 Considerações Finais pico, cabe ao leitor distinguir e nomear as principais operações ilocutórias que
organizam o texto. Como resultado, normalmente, diferentes tarefas expositivas,
A análi e conceitua! p rmit reconhecer com precisão os principais con-
tais como retomada histórica do problema, descrição de fatos, discussão de teses
ceito empregado no correr de um te to destacando seus aspectos e funções
alheias, exemplos, explorações conceituais, detalhamento de propostas etc. são
centrai. De a maneira evitam- e confu õe e apr en õe ingênuas dos conceitos
consideradas em seu papel argumentativo geral.
operante . Sem atentar para o trabalho por ezes lento e quase inaparente de
As técnicas expostas neste livro já oferecem alguns parâmetros de apreensão
delimitação do conceitos ao longo dos textos, o leitor arrisca-se a projetar certa
do caráter argumentativo dos textos lidos, ao menos em seu sentido lato. Entre-
compreensão indevida sobre o conteúdo conceitua! ali efetivamente vigente. Por
tanto, faltam ainda recursos analíticos para lidar com a argumentação em sentido
exemplo, se não se busca apreender as nuances conceituais propostas em uma
estrito. Esse uso estrito é marcado por estruturas linguísticas bem delimitadas, a
longa exposição sobre noções gerais como "consciência", 'Justiça", "ser", então
saber, os argumentos. Entende-se por "argumento" um conjunto finito de senten-
se pode automaticamente entender determinado sentido lexical comum sob o
ças entre as quais vigoram relações inferenciais bem determinadas: uma delas
uso desses termos, o que nem sempre captura o sentido técnico em ação no
(a conclusão) é sustentada logicamente pelas demais (as premissas), tornando-a
texto. A análise paciente de conceitos reconstrói ao menos em linhas gerais o
racionalmente aceitável. Em textos argumentativos, espera-se encontrar trechos
sentido específico com que são empregados na exposição, desvelando-os como
específicos em que argumentos são empregados parajustificar teses não óbvias,
instrumentos operatórios imprescindíveis para a montagem das posições defen-
mas centrais para a posição em foco. É verdade que, em sentido amplo, todas
didas. Reconstruir ao menos parte do conteúdo conceitua! vigente em um texto
as partes do texto argumentativo contribuem para a sustentação da posição, mas
oferece um caminho incomparável para avançar em seu entendimento, além de
não de modo tão claramente determinado em termos de relações inferenciais
fomentar em um novo nível aquele amadurecimento das próprias habilidades
quanto nos argumentos estritos. No limite, talvez se pudesse considerar todas as
cognitivas, marcante da leitura abrangente: o leitor não apenas aprende a repro-
partes do texto constituindo um grande argumento em defesa da posição central.
duzir as operações ilocutórias sucessivas, mas a empregar os conceitos centrais No entanto, além de praticamente inviável em muitos casos (já que haveria um
em um texto, os quais oferecem meios bastante sofisticados de aproximar-se de
número enorme de sentenças para analisar quanto às relações inferenciais), essa
e de refletir sobre os fenômenos tematizados. abordagem simplesmente despreza a riqueza expositiva da argumentação em
sentido lato. Afinal de contas, muitas partes do texto não pretendem valer como
6.3 FICHAMENTO DE ANÁLISE DE ARGUMENTOS suportes inferenciais diretos das sentenças que constituem a posição, mas sim
como aspectos contextualizadores do tema ou esclarecedores das particularida-
A perspectiva geral deste livro é propor estratégias de leitura voltadas para des da posição em contraste com posições alheias, entre tantas outras operações
textos argumentativos. O leitor poderia então pensar que todas as técnicas até importantes para estabelecer as teses defendidas. Parece-nos mais justo com a
aqui apresentadas já o capacitam a lidar bem com argumentos. No entanto, a estrutura expositiva do texto manter a especificidade da análise argumentativa
questão não se resolve assim tão simplesmente. Aconselha-se, neste ponto, uma em sentido lato, tal como capturada pelo fichamento sintético, ao lado do que
distinção, já usada em outras passagens do livro, entre um sentido lato e um agora vai se caracterizar como análise da argumentação em sentido estrito, isto
sentido estrito de argumentação. No sentido lato, a argumentação se confunde é, análise de argumentos, no sentido há pouco definido.
com O próprio movimento expositivo do texto, enquanto todas suas p~r~es, Não se deve pensar, no entanto, que esses dois níveis da análise argu-
de algum modo, contribuem para a elaboração e a sustentação das pos1çoes mentativa operam isoladamente. Afinal de contas, no interior do movimento
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expositi o global de um te to (a argum nta ão, m ntido lato) há tr chos em que o argumento se compõe de duas, três ou quatro sentenças, a relação
em que argumentos são desen olvido ora mai ora meno plicitamente. inferencial (oferecimento de suporte lógico) é relativamente fácil de apreender,
Dessa maneira no fichamento de e trutura po iti a ntr as várias tarefas e se deixa anotar no próprio quadro analítico do fichamento detalhado (algo
ilocutórias nomeadas, reconhecern-se os trechos em que o argumentos estritos operam. do tipo "o autor apresenta um argumento: a tese x é sustentada pelas premissas
Por vezes, no caso de argumento imples campo tos de poucas sent nça em w e z"). Contudo, muitos são os casos em que os argumentos são compostos de
relações inferenciais claras é cabí el recon truir u entido já no fichamento várias sentenças, entre as quais as relações inferenciais não são tão facilmente
detalhado. Porém principalm nt em aso d argum nto campo tos de várias apreensíveis. Nesses casos, como já dissemos, convém indicar no fichamento da
sentenças ordenadas em relaçõ infi renciai não vidente os recursos técnicos estrutura expositiva que o trecho será analisado em uma ficha própria.
dos fichamento de e trutura e po iti a não ão fino o bastante para tornar Uma grande dificuldade da análise é que a exposição narrativa do argumento
explícito eu funcionamento. o caso do ficham nto detalhado, por exemplo, nem sempre corresponde à operacionalidade inferencial ali vigente : lê-se a sequência de
o limite é indicar a função ilocutória de envolvida no trecho: diante de relações sentenças do texto e não se entende de imediato quais as relações de sustenta-
inferenciai comple a cabe indicar a operação ilocutória global ("apresenta ção lógica entre as sentenças (quais são as premissas básicas, quais as premissas
argumento") ali em ação. o entanto, no limites desse fichamento, não fica intermediárias, qual a conclusão), pois essas relações nem sempre espelham a
claro como elucidar es as relaçõe poi não se trata aqui de nomear novas fun- linearidade narrativa da exposição. O leitor deve então destrinchar, de início,
ções ilocutórias e im de de trinchar o modo como o argumento se constrói. no próprio texto lido, quais as relações inferenciais vigentes. Para tanto, é impres-
A operação ilocutória 'apre entar um argumento" envolve uma estruturação cindível destacar quais sentenças compõem o argumento, tarefa inicial da análise
específica que não remete a outras operações a serem notadas pelo fichamento, argumentativa estrita. Para facilitar essa tarefa, sugere-se que no próprio texto
mas às particularidades lógicas da concatenação das sentenças. cada sentença do argumento seja separada em colchetes, e que todas sejam
De e ficar nítido neste ponto que a análise de argumentos avança até numeradas, respeitando sua sequência narrativa. Além disso, muitas vezes, há
considerações altamente especializadas. a verdade, a amplitude das técnicas indicadores gramaticais das funções lógicas das sentenças, que devem ser circu-
lógicas para compreensão e avaliação de argumentos não será reproduzida no lados para facilitar o entendimento do trecho. Referimo-nos aqui às conjunções,
fichamento aqui em pauta. Mesmo para o tratamento não formalizado dos argu- advérbios ou expressões que indicam se as sentenças operam como premissas
mentos (tal como proporemos a seguir), há muitos detalhes que exigem estudo ou como conclusão de certo movimento inferencial. Os principais indicadores
sistemático e prática regular. Vamos nos concentrar somente em alguns recursos de premissas são:
analíticos elementares para o reconhecimento, a reconstrução e a avaliação dos
• Conjunções ou locuções conjuntivas explicativas e causais (na função
argumentos. Por meio deles, será possível construir fichas bastante informativas
de oferecer razões): pois, porque, dado que, uma vez que, já que etc.
nas quais se examinam as relações inferenciais de modo bem mais fino que a
mera indicação de sua ocorrência no fichamento de estrutura expositiva15 • • Advérbios e locuções adverbiais: afinal, com efeito, de fato.
De início, é preciso demarcar corretamente os trechos em que há argu- • Expressões que indicam fatos ou regras conhecidas no contexto da dis-
mentos. Isso já pode ser feito durante a leitura e apontado na ficha detalhada cussão: "é sabido que", "deve-se aceitar aqui que" etc.
da estrutura expositiva. A sugestão principal para bem reconhecer esses trechos • Conjunções e expressões que marcam uma somatória de elementos assu-
estritamente argumentativos é atentar para a intenção discursiva ali em ação: nos midos como bem estabelecidos no contexto da discussão: além disso etc.
argumentos, há a tentativa de oferecer suporte para uma sentença por si só não
evidente (a conclusão) por meio de outras sentenças (as premissas), supostamen- Por sua vez, os principais indicadores de conclusão são:
te mais seguras. Por vezes, como dito há pouco, esse exercício de justificação tem • Conjunções ou locuções conjuntivas conclusivas: logo, portanto, assim,
uma estrutura simples, do tipo "x é assim, pois w, z", deixando patente que w então etc.
e z oferecem suporte lógico para a aceitação de x. Nessas versões mais simples,
• Certas expressões que indicam decorrência lógica: "segue-se que",
"depreende-se que", "com base nisso, afirma-se que" etc.
René Descartes publicado em 1637 16 • Em prim iro lugar localiz mo no trecho duração de minha vida lhe permitam atingir. Pois já colhi dele tais
estudado entre outras funçõe ilocutória , a int n ão argum ntativa strita, fruto que, embora no juízo que faço de mim próprio eu procure
Narvat"'wCf/ p ~
isto é, o oferecimento de razõe para a su t nta ão d uma tes por si só não pender mais para o lado da desconfiança do que para O da pre- acerca,d,oi
sunção, e que, mirando com um olhar de filósofo as diversas ações , , . ~ ~ \IÍC{,,
evidente. mét:odo-
e empreendimentos de todos os homens, não haja quase nenhum
que não me pareça vão e inútil, não deixo de obter extrema satis-
Quadro 6.6 Localização da intenção argum ilocutória fação do progresso que penso já ter feito na busca da verdade e
R. Discw o do 1étodo. 2. d. Trad. J. Guin burg de conceber tais esperanças para o futuro que, se entre as ocupa-
e B. Prado Jr. ão Paulo bril ultural 1979 [1637] pp. 2 -30. ções dos homens puramente homens, há alguma que seja solida-
mente boa e importante, ouso crer que é aquela que escolhi.
Primeira Parte
4 Todavia, pode acontecer que me engane, e talvez não passe
)A~~
l O bom n o - a coi a do mundo m lhor partilhada, poi de um pouco de cobre e vidro o que eu tomo por ouro e diaman-
cada qual pen a e tar tão b m provido d 1 , que me mo o qu tes. Sei como estamos sujeitos a nos equivocar no que nos tange,
ão mai dificei de comentar em qualquer outra coi a não co - e como também nos devem ser suspeitos os juízos de nossos ami-
tumam de ejar tê-lo mai do que o têm . E não é era ímil que gos, quando são a nosso favor. Mas estimaria muito mostrar, neste
todo e enganem a tal re peito; m i o ante te temunha que o discurso, quais os caminhos que segui, e representar nele a minha
poder de bem julgar e di tinguir o verdadeiro do falso, que é pro- vida como num quadro, para que cada qual possa julgá-la e que,
priamente o que e denomina o bom en o ou a razão, é natural-
mente igual em todo o homen ; e, de tarte, que a diversidade de
nossas opiniõe não provém do fato de serem un mais racionais
informado pelo comentário geral das opiniões emitidas a respeito
dela, seja este um novo meio de me instruir, que juntarei àqueles
de que costumo me utilizar.
5 Assim, o meu desígnio não é ensinar aqui o método que cada
)cxp,~~"
do que outro , mas omente de conduzirmos nossos pen amentos
por vias diver as e não considerarmo as mesmas coisas. Pois não é qual deve seguir para bem conduzir sua razão, mas apenas mos-
suficiente ter o e pírito bom o principal é aplicá-lo bem. As maio- trar de que maneira me esforcei por conduzir a minha. Os que
res almas ão capazes do maiore vícios, tanto quanto das maiores se metem a dar preceitos devem considerar-se mais hábeis do que
virtudes, e os que só andam muito lentamente podem avançar aqueles a quem os dão; e, se falham na menor coisa, são por isso
muito mais se eguirem sempre o caminho reto, do que aqueles censuráveis. Mas, não propondo este escrito senão como uma his-
que correm e dele se distanciam. tória, ou, se o preferirdes, como uma fábula, na qual, entre alguns
2 Quanto a mim, jamais presumi que meu espírito fosse em exemplos que se podem imitar, se encontrarão talvez também
nada mais perfeito do que os do comum; amiúde desejei mes- muitos outros que se terá razão de não seguir, espero que ele será
mo ter o pensamento tão rápido, ou a imaginação tão nítida e útil a alguns, sem ser nocivo a ninguém, e que todos me serão
distinta, ou a memória tão ampla ou tão presente, quanto alguns gratos por minha franqueza.
outros. E não sei de quaisquer outras qualidades, exceto as que
servem à perfeição do espírito; pois, quanto à razão ou ao senso,
O detalhamento das funções ilocutórias permite localizar com precisão o
posto que é a única coisa que nos toma homens e nos distingue
dos animais, quero crer que existe inteiramente em cada um, e
principal excerto argumentativo estrito do trecho. Trata-se de todo o primeiro
seguir nisso a opinião comum dos filósofos, que dizem não haver parágrafo, que veicula um longo argumento. Também parece possível apontar
mais nem menos senão entre os acidentes, e não entre as formas ao menos mais um pequeno argumento no segundo parágrafo, no trecho de-
ou naturezas dos indivíduos de uma mesma espécie. nominado "reafirma o ponto de partida". Este segundo argumento parece mais
3 Mas não temerei dizer que penso ter tido muita felicidade simples e talvez pudesse ser tematizado em um fichamento detalhado da estrutura
de me haver encontrado, desde a juventude, em certos caminhos,
expositiva. Voltemos então nossa atenção para o primeiro argumento do trecho,
que me conduziram a considerações e máximas, de que formei
o parágrafo com o qual Descartes abre seu discurso. Esse é um caso típico do
um método, pelo qual me parece que eu tenha meio de aumentar
gradualmente meu conhecimento, e de alçá-lo, pouco a pouco, ao
que chamamos de argumento complexo: várias são as sentenças entrelaçadas de
mais alto ponto, a que a mediocridade de meu espírito e a curta maneira não óbvia, de modo que ao ler o trecho até reconhecemos a intenção
argumentativa ali presente, mas, sem algum aparato técnico, dificilmente apren-
deremos com segurança as relações inferenciais vigentes.
16. Devo o desenvolvimento inicial desse exemplo ao colega Caetano E. Plastino.
204 • Lei,tura e Escrita de Te tos Argumentativo
Estratégi,as de Leitura III - Outros Fichamentos • 205
essa reconstrução é o da unidirecionalidade do movimento inferencial: as passagens Texto: Descartes, R. Discurso do Método, primeira parte, § 1.
lógicas pelas quais o argumento se constrói têm uma só direção: partir das Excerto:
premissas básicas e chegar até a conclusão. É esse movimento que deve serre- 1-[0 bom senso é a coisa do mundo melhor partilhada],82-[cada qual pensa estar tão
construído pela ficha, principalmente em trechos argumentativos complexos, bem provido dele, que mesmo os que são mais dificeis de contentar em qualquer outra coisa
em que a narratividade não reflete a unidirecionalidade lógica. No exemplo não costumam desejar tê-lo mais do ue o têm].@3-[não é verossímil que todos se enganem a
tal respeito]; mas isso ante testemunha qu 4-[ o poder de bem julgar e distinguir o verdadei-
anterior, a conclusão não é o último passo da exposição, mas aparece em
ro do falso , que é propriamente o ue se denomina o bom senso ou a razão, é naturalmente
meio às premissas. A forma narrativa não revela, por conseguinte, como as in-
igual em todos os homens]; e, estarte que 5-[a diversidade de nossas opiniões não provém
ferências logicamente se desenrolam. Cabe então refazer na ficha o movimen- do fato de serem uns mais racionais do que outros, mas somente de conduzirmos nossos
to inferencial conforme sua unidirecionalidade intrínseca. pensamentos por vias diversas e não considerarmos as mesmas coisasl@-[não é suficiente
ter o espírito bom], mas 7-[o principal é aplicá-lo bem]. 8-[As maiores almas são capazes dos
maiores vícios, tanto quanto das maiores virtudes]; e 9-[os que só andam muito lentamente
206 • Leitura e&crita de Textos Argumentativos Estratégi,as de Leitura III - Outros Fichamentos • 207
podem avançar muito mai , e eguirem empr o caminho r to do que aqu 1 que correm a saber, a explicitação de sentenças implícitas em certas passagens inferenciais.
e dele e di tanciam].
Se simplesmente se ignora a vigência desses pressupostos na ordenação da
Sentenças reescritas: inferência, pode-se então considerar injustamente o argumento como muito
7. O principal é aplicar bem o espírito. mais fraco do que é. O que permanece implícito na exposição narrativa do
Diagrama: argumento continua a exercer um papel lógico importante, e cabe ao leitor
2+ 9 levar em consideração os pressupostos lógicos em operação a cada inferência
,.j, ,.j, ,.j,
para entender melhor o funcionamento do argumento em questão. O crité-
[l = 4] + 6 + 7
rio para a explicitação das sentenças implícitas pertinentes à inferência em foco é
.J,
a formulação da conclusão. Muitas vezes, a conclusão de uma inferência veicula
5
termos que não aparecem nas premissas ou avança certa relação entre os termos
que supõe uma relação anterior não formulada. Ora, esse tipo de pressuposto
principal con enção em relação ao diagrama é que seja exposto de cima normalmente não é explicitado devido a restrições de estilo. A formulação de
para baixo marcando a premi as bá icas na parte alta e a conclusão na parte todas as premissas tornaria o texto enfadonho ou excessivamente carregado.
mais baixa. Conforme mo tra o exemplo do quadro 6.8, por meio do diagra- Dessa maneira, é bastante comum que alguns pressupostos lógicos considerados
ma torna- e patente o papel lógico de cada sentença no argumento: quais as óbvios no contexto da exposição sejam deixados implícitos, cabendo ao leitor
premissas básicas (os números dos quais somente saem flechas), quais as pre- dar-se conta deles durante a leitura. Em uma análise mais detida do argumento
missas intermediárias (números que recebem flechas e dos quais também saem em análise, ainda que de maneira não exaustiva, é importante explicitar, na
flechas) e a conclusão (o número que apenas recebe flechas). Dessa forma, o forma de sentenças assertivas claras, os pressupostos vigentes, guiando-se para
diagrama recompõe em sua unidirecionalidade o movimento inferencial. Não tanto pela formulação da conclusão da inferência em pauta. Essas sentenças
é fácil capturá-lo somente pela leitura do excerto em sua forma narrativa. Ali, explicitadas no transcurso da análise devem ser acrescentadas ao diagrama, a
a conclusão aparece no meio do texto e recebe suporte direto tanto de uma fim de facilitar a compreensão da efetiva força lógica do argumento. Para não
premissa anterior como de outras posteriores à sua formulação. Há, desse modo, confundi-las com as sentenças inicialmente explícitas na narrativa textual, sugere-
um vaivém inferencial na forma narrativa que tende a confundir o leitor. Além -se indicar as sentenças implícitas por letras. Voltemos ao exemplo de Descartes
disso, as sentenças 1 e 4 veiculam praticamente o mesmo conteúdo significativo, e tornemos visíveis ao menos dois pressupostos em operação na inferência final
o que permite considerá-las equivalentes 17 . Como se vê, a análise cerrada do do argumento, o que permitirá complementar a ficha de análise:
argumento permite esclarecer esses tópicos, que provavelmente permaneceriam
duvidosos se tomados somente em sua exposição narrativa. Quadro 6.9 Ficha de análise de argumento e diagrama das relações inferenciais entre as sentenças
É óbvio que para gerar esse efeito clarificador, o método da diagramação que compõem o argumento, com formulação das sentenças implícitas
deve ser aplicado corretamente, o que exige estudo e treino. Deu-se aqui um Ficha de análise de argumento
exemplo bem-sucedido da aplicação do método, mas o leitor pode não obter
Texto: DESCARTES, R. Discurso do Método, primeira parte, § 1.
um resultado elucidativo similar em suas primeiras tentativas de uso. Sugere-se
Excerto:
mesmo que os esboços iniciais de diagramação sejam escritos a lápis, para que
1-[0 bom senso é a coisa do mundo melhor partilhada],82-[cada qual pensa estar tão bem
possam facilmente ser refeitos mediante algum ganho de entendimento do trecho
provido dele, que mesmo os que são mais dificeis de contentar em qualquer outra coisa não costu-
em análise, seja por releituras sucessivas, por consultas a obras de comentadores, mam desejar tê-lo mais do que o têm].©-[não é verossímil que todos se enganem a tal respeito];
por diálogos com outros leitores etc. mas€_ antes testemunha ~4-[o poder de bem julgar e distinguir o verdadeiro do falso, que é
Notemos que a reconstrução diagramática do movimento inferencial propriamente o que se denomina o bom senso ou a razão, é naturalmente igual em todos os ho-
entre as sentenças explícitas não encerra a exibição da força lógica global do mens]; e,~ que 5-[a diversidade de nossas opiniões não provém do fato de serem uns mais
racionais do que outros, mas somente de conduzirmos nossos pensamentos por vias diversas e não
argumento. A essa tarefa, deve-se acrescentar um segundo exercício analítico,
considerarmos as mesmas coisasJ.@6-[não é suficiente ter o espírito bom], mas 7-[o principal
é aplicá-lo bem]. 8-[As maiores almas são capazes dos maiores vícios, tanto quanto das maiores
virtudes]; e 9-[os que só andam muito lentamente podem avançar muito mais, se seguirem sempre
17. Outra maneira de marcar a equivalência de sentenças na análise é simplesmente atribuir a elas o mesmo
número . o caminho reto, do que aqueles que correm e dele se distanciam].
208 • Leitura e&crita de Texto Argumentativo
Estratégi,as de Leitura III - Outros Fichamentos • 209
B. Sem aplicar bem o e pírito pode- chegar a re ultad muito div rso . pela conclusão e, no segundo, se contribuem o bastante para isso, quer dizer,
se oferecem legitimidade para o escopo e o significado dos termos veiculados
Diagrama:
na conclusão.
2+3 9
.J, .J, .J, Por sua vez, a avaliação da força inferencial envolve conhecimentos técni-
(} = 4] + 6 + 7 + + B cos de lógica. De maneira bastante sucinta, as passagens lógicas entre sentenças
.J, (inferências) podem ser de dois tipos: dedutiva (quando há laço necessário entre
5 premissa e conclusão) e indutiva (quando o laço não é necessário). Para avaliar
Com a e plicitação d pr upo to , torna- e mais clara a passagem a dedutividade, supõe-se que as premissas são verdadeiras e busca-se determinar
das premi as originai para a conclu ão. Afinal, omente com o conteúdo das se a conclusão deve também ser necessariamente verdadeira. Caso se conceba
premi as 1, 6 e 7 não parecia ju ti.ficá el a formulação completa da conclusão. uma situação em que mesmo sob a assunção hipotética da verdade das premis-
sas a conclusão não se segue, então se formulou um contraexemplo à inferência.
Claramente De carte pre upõe que há di er idade de opiniões entre as pessoas,
algo tão óbvio que dispensa a formulação narrativa. Da mesma forma, parece Inferências dedutivas não aceitam contraexemplos de nenhum tipo; elas são
tecnicamente chamadas de válidas. Caso haja contraexemplos, o argumento é
haver urna as ociação implícita entre não usar bem o espírito e a diversidade de
indutivo. Alguns exemplos simples de silogismos permitem clarificar essas noções.
resultados obtidos acerca dos mais variados temas discutidos pelas pessoas. Tais
Consideremos de início o seguinte argumento:
pressupostos já atuam na inferência proposta pelo autor, sendo da responsabi-
lidade do leitor somente sua formulação explícita. Aliás, esse é o critério maior • 1 - Nenhum pássaro voa.
para o acréscimo de premissas implícitas na análise: só se deve acrescentar algo 2 - Alguns mc1cacos são pássaros.
e igido pela estrutura da inferência ( com base na formulação da conclusão). Na Portanto, 3 -Alguns macacos não voam.
dúvida e sob o risco de distorcer o argumento analisado, é melhor abster-se de
explicitar qualquer pressuposto. Para avaliar a validade da inferência, deve-se supor que as premissas são
verdadeiras e questionar se a conclusão delas se segue necessariamente. Este é o
caso do exemplo anterior: se se admitem as premissas, deve-se também admitir
6.3. 2 Avaliação a conclusão. Notemos, no entanto, que as premissas são claramente falsas. Isso
não é levado em conta na avaliação da força inferencial, mas obviamente deve
Completa-se, desse modo, a fase de reconstrução do argumento analisado: ser apontado na avaliação crítica das premissas. Esta é uma diferença central
as sentenças que o compõem foram expostas, e as relações inferenciais entre entre as subavaliações do argumento: para testar a validade de um argumento (a
elas, fixadas de maneira unívoca. Vale a pena ainda adicionar comentários gerais força das inferências), as premissas sempre são tomadas hipoteticamente como
acerca do argumento, de maneira a contextualizar sua função no movimento verdadeiras; já para a avaliação crítica das sentenças, deve-se buscar estabelecer
global expositivo do texto. Além disso, caso o leitor disponha de conhecimento o valor de verdade atual das premissas (se nas circunstâncias concretas do nosso
para tanto, cabe propor uma reflexão avaliativa acerca do aparente sucesso mundo são verdadeiras ou falsas). O exemplo deixa patente que um argumento
e dificuldades do argumento. A avaliação de um argumento se subdivide em pode ser válido e ainda assim composto por pontos de partida questionáveis. Dessa
considerações críticas às sentenças, em particular às premissas básicas, e em maneira, de forma global, não se trata de um bom argumento. A combinação
testar a força lógica das inferências. A primeira subavaliação não envolve gran- contrária também é possível, isto é, argumentos indutivos (que aceitam contrae-
des complicações. Trata-se de questionar se as sentenças que operam como xemplos) formados por premissas verdadeiras. Consideremos o seguinte exemplo:
pontos de partida são aceitáveis ou se são passíveis de críticas, seja porque seu
conteúdo é discutível ou duvidoso (não servindo, então, como ponto de partida • 1 - Todos os formandos em filosofia são estudantes de lógica.
supostamente seguro para a justificação da conclusão em vista), seja porque se 2 - Todos os formandos em matemática são estudantes de lógica.
trata de algo falso (quando, então, a premissa deveria ser abandonada ou no Portanto, 3 - Todos os formandos em matemática são formandos em
mínimo reformulada). As sentenças também são avaliáveis quanto à sua relevância filosofia.
21 O • Leitura e Escrita de Te tos Argumentativo Estratégias de Leitura III - Outros Fichamentos • 211
empregadas e, no caso das infer~ncias induti a , a plau ibilidad d ua apli- Comentários gerais:
cação contextual. Retornando à con trução da ficha de análi e, o 1 itor pode Descarte~ inicia seu texto com um argumento em que associa a diversidade de opiniões a um
tentar incluir comentários avaliativos do argum nto , e se entir eguro para emprego nao adequado das capacidades racionais, as quais considera bem distribuídas entre
tanto. Completemos a e po ição do exemplo de De cartes, ao adicionar esse as pessoas. Esse ponto prepara o caminho para a exposição de um método que, quando bem
seguido, favoreça resultados seguros.
item na ficha de análise:
Quadro 6.10 Ficha de análi e d argum nto com a inclu ão de com ntário avaliativo do Completa-se, assim, a ficha de análise de um argumento estrito. Por
argumento meio dela, fixa-se a operatividade inferencial vigente no trecho estudado, 0
Ficha de análi e de argumento que torna possível até mesmo arriscar alguns comentários avaliativos acerca da
Texto: DE CARTE R. Discu1 o do Iétodo primeira parte, 1. eficácia lógica do argumento. Sem esse trabalho analítico meticuloso, vários
trechos estritamente argumentativos de textos estudados podem ser assimila-
Excerto:
1-[0 bom en o é a coi a do mundo melhor partilhada],82-[cada qual pensa estar tão dos de forma confusa ou mesmo errônea. Sem dúvida, a construção correta
bem provido dele que me mo o que ão mai dificei de contentar em qualquer outra coisa de uma ficha argumentativa exige bastante treino, conforme já mencionado.
não co tumam de ejar tê-lo mai do ue o têm].&[não é verossímil que todos se enganem a Entretanto, seguindo os passos metódicos de reconhecimento, reconstrução e
tal respeito]; mas o ante te temunha qu [o poder de bem julgar e distinguir o verdadeiro avalição de argumentos aqui expostos, é possível de início ao menos enriquecer
do fal o que é propriamente o que e denomina o bom senso ou a razão, é naturalmente igual
a compreensão de trechos que muitas vezes seriam lidos sem que se revelasse a
em todo o homen ]; e , ~ que 5-[a diversidade de nos as opiniões não provém do fato de
complexidade inferencial ali contida. Aprender a lidar com a argumentação no
serem un mais racionais do que outros, mas somente de conduzirmos nossos pensamentos por
vias diversas e não considerarmos as mesmas coisas].@6-[não é suficiente ter o espírito bom],
sentido estrito capacita o leitor a destrinchar os núcleos lógicos dos textos e a
mas 7-[o principal é aplicá-lo bem]. 8-[As maiores almas são capazes dos maiores vícios, tanto entender de modo bem refinado como ocorre a sustentação das principais teses
quanto das maiores virtudes]; e 9-[os que só andam muito lentamente podem avançar muito defendidas na exposição.
mais, se seguirem sempre o caminho reto, do que aqueles que correm e dele se distanciam].
