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CONSIDERAÇÕES SOBRE A REFORMA PSIQUIÁTRICA NO BRASIL: em tempos

de neoliberalismo

1
Katiane Pereira Soares

Resumo: O cenário atual em saúde mental é marcado pelo debate


acerca da Reforma Psiquiátrica que, por sua vez, apresenta novas
formas de tratamento direcionado aos sujeitos em sofrimento
psíquico. A atual política em saúde mental propõe um novo modelo
baseado na atenção psicossocial. O movimento pela reforma
psiquiátrica brasileira, surge em meio à conjuntura de
redemocratização, no final da década de 70. Recebe influência de
movimentos de outros países, principalmente da reforma democrática
italiana, o processo de reforma no Brasil é marcado por
singularidades. O contexto neoliberal apresenta obstáculos que
dificultam a efetivação do processo de reforma psiquiátrica.
Palavras-chave: Reforma psiquiátrica, neoliberalismo, política
pública, saúde mental.

Abstract: The current scenery in mental health is marked by the


debate concerning the Psychiatric Reform that, at your time, presents
new treatment forms guided to the subjects in psychic suffering. The
current politics in mental health proposes a new model based on the
psychosocial attention . The movement for the Brazilian psychiatric
reform, appears amid the redemocratization conjuncture, in the end of
the decade of 70. Receiveving influence of movements of other
countries, mainly of the Italian democratic reform, the reform process
in Brazil is marked by singularities. The neoliberal context presents
obstacles that hinder the execution of the process of psychiatric
reform.
Key words: Psychiatric reform, neoliberalism, public politics, mental
health.

1
Mestranda. Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Email: katiphenix@hotmail.com
I-INTRODUÇÃO:

A psiquiatria desde seu nascimento é uma instituição debatida, tanto em sua


dimensão prática quanto teórica. No plano teórico passa a se problematizar os conceitos de
doença mental, de normalidade, de cura, de periculosidade, de incapacidade, de tutela. Com
relação à dimensão prática o hospital psiquiátrico passa a ser questionado enquanto lugar
terapêutico. Problematiza-se também as relações entre técnicos, a sociedade e o dito louco.
Conseqüentemente se constrói um terreno fértil para contestações tanto das técnicas
praticadas pela psiquiatria quanto das teorias que as sustentam. Podemos citar como
movimentos reformadores as Comunidades Terapêuticas, Psicoterapia Institucional,
Psiquiatria de Setor, Psiquiatria Preventiva, Antipsiquiatria e Psiquiatria Democrática
Italiana. O texto apresenta algumas considerações acerca da atual política em saúde
mental, esta visa concretizar a reforma psiquiátrica. Pontua traços importantes da reforma
psiquiátrica no Brasil, desde seu surgimento em meados da década de 70 com o
surgimento do Movimento dos Trabalhadores em Saúde Mental (MTSM), como também
suas principais dimensões e singularidades. Finaliza apresentando algumas relações entre
as mudanças ocorridas no Estado brasileiro e suas repercussões na implementação das
políticas públicas, enfatizando a política voltada para atenção em saúde mental.
II - Considerações sobre Reforma Psiquiátrica no Brasil, em tempos de
Neoliberalismo:

O movimento pela reforma psiquiátrica, objetiva não somente redirecionar o modelo


assistencial em saúde mental, mas prioritariamente construir um novo espaço social para a
loucura. Assim sendo, o movimento pela reforma psiquiátrica não limita sua ação a
reformulação institucional, técnica e administrativa, nem tão pouco a modernização ou
humanização dos hospitais psiquiátricos. A reforma psiquiátrica questiona o saber e prática
da psiquiatria tradicional, intervindo no âmbito das relações da sociedade com a loucura. Na
perspectiva adotada por Amarante (2003), a reforma psiquiátrica se configura como um
processo social complexo, já que a mesma encontra-se em processo constante de
construção, como também é constituída por várias dimensões que se interligam entre si,
dentre elas a teórico-conceitual, técnico-assistencial, jurídico-política e sócio-cultural.
Envolve atores sociais concretos e os sujeitos em sofrimento psíquico adquiriram status de
protagonista e não somente objeto de intervenção da psiquiatria tradicional.

