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A Regularização de Loteamentos no Brasil, de acordo com as Leis Federais

6.766/1979 e 13.465/2017

RESUMO: É comum existirem restrições ao


direito de propriedade de imóveis situados em
loteamentos irregulares. Será que existem meios
legais para solucionar essas problemáticas?
1. INTRODUÇÃO

Os fenômenos de natureza econômica são considerados os grandes propulsores das


transformações estruturais das cidades. A implementação de práticas econômicas nos
centros urbanos costuma atrair diversas pessoas para essas localidades, sob a promessa
de obterem melhores empregos, renda e condições de vida.

É comum, no entanto, essas cidades não disporem de infraestrutura mínima necessária


para atender às demandas geradas por uma expansão demográfica repentina, a exemplo
da procura por moradias e serviços públicos essenciais.

A ausência de condições favoráveis para absorver as pretensões desses novos moradores


pode ocasionar o crescimento desordenado da cidade, o que normalmente faz surgir
núcleos habitacionais periféricos, que muitas vezes se situam em áreas de risco, sem
quaisquer parâmetros técnicos aceitáveis para a construção de habitações ou
equipamentos públicos capazes de proporcionar à população uma vida digna.

Para evitar possíveis mazelas sociais, oriundas do crescimento desordenado das cidades,
o ordenamento jurídico brasileiro prevê uma série de regras urbanísticas que devem ser
observadas durante os procedimentos de uso e ocupação do solo urbano.

De acordo com Maria Sylvia Zanella Di Pietro 1 , tais disposições se referem às


normativas que buscam regular as construções urbanas, os parcelamentos do solo, os
zoneamentos, a preservação do patrimônio histórico e artístico nacional, a higidez do
meio ambiente, por meio da proteção das águas e florestas, por exemplo, dentre outras.

Os regramentos relacionados aos parcelamentos do solo são uma das principais formas
de se estabelecer a ordenação dos espações territoriais urbanos, porquanto impõem a
realização de condições mínimas de infraestrutura, planejamento, organização
1
DI PIETRO, M. S. Z. Poder de Polícia em matéria urbanística. In: FREITAS, J. C. (Coord.). Temas de direito
urbanístico 2. São Paulo: Centro de Apoio Operacional das Promotorias de Justiça da Habilitação e Urbanismo –
CAOHURB; Ministério Público do Estado de São Paulo – Procuradoria Geral de Justiça; Imprensa Oficial do Estado,
1999. P. 31.
administrativa e embelezamento, necessárias para tornar as cidades estruturadas e, deste
modo, proporcionar bem-estar aos novos habitantes dos núcleos.

O ordenamento jurídico brasileiro apresenta diversas modalidades de parcelamento do


solo urbano, a exemplo dos condomínios edilícios horizontais e verticais, descritos na
Lei Federal n. 4.591/1964, ou, ainda, a figura do desdobro, cujos procedimentos podem
ser encontrados em leis municipais que versam sobre o assunto.

Além desses institutos, também destacam-se os parcelamentos descritos na Lei Federal


n. 6.766/1979, considerada a lei geral de parcelamento do solo urbano, a saber: os
loteamentos, os desmembramentos, os loteamentos de acesso controlado (loteamentos
fechados) e os condomínios de lotes. Esses dois últimos foram inseridos na lei
Lehmann2 através da Lei Federal n. 13.465 de 2017, que também dispôs sobre os
procedimentos relativos à regularização fundiária urbana (Reurb) brasileira.

2. DOS LOTEAMENTOS

O loteamento clássico é a modalidade de parcelamento que maior teve a atenção do


legislador. Além de conceitos gerais, a Lei n. 6.766/1979 trouxe outros requisitos
básicos relativos a esse parcelamento, como os índices urbanísticos mínimos (capítulo
II); os itens obrigatórios para a confecção do projeto de loteamento (capítulo III); os
procedimentos para a regularização do empreendimento (capítulo VIII), dentre outros.

Sobre o conceito de loteamento, o artigo 2º, §1º da Lei 6.766/1979, classifica-o como
sendo “a subdivisão de gleba em lotes destinados a edificação, com abertura de novas
vias de circulação, de logradouros públicos ou prolongamento, modificação ou
ampliação das vias existentes”.

Durante o procedimento de instituição dos loteamentos, a Lei Geral determina que o


interessado realize projeto técnico, instruído por diversos estudos e compromissos, que
demonstrarão a compatibilidade do empreendimento de uso e ocupação do solo com as
normas ambientais e urbanísticas previstas para a localidade.