Assim, ao tratar dos recur os literários ou tilí ticos, não e propõe voltar- proeminência na formação básica em filosofia e em ciências em geral, são 0
-se para um conjunto de aspecto cundário m relação ao tema de envolvido, tratado (e formas dele derivadas, como o artigo) e O comentário. De certo
mas sim tornar visíveis as própria formas e pr i as de se de nvolvimento. modo, o fichamento da estrutura expositiva não é senão um recurso analítico
Ocorre que, por veze uma análi e mais detida de ses aspecto e pre sivos é para examinar um dos principais recursos expressivos do estilo tratadístico ou
decisiva para o entendim nto do texto em tudo. Afinal de contas, e o em- de comentário: a exposição paulatina, por meio do encadeamento de uma
prego de recur os e tilístico não é upérfluo ma compõe, em part , o próprio narrativa linear, de uma problemática reconhecida em geral como independente
tema, então cabe ao leitor e plicitar o pap l d e r cur os na e truturação das da prófrria escrita do texto, que vem então oferecer algum tipo de posicionamento
posiçõe defendidas. Em que medida certo tópico e prestam a r desenvol- coerente diante de tal estado de coisas. Não se trata de afirmar agora O que
vidos de modo mai produti o conforme certo parâmetros estilísticos? Ou, em recusamos há pouco, a saber, que haveria uma apreensão autônoma do tema
sentido in er o em que medida e e parâm tro parecem apropriados para a a ser posteriormente comunicada por certos recursos expressivos. O que ca-
formulação de determinados temas em detrimento de outros? Essas são questões racteriza o gênero tratadístico e de comentário é que o tópico aparece como
gerais sobre o papel dos recur o expre si o para as posições expostas no texto relativamente independente do texto que o apresenta. Ou, em outras palavras,
em vista. Vale con iderar que certo aspecto da e pressividade literária são tão os recursos expressivos do tratado e do comentário permitem caracterizar um
amplos que se deixam anali ar em relação a praticamente quaisquer textos. estado de coisas em relação ao qual a escrita do texto em questão é indiferen-
Entre ele , destacamo : te. O autor assume, nesse caso, uma posição relativamente destacada daquilo
que é narrado, e a exposição serve para tornar visível ao leitor certo estado
• A recorrência de alguns encadeamentos sintáticos.
de coisas cujos componentes estruturais pouco ou nada dependeriam dessa
• A extensão das sentenças. apreensão literária para serem o que são. Essas características talvez sejam ain-
• A riqueza do vocabulário. da mais marcantes no gênero do comentário, que busca esclarecer aspectos de
• O emprego de questões e exclamações. obras de outros autores, as quais são autônomas em relação a tais comentários.
• O emprego de figuras de linguagem. Em suma, no geral, o longo encadeamento de parágrafos e destes em seções
e em capítulos (marca expressiva do tratado) serve para reportar determinado
• Exemplos paradigmáticos.
estado de coisas diante do qual o autor se põe como um observador que con-
Recensear os principais recursos sintático-semânticos utilizados na cons- vida os leitores a partilharem de um ponto de vista semelhante. O movimento
trução literária do texto e então refletir sobre os modos como eles privilegiam expositivo constituído por parágrafos amplamente desenvolvidos e conectados
certa abordagem dos temas em contraste com outras possíveis, esse exercício de modo a explorarem paulatinamente sucessivos aspectos do tema circuns-
pode já constituir um tipo de fichamento. Por vezes, também é válido ampliar creve uma forma expressiva que constitui um ponto de observação, por assim
o escopo da análise de maneira a capturar marcas estilísticas globais, que per- dizer, destacado dos eventos narrados.
,,. ' 19
mitem classificar os textos analisados conforme a1guns generos expressivos . É importante reconhecer que, embora a forma expressiva tratadística tenha
Sob essa perspectiva, talvez não seja errado considerar que as principais estra- ampla proeminência nos contextos atuais de produção e circulação de textos
tégias de leitura expostas neste livro capacitam a leitura e o entendimento de científicos e filosóficos, a argumentação também se exerce sob outros estilos.
um gênero ou estilo literário de produção de textos argumentativos, a saber, Isso não é tão incomum se se considera em especial o domínio da filosofia, no
aquele do tratado e do comentário. As argumentações podem ser desenvolvi- qual, tanto historicamente quanto em momentos mais recentes, destacam-se
das em muitas formas literárias, para as quais as estratégias de análise devem obras seminais não submetidas aos cânones expositivos dos tratados, artigos e
ser ajustadas. E algumas das formas que têm recebido grande destaque his- comentários. Diálogos, cartas, solilóquios, diários, meditações, autobiografias são
tórico na exposição de posições argumentadas, além de ganharem enorme alguns exemplos de gêneros discursivos nos quais a argumentação filosófica se
desenvolveu no passar dos séculos. Não temos condição de enumerar as parti-
cularidades literárias de cada um desses gêneros; em todo caso, vale notar uma
19. Para uma análise bastante detalhada da questão dos gêneros expressivos dos textos filosóficos, ver B. Lang, característica global estilística presente em maior ou menor grau nesses gêneros,
PhilosofJhy and the Art o/ Writing: Studies in PhilosofJhical and Literary Styl,e, 1983 e B. Lang, The Anatomy of e que contrasta com a forma expressiva tratadística: muitos dos textos escritos
PhilosofJhical Styl,e: Literary PhilosofJhy and the PhilosofJhy of Lilerature, 1990, obras que, ao menos em parte,
inspiraram as reflexões a seguir. sob essas formas literárias não assumem o ponto de vista de um observador
216 • Leitura e Escrita de Textos Argumentativo
Estratégias de Leitura III - Outros Fichamentos • 217
relativamente destacado do estado de coisa a er r portado p la narrativa. Pelo em seu próprio uso (sem precisar de tematização explícita), a ausência de um
contrário, a forma narrativa con titui ao menos part da própria probl mática, ponto de vista central a ser construído e defendido no correr da exposição. De
isto é, os recursos expressi o não ser em apenas para tornar visível um estado maneira semelhante, em Investigações Fi/,osóficas, de Wittgenstein, há um recorrente
de coisas indiferente à expre são literária mas o modo literário de t matização exercício de colocação de perguntas em muitas das seções do texto, perguntas
deve ser levado em conta como fazendo parte do próprio tema. É assim, por cujas respostas, muitas vezes, são desconcertantes ou irônicas. A recorrência
exemplo que em um diálogo de Platão não , óbvio que a po ição do autor desse recurso estilístico sugere, sem tematizar explicitamente, a inadequação
seja sempre eiculada por um per onagem ma , pr ci o refazer atentamente de certos tipos de questionamentos filosóficos. A forma como as perguntas são
o movimento dialético entre o p r onagen para faz r aparecer a riqueza das ali empregadas fomenta mesmo certo constrangimento no leitor, que é então
posiçõe expo ta . ão ba ta então ler certa fala como representantes da desmotivado a prosseguir com certo estilo de filosofar, dada a exibição reiterada
posição oficial de Platão· a interação entre o per onagens não é só um floreio dos fracassos a que ele conduz.
e tilístico para divulgar po i õe claramente e tabelecidas. A forma diálogo, ao Esses são exemplos em que a forma literária não apenas contribui para
menos tal como magi tralmen te e ercida em algun textos platônicos, obriga elaborar um tema dela independente, mas mostra algo constitutivo da proble-
o leitor a tomar parte em um e tilo específico de pensar, com base no qual mática, ainda que não seja expressamente formulado como parte do conteúdo
os tópico em questão se tomam então acessíveis. É claro que posteriormente significativo. E esse mostrar, por sua vez, exerce função argumentativa e é decisivo
cabe tentar narrar esses tópicos na forma expositiva do comentário; contudo, o para aquilo que se estabelece no texto. Trata-se, como se vê, de recursos expres-
entendimento de sua montagem requer a retomada dos movimentos dialógicos sivos altamente refinados e que não devem passar despercebidos pelo leitor:
pelos quais os temas são paulatinamente elaborados. sob o risco de entender mal a riqueza da problemática em jogo. Ademais não
Importa notar que, no caso de textos escritos sob gêneros expressivos em é fácil apreender analiticamente a operatividade de recursos estilístico de e
que a forma expositiva está implicada na própria constituição da problemática tipo; por vezes, nem mesmo cabe propor uma análise da estrutura expo itiva
(que não é então apresentada como algo independente dela, mas que justamente tal como sugerida no capítulo anterior, já que muitos textos não se subdividem
decorre, em grande medida, dessa forma), as estratégias até aqui estudadas são em partes interconectadas, mas são montados por meio de seções relati\amen-
insuficientes ou mesmo inapropriadas. Ora, é patente que as formas tratadística te independentes que se conectam via passagens estilísticas sutis. ão há, para
e de comentário também constituem, em sentido geral, sua problemática; po- esses casos, um modelo único de fichamento elementar, como ocorre com o
rém, o fazem justamente por meio de um movimento expositivo contínuo que gênero tratadístico e de comentário, que se deixa capturar de modo satisfatório
pretende exibir os aspectos intrínsecos do tema, os quais não dependeriam dessa pelas fichas de estrutura expositiva. Isso não quer dizer, obviamente, que não
própria exibição. Já no caso de outros gêneros expressivos, não é que a forma há nenhum tipo de estrutura organizadora do texto; somente ela não segue os
literária contribui para a referência a algo independente; por si só, a forma já parâmetros dos textos expositivos em sucessão linear de partes. esses casos, é
refere a algo que, muitas vezes, nem aparece como conteúdo significativo explícito. preciso buscar entender pacientemente a especificidade narrativa do texto em
A forma literária faz ver enquanto forma, isto é, em conformidade com as parti- questão e propor fichamentos que a respeitem. Cabe, para tanto, examinar o
cularidades expressivas de seu emprego, de maneira que parte da problemática que a forma literária em estudo faz ver ainda que sem o dizer. Busca-se, destarte,
em foco está inerentemente entrelaçada aos recursos estilísticos pelos quais delimitar os efeitos expressivos do texto como um obj eto de análise. É discutível
é moldada. É assim, por exemplo, que a forma aforística pela qual Nietzsche se a transformação dos recursos estilísticos (atuantes como um meio ou atmos-
escreve algumas de suas obras mostra a ausência de um posicionamento central fera) em um objeto se deixa realizar sem perdas. Porém, parece difícil avançar
paulatinamente construído, e exerce uma multiplicidade de perspectivas sobre na análise sem algum grau de objetivação da expressividade vigente no texto.
os temas tratados. Não é que simplesmente Nietzsche formule como conteúdo Nem sempre é fácil encontrar o equilíbrio entre a experiência intuitiva do efeito
explícito de seu texto que não pretende construir uma posição única sobre os expressivo e sua objetivação temática, o que torna a análise desses textos uma
tópicos discutidos 20 • O emprego dos aforismos como recurso estilístico revela, tarefa muito difícil. Sugere-se recorrer à bibliografia secundária especializada
nos aspectos literários em questão, a fim de formar, aos poucos, um modelo
específico de leitura.
20. O que eventualmente ocorre. No aforismo 26 do primeiro capítulo de Crepúsculo dos Ídolos, afirma Nietzsche: Como se vê, não há um esquema geral de análise para muitos gêne-
"Desconfio de todos os sistematizadores e os evito. A vontade de sistema é uma falta de retidão" (F.
Nietzsche, Crepúsculo dos Ídolos: Ou co1TW se Filosofa com o Martelo, 2006 [1889], p. 13). ros de textos argumentativos, já que neles os recursos literários operam de
218 • Leitura e Escrita de Tt. to Argumentativos
Estratégi,as de Leitura Ili - Outros Fichamentos • 219
maneira bastante particular, e cabe a aliar o fi itos e~pres i o ca o a caso. Vale acentuar que não há uniformidade na utilização das metáforas, já
De todo modo, deve-se notar que e a dificuldad d g neralização se refere que elas servem a vários propósitos expositivos (descritivos, prescritivos etc.)22.
principalmente à análise do movimento e po iti o. No que s refere a as- Tendo em vista aqui fichamentos de textos argumentativos, os leitores devem
pectos particulare desenvolvido no decorrer da e po ição, os demais ficha- estar atentos a metáforas empregadas não somente para atribuir riqueza literária
men tos propostos continuam álido . Afinal t to com estrutura expos1t.1va à narrativa, mas que operam como verdadeiros instrumentos cognitivos em relação
não tratadí tica também de en ol em cone ito e me mo apre entam argu- aos temas em questão. Nesses casos, o desenvolvimento da metáfora oferece um
mento em entido e trito. Corre pondent m nt o fichamento de análise caminho indireto, via figuração, para explorar relações conceituais pertinentes
conceitua! e de argumento muita eze e mo tram ferramenta indispen- acerca do tópico em questão. Dessa maneira, diante de textos em que as metá-
sáveis para o entendimento da argumentação não tratadí tica. Aliá , como já foras exercem esse papel argumentativo amplo, analisá-las detidamente revela
explicado a análi e de conceito não upõe a linearidade do movimento ex- aspectos por vezes irredutíveis da montagem do movimento expositivo.
positi o o que a torna particularmente útil para capturar o desenvolvimento Como analisar metáforas em textos argumentativos? As metáforas apro-
temático em texto aforí tico imilare . ximam entes ou situações de campos temáticos distintos, tornando explícitas
relações conceituais do termo comparado (normalmente abstrato) por meio de
relações internas ao termo de comparação (normalmente, algo concreto). Força-
6. 4. 2 O Papel Elucidativo da Metáfora -se, assim, uma proximidade linguística que faz ver aspectos até então ignorados
do termo comparado ou que permite organizar de modo mais intuitivo aspectos
Discutimos como os recursos estilísticos permitem a construção de textos
dele já conhecidos, e isso por semelhança estrutural com as relações do termo
argumentati os muito diferentes entre si, que não partilham de uma mesma
de comparação. Não que tais semelhanças fossem óbvias antes da figuração me-
forma estruturadora do movimento expositivo. Além dessa perspectiva global, a
tafórica; na verdade, é pela virtude expressiva da metáfora que a semelhança é
análise estilística também pode se voltar para recursos expressivos particulares em-
instaurada, muito mais do que simplesmente constatada. Na análise, cabe justa-
pregados nos mais diversos gêneros de textos, tais como as figuras de linguagem.
mente sistematizar esse poder elucidativo da figuração metafórica, registrando
Dentre elas, destaca-se a metáfora, ferramenta estilística de grande versatilidade
de modo claro seu sentido por vezes elusivo, e avaliando seu alcance e limites.
e poder elucidativo. Ainda que não haja uma definição unívoca acerca de seu
Destarte, diante de uma metáfora viva importante em um texto argumentativo,
sentido e de sua extensão conceitual, entende-se, no geral, a metáfora como a
recomendam-se os seguintes procedimentos:
aproximação linguística de entes, eventos ou propriedades heterogêneos entre
si, de maneira a gerar formulações não óbvias com forte carga intuitiva. Nor- • Reconstruir a operação metafórica explícita: tomar patente qual é o
malmente, nas ditas "metáforas vivas", isto é, naquelas engenhosamente criadas campo temático comparado e qual o campo temático de comparação, e
para a expressão figurada de certo estado de coisas, a aproximação de situações quais relações do primeiro são tomadas intuitivas por meio do segundo.
complexas e compostas por elementos abstratos a realidades ou temas concretos • Explorar semanticamente a sobreposição dos campos temáticos pela
torna visíveis aspectos dessas situações que não seriam facilmente capturáveis por metáfora: sugere-se explicitar mais relações conceituais tomadas possíveis
uma exploração direta do tópico 21 . É importante, desde então, distinguir a me- pela aproximação dos campos temáticos heterogêneos. Essa exibição de
táfora e a catacrese, figura em que o sentido da expressão já foi incorporado ao relações permite tomar sensíveis as riquezas e os limites da figuração
léxico corrente vernacular e cuja compreensão dispensa a exploração do caráter em pauta, o que serve como fonte de questionamentos críticos para
figurado ali em vigor (exemplos: a perna da mesa, os dentes do serrote etc.). considerações gerais acerca dos posicionamentos defendidos no texto 23 •
Em uma análise estilística, interessa reconhecer as metáforas vivas empregadas • Propor um comentário final sobre a metáfora analisada.
em um texto e examinar seus efeitos expressivos.
21. Para uma abordagem bastante detalhada sobre os aspectos constituintes da metáfora e seus contextos de 22. Sobre esse tema, ver N. Charbonnel, "Métaphore et philosophie moderne", 1999, pp. 32-61.
aplicação, ver P. Ricoeur, La métaphore vive, 1975. 23. Esse método é sugerido por G. Brune G. Hirsch Hadom, op. cit., 2014, pp. 191-194.
22 O • Lei.tura e Escrita de Textos Argumentativos
Estratégias de Leitura III - Outros Fichamentos • 221
Para facilitar a expo ição desses procedimentos cri mos um e emplo Quadro 6.12 Ficha de análise da metáfora exibida no quadro 6.11
específico 24 • Suponhamos que o trecho do quadro 6.11 faz parte de um texto
Ficha de análise de metáfora
sobre virtudes e vícios da comunicação via int rn t. Inicialmente distinguimos,
durante a leitura, a metáfora viva ali em atuação: Texto: XXX, pp. XX.
E pumas podem er tóxica devido a r qu o b ato , m ntira , Cabe um breve comentário sobre a operatividade das metáforas. Nesse
diferente componente o que d ixa implifica õ rv m d exemplo, a exibição de algumas relações semânticas internas ao campo temá-
perceber por colorações variadas. tico "espuma poluente sobre o mar" permitiu esclarecer relações semânticas
propagação. O ódio tem ido uma colo- que descrevem fenômenos do campo "difusão de mentiras, boatos, distorções
ração marcante de tipo d conteúdo.
e simplificações na comunicação via internet". E isso não porque há alguma
conexão metafísica secreta entre a espuma e a internet, e sim porque certa
Como e ê, esse e ercício d análi não ó p rmite capturar de modo produtividade de sentido inerente ao uso figurado da linguagem tem forte
mais preci o a operatividad qu funda e plicitamente a metáfora em questão potencial elucidativo: ao buscar desenvolver discursivamente aspectos de um
como também potencializa ua virtude elucidati a pela exploração do campo se- campo temático, explicitam-se ligações semânticas que auxiliam a compreen-
mântico implícito aos termo figurati os empregados em sua construção. Por fim, der um campo muito diverso. Algo impede a visão de alguma coisa, algo tem
vale a pena acre centar na ficha uma reflexão geral obre a metáfora analisada: origem artificial em relação a certa dinâmica natural, algo tem caráter tóxico
para a saúde humana etc. Essas são relações semânticas amplas que se aplicam
Quadro 6.13 Ficha de análi e da m tá.fora exibida no quadro 6.11 com reflexão geral
a vários campos temáticos. Porém, a exploração discursiva de um campo feno-
Ficha de análi e de metáfora menalmen te concreto por vezes é mais fácil que a reflexão direta acerca de
Texto: estados de coisas complexos que envolvem várias noções abstratas 25 • Vale no-
' PP· XX .
tar, por fim, que examinar detidamente alguns recursos literários particulares
1) Esquemas metafóricos e plícitos
empregados na construção de textos argumentativos (dos quais a metáfora é
[ ... ]
somente um tipo entre outros) oferece um ganho de compreensão acerca dos
2) Exploração de relações semânticas
posicionamentos defendidos que dificilmente seria obtido por outros meios.
[ ... ]
Cabe ao leitor julgar, a cada texto lido, se é o caso de propor análises estilísti-
3) Comentário geral cas tais como as aqui esboçadas.
A metáfora é construída sobre o caráter pouco sólido, volátil e dificil de barrar das espumas
poluentes que por vezes recobrem o mar. A espuma simboliza, dessa maneira, a proliferação
vigorosa de mentiras, boatos, distorções e simplificações nas comunicações via internet (redes 6.5 FICHAS DE COMENTÁRIOS PESSOAIS
sociais, grupos de contato etc.). O oceano oculto figura como o conhecimento aprofundado e
vasto dos tópicos em foco. A metáfora sugere que, impedindo a visão da complexidade inerente 6. 5.1 Apresentação
aos tópicos discutidos, há uma disseminação de conteúdos simplificadores ou tendenciosos, que
são replicados indefinidamente devido às dinâmicas normais de comunicação entre as pessoas Não se trata de mais um tipo de fichamento entendido como método para
(figuradas como o movimento das ondas).
a extração de informações do texto lido. Os comentários pessoais não são "fi-
A espuma tóxica não é natural no mar; ela surge de interferência externa, do descarte de
poluentes nas águas. Esse aspecto representa a manipulação das opiniões nas comunicações via
chados" diretamente do texto lido (embora isso possa ocasionalmente ocorrer),
internet: os boatos, mentiras, distorções não surgem, na maior parte das vezes, espontaneamente, mas construídos como uma reflexão final acerca de todo o trabalho analítico
mas são plantados intencionalmente por grupos que se servem das dinâmicas intrínsecas da realizado por meio dos fichamentos anteriores. Nesse sentido, o trabalho agora
comunicação virtual para difundi-los. sugerido é diferente das demais estratégias de leitura vistas neste capítulo, por-
Outro aspecto explorado metaforicamente é o caráter poluente, tóxico da espuma. Não quanto não se trata de voltar mais uma vez ao texto para dele extrair algum novo
se trata apenas de algo que inofensivamente barra a visão do oceano, mas sim de algo que nível de conteúdo, e sim de formular certos posicionamentos pessoais, baseados
contamina, que faz adoecer quem entra em contato. Esse aspecto semântico permite figurar
nos resultados da aplicação dos fichamentos.
as patologias discursivas ligadas à difusão de conteúdo mentiroso ou distorcido: normalmente
são concepções unilaterais que ignoram quaisquer críticas relevantes e que propagam ódio e
Esse é o momento de conclusão da leitura abrangente, no qual, de certo
preconceito contra os que ousam "olhar além da espuma". modo, o caráter formativo de seu exercício atinge o ápice, já que aqui o leitor
Em suma, trata-se de uma metáfora viva com grande potencial elucidativo. Muitos outros
aspectos poderiam ser explorados, tais como os meios de se proteger da toxicidade da espuma
ou de enfrentá-la, recuperando com a ajuda de instrumentos apropriados a noção da profun-
25. Fica em aberto a questão de saber se algumas relações semânticas centrais para a compreensão de certos
didade marítima. tópicos só podem ser reveladas, ainda que apenas inicialmente, por metáforas.
224 • Leitura e Escrita de Textos Argumentativos Estratégias de Leitura III - Outros Fichamentos • 225
tentará desenvolver autonomamente alguma id ias elaborando aquilo que atual como conteúdo significativo corretamente reconstruído . A leitura é,
aprendeu durante a leitura à luz de que tionamento próprio . pe ar das difi- desse modo, ocasião para o encadeamento multigeracional que está na base
culdades inerentes para bem atingir es e ápice das etap d e tudo, parece-nos da manutenção da relevância cultural de certa tradição do pensar. O leitor
essencial abordá-lo como algo não só desejá el ma factível sob o risco de, sem cuidadoso incumbe-se do papel de elo de transmissão, por vezes em uma longa
mencionar essa ocasião de refie õe pe oai b m fundam ntadas as estratégias cadeia geracional, de certa orientação do pensar; seu ato de ler mantém atuais
de leitura até então estudadas aparec r m mutiladas mesmo gerando efeitos os conteúdos significativos fundados em certa tradição e pode mesmo ajudar a
desagradáveis na formação. promovê-los para outros interessados (conforme a divulgação dos resultados de
1mo que um do r qui ito bá ico para o e rcício da leitura abran- pesquisas dos mais variados âmbitos) que passam a dispor de novos caminhos
gente é a u pensão inicial de qualqu r tomada de posição pessoal acerca do para adentrar na corrente generativa de transmissão cultural do saber regista-
movimento expo iti o do te to e da po içõe ali defendidas. É preciso evitar do nos textos estudados.
que e leia julgando ou criticando a e po ição sob o risco sério de distorcer Contudo, esse caráter de suporte para a animação e transmissão de
ou simplificar o po icionamentos veiculados pelo texto. Daí a recomendação conteúdos legados por determinada tradição não esgota a função formativa da
de assumir, durante a leitura, certa neutralidade vawrativa acerca do conteúdo leitura. A leitura abrangente não reduz o leitor a uma espécie de reservatório
lido, o que metodologicamente e buscava garantir por meio das estratégias de conteúdos prontos e que seriam indiferentes ao próprio ato de ler, dele
de reconstrução do movimento expositivo. Nessas, interessa tornar explícita a servindo-se para uma transmissibilidade indefinida de um sentido inviolável.
estruturação dos posicionamentos assumidos no correr do texto conforme o Os conteúdos significativos legados pela leitura não são entes intangíveis, mas
entrelaçamento 'imanente" de tarefas lógico-conceituais paulatinamente exe- instrumentos que capacitam o pensar, que o inserem em alguns modos privi-
cutadas. Ler bem, nesse sentido, supõe silenciar as próprias opiniões e permitir legiados de operar e com base nos quais as próprias significações de partida
que o percurso expositivo do texto venha à tona com sua alteridade constitutiva, são, muitas vezes, reordenadas, desenvolvidas ou criticadas. Essas possibilidades
independentemente da concordância ou discordância do leitor. Vigora, assim, criativas parecem mesmo constitutivas, até certo ponto, das tradições filosóficas
como regra basilar da leitura abrangente, a suspensão metódica de posicionamentos e científicas, nas quais a abertura para questionamentos e aperfeiçoamentos
pessoais durante a leitura e análise de textos, o que certamente se estende para teóricos derivados de críticas não é um aspecto acidental ou anedótico, mas
os fichamentos complementares explanados neste capítulo. Por exemplo, em parte central da progressão teórica. Para que essa potencialidade enformadora do
relação à análise de argumentos, isso é mesmo evidente: deve-se reconstruir a pensar (para além de suporte para a transmissibilidade de conteúdos fixos) se
versão mais forte do argumento em pauta, de modo que a real força lógica das torne efetiva pela leitura, é preciso avançar nas etapas do entendimento de tex-
inferências ali lançadas se torne acessível, o que não ocorreria adequadamente tos até chegar a um ponto em que deixa de valer a suspensão das valorações
se o leitor insistisse em misturar suas opiniões com as asserções de que o argu- e posicionamentos pessoais. Em outras palavras, só faz sentido apresentar a
mento se compõe. suspensão de todo envolvimento pessoal com as questões lidas como uma etapa
Ora, se o trabalho de compreensão de textos argumentativos se encer- inicial do trabalho de compreensão se há alguma etapa posterior. Do contrário, a
rasse com esses fichamentos, então a suspensão de qualquer posicionamento qualificação de tal suspensão como "basilar" seria mero eufemismo para certo
pessoal durante a leitura não seria somente uma regra inicial de análise, e sim tipo de compreensão que se desdobraria indefinidamente, sem levar a qual-
a própria descrição desse processo de estudo em sua inteireza. Sem dúvida, quer tipo de reflexão que não seja a reposição fiel do conteúdo significativo
compreender bem textos exige reconstruir, com o grau máximo possível de legado pelos textos importantes para a formação em alguma área do saber. E
fidelidade, as posições ali defendidas em conformidade com o movimento se assim fosse, a formação via leitura abrangente levaria a resultados estranhos.
expositivo em que são formuladas. Desse ponto de vista, o leitor diligente A formação se reduziria à capacidade de reprodução ou repetição de algo que
assume-se, antes de mais nada, como herdeiro de certa tradição do pensar em se imporia à subjetividade do leitor, tornado mero esteio de um sentido uní-
que os textos em vista se inserem, e que é revivida a cada vez que esse campo voco que caberia ecoar sem nenhum tipo de interferência pessoal. Entretanto,
temático-conceitual deixa de ser registro inerte em obras e se torna significa- se se espera que formar-se seja mais do que mimetizar algo imutável, que seja,
ção viva para as pessoas interessadas em conhecê-lo. Ler bem, nesse sentido, é sim, dotar as operações do pensar de certo estilo operatório que remete aos
retomar o legado teórico de gerações anteriores (principalmente no caso de conteúdos tradicionais sem se reduzir a eles, então cumpre delinear mais cla-
obras clássicas de certo campo disciplinar), mantendo-o disponível na geração ramente quais seriam as etapas posteriores ao trabalho básico de reconstrução
226 • Leitura e Escrita de Te. tos Argumentativos
Estratégias de Leitura III - Outros Fichamentos • 22 7
do sentido te tual sob a u pen ão d aloraçõ e po 1c10namentos p ssoais. realmente respondem a uma problemática reconhecida como importante por
Somente desse modo a su p nsão metódica da pe oalidade durante a leitura vários especialistas da área de atuação. Reconstruir as posições alheias com pre-
não se torna um fim em si mesmo e a formação n la baseada não se limita a cisão capacita o pesquisador a engajar-se seriamente em debates, com chance de
adestrar as pe soa para uma erudição muda incapaz d fomentar qualquer ter suas contribuições consideradas respeitosamente, uma vez que seu ponto de
reflexão criativa. partida foi justamente o respeito intelectual às posições vigentes na área em foco.