A reforma propõe um novo modelo de atenção psicossocial, neste o individuo em


sofrimento psíquico assume papel de sujeito, a psiquiatria é entendida como mais uma
disciplina que contribui na intervenção sobre o fenômeno da loucura, porém longe de ser a
única detentora do saber. O novo modelo de atenção possui como foco para sua
intervenção a produção de saúde e não mais a doença mental.

A desistitucionalização constitui um dos aspectos centrais e mais evidente deste


movimento, que mobiliza sujeitos sociais e profissionais nas áreas médica e social. A
desinstitucionalização objetiva desconstruir, no cotidiano das instituições e da sociedade, as
formas arraigadas de lidar com a loucura. A atual política de atenção em saúde mental
encaminha-se no sentido de quantificar, expandir e fortalecer a rede extra-hospitalar
efetivando assim uma progressiva desospitalização, já que os hospitais psiquiátricos
passam a ser questionados como lugar de tratamento e cura.
As políticas públicas de atenção em saúde mental buscam consolidar uma rede
territorial de atenção diversificada, atendendo desde problemas psiquiátricos simples aos
mais graves. A rede engloba leitos psiquiátricos em hospital geral, ambulatórios, serviços
substitutivos de atenção psicossocial, serviços residenciais terapêutico, outras estratégias
de residencialidade, como também cooperativas sociais de trabalho, dentre outros. Os
serviços substitutivos são considerados estratégicos para consolidação da transformação da
assistência em saúde mental. Estes são regulamentados pela portaria GM Nº336, de 19 de
fevereiro de 2002. A nova forma de estruturar o atendimento direto aos usuários e a seus
familiares prevê a criação de Centros de Atenção Psicossocial (CAPS), implantados
seguindo uma lógica territorial, que pretende aproximar estes equipamentos dos lugares de
vida, do cotidiano dos usuários, inserindo-os na vida da comunidade. Os CAPS são
classificados em três modalidades, segundo os serviços prestados: CAPS I, CAPS II e
CAPS III. Estes são definidos por ordem crescente de acordo com o porte, a complexidade e
abrangência populacional.

No Brasil, a reformulação da assistência ao portador de transtorno mental consiste


em uma necessidade discutida há várias décadas. O projeto de lei nº 3657/89, de autoria do
Deputado Paulo Delgado (PT-MG), apresentado a Câmara dos Deputados em 1989,
conhecido como a lei da reforma psiquiátrica, tem como princípio a extinção progressiva dos
manicômios e sua substituição por outros recursos assistenciais. Após aprovação na
Câmara, o projeto enfrentou dificuldades no Senado que aprovou dez anos depois um
substitutivo bem mais tímido no que se refere à substituição asilar. A reforma psiquiátrica
brasileira é um processo que surge mais concretamente a partir da conjuntura da
redemocratização, no final da década de 1970, fundado não apenas na crítica conjuntural ao
sistema nacional de saúde mental, mas e principalmente, na crítica estrutural ao saber e às
instituições psiquiátricas clássicas. Tal processo ocorreu no bojo de toda movimentação
política social que caracteriza esta mesma conjuntura de redemocratização (AMARANTE,
1995, p. 91).

No contexto da segunda metade dos anos 1970, as críticas ao Estado autoritário,


crítica a assistência publica em saúde, denúncias de abandono, violência e maus-tratos a
que eram submetidos os pacientes internados nos muitos e grandes hospícios do país. É
dentro desse cenário que em 1978 cria-se o Movimento de Trabalhadores em saúde mental,
este foi um dos principais atores do movimento pela reforma psiquiátrica, onde a partir dele
emerge de forma mais sistemática, a proposta de reformulação do sistema assistencial e
consolida-se o pensamento crítico ao saber psiquiátrico. No decorrer de suas lutas assume
caráter antimanicômial, chamando a sociedade para discutir a relação “O louco e a
loucura”. .