Um dos principais compromissos para a realização de um loteamento é a


obrigatoriedade de o empreendedor executar as obras de infraestrutura básica que irão
atender os moradores dessas novas áreas urbanas, como a construção das suas vias de

2
A lei federal n. 6.766/1979, que traz as diretrizes gerais sobre parcelamento do solo urbano no Brasil, também é
conhecida como “Lei Lehmann”, em razão de o projeto de lei que a originou ter sido apresentado pelo senador Otto
Cirillo Lehmann.
circulação, a demarcação dos lotes, quadras e demais logradouros, e a implementação
dos equipamentos públicos para o escoamento de águas pluviais.3

Com base na realidade local, e a fim de garantir o bem-estar de seus habitantes, o


Município poderá ampliar o rol de instrumentos que compõem a infraestrutura básica
para os loteamentos de sua competência, acrescentando a execução obrigatória de outros
equipamentos urbanos, a exemplo da instalação de iluminação pública, esgotamento
sanitário, abastecimento de água potável e a disponibilização de energia elétrica pública
e domiciliar.4

Com essas imposições legais, o Poder Público buscou compartilhar com o


empreendedor, que auferirá renda através do parcelamento do solo, as despesas
decorrentes do adensamento populacional na localidade, relacionadas à promoção da
infraestrutura básica necessária para ofertar condições de vida urbana adequadas à
população.

Quando um desses parcelamentos é executado sem qualquer tipo de consulta à


prefeitura, a doutrina o classifica como sendo um loteamento clandestino. Já os
parcelamentos que são implementados com alguma interferência do Poder Público, a
exemplo daqueles em que há a aprovação e/ou registro do projeto, sem, contudo, a
devida execução das obras de infraestrutura previstas em lei, são considerados
loteamentos irregulares.5

Infelizmente é muito comum na realidade dos Municípios brasileiros existirem casos de


loteamentos clandestinos e/ou irregulares, o que acaba comprometendo sobremaneira as
políticas públicas locais de bem-estar social, as quais deveriam constituir uma
prioridade na criação dos loteamentos.

Os compradores dos lotes desses parcelamentos ilegais costumam ser os maiores


prejudicados, pois normalmente não lhes é permitido construir ou habitar nos seus
imóveis até o local ter condições mínimas de infraestrutura para garantir aos moradores
segurança urbanística e ambiental.

3
Artigo 18, V, da Lei Federal 6.766/1979.
4
Artigo 2º, §5º da Lei Geral de Parcelamento do Solo Urbano.
5
MORETTO, Simone Santos; SOMENSI, Simone. Loteamentos Irregulares e clandestinos: sua regularização no
município de Porto Alegre. Revista da Procuradoria Geral do Município de Porto Alegre, Porto Alegre, Edição 23,
página 157 a 174, 2009.
Nessas hipóteses, a fim de resguardar principalmente o interesse dos adquirentes de
boa-fé, o ordenamento jurídico brasileiro apresenta alguns procedimentos de
regularização de loteamentos capazes de solucionar tais problemas.

3. A REGULARIZAÇÃO DOS LOTEAMENTOS

Atualmente existem duas formas de se regularizar loteamentos no Brasil, que podem


englobar tanto medidas jurídicas, capazes de promover a titulação dos ocupantes dos
imóveis, quanto aspectos ambientais e urbanísticos, que garantirão a urbanização
sustentável da área e a consequente fruição do direito à construção de moradia digna.

A primeira forma de regularização de loteamentos se refere aos procedimentos


elencados na própria Lei Federal n. 6.766/1979. Já a segunda maneira de legalização é
estabelecida na Lei Federal n. 13.465/2017, regulamentada pelo Decreto Federal
9.310/2018.

3.1 A Regularização dos loteamentos descrita na Lei Federal 6.766/1979

Os artigos 37 e seguintes da Lei Geral de Parcelamento urbano trazem os procedimentos


de regularização que serão utilizados diante de loteamentos irregulares, isto é,
parcelamentos não registrados em cartório imobiliário ou devidamente executados pelo
empreendedor, conforme o cronograma de implementação das obras de infraestrutura.

Sendo constatado um loteamento irregular, a Lei 6.766/79 prevê como primeiro passo
para a sua regularização que o empreendedor seja notificado para suspender o
recebimento de todos os pagamentos das prestações restantes do loteamento. Essa
notificação também deverá determinar que o responsável pelo loteamento promova os
atos necessários para a legalização do empreendimento no prazo de até 90 dias.

A referida notificação pode ser feita tanto pela Prefeitura Municipal, quanto pelo
Ministério Público Estadual ou, ainda, na ausência de manifestação de ambos, pelo
próprio particular adquirente dos lotes. Já o ato de notificação pode ser realizado por
meio do cartório de registro de imóveis, de títulos e documentos, ou, ainda, por via
judicial.