É na direção da etapa uperior s do proce so formativo via leitura Para ser levado a sério por colegas da área, para ter suas supostas contribuições
abrangente que a ficha de comentários pe oai apontam. Trata-se, por meio avaliadas com atenção, um pesquisador deve, inicialmente, exibir um sólido
dela de i tematizar e qu ma impl d pre ão que permitam exercitar conhecimento sobre os principais conteúdos significativos já estabelecidos na
o pen ar autônomo (ainda que ine capavelmente enraizado em determinada tradição de estudos em que se insere. A reconstrução fiel dos textos centrais para
tradicionalidade sobre a qual e forma). Já se antevê aí a destinação dos esforços a problemática estudada toma-se também, assim, condição para o engajamento
formati o por meio da leitura: não omente a re pon abilidade de herdar certo em discussão com pares qualificados. Essa reconstrução não é apenas marca de
conteúdo ignificativo ma a entrada no campo ine gotável das contribuições uma filiação vaga em tradições de estudo, mas requisito para participações efe-
teóricas bem fundamentada aos tópicos estudados. tivas em comunidades especializadas que partilham certos modos de produção
Esse caráter 'bem fundamentado" dos comentários pessoais pressupõe, e circulação do conhecimento.
em parte a realização bem-sucedida das etapas iniciais da leitura abrangente. Não é preciso se preocupar com graus avançados de contribuições aca-
Insistimos há pouco em que a reconstrução pessoalmente neutra da estrutura dêmicas. Importa acentuar que as exigências básicas para essas contribuições já
expositiva dos textos não completa por si só a formação crítica. No entanto, é pre- devem estar em vigor mesmo em leituras autodidatas de textos argumentativos.
ciso levar a sério seu estatuto de etapa basilar. Comentários pessoais pertinentes, Ler com a perspectiva de sedimentar conteúdos e procedimentos para um aper-
que ultrapassam o nível de opiniões frívolas ou de preconceitos insistentemente feiçoamento formador de si supõe a capacidade de reconstrução cuidadosa do
externalizados, supõem a compreensão adequada dos temas expostos nos textos movimento expositivo, sem a intromissão de opiniões ou valorações pessoais. Em
estudados. Apenas a reconstrução justa desses últimos propiciará uma apreensão seguida, para completar o circuito formador, para que essa suspensão metódica
correta dos tópicos em discussão, a qual servirá de solo para o amadurecimento de si não se torne uma espécie de repressão indefinida, mas se confirme como
de problematizações pessoais relevantes. Sem essa compreensão inicial rigorosa, preparação para o exercício autônomo do pensar enraizado nos conteúdos e
o comentário pessoal pode partir de versões erradas ou logicamente mais fracas procedimentos apreendidos, o leitor deve produzir fichas específicas de comen-
do conteúdo textual, o que em certo sentido o tomará inútil,já que não viabiliza tários pessoais, completando, destarte, o amplo "relatório" de leitura propiciado
um diálogo profícuo com o material que o motivou. Para reformular problemas, pelo método geral dos fichamentos. O essencial é que os comentários pessoais
fazer avançar alguma análise conceitua! de modo a construir pessoalmente de- sejam marcados em fichas específicas, e que os demais fichamentos tenham
terminado ganho de compreensão acerca do conteúdo textual, esse conteúdo então sido construídos sob a suspensão metódica das opiniões pessoais. Nas
deve ter sido reconstruído fiel e neutramente. Mesmo isso por vezes não é o fichas de comentários, os posicionamentos próprios são então exercidos sem
bastante para garantir uma base sólida da qual os comentários pessoais devem se confundir com a reconstrução dos conteúdos do texto. Essa simples sepa-
partir. Afinal, ainda que feitas honestamente, as análises básicas sobre os textos ração dos tipos de registro em pauta evita confusões e permite que se avance
podem conter erros ou serem insuficientes para capturar a efetiva complexidade notavelmente na compreensão dos textos e na expressão do pensar. Deve estar
da exposição. Logo, para oferecer condições satisfatórias de reflexões pessoais, claro ao leitor o que remete, em suas anotações, à própria estrutura textual que
supõe-se um bom grau de destreza nos fichamentos da estrutura expositiva e se busca explicitar e o que remete à elaboração de suas opiniões e valorações
demais aspectos constituintes dos textos. suscitadas pela leitura.
Vale notar que essa perspectiva metodológica de reposição neutra do Decerto, não é preciso terminar todos os fichamentos referentes à estru-
conteúdo significativo em questão vigora em vários níveis de estudo. Pesquisa- tura e demais componentes do texto para só então livrar-se a especulações pes-
dores em nível de pós-graduação normalmente cumprem como tarefa básica a soais. É esperado que várias opiniões, esboços de críticas e conexões temáticas
revisão bibliográfica do tópico em estudo, de modo a construir um panorama que excedem o conteúdo sejam formuladas durante a leitura. Não se trata de
atualizado das posições defendidas e dos principais argumentos que as susten- reprimi-las ou ignorá-las, como se fosse o caso de manter o foco somente naqui-
tam. Tenta-se garantir, dessa maneira, que as contribuições conceituais propostas lo que O texto efetivamente afirma sem atentar para os efeitos reflexivos dessas
228 • Leitura eEscrita de Textos Argumentativos Estratégi,as de Leitura III - Outros Fichamentos • 229
afirmações. O que se sugere é simplesmente que e vá anotando e as opiniõ s, 6.5. 2 Comentário Interpretativo
questionamentos e conexões temáticas em uma ficha provi ória de notas pesso-
ais, tomando o cuidado então de pre ervar as id ia em mi turá-las com os O cerne dessa reflexão é construir opiniões elucidativas sobre o texto lido,
resultados analíticos dos demais ficham ntos26 • Para o próprio leitor avaliar a com maior ênfase em certos trechos particularmente difíceis, em relação aos
pertinência des as ideias que entr cortam a 1 itura, erá preci o fetuar pacien- quais o leitor se sente capaz de formular soluções interpretativas que clareiem o
temente o trabalho básico de reconstrução do sentido via fichamentos. Afinal, significado ali veiculado. Nesse tipo de comentário, mais do que questionar ou
muitas que tõe e me mo críticas pod m er d vidamente re pondidas com uma relacionar o texto com outros tópicos, o leitor engaja-se no exercício de formular
análi e ju ta do movimento e~po iti o d maneira que, antes de interromper a um entendimento próprio da exposição, tomando decisões interpretativas bem
leitura para elucubrar obre as upo tas limitaçõe do texto, vale a pena esforçar-se delineadas acerca de momentos-chave da exposição, elaborando, por fim, um
para clarificar o entido da e po ição. I o não de e impedir de anotar quais- juízo pessoal sobre o sentido ali veiculado. Uma excelente maneira de marcar
quer ideias pe oai em longos julgamentos sobre sua pertinência, dado que a relevância desse tipo de proposta é contrastar a interpretação construída com
ela serão mai bem avaliadas à luz do re ultado dos fichamentos. Além disso, outras análises do mesmo texto, algo bastante factível no caso de textos clássi-
não somente durante a leitura mas também durante a escrita dos fichamentos cos, sobre os quais já há vários comentários publicados. Apoiado pelo estudo
básicos urgirão novo que tionamentos e conexões de interesse pessoal, os quais minucioso do texto, o leitor engaja-se em construir uma análise que esclareça
também de em ser registrados na ficha provisória de comentários para serem passagens e tópicos em contraste com alguns comentários disponíveis acerca da
posteriormente julgados como meritórios ou não de aprofundamentos. mesma obra.
Uma vez terminados os fichamentos, recomenda-se então o exercício da Vale notar que esse tipo de análise deriva, sem cortes bruscos, dos re-
reflexão autônoma, enraizada nesse trabalho inicial. As notas da ficha provisória sultados dos fichamentos anteriores. Ao responder às questões distintivas do
de comentário servem de ponto de partida. Aqueles comentários que, por assim fichamento sintético da estrutura expositiva, ao comentar em termos gerais o
dizer, resistirem ao trabalho analítico dos fichamentos, merecem ser desenvol- emprego de certos conceitos, argumentos ou recursos estilísticos, o leitor esboça
vidos, isto é, aqueles questionamentos, críticas ou conexões temáticas que não uma sistematização global do sentido textual, bem como explora as virtudes e
foram plenamente esclarecidos ou mesmo dissolvidos pela reconstrução paciente limites expressivos de certas passagens destacadas. Um comentário interpretativo
dos componentes do texto devem agora encorajar a reflexão autônoma e ser pessoal facilmente amadurece com base nessas análises prévias. É verdade que
elaborados em fichas finais de comentários. essas análises pretendem muito mais revelar aspectos "imanentes" ao texto do
Cabe clarificar mais detidamente como desenvolver os comentários pes- que lançar grandes hipóteses sobre o conteúdo veiculado; contudo, elas já tra-
soais. O intrínseco caráter de pessoalidade poderia dar a impressão de que se zem a marca da atenção pessoal do leitor a certos aspectos, já envolvem certas
trata de algo privado e imprevisível, que cada leitor vivenciará de modo único decisões mínimas de organização do sentido que não são mero decalque de
e desdobrará conforme suas capacidades criativas inatas. Eis uma descrição um sentido unívoco disponível no texto, mas justamente o esboço de conside-
fantasiosa das contribuições pessoais em um estudo de base argumentativa. O rações interpretativas próprias sobre o texto. A passagem dessas fichas voltadas
fato de que se almejam elaborações pessoais acerca dos temas lidos não significa à estrutura e a componentes do texto para a ficha de interpretação pessoal não
entregar-se a um frenesi criativo incontrolável e inimitável. A pessoalidade dos faz muito mais senão desenvolver com fôlego certo modo específico de abordar
comentários não exclui certa "metodicidade" como guia para uma progressão e enfatizar aspectos do texto, em vigor nas fichas iniciais. Buscando entender
mais clara e coerente dos tópicos em estudo. Parece-nos, assim, desejável orien- certas articulações nevrálgicas na exposição, o leitor arrisca interpretações que se
tar os comentários pessoais conforme esquemas gerais, certamente passíveis de servem dos resultados das análises básicas para capturar aspectos não óbvios do
modificação conforme as circunstâncias concretas. Apresentaremos a seguir conteúdo significativo. Propõem-se, nesses casos, análises que, se não rompem
três modelos para o desenvolvimento de comentários pessoais, buscando, dessa com a face explícita do texto e a respeitam como limite para sua formulação,
forma, nortear os leitores em diferentes tipos de reflexão. não se restringem a reproduzir tal conteúdo explícito, mas consideram-no em
relação ao que foi compreendido de seus propósitos e alcance expressivo. Tendo
examinado metodicamente o texto, o leitor sente-se seguro para formular, em
seguida, uma apreensão elucidativa de cunho pessoal sobre o conteúdo veiculado,
26. No capítulo 4 já foram apresentadas algumas sugestões para notações pessoais nas margens do texto. seja em passagens específicas, seja no movimento expositivo geral.
230 • Leitura e.&crita de Textos Argumentativos
Estratégi,as de Leitura III - Outros Fichamentos • 231
Esse tipo de comentário é produzido d muita man ira , ainda mais to- Espera-se que no comentário pessoal avaliativo O leitor formule com
mando por base os resultado do fichamento pr viamente realizado . Sugere- precisão suas observações acerca de aspectos problemáticos ou limitados do
-se que a ficha resultante d a análi e interpr tativa se organize ao m nos em texto: E~erce-se, por conseguinte, uma análise valorativa em que eventuais dis-
tomo de alguns dos seguinte iten : cordanc1as com o conteúdo significativo são cuidadosamente elaboradas. Esse
tipo de análise ora se limita a trechos específicos, ora se serve desses trechos
Quadro 6.14 Modelo de ficha de com ntário interpr tati o om ug tão de iten organizadores
para construir uma valoração ampla do texto, apontando algumas limitações
Ficha de comentário interpretativos g:rais derivadas daquelas apontadas em passagens-chave da exposição. Há tam-
bem outros formatos de valoração crítica global: pode-se questionar O texto à
Texto: x luz _de certos problemas relevantes para os tópicos expostos e que não foram
devidamente tratados; em relação a textos clássicos na área de estudos, pode-se
a) Retomada geral da expo ição
apontar certos componentes das situações contemporâneas não previstos pelos
[Toma- e aqui por base o resultado dos fichamento anteriores desenvolvendo análises globais sobre
auto~es, o que legitima que se busque reelaborar as questões à luz de mais dados
o texto]
etc. E importante, em relação a esse último ponto, reconhecer a inserção dos
b) Elucidação de trecho e pecífico textos em seu horizonte histórico particular, sem exigir respostas aos problemas
[Lançam- e hipóteses interpretativas voltadas a passagens particularmente difíceis e controversas] atuais do leitor. Os textos clássicos permanecem fecundos precisamente porque
fazem sentido, até certo ponto, mesmo na situação histórica atual; sua riqueza
c) Contraste com comentário di ergente conceitua! ainda dota os leitores de certa orientação do pensar profícua para a
[Busca-se retomar minimamente interpretações concorrentes acerca do texto ou de alguns trechos. Tenta-se
lida com questionamentos contemporâneos. Porém, seria tolo julgar os textos
esclarecer em que medida a interpretação agora proposta avança para além desses comentários, por vezes
pela "incapacidade" de responder diretamente a questões externas ao horizonte
propondo correções a alguns del,es}
de sentido em que foram produzidos. O que cabe apontar, modestamente, são os
d) Conexão com temas pertinentes limites do alcance conceitua! dos esquemas elucidativos diante de circunstâncias
[ esse item, relacionam-se os resultados da interpretação com outros temas de interesse do l,eitor. ''Em concretas novas, porém sem pretender com isso esgotar a fertilidade analítica
que medida a compreensão aqui formulada do texto ajuda a elucidar X?" - é a questão-guia aqui. Esse inerente a obras consideradas clássicas em sua área de formação.
item é central para quem desenvolve alguma pesquisa de maior envergadura, que inclui conectar vários As análises avaliativas exigem bastante cuidado para serem conduzidas
textos em uma análise ampla de algum tópico]
de forma efetivamente produtiva. Supõe-se, aqui, que o trabalho de recons-
trução do movimento expositivo tenha sido feito de modo preciso, buscando
6.5.3 Comentário Avaliativo formular a argumentação em sua versão mais forte. Somente dessa maneira se
torna visível a real força lógica dos posicionamentos do autor, e então se ava-
Nesse tipo de reflexão, enfatizam-se trechos apreendidos como pouco liam de forma justa possíveis limitações. Se, ao contrário, se lê enviesadamente,
convincentes durante a leitura e que mesmo após o exercício de explicitação de acentuando fraquezas que seriam sanáveis com uma reconstrução mais detida
estrutura expositiva permanecem como questionáveis. Acentuamos, destarte, o do movimento expositivo, então as críticas do leitor não são muito mais que
sentido "polêmico" ou "crítico" de avaliação, embora não se trate aqui de insistir preconceitos lançados sobre o texto. A orientação correta para o exercício
em oposições arrogantes contra os textos lidos, como se sempre se devesse dis- de reconstrução do sentido não é buscar falhas a qualquer custo, mas seguir
cordar do que se lê. Ocorre que por vezes, durante a leitura, surgem dúvidas ou fielmente o movimento expositivo a fim de exibir, da melhor maneira possível,
considerações críticas que podem resultar em comentários bastante pertinentes. sua articulação lógica. Ocorre que, mesmo com esse esforço de fazer aparecer
Os tópicos abrangidos por textos argumentativos estão normalmente inseridos os posicionamentos do autor em sua versão mais forte (respeitando a ordem
em controvérsias complexas, em relação às quais seria ingênuo julgar que um ou das razões propostas, refazendo os laços inferenciais etc.), certos tópicos ainda
poucos textos ofereceriam respostas definitivas. O treino para elaborar críticas assim podem aparecer como incompletos, limitados ou mesmo passíveis de ob-
relevantes deve ser, antes de tudo, um estímulo para reconhecer essa comple- jeções. Não se deve, portanto, temer reconstruir um texto em sua versão mais
xidade inerente a certos tópicos e um apelo para a manutenção do espírito de forte, mesmo não concordando com seus posicionamentos. Afinal de contas,
abertura em relação aos problemas estudados. se o texto se mostrar coerente e convincente após uma leitura imparcial, então
232 • Leitura e&crita de Te tos Argurnentativos
Estratégi,as de Leitura III - Outros Fichamentos • 233
Assim como em inúmeras outras atividades, a in ntividade pr iva também vale p~ra os verdadeiros preconceitos, quer dizer, para aqueles
é perfectível por treinamento metódico , e o ap rfi içoamento con tante da que nao afirmem ser juízos. Os verdadeiros preconceitos podem
reflexão pessoal somado ao acúmulo gradual d nota pes oais daí r ultantes ser reconhecidos, em geral, porque recorrem despreocupadamen-
te a um "d.1zem", "ac h am ", sem que, é claro, essa apelação precise
tende a levar o leitor a um ponto em que dispõ de material e capacidade para
ser apresentada de maneira expressa. Os preconceitos não são
a produção de textos pertin nte acerca do t ma e tudados. Veremos nos pró-
idiossincrasias pessoais que, apesar da impossibilidade permanen-
ximo capítulo alguma con id raçõe e pecíficas para orientar a escrita com
t~Ade_ sua indemonstrabilidade, sempre remontam a uma expe-
base no re ultado da leitura abrang nt . nenc1~ ~essoal dentro da qual persiste a evidência de percepções
sensona1s. Os preconceitos jamais têm essa evidência, nem mes-
mo para aqueles a eles submetidos por falta de experiência. Em
6.6 EXERCÍCIOS contrapartida, como não são ligados a pessoas, podem facilmen-
·<p. 30>te contar com o assentimento de outras, [semJ27 grandes
1) Analise o conceito de preconceito apresentado no seguinte texto: esforços de convencimento. Nisso, o preconceito diferencia-se
Texto: ARE DT, H . O que é Política? 5. ed. Trad. R. Guaran . Rio do juízo - com o qual, por outro lado, tem em comum O fato de
de Janeiro, Bertrand Brasil 2004 [1993], pp. 28-31. nele os homens se reconhecerem e a ele sentirem-se integrados_
de modo que o homem dotado de preconceitos sempre pode
<p. 28>
ter certeza de um efeito, enquanto que o idiossincrático quase
Fragmento 2b
nunca pode realizar-se no espaço político público, só revelando-se
Capítulo 1: O Preconceito
no privado íntimo. Por conseguinte, o preconceito desempenha
§ 1 Preconceito e Juízo
um grande papel na coisa social pura; na verdade, não existe
Ao e falar de política, em nos o tempo, é preciso começar pe- nenhuma estrutura social que não se baseie mais ou menos em
lo preconceito que todos nós temos contra a política - quando preconceitos, através dos quais certos tipos de homens são per-
não somos político profi sionai . Pois os preconceitos que com- mitidos e outros excluídos. Quanto mais livres de preconceitos
partilhamo un com os outros, naturai para nós, que podemos é um homem, menos apto será para a coisa social pura. Mas nós
lançar-nos mutuamente em conver a sem termos primeiro de ex- afirmamos não julgar, em absoluto, dentro da sociedade e essa
plicá-los em detalhe, representam em si algo político no sentido renúncia, essa substituição do juízo pelo preconceito só se torna
mais amplo <p. 29> da palavra - ou seja, algo a se constituir num perigosa quando se alastra para o âmbito político, onde não con-
componente integral da questão humana, em cuja órbita nos seguimos mover-nos sem juízos porque, como veremos mais tarde,
movemos a cada dia. ão se precisa deplorar e, em nenhum caso, o pensamento político baseia-se, em essência, na capacidade de
deve-se tentar modificar o fato de os preconceitos desempenha- formação de opinião.
rem um papel tão extraordinário no cotidiano - e com isso, na Uma das razões para a eficiência e a periculosidade dos pre-
política. Pois nenhum homem pode viver sem preconceitos, não conceitos reside no fato de neles sempre se ocultar um pedaço
apenas porque não teria inteligência ou conhecimento suficiente do passado. Além disso, observando-se com mais atenção, vemos
para julgar de novo tudo o que exigisse um juízo seu no decorrer que um verdadeiro preconceito pode ser reconhecido porque
de sua vida, mas sim porque tal falta de preconceito requereria nele se oculta um juízo já formado, o qual originalmente tinha
um estado de alerta sobre-humano. Por isso, a política tem de uma legítima causa empírica que lhe era apropriada e que só se
lidar sempre e em toda parte com o esclarecimento e com a dis- tornou preconceito porque foi arrastado através dos tempos, de
persão dos preconceitos, o que não significa tratar-se, no caso de modo cego e sem ser revisto. Com relação a isso, o preconceito
uma educação para a perda dos preconceitos, nem que aqueles diferencia-se do mero boato que não sobrevive ao dia ou à hora
que se esforcem para fazer tal esclarecimento sejam livres de do rumor e no qual reina uma grande confusão caleidoscópica
preconceitos. A dimensão do estado de alerta e abertura para o de opiniões e juízos mais heterogêneos. O perigo do preconceito
mundo determina o nível político e o caráter geral de uma épo- reside no fato de originalmente estar sempre ancorado no passa-
ca; mas não se pode imaginar nenhuma época na qual os homens do, quer dizer, muito bem ancorado e, por <p. 31> causa disso,
não pudessem reincidir e confiar em seus preconceitos para am- não apenas se antecipa ao juízo e o evita, mas também torna
plas áreas de juízo e decisão.
É evidente que essa justificação do preconceito enquanto me-
dida do juízo dentro da vida cotidiana tem seus limites. Ela só 27. Esse termo falta na tradução, tomando o trecho incompreensível. Consultamos o texto original.
238 • Leitura e Escrita de Te tos A11!'Unumtativos
Estratégi,as de Leitura III - Outros Fichamentos • 239
impo ível uma experiência verdad ira do pr nt com o juízo. Fosse o que fosse de que conseguisse duvidar, duvidaria, até ver
Quando e quer difundir preconceito é preci o empr de co- razão para não duvidar disso. Ao aplicar este método, ficou gra-
brir primeiro o juízo anterior nel contido ou ja id ntificar dualmente convencido de que a única existência de que poderia
seu conteúdo original de verdad . e pon,entura pa ar ao lar- estar deveras certo era a sua própria. Imaginou um demônio enga-
go disso batalhõe inteiro de oradore e clarecido e bibliotecas nador, que apresentava coisas irreais aos seus sentidos, numa fan-
inteira nada podem con eguir como mo tram com clar za o tasmagoria perpétua; poderia ser muito improvável que tal demô-
infindo e forço infinitamente infrutít ro m rela ão a pr ble- nio existisse, mas mesmo assim era possível, e consequentemente
mas obrecarregado de pr cone ito mai antigo radicados a dúvida sobre coisas percepcionadas pelos sentidos era possível.
como é o caso do negro no E tado nido ou o probl ma do Mas a dúvida sobre a sua própria existência não era possível,
·udeu. pois se ele não existisse, nenhum demônio o poderia enganar.
Se ele duvidava, tinha de existir; se tinha quaisquer experiências,
2) Anali e o argumento contido no trecho a guir: não importa quais, tinha de existir. Assim, a sua própria existên-
cia era para ele uma certeza absoluta. "Penso, logo existo" ( Cogi,to,
Texto: Ru ELL, B. O Problema da Filosofia. Trad. D. Murcho.
ergo sum); e com base nesta certeza entregou-se ao trabalho de
Lisboa, Ediçõe 70 200 [1912] cap. 2 pp. 79-81.
construir outra vez o mundo do conhecimento que a sua dúvida
e te capítulo temo de no perguntar e, em algum entido, tinha deixado em ruínas. Ao inventar o método da dúvida, e, ao
há efetivamente matéria. Há urna me a com uma certa natureza mostrar que as coisas subjetivas são as mais certas, Descartes pres-
intrínseca, e que continua a existir quando não e tou a olhar, ou tou um grande serviço à filosofia, um serviço que faz Descartes
é a me a apenas um produto da minha imaginação, uma mesa ser ainda hoje útil para todos os estudantes da disciplina.
onírica num sonho muito prolongado? Esta pergunta é da maior Mas é preciso algum cuidado ao usar o argumento de Descar-
importância. Poi e não pudermos ter a certeza da existência in- tes. "Eu penso, logo eu existo" afirma algo mais do que O estri-
dependente de objeto , não podemo ter a certeza da existência tamente certo. Poderia parecer que temos completa certeza de
independente do corpo das outras pe oas, e consequentemen- sermos a mesma pessoa hoje que fomos ontem, e isto é sem dú-
te ainda menos das mentes das outras pessoas, pois não temos vida verdade em algum sentido. Mas o Eu [seij] real é tão difícil
razões para acreditar nas suas mente exceto as que derivam da de alcançar quanto a mesa real, e não parece ter aquela certeza
observação dos seus corpos. Assim, se não podemos ter a certeza absoluta e convincente que pertence às experiências particulares.
da existência independente de objetos, ficaremos sozinhos num Quando olho para a minha mesa e vejo urna certa cor castanha, o
deserto - pode ser que todo o mundo exterior nada seja senão que é assaz certo desde logo não é "Eu estou a ver uma cor casta-
um sonho, e que só nós existamos. Isto é uma possibilidade des- nha", mas antes "uma cor castanha está a ser vista". Isto envolve,
confortável; mas apesar de não se poder estritamente provar que é é claro, algo (ou alguém) que vê a cor castanha; mas não envolve
falsa, não há qualquer razão para supor que é verdadeira. Neste em si aquela pessoa mais ou menos permanente a que chamamos
capítulo temos de ver por que razão isto é assim. "eu". No que respeita à certeza imediata, poderia o algo que vê a
Antes de nos entregarmos a matérias duvidosas, tentemos cor castanha ser assaz momentâneo, e não o mesmo que o algo
encontrar um ponto mais ou menos fixo para começar. Apesar que tem uma experiência diferente no momento seguinte.
de estarmos a duvidar da existência física da mesa, não estamos Assim, são os nossos pensamentos e sentires particulares que
a duvidar da existência dos dados dos sentidos que nos fizeram têm certeza primitiva. E isso tanto se aplica aos sonhos e alucina-
pensar que havia uma mesa; não estamos a duvidar que, quando ções como às percepções normais: quando sonhamos ou vemos
olhamos, nos aparece uma certa cor e forma, e que quando nela um fantasma, temos certamente as sensações que pensamos que
fazemos pressão todos temos experiência de uma certa sensação temos mas, por várias razões, sustenta-se que nenhum objeto
de dureza. Tudo isto, que é psicológico, não estamos a pôr em físico corresponde a estas sensações. Assim, a certeza do nosso
questão. De fato, ainda que tudo o resto possa ser duvidoso, pelo conhecimento das nossas próprias experiências não tem de se li-
menos algumas de nossas experiências imediatas parecem absolu- mitar seja como for para permitir casos excepcionais. Aqui temos,
tamente certas. portanto, uma base sólida, que vale o que vale, para começar a
Descartes (1596-1650), o fundador da filosofia moderna, inven- nossa procura de conhecimento.
tou um método que pode ainda ser usado com proveito - o mé-
todo da dúvida sistemática. Determinou ele que em nada acredi-
taria que não visse muito clara e distintamente que é verdadeiro.
240 • Leitura eEscrita de Textos Argumentativo
Estratégi,as de Leitura Ili - Outros Fichamentos • 241
•
...
•
. .
. • ..
... -
Ficha de análise conceituai
. .. . .•• .. ... .
.
-
: •• 1 -
-
-
-
.. -
m
, ,. ,. ,. Texto: ARENDT, H. O que é Política? 5. ed. Trad. R. Guarany. Rio de Janeiro, Bertrand Brasil,
2004 [1993], pp. 28-31.
• • -
...• • • • • • ...• . . • • • •• •
• ... .
Preconceito
.... . .
-
Aspectos extensionais. os preconceitos são componentes da experiência cotidiana e, dessa forma,
.. • •
. .. .
•••
...... ..• • • ••
-
-
-
• -
,. fazem parte da dimensão política entendida em sentido amplo (pp. 28-29). Todas as pessoas se
servem de preconceitos na experiência cotidiana, pois por meio deles se assimilam os dados
• • • -
confrontados sem ter de elaborar juízos (opiniões proposicionalmente desenvolvidas), 0 que
• •
.
... • .. -
.••
- . - . • •
.. .
•
-
.
• -
. ,
• ,. _,.
exigiria uma dose de atenção às situações vividas muito maior do que o normal (p. 29).
Aspectos intensionais. os preconceitos devem ser compreendidos, em seu aspecto mais geral,
. . • • • • •
•
... .. ...
•
. • - como instrumentos cognitivos que permitem apreender as situações vividas conforme parâmetros
• . .•
• .••• • -• 1 - gerais de atribuição de sentido. Esses parâmetros são bastante peculiares: eles não portam a
.. ..
evidência oriunda da atestação direta, mas remetem a um modo anônimo de pensar acerca das
ito d mar a do boato apresentava coisas irreais aos seus sentidos, numa fantasmagoria
perpétua; poderia ser muito improvável que tal demônio existisse,
mas mesmo assim era possível, e consequentemente a dúvida sobre
coisas percepcionadas pelos sentidos era possível.
4 Mas a dúvida sobre a sua própria existência não era possível,
2)
pois se ele não existisse, nenhum demônio o poderia enganar. Se
Texto: R ELL B. O Problemas da Filo ofia, Trad. D. Murcho. ele duvidava, tinha de existir; se tinha quaisquer experiências, não
Li boa Ediçõe 70, 200 [1912] cap. 2 pp. 79 1. importa quais, tinha de existir. Assim, a sua própria existência era
1 e te capítulo temo d no p rguntar m algum ntido, para ele uma certeza absoluta. "Penso, logo existo" ( Cogi,to, ergo sum);
há efetivamente matéria. Há uma me a com uma rta natur za e com base nesta certeza entregou-se ao trabalho de construir outra
intrín eca, e que continua a xi tir quando não tou a olhar, ou vez o mundo do conhecimento que a sua dúvida tinha deixado em
é a me a apena um produto da minha imagina ão , uma me a ruínas. Ao inventar o método da dúvida, e, ao mostrar que as coisas
onírica num onho muito prolongado? E ta p rgunta , da maior subjetivas são as mais certas, Descartes prestou um grande serviço à
importância. Poi não pud rmo t r a c rteza da xi tência in- filosofia, um serviço que faz Descartes ser ainda hoje útil para todos
o estudantes da disciplina.
dependente de objeto não podemo ter a certeza da exi tência
5 Mas é preciso algum cuidado ao usar o argumento de Descartes.
independente do corpo da outras pe oas, e con equentemente
"Eu penso, logo eu existo" afirma algo mais do que o estritamente
ainda meno das mente das outras pe oas, poi não temo razões
certo. Poderia parecer que temos completa certeza de sermos a mes-
para acreditar nas uas mente exceto as que derivam da observação
ma pessoa hoje que fomos ontem, e isto é sem dúvida verdade em
do seus corpo . im se não podemo ter a certeza da existência
algum sentido. Mas o Eu [seif] real é tão dificil de alcançar quanto
independente de objeto , ficaremo azinhos num de erto - pode
a mesa real, e não parece ter aquela certeza absoluta e convincente
er que todo o mundo exterior nada eja enão um onho, e que só
que pertence às experiências particulares. Quando olho para a mi-
nó exi tamo . I to é uma po sibilidade de confortável; mas ape ar
nha mesa e vejo uma certa cor castanha, o que é assaz certo desde
de não e poder e tritamente provar que é falsa, não há qualquer
logo não é "Eu estou a ver uma cor castanha", mas antes "uma cor
razão para upor que é verdadeira. este capítulo temos de ver por
castanha está a ser vista". Isto envolve, é claro, algo (ou alguém)
que razão isto é assim.
que vê a cor castanha; mas não envolve em si aquela pessoa mais
2 Antes de nos entregarmos a matérias duvidosas, tentemos
ou menos permanente a que chamamos "eu". No que respeita à
encontrar um ponto mais ou menos fixo para começar. Apesar de
certeza imediata, poderia o algo que vê a cor castanha ser assaz
estarmos a duvidar da existência fisica da mesa, não estamos a du-
momentâneo, e não o mesmo que o algo que tem uma experiência
vidar da existência dos dados dos sentidos que nos fizeram pensar
diferente no momento seguinte.
que havia uma mesa; não estamos a duvidar que, quando olhamos,
6 Assim, são os nossos pensamentos e sentires particulares que
nos aparece uma certa cor e forma, e que quando nela fazemos
têm certeza primitiva. E isso tanto se aplica aos sonhos e alucina-
pressão todos temos experiência de uma certa sensação de dureza.
