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CANCLINI, Néstor García.

Consumidores e Cidadãos: conflitos multiculturais da


globalização. Rio de Janeiro: UFRJ, 4.ª ed., 2001.

BAUDRILLARD, Jean. Simulacros e Simulações. Lisboa: Relógio D’água,1991.

Trabalho elaborado pelo acadêmico Jean Carlos Ramos Ventura, na forma de


fichamento para fins de avaliação parcial da disciplina de Teoria da Comunicação II,
ministrada pelo professor Me. Rafael Marques, para o 4º semestre do curso de
Comunicação Social – Jornalismo, da Universidade do Estado de Mato Grosso,
Unemat.

O livro de Néstor Garcia Canc1ini resume sua preocupação central: como se mantêm as
identidades culturais no contexto da globalização? Para o autor, é preciso rever radicalmente
as noções de identidade e cidadania nesses tempos em que os países, principalmente os mais
subordinados como os da América Latina, correm o risco de se tornar todos "subúrbios
norte·americanos" . Consumidores e cidadãos, que é na realidade uma coletânea de dez
artigos do sociólogo mexicano, mostra como o processo de globalização, baseado nos
modelos econômicos e políticos neoliberais, fortalece os meios de comunicação de massa
como principal fonte de consumo da maioria da população (principal- 363 364 estlldos
hist6ricos • 1997 - 20 mente das classes populares). Em decorrência disso, enfraquecem-se as
culturas locais, assim como os instrumentos de participação política tradicionais, como
partidos, sindicatos e movimentos sociais. Os meios de comunicação, sejam os mais antigos,
como o rádio, a TV e o cinema, sejam os pós-modernos, como o fax, as TVs a cabo, o celular,
passam a funcionar cada vez mais como o espaço público dentro das sociedades globalizadas.
O fortalecimento crescente desses espaços multimídia, transnacionais, agiria, segundo o autor,
em detrimento das identidades locais, enfraquecendo as culturas tradicionais. Esse processo só
pode ser compreendido através de estudos multidisciplinares, com participação de várias áreas
acadêmicas, como antropologia, sociologia, comunicação e psicologia. CO/lSumidores e
cidadãos demonstra a familiaridade do autor com a produção acadêmica de diversos países
latino-americanos, principalmente a do Brasil. Um dos méritos do livro é justamente o
embasamento empírico que sublinha suas fOlluulações. Canclini foi coordenador de várias
pesquisas no México e em outros países da América Latina e, nos artigos deste livro, se utiliza
principalmente de pesquisas sobre "os novos espectadores" latino-americanos e sobre um
grande festival cultural realizado na Cidade do México em 1991. Um dos resultados
importantes desses trabalhos é a constatação de que está ocorrendo uma crescente substituição
dos espaços de divertimento públicos por espaços privados. Na prática, isso significa que as
pessoas vão cada vez menos a cinemas, teatros e espetáculos, e assistem cada vez mais a
vídeo e a TV a cabo. Na Cidade do México, por exemplo, de 1.500 pessoas entrevistadas,
41,2 % não tinham ido ao cinema no último ano, assim como 62,5% e 89,2% não foram ao
teatro ou a concertos, respectivamente. Esse baixo índice de "uso coletivo do espaço urbano"
se contrapõe ao alto índice de consumo de divertimento doméstico. Na mesma cidade, 95% da
população vê diariamente televisão, 87% escuta rádio e 52% tem videocassete (p. 77). O
fenômeno, para Canclini, é conseqüência direta do processo de globalização. Nesse campo, a
indústria de bens culturais norte-americana é uma das forças hegemônicas, sendo a maior
produtora dos bens consumidos através desses circuitos de infolluação de consumo particular,
como rádio, TV e vídeo. Nas locadoras mexicanas, por exemplo, 80% das fitas de vídeo são
norte-americanas, enquanto nas TVs, a programação pode chegar a 95% de produções
importadas dos Estados Unidos. Segundo Canclini, o maior acesso aos bens materiais e
simbólicos, resultado do processo de abertura das fronteiras nacionais, "não vem junto a um
exercício global e pleno da cidadania" (p. 30), porque o processo de globalização vem sendo
acompanhado de um crescente desinteresse pelo espaço público e, conseqüentemente, pela