O rumo das políticas públicas em saúde mental muda radicalmente seu


direcionamento em abril de 1978. Período que marca a primeira greve no serviço público do
período militar. Quatro unidades psiquiátricas federais (Centro Psiquiátrico Pedro II, Hospital
Pinel, Colônia Juliano Moreira e Manicômio Judiciário Heitor Carrilho) realizaram graves
denúncias de violação dos direitos humanos de internos e técnicos. Denúncias de estupro,
agressões físicas, trabalho escravo e mortes suspeitas, reinvidicavam também melhores
condições de trabalho e assistência. Devido à conjuntura histórica como também a
dimensão ética, esse fato teve apoio da forças sociais democráticas que lutavam contra o
regime militar. O ano de 1987 representa um marco, pois, a partir dele que se passa a
problematizar um novo lugar social para o sujeito em sofrimento psíquico, a crítica não mais
se reduzia aos interiores do hospital psiquiátrico. Após o II Congresso Nacional dos
Trabalhadores de Saúde Mental realizado em Bauru. Introduz o lema “Por uma Sociedade
sem Manicômio”, e define como 18 de maio o Dia Nacional da Luta Antimanicômial.

Além dos referidos acima outros acontecimentos importantes ao que concernem


à saúde pública marcam o Brasil no final dos anos 80. O movimento de Reforma Sanitária
conquista a aprovação da Constituição de 88. Afirmando a saúde como direito de todos e
dever do Estado. A criação do SUS, garantindo a universalidade, equidade e
descentralização dos serviços prestados. Em maio de 1989 o processo de reforma
psiquiátrica no Brasil ganha proporções Nacionais a partir de uma série de óbitos de
internos ocorridos no hospital psiquiátrico “Casa de Saúde Anchieta”, localizado no
município de Santos/SP. Tal situação exigiu intervenção da Secretaria Municipal de Saúde.
Foram criadas dentro daquela realidade as condições para implantação de um sistema
psiquiátrico completamente substitutivo ao modelo manicômial. Segundo Lobosque: “Num
movimento inédito de audácia e criatividade, Santos abriu caminho para todo Brasil, ao
demonstrar a viabilidade concreta e a fertilidade intensa da proposta de uma sociedade sem
manicômio.”
A política em saúde mental não pode ser entendida separada do contexto social mais
amplo. A mesma está intrinsicamente relacionada a política de saúde em geral. Segundo
Texeira (1989), a política de saúde na década de 80 foi marcada pela politização da questão
da saúde, pela alteração da norma constitucional e por mudanças do arcabouço e das
práticas institucionais. Tendo como referencial teórico Alba (2005), não podemos deixar de
pontuar as repercussões na reorganização do Estado brasileiro, considerando este
enquanto agente principal na implementação das políticas públicas. Segundo estudos da
autora supra citada, a reorganização do Estado brasileiro é marcado por dois processos
estruturais contraditórios. O primeiro refere-se ao processo de democratização a partir dos
anos 70, onde a rearticulação da sociedade civil amplia por via política suas lutas pela
constituição e redefinição de direitos. O segundo processo é a inserção à nova ordem do
capital, em meados dos anos 90, com implementação do ajuste estrutural e políticas
neoliberais, e hegemonia da lógica da mercantilização. Cada um desses processos
configura características estatais distintas. A democratização possibilita um Estado
democrático com participação coletiva nos espaços públicos, exercício na deliberação e
controle social. A segunda perspectiva condiz com Estado ajustador caracterizado pela
direção privatista, individualista, enfatizando a participação solidária e a responsabilidade do
indivíduo em detrimento do Estado. Nos dias atuais impera a tendência a segunda
perspectiva contribuindo para política focalistas e seletivas. Referimos anteriormente que o
movimento pela reforma psiquiátrica foi favorecido pelo processo de redemocratização em
nosso país, dessa forma podemos afirmar que os princípios da reforma psiquiátrica
condizem com aqueles defendidos pelo Estado democrático. De acordo Maria Célia e Vera
da Silva Telles, em uma análise política do Brasil contemporâneo (2000), afirmam como
legados democráticos a elaboração e difusão de uma “consciência do direito a ter direito”,
onde a cidadania é buscada como luta e a reivindicação de direitos interpelam a sociedade.
Considerando que historicamente a psiquiatria é marcada pelo forte traço de exclusão
daqueles que violentamente são denominados “loucos”, o movimento de reforma
psiquiátrica com seus ganhos legislativos, sua proposta de atenção psicossocial, como
também o debate que suscita acerca da relação louco/sociedade, não pode negar esse
ganho democrático que configura a luta e o reconhecimento por direitos. Uma segunda
conquista apresentada pelas autoras, refere-se à resignificação de valores pelos
movimentos sociais. Conquista também condizente com a proposta da reforma psiquiátrica,
já que este movimento trás a tona questões negadas e reprimidas ao longo da história.
Sabemos que as políticas destinadas aos sujeitos em sofrimento psíquico são marcadas por
fortes conteúdos discriminatórios, excluindo do corpo social aqueles que apresentam algum
tipo de anormalidade, o imaginário social coletivo é habitado por representações negativas
sobre o “louco”, visto como perigoso, indomável, incapaz. O movimento pela reforma
questiona o paradigma tradicional e possibilita expressão e fala da minoria tornada invisível
atrás dos muros dos hospitais psiquiátricos.