ções como às percepções normais: quando sonhamos ou vemos
Tudo isto, que é psicológico, não estamos a pôr em questão. De fato,
um fantasma, temos certamente as sensações que pensamos que
ainda que tudo o resto possa ser duvidoso, pelo menos algumas de
temos mas, por várias razões, sustenta-se que nenhum objeto físico
nossas experiências imediatas parecem absolutamente certas.
corresponde a estas sensações. Assim, a certeza do nosso conheci-
3 Descartes (1596-1650), o fundador da filosofia moderna, inven-
mento das nossas próprias experiências não tem de se limitar seja
tou um método que pode ainda ser usado com proveito - o método
como for para permitir casos excepcionais. Aqui temos, portanto,
da dúvida sistemática. Determinou ele que em nada acreditaria
uma base sólida, que vale o que vale, para começar a nossa procura
que não visse muito clara e distintamente que é verdadeiro. Fosse
de conhecimento.
o que fosse de que conseguisse duvidar, duvidaria, até ver razão
para não duvidar disso. Ao aplicar este método, ficou gradualmente
convencido de que a única existência de que poderia estar deveras
certo era a sua própria. Imaginou um demônio enganador, que
28. Caso se queira prosseguir com a análise conceituai do texto, deixamos in~i~ados os _:onceitos que mais
claramente estão ligados à noção de preconceito e devem receber uma analise especifica.
246 • Leitura eEscrita de Te tos Argumentativos
Estratégias de Leitura III - Outros Fichamentos • 247
Ficha de análi e de argumento Mas, 1-[a d~vi~a sobre a _sua própria existência não era possível:@2-[se ele não existisse,
Texto: Ru
2, pp. 79-81.
ELL B. Os Prob/,emas da Filo ofia. Trad. D. Murcho. Li boa Edi õ 70 2008 cap.
quer experiências, não importa quais, tinha de existir].
para ele uma certeza absoluta].
e
nenhum demomo o podena enganar]. 3-[Se ele duvidava, tinha de existir]; 4-[se tinha quais-
5-[a sua própria existência era
7. " ma cor ca tanha e tá a er vi ta' não n ol m i aqu la p oa maí ou m no per- pas ado e um porvir brotam quando eu me estendo em direção a
manente a que chamamo u '. eles. Para mim mesmo, eu não estou no instante atual, estou tam-
9. ão é o Eu [seij] real mas oment no o p n am nto ntire parti ular qu tAm bém na manhã deste dia ou na noite que virá, e meu presente, se se
certeza primitiva. quiser, é este instante, mas é também este dia, este ano, minha vida
. Certeza ab oluta e convincente é certeza primiti inteira. Não é preciso uma síntese que, do exterior, reúna os têmpora
B. e algo não parece t r certeza ab oluta convin ent , ntão d e r d con iderado. em um único tempo, porque cada um dos têmpora já compreendia,
além de si mesmo, a série aberta dos outros têmpora, comunicava-se
Diagrama:
interiormente com eles, e porque a "coesão de uma vida" é dada
..J,
com seu ek-stase. A passagem do presente a um outro presente, eu
não a penso, não sou seu espectador, eu a efetuo, eu já estou no
5 + 6 + 7
..J,
presente que virá, assim como meu gesto já está em sua meta, eu
mesmo sou o tempo, um tempo que "permanece" e não "se escoa"
1 + 2 + 3 + 4 +A +B
..J,
nem "muda", como Kant o disse em alguns textos. À sua maneira,
o senso comum apercebe esta ideia do tempo que se antecipa a si
9
mesmo. Todo mundo fala do tempo, e não como o zoólogo fala do "O" te-.npo:
Comentários avaliativo : cão ou do cavalo, no sentido de um nome coletivo, mas no sentido pe,y~
E e é um rrecho difícil que comporta mai de uma interpretação po sível. Em nossa análise, de um nome próprio. Por vezes, até o personificam. Todo mundo
9, conclu ão final e egue quase como mera reformulação de 3 e 4. 4 afirma que o eu "não pensa que ali existe um único ser concreto, presente por inteiro em
parece ter a certeza das e periências particulares, e a partir de 5 até 8 oferecem-se as razões cada uma de suas manifestações, assim como um homem está em
que ju ti.ficam que de fato e e não é o caso. A conclusão 9 nada faz senão passar de "não cada uma de suas falas. Diz-se que existe um tempo, assim como se
parece ter" para 'não tem me mo", por as im dizer, ou seja, confirma que a certeza primitiva diz que existe umjato d 'água: a água muda e o jato d'água perma-
pertence omente às experiências particulare e não a algum eu que acompanharia, como algo nece porque a forma se conserva; a forma se conserva porque cada
idêntico, a todas elas. a verdade, a inferência de 1, 2, 3 e 4 para 9 parece supor a vigência do onda sucessiva retoma as funções da precedente: onda impelente em
próprio critério carte iano da dúvida ( expre so em B): se se pode duvidar de algo, isto é, se relação àquela que impelia, ela se torna, por sua vez, onda impelida
se pode conceber esse algo como não existindo, então não se tem certeza absoluta desse algo. em relação a uma outra; e enfim exatamente isso provém do fato
Tai como formuladas, as inferências parecem válidas. Por sua vez, as premissas também de que, desde a fonte até o jato, as ondas não são separadas: há
parecem aceitáveis. ale notar que a sequência do texto (final do § 6) poderia ser considerada um só ímpeto, uma única lacuna no fluxo bastaria para romper o
como uma extensão desse argumento, na qual se defende que a certeza primitiva vale para jato. É aqui que se justifica a metáfora do rio, não enquanto o rio
quaisquer experiências imediatas, sejam ou não fantasiosas. Compreendemos esse trecho como se escoa, mas enquanto ele permanece um e o mesmo. Mas esta
um esclarecimento do resultado central obtido no excerto aqui analisado: a atribuição de certeza intuição da permanência do tempo está comprometida no senso
primitiva às experiências particulares imediatas (quaisquer que sejam elas). comum, porque ele o tematiza ou o objetiva, o que é justamente a
maneira mais segura de ignorá-lo. [ ... ]
Comentários gerais:
Os três argumentos cumprem distintas funções ao longo da exposição. O primeiro estabelece
a importância do tema a ser explorado na sequência do capítulo. Já o segundo retoma sucinta-
Ficha de análise de metáfora
mente o núcleo da reflexão cartesiana que busca uma evidência absoluta capaz de fundar de
Texto: MERLEAU-P0NTY, M. Fenomenowgia da Percepção. 2. ed. Trad. C. A. R. de Moura. São
modo indubitável o conhecimento. Por sua vez, o terceiro defende uma conclusão ainda mais
precisa que aquela de Descartes, excluindo a noção de eu do domínio das certezas primitivas Paulo, Martins Fontes, 1999, pp. 564-565.
e limitando-as a experiências particulares imediatas. 1) Esquemas metafóricos explícitos
Campo de comparação Campo comparado
3) Comentário geral Desenvolvimento de ideias. cabe explorar as relações entre preconceitos e opiniões judicativas no
A experiência do tempo é fugidia e difícil de ser descrita diretamente. O autor se serve da âmbito da política. O preconceito se dissemina sem grande esforço intelectual; é um esquema
metáfora do jato d'água para esclarecer alguns de seus aspectos constituintes. Em particular, a explicativo simplificado que simplesmente é reativado diante de fatos novos para apreendê-
metáfora toma visível o entrelaçamento entre forma permanente e variabilidade constante dos -los conforme certa orientação vigente. Já a opinião, tal como definida por Arendt, exigiria a
conteúdos: a forma do jato só se mantém fixa porque as ondas de água se sucedem initerrup- formação de juízos e sua avaliação em complexas práticas comunicativas de convencimento
tamente. A forma não é, então, algo que existe separadamente do conteúdo e o ordenaria do racional. Se as pessoas se julgam satisfeitas com o modo "preconceituoso" de avaliar os fatos,
exterior, por assim dizer. A forma atesta a constância da passagem do conteúdo. Em relação ao então o âmbito político tem sua dimensão racional enfraquecida, e as discussões se reduzem
tempo, essa ideia revela que não há privilégio da permanência de um foco presente sempre a um embate de forças: as concepções preconceituosas com mais partidários simplesmente se
constante, como se a partir daí organizássemos toda a experiência temporal. É porque há uma impõem sobre as outras, e as decisões são tomadas não por sua razoabilidade, mas por melhor
252 • Leitura e Escrita de Te. tos Argurnentativos
7.1 APRESENTAÇÃO
1. Não há uma correlação necessária, em termos gerais, entre o texto e a leitura a que está destinado; mas
há produção de textos intencionalmente voltados para certos tipos de leitura.
256 • Leitura e Escrita de Te tos Argumentativo
Introdução à Escrita Argumentativa • 25 7
partilhando com a leitura a d limitação d algumas funções qu d marcam o os interessados podem aprimorar sensivelmente sua habilidade expressiva e,
âmbito da formação rastreada ne te livro. Importa-no ntão n sta part final assim, tornarem-se capazes de produzir textos bem articulados e pertinentes
do livro focar-nos na escrita de te ' to argum ntativo orno face complementar do acerca dos temas de estudo. É em direção dessa capacitação metodicamente
processo formati o até aqui e plicitado por m io da 1 itura abrangente. reprodutível para a escrita de textos argumentativos que vamos nos encami-
A escrita será abordada de man ira ba tant imilar à 1 itura. Trata-se nhar no restante do livro.
de e plicitar estratégias qu capacit m o int r ado para a produção bem-su-
cedida de te to argum ntati o . O treino d trat "gia d e tudo contribui
7.2 DA LEITURA À ESCRITA
para uperar preconc p õe implificadora da dificuldade do estudantes
ou autodidata em cumprir m a tarefa formati a . o caso da leitura, o A escrita argumentativa está engatada à leitura abrangente. Ao praticar
treino de e tratégias permitiu combater o pr cone ito de que se lê por meio principalmente as técnicas de fixação do sentido lido, os fichamentos, o leitor
de um proce o automatizado tabelecido definitivamente na alfabetização já produz quantidades consideráveis de material escrito. Configura-se então o
bá ica. leitura na erdad tá uj ita a con tante aperfeiçoamentos e a nível inicial da escrita argumentativa, a saber, os textos de registro de estudo, isto é,
exercício ba tante e pecializado como a técnica dos fichamento compro- fichas produzidas para o entendimento e a avaliação das obras estudadas. Esse
va. O me mo preconceito também de e er combatido em relação à escrita, primeiro nível de escrita basta-se como material de consulta particular. Em ge-
como e e a habilidade e decidi e totalmente na alfabetização inicial, e não ral, os textos desse domínio não são voltados para outros leitores que não seu
houve e nada a er propo to no ensino superior para resolver as dificuldades próprio autor, valendo como meio privado para sedimentar o entendimento.
particulares da e crita acadêmica. Outro preconceito ligado à escrita que tam- Vale acentuar que mesmo nesse nível primordial de escrita várias habilidades
bém pode ser diluído pelo ensino de estratégias é aquele do suposto talento importantes para a construção de muitos outros tipos de textos são exercitadas:
natural para a produção literária. Segundo essa concepção, passível de inúme- aprende-se a nomear operações ilocutórias, a sintetizar trechos, a reconstruir
ras variantes quem escre e bem manifesta uma espécie de dom incomparável, argumentos, a esboçar críticas etc. Em suma, a realização esmerada da leitura
diante do qual só cabem admiração e lamentação por dele não partilhar. Ha- ~ 1abrangente implica certo desenvolvimento da expressividade escrita. Ler bem
veria aqueles que escrevem bem como que por dádiva divina e os demais, que já é por si só, nesse sentido, um aprendizado para escrever bem.
deveriam contentar-se com a mediocridade expressiva. Ora, não se contesta Interessa agora oferecer orientações metodológicas concretas para a pro-
que certas pessoas demonstram maior facilidade para a produção escrita; no dução de um segundo nível de material escrito, a saber, os textos para circulação
entanto, amiúde, essa facilidade é sinal de um longo processo de aprendiza- pública. Muitos são os formatos desses textos, cada um contendo sua própria
do, ao longo do qual o escritor assimilou, por vezes irrefletidamente, padrões gama de desafios: dissertações de conclusão de curso em disciplinas acadêmicas,
sofisticados de expressão literária. Pessoas expostas a vários anos de um bom textos para publicação em revistas especializadas ou meios de grande circula-
ensino de redação ou que conviveram desde a infância com leitores e escrito- ção, textos para partilhar com colegas em grupos ou fóruns de discussão, textos
res experientes são cotidianamente motivadas a reproduzirem o exercício da parciais na construção de uma pesquisa de longa duração em uma pós-graduação
escrita de forma refinada. Nesses casos, aperfeiçoam-se continuamente, porém etc. Suponhamos que os leitores deste livro não tenham nenhum interesse em
quase de maneira despercebida, as capacidades expressivas, que são, depois, jamais escrever um texto para circulação pública. Nesse caso, a escrita de textos
julgadas brotarem espontaneamente, já que as incontáveis situações de treino de registro de estudos seria já o bastante para a expressão de suas ideias. Con-
da produção escrita foram vivenciadas sem grande destaque reflexivo. Em ou- tudo, é improvável que alguém dedicado arduamente a incorporar as técnicas
tras palavras, situações de aprendizado explícito e implícito são esquecidas em da leitura abrangente não tenha nenhuma pretensão, ou mesmo obrigação, de
sua banalidade, e os efeitos duradouros do treino constante aparecem como escrever, para além de suas notas particulares, textos que serão lidos e conse-
exercício de um dom notável. O ponto a se acentuar nessa descrição sumária quentemente avaliados por outras pessoas. Tal como acentuado nos capítulos
é que a maestria da escrita supõe repetidos exercícios para o domínio dos recursos anteriores, a leitura abrangente é parte de um método de formação capaz de
textuais, de maneira que nenhum mau escritor atual precisa se contentar com inserir o leitor em um campo disciplinar partilhado por muitos colegas. Ler bem
sua mediocridade. Decerto, não há fórmula para a excelência expressiva, e atesta a esses colegas a capacidade do leitor de reconstruir as bases teóricas dos
muitos traços da história pessoal pesam de modo incalculável para a densifi- tópicos estudados, possibilitando que ele tome parte em uma cadeia multigera-
cação do talento para a escrita. Entretanto, guiados por estratégias metódicas, cional de conhecimento. E o campo de estudos aberto pela leitura abrangente
25 8 • Leüura e Escrita de Te. tos Argumentativo
Introdução à Escrita Argumentativa • 25 9
privado, é no fundo algo antajo o. Afinal d di ou à tar fa da l itura 7.3 ETAPAS DA ESCRITA
abrangente o autor incorporou critério b m d finido para avaliar se uma
progre ão expositi a avança co rent m nt , ão b m explo- Como vimos, a produção das fichas de leitura constitui o primeiro nível
rado em suas vária dimen õe ignificati o argumentos ão convincen- de escrita argumentativa, aquele que denominamos textos de registro de estudo.
tes. Ba ta agora aplicar critério d análi a seus próprios textos, com Foram sugeridos, na segunda parte do livro, modelos detalhados para esses textos,
uma diferença crucial em relação ao t to de outros autores e tudados: no de maneira a permitir a produção de um material que servisse para a fixação do
ca o do próprio te to, pod modificar o qu apar c como falho, comple- conteúdo lido e mesmo para pequenos exercícios de tomada de posição diante
mentar pas agen vaga corria-ir rro notado na revisão etc. Em suma, com dele. Em relação ao nível superior de escrita argumentativa, aquele dos textos
a prática da leitura abrang nt dota- e o ercício de ler com uma densidade para circulação pública, seguiremos um roteiro similar. Vamos delinear um modelo
analítica que será extremam nte útil para a construção dos próprios textos. O geral para textos desse tipo e apresentar estratégias específicas para as etapas
autor empre rá leitor d i me mo e e a po ição auxilia notavelmente a de sua realização. Consideremos, então, que a escrita de textos argumentativos
produção e pre iva: uma z bem aplicado o critérios da leitura abrangente para circulação pública é um processo composto de ao menos três momentos:
aos próprio te tos tomam- e por guia para a e crita pessoal os padrões pelos
quai as obras e tudadas foram apreendidas.
a. Contextualização
Devemos insistir em que o autor não é só leitor de si mesmo nas etapas
Trata-se, inicialmente, de ganhar clareza acerca dos aspectos situacionais
finais de sua produção escrita, apenas para garantir a comunicabilidade de
condicionantes da produção do texto. Questões centrais nessa etapa são:
suas ideias. Tal como mencionado há pouco, em grande medida, o autor sabe
de suas próprias ideias como leitor, isto é, por meio dos esboços que vai pau- • Qual o motivo da escrita?
latinamente produzindo não somente para veicular um conteúdo previamente • tarefa obrigatória (avaliação em uma disciplina universitária).
acabado, mas para a ordenação e a expansão das próprias ideias. O encadea- • texto para ser publicado.
mento puramente espiritual normalmente não avança muitos elos sem riscos
• texto para discussão com colegas.
de esquecimentos e simplificações. Logo, o próprio desvelamento das ideias,
para ocorrer de modo mais frutífero, supõe a escrita. Por meio dela, por • Qual o público em vista?
exemplo, os autores retomam temas explorados dias antes, revivendo um fio • Qual o gênero adotado?
expositivo sem precisar ter mantido um foco mental constante no tema. Além • Qual o tempo disponível para a produção do texto?
disso, as formulações escritas das ideias sugerem conexões conceituais não
antevistas, ampliando enormemente as possibilidades de progressão temática. b. Preparação
Importa acentuar, em suma, que a maturação das ideias exige muitas camadas Uma vez delineado o tipo de texto almejado para determinada situação em
de escrita para que as conexões conceituais se precisem e se delimitem. Escre- pauta, iniciam-se as atividades ligadas à produção do texto almejado. As tarefas
ver bem textos argumentativos, isso deve ficar nítido, dificilmente é algo que centrais nessa etapa são:
se cumpre de uma só vez. Os aspirantes a autor devem se acostumar com a
• Assimilação do material de partida (leitura e fichamento de obras
repetição sistemática do exercício da escrita para a construção progressiva de importantes).
um texto. Porquanto a produção de sentido não é atividade prévia à escrita,
• Esboço esquemático da exposição.
mas justamente o propósito maior de sua prática, deve-se admitir que a versão
final dos textos (com temas bem encadeados, conceitos bem articulados, argu- c. Realização
mentos convincentes) supõe a produção de várias versões intermediárias ou pro- Por fim, trata-se de produzir o texto almejado. As principais tarefas nesse
visórias. As estratégias que serão tratadas não vão levar à produção mágica das ponto são:
versões definitivas dos textos almejados, mas acentuam recursos expressivos a
serem pacientemente incorporados nos textos escritos, o que normalmente re- • Escrita de sucessivas versões, visando à precisão temático-conceitua!.
quer a disposição para esboçar diversas versões em que se ganha passo a passo • Emprego de recursos textuais específicos da exposição argumentativa.
precisão expressiva. • Formatação, inclusão de referências, revisão.
262 • Leitura e Escrita de Textos Argumentativo Introdução à Escrita Argumentativa • 263
Discutamos, no restante do capítulo a dua primeiras etapa d ixemos solo segur~ de competência de escrita, com base no qual os aspirantes a autor
para o próximo capítulo a e ploração do tópico r f, rent à t rc ira etapa. podem arnscar-se ª experimentar, posteriormente, possibilidades literárias mais
complexas. Em t~do c:15~, ~ale notar que essa perspectiva de enriquecimento dos
formatos
~
expressivos e limitada pelos parâmetros de co mumcaçao
· - exigi · 'dos em
7.3.1 A Conte tualização da Escrita c_ada area do saber. Papers de ciências exatas ou biológicas possuem uma forma
~imple~s e pouco sujeita a "enriquecimentos expressivos". É assim porque nessas
E ta etapa se refere principalm nt às motiva ões que levam uma pessoa areas e consensual que esse formato transmite de modo efiicaz as m.1ormaçoes
· e -
a tomar- e autor de um te to à deci õe mai gerais que condicionam o pro- relevantes_ das pe~quisas em andamento. Além disso, 0 formato rígido facilita a
cesso da e crita. otemo que a produção dos textos de registro de estudo não colaboraçao de diferentes grupos de pesquisa (por vezes de países diferentes)
precisa remeter a nenhuma grande motivação e terior aos interesses do leitor. pois fica bastante claro a todos, apesar de suas peculiaridades locais, 0 tipo d~
Obviamente na maior parte dos casos, vai-se ler tais e tais textos (e produzir resul~d~o esp_e~ado pela comunidade científica global de que fazem parte, 0 que
as fichas de análi e de eu conteúdo) devido a obrigações em cursos de vários por s1 so aux1ha na organização e execução das tarefas investigativas.
formato · além di o o de ejo de aprofundar- e em certo tópico já é suficiente Outro tópico diretamente ligado às restrições gerais para a produção do
para que alguém pas e a e tudar autodidaticamente e a produzir material es- texto em ~~ta é aquele ~o público l,eitor. Saber a quem o texto se destina segura-
crito re ultante das leituras metodicamente conduzidas. Por sua vez, a própria mente fac1hta sua orgamzação. Ao escrever para que o texto circule entre certo
natureza do textos para circulação pública exige algum contexto mínimo capaz p~bl~co específico, _os modos privilegiados de compreensão partilhados por tal
de engajar a pessoa a tomar-se autor. Esse contexto é delimitado pelo tipo de publico devem entao balizar a produção textual. O texto será devidamente en-
circulação a que o texto se destina. Que o texto circule publicamente significa tendido se respeitar as exigências de inteligibilidade do público visado. Mesmo
que ele será lido por outras pessoas, por um público específico, o que deve ser uma dissertação final em um curso universitário, destinada somente à leitura de
levado em conta em sua produção. Isso posto, a tarefa mais básica e que inicia professores, não dispensa reflexões acerca dessas exigências. Afinal, professores
o longo processo de escrita de um texto almejado a circular publicamente é atentos a seu papel no processo formativo não leem as dissertações dos estudantes
inteirar-se sobre as características do circuito de leitura em questão. Em parti- conforme suas variações de humor ou preferências idiossincráticas injustificadas,
cular, é decisivo se o texto deve ser produzido obrigatoriamente como parte de mas buscam exercer o ponto de vista de um 1,eitor qualquer bem formado e interes-
algum tipo de avaliação ou se é fruto de uma iniciativa voluntária. Afinal, os sado pelo tópico em vista. O professor representa, então, o público comumente
textos como cumprimento de processos avaliativos estão normalmente subme- almejado por quem escreve na área em questão, e suas observações devem en-
tidos a restrições mais rígidas de formato, conteúdo, retomada de bibliografia sinar os estudantes a se dirigirem de modo compreensível a esse público. Daí
secundária etc. Não que os textos escritos voluntariamente não se submetam a os pedidos de "desenvolvimento" de certos trechos, de "esclarecimento" sobre 0
parâmetros externos de organização. Na verdade, como exercício de algum tipo uso de determinados conceitos quando da correção dos textos. Aponta-se, nes-
de "gênero", a escrita naturalmente respeita certas formas expressivas consagradas ses casos, para o que falha na exposição, para o que ainda não seria entendido
no âmbito de circulação almejado. Contudo, sem as pressões bem determinadas por um público capacitado e interessado no tópico em vista. É por tudo isso
das avaliações acadêmicas, talvez se tenha mais margem para escolher formas que, mesmo ao dirigir-se a um único professor como público leitor efetivo de
expositivas, para alongar certos temas, variar o enfoque etc., o que obviamente sua dissertação, o estudante deve almejar repor os padrões de inteligibilidade
não significa a ausência de regras referentes ao gênero praticado. Com efeito, gerais vigentes na área em questão, e não agradar a um indivíduo específico.
é comum que durante a formação oficial em cursos acadêmicos, treinem-se Além disso, quando se produzem textos para revistas ou jornais, normalmente
diferentes formatos de escrita. Parte-se de modelos bastante rígidos, para que os padrões de inteligibilidade para o público-alvo estão codificados nas normas
os estudantes aprendam a dominar formas escritas que, embora relativamente para a preparação dos originais. Em suma, qualquer que seja a circunstância da
estereotipadas, garantem um domínio gradual da expressividade privilegiada produção de um texto para circulação, deve-se considerar o público a que se
na área em questão. Dada certa experiência nesses formatos mais básicos, tem- dirige, o que significa submeter-se a padrões de ordenação temática e expositiva
-se segurança para variar elementos estruturais, compondo, então, textos mais consagrados na área em questão.
densos. Em suma, a boa formação acadêmica parte de modelos simples de Outro tópico importante nessa contextualização inicial da escrita é o
textos não para limitar as possibilidades expressivas, mas para estabelecer um gênero a ser praticado. Decidir previamente qual gênero textual será exercido
264 • Leitura e Escrita de Te tos Argumentativo
Introdução à Escrita Argumentativa • 265
direciona significativamente a p qui a temática p rmit ant cipar o sforços tex~os argumentativ~s _normalmente é um processo demorado e que exige um
específicos para a produção em foco (que tipo d r fi rência bibliográfica será penodo final de revisao. Apenas com uma boa gestão do tempo disponível à
priorizado, quais recur o estilístico treinar te.). É comum qu c rto gAneros luz das tarefas _exigidas é que se preservarão as condições cotidianas requeridas
literários sejam privilegiados concomitant m nt à circun crição da motivações para a produçao textual bem-sucedida.
para a e crita e do público almejado. crita como parte do proc s o avalia-
tivo em cur os superiore ou como po ibilid d d publicação m revistas e
jomai comumente é e "ercida m conformidad com algun padrõe típicos 7. 3. 2 A Preparação para a Escrita
de literalidade. Muitas ez não cab r ' o autor colher o g Anero pr ferido,
mas im treinar a proficiência m det rminado tilo proeminente no âmbito de Passemos ao processo preparatório diretamente ligado ao texto em vista.
e tudo em que e tá in rido. E tal como notado m outro capítulo, é notório Em particular, deve-se dar destaque nesta etapa à inserção do tema em sua
o privilégio do o-Anero tratadí tico e do comentário nos contextos formativos área disciplinar ou ao menos no campo de referências básicas sobre O que se
de ciênci e filo ofia. Há de fato razõe didáticas para tanto. O ponto de vista pretende discutir. Tal como vimos nos capítulos anteriores, as problemáticas
relati amerrte neutro a umido na narrativa tratadística diante de estados de argumentativas remetem a longas tradições procedimentais e temáticas, cujos
coisa que aparecem independentes de sa descrição facilita o desenvolvimento conteúdos (ou ao menos certas discussões particulares em seu interior) devem
da expo ição. Pode-se legitimamente questionar se os pressupostos epistêmicos ser recuperados para atribuir significatividade e pertinência ao que se pretende
do tratado não e configuram por vezes como obstáculos para certas problemá- tratar na escrita. Escrever argumentativamente supõe, em consequência, a capaci-
ticas das quais a própria formulação linguística não é algo independente, mas dade de retomar, na medida das exigências ou do interesse acerca do tópico em
parte do que deve ser levado em conta para o avanço da reflexão. Em todo pauta, o horizonte de sentido em tomo da problemática estudada. Pode até ser
caso, para inúmeras problemáticas científicas e filosóficas, o gênero tratadístico um exercício útil, tal como sugerido por alguns métodos de escrita acadêmica,
permite um tratamento preciso e aprofundado, que, sem grandes dificuldades, escrever pequenos textos argumentativos acerca de assuntos escolhidos a esmo,
se decompõe em etapas metódicas de construção. De nossa parte, aceitamos essa apenas para o treino da forma expressiva, o que, mesmo assim, não dispensa
virtude didática do gênero tratadístico e ofereceremos um modelo de disserta- o autor de pesquisar alguns dados e posições em vigor. Em todo caso, a escrita
ção argumentativa baseado em seus princípios estilísticos. Esperamos que esse argumentativa só atinge maturidade se toma parte em um processo de estudo
modelo ao menos sistematize um formato inicial de texto com ampla aceitação que permita sedimentar as principais relações conceituais vigentes sobre o tópico
em cursos acadêmicos de variadas áreas, e mesmo em revistas e jornais, acerca de interesse, de modo a fomentar reflexões embasadas nos aspectos centrais do
dos mais diferentes tópicos em níveis de especialização distintos. que se pretende discutir, e não meras reuniões apressadas e por vezes arbitrárias
Antes de nos aproximar desse modelo, vale a pena mencionar, como último do material de referência.
item da contextualização da escrita, o ajuste do tem o dis onível tendo em vista A escrita amadurecida se insere em uma orientação mais ampla de estudo
as exigências. Remetemos o leitor a rever o que foi discutido sobre a preparação metódico. Daí que seja central na etapa preparatória a recuperação dos compo-
para a leitura, no quarto capítulo. Considerações semelhantes valem agora para nentes da problemática em pauta, dos principais posicionamentos defendidos
a escrita, com o agravante de que não há um dado prévio a ser assimilado (por etc. Ora, isso significa que a escrita deve mesmo ser precedida pela leitura e
exemplo, uma obra clássica), pois cabe justamente criar um texto novo, o que pelo fichamento cuidadoso das fontes bibliográficas relevantes para a discussão
envolve dificuldades próprias. Caso se escreva sob exigências de avaliação, pro- em pauta. Preparar-se para escrever em grande medida significa adquirir conhe-
vavelmente não será possível postergar indefinidamente a entrega da tarefa, e a cimento confiável e detalhado sobre o assunto da escrita. Esse conhecimento
adaptação dos resultados desejados tanto às restrições formais vigentes quanto constitui o solo temático, o conjunto de dados e posições sobre o qual o autor
às circunstâncias concretas de estudo é crucial para o sucesso da empreitada. cultivará suas considerações. O bom tratamento argumentativo de um tópico
Cada um deve ganhar clareza acerca das particularidades criativas, dos períodos exige essa recuperação de certo material bibliográfico de partida: as afirmações
mais férteis de trabalho, da capacidade diária ou semanal de escrita, e então do aspirante a autor só se mostrarão pertinentes se se referirem corretamente
montar um cronograma das obrigações. Quanto maior o grau de sinceridade às posições previamente estabelecidas e se recuperarem de modo preciso os da-
sobre si, sobre seu próprio potencial e limites, maior a chance de organizar as dos outrora estabelecidos. Do contrário, sem o lastro de certa tradição reflexiva
tarefas de modo factível. É certo que imprevistos acontecem, mas a escrita de acerca do tópico em vista, o aspirante arrisca-se a simplificar excessivamente os
266 • Leitura e Escrita de Textos Argumentativos
Introdução à Escrita Argumentativa • 267
globais referentes aos gênero argumentati o . Por ort os ficham nto ajudam a 7. 4.1 Introdução
tomar explícitas ao menos as orientaçõ mai ampla d g"n ro d man ira
que cabe tomá-los como guia para a pré-organiza ão da crita. . ~o modelo em foco, a introdução da dissertação exerce papel central,
Talvez o aspecto estrutural mai amplo do t to argum ntativo revelado cond1c10nando a execução de todo o restante do texto. Nela, a proposta geral
pelos fichamentos seja fom cido pelo articuladore lógico explorados na ficha deve ser elaborad~ em torno daqueles três grandes articuladores lógicos dos
sintética. Todo te to argumentativo é e crito t ndo ob a mira certo estado de textos argumentativos. Desse modo, oferece-se aos leitores um esboço bastante
coisas problemático em relação ao qual e vai propor alguma tese, algum posici!!!!:.!!:... inteligível do que se pretende tratar no texto e de qual O caminho expositivo a
'!!:!!!!:.!.!!. que erá defendido conform det rminado caminho argumentativo. Ora, ser seguid~. ~o iniciar o texto organizadamente, o autor favorece a compreensão
e se trata de e cre er um t xto argumentativo um bom com ço ' organizar de _seu p~s1c10namento e conta, em consequência, com mais chances para con-
as ideia com base ne ta tríade: de qual problema o te to vai tratar? Qual tese qmstar o mteresse dos leitores do que se apresentasse algo confuso, que exigiria
o te to apre entará? Qual o cantinho argumentativo para a defesa da tese? Em um esforço enorme somente para entender sobre o que se vai tratar. Em termos
relação a todo texto argurnentati o , e pera- di cernir a problemática geral, o concretos, para obter esses efeitos expressivos, sugerimos que na introdução do
posicionamento as umido e a argumentação empregada progressivamente para texto quatro tarefas sejam cumpridas:
a sustentação de e posicionamento. Cabe então, ao pretenso autor esquema-
a. Apresentação do tema geral.
tizar suas ideia em tomo de ses articuladores gerais, de maneira a assumir um
quadro de organização do pensar que reponha as expectativas mais amplas de • Contextualização do assunto a ser tratado.
inteligibilidade do âmbito em que pretende expressar-se, no caso, o âmbito das
discussões argumentativas. b. Formulação do problema específico da dissertação.