participação política. A política passa a ser submetida às regras do comércio e da publicidade,
sendo transformada em algo que se consome Identidades Culturais e Globalização e não mais
algo de que se participa (p. 20). A participação ficaria restrita, cada vez mais, a uma elite
tecnológico-econômica, detentora dos espaços decisórios e, por isso mesmo, apta a consumir
e a produzir produtos culturais mais sofisticados, enquanto a massa se conforma em ser
apenas "cliente" (p. 28). Para o autor, porém, o ato de consumir não se resume à aquisição de
produtos. Longe da visão de que o consumo seria apenas a realização irracional de desejos
fúteis, Canclini demonstra como o ato de consumir envolve processos socioculturais mais
amplos, onde se dá sentido e ordem à vida social e, principalmente, onde se constroem as
identidades neste mundo pós-moderno. O autor lembra que os gastos suntuosos estão quase
sempre associados a' rituais e celebrações, como, por exemplo, aniversários e festas, muitas
vezes de caráter religioso. Consumir seria, nesse contexto, um "investimento afetivo" e não
um simples gasto monetário; os bens, por sua vez, seriam "acessórios rituais", dando sentido
ao "fluxo simbólico" da vida social. O autor conclui: "consumir é tomar mais inteligível um
mundo onde o sólido se evapora" (p. 58-59). Isso explicaria por que as classes subalternas
agem freqüentemente "contra seus próprios interesses". Canclini pergunta: "por que as
maiorias votam em governantes que as prejudicam?" (p. 192). A resposta está justamente
nessa transformação das fronteiras entre público e privado. Ao votar, as pessoas estariam
apenas "consumindo" mais um produto da indústria cultural, que lhes chega através dos
aparelhos de Tv. Políticos como Menen, Fujimori e Collor seriam exemplos paradigmáticos
desse fenômeno. O candidato-governante se expõe na mídia não como um homem público,
mas como um apelo ligado ao virruosismo do "corpo e do consumo", mais adequado às
narrativas intirnistas com as quais o novo espectador "global" está habituado. Assim, o
presidente é como um herói de seriado de TV, que voa em aviões supersônicos, luta caratê,
anda de moto, passeia a cavalo, e é "consumido" como tal. Diante dessa subordinação da
política à mídia, os espaços tradicionais de negociação, como partidos, sindicatos, greves,
manifestações públicas, estariam fadados ao enfraquecimento. Mas não é só a política que
perde com a participação cada vez menor das massas. A produção culrural das localidades
específicas também se toma menos imponante diante da indúsrria cultural global,
preponderantemente none-americana. O cinema é um dos meios mais atingidos. Não se
consegue mais recuperar o investimento de filmes apenas com o produto das bilheterias, pois
as pessoas, como vimos, vão cada vez menos aos cinemas. No contexto da globalização, a
viabilidade das produções cinematográficas está condicionada tanto ao sucesso em platéias de
diversos países, quanto ao sucesso de seus subprodutos, como fitas de vídeo, produtos de
papelaria, brinquedos, CDs etc. O alto investimento necessário faz com que 365 366 estudos
históricos • 1997 - 20 geralmente as produções latino-americanas não tenham chance de
competir nesse mercado. O filme mexicano Como água para chocolate é exceção nesse
contexto. Com uma produção barata, a história alcançou sucesso internacional acima das
expectativas. Para Canclini, o exemplo serve justamente para mostrar que casos assim só
podem mesmo ser raros e que servem apenas para confirmar as regras do processo mais
amplo. Por outro lado, o autor chama a atenção para a narrativa que está sendo "exponada" do
filme para o mundo. O México da história é exótico, emocional, melodramático, privado. São,
mais uma vez, os valores dos espaços tradicionais de sociabilidade que são objeto dos
espetáculos da mídia. Para o autor, enquanto se dão as políticas de explosão das fronteiras
econômicas, como no Mercado Comum Europeu, os indivíduos particulares estariam cada vez
mais interessados em reforçar os laços primordiais, da casa, da família, do pequeno círculo de