Ocorrendo a suspensão do pagamento das prestações restantes, o adquirente efetuará o


depósito das parcelas devidas junto ao Registro de Imóveis competente, ou em juízo,
ficando as quantias retidas até a comprovação da regularização do empreendimento.
Se o loteador cumprir todas as recomendações trazidas na notificação, poderá ingressar
com ação judicial pleiteando o levantamento do valor atualizado, relativo às prestações
suspensas, bem como a autorização para que as eventuais parcelas remanescentes
voltem a ser pagas a ele6. Do contrário, ele jamais poderá ter direito a essas quantias.

Nos casos em que o empreendedor não realiza de forma espontânea a regularização do


parcelamento, caberá à Prefeitura, quando for o caso, realizar tais procedimentos, no
intuito de evitar lesão aos seus padrões de desenvolvimento urbano local, bem como
defender os direitos dos adquirentes de lotes7.

Nessa hipótese, as importâncias despendidas durante os procedimentos previstos em lei,


como a realização da infraestrutura básica, registro e eventuais expropriações, serão, ao
final da regularização, levantadas pelo Município das prestações depositadas em juízo,
por meio de autorização judicial, ou, não sendo suficientes, por meio da venda dos lotes
caucionados. Se, ainda assim, esses valores não forem suficientes para cobrir os gastos,
o restante será exigido do loteador, seja por meio administrativo, através da inscrição do
débito na dívida ativa, ou via judicial, a exemplo do bloqueio de bens do
empreendedor8.

Regularizado o loteamento pela Prefeitura Municipal, o comprador do lote,


demonstrando o pagamento de todas as prestações pelo preço avençado, poderá obter o
registro de propriedade do imóvel adquirido9.

3.2 A Regularização dos loteamentos descrita na Lei 13.465/2017 – Lei da Reurb

Outra forma de se regularizar loteamentos seria por meio dos procedimentos previstos
na Lei da Reurb, uma vez que esses parcelamentos podem ser enquadrados como
núcleos urbanos informais, que são o objeto de intervenção da Regularização Fundiária
Urbana.

Os núcleos urbanos informais, de acordo com o art. 11, II, da Lei 13.465/17, são
conceituados como ocupações onde os moradores não possuem título de propriedade
registrado, seja em razão de irregularidades ocorridas na época da aquisição do bem, ou
por se tratarem de núcleos clandestinos, formados sem qualquer intervenção pública.

6
Artigo 38, §3º, da Lei Federal 6.766/1979
7
Artigo 40, caput, Lei Federal 6.766/1979
8
Artigo 40 da Lei Federal 6.766/1979
9
Artigo 41 da Lei Federal 6.766/1979
Diante disso, é possível concluir que os procedimentos de regularização previstos na Lei
da Reurb podem ser aplicados tanto para núcleos irregulares, a exemplo do que ocorre
nos procedimentos elencados pela Lei Geral de Parcelamento, quanto os parcelamentos
clandestinos, até mesmo se eles estiverem situados em imóveis públicos. 10

A Regularização Fundiária Urbana (REURB) consiste no conjunto de medidas jurídicas,


urbanísticas, ambientais e sociais que visam à regularização de núcleos urbanos
informais11. Tratam-se de procedimentos essencialmente declaratórios em que, se
houver anuência expressa ou tácita, tanto dos confrontantes, quanto dos proprietários e
eventuais interessados, o Poder Público pode chancelar o direito de propriedade ao
posseiro, desde que seja realizado plano de regularização ambiental ou urbanística para
o local, prevendo a execução de medidas de melhoria no núcleo, quando for o caso.

Existem duas formas de se tramitar o processamento da Reurb: a “Social” (Reurb S),


direcionada para os núcleos predominantemente compostos por pessoas de baixa renda,
e a “Específica” (Reurb E), realizada nos demais casos.12

A partir dessa classificação, será possível determinar o responsável pelos custos


derivados do procedimento de regularização, seja pela elaboração dos projetos de
engenharia, pela realização da infraestrutura necessária no local ou, ainda, pelos
emolumentos cartorários.

Quando se tratar de um núcleo classificado como “Reurb E”, composto


predominantemente por pessoas que não são de baixa renda, os responsáveis por arcar
com o custeio das despesas serão os interessados na regularização dos imóveis. Quanto
aos núcleos classificados como “Reurb S”, caberá ao Poder Público (União, Estados ou
Municípios) a realização e custeio de todos os atos necessários.13

Independente de qual procedimento a ser utilizado, a classificação em “Reurb S” ou


“Reurb E”, bem como o processamento dos pedidos, a aprovação do projeto de
regularização e a emissão dos títulos, em regra, será de competência do Município em
que se localiza o núcleo14.