Para arriscar-se nesses níveis up rior s cab dim ntar olidam nt será ~eito. Na introdução, a posição deve ser exibida em seus aspectos gerais;
fundamental da análise argum ntati a qu plorar mo em d talh a guir. ela amda carece de demonstração, por assim dizer, e sua correção não deve ser
O problema interpretati o ão então aqu 1 qu no int rior do campo imediatamente óbvia. Essa exibição inicial deve envolver certa densidade teórica
temático formado por certo onjunto d t to argum ntati o , ug rem clari- que exi~a desenvol~mento e esforço expressivo da sequência da dissertação para
ficaçõe obre o po i ionam nto ali d fi ndido . defende-la. Anuncia-se o alvo da dissertação, mas sem deixar plenamente escla-
não é o caso de julgar a, erdad d e po i ionam nto à luz d circun tâncias recido por que isso resolve o problema, saber que o leitor só adquirirá ao se dar
concreta e im de ofer c r lucidaçõ pontuai obre u componentes. o trabalho de ler o restante do texto. Certamente, o autor deve ter O cuidado
pó a formulação clara do probl ma a r tratado apre ntar ainda de formular a tese de forma a responder ao problema posto anteriormente, e
na introdução do te. to a t ou po 1çao a r d fi ndida pelo autor ( terceira será criticado se não o fizer. Contudo, em sua aparição inicial, a tese não deve
tarefa), que re ponde ao probl ma anteriorment formulado. É imprescindível já exaurir o problema, mas muito mais valer como um sumário dos passos expo-
acentuar que ne e modelo de e crita deve efetivamente haver uma tomada de posição sitivos em que o posicionamento global será desenvolvido.
- - e :plícita que erá detalhada durant a e po ição. Por vezes, em trabalhos de Até aqui já vimos três tarefas cumpridas pela introdução: a tese anuncia
l
fim de curo algun e tudante limitam- e are umir o conteúdo das aulas ou
a reunir trecho do te to lido conforme laços frouxos de interesse. Isso está
a resposta do autor ao problema apresentado no interTc;. de d~ erminado campo
temático. Por fim, cabe esclarecer quais serão as etapas da exposição por meio das
muito aquém do e perado. O autor de textos argumentativos deve acostumar- quais se pretende estabelecer a tese. Evidencia-se, assim, qual caminho argu-
-se a deixar claro para o leitores que o texto tem um propósito, um objetivo, mentativo será percorrido na dissertação. Ao antecipar desse modo a estrutura
a saber defender certa posição pontual, que responde ao problema em vista. expositiva, o autor se compromete a seguir certo fio condutor, enumerando quais
Segundo certo preconceitos difundidos sobre as análises interpretativas, tópicos serão explorados no restante do texto. Passa-se ao leitor a impressão
nelas nada se faz senão repetir os textos estudados, não havendo aí nenhum de controle no tratamento da questão: o autor sabe das fases necessárias para
espaço para a expressão autoral (o que só ocorreria em textos dos níveis avalia- responder ao problema em vista, e o fará não em elucubrações erráticas, mas
tivo e propositivo). Essa é uma visão errada da escrita interpretativa. Ao autor da sim pela montagem metódica da exposição. Além de sentir-se seguro em relação
dissertação interpretativa cabe tomar decisões não triviais, de modo que a tese ao restante do texto, o leitor, diante dessa antecipação das etapas expositivas,
defendida não é mera reprodução banal dos textos lidos, mas uma construção conta com uma medida oferecida pelo próprio autor para avaliar o fracasso ou
cuidadosa que contribui para o entendimento daquele material de partida. O o sucesso do texto. Afinal, espera-se que todas as etapas anunciadas sejam bem
ângulo de abordagem da obra estudada, a seleção dos trechos pertinentes, a cumpridas; se o autor não realizá-las a contento, se exclui passos expositivos
resolução das dificuldades de entendimento de trechos específicos, tudo isso ou acrescenta novos injustificadamente, então o leitor desconfiará, com razão,
não se reduz a mera repetição, mas marca uma orientação pessoal. Aos leitores dos frutos da empreitada. Exibir claramente qual o percurso expositivo já na
da dissertação deve sempre ficar evidente o que remete aos autores nela estu- introdução significa, destarte, partilhar com o leitor uma medida objeti,va pela
dados e o que remete ao autor da dissertação. E a melhor maneira de marcar qual o autor admite ser julgado ao final da leitura. Trata-se, sem dúvida, de um
essa distinção é formular com clareza qual posição interpretativa será assumida, esforço do autor para consigo, de seguir um roteiro sem se dar a facilidade de
deixando patente que a ordenação lógica das etapas expositivas, a escolha dos atalhos ou o prazer vão de rebuscamentos. A contrapartida é a confiança do
trechos discutidos etc. não é uma manifestação espontânea das obras estudadas, leitor, o esforço recíproco de acompanhar um texto reconhecido em seu esforço
e sim fruto de expressão pessoal metodicamente conduzida. sincero de comunicar.
Em relação à tese ou posição, espera-se que, tal qual o problema, não seja Vejamos alguns exemplos concretos de introduções que incorporaram mui-
nem trivial, o que dispensaria a dissertação, nem altamente complexa, o que to acertadamente essas diretrizes expositivas. Sirvo-me de algumas dissertações
não seria defensável adequadamente no formato de uma dissertação. É preciso recebidas como trabalhos finais em cursos sobre fenomenologia ministrados por
ajustar o que se quer defender com os limites práticos da situação da escrita, mim no departamento de Filosofia da USP. São textos escritos por alunos de
e isso nem sempre é fácil. A formulação da tese na introdução esclarece logo graduação que seguiram de perto as sugestões discorridas há pouco 3 •
ao leitor o objetivo central da dissertação. Daí a importância de se encontrar a
medida da complexidade em sua formulação. Ao ler a posição, o leitor deve ser
capaz de entender aonde o autor quer chegar, embora sem esgotar como isso 3. Os textos são reproduzidos com autorização dos autores.
274 • Lei.tum e Escrita de Textos Argumentativos
Introdução à Escrita Argumentativa • 275
Eis um primeiro e emplo: comparação da posição da filosofia de Husserl, durante esses dois
momentos fundamentais de seu desenvolvimento, em relação ao
Quadro 7.1 - Exemplo 1
pensamento psicologista, buscando entender se houve, nesse sen-
Opo ição ao P icologi mo no De en olvimento tido, transformações importantes e, se as houve, em que termos
da Fenomenologia elas se deram.
za intencional da con ciência uma pequ na teoria da Quadro 7.3 Terceiro exemplo
egundo a qual o atos emotivo não pa ariam de apr
Projeto Fenomenológico e História
qualidade objetiva pre ente no próprio obj to a
con ciência e direciona: não é o ujeito qu atribui ' Thiago Pignata Carezzatto
caráter aferi o mas diz Sartr ' ão as coi a qu Introdução
de vendam para nó como odiávei impáticas, horrí ei Husserl apresenta A Crise das Ciências Europeias e a Fenomenologia
Ora uma tal te e parece ontrariar um dado banal d Transcendental (doravante Krisis), de 1936, como mais uma intro-
cotidiana: o indivíduo !acionam at tivam nt dução à filosofia fenomenológica. Mais do que mais uma intro-
pe oas e evento de manei1 b tante cli tintas. O m mo ca hor- dução, Husserl dirá ser essa a melhor das introduções. Além do
ro que, para mim é adoráv para m u vizinho p d er t mível. elemento da crise, salta aos olhos o caráter histórico da obra, que
I o indicaria que nas no motiva com o mundo, ao é apresentado em um tom de necessidade perante a situação de
meno uma do e de contribuição ubj ti, na con titui ão daqu la crise da Europa. Husserl, que em grande parte de sua trajetória
relação deve er admitida o qu artre não parece reconhecer. tratara a história com certo desdém, a coloca em sua nova intro-
O que leva artre, então, a d fi nd r uma teoria da emo õ tão dução num lugar central.
e tranha ao en o comum? Como entender essa mudança de tom quanto à história? Terá
Procuraremo ne ta di ertação u tentar a te e de que e a a história realmente essa característica indispensável que Husserl
problemática ideia aru·eana a re peito da emoçõe é fruto de parece indicar? Ou será ela apenas um adorno, uma introdução
uma con iderá,el implificação que artre opera em "Uma Ideia grandiloquente à fenomenologia? Se, de fato, for a história neces-
Fundamental" obre a análise hu erliana das funções e estruturas sária, não se entra em choque com a fenomenologia no seu pró-
da con ciência intencional, a qual levava em conta (ao contrário da prio fundamento metodológico da epoché [suspensão de juízo]?
repre entação supostamente fidedigna da doutrina husserliana feita Sem dúvida, a inserção da história suscita diversas questões
por Sartre em eu curto texto) uma érie de contribuições subjeti- para o projeto fenomenológico. Na presente dissertação, quere-
vas ao proces o de constituição de entido dos objeto intencionais mos mostrar que, sim, a história em Krisis é sumamente neces-
para a con ciência. sária. Mais ainda, ela não é necessária apenas para introduzir a
Para tanto, buscaremos expor, na próxima seção, alguns dos fenomenologia, mas para o próprio fazer fenomenológico. Isso
conceitos e aspectos fundamentais da teoria husserliana dos atos não quer dizer que há um abandono dos primeiros projetos de
intencionais da consciência, especialmente na medida em que eles fenomenologia, mas pelo contrário, a necessidade histórica ad-
revelem a participação subjetiva das experiências intencionais na vém do impulso que motivou a fenomenologia desde o começo.
determinação dos objetos que se doam à consciência, conforme Para isso, iniciaremos discutindo o modo pelo qual a história
descritos por Husserl em suas Investigações Lógicas. Em seguida, é anunciada em Krisis, seu pressentimento diante de uma consci-
apresentaremos alguns traços gerais das ideias de Husserl a respei- ência de crise. Além dis o, já abordaremos algumas características
to da configuração dos atos de emoção a partir daquelas funções A~<io1,,p~
daquilo que Husserl entende por história e como será uma inves-
e,,,qJOiit"'vv&y Cv ~em,,
e estruturas básicas da consciência intencional. Na terceira seção, cwn:pv~ tigação desta. Essa noção de história nos será útil para a compa-
retomaremos brevemente a argumentação de Sartre em "Uma Ideia rarmos com as análises da seção seguinte, na qual apresentaremos
Fundamental" no intuito de demonstrar que as determinações o projeto fenomenológico de Ideias I como uma busca por essên-
subjetivas da consciência intencional husserliana parecem não cias válidas incondicionalmente. Estas são tornadas visíveis pela
figurar no esquema das emoções proposto naquele texto. Por fim, epoché, que dentre outras coisas, exclui também a história. O con-
concluiremos a dissertação com breves comentários a respeito dos flito entre epoché e Besinnung (reflexão sobre a história) aparecerá
resultados alcançados nesta comparação entre as fenomenologias aqui em toda sua força. Na seção seguinte, tentaremos diluir esse
husserliana e sartreana. conflito, introduzindo o ideal da filosofia de radicalidade, de se AVUM'\,C,[,0- ~ p ~
livrar dos preconceitos, que norteou a história da filosofia e todo ~01,{;t'wo--y ev á-€-Yewt1
o trajeto fenomenológico. Questionaremos-nos sobre a suficiên- cwn:pv~
Eis ainda um terceiro exemplo: cia de simplesmente proclamar na epoché a exclusão da história
para, de fato, livrar-se dos preconceitos histórico . Desse modo, a
Besinnung- como método que desvela o sentido da história, bem
como obscuridades que podem nos aparecer como obviedades
4. J. P. Sartre, "Uma Ideia Fundamental da Fenomenologia de Husserl: A Intencionalidade", em J. P. Sartre,
Situações 1, trad. C. Prado e B. Prado Júnior, São Paulo, Cosac Naify, 2005, p. 57 [55-57) .
não explicitadas - se mostra em continuidade com a tarefa feno-
2 78 • Leitura e Escrita de Textos Argumentativos
Introdução à Escrita Argumentativa • 279
menológica de no livrar d pr conceito . im pod r mo ra 0 ~roblema que _se quer enfrentar e a posição a ser assumida. Esses esquemas
Besinnung em toda sua nece ariedade a qual na ção po t rior,
gmam a produçao do texto expositivo, e a partir deles, depois de diferentes
erá exemplificada com pelo meno um pr cone ito qu Hu rl
não notara no primeiros e crito e que ó pode r vi to atra é
versões aprimora~as aos poucos, chega-se à versão final. Aconselhamos que os
da Besinnung. Por fim na última eção oncluir m esquemas de partida sejam flexíveis e possam ser alterados conforme a produção
relação mútua entre Besinnung epoché e como a du do texto expositivo exija correções de rumo. Vigora, desse modo, uma circulari-
dade virtuosa entre esquema e exposição: por um lado, os esquemas organizam
o pensar, ordenando a sucessão de ideias a se desenvolverem na exposição; por
E ses e emplo tomam pat nt as virtudes da ordenação do texto em tor- sua vez, na escrita do texto expositivo é comum que se abram caminhos temáti-
no das tarefas propo tas pelo modelo. introduçõe ão apresentadas de modo cos e relações conceituais frutíferas não previstas no esquema, o que leva a uma
organizado, com uma clara divi ão da tar fas expo itivas, as quai se concatenam reorganização do planejamento, a uma reescrita das fichas de esquemas, que . .J'
.
compreen i elmente. Tópico de con iderá el complexidade são expostos em em seguida vo~ta~ a guiar a escrita expositiva, e assim por diante. Cabe avaliar 1 . .,_. .,
f'y/
uma equência lógica que facilita o entendimento. Além disso, por meio des- se essas novas 1de1as despontadas pela escrita não implicam um desvio de foco - - ~
' J"'
es e emplo tem- e uma ideia da e ten ão requerida para perfazer as tarefas abrindo temas auxilia~es que não poderão ser devidamente considerados. Na 1- --."-
constituintes da introdução do te to. Em tomo de duas páginas são suficientes verdade, esboçar previamente o esquema do texto busca prevenir a dispersão
para contextualizar o tema em vista (sem recorrer a obviedades genéricas nem temática e manter nítida qual a progressão relevante. Contudo, mesmo no in-
detalhar exces i amente tópicos ecundários), formular o problema específico terior dessa progressão já bastante delimitada pelo esquema podem aparecer
da dissertação, esboçar a resposta e descrever as etapas expositivas para a sus- conexões conceituais não antecipadas e que valem a pena ser incorporadas. Ou,
tentação da tese. É evidente que muitas variações são aqui possíveis, tanto de por vezes, diante de dificuldades de avançar na escrita conforme o planejado no
extensão quanto mesmo da ordem do cumprimento das tarefas. É cabível iniciar esquema, cabe alterar as pretensões anteriormente delimitadas. Seja como for,
a dissertação pela formulação do problema e então passar à contextualização, abrir-se a conexões inesperadas de ideias é importante no processo de escrita;
que elucida por que ele é relevante, entre outras combinações das tarefas. Em porém, alguma regulação desse processo por esquemas auxilia enormemente,
todo caso, parece-nos um excelente exercício escrever a introdução de um texto economizando tempo e energia ao direcionar o fluxo criativo.
tomando por guia as quatro tarefas em pauta. Familiarizar-se com elas leva a
circunscrever com precisão o âmbito de trabalho no qual a dissertação se desen-
7. 4. 2 Desenvolvimento e Conclusão
rolará, o que oferece marcas de inteligibilidade bastante acessíveis aos leitores.
Um ponto importante deve ser explanado. Vimos alguns exemplos bem- Em certo sentido, a introdução é a parte mais importante do texto disser-
-sucedidos da versão final de dissertações que, sem dúvida, passaram por várias tativo. Nela se fixa o objetivo da escrita (oferecer uma resposta a um problema
correções prévias até atingir tal forma. Dessa maneira, os aspirantes a autor não específico) e se predelineia o caminho expositivo das demais seções. Chamemos
devem se preocupar em ter de escrever sua dissertação inicialmente já de modo de desenvolvimento o que se segue à introdução com o intuito de cumprir os passos
tão elaborado, nem mesmo em ter de começar pelo início. Que a introdução expositivos ali anunciados. Não há um formato padrão para o desenvolvimento,
deva ser a primeira parte da versão final da dissertação não implica que ela te- nem tarefas específicas que marquem seu desenrolar. O que se espera é que aí
nha de ser a primeira parte a ser produzida no exercício da escrita. Por vezes, sejam rigorosamente cumpridas as etapas expositivas sinalizadas na introdução.
vale a pena avançar um pouco na elaboração de temas específicos para ganhar Dividir em sub12arte~ a exposição, intitulando-as conforme as principais etapas
clareza acerca de qual caminho expositivo assumir. Seria irrealista exigir que cumpridas em seu decorrer, é um recurso muito útil para organizar a progres-
somente quando a introdução estivesse perfeitamente pronta se deveria então são expressiva. Devem ter ficado claros na introdução quais os principais passos
passar à escrita das demais partes. É preciso distinguir entre a ordem da exposição expositivos para mostrar a correção da tese proposta. No desenvolvimento, cada
..--.,~ da versão final e a ordem da criação do texto. Essa última pode, em princípio, diferir um desses passos pode corresponder a uma seção. Assim, em geral, essa parte
1bastante da primeira, o que depende de preferências e hábitos pessoais de escrita. intermediária da dissertação tende a se~em mais longa que a introdução.
Em relação a esses últimos, sugerimos fortemente que se escreva, sempre que Também sugerimos que a dissertação contenha uma seção final, a conclu-
possível, guiado por esquemas do que se quer dizer. Dessa maneira, ao come- são. Quanto a esta, conforme o modelo aqui apresentado, trata-se de um trecho
çar a esboçar a dissertação, recomenda-se esquematizar, em uma ficha à parte, modesto. Não se deve conceber a conclusão como ocasião para apresentar dados
280 • Leitura eEscrita de Te tos Argumentativo
8.3.1.1 TRANSIÇÃO ENTRE PARÁGRAFOS Exemplo: [ ... ] E essas questões só encontrariam resposta em textos tardios
do autor.
Em uma exposição bem con truída o parágrafos se uc d m em uma § Cabe mesmo conjecturar se por conta delas o autor não assumiu uma
continuidade vi ível em corte bru co em a inclu ão ine perada de tema não nova direção teórica. [... ]
predelineados. Em grande medida es e encadeam nto deriva do bom uso de
b. Repetir uma palavra ou expressão-chave empregada no término do
sentenças-tópico. Conforme já m ncionamo alguma entença -tópico prede-
parágrafo anterior.
terminam uma abordagem temática tão compl a qu mais de um parágrafo é
Exemplo: [ ... ] Por fim, o autor renunciou à posição inicialmente apresentada.
exigido para realizá-la· e i o ug re por i ó c rta tran ição entre parágrafos.
§ Essa renúncia gerou consequências inesperadas quanto à recepção tardia
O esquema a eguir toma,· í 1 e ponto:
de sua obra. [ ... ]
unificador. Apenas raramente em uma di rtação argum ntati a uma nt nça ~ iramente, pode-se contar com as inferências pragmáticas, que mobilizam
con titui por si só um parágrafo· normalm nt várias sent nças d m r unida o ~onte tácito de sent!.2_9 em que o tema está inserido, para garantir tal
para explorar satisfatoriamente o tópico em qu tão. S não for a im, ca o e unidade. Consideremos o seguinte exemplo:
insista em tomar cada entença um parágrafo ntão e constrói um texto super-
ficial e monótono. ão há então e capatória m di s rtações argumentativas: • Os carros se chocaram no cruzamento. O policial teve de conter os
é preciso aprender a cre er parágrafo den o compostos de ária senten- ânimos dos condutores.
ças. Surge naturalmente a que tão: como s as ntenças se ordenam entre si?
e e ponto as noçõ de o ão co r"ncia ofi rec m um suporte bastante A segunda sentença não se liga à primeira por nenhum elemento semân-
concreto para a organização das m um parágrafo. Sem dúvida, essas tico explícito. Todavia, espera-se que o leitor infira que o acidente de trânsito
noçõe também ão aplicá i às õe , no limite, à di sertação inteira. Em descrito na primeira sentença motivou um desentendimento entre os motoris-
certo entido a uce ão do parágrafo encadeados em conformidade com suas tas envolvidos, o que, por sua vez, só foi resolvido com a intervenção de um
entenças-tópico garante a co ão a coer"ncia globais da exposição. Contudo, agente oficial. A segunda sentença permanece unida ao tema da primeira; po-
para que e as entenças atuem de modo ubstantivo e não somente como uma rém, a unificação das duas supõe a ativação de saberes tácitos sobre o assunto
em pauta.
armadura formal, é preci o por sua ez, que cada parágrafo se desenvolva inter-
Em grande medida, a coesão textual depende dessas inferências de relevân-
namente de maneira coesa e coerente, o que envolve dificuldades particulares,
cia temática, de modo que a alteração dos referentes nas frases que se sucedem
como eremo a eguir.
não implique uma ruptura na unidade do assunto tratado. Os autores contam
De início, cabe delimitar mais precisamente o sentido das noções de
com certo saber comum acerca do tema partilhado pelos leitores, o que permite
coe ão e coerência. Entre os estudiosos dos fenômenos linguísticos e discursivos
economizar várias menções a aspectos óbvios do tema e construir, por conse-
não há definições unívocas desses tópicos. De nossa parte, não temos a menor
guinte, uma narrativa dinâmica. Consideremos mais um exemplo:
pretensão de resolver as divergências teóricas em torno dessas noções, e vamos
nos contentar com uma circunscrição meramente funcional delas. Interessa-nos .'.,,t.., • Chegaram tarde ao restaurante. Uma cadeira disponível estava manca.
pormenorizar esses termos na medida em que contribuem como ferramentas
práticas para a construção de parágrafos, sem nos preocupar em definir exaus- Entende-se que a segunda sentença descreve um aspecto da situação
tivamente os aspectos teóricos a eles entrelaçados. Desse ponto de vista, a noção circunscrita pela primeira. Espera-se que o leitor saiba que em restaurantes
de coesão nos remete à unidade temática no interior do parágrafo. As sentenças há mesas e cadeiras e, mais precisamente, que ao chegar tarde em um deles
f o ~ um todo coeso~e se referem a um estado de coisas bem determinado, provavelmente as pessoas encontraram o lugar quase lotado, só sobrando uma
sem intromissão de outros temas. Por sua vez, coerência nos remete às operações cadeira defeituosa para sentar-se. Não é preciso explicitar todos os passos
lógicas pelas quais o tema do parágrafo é elaborado, quer dizer, nos remete aos descritivos dessa situação para tomar compreensível a mudança de referência
padrões de organização das sentenças no parágrafo. Como se verá, ambas as noções entre as sentenças:
não são independentes, já que se sustentam de modo mútuo.
x_~ J..x, • Chegaram tarde ao restaurante. Em restaurantes há várias mesas e cadeiras.
Tratemos da noção de coesão textual. Um parágrafo é coeso se mantém, em
Como chegaram tarde, a maior parte delas já estava sendo usada. Uma cadeira
sua progressão, a unidade temática, a qual, como vimos, deve ser expressamente
disponível estava manca.
delimitada pela sentença-tópico. Esta última formula, desde então, o âmbito de
coesão do parágrafo. As demais sentenças devem explorar aspectos temáticos sem A partilha de um horizonte de sentido comum dispensa detalhamentos
romper os limites nela esboçados. Aqui surgem as dificuldades de manutenção óbvios e garante a coesão textual, dado que o leitor é capaz de cumprir por si
da coesão. Afinal, espera-se que as sentenças complementares à sentença-tópico só as inferências tácitas que conectam os referentes das sentenças em um campo
explorem o tema, avancem na exibição de seus aspectos particulares, seja por meio temático comum. Entretanto, em textos argumentativos <2..,_autor não deve abusa:r:._
de detalhamentos conceituais, de exemplos, de relações entre componentes do dessa habilidade espontaneamente em ação nas atividades discursivas. Muitos dos
tema etc. É preciso, assim, avançar no detalhamento do tema sem romper os limites gerais ~ t ativos são altamente técnicos, de maneira que a mudança de re-
demarcados na ideia-controle da sentença-tópico. Nem sempre isso é tarefa óbvia, e ferência na progressão das sentenças pode gerar dúvidas razoáveis dos leitores
vários recursos expressivos colaboram para a manutenção da unidade temática. quanto à manutenção da unidade temática. Vejamos o seguinte exemplo:
294 • Leitura e Escrita de Textos Argumentativos
Estratégi,as para a Escrita Argumentativa • 295
• Para Husserl a con ciência tran cendental absoluta " autot mpora-
Quando o pronome retoma um termo expresso anteriormente, conforme
lizadora. As retençõe e entrelaçam d modo a alargar o âmbito do o primeiro exemplo, trata-se de uma anáfora. Mais raramente, quando antecipa
presente vivo. o termo ou expressão em pauta, trata-se de uma catáfora.
ão é imediatament claro para aquel s que não conhecem bem a obra b. Substituição de termo ou expressão por forma numeral:
de Husserl se a segunda entença forma com a prim ira um todo coeso. No
• A autonomia e a soberania não são conceitos idênticos. Ambos re-
conceito de 'con ciência tran cendental ab oluta não está embutido de forma metem a âmbitos distintos de aplicação.
evidente aquele de retenção . Daí que e recomend na escrita argumentativa,
não pre upor como óbvio o entido d conceito técnicos, os quais devem ser c. Substituição de expressão ou sentença por verbos (ser ou fazer):
repostos para garantir a progr ão coe a da e po ição. Talvez em contextos • João abandonou o fórum de discussão. Assim também o fez José.
acadêmico ultrae pecializado , o te to não sejam cobrados pela reposição do
sentido do conceito empregado . ão é o que almejamos em nosso modelo de d. Substituição de termo ou expressão por advérbio:
di sertação oltado conforme o capítulo anterior, para um público amplo inte- • No segundo capítulo, algumas respostas são dadas. Ali, o autor ela-
ressado e capacitado. A escrita de te tos argumentativos coesos, voltada para um bora a noção de [ ... ].
público intere ado geral, supõe a explicitação paciente das relações conceituais,
a fim de evitar que mudanças do foco temático nas sentenças sejam lidas como e. Retomada de termo ou expressão por sinonímia, hiperonímia (relação
rupturas na unidade temática. Reescrito com cuidado, o exemplo anterior deveria entre um termo mais abrangente e um termo a esse subordinado) e
incluir vários passos explicativos intermediários para garantir a coesão temática: hiponímia (relação entre um termo subordinado e um termo mais
abrangente):
• Para Husserl, a consciência transcendental absoluta é autotemporali-
• O livro foi escrito nas primeiras décadas do século xx. O texto teve
zadora. Essa autotemporalização se deixa descrever por meio de três fenômenos
uma importância marcante nos círculos acadêmicos. [sinonímia]
fundamentais: a impressão ou experiência do agora, a protensão ou expectativa
predelineada no agora dos momentos que se seguirão, e a retenção ou a permanên- • Descrever a percepção não é tarefa fácil. Essa vivência porta um
cia dos momentos presentes recém-sidos na experiência atual. H usserl denomina caráter subjetivo que parece escapar às categorizações científicas. [hi-
''presente vivo" a experiência temporal moldada sobre esses três fenômenos. As
ponímia: percepção • vivência]
retenções se entrelaçam de modo a alargar o âmbito do presente vivo. • Será que os mamíferos partilham as funções da consciência? Um
gorila é capaz de formular um pensamento conceitua!? [hiperonímia:
Além dessa perspectiva de explicitar a riqueza conceitua! do tópico sob
.___
análise, o escritor também conta com vários recursos sintático-semânticos para
manter a coesão textual. Em particular, destacamos o uso de pronomes e outras
_____ mamífero • gorila; funções da consciência • pensamento conceitua!]
-
da obra de Husserl. As sucessivas frases se limitam a reproduzir esse conteúdo se-
Vale notar que são variados os padrões de progressão expositiva: exempli-
mântico, sem avançar na exploração de aspectos particulares que então marcariam
ficação, generalização, comparaçao, contraste, refutação etc. Além disso, com-
algum tipo de progressão expositiva. Simplesmente se reformula, com mudanças
binações entre esses modos expositivos são muitas vezes cabíveis, o que dificulta
expressivas mínimas, um único núcleo informativo. O parágrafo nem cumpre,
uma análise exaustiva dos parâmetros de coerência textual. Retomamos aqui a
desse ponto de vista, a condição mínima para a organização coerente. Contra isso,
importância de formular precisamente a ideia-controle de cada parágrafo. Afinal,
deve-se cuidar para que cada sentença em um parágrafo contribua com novos dados, de
em sua formulação, é antecipada uma maneira privilegiada de organizar opa-
forma a compor alguma progressão temática. Consideremos o exemplo reformulado:
rágrafo (por exemplificação, detalhamento conceitua!, contraste de dados etc.).