convivência, longe do "contrato social" e das "estruturas sociopolíticas" (p. 239). Um bom
momento do livro é quando o autor relata uma entrevista feita com um estudante boliviano,
recém-chegado à universidade na Cidade do México. Perguntado sobre a importância de falar
o quéchua, sua língua materna, o rapaz responde que não fala, porque não é "útil" e porque "a
tendência é fazer coisas que sejam práticas no cotidiano" (p. 236). Neste ponto, Canclini
chama a atenção para o fato de que a continuidade do grupo não depende da valorização dos
traços de identidade coletiva, como a língua nativa, no caso do estudante. Os ideais de
"identidade nacional", que forneceriam uma identidade ao grupo, perdem espaço para as
identidades fragmentadas, segundo os arranjos dos diversos grupos. Essa preferência
explicaria também o gosto popular tão fone na América Latina por produtos culturais como a
telenovela. Como essa identidade, cada vez mais fragmentada pela ausência de um espaço
público atuante, em que se pense a nação como totalidade, pode ser alvo de políticas públicas?
Esse é um dos problemas centrais tratados por Canclini ao longo do livro: De seu ponto de
vista, um dos desafios da era atual é o de "revitalizar o Estado como representante do
interesse público, como árbitro ou assegurador das necessidades coletivas de informaçao,
recreação e inovação, garantindo que estas não sejam sempre subordinadas à rentabilidade
comercial" (p. 254). Dessa forma, países fora do eixo tecnológico-econômico, como os da
América Latina, poderiam sobreviver ao processo de globalização sem deixar esvaziar sua
cultura e identidade próprias. Consumidores e cidadãos é um livro politicamente correto e
engajado. Sendo assim, Canclini está preocupado em fornecer contribuições efetivas para
aprimorar o exercício da cidadania nos grandes centros urbanos, principalmente nos latino-
americanos. Boa pane do livro é dedicada à formulaçao de políticas Identidades Culturais e
Globalização eficazes que se contraponham ao processo mais amplo de esvaziamento do
espaço público tradicional e de empobrecimento causado pelo consumo culrural
"americanizado". A seu ver, os Estados devem produzir políticas "multissetoriais", de acordo
com a diversidade de gostos, tradições e identidades urbanas, combinando local e global.
Deve-se promover a "compreensão e o respeito das diferenças na educaçao e nas interações
tradicionais", utilizando os meios de comunicação para desenvolver o conhecimento recíproco
dessas diferenças (p. 215). Para Canclini, a integração latino-americana é um recurso
indispensável para expandir mercado e produção audiovisual próprios. O autor propõe,
inclusive, que se instiruam mecanismos que protejam a circulação e o consumo desses ben�
culrurais, com incentivos como a criação de um "fundo latino-americano de produção e
difusão audiovisual", dentro de acordos de livre-comércio mais amplos, como o Mercosul (p.
216). Só assim seria possível a1cançaullos uma cidadania que "não se constirui apenas em
relação a movimentos sociais locais, mas também em processos de comunicação de massa"
(p. 1J5). Nota J. A frase foi dita por um delegado francês durante a reunião do GA TI, em
dezembro de 1993, e é citada pelo autor (p. 163). 367
"A impressão que se tem quando se lê Adorno expressando sua incontida ojeriza contra "a
manipulação comercial" dos bens culturais produzidos a partir da invenção do rádio, do
cinema ou da indústria fonográfica é a de que no passado os produtos artísticos e ideológicos
eram realizados por mero diletantismo de pessoas abnegadas" (p. 20).
Rita Lírio de Oliveira1 “O que estamos fazendo ao narrar o multiculturalismo e qual o
significado dessa operação nas sociedades contemporâneas”. Esta é a preocupação central que
o teórico argentino-mexicano Canclini (2001, p. 143) almeja compartilhar com os leitores no
capítulo intitulado Narrar o multiculturalismo, do livro Consumidores e Cidadãos, publicado
em 2001. Para tanto, tomando por base os estudos culturais, propõe discutir o estado e o
funcionamento contemporâneos do multiculturalismo, por meio de um diálogo com questões
costumeiramente tratadas em âmbito literário, como as que versam sobre narrativa e