10
Artigo 23, caput, da Lei Federal 13.465/2017
11
Artigo 9º, caput, da Lei Federal 13.465/2017
12
Artigos 13, I e II da Lei Federal 13.465/2017
13
Artigo 33 da Lei Federal 13.465/2017
14
Artigo 30 da Lei Federal 13.465/2017
No entanto, a lei autorizou vários indivíduos a realizarem o requerimento para a
tramitação do pedido de regularização perante o Município. Poderão requerer a Reurb
todos os entes federativos, o Ministério Público, a defensoria, os proprietários dos
imóveis ocupados, os loteadores e até mesmo os indivíduos beneficiários da Reurb,
individualmente ou por meio de associação, cooperativas, dentre outros, desde que
requeiram e promovam os atos necessários para a regularização do núcleo.15

A Lei n. 13.465/2017 traz uma série de institutos que podem ser utilizados no âmbito
dos procedimentos da Reurb para a regularização do parcelamento, de modo que o título
de propriedade seja concedido ao ocupante do imóvel e para que o núcleo atenda aos
parâmetros urbanísticos mínimos exigidos pela Lei, quando for o caso.

Se o núcleo urbano informal já estiver consolidado até 22 de dezembro de 2016, ou seja,


se as ocupações forem de difícil reversão, em virtude do tempo da ocupação, da
natureza das edificações, da localização das vias de circulação e da presença de
equipamentos públicos, recomenda-se que seja utilizado o instituto da legitimação
fundiária.

A legitimação fundiária é uma nova forma de aquisição originária do direito de


propriedade, conferida por ato do Poder Público Municipal, denominado Certidão de
Regularização Fundiária, ao final do procedimento da Reurb, àquele que possuir em
área privada ou até mesmo pública, unidade imobiliária com destinação urbana,
integrante de núcleo urbano informal consolidado, existente em 22 de dezembro de
2016, data da publicação da Medida Provisória 759 de 2016, que foi convertida na Lei
13.465/17.16

Trata-se de um instrumento jurídico criado pela Lei da Reurb, pelo qual o ocupante
adquirirá a unidade imobiliária com destinação urbana livre e desembaraçada de
quaisquer ônus, direitos reais, gravames ou inscrições, eventualmente existentes em sua
matrícula de origem, exceto quando disserem respeito ao próprio legitimado17.

Conforme mencionado, ao final do procedimento de regularização, é concedido ao


ocupante o título de propriedade do imóvel. Tal titulação, inclusive, pode ser finalizada
sem a efetiva realização da infraestrutura essencial exigida pela Lei da Reurb,
caracterizada pela construção de sistema de abastecimento de água e de coleta e
15
Artigo 14 da Lei Federal 13.465/2017
16
Artigo 23 da Lei Federal 13.465/2017
17
Artigo 23, § 2º da Lei Federal 13.465/2017
tratamento de esgoto, rede de energia elétrica domiciliar e soluções de drenagem,
quando necessárias, desde que seja firmado Termo de Compromisso com os
responsáveis pela construção desses equipamentos, informando o cronograma de
execução18.

Ressalta-se que nas hipóteses de loteamentos e demais parcelamentos ilegais


empreendidos por particular, a conclusão da Reurb confere direito de regresso àqueles
que suportarem os custos da regularização contra os loteadores. E mesmo se forem os
loteadores que realizem o pedido de instauração da Reurb no local, isso não os eximirá
de responsabilidades administrativa, civil ou criminal em razão de terem dado causa à
formação do núcleo urbano informal, embora a regularização possa ser uma atenuante.

4. CONCLUSÃO

É notório que o surgimento desses núcleos normalmente acarreta inúmeros problemas


aos Municípios, tanto de ordem social quanto ambiental, a exemplo das demandas por
moradia, transporte, saúde, iluminação, abastecimento de água, educação, a exposição à
riscos de desastres, a supressão de vegetação não autorizada, a impermeabilização do
solo, a geração e deposição irregular de resíduos sólidos, a ocorrência de poluição
visual, dentre outras transformações profundas e, muitas vezes, irreversíveis nas
cidades.

Diante desse cenário, é imprescindível a atuação do Poder Público em duas vertentes:


uma de cunho preventivo, para evitar o surgimento de novos núcleos ilegais, através da
fiscalização efetiva das cidades, e outro momento regulatório, voltado para a legalização
das ocupações já existentes.

Portanto, enquanto houver loteamentos irregulares ou clandestinos, é essencial que,


aliada à fiscalização urbanística, o Poder Público promova a regularização de tais
núcleos, com a finalidade de garantir a função social da propriedade e o direito à
moradia digna dos ocupantes, através da titulação final do imóvel e a implementação da
infraestrutura básica necessária para o local, além de outras medidas jurídicas,
imobiliárias, ambientais e urbanística inerentes ao processo de regularização do
parcelamento.

18
Artigo 35, X, Lei Federal 13.465/2017

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