As demais sentenças do parágrafo formarão um todo coerente se cumprirem • Neste texto, vamos aproximar a obra de Sartre daquela de Husserl, quan-
satisfatoriamente a abordagem sugerida pela ideia-controle. Em todo caso, uma to às suas concepções de intencionalidade. Sabe-se que Husserl desenvolve
condição geral da coerência deve ser observada não importa qual o padrão de de modo detido essa noção em sua obra Investigações Lógicas, publicada em
organização privilegiado. Como já discutido, sempre deve haver alguma progressão 1900-1901, texto estudado por Sartre na década de 1930. Almejamos mostrar
expositiva. A sequência das sentenças deve implicar um avanço na exposição das
ideias acerca do tema. Para haver coerência, supõe-se que as sentenças vão acres-
centando aspectos novos sobre o tema; se só houvesse repetições intermináveis 7. Charolles formula e a condição como uma metarregra de ordenação dos textos: "Para que um texto
seja microestruturalmente ou macroestruturalmente coerente, é preciso que seu desenvolvimento seja
acompanhado de um aporte emântico con tantemente renovado" (idem, p. 20). São famosas as quatro
metarregras de Charolles acerca da coerência: repetição, progressão, não contradição e relação.Julgamos
que a segunda, há pouco mencionada, e a terceira (que discutiremos a seguir) capturam aspectos centrais
6. M. Charolles, "lntroduction aux problêmes de la cohérence des textes", 1978, p. 21 [pp. 7-41]. da coerência, enquanto as outras dizem respeito àquilo que definimos como coesão textual.
298 • Leitura e Escrita de Textos Argumentativo
Estratégj,as para a Escrita Argumentativa • 299
Além do evitamento de contradiçõe , há outras r om ndaçõ s para manter Em termos gerais, sugere-se que o autor reúna as sentenças no parágrafo
a coerência textual. Uma uge tão valio a diz re peito a como ordenar a informa- tendo em vista que as informações dadas inicialmente sirvam de "gancho" para
ções novas supostamente contidas em cada nt n a d um parágrafo. Ganha-se as novas informações. Esse tipo de progressão toma o texto mais facilmente
em legibilidade, e evita-se a impre ão de repeti õ d articuladas de um mesmo compreensível.
conteúdo, quando ~armações são formuladas na parte final das sf!!!:i.enças,
a qual é retomada no início da sentenças guinte 9 • Dessa forma, as sentenças se 8.3.2.1 NOMINALIZAÇÕES
ordenam do dado conhecido para o dado no o e, m geral, o parágrafo avança
sem ai éns capaze de borrar a coerência e po iti a. Vejama algun exemplos Gostaríamos de encerrar esta seção com um tópico geral acerca da cons-
para tomar vi í ele e ponto. De partida, _u m parágrafo problemático: trução de sentenças. A coesão e a coerência, temas até aqui estudados, são
relativas a um conjunto de sentenças. Entretanto, não é indiferente a forma
• noção de mundo en ol e problema filo óficos consideráveis. O irre- das sentenças para o caráter coesivo ou coerente do parágrafo em questão.
mediá el caráter ubjeti o é um des e problemas. A experiência sempre Em geral, sugere-se que as sentenças sejam variadas quanto à extensão e à es-
en ol e um caráter pe oal irredutível, e é assim que o mundo aparece. O trutura sintática, a fim de evitar um efeito de monotonia que pode mesmo ser
mundo é objeti o. Conciliar com a experiência essa objetividade é dificil. confundido com ausência de progressão semântica. Além disso, há pelo menos
Tentemo reescre er es e parágrafo de modo a manter um fluxo expositivo um tipo de construção sentencia! que complica notavelmente o entendimento
que parta de informações dadas para informações novas. da progressão expositiva e que, por conseguinte, deve ser evitada. Trata-se de
sentenças que se servem excessivamente de nominalizações na construção do sujeito
• A noção de mundo envolve problemas filosóficos consideráveis. Um gramatical ou das partes nominais do predicado. "Nominalizar" significa atribuir
desses problemas é o irremediável caráter subjetivo por meio do qual o uma forma de substantivo a verbos e adjetivos; essa operação é importante em
mundo aparece em inúmeras experiências. Toda experiência porta um análises de tópicos abstratos comumente tematizados em textos argumentativos.
caráter pessoal, e não é diferente quando o mundo se toma "tema" da Desse modo, em vez de reiterar sucessivamente o que um autor "discutiu" com
experiência. A esse tema comumente se atribui objetividade, e não é outro sobre tal assunto, é possível remeter-se à "discussão" em vista; em vez de
fácil, ao menos de início, entender como o caráter objetivo do mundo repetir o que um autor "considerou" sobre um argumento, basta referir-se às
é compatível com a inescapável subjetividade da experiência. "considerações" por ele propostas. Todavia, o emprego de várias nominalizações
reunidas em um grupo semântico alimenta várias dificuldades de compreensão,
Nessa nova versão, as informações de cada sentença servem como ponto de
como veremos a seguir 10 .
partida para os novos dados das sentenças seguintes. Os aspectos temáticos são
Vejamos o seguinte exemplo:
apresentados conforme um entrelaçamento intrínseco, que facilita a progressão
expositiva. Seguramente, para obter esse efeito não é preciso que cada nova • A consideração do autor sobre a hipótese em discussão pelos seus ad-
sentença repita literalmente os termos ou expressões finais da sentença anterior. versários aponta sua inadequação.
Amiúde, cabe retomar a informação por meio de sinônimos e outros recursos
Nessa sentença, o agente do processo em vista (o autor) deixa de ser nú-
expressivos já vistos. Além disso, por vezes, a introdução de uma nova informação
cleo do sujeito e se toma adjunto adnominal do termo abstrato "consideração",
deriva de inferências sobre informações anteriores, sem que o conteúdo inferido
que, por sua vez, parece agir autonomamente. Esse ocultamento do agente sob
já tenha sido explicitamente formulado. Nesse caso, supõe-se que o leitor partilhe
alguma de suas atividades, apresentadas de modo reificado, é uma consequência
do horizonte de sentido que tome compreensível a inferência. Por exemplo:
indesejada do mau emprego de nominalizações. Essa sentença pode ser reescrita
• O argumento não estabelece a conclusão de modo necessário. O caráter de maneira a evitar esse efeito:
indutivo do laço lógico não impacta, contudo, na aceitabilidade das
• O autor considera inadequada a hipótese discutida por seus adversários.
premissas. [ ... ]
9. Para um comentário detalhado desse tópico, ver J. M. Williams e J. Bizup, Style. Lessons in Clarity and Grace, 10. Vários manuais de estilo exploram em detalhe esse problema. Ver, por exemplo,]. M. Williams ej. Bizup,
2014, pp. 67-79. op. cit., 2014, pp. 28-65.
302 • Leitura e Escrita de Textos Argumentativos
Estratégi,as para a Escrita Argumentativa • 303
essa nova formulação, explicitam-se com clareza as ações em causa, as Aqui, a pomposa e confusa expressão "foi feita sob a concessão de" se
quais são remetidas a seu agente e não expostas como processos reificados que deixa substituir por uma simples conjunção concessiva, o que permite compre-
se realizariam sozinhos. Além disso, o emprego de verbos de ação elimina certa ender de modo praticamente imediato o tipo de relação lógica vigente entre
proliferação de instâncias nominalizadas, tomadas dispensáveis diante da evidên- as orações. Note-se também nesse último exemplo o uso da voz passiva. Trata-
cia da ação cumprida. a primeira versão da sentença menciona-se "a execução -se de um recurso expressivo útil quando o agente do processo em questão é
da decisão"; já na segunda, basta mencionar que "o autor decidiu" para deixar desconhecido ou mesmo redundante. Seu bom uso deixa claro que ocultar o
patente o que ele executa. agente não necessariamente condena os trechos a nominalizações complicadas.
Além da proliferação desnecessária de instâncias abstratas, o excesso de Esses exemplos bastam para caracterizar os problemas do uso excessivo de
nominalizações embaralha a ordem dos processos descritos, conforme mostra nominalizações nas sentenças. Nesses casos, em vez de empregar os verbos ativos,
o exemplo a seguir: com significados relativamente precisos, opta-se por nomeações de entes abstratos
relacionados por verbos de sentido vago. Esse uso de nominalizações toma árduo
• A ordenação da categorialização descoberta pelo autor não foi tão de- entender a progressão expositiva, o que, por conseguinte, dificulta reconhecer a
cisiva para a área em questão. coesão e a coerência textuais. Certamente, conforme já notado, as nominalizações
são recursos expressivos recomendados para agilizar a referência a processos abstra-
essa sentença, "o autor" aparece como quarto elemento do sujeito gra-
tos, principalmente quando já mencionados em sentenças anteriores. Porém, seu
matical; contudo, obviamente é ele quem dá início ao processo em vista, tal qual
uso descuidado dificulta a compreensão das ações ligadas ao tópico em pauta, bem
revela a seguinte reformulação:
como tende a reificá-las artificialmente, sob o risco de eludir os agentes efetivos
• O autor descobriu certa ordenação categorial, de menor impacto para dos processos descritos. Sugere-se, no geral, evitar o encadeamento excessivo de
a área em questão. nominalizações. Para tanto, recomenda-se que os nomes abstratos sejam transfor-
mados em verbos e que os agentes efetivos das ações assumam explicitamente seu
Esse embaralhamento dos componentes de um processo ocorre ainda posto. Ganha-se, assim, em concisão expressiva e, principalmente, em precisão
mais gravemente quando as nominalizações povoam o predicado das senten- acerca dos tópicos descritos, o que contribui enormemente para construir pará-
ças. Normalmente, nesses casos, operações lógicas determinadas perdem sua grafos coesos e com uma progressão expositiva coerente.
304 • Leitura e Escrita de Te tos Argumentativo
Estratégias para a Escrita Argumentativa • 305
8.3.3 Marcadores Metadiscursivos conj~ntos de sentenças. Importa atentar mais para a função dos recursos ex-
pressivos do que para sua forma linguística. Afinal, muitas expressões que
ão de emos perder de vi ta o al o d t do capítulo ant rior: a produção servem de marcas metadiscursivas também são empregáveis como elementos
de dissertações argumentativas para circula ão públi a. I o quer diz r que o público descritivos do tema abordado. Por exemplo, as expressões "em primeiro lu-
leitor deve ser le ado em conta já na compo ição do t xto que nãos re umirá a gar", "em segundo lugar" etc. tanto indicam metadiscursivamente a ordena-
um conjunto de notas para u o pri do ma d rá ordenar tendo m vi ta a ção das partes discursivas quanto enumeram etapas de um evento objetivo.
comunicação efetiva de c rto cont údo ignifi ati o. Tal orno acentuado anterior- Igualmente, a expressão "além disso" ora indica a enumeração de elementos
mente con iderar o público-al, o na cri ta do t to não ignifica tentar ati fazer adi~ionais de um tópico, ora distingue uma etapa suplementar em uma ope-
a idio incra ias de det m1inada p oas im r p itar c rt pectativas de raçao proposta pelo autor. Não são excluídos casos em que determinadas
inteligibilidade marcant do gA n ro e er ido ou do campo disciplinar em que o expressões concomitantemente avancem na descrição temática e alertem para
te to e in er . O que chamamo em entido amplo, d marcadores metadiscursivos algum aspecto metadiscursivo. Em suma, mais do que certas categorias gramaticais
ão recur o e pre ivo por m io do quai o autor indica explicitamente as de- fixas, o que distingue a metadiscursividade é a referência à ordenação do texto ou a vei-
mandas globai de inteligibilidade a que e ubm te e guia o leitor na compreensão culação de comentários pessoais acerca do tema exposto. Cabe, assim, distinguir dois
paulatina do objeti o de eu te to. Em no so modelo de dissertação, exposto no grandes tipos de expressões metadiscursivas, um centrado nas relações do autor com
capítulo anterior vimo em detalhe de que maneira a introdução do texto ordena o próprio texto e outro nas relações do autor com o leitor. Por vezes, essas funções se
metadiscur ivamente a exposição a ser cumprida. esse trecho inicial da disser- sobrepõem, o que complica a distinção. Entretanto, parece razoável, para fins
tação, além de delimitar o tema os autores devem anunciar qual é seu posiciona- didáticos, distribuir os recursos metadiscursivos no interior desses dois amplos
mento e de que modo ele erá exposto, servindo-se, para tanto, de expressões do campos. Vamos propor a seguir uma exposição detalhada dos principais mar-
tipo 'ne te texto defenderei que [ ... ]", "a exposição se dividirá em x partes [ ... ]". cadores metadiscursivos à luz dessa distinção geral 11 •
Em expressões desse tipo, enfatiza-se como o texto se organiza a fim de abordar
o assunto em vista. Essas menções à ordenação do próprio texto, ou comentários 8.3.3.1 MARCADORES METADISCURSIVOS ORDE ATIVOS
variados do autor em relação a particularidades do tema, compõem, em sentido
ainda a ser detalhado, a dimensão metadiscursiva da exposição textual. São os que explicitam as decisões do autor acerca da organização do texto.
É importante esclarecer que essas indicações metadiscursivas não são algo a. Marcadores estruturais: trata-se de expressões que indicam como o texto,
de periférico ou acidental na expressão escrita. Não se deve supor que há um no geral, se ordena, e que anunciam a execução paulatina dos objetivos
conteúdo temático a se desenvolver de modo plenamente autônomo ao qual, de almejados. Dessa maneira, esclarece-se para o leitor o tipo de tarefa
forma secundária, são acrescentados marcadores metadiscursivos quaisquer. Autores cumprida no trecho em pauta, além de alertá-lo sobre mudanças de
maduros não separam esses âmbitos da expressão escrita, mas os elaboram con- abordagem temática. Eis alguns exemplos:
juntamente: o direcionamento da discussão, a escolha da abordagem adequada, a • Nesta seção, vamos analisar o conceito x.
divisão dos assuntos estudados e o grau de detalhamento atribuído a cada um não • Primeiramente, discutem-se as premissas empregadas. Em seguida, o
são tópicos que, por assim dizer, brotam espontaneamente do campo temático. Há laço inferencial será avaliado.
aqui decisões teóricas que enformam certo estilo expositivo, com vistas ao preen- • A exposição a seguir será dividida em quatro partes.
chimento de exigências de compreensão partilhadas pelo público-alvo. Empregar
• Vamos retornar agora ao tópico inicial dessa discussão.
bem os marcadores metadiscursivos na escrita não é senão tornar visível como
as demandas de comunicabilidade moldam desde o início o processo da escrita. • Meu propósito com o exemplo acima é o seguinte: [ ... ].
Deve-se notar, nesse ponto, que não há uma classificação exaustiva dos Os marcadores estruturais são talvez os recursos metadiscursivos que mais
marcadores metadiscursivos. Há muitas maneiras de propor indicações me- auxiliam na progressão expositiva de textos argumentativos. Por vezes, a mera
tadiscursivas nos textos, desde o emprego de marcas tipográficas (o uso de inclusão de expressões desse tipo clarifica o encadeamento de trechos dificeis,
itálico ou negrito para destacar termos e expressões) e sinais de pontuação
(pontos de exclamação para distinguir a atitude do autor diante do assunto
descrito), o uso de palavras ou expressões, até o emprego de sentenças ou 11. Seguimos de perto a excelente análise de Ken Hyland em Metadiscourse: Exploring Interaction in Writing, 2005.
306 • Leüura e Escrita de Textos Argumentativo
Estratégi,as para a Escrita Argumentativa • 307
• E mais, a discussão incorpora novos temas. • De acordo com Y, a noção p deve ser abandonada.
• Em contraste, essa tese não tem uma aplicação tão ampla. • O autor X afirma que [... ] .
• Por conseguinte, os limites da exposição não estão bem definidos. • O conceito x, exposto em detalhes no segundo capítulo da obra Y, também se
aplica ao caso em questão.
• Esse aspecto deve ser agora acentuado, com o intuito de marcar bem a
posição em vista.
• Na falta de novas evidências, os resultados não poderão ser aperfeiçoados. 8.3.3.2 MARCADORES METADISCURSIVOS INI'ERACIONAIS
Cabe notar que essas expressões são empregáveis para qualificar relações São os que explicitam para os leitores o ponto de vista do autor em relação
no interior do tópico estudado. Em função metadescritiva, elas se prestam a ao que é discutido, seja para chamar a atenção quanto a pontos específicos, seja
sinalizar o tipo de progressão expositiva proposta no trecho em questão. para guiar a interpretação do que é lido.
c. Marcadores de 'ecisão: permitem detalhar a exposição em pauta, seja
definindo o tema, seja qualificando-o, seja, ainda, relacionando-o a
outras informações. Eis alguns exemplos: 12. Trataremos de modo detido desse tema na próxima seção.
308 • Leitura e Escrita de Textos Argumentativo
Estratégi,as para a Escrita Argumentativa • 309
viés unilateral funesto: o autor não e mo u·a capaz d reconstruir m ua fi tiva reações amplas ao andamento da exposição. Nesses casos, o autor
complexidade os posicionamento di ergente ac rca da que tão anali ada, se veicula tomadas de posição que não se limitam à adoção de uma ou
limita a tomar uma abordagem particular como c rta. Em linhas g rai a maior outra atitude epistêmica referente a certo conteúdo proposicional, mas
parte das questões científicas e filo óficas comporta po icionamento diversos, e que exprimem um sentido geral de concordância ou discordância,
o que se espera da escrita argumentativa não é que o autor defenda a qualquer cu to sua de relevância, de obrigação, de surpresa, respeito, desapontamento,
posição, mas antes, que saiba inserir sua ofJiniõ em um horizonte denso de discussões, entre outras manifestações de cunho afetivo-valorativo. Essa valoração
o que e ige na maior parte dos ca o aber reconhecer o limites do que é defendido à luz do conteúdo exposto se deixa marcar textualmente de muitos modos:
da comp!,e idade dos tópicos sob anáZ- e1 3 • pontuação (pontos de exclamação, reticências etc.), advérbios ("infeliz-
Em relação ao __8!aU de comprometimento, trata- e de e pre sões que mar- mente", "felizmente" etc.), verbos ("preferir", "lamentar", "discordar",
cam a atitude epi têmica do autor m relação a certo conteúdo proposicional. "dever" etc.) e mesmo adjetivos ("notável", "impressionante", "lastimável"
Eis algun e emplo : etc.). Eis alguns exemplos:
• Duvidamos que o conceito baste para re ol er o caso. • É interessante que o autor tenha considerado essa questão.
• Estou certo de que e e ponto foi ignorado pelos comentadores. • Infelizmente não haverá resposta exata para o problema.
• Eu assumo a seguinte hipótese explicativa: [ ... ]. • E algo desse tipo foi realmente defendido no terceiro capítulo!
• ão aceitamos esse resultado. • É muito importante levar em conta os novos dados obtidos.
ormalmente o comprometimento se serve de automenções; mas é possível • As opiniões dos professores devem ser levadas em conta na formulação
exibir de forma impessoal a atitude adotada diante de determinado conteúdo de políticas educacionais.
proposicional:
d. Engaj amento direto com o leitor. trata-se de expressões por meio das quais o
• Sabe-se que o autor x escreveu a obra Y. autor se dirige diretamente a quem lê seu texto. Com seu uso, o autor
• Parece certo que [ ... ]. deixa claro que reconhece as expectativas de inteligibilidade partilhadas
pelo público e que se esforça por segui-las em momentos cruciais da
Muitas vezes, os autores abrem mão de menções explícitas ao compro- exposição. Isso ocorre mediante a nomeação do "leitor" no texto ou
metimento epistêmico principalmente quando mantêm urna atitude constante pelo emprego de pronomes que a ele se refiram. Além disso, por vezes,
(por exemplo, "assumir" ou "tomar por certo que") no decorrer de um longo o autor almeja chamar a atenção do leitor para pontos específicos ou
trecho. É assim, por exemplo, quando se expõe uma análise interpretativa ou guiá-lo de maneira unívoca na assimilação de certo trecho expositivo.
um argumento ao longo de várias sentenças. Porém, quando há mudanças na Normalmente, essas tarefas são cumpridas pelo uso de imperativos ou
atitude relativa ao conteúdo proposicional, recomenda-se a formulação explícita questões retóricas (que sintetizam a problemática em vista e apontam
do tipo de comprometimento em vigor. Por exemplo: analisa-se longamente um para as próximas etapas da exposição). Eis alguns exemplos:
trecho de uma obra clássica; no decurso dessa análise não é preciso repetir en-
• O leitor notará que esse tema não foi completamente clarificado.
fadonhamente "eu defendo que", "eu assumo que". Contudo, após essa análise,
extrai-se uma conclusão que será posta em dúvida. É então pertinente modular • Não é preciso que os leitores se preocupem com essa contradição.
o comprometimento com expressões do tipo "não concordo com [ ... ]" ou "não • Considerem agora o seguinte exemplo [... ]
há concordância em relação a esse resultado", "não é ponto pacífico a extração • Note que o autor enquadra mal a problemática.
dessa conclusão" etc. • Qual a melhor solução a adotar aqui? Na sequência do texto, ficará patente
c. Expressões valorativas: explicitam de que maneira o autor julga a im- que [... ]
portância e o alcance do assunto discutido, bem corno marcam suas
Por vezes, o emprego de alguns verbos na primeira pessoa do plural tem
o sentido de implicar o leitor na tarefa anunciada. Trata-se de um recurso para
13. Sobre esse ponto, Ver M. Sacrini, o-p.cil., pp. 29-32.
cativar o leitor, de modo a envolvê-lo na progressão expositiva. É como se o
312 • Leitura e Escrita de Te. .tos Argumentativo
Estratégi,as para a Escrita Arg;umentativa • 313
autor sugeris e: 'Agora leitor, u oc" far mo i o juntos '. Eis um mplo
como se esses. pudessem ser capturados de forma plenamente compreensível
simples des e engajamento por f1 ão núm ro-p oal do v rbo:
sem nenh~m tJ.po de consideração acerca das operações lógicas pressupostas, da
• a próxima eção veremo a re alução d a qu tão . demarcaçao das etapas etc. Por vezes, é justamente o emprego correto de marca-
do~es ~etadiscursivos que garante a coerência da progressão expositiva, ao fixar
otemo que soaria e tranha a fie ão na prim ira p oa do singular ("na 0
direc10namento da exposição. Consideremos o texto a seguir, sem marcadores
próxima seção verei a resolução de a que tão ) poi daria a impre ão d que o
metadiscursivos, e em seguida com sua inclusão, para tornar visível esse ponto:
autor ainda não abe qual erá ar alução poi la ainda erá vi ta. No entanto,
a fie~ão eremo tem o ntido d que ar alução e dará a ver conjuntamente. • A intencionalidade da consciência. Um aspecto é o caráter correlaciona!
Ao leitor a re alução erá mo trada e ele pod rá ê-la conforme o ponto de ~a intencionalidade. Há os atos, o direcionar-se para algo. Há O polo
vi ta do autor. Ei um e mplo imilar: visado, o que aparece como objeto. Um se chama noese, o outro noema.
Diferentes modalidades noéticas se relacionam com objetos correspon-
• Ao final do percur o sab remo are po ta ao enigma da racionalidade.
dentes. A percepção se liga ao objeto percebido, a imaginação ao objeto
Também oaria e tranha a fie ão na primeira pes oa do singular ("ao final imaginário.
do proce so saberei are po ta [ ... ] ) como se o autor não tivesse noção prévia do • Tratemos agora da intencionalidade da consciência. O tema é complexo e será
que defende. Ora, é claro que o autor já sabe, ao menos na versão final de seu aqui explorado somente em um de seus aspectos, a saber, o caráter relacional.
texto, qual re po ta dará ao enigma. Contudo, ao formular que "saberemos" dela Por um lado, há os atos, o direcionar-se para algo. Por outro lado, há o polo
ao final do percurso, engaja o leitor na exposição. Vale notar que os autores madu- visado, o que aparece como objeto. O primeiro elemento dessa distinção se
ros empregam por ezes es as flexões plurais dos verbos mesmo se adotam como chama noese, o outro, noema. Diferentes modalidades noéticas se rela-
foco narrati o central de seus textos a primeira pessoa do singular. Fica indicado cionam com objetos correspondentes. Por exemplo, a percepção se liga
por meio delas um sutil chamamento do leitor como coparticipe do movimento ao objeto percebido, a imaginação, ao objeto imaginário.
expositivo. Essa é uma estratégia retórica que marca o respeito às capacidades
Com o acréscimo dos marcadores metadiscursivos, o sentido da progressão
interpretativas do leitor (chamando-as à ação em momentos nucleares da expo-
expositiva toma-se muito mais palpável. O leitor entende mais facilmente o nível
sição), ao mesmo tempo que tenta garantir certa credibilidade ao autor, uma vez
de generalidade das considerações, como se organizam, por que as informações
que este se assume apto a tomar inteligível para o leitor o movimento expositivo.
se sucedem desse modo. Não seria, desde então, exagero notar que a coerência
Emprega-se a mesma estratégia com verbos no passado, quando então o
expositiva se obtém, em grande medida, pelo emprego correto desses marcado-
autor sugere que o leitor prestou a devida atenção na exposição. Nesse caso,
res. Porém, as amplas possibilidades de emprego dos marcadores metadiscursivos
lança-se um respeitoso alerta ao leitor acerca do que se espera que já tenha sido
exigem cuidado. Ao estudarem metodicamente tais recursos, alguns autores
compreendido:
aprendizes se deixam fascinar por seus resultados e em regam excessivamente a
• Na seção passada, aprendemos a avaliar as premissas de um argumento. metadiscursividade, o que gera efeitos contrários aos previstos. Reformulemos
• Vimos que essa hipótese não se sustenta. nesse sentido o exemplo anterior:
• Tratemos agora, amigo leitor, ainda que, infelizmente, de modo muito rápido, da
8.3.3.3 A JUSTA MEDIDA DA METADISCURSIVIDADE intencionalidade da consciência. O que é a intencionalidade? De que ela se
compõe? Como opera essa chave oculta para os mistérios da consciência? Como o
Por meio dos recursos metadiscursivos, fica muito mais fácil para o leitor leitor deve já suspeitar, o tema é complexo e será aqui explorado somente em um
entender qual o posicionamento defendido pelo autor e de que maneira preten- de seus aspectos, a saber, o caráter relacional. O que é isso? De que se trata,
de justificá-lo no correr da exposição. Tomam-se manifestas as principais decisões caro leitor? Vamos ver! Por um lado, há os atos, o direcionar-se para algo.
teóricas de que a progressão expositiva se compõe, o que atesta o compromisso Por outro lado, há o polo visado, o que aparece como objeto. É preciso
do autor em expressar-se de forma compreensível para o leitor. esclarecer as coisas aqui. Felizmente, é fácil: o primeiro elemento dessa distinção
Deve-se insistir em que os recursos metadiscursivos não são acréscimos se chama noese, o outro, noema. Vejamos agora o seguinte e importantís-
inessenciais a uma suposta articulação autônoma de conteúdos proposicionais, simo Jato: diferentes modalidades noéticas se relacionam com objetos
314 • Leitura eEscrita de Te tos Argumentativo
Estratégi,as para a Escrita Argumentativa • 315
correspondente. Ora, o que is o querdi er? Como entenderes e tópico? Acredito dissertações interpretativas, citações e paráfrases exercem mesmo papel essencial.
que um e emplo cairá muito bem neste ponto leitor: a perc pção liga ao Afinal, nesse tipo de texto, esperam-se clarificações detalhadas dos posiciona-
objeto percebido, a imaginação ao obj to imaginário. Muito mais poderia mentos dos autores estudados, o que, por sua vez, supõe exposições precisas de
ser dito sobre esse terna sem dúvida.
vários trechos lidos. Empregar bem citações e paráfrases significa, nesses casos,
esse e emplo e tremo há mais e pre õ metadiscursiva do que apresentar de maneira compreensível e honesta o material temático sobre o
conteúdo informati o sobre o t ma em pauta. a rdade, a informações se qual a dissertação se constrói. Vejamos com detalhe alguns parâmetros para a
utilização desses recursos.
perdem em meio a tantas con id raçõe m tadi cursi as, as quais em vez de tor-
nar visível a progre ão e po itiva borram-na. Em particular questões sucessivas
8.3.4.1 CITAÇÕES
rompem a linearidade e po iti a ao de viar a atenção para aspectos formulados
artificialmente como duvido o . AI" m di o ar ferência constante ao leitor, em
Trata-se de reproduções literais, ao longo da dissertação, de trechos de
vez de gerar intimidade, acaba pro ocando irritação e mesmo desconfiança: o
outros textos. É imprescindível que essas reproduções literais sejam sempre dis-
autor parece mai preocupado em e plicar- e para o leitor do que em apresentar
tinguidas com evidência, o que comumente se faz demarcando o início e o fim
o tema. Ora, o bom u o da metadi cur ividade guia o leitor sutilmente na pro-
do trecho citado por meio de aspas duplas (""). Citações curtas (até três linhas)
gressão expo itiva ao tomar explícitas articulações que atribuem coerência ao
são introduzidas diretamente na sequência do texto. Por sua vez, citações mais
texto e ao eicular, de modo cuidadoso e conveniente, opiniões do autor. Por sua
longas devem ser destacadas corno um bloco autônomo e exiliidas em um tama-
vez, o emprego exacerbado da metadiscursividade rompe a fluência temática ao
nho menor que aquele do texto. Nesse caso, não é preciso o emprego de aspas 14 •
direcionar repetiti amente a atenção do leitor para as opções da escrita diante
Além disso, deve-se sempre acrescentar a referência da obra de origem, seja por
do tema. Sem dúvida, explicitar essas opções contribui para o entendimento das
meio de nota de rodapé, seja por indicação do autor e do ano de publicação da
posições defendidas; porém, é para essas posições e para as particularidades do
obra, entre parênteses, logo depois da citação. Nos dois casos, espera-se (embora
tema em geral que o leitor de e ser conduzido, e não para a própria montagem
no último seja necessário) que as informações detalhadas sobre a obra citada
da expressividade escrita. O fato de que o autor pode tomar visíveis as articu-
figurem na seção final da dissertação, intitulada "Referências Bibliográficas" 15 •
lações lógicas da escrita deve favorecer a compreensão do assunto em pauta, e
Interessa-nos aqui, mais do que essas questões puramente formais, elucidar
não complicá-la devido à ênfase excessiva na metadiscursividade. Em suma, esta
alguns parâmetros para o emprego correto e pertinente das citações. Quanto à
última deve ser empregada como meio para a clareza comunicativa. Utilizada
correção, parece-nos importante fixar o seguinte ponto de partida:
excessivamente a ponto de desviar o foco do leitor, a metadiscursividade se toma
fator de opacidade, não de elucidação temática. • De maneira geral, deve-se citar o texto original sem alterações.