imaginário. Sabe-se que os Estudos Culturais têm por maiores enfoques as abordagens,
problematizações e reflexões relativas à cultura, analisando a produção cultural de uma
sociedade, a fim de entender o comportamento e as idéias compartilhadas pelas pessoas que
nela vivem, principalmente num tempo em que se procura romper com preceitos tradicional e
conservadoramente arraigados, promovendo a hibridação com novas concepções. Em suma,
os Estudos Culturais se preocupam em intensificar os debates a respeito da cultura e seu
significado político. É justamente o que faz Canclini no capítulo citado, ao abordar o
multiculturalismo como embate de duas forças: a teorização acadêmica construtivista, que
concebe “as identidades como historicamente constituídas, imaginadas e reinventadas em
processos de hibridização e transnacionalização” (CANCLINI, 2001, p. 144), e os
movimentos sociopolíticos, que “absolutizam o enquadramento territorial originário das
1 Mestranda em Linguagens e Representações pela UESC. Membro do Grupo de Pesquisa
Identidade Cultural e Expressões Regionais – ICER. Site: www.ritalirio.com E-mail:
rita_lyrio@hotmail.com 1 Mestranda em Linguagens e Repre sentações pela UESC. Grupo de
Pesquisa Identidade Cultural etnias e nações, fixam dogmaticamente os traços biológicos e
telúricos associados a essa origem como se fossem alheios às peripécias históricas e às
mutações contemporâneas” (CANCLINI, 2001, loc. cit.). Os Estudos Culturais surgem
justamente quando determinados grupos sociais fundamentalistas tentam ainda persuadir e
estabelecer que uma identidade corresponde a ser parte de uma nação espacial e culturalmente
delimitada, cujos elementos identitários – língua, objetos, costumes – diferenciam tal nação
das demais, repudiando e “se opondo às leituras construtivistas do multiculturalismo e
ignorando seu caráter polifônico, imaginário e híbrido” (CANCLINI, 2001, p. 147). Deste
modo, Canclini expõe que grande parte da produção artística e literária continua sendo feita
como representação das tradições, imaginário e identidades nacionais, voltada para o consumo
interno. Todavia, outra parte, cada vez mais extensa, começa a operar de forma
desterritorializada, com senso cosmopolita e ecos internacionais. Canclini demonstra
preocupação com a influência dos grupos sociais fundamentalistas, ainda vigente, sobretudo
na América Latina, razão pela qual argumenta que cabe aos Estudos Culturais o papel
fundamental de fomentar uma maior abertura e transnacionalização das culturas,
principalmente conhecendo e entendendo os mecanismos utilizados por esses grupos para
preservar o localismo de suas culturas. É neste cenário que a identidade passa a ser
considerada com uma construção imaginária que se narra, haja vista que as referências dessa
identidade se formam principalmente nas produções textuais e iconográficas obtidas pelos
meios mais modernos de comunicação globalizada, em detrimento das artes, literatura e
folclore. O autor toma como objeto de análise a metrópole superpopulosa Cidade do México,
cujo patrimônio cultural, em tempos idos, poderia representar o seu território e a sua história.
Todavia, para Canclini, não há como a cidade atual ser narrada, descrita ou explicada como
anteriormente o era. Isto porque naquele país como um todo, encontram-se e convivem
elementos culturais da América Latina e boa parte do mundo. Assim, Canclini propõe que a
capital mexicana, considerando o crescimento desordenado da cidade, o multiculturalismo
presente e as tecnologias comunicacionais modernas, seja vista e narrada como num
videoclipe, por meio de uma gama de imagens descontínuas, vindas de todas as partes, e de
uma montagem não-linear que não obedece a ordenamentos inflexíveis. Por fim, Canclini
questiona se, num ambiente desconexo e caracterizado pela falta de sentido, podem haver
histórias a serem narradas, para depois deixar transparecer que o melhor a se fazer é encontrar
uma fina sintonia entre as forças culturais – tradicionais e modernas – que simultaneamente
regem o mundo.

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