Encontramos também marcas do Estado ajustador na reforma psiquiátrica. Um dos


principais princípios defendidos pela reforma, a desistitucionalização, muitas vezes é
modificada e transformada em desobrigação estatal, passando na maioria
dos casos como responsabilidade única do núcleo familiar. Devido ao limite deste
artigo, não nos cabe aqui aprofundar o debate sobre o cuidado na família, porém
consideramos aspecto central, pois, esta instituição tem seu papel reconfigurado
diante das reformulações na atenção em saúde mental. A desistitucionalização implica
em investimentos de outros recursos e modelos de assistência, já que a redução de
leitos psiquiátricos tradicionais não garantem a oferta de outras alternativas para
clientela. Segundo pesquisas desenvolvidas pelo projeto transversões2 , o período
2000-2006, houve um investimento político e econômico significativo na expansão do
numero de Centros de Atenção Psicossocial (CAPS) no país. Porém as pesquisa
mostram que a maioria refere-se a implantação de CAPS I, II e Centros de
Convivência. Estes serviços não são inteiramente substitutivos e muitas vezes sofrem
sucateamento, burocratização e institucionalização, devido a população de referência
muito grande. O ideal para concretização efetiva da reforma é o aumento do número
de CAPS III, porém como exigem recursos mais complexos ainda são em número
insuficientes. Nas grandes cidades o risco de desasistência é alto, pois, a extinção dos
leitos psiquiátricos tradicionais não são acompanhados devidamente pelos serviços
substitutivos de atenção psicossocial.

As modificações a partir dos anos 80 devido ao processo de reestruturação


produtiva, ocasionam alterações no mundo do trabalho. Fato que incide no fazer
profissional dos trabalhadores em saúde mental, estes enfrentam muitas vezes
deteriorização das condições de trabalho e precarização dos vínculos trabalhistas.

III –CONCLUSÕES:

Concluímos que os apontamentos apresentados neste artigo configuram as idéias


centrais de uma pesquisa ainda em andamento. Certa de que somente o tempo e a
dedicação ao aprofundamento das questões ora apresentadas revelaram a riqueza
nesse campo de reflexão instigante que constitui o campo da saúde mental.

2
Projeto integrado de pesquisa, coordenado pelo Professor Doutor Eduardo Mourão Vaconcelos.
Desenvolvido pela Escola de Serviço Social da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Objetiva
investigar abordagens psicossociais em geral e o campo da saúde mental em particular.
Referências:

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