Recomenda-se, portanto, arcimônia no emprego da rnetadiscursividade.
Admitem-se, no entanto, as seguintes modificações pontuais no texto citado:
Os autores aprendizes devem tentar incluir paulatinamente os diferentes tipos de
marcadores listados, e evitar empregá-los todos de uma vez, se têm dúvidas sobre a. Acréscimo, entre colchetes, de esclarecimentos acerca de pronomes ou
o exagero ou redundância em seu uso. Sugerimos que os autores se concentrem expressões ocasionais empregadas no texto original e cuja compreensão
inicialmente nos marcadores estruturais e conectores, urna vez que auxiliam não seja evidente 16 .
notavelmente na construção de uma progressão expositiva clara e coerente. No Exemplo: "Naquela cidade [Socorro-SP] havia uma ampla zona rural,
geral, os marcadores ordenativos são mais fáceis de dominar que os interacionais. repleta de paisagens exuberantes".
Deve-se treinar com paciência o uso da metadiscursividade, até que seu emprego
cumpra a finalidade esperada: facilitar a compreensão dos temas expostos.
14. Para detalhes acerca de formatação, ver as normas da Associação Brasileira de Normas Técnicas (ABNT),
8.3. 4 Citações e Paráfrases disponíveis em vários sites. .
15. Detalhamentos sobre os padrões de referência também podem ser encontrados nos manmns_ da ABr:'.T.
Caso haja obras recomendadas para leitura, mas que nã~ ~or_am uti~.zadas no decorrer da d1ssertaçao,
São recursos linguísticos muito importantes para repor as posições ou então as "Referências Bibliográficas" passam a chamar-se Bibliografia • _ _
os argumentos dos autores ternatizados na dissertação. Deve-se notar que nas 16. Para agilizar a exposição dos itens a segtúr, vamos simplesmente inventar algumas c1taçoes como exemplos.
316 • Leitura eEscrita de Textos Argumentativos
Estratégi,as para a Escrita Argumentativa • 317
b. Destaque de trechos important m itáli o alt ração qu dev r dissertação, as obras mencionadas devem ser interpretadas, comentadas, e não
indicada entre parênte no final da ita ão 17 • meramente repetidas em sua formulação original.
Exemplo: ' ão se d e dar destaque e -ces ivo às falha d Para encontrar a medida correta do emprego de citações, sugerimos a
(itálico nosso). seguinte regra: as citações devem ser utilizadas em duas situações, a saber, como trecho
a ser comentado e como trecho que confirma certa interpretação apresentada no correr da
c. Se o texto original já mpr ga aspa e a d m ntão r marcada
dissertação. Quanto ao primeiro uso, trata-se do papel central de uma citação:
como aspas imple m uma citação d limitada por aspa dupla .
trazer ao leitor, em sua formulação original, trechos marcantes da obra estuda-
E emplo: Toda qu tão r um a ab r como lib rdad ' deve ser da, cujo sentido deve ser precisamente reconstruído e discutido na dissertação;
empregada na on tituição brasil ira . ou trechos obscuros e que condensam vários aspectos conceituais, que carecem
d. Erro gramaticai ou de qualqu r e pécie contido no original são indi- de uma clarificação detalhada. Nesses casos, são toleráveis citações mais longas,
cado na citação com a pr ão ic (que quer dizer "assim mesmo") conquanto algo além de meia página normalmente pareça excessivo.
entre parênte e . Quanto ao segundo uso, trata-se de sinalizar ao leitor qual parte da obra
comentada se tem em vista à medida que os comentários avançam. A citação
Exemplo: as i tência acadêmica de e provir ( sic) os recursos necessários
não é aqui empregada como algo enigmático, que carece de explicação, e sim
para a manutenção das aulas ' 1 .
como marca atestatória de certa interpretação, como confirmação de que a análise
e. Exclusõe de parte do trecho citado de em ser indicadas por ( ... ) ou proposta se mantém balizada pelas referências bibliográficas principais. O sinal
[ ... ]. enviado ao leitor é claro: a exposição não se perdeu em devaneios desconexos;
Exemplo: AB sentenças estão mal escritas; as inferências são fracas; os a progressão almeja esclarecer tal parte da obra estudada, a qual é então citada
termos não estão bem definidos. ( ... ) Em suma, trata-se de um (ainda que de modo reduzido) para certificar o leitor acerca do trecho especí-
argumento muito pouco convincente". fico discutido. Comumente, nesse uso confirmatório, as citações, concisas, são
empregadas em notas de rodapé; por vezes nem mesmo é preciso citar os trechos
Por sua vez, quanto à pertinência das citações, recomenda-se, antes de comentados, bastando indicar as referências das páginas das obras discutidas.
tudo, moderação em seu emprego. ão são incomuns, infelizmente, dissertações Outra forma de empregar de maneira atestatória as citações é incluir pe-
quenas frases do texto estudado, devidamente indicadas por aspas, no decorrer
apresentadas em cursos universitários em que há mais citações do que trechos
do comentário. O autor sinaliza, assim, ao manter intactas certas formulações
desenvolvidos pelo estudante. esse caso, passa-se a impressão de grande insegu-
marcantes da obra estudada, qual trecho tem em vista. É preciso cuidado, nesse
rança diante do tema. O estudante mal foi capaz de compreender por si as obras
caso, para não citar expressões linguísticas banais, e sim pequenos trechos que
estudadas, uma vez que apela constantemente à transcrição literal de amplos
contenham os termos importantes em pauta. Eis um exemplo:
trechos delas extraídos. Embora as citações previnam erros de interpretação,
seu excesso aponta para uma inibição quase total dos esforços interpretativos. • Husserl defende, na década de 1930, que as ciências passam por uma
O efeito é deletério: diante de tantas citações empregadas sucessivamente, o situação de crise. De início, o autor admite que, diante do sucesso teórico
leitor parece legitimado a abandonar a dissertação e passar logo para a leitura e técnico cada vez maior das ciências, essa constatação pode soar como
da obra original aí discutida. Ora, espera-se que na dissertação interpretativa o "um exagero" 19 • Cabe então esclarecer qual o ponto de vista segundo o
autor seja capaz de esclarecer as teses dos autores estudados. Se há uma ampla qual essa crise se deixa reconhecer como tal. E é em relação ao sentido
repetição dos trechos originais, rearticulados por pequenas frases de transição dos saberes científicos "para a existência humana" 2º que a crise não
("eis como o autor se posiciona", "vejamos o que o autor diz a respeito", "nin- poderia ser negada. Limitada a investigação de fatos, a ciência ignora
guém melhor do que o autor para elucidar esse ponto"), então o estudante
simplesmente falhou em satisfazer o objetivo básico desse tipo de escrita. Na
17. Por sua vez, os itálicos já presentes no texto original devem ser mantidos. 19. E. Husserl, A Cri.se das Ciências Europeias e a Fenomenologia Transcendenta~ 2008, p. 19.
18. O correto seria "prover". 20. Idem, p. 21.
318 • Leitura e&crita de Te. tos Argumentativos
Estratégi,as para a Escrita Argumentativa • 319
os problemas ligados ' ao entido ou au "ncia d ntido" 21 do próprio Não é evidente como produzir boas paráfrases. Muitas vezes os autores
exi tir humano. aprendizes permanecem próximos demais aos textos originais, simplesmente
esse caso, também é preciso cuidado para não mpregar e c ivamente alterando ou excluindo algumas poucas palavras. Resulta disso uma citação mal-
-acabada. Vejamos um exemplo:
as citações. Ainda que mai curtas citações suce si a impedem que o autor de-
Trecho original:
senvolva um estilo narrati o próprio uma ez qu tem de construir suas frases
com fragmento de frase de outro autor . Citaçõ curtas garant ma precisão • "Nos poucos casos em que se tem investigado a influência da cultura sobre
dos termo em momento -cha e da e po ição· eu o d nota uma submis ão as reações mentais de populações, pode-se observar que a cultura é um
desneces ária à narrativa da obra citada. determinante muito mais importante do que a constituição física. Repito
o temo que nos doi tipo de u o e pecificados há pouco ( trecho a que se pode encontrar nos indivíduos uma relação um tanto estreita entre
comentar e confirmação d com ntário) a citaçõe e tão ligadas a análises reação mental e constituição física, mas que ela estará completamente
interpretativa propo ta p lo autor da di ertação. Em um caso, essas análi- ausente no caso das populações. Nessas circunstâncias, precisamos basear
ses seguem a citação, em outro a antecipam. I o revela algo importante sobre a investigação da vida mental do homem sobre um estudo da história das
as citaçõe : elas não devem ser em rJ adas como autoe plicativas. Por meio das ci- formas culturais e das inter-relações entre vida mental individual e cultura." 22
tações, o leitor é apresentado à obra original estudada na dissertação; e o que
Paráfrase malfeita:
se espera com essa apresentação é esclarecer o sentido das teses ali contidas.
Em suma, a citação não é uma artimanha para dispensar o escritor de analisar • Nos casos em que se analisa a cultura impactando o nível mental popu-
as obras estudadas, e sim um recurso que, antes, o compromete com tal análise. lacional, nota-se como a cultura determina muito mais esse nível que
Conforme as expectativas gerais de recepção de textos argumentativos, o leitor a constituição física. É possível que nos indivíduos haja relação entre
espera elucidações pertinentes das obras estudadas, e as citações não são senão padrões mentais e constituição física, mas não é o caso nas populações,
ocasiões privilegiadas para exercitar as habilidades interpretativas. que dependem mais da história das formas culturais.
8.3.4.2 PARÁFRASES Notemos que essa paráfrase se limita a repetir a estrutura expositiva do tre-
cho original. Dessa última, apenas se suprimem algumas expressões e se alteram
Trata-se de expor nas próprias palavras trechos de obras estudadas. Para- outras, o que pode mesmo distorcer o sentido ali veiculado. De maneira geral,
frasear um texto é então recuperar as principais ideias ali contidas sem simples- em vez de esclarecer o conteúdo significativo dos trechos originais, paráfrases
mente copiá-lo em sua versão original (o que seria uma citação). Na verdade, ruins oferecem deles uma reconstrução menos precisa, incapaz então de tomá-los
a paráfrase é o principal recurso expositivo para evitar o apelo excessivo a mais compreensíveis.
citações na escrita argumentativa. Mais do que escolha estilística, o emprego Vejamos uma paráfrase mais convincente do mesmo trecho:
de paráfrases atesta o domínio dos textos estudados: o autor da dissertação
• O autor reconhece não haver até então numerosos estudos sobre os con-
não precisa se manter sempre colado às formulações originais dos textos lidos;
dicionantes das "reações mentais de populações". Contudo, naqueles já
ele é capaz de recompor, conforme seu estilo próprio de escrita, as principais
realizados, nota-se, segundo ele, a preponderância dos fatores culturais
relações conceituais presentes em tais textos. Em dissertações interpretativas, as
sobre aqueles da constituição física. É até mesmo admissível que esses
paráfrases devem ocupar boa parte da exposição. Afinal, trata-se, nesses casos,
últimos tenham um papel explicativo de maior peso para indivíduos
de esclarecer teses e argumentos de obras estudadas. Daí que grande parte específicos, mas certamente esse não é o caso para populações inteiras.
da dissertação interpretativa deva repor o movimento expositivo dessas obras, A fim de entender as reações populacionais, são bem mais relevantes os
o que seria insatisfatório se apoiado exclusivamente em citações, conforme já estudos das formas culturais historicamente desenvolvidas e dos modos
comentado. Resta então o bom uso de paráfrases para reconstruir os trechos como os indivíduos com elas se relacionam.
pertinentes para a discussão proposta.
21. Idem, p. 22. 22. F. Boas, "Os Objetivos da Pesquisa Antropológica", 2006 [1932], p. 97 [pp. 87-109) .
320 • Leitura e Escrita de Te tos Argumentativo
Estratégias para a Escrita Argumentativa • 321
esse exemplo os principai ponto t mático do tr cho original ao sentenças que a paráfrase também deve ter três sentenças, e assim por diante.
retomado porém sem repetiçõe da e trutura intática d partida. O t ' to O que importa é reconstruir o sentido conceitua[ veiculado no trecho original, e
é apresentado não conforme o e tilo narrati o original sim egundo o tilo para isso vale mais explicitar as operações lógicas ali cumpridas do que repetir
próprio do autor da di ertação. Aliás e tá aqui embutida uma prescrição impor- a estrutura sintática. Em todo caso, por motivos de precisão, por vezes importa
tante: a paráfra e de em auxiliar na manut n ão d um e tilo positivo uno. manter nas paráfrases certas expressões ou ao menos os termos conceituais téc-
Se a cada vez que o autor com n tas obras di er a mim tiza particula- nicos. Dado exatamente esse caráter técnico, seria arriscado buscar sinônimos
ridade e pre ivas então o te to r ultant car c ria d unidad narrativa. Essa simplesmente para não imitar o texto original. Não é, destarte, esperado que as
variação da e pre ividade conform o tilo original opiado a cada paráfrase paráfrases difiram completamente dos textos originais. No exemplo extraído de
re ela que o autor não de envol eu adequadament ua identidade autoral", Franz Boas, a expressão "reações mentais de populações" foi mantida na paráfra-
pois multiplica o e tilo narrati o não conform a e igências do tema, mas se. Exprime-se por ela um núcleo conceitua! muito rico, que dificilmente seria
meramente por imitação daquilo que é comentado. substituído por sinônimos sem perdas no sentido veiculado. Caso usássemos,
Para evitar e problemas r comenda- condição básica da produção em vez dessa expressão, outras tais como "as opiniões das pessoas" ou "o modo
de paráfra e convincente entend r bem o texto original. Apenas quando se como as pessoas são afetadas pelos eventos", provavelmente só conseguiríamos
compreende o conteúdo ignificativo ali eiculado e é capaz de reformulá-lo capturar parte da complexidade conceitua! envolvida na expressão original. Em
em conformidade com o e tilo narrati o já em vigor na dissertação. Por sua vez, geral, noções conceituais complexas não devem ser substituídas nas paráfrases
é justamente quando não e entende bem o texto original que se tenta perma- somente por questões de estilo, para evitar repetições. Elas devem ser preserva-
necer colado a ele, muito mais imitando-o do que comentando-o. Assim, para das no correr da exposição e, no momento oportuno, clarificadas quanto a seus
evitar cópias mal disfarçadas do original, é imprescindível compreender o sentido aspectos intensionais e extensionais.
ali exposto. ma boa medida para essa compreensão é formular o conteúdo do Uma última sugestão sobre as paráfrases é acrescentar as referências que
trecho e tudado sem li-lo. Se se é capaz de reformular o sentido do trecho sem ao permitam ao leitor reconhecer sem dificuldades qual o trecho analisado. Isso se
mesmo tempo ter de lê-lo, então já se aproxima de boas paráfrases. Busca-se, desse faz por meio de notas de rodapé (nas quais se apontam as páginas comentadas
modo, repor as relações conceituais ali em vigor em um estilo narrativo próprio, ou mesmo se citam pequenos trechos para confirmar o sentido parafraseado 23 )
sem se apoiar na estrutura expositiva original. Ora, uma maneira de atingir essa ou no corpo do texto, com expressões bem claras do tipo "nas páginas xx o
compreensão independente da formulação original é a prática dos fichamentos, nos autor w propõe que o conceito Y [ ... ]". Ao indicar com clareza quais os trechos
quais, muito mais do que repetir o texto estudado, busca-se explicitar as operações parafraseados, o autor sinaliza ao leitor que constrói controladamente a disser-
lógicas constituintes do movimento expositivo. Em fichamentos bem conduzidos tação. É também muito importante que o autor sempre indique o que compõe
já se distingue entre a exposição original e a explicitação analítica de seu sentido. a paráfrase e o que compõe algum comentário avaliativo ou tomada de posição
Essa distinção se marca, por exemplo, na clara nomeação das operações ilocu- acerca do conteúdo parafraseado. Deve ficar evidente, no decurso da escrita,
tórias cumpridas no texto sob análise. Essa nomeação já é, de certo modo, uma o que provém dos autores discutidos e o que provém do autor da dissertação.
paráfrase, uma reconstrução do sentido do trecho estudado nas próprias palavras. O bom uso dos recursos metadiscursivos é essencial para m~essa distinção~
Consideremos, por exemplo, o seguinte trecho a ser parafraseado: Eis um exemplo:
• "É preciso recusar esse argumento, visto que duas de suas três premissas • § Vejamos o que o autor w defende acerca desse tema. Nas páginas xx
básicas são altamente discutíveis." do texto estudado, ele [ ... ] [anuncia paráfrase].
Uma estratégia de parafraseamento é repor o conteúdo significativo à • § Que razão é apresentada para sustentar tal posicionamento? Na se-
luz da explicitação das tarefas ilocutórias ali cumpridas (destacadas em itálico): quência do texto, w esclarece que [... ] [anuncia paráfrase].
Como se vê, a formulação das tarefas ilocutórias dispensa a repetição da 23. Operam aqui conjuntamente a reconstrução analítica do texto estudado e a citação como confirmação
estrutura sintática original. Não é, então, porque o trecho original contém três da análise proposta.
3 22 • Leitura e Escrita de Textos Argumentativos
Estratégi,as para a Escrita Argumentativa • 3 23
explorados ante oferecem um guia. O domínio d r curo permitirá satisfa- 8. 4.3 Esquematização do Movimento Expositivo
zer ao menos as demandas globai de comunicabilidad normalm nt as ociadas
às discussões argumentati as contemporân as i o ao guir padrõ s claros de Deve-se esboçar, em fichas, um esquema global do texto pretendido,
ordenação e conexão do parágrafo , de interação com o 1 itores e do mprego forçando-se a deixar nítido: qual o problema específico a ser tratado, qual o
adequado da obras e tudada acerca do tema m qu tão. posicionamento a ser defendido e o caminho expositivo proposto (como se vê,
É óbvio que e e domínio depend rá do rcício r it rado da escrita, por empregam-se aqui os amplos articuladores lógicos do fichamento sintético) .
meio do qual o u o de tai recur o e torna cada ez mai e pontân o. Como Quanto mais detalhada essa esquematização, mais bem conduzida tende a ser
mencionado no início de t capítulo, não ' fácil tematizar o processo concreto a escrita, porquanto se possui uma noção mais clara dos pontos de partida e
da esc1ita, tantas ão as circun tâncias reai aí envolvida . Entretanto, será útil de chegada das seções, e o risco de perder-se em elucubrações impertinentes
diminui 24 • No esquema, cabe antecipar o uso das fontes bibliográficas, com
sistematizar e e proce o de modo a auxiliar o autor s aprendizes a antecipar
marcações específicas sobre o que parafrasear ou citar e em que momento da
melhor as etapas de trabalho. I o po to retom mo em parte o que já vimos
ne te e no capítulo anterior detalhemo a e crita nas seguintes etapas. progressão expositiva.
corporações na assim chamada "economia da at nção". O apar lho el trônico , forma à atmosfera conceitua!, há momentos difusos, em que o pensar parece se
em alguma medida, têm seu funcionamento planejado para que o u uários s desviar do foco. Muitas vezes, é nesses momentos que novos conteúdos temáticos
distraiam, ou seja, empreguem seu tempo e atenção no u ufruto de d t rmina- são intencionados e que relações inaparentes se deixam perceber. Em suma, os
dos programas ou no acesso a certas páginas da int m t, o que agrega valor às períodos do pensar difuso também compõem o processo da escrita e devem ser
empresas que os sustentam. Ao decidir escrever diretam nte em um aparelho cultivados. Se alguém julgasse que o processo da escrita corresponde somente
eletrônico, é preciso então cuidado para não vi nciar irrefl tidam nt es e aos instantes exatos em que escreve as linhas, teria então uma concepção muito
hábito de distrair-se com os recur o interati o à di po ição. tacanha do que é escrever. Ocorre que muitos autores aprendizes, embora não
De certo ponto de vi ta e cre er e ige mai for o do que ler, pois se tenham formulado claramente a si tal concepção, agem sob alguma versão dela.
trata de criar as linhas de um te to até então ine i tente, proces o que, se in- Isso é notório no modo como desprezam os períodos difusos e logo os preenchem
terrompido não conta com uma base material pronta para apoiar a retomada, de distrações. Perdem-se, assim, os momentos de livre conexão, que justamente
tal como ocorre na leitura. di tração na leitura e remedeia com o retorno da alimentam aqueles em que ocorre a escrita das frases. O resultado, normalmente,
atenção ao trecho lido ante de perder o foco. Já a di tração na escrita pode ser é uma grande dificuldade de expressão. Não é que o estudante não conheça os
fatal para o encadeamento do pensar, já que ao tentar retornar para o ponto recursos básicos da escrita (ele é alfabetizado, leu textos relativos ao assunto etc.):
anterior à perda de atenção, muitas vezes nada se encontra: a ideia se esvaeceu é que o estudante não sabe se pôr na situação psicossomática da escrita. É preciso apren-
antes de ser registrada. A dificuldade da escrita é exatamente fixar um fluxo der a construir favoravelmente essa situação, na qual as capacidades cognitivas e
expressivo que não está dado em nenhum lugar antes de sua formulação expres- motoras estejam voltadas para a criação discursiva. Para tanto, a manutenção do
sa. Distrações que preenchem a atenção com conteúdos muito diversos do que pensar difuso no campo temático almejado é uma condição marcante. Treinar
vinha sendo elaborado (como é o caso com notificações de aplicativos, páginas a boa escrita não é, então, somente conhecer recursos estilísticos, mas sim saber
de conteúdo variado on-line etc.) tendem a desmanchar a frágil articulação do instaurar uma fluência prod1ttiva, isto é, saber empregar as oscilações do pensar, a
fluxo expositivo, sobrepondo a ela dados desconectados do tema em vista. Para alternância entre concentração e relaxamento, em prol da exploração do campo
escrever bem, deve-se então cuidar dos momentos em que as ideias fluem, em temático em questão. É por isso que é importante evitar distrações que preencham
que a expressividade se articula nas formulações do texto; é preciso preservar o foco atencional com dados completamente desconectados do terna estudado.
essa atmosfera delicada de criação, o que exige evitar que conteúdos temáticos Aqueles que se servem dos meios eletrônicos para criar devem cuidar para que
aleatórios sequestrem a atenção e dissolvam a articulação expositiva. os fatores distrativos arquitetonicamente embutidos nos aparelhos não interfiram
Sem dúvida, são estratégias frutíferas para nutrir o brilho dessas conexões no processo. Cabe então disciplinar o uso de tais aparelhos: desligar celulares
expressivas espontâneas consultar trechos das referências bibliográficas e retomar e reduzir ou cortar temporariamente a conexão com a internet são sugestões
notas, e isso durante o período da escrita, isto é, após o término de um trecho e antes básicas para evitar a reiterada destruição da atmosfera cognitiva necessária para
de escrever frases em que um novo aspecto temático será explorado. Essa reali- a produção eficaz da escrita.
mentação do fluxo criativo com dados relevantes sobre o assunto tratado colabora Até aqui, sugerimos que os períodos concentrados de escrita não sejam
para o direcionamento global da atenção ao campo temático em pauta, e propicia sistematicamente entrecortados por distrações desconexas com os tópicos em
novas conexões conceituais. Veremos mais sobre como empregar corretamente pauta, de modo a preservar o pensar difuso como parte do processo criativo.
esses dados ao tratar da "progressão com lacunas" logo à frente. Entretanto, Além disso, é preciso cuidado para não interromper excessivamente o fluir da
interessa notar que isso é bem diferente de entrecortar a escrita de cada frase escrita devido a fatores que, de fato, fazem parte do campo temático, mas que
com consultas às mensagens dos amigos ou navegação a esmo pelas páginas da empregados de forma inoportuna tendem mais a atrapalhar que a favorecer a
internet. O que ocorre no processo da leitura se repete na escrita ainda mais produtividade. É o que ocorre quando o escritor se obstina em detalhar cada
sutilmente (e exige ainda mais cuidado): escrever não é algo que se produz em referência bibliográfica mencionada e, para tanto, suspende a continuidade
uma sucessão mecânica ininterrupta. O ritmo de criação das frases varia muito. da escrita para consultar notas ou livros. Em momentos densos da escrita, nos
Por vezes, as conexões conceituais ganham força e catalisam a escrita de três ou quais é sábio registrar as relações conceituais meramente pressentidas de modo
quatro frases seguidas; por vezes, elas definham após uma frase, ou mesmo no condensado, interrupções para confirmar dados externos a essa formulação
meio de uma frase, e mal se sabe como chegar ao ponto final acrescentando algo prejudicam a criação. Sugere-se nesse caso adotar a progressão com lacunas. Se-
em relação à frase anterior. Entre os momentos concentrados, em que a escrita dá gundo essa técnica, deve-se avançar na escrita e marcar com pequenas lacunas
328 • Leitura eEscrita de Textos Argumentativos Estratégi,as para a Escrita Argumentativa • 329
os pontos em que cabe encaixar uma citação sp cífica ou apena d talhar uma Todavia, após pelo menos um dia, a intuitividade do processo criativo se apaga
referência. A fluência criati a não é cortada o que pod ria r ultar na perda consideravelmente e o autor pode retomar seu texto de um modo mais próximo
do fio expositivo, na dissolução das ideias antes de sua fi a ão di cur iva. D sa a como farão os demais leitores: sem contar com algum acesso privilegiado às
maneira, pelo menos em relação a bloco do te to ( um ou algun parágra- ideias para entendê-lo. Trata-se, destarte, de exercer o papel de leitor crítico de
fos), sugere-se escre er sem preocupar-se m pr ci ar os dados e referências , si mesmo, e avaliar se os objetivos foram claramente formulados e cumpridos
o que garante ao meno uma prim ira forma e pr i a à ideias aventadas. satisfatoriamente. Muitas vezes, nessa revisão "distanciada", vários problemas
Em seguida, seja nos momento de pen ar difu o ou em uma tapa específica na exposição se tornam perceptíveis. Felizmente é possível corrigi-los antes da
de revisão técnica preenchem- e a lacuna com a informaçõe detalhada e entrega para um professor, para uma revista, um fórum de discussão etc. Tendo
as referências adequadas. Em grande medida e a técnica também se aplica a em vista o modelo de dissertação exposto no capítulo 7 e os recursos expressivos
correções gramaticai . Por e emplo ao digitar é comum com ter diversos er- explorados neste capítulo, enumeramos a seguir os tópicos que devem guiar o
ros ortográfico . Obstinar- e em corrigir cada palavra digitada rompe a fluência olhar do autor nessa revisão crítica do próprio trabalho:
criativa. É preferi el a ançar muitas linhas de maneira a sedimentar conexões
• Avaliar se as quatro tarefas da introdução (contextualização, formulação
conceituais antes que e di ipem para ó então, em uma releitura, preocupar-
de um problema específico, tomada de posição e esboço do caminho
-se com correções gramaticai .
argumentativo a ser seguido) são propostas com clareza.
Cabe a cada um testar e encontrar o limite satisfatório da progressão
com lacunas. A unidade mínima a que es a técnica se aplica é o parágrafo; já a • Avaliar se no decurso das seções o caminho argumentativo prometido
máxima é a própria dissertação como um todo. Sugere-se um equilíbrio entre na introdução é seguido.
o avanço da fluência criati a e o acúmulo de referências e informações a serem • Avaliar se as etapas lógicas da análise são reconhecíveis; em suma, se o
precisadas. Por vezes, se avançamos longamente e abrimos, por conseguinte, leitor saberá, a cada trecho lido, o que está sendo proposto e por que
muitas lacunas o resultado pode então ser pobre, pois o contato rigoroso com razão (os marcadores metadiscursivos são essenciais nesse ponto).
as fontes é sem dúvida um estímulo para conexões conceituais enriquecidas. • Avaliar se os parágrafos estão bem conectados, sem cortes bruscos, e se
Vale a pena mesclar a progressão com lacunas e a precisão dos dados, de forma internamente são coesos e coerentes. Vale uma atenção especial para o
a não interromper excessivamente a fluência criativa mas também a alimentá-la emprego de conceitos técnicos: estarão expostos de modo compreensível
periodicamente com o material bibliográfico, que, afinal de contas, deve mesmo ou são pressupostos como já conhecidos? Por vezes, o simples acrésci-
ser o solo sobre o qual a dissertação floresce. mo de algumas frases explicativas sobre os conceitos empregados evita
grandes incompreensões.
• Avaliar se as referências bibliográficas são utilizadas corretamente e se
8.4.5 Revisão e Formatação Finais são suficientes para manter o leitor informado sobre o que é tematizado.
O processo da escrita envolve revisões parciais, exclusão e inclusão de Muitos ajustes finos são deriváveis dessa revisão final. Cabe, por exemplo,
trechos (conforme sugerido pela progressão com lacunas), enfim, uma suces- reconhecer se há um excesso de citações e substituí-las por paráfrases; ou, ao
são de versões antes mesmo de concluir o percurso almejado. Em algum mo- contrário, cabe notar a ausência de referências precisas às obras estudadas e,
mento, contudo, o autor deverá reconhecer que terminou o texto, fixado em consequentemente, incluir algumas citações atestatórias de sua interpretação.
uma versão satisfatória. Recomenda-se, então, não tomar esse momento como a Além disso, em sentido global, o autor pode notar que a formulação inicial de
finalização da escrita. É altamente recomendável que o autor se afaste, por um sua posição não corresponde ao que é efetivamente obtido durante a exposição.
tempo, do texto e ainda faça uma revisão final. Esse distanciamento temporal Cabe então reformular o próprio posicionamento ou desenvolver os trechos
é importante para que a intimidade autoral com as ideias se dissipe, e reste so- necessários para manter intacta a tese formulada originalmente. Em suma,
mente o texto como medida para a clareza do sentido ali veiculado. Se insiste uma revisão distanciada tende a fazer grande diferença para encerrar a escrita
em ler o texto imediatamente após o término de sua produção, o autor então de um texto argumentativo. É importante incluir como parte dessa revisão fi-
se arrisca a se apoiar em certa familiaridade pré-expressiva com o tema, e pode nal uma última correção gramatical, bem como ajustes de formatação conforme
julgar que as formulações parecem mais claras e ordenadas do que de fato estão. os padrões exigidos para a entrega da dissertação.
330 • Leitura e Escrita de Textos Argu:numtativos
Estratégi,as para a Escrita Argumentativa • 331
8.5 EXERCÍCIOS de problemáticas teóricas que especulam para além da experiência. Revelada
a fraqueza das pretensões metafísicas da razão especulativa, então, de maneira
mais clara as ilusões da razão são visíveis. A antinomia é a caracterização do
1) CRIE SENTE ÇAS-TÓPICO PARA OS TE impasse da razão consigo mesma. Na antinomia, a razão especula para além
da experiência. Na antinomia, o que ocorre é que a razão prova duas teses em
a) É possível, por exemplo, que o próprios indivíduos envolvidos no proce so
oposição para a totalização do conhecimento sobre um certo tema. Como não
proponham uma a aliação. Ou algum tipo d comit'' t mo realiza a avaliação.
há experiência alguma sustentando tal pretensão de considerações teóricas, surge
Em relação ao período de aplicação avaliaçõ podem ser propo tas durante o
o conflito antinômico da razão especulativa.
processo em pauta ou po teriormente. Além di o, as a aliações podem se con-
centrar em elementos específico do proce o ou bu car julgá-lo globalmente. b) A concepção agostiniana da linguagem é a qual a linguagem tem significação
por associação de cada palavra com um objeto que é referido . Se essa concep-
b) Dadas a suce ivas falha de aplicação da teoria a ca o empíricos comple- ção agostiniana da linguagem é tão difundida, muitas pessoas, em trabalhos
xos, o autor paulatinamente a abandonou. Além dis o ele já vinha trabalhando teóricos ou não, são levadas a descrever o funcionamento da linguagem como
no desenvolvimento de uma nova teoria e pôde te tar sua robustez diante de se as palavras se referissem a objetos, só assim tendo sentido. Isso envolve a
vários exemplos. Com a formulação da teoria , não era mais preciso servir-se compreensão do funcionamento da linguagem como se as palavras se referissem
de uma concepção in atisfatória omente por não haver nada melhor disponível. sempre a objetos, só assim têm significação. Isso envolve a compreensão do fun-
c) Sabe-se que a própria ideia de ubjetividade não é unívoca, mas remete a uma cionamento da linguagem numa grande confusão que faz muitos se perderem
complexa história teórica. O desenvolvimento da noção de sujeito não decorre procurando um objeto de associação ao qual uma determinada significação da
somente de uma atestação imediata sobre si mesmo, mas depende da aplicação palavra sempre a ele se refere. Contra isso, a metodologia das considerações de
de recursos linguístico-culturais. O emprego desses recursos não é sempre neutro Wittgenstein é a da introdução de modelos reduzidos da concepção das interações
social e politicamente. Parece, assim, razoável analisar em que medida a definição linguísticas para que possamos ver com clareza ali, naquele campo reduzido, o
de "sujeito" não é a base que permite fundar todos os demais conhecimentos, e funcionamento da linguagem, que na consideração teórica agostiniana torna-se
sim expressão de certos modos familiares de servir-se do conhecimento já dado frequentemente obscuro.
e das estruturas políticas já estáveis. c) Os termos universais podem ser predicados de muitos indivíduos ao mesmo
tempo, como ser humano, animal, vegetal. Historicamente, os adversários, dadas
d) Afinal, as pessoas se reúnem em sociedades desde tempos imemoriais, e
as diferentes respostas divergentes para essa questão, dividem os que se pronun-
isso em conformidade com seus interesses comuns. É possível que estabeleçam
ciaram quanto à questão dos universais em três grupos: os realistas, os nomina-
regras de convívio e as cumprem independentemente de sanções impostas por
listas e os conceitualistas. O fato é que a postura realista concede realidade aos
uma instância superior. A manutenção das vantagens recebidas por todos parece
termos universais. Afirmam que a designação da palavra como "ser humano" é
bastar aqui para a coesão social. Desse modo, o surgimento de "governos" não
um objeto geral, a essência de todos os indivíduos em incorporação sob tal termo.
é necessariamente concomitante ao estabelecimento de laços sociais.
Haveria uma essência real do gênero humano existindo separada dos indivíduos
humanos, que, então não são considerados senão como individuação de uma
generalidade essencial prévia, consideração que é por essa essência que o termo
2) REESCREVA OS TEXTOS A SEGUIR COM BASE NOS RECURSOS PARA COESÃO E
universal, por exemplo, "ser humano" tem significado; é o que afirma tal parti-
AS REGRAS PARA COERÊNCIA EXPLORADOS NESTE CAPÍTULO. ALÉM DISSO,
do. Outra facção quanto à questão tenta legitimar o uso dos termos universais
ELIMINE O EXCESSO DE OMI ALIZAÇÕES:
de uma outra maneira que não a maneira dos realistas. Para os nominalistas os
a) O projeto crítico de Kant pretendeu, entre outros objetivos, trazer à luz as termos universais são apenas convenções que não fazem designações de nada
ilusões da razão transgressora da dupla gênese do conhecimento humano (cal- da realidade e separado dos indivíduos. Apenas os nomes universais existem
cado na sensibilidade e no entendimento), que pretende teorizar sobre ques- (e não a essência em consideração daquilo que designam), tendo significado
tões que o pensamento não alcança senão de maneira especulativa e já muito a partir do convencionalismo linguístico. Por fim, os conceitualistas são o ter-
além de qualquer base empírica. Para Kant, a razão tem ilusões na teorização ceiro partido e pregam que os nomes universais têm significação enquanto são
3 3 4 • Leitura e Escrita de Te tos Argurnentativo Estratégi,as para a Escrita Argumentativa • 335
nomeações de conceitos mentai que fazem ub umir o particular no juízo De que modo eles barram a pergunta pelo ser? Heidegger enumera três deles:
"x é um ser humano". a universalidade do ser, a sua indefinibilidade e sua evidência. Vamos analisar
cada um deles detidamente. Vamos partir do primeiro deles. Pelo primeiro
preconceito, o ser é considerado aquilo que está acima de todos os gêneros,
3) CRESCENTE EXPRESSÕES METADI C SE-
não constituindo, por sua vez, nenhum gênero particular, pois está incluído
GUIR:
na compreensão de cada ente. Esse primeiro preconceito é, sem dúvida, muito
importante. Podemos ver claramente que dele decorre o segundo preconceito,
a) A doutrina da distinção entre qualidad primária ecundária e tá em
aquele da indefinibilidade. O que isso quer dizer? Como deslindar um tema tão
Galileu. o mundo há uma rígida di tinção entre componente pecificamente
difícil? Como o ser é universal, não pode figurar numa predicação restritiva, pela
objetivos e que configuram a e ência m ma da natureza e componente que
qual normalmente definimos os entes. Não se pode afirmar "o ser é [... ]", pois,
dependem exclusi amente da pre ença humana para ub i tirem e ão como
nesse caso, já se incluiria o ser em algum gênero, de modo que ele deixaria de ser
que diferentes efeito das múltipla combinaçõ do prim iro . O conteúdos
universal. O ser é assim indefinível. Isso sem dúvida é muito sério, caro leitor. Não
percepti os não e istem enão enquanto acolhido na 'alma ensitiva". Não
é algo a passar despercebido por nós. Heidegger nos alerta que essa consequência
fazem parte da matéria me ma de e mundo, endo apena efeito de sua arti-
não deve nos levar a abandonar a questão do ser. Que o ser seja indefinível toma
culação e de sua relação com os entidos. As qualidades reais da natureza são
ainda mais urgente a questão acerca do seu sentido, ele diz. Tão somente o autor
número, grandeza figura, movimento. O mundo subjetivo é tributário de um
esclarece que é preciso superar os padrões lógico-metafísicos tradicionais pelos
mundo objetivo independente dele. A essência da natureza são caracteres que
quais ou se entificava o ser ou se abandonava a questão. É interessante notar o
não são conhecido pelo sentido . São caracteres que se abrem a uma inspeção
caráter crítico dessa visão. Por fim, ainda falta um preconceito. Não devemos
muito específica: a matemática. O uso da matemática na física: o ser em última
dele esquecer, já que será c~ntral para o entendimento do posicionamento do
instância é essencialmente matemático.
autor que estamos aqui estudando. Pelo fato de que todo enunciado sobre o
b) A manutenção da sobrevivência no mundo material é o princípio fundamen- ente, todo comportamento em relação a ele pressupõe o ser, presume-se que se
tal do ser humano. A constituição física, perceptiva e até mesmo a inteligência trata de um conceito evidente. De fato, o leitor pode atestar isso sem problemas.
decorrem da adaptação evolutiva humana no seu contínuo comércio com o Nós vivemos numa compreensão prévia do ser pelo simples fato de existirmos,
mundo material. Há a dificuldade humana de lidar com o tempo. A relação co- não é mesmo? Mas o que isso quer dizer? De modo absolutamente claro, isso
mum ocorre no espaço das coisas materiais, por necessidade de sobrevivência. A não quer dizer que a noção de ser seja compreensível de modo explícito. Isso
prioridade da ação é dada ao que é estável. O ser humano está envolto por um se segue pelo seguinte: pense, leitor, que o fato de estarmos envoltos vivencial-
mundo material e tem de agir eficazmente nessa exterioridade para sobreviver. mente pelo ser não o faz imediatamente claro. Na verdade, e isso deve ser dito
A percepção da temporalidade é secundária. com todas as letras aqui, ele é um enigma no qual estamos mergulhados, e tudo
isso deve nos levar a colocar novamente a questão do sentido do ser, tal como
c) Ideias são intrínsecas ao pensamento - Descartes. As ideias são sempre ideias propõe o filósofo, e não negar ou esquecer esse problema.
de coisas. Para conhecer algo há a mediação da ideia. Os atos do pensar visam
às coisas e as apreendem como ideias. Ideia como operação do pensamento;
ideia como coisa pensada. A ideia no pensar seria o objeto imediato do ato de 5) CONSTRUA PARÁFRASES DOS SEGUINTES TRECHOS:
conhecimento, dizem. A ideia seria como imagem da coisa, representação. a) "Existe, dentro da história cronológica, outra história mais densa de substância
memorativa no fluxo do tempo. Aparece com clareza nas biografias; tal como
4) EXCLUA O EXCESSO DE EXPRESSÕES METADISCURSIVAS E REESCREVA O TEX-
nas paisagens, há marcos no espaço onde os valores se adensam.
O tempo biográfico tem andamento como na música desde o aUegro da irüancia
TO A SEGUIR:
que aparece na lembrança luminoso e doce, até o adagi,o da velhice.
O grande filósofo Heidegger nota que o "ser" desapareceu como tema de A sociedade industrial multiplica horas mortas que apenas suportamos:
investigação autônomo, cristalizado sobre os preconceitos da tradição metafísica são os tempos vazios das filas, dos bancos, da burocracia, preenchimento de
ocidental. Quais são esse_s preconceitos pelos quais o ser passou a ser concebido? formulários ...
336 • Leitura e Escrita de Te tos Argumentativo Estratégi,as para a Escrita Argumentativa • 3 3 7
Como alguns percursos obrigatórios na cidade qu no traz m acúmulo d isto é, muito além de qualquer experiência empírica. Essa teorização puramente
signos de mera informação no melhor do m ignificação especulativa leva a razão a certos impasses muito específicos, denominados por
biográfica são cada vez mais in a i o 25 . Kant de "antinomias". Em uma antinomia, provam-se duas teses opostas sobre
certo tema. Como não há nenhuma base empírica decisiva em favor de alguma
b) "A diferença entre os go ernos consiste na dm rença do oberano ou pe oa
das teses, instaura-se o conflito antinômico da razão especulativa.
representante de todo os membro da multidão. Dado qu a oberania oure ide
em um homem ou em uma a embleia de mai d um qu em tal a embleia b) Conforme a "concepção agostiniana da linguagem", as palavras somente têm
ou todos têm o direito de participar ou nem todo ma apena certo homen significado porque estão associadas a seus respectivos objetos de referência.
distinguidos do re tantes torna- e evidente que ó pode ha er tr" e péci de Trata-se de uma concepção bastante difundida e que leva sempre a buscar um
governo. Porque o repre entante é nece ariamente um homem ou mai de objeto de referência como significado para cada palavra, o que gera confusões e
um, e caso eja mai de um a as mbl ia erá de todo ou apenas de uma parte. obscurecimentos. Contra esse resultado, Wittgenstein propõe modelos reduzidos
Quando o repre entante é um ó homem o go erno chama- e uma monarquia. de interações linguísticas, por meio dos quais se pode obter clareza acerca do
Quando é uma as embleia de todo o que e uniram é uma democracia, ou funcionamento da linguagem.
governo popular. Quando é uma as embleia apenas de uma parte, chama-se-lhe
uma aristocracia. ão pode ha er outras espécie de go erno, porque o poder c) Termos universais, tais como "ser humano", "animal" e "vegetal", são aqueles
soberano inteiro [... ] tem que pertencer a um ou mais homens, ou a todos"26 . que podem ser predicados de muitos indivíduos ao mesmo tempo. Historicamen-
te, três concepções divergentes foram propostas para entender o funcionamento
de tais termos: realista, nominalista e conceitualista. Segundo a postura realista,
8.5.1 Resolução os termos universais designam um objeto geral, a essência do gênero nomeado.
Assim, por exemplo, o termo "ser humano" designaria a essência real do gênero
ão há uma única resposta certa para cada exercício. humano, a qual existiria em separado dos indivíduos a que esse termo se aplica.
Já para os nominalistas, os termos universais são apenas convenções linguísticas
1)
às quais não corresponde nenhum objeto real. Apenas os termos universais
a) As avaliações são aplicáveis por diferentes pessoas envolvidas, em momentos seriam reais, mas não haveria uma essência separada dos indivíduos aos quais
diversos e voltadas para aspectos variados do processo em pauta. tais termos são aplicados. Por fim, os conceitualistas defendem que os termos
universais nomeiam conceitos mentais que operam nos juízos em que indivídu-
b) A teoria x foi proposta para substituir a teoria Y.
os são subsumidos a seus respectivos gêneros, tais como "x é um ser humano".
c) Trata-se de investigar se certas noções de sujeito favorecem concepções po-
3)
líticas específicas.
a) Encontramos na obra de Galileu a doutrina da distinção entre qualidades
d) Defenderemos que o governo é uma formação posterior ao estabelecimento
primárias e secundárias. Conforme essa doutrina. há, no mundo, uma rígida
da sociedade.
distinção entre componentes especificamente objetivos e que configuram a
2) essência mesma da natureza e componentes que dependem exclusivamente da
presença humana para subsistirem e são como que diferentes efeitos das múlti-
a) Entre outros objetivos, Kant pretendeu, em seu projeto crítico, esclarecer de
plas combinações dos primeiros. Assim. por um lado. os conteúdos perceptivos
que maneira a razão se ilude ao transgredir a dupla gênese do conhecimento
não existem senão enquanto acolhidos na "alma sensitiva". Não fazem parte da
humano (sensibilidade e entendimento). Isso ocorre quando se pretende teorizar
matéria mesma desse mundo, sendo apenas efeito de sua articulação e de sua
sobre questões que o pensamento não alcança senão de maneira especulativa,
relação com os sentidos. Por outro. as qualidades reais da natureza são número,
grandeza, figura, movimento. Isso quer dizer que o mundo subjetivo é tribu_tá-
rio de um mundo objetivo independente dele. A essência da natureza (aquilo
25. E. Bosi, O Tempo Vivo da Memória. Ensaios de Psicologia Social, 2003, pp. 23-24.
26. T. Hobbes, Leviatã, 1988 [1651], p. 114. que faz ela ser o que é. por si mesma e em si mesma) são caracteres que não
338 • Leitura eEscrita de Textos Argumentativos Estratégias para a Escrita Argumentativa • 339
são conhecidos pelos sentidos, f. e abrem a uma in peção muito sp cífica: a quer dizer, entretanto, que a noção de ser seja compreensível explicitamente.
matemática. Decorre daqui umaju tificativa para ou o da matemática na fí ica: Afinal, o fato de estarmos envoltos vivencialmente pelo ser não o faz imediata-
o ser em última instância é essencialmente matemático. mente claro. Na verdade, o "ser" é um enigma no qual estamos mergulhados, o
que justamente deve nos levar a colocar a questão do sentido do ser, tal como
b) Em termos muito gerais, pode- e afirmar que a manutenção da obrevi ência propõe o filósofo, e não a negar ou esquecer esse problema.
no mundo material é o princípio fundamental do r humano. A con tituição
física, perceptiva e até mesmo a inteligência decorr m da adaptação evolutiva 5)
humana no seu continuo comércio com o mundo mat rial. Dada a r lação a) A autora discrimina uma história biográfica no interior da "história cronoló-
prioritária com a matéria, torna- e compreen í ela dificuldade humana de lidar gica", isto é, da mera sucessão de instantes homogêneos e indiferentes entre si.
com o tempo. Afinal de contas, a relação comum ocorre no espaço das coisas Nessa história biográfica, a passagem do tempo envolve modulações, capturadas
materiais por necessidade de obrevi ência. I o quer dizer, por exemplo, que por apelo a recursos expressivos musicais ( adagio, allegro). A essa concepção
a prioridade da ação é dada ao que é e tá el. O s r humano está envolto por por assim dizer estrutural da temporalidade, a autora opõe, em seguida, uma
um mundo material e tem de agir eficazmente ne a exterioridade para sobre- constatação situacional: o modo de vida industrial multiplica eventos vazios de
viver. Isso explica. ao menos em parte. que a percepção da temporalidade seja biografia, quer dizer, meros momentos cronologicamente ordenados porém sem
secundária. significação pessoal. Como exemplos, ela menciona o tempo gasto em filas ou
no preenchimento de documentos burocráticos.
c) Segundo Descartes. ideias são intrínsecas ao pensamento. E. as ideias são
sempre ideias de coisas. Parece seguir-se daqui que para conhecer algo há a me- b) O autor propõe uma classificação das formas de governo conforme o número
diação da ideia. Os atos do pensar visam às coisas e as apreendem como ideias. de representantes do poder. Em relação a esse número, a distinção é simples:
ote-se um duplo sentido da noção de ideia: por um lado. ideia é a operação quem exerce o poder será ou uma pessoa ou mais de uma, quer dizer, uma
do pensamento; por outro, é a coisa pensada. Deriva daqui a interpretação de assembleia, na qual ou todos têm direito de participar das decisões ou somente
que a ideia no pensar seria o objeto imediato do ato de conhecimento. Nesse uma parte das pessoas. A essa distinção correspondem três formas de governo:
sentido, a ideia seria como a imagem da coisa, isto é. representação. monarquia, democracia e aristocracia.
4)
se revela então um instrumento para alcançar algo qu , m última instân ia, seriamente (ao menos por hipótese) ao "estudo" como meio de cumprimento
não está intrinsecamente ligado ao exercício efetivo de prática educativa . Afi- de metas profissionais particulares. Contudo, o sucesso em urna função técnica,
nal, muitas são as distorções dos proce o pedagógico que ainda a im le am a memorização de informações pertinentes e de procedimentos complexos, não
a tal autorização, como fraudes, plágios etc. De no sa part não abordamos a necessariamente supõe o exercício do espírito crítico na análise e posiciona-
formação como um meio para obter algo qu pode m mo Ih s r terior. mento acerca de questões sociais, políticas ou culturais amplas. Formar-se bem,
Interessou-nos, na erdade abordar o e tudo como o d n olvim nto de com- aqui, significou apenas adestrar-se em urna atividade técnica, o que sem dúvida
petências específicas que con olidam um modo de pen ar e agir qu ju tam nte é essencial para a manutenção da ordem em sociedades tão complexas quanto
se caracteriza pelo que chamamos d e pírito crítico . D ponto de vista, o as contemporâneas. Porém, dispor de conhecimento técnico nada prediz acerca
espírito crítico não é algo que e vai ganhar caso e cumpram as tarefas formai da capacidade critica da pessoa, nada garante sobre sua habilidade de analisar
de uma graduação acadêmica como uma e p ~ ci de ane o do diploma, mas é argumentativamente urna problemática política ou social ampla; e o fenômeno
uma maneira de conduzir o processo fonnativo. dos "ignorantes diplomados" não é algo de menor impacto na elaboração da
ão é então que se deva e tudar para enfim ganhar o e pírito crítico. Na opinião pública acerca de vários ternas de interesse nacional.
verdade, o espírito crítico amadurece e viceja conforme certo modo de estudar. Quando o estudo é um meio contingente para angariar sucesso profis-
Isso significa que há formas e pecíficas de desempenhar as atividades cornurnen- sional, o processo formativo é pouco eficaz em desenvolver aquela orientação
te ligadas à formação (por exemplo, leitura e escrita) que favorecem o espírito crítica do pensar capaz de transformar diversos âmbitos da vida prática. Há
crítico, enquanto outras apenas instrumentalizam o período de estudo corno um pessoas formadas, nesse sentido tecnicista, que dispõem de muitas informações
meio entre outros para garantir metas que não aparecem intrinsecamente ligadas precisas acerca de sua área de especialização, mas muitas vezes são incapazes de
ao processo educativo (sucesso profissional, status social etc.). Interessou-nos, elaborar um juízo justificado sobre problemas sociais e políticos confrontados
ao longo deste livro, sistematizar ao menos algumas das formas de estudo que diariamente. Alguém assim "formado" não aprendeu a formular posições (fora
incluem em seu desenrolar o exercício de capacidades críticas. Por meio dessas de sua área de expertise) sustentadas por razões, e muito menos a exercitar-se
formas, o estudo não se reduz a um requisito formal para o exercício técnico- em questionar os próprios posicionamentos à luz de evidências contrárias dispo-
-profissional, embora obviamente cumpra essa função. Estudar torna-se ocasião níveis, o que o levaria a abandonar formulações incoerentes ou simplificadoras
para pensar argumentativamente, isto é, para buscar pelas razões das posições e a construir posições menos enviesadas. Alguém assim "formado" se aferra
defendidas e reconstruí-las conforme a devida complexidade expositiva de sua cegamente a posições peremptórias, as quais nunca admite discutir, embora
formulação. Essa ênfase em reconstruir as justificativas racionais reinserindo-as as mobilize constantemente para julgar, por vezes agressivamente, as opiniões
em movimentos expositivos densos não é somente uma exigência das várias dis- alheias. Daí que não seja tão incomum constatar tantas pessoas "bem formadas"
ciplinas estruturadas em tomo da discursividade argumentativa. Trata-se mesmo propagando ódio e preconceito contra os que pensam diferente. Ao tomarem
de um tipo de orientação do pensar capaz de alterar diversas dimensões da vida parte em discussões que fogem à sua especialidade técnica, reproduzem vieses
prática. cognitivos infantis, para os quais as crianças ao menos têm a desculpa da falta
Parece que é mais ou menos nesse sentido que se diz cornumente que a de experiência.
educação pode transformar a realidade sociocultural de um país, emancipar as Certamente não é nesse sentido de "treinamento técnico" (o qual, insisti-
pessoas dos grilhões que as impedem de sentir satisfação existencial etc. Por mos, tem um papel inegável na sociedade) que a formação ou o estudo figuram
contraste, há um sentido meramente formal de educação, conforme sugerido como caminho para a emancipação sociocultural. Em nossa visão, trata-se de
há pouco, muitas vezes incapaz de honrar expectativas tão elevadas. São notó- incentivar modos de estudo que envolvam em sua prática a maturação do pensar
rios os casos de pessoas "bem educadas", isto é, que dispõem da autorização crítico, 0 qual então se toma um hábito para o enfrentamento cotidiano de am-
formal para exercerem determinada profissão por vezes de alto prestígio, mas plas questões sociais ou políticas. A construção de teses justificadas, a avaliação
que veiculam reiteradamente (e não apenas de modo acidental) opiniões tos- de críticas pertinentes, a explicitação de complexidades conceituais do terna em
cas, preconceituosas sobre assuntos gerais da sociedade, assuntos que escapam vista; essas são algumas das competências que caracterizam o estudo voltado para
ao domínio técnico a que se dedicam profissionalmente. Pessoas assim são sem 0 constante exercício do pensar crítico e da autonomia intelectual. Neste livro,
dúvida "formadas", no sentido de que adquiriram conhecimento técnico para buscamos expor, de maneira não exaustiva, técnicas que tomam as atividades
realizar atividades profissionais específicas, e de que, para tanto, dedicaram-se mais banais de qualquer processo formativo (leitura e escrita) ocasiões para
344 • Leitura eEscrita de Textos Argumentativo Conclusão • 345
sedimentar uma orientação crítica do pensar. E tab 1 c mo d a man ira, amplo, tem autonomia para aprender sobre os mais variados assuntos, e isso in-
um método reprodutível para tópicos dos mais diferentes âmbito . Ca o e qu ira dependentemente das obrigações de um período oficial de formação. O estudo
opinar seriamente acerca de alguma questão ou tomar pa.rt produti ament em não se reduz a uma etapa entediante a ser rapidamente superada para usufruir os
algum debate, sabe-se, por meio de tal método, como tudar as fonte pertinen- benefícios sociais ou materiais dela derivada, mas se impõe como uma maneira
tes acerca dos tópicos em pauta e por con eguint torna- e viável a con tru- privilegiada de enfrentar os desafios cotidianos nas mais diferentes fases da vida.
ção de posições que contribuam para o e clarecimento do que é discutido, em
vez de ridiculamente repetir análi e implificadora ou notórios preconceito .
Decerto não é preciso ser e peciali ta para opinar com re pon abilidade, em
questões ociais ou políticas de inter e nacional por e emplo. Ma para que
essas questões sejam tratadas de um modo racionalm nte construtivo, é preciso
exercitar reflexões paciente que reconheçam as nuance conceituais e factuais
da questão, e con truir po içõe que não se limitem a eicular teses enviesadas
e simplificadoras. As técnicas de e tudo e postas neste livro compõem um cami-
nho metódico para aprender a e po icionar criticamente sobre os mais diversos
assuntos. Por meio delas, fica ao menos sugerido qual o esforço necessário para
bem entender um assunto e então tentar se posicionar com relevância sobre ele:
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departamento de Filosofia da Universidade de São Paulo, onde leciona desde
2010. Neste mesmo departamento fez sua graduação em filosofia, entre 1995
e 1999. Ali também defendeu mestrado (2003) e doutorado (2008), sob a
orientação do prof. Carlos Alberto R. de Moura. Seu principal campo de atu-
ação é a história da filosofia contemporânea, tendo se especializado em feno-
menologia. Acerca dessa escola filosófica, publicou três livros: O Transcendental
e o Existente em Merl,eau-Ponty (São Paulo, Humanitas/Fapesp, 2006), Fenomenolo-
gi,a e Ontologi,a em Merl,eau-Ponty (Campinas, Papiros, 2009) e A Científicidade na
Fenomenologi,a de Husserl (São Paulo, Loyola, 2018), além de vários artigos em
periódicos nacionais e internacionais.
Em sua carreira docente, além de ministrar disciplinas sobre história
da filosofia, dedicou-se também a cursos sobre lógica informal. Dessa linha de
pesquisa, resultou o livro Introdução à Análise Argumentativa. Teoria e Prática (São
Paulo, Paulus, 2016). Ademais, desde 2014, vem desenvolvendo, com um grupo
de colegas de diversas carreiras da FFLCH, o projeto de ensino Práticas de Leitura
e Escrita Acadêmicas. Trata-se de propor métodos para a qualificação dos estudan-
tes quanto às habilidades essenciais da vida acadêmica (em particular, leitura
crítica e escrita argumentativa). Em parte, este livro agora em mãos sistematiza
técnicas amadurecidas em cursos de graduação ligados a esse projeto.
ACADÊMICA
1. Chordata: Manual j1ara um Curso Prático 14. ?reparos Cavilários para Amálgama e Resina Composta
Elizabeth Hõfling, Miguel Trefaut Rodrigues, André L. B. Centola, Teima N. ascimento
Pedro Luís Bernardo da Rocha, Mônica Toledo-Piza e Miriam L. Turbina
e Ana Maria de Souza 15. A Identidade e aDifererlfa: Raízes Históricas das Teorias
Estruturais da Narrativa
2. O Renascimento
Edward Lopes
Teresa Aline Pereira de Queiroz
16. Literatura Comparada:
3. Princípios de Eletrodinâmica Clássica
História, Teoria e Crítica
JosifFrenkel
Sandra itrini
4. Laboratório de Virol,ogia: Manual Técnico
1 7. E/etroq uímica: Princípios e Aplicações
José A. . Candeias
Edson A. Ticianelli e Ernesto R. Gonzalez
5. Controle R.obusto Multivariável: Módulo LQG/LTR
18. A mostragem Probabilística: Um Curso Introdutório
José Jaime da Cruz ilza unes da Silva
6. jornalismo Econômico 19. Pensando a Educação nos Tempos Modernos
Bernardo Kucinski Maria Lucia Spedo Hil dorf
7. Introdução à Bwlogia Vegetal 20. Números: Uma Introdução à Matemática
Eurico Cabral de Qljveira César Polcino Mfües e Sônia Pitta Coelho
8. Mecânica Clássica Moderna 21. Arquiteturas1wBrasil: 1900-1990
Walter F. Wreszinski Hugo Segawa
9. Introdução à Física Estatística 22. Distribuição de Renda: Medidas de Desigualdade e Pobna.a
Sílvio R. A. Salinas Rodolfo Hoffmann
1O. Probabilidade: Um Curso Introdutório 23. Ondas e Onda/elas: Da Análise de Fourier à Análise de
Carlos A. B. Dantas Ondaletas de Séries Temporais
11. Modelagem e Simulação de Processo Industriais Pedro A. Morettin
40. oções de Probabilidade e Estatística Paulo Leonel Libardi 82. Forma e Uso dos Verl>os em Hebraico 96. Uma Variável Complexa: Tearia e Aplicações
Marcos ascimemo Magalhães e Dora Fraiman Blatyta Raymundo Luiz de Alencar e Tânia unes RabeUo
62. Atlas de Ressonância Magnética do Crânio
Antonio Cario Pedroso de Lima Paula Ricci Arantes, Edson Amaro Júnior, 83. Indivíduo, Sociedade e Língua: Cara, Tipo Assim, Fala Sério! 97. Leitura e Escrita de Textos Argumentativos
41. Astrofisica oo Meio Interestela-r Jackson Cioni Bittencourt e Álvaro Cebrian Maria Célia Lima-Hemandes Marcus Sacrini
WalterJ. Maciel de Almeida Magalhães
42. Princípios de Oceanografia Fz.sica de Estuários 63. Manual de Conservação Preventiva de Documentos:
Luiz Bruner de Miranda, Belmiro Mendes de Castro Papel e Filme
e Bjõm Iqerfve SAUSP
45. Do Léxico ao Discurso pela Infurmática 66. Uma Introdução à Equação de Boüzmann
Zilda Maria Zapparoli e André Camlong Gilberto Medeiros Kremer
TO IO CARLOS HERNANDE
Vice-reitor da USP
PRÓ-REITORIA
DE GRAD AÇÃO
PIPLDE
Programa de Incentivo à Produção
de Livros Didáticos para o
Ensino de Graduação
ISBN 978-85-314-1